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03/12/2023, 00:43 4 textos sobre teatro pro blog do FITBH – juliano gomes
abordar e escrever sobre arte. Foi uma ótima experiência trocar com um
grupo e com todo evento e oxigenar a cognição.
Descolonização, negritude, racialidade, e principalmente uma urgência
epistemológica, de movimentar as formas de ver, pensar e encenar, foram a
tônica do que vi lá. Os textos refletem isso.
Abaixo, vou copiar os textos que escrevi para efeito de arquivo.
É isto um adulto?
1
A peça peruana, dirigida por Alejandro Clavier nos apresenta a topeira Simón,
sua família, no dia de seu aniversário. Daí, interrompe-se a ação da
comemoração e abre-se um flashback, onde será contada a história dessa
topeira-menino. Simón e sua família são apresentados como bonecos no
espetáculo, habitando um balcão de madeira no centro do palco. Vemos os
atores o tempo todo manipulando os bonecos: nem a roupa deles nem a
iluminação escondem os performers humanos. Neste sentido, é também
vazada a parte de baixo do balcão cênico, para que possamos ver quando as
topeiras se escondem.
Pelas características do jogo cênico, já se pode perceber que o duplo
processo de mostrar/esconder (e seus efeitos) é a base do drama, é o centro
conceitual do espetáculo. A fábula deste menino narra uma série de episódios
ligados a um rito de passagem, de uma descoberta de si, uma auto-
constituição afetiva, marcada por ações de repressão, em especial de seu pai.
Como, por exemplo, quando Simon é reprimido pela figura paterna por gostar
de borboletas e de flores, sem que houvesse nenhuma razão aparente. O
foco do enredo é a travessia de Simon e os seus para um ponto onde os
afetos repressivos dos adultos não façam sentido, que se consuma na festa
de aniversário que funciona como moldura narrativa, encerrando e iniciando a
peça.
A característica dos manipuladores evidentes nos convida para uma forma de
perceber onde há permanentemente dois registros. A exposição contínua e
deliberada dos condutores dos bonecos em nada atrapalha o potencial
imersivo do trabalho. Chama atenção, por exemplo, a cena da chuva, quando
Simón tenta sair de sua casa. O jogo entre iluminação, cenografia e objetos de
cena convergem de modo eficiente e crível, ao mesmo tempo que um grande
ventilador se posta sobre o palco-balcão. Este trabalho parece não opor algo
que é constituinte do teatro: a relação entre o artificial e o verdadeiro. Os
meios são sempre “falsos” para chegar a um lugar afetivamente verdadeiro. O
teatro é onde dois estatutos de pessoas podem viver uma experiência
transformadora juntos: a separação entre quem apresenta e quem vê, a
diferença, é desejada, e meio para ampliação mútua de si. Aqui nesta peça, o
que vemos exposto é o teatro falso da moral “adulta”, onde supõe-se que
haveria motivo possível para ser ruim uma pessoa gostar de uma borboleta,
de uma flor, ou mandar um beijo para um amigo do mesmo sexo. É essa farsa
que, sutilmente, o trabalho aborda.
Diante da diferença de estatuto entre humanos e os bonecos em suas mãos,
nossa percepção pode escolher entre um e outro, e pode também
acompanhar os dois. Há um convite para uma certa fruição não-binária, que é
afinal característica do pacto teatral e sua poderosa capacidade de crença
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2
Uma platéia lotada de crianças parecia completamente absorvida pelo
espetáculo. Ao final, conduzimos uma conversa. Ao contrário dos adultos, em
situações de debates, crianças perguntam o que querem saber. Em um
momento, um dos pequenos espectadores lança a pergunta: “por que Simón
deu um beijo em Raul?”. O diretor, ao palco, devolveu a pergunta ao público,
perguntando se alguém saberia responder. Um braço fino lá atrás se levantou:
“Porque ele gosta dele”. Pronto. Infelizmente, os adultos teriam uma
dificuldade imensa em chegar a esta fórmula poderosa.
De certa maneira, assim como se convenciona chamar uma peça como esta
montagem peruana de teatro infantil, talvez seja mais adequado chamá-la
de teatro adulto. Que signos nos conduzem à idéia de peça infantil? Cores
vivas, bonecos, humor, enredos reconhecíveis, platéia sincera? A distinção
mais decisiva provavelmente é a de certa função pedagógica das profissionais
que tomam para si esta característica. A produção que se relaciona com este
rótulo toma para si abertamente a tarefa de formação do seu público. O que
define o teatro infantil é sua frontalidade ética, sua atitude abertamente
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voltada a produzir e instituir valores comunitários. Mas não seria essa uma
definição de arte política?
(Uma menina levantou a mão nesse momento final: “é a primeira vez que vejo
alguém falar espanhol”. Essa observação me leva a supor que não é a primeira
vez que ela vê um menino que manda um beijo para outro. O que a
surpreende é outra coisa.)
A questão não é falar de assunto de adultos para crianças, mas o contrário.
