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03/12/2023, 00:43 4 textos sobre teatro pro blog do FITBH – juliano gomes

JULIANO GOMES SOBRE


crítica, imagens, pensamento, cinema, música, artes, política

4 textos sobre teatro pro


blog do FITBH

Semana passada, participei do Painel Crítico do Festival Internacional de


Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte. Nessa atividade, um grupo de críticos
acompanha reflexivamente a programação do evento publicando textos
sobre a programação no site do FIT.
Escrevi sobre 4 trabalhos:
É isto um adulto? desdobra a peça peruana Simón, El Topo, e descreve um
pouco da experiência de um debate quase ś com crianças.
Sangro quanto saúdo parte da apresentação da performance merci
beaucoup, blanco! de Michelle Mattiuzzi
A descolonização é um programa de desordem absoluta comenta a peça
portuguesa Libertação, que tematiza os processos de independências dos
países colonizados por Portugal na África.
Sob aquosas fiações do tempo reflete sobre a experiência Quaseilhas,
apresentada no FIT por jovens artistas de Salvador BA.
No site onde estão os textos há também mais informações sobre os
trabalhos, além dos textos das minhas colegas, diversos em formas de

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abordar e escrever sobre arte. Foi uma ótima experiência trocar com um
grupo e com todo evento e oxigenar a cognição.
Descolonização, negritude, racialidade, e principalmente uma urgência
epistemológica, de movimentar as formas de ver, pensar e encenar, foram a
tônica do que vi lá. Os textos refletem isso.
Abaixo, vou copiar os textos que escrevi para efeito de arquivo.

É isto um adulto?
1
A peça peruana, dirigida por Alejandro Clavier nos apresenta a topeira Simón,
sua família, no dia de seu aniversário. Daí, interrompe-se a ação da
comemoração e abre-se um flashback, onde será contada a história dessa
topeira-menino. Simón e sua família são apresentados como bonecos no
espetáculo, habitando um balcão de madeira no centro do palco. Vemos os
atores o tempo todo manipulando os bonecos: nem a roupa deles nem a
iluminação escondem os performers humanos. Neste sentido, é também
vazada a parte de baixo do balcão cênico, para que possamos ver quando as
topeiras se escondem.
Pelas características do jogo cênico, já se pode perceber que o duplo
processo de mostrar/esconder (e seus efeitos) é a base do drama, é o centro
conceitual do espetáculo. A fábula deste menino narra uma série de episódios
ligados a um rito de passagem, de uma descoberta de si, uma auto-
constituição afetiva, marcada por ações de repressão, em especial de seu pai.
Como, por exemplo, quando Simon é reprimido pela figura paterna por gostar
de borboletas e de flores, sem que houvesse nenhuma razão aparente. O
foco do enredo é a travessia de Simon e os seus para um ponto onde os
afetos repressivos dos adultos não façam sentido, que se consuma na festa
de aniversário que funciona como moldura narrativa, encerrando e iniciando a
peça.
A característica dos manipuladores evidentes nos convida para uma forma de
perceber onde há permanentemente dois registros. A exposição contínua e
deliberada dos condutores dos bonecos em nada atrapalha o potencial
imersivo do trabalho. Chama atenção, por exemplo, a cena da chuva, quando
Simón tenta sair de sua casa. O jogo entre iluminação, cenografia e objetos de
cena convergem de modo eficiente e crível, ao mesmo tempo que um grande
ventilador se posta sobre o palco-balcão. Este trabalho parece não opor algo
que é constituinte do teatro: a relação entre o artificial e o verdadeiro. Os
meios são sempre “falsos” para chegar a um lugar afetivamente verdadeiro. O
teatro é onde dois estatutos de pessoas podem viver uma experiência
transformadora juntos: a separação entre quem apresenta e quem vê, a
diferença, é desejada, e meio para ampliação mútua de si. Aqui nesta peça, o
que vemos exposto é o teatro falso da moral “adulta”, onde supõe-se que
haveria motivo possível para ser ruim uma pessoa gostar de uma borboleta,
de uma flor, ou mandar um beijo para um amigo do mesmo sexo. É essa farsa
que, sutilmente, o trabalho aborda.
Diante da diferença de estatuto entre humanos e os bonecos em suas mãos,
nossa percepção pode escolher entre um e outro, e pode também
acompanhar os dois. Há um convite para uma certa fruição não-binária, que é
afinal característica do pacto teatral e sua poderosa capacidade de crença
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combinada à diferença. De certa forma, o que está em jogo no romance de


formação desta simpática topeira é a farsa do “mundo dos adultos” em
relação mais específica com a homoafetividade masculina. O momento em
que isso se consuma é no aparecimento da topeira Raul – cujo boneco é
praticamente idêntico a Simón – e com quem ele pode não represar o que
sente, com quem entenderá que o que sente não está “errado”.
O tema da formação da afetividade masculina é uma questão política decisiva
do nosso tempo e cuja reforma urge. A recofidificação, ou melhor, a
descodificação da relação entre meninos, homens, está ligada, por exemplo, à
intensa onda de conservadorismo que vivemos hoje. Essa onda – que há
pouco tempo insuflava pessoas a quererem fechar uma exposição de arte há
metros do teatro onde vi esta peça – tem como combustível essa vivência do
afeto repressivo, represado, autoritário que é afinal explosivo porque não tem
substância compartilhável. O pai de Simón não expõe razão ou argumento
para algo completamente disparatado como curtir o voo de uma borboleta. A
performance enérgica desse exército de “pais de Simón” (o espetáculo
trabalha com precisão a entonação militarizante das ordens da topeira-pai)
está condicionada ao fato de que não há razão possível para a não expressão
do afeto amoroso. Expor argumento é poder trocar, é colocar as ferramentas
do discurso e do poder à disposição do outro, é instituir algum tipo de
igualdade de condições. Esta atitude intransitiva que distribui ordens sem
razão dizendo “porque é”, “é assim”, “homem é assim”, é somente a forma
mais destrutiva de elaborar o medo desta linda máquina desvairada de sentir
que é o ser humano.
A topeira, esse bicho que se esconde, é uma imagem do jogo de manejo dos
afetos onde os adultos, e em especial os pais, ao não conseguir elaborar e dar
vazão ao que sentem, contaminam de medo suas crianças, fomentando essa
doença subjetiva que se abate sobre a homoafetividade masculina em que
qualquer gesto pode se tornar “suspeito de desvio” em direção ao pesadelo
genocida criado em torno da idéia de homossexualidade.

2
Uma platéia lotada de crianças parecia completamente absorvida pelo
espetáculo. Ao final, conduzimos uma conversa. Ao contrário dos adultos, em
situações de debates, crianças perguntam o que querem saber. Em um
momento, um dos pequenos espectadores lança a pergunta: “por que Simón
deu um beijo em Raul?”. O diretor, ao palco, devolveu a pergunta ao público,
perguntando se alguém saberia responder. Um braço fino lá atrás se levantou:
“Porque ele gosta dele”. Pronto. Infelizmente, os adultos teriam uma
dificuldade imensa em chegar a esta fórmula poderosa.
De certa maneira, assim como se convenciona chamar uma peça como esta
montagem peruana de teatro infantil, talvez seja mais adequado chamá-la
de teatro adulto. Que signos nos conduzem à idéia de peça infantil? Cores
vivas, bonecos, humor, enredos reconhecíveis, platéia sincera? A distinção
mais decisiva provavelmente é a de certa função pedagógica das profissionais
que tomam para si esta característica. A produção que se relaciona com este
rótulo toma para si abertamente a tarefa de formação do seu público. O que
define o teatro infantil é sua frontalidade ética, sua atitude abertamente

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voltada a produzir e instituir valores comunitários. Mas não seria essa uma
definição de arte política?
(Uma menina levantou a mão nesse momento final: “é a primeira vez que vejo
alguém falar espanhol”. Essa observação me leva a supor que não é a primeira
vez que ela vê um menino que manda um beijo para outro. O que a
surpreende é outra coisa.)
A questão não é falar de assunto de adultos para crianças, mas o contrário.
Como fazer com que adultos possam sentir e expressar o que sentem,
possam ter relações menos codificadas, menos represadas, que consigam
elaborar o que sente sem criar essa celeuma violenta pela via da interrupção
autoritária? De certa maneira, esta talvez seja a peça mais adulta do FIT BH,
pois é “adulto” seu tema, e subversivo o acontecimento de sua encenação na
cidade – assombrada por esses ódios sem razão.

Um teatro político visa alterar, fazer o que não está dado, instituir e assumir
riscos de sua própria conjuntura. Foi isso que pudemos observar no Teatro
Marília nesta segunda a tarde. Eu, adulto – apesar de certo constrangimento
em assumir sê-lo diante de tanta toxicidade de nossa infantilidade mórbida –
aprendi demais com o encanto ali compartilhado por pouco menos de uma
hora.