Como fazer com que adultos possam sentir e expressar o que sentem,
possam ter relações menos codificadas, menos represadas, que consigam
elaborar o que sente sem criar essa celeuma violenta pela via da interrupção
autoritária? De certa maneira, esta talvez seja a peça mais adulta do FIT BH,
pois é “adulto” seu tema, e subversivo o acontecimento de sua encenação na
cidade – assombrada por esses ódios sem razão.
Um teatro político visa alterar, fazer o que não está dado, instituir e assumir
riscos de sua própria conjuntura. Foi isso que pudemos observar no Teatro
Marília nesta segunda a tarde. Eu, adulto – apesar de certo constrangimento
em assumir sê-lo diante de tanta toxicidade de nossa infantilidade mórbida –
aprendi demais com o encanto ali compartilhado por pouco menos de uma
hora.
decisiva: não esquivar-se mas sim tomar para si esse inventário do genocídio
permanente do corpo, ativando no trabalho uma dimensão histórica que é
talvez um de seus maiores feitos.
3
É extremamente singular como a idéia de história se aviva no trabalho. Sem
nenhuma referência explícita, pelo menos quatro séculos de história
diaspórica atravessam a obra que tão poucos elementos em cena tem. O
dispositivo cênico, a relação entre aquele corpo e palco, evoca um imaginário
dos “shows de aberrações” europeus onde corpos negros eram exibidos
como monstros curiosos, enjaulados, onde, pagando, podia-se tocar nele e
desfrutá-lo como objeto. Resumindo: escravidão, mas no ramo do
entretenimento – nada mais atual. Essas apresentações foram extremamente
populares e revelavam o pacto mórbido entre teatro e ciência, isto é, eram
amparados por um retórica científica que “justificava” esses rituais sádicos.
Evocar essa memória é apontar justamente esta confluência das instituições
eurobrancas, teatro e ciência, em direção à manutenção de uma cena onde
uma estética da tortura se torna uma pedra fundamental culturalmente,
economicamente e discursivamente. Produz-se normalidade a partir dessas
práticas. Essa convergência histórica faz com que o Blancoevocado pelo
trabalho se multiplique e se historicize. Todo palco italiano é também
manchado de sangue, entretanto, o passo seguinte não é inviabilizá-lo por
culpa católica mas tomar posse dele, torcer seus usos em direção à
experiência de liberação, de recoreografar a divisão dos poderes fissurando a
dança dos donos das jaulas.
O corpo de Mattiuzzi, não só negro, mas de cabelo raspado, arredondado,
evoca Saartjie Baartman, a sulafricana que foi levada pra Europa no século XIX
e exposta como aberração do entretenimento e da ciência, que ficou
conhecida como a Vênus Negra. A ausência da variedade dos corpos negros
em cena produz um duplo efeito na sua presença. Por um lado, evidencia a
ausência ao quebrá-la e historiciza as presenças em sua exceção, solicita uma
história destes aparecimentos. Mas a diferença é capital: Matiuzzi está à nossa
frente sem donos nem jaulas, compondo sua poética e realizando seu
exercício de historiadora dissidente ao mesmo tempo, compondo um dos
pontos decisivos da história da arte da performance brasileira, e da
elaboração inventiva dos traumas que formam o país.
4
A crítica institucional igualmente se ativa como matéria de ação na medida em
que o “agradecimento” é também ao teatro onde estamos, as empresas que
o patrocinam e ao seu papel na coreografia necropolítica que mantém a
divisão entre corpos que vivem e os que morrem. O espaço teatral se
desneutraliza e o espetáculo se espalha por nossa cognição produzindo
estranhamento dessa ambiguidade permanente que é estar dentro e estar
fora das instituições, raivosamente agradecer, uma espécie de gratidão
mortífera.
5
Como espectador, é produzida uma extrema ambigüidade na nossa presença,
em especial no momento em que a artista se equilibra num banco molhado de
tinta, de salto alto, na iminência de cair. Ficamos diante de um corpo em risco
verdadeiro, nos tornando estranhos cúmplices. Essa bomba afetiva que nos
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“É preciso saber rir da morte” diz Ricardo Aleixo num debate ao lado de
Michelle Matiuzzi, no dia seguinte à apresentação de Michelle Mattiuzzi.
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O trabalho político de destruição da objetificação não é exatamente o da
negação da objetificação mas da tomada do processo para si, para aqueles
que são e foram objetificados. Esta ativação ambígua e pessimista do
processo da objetificação/comodificação é o campo do trabalho de Mattiuzzi,
que faz dele material de trabalho voltado para um exorcismo extasiante e
doente.
14
Merci beaucoup, blanco! é um veneno que nos arrasta e desconcerta, e que
deixa rastros muito difíceis de apagar. Viva.
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juliano gomes
Escrevo sobre cinema, música, dou aulas, faço filmes e aceito convites.
27 set 2018
Sem categoria
2018, critica, descolonização, estética, fitBH, negritude, performance, teatro
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