Sangro quanto saúdo


1
Não seria difícil resumir as ações e elementos que compõem esta ação da
artista Michelle Mattiuzzi. Quando entro no teatro, há no palco: um banco
branco no centro, um balde de metal, um par de sapatos de salto alto
vermelho e preto. A luz apaga. Em seguida, por um bom tempo, vemos, como
um espectro, em luz muito baixa, um corpo negro sentar-se no banco, e aos
poucos tirar um líquido do balde e passar em si mesma o que parece ser tinta
branca, girando no banco. Ao longo do trabalho, a iluminação permite ver que
o corpo em cena tem uma espécie de máscara de flandres, que tapa sua
boca. Essa máscara está presa por agulhas no corpo que, ao serem tiradas,
deixam sair sangue do rosto. Além disso, a artista tira de dentro de sua vagina
uma espécie de longo colar branco. Depois que se pinta de branco, tira as
agulhas e coreografa uma espécie de saudação e auto-exibição, ela sai de
cena, deixando banco, tinta e colar como rastro. Tudo sob um denso silêncio,
onde pudemos ouvir os pequenos sons das ações.
2
O nome do trabalho evoca um agradecimento efusivo dito numa mistura de
francês (“merci beaucoup”) e espanhol (blanco) – línguas eurocoloniais. O
corpo em cena performa este nó cínico entre a expressão de uma gratidão e
ao mesmo tempo seu radical contrário. Todo trabalho parece agir por uma
chave dupla, cujo maior exemplo é o gesto de tomar para si a autonomia do
exercício das práticas de poder e submissão do corpo. Colocar a máscara de
flandres, pintar-se de branco, expor-se em sangramento no teatro, mostrar-
se como num show de variedades, são ações que historicamente são
operadas por corpos normativos em direção aos corpos dissidentes, como é
o que vemos em cena. Parte do giro que constitui a atividade do trabalho é
pegar para si essas ações, expô-las e ressignificá-las. Já aí uma ação política
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decisiva: não esquivar-se mas sim tomar para si esse inventário do genocídio
permanente do corpo, ativando no trabalho uma dimensão histórica que é
talvez um de seus maiores feitos.
3
É extremamente singular como a idéia de história se aviva no trabalho. Sem
nenhuma referência explícita, pelo menos quatro séculos de história
diaspórica atravessam a obra que tão poucos elementos em cena tem. O
dispositivo cênico, a relação entre aquele corpo e palco, evoca um imaginário
dos “shows de aberrações” europeus onde corpos negros eram exibidos
como monstros curiosos, enjaulados, onde, pagando, podia-se tocar nele e
desfrutá-lo como objeto. Resumindo: escravidão, mas no ramo do
entretenimento – nada mais atual. Essas apresentações foram extremamente
populares e revelavam o pacto mórbido entre teatro e ciência, isto é, eram
amparados por um retórica científica que “justificava” esses rituais sádicos.
Evocar essa memória é apontar justamente esta confluência das instituições
eurobrancas, teatro e ciência, em direção à manutenção de uma cena onde
uma estética da tortura se torna uma pedra fundamental culturalmente,
economicamente e discursivamente. Produz-se normalidade a partir dessas
práticas. Essa convergência histórica faz com que o Blancoevocado pelo
trabalho se multiplique e se historicize. Todo palco italiano é também
manchado de sangue, entretanto, o passo seguinte não é inviabilizá-lo por
culpa católica mas tomar posse dele, torcer seus usos em direção à
experiência de liberação, de recoreografar a divisão dos poderes fissurando a
dança dos donos das jaulas.
O corpo de Mattiuzzi, não só negro, mas de cabelo raspado, arredondado,
evoca Saartjie Baartman, a sulafricana que foi levada pra Europa no século XIX
e exposta como aberração do entretenimento e da ciência, que ficou
conhecida como a Vênus Negra. A ausência da variedade dos corpos negros
em cena produz um duplo efeito na sua presença. Por um lado, evidencia a
ausência ao quebrá-la e historiciza as presenças em sua exceção, solicita uma
história destes aparecimentos. Mas a diferença é capital: Matiuzzi está à nossa
frente sem donos nem jaulas, compondo sua poética e realizando seu
exercício de historiadora dissidente ao mesmo tempo, compondo um dos
pontos decisivos da história da arte da performance brasileira, e da
elaboração inventiva dos traumas que formam o país.
4
A crítica institucional igualmente se ativa como matéria de ação na medida em
que o “agradecimento” é também ao teatro onde estamos, as empresas que
o patrocinam e ao seu papel na coreografia necropolítica que mantém a
divisão entre corpos que vivem e os que morrem. O espaço teatral se
desneutraliza e o espetáculo se espalha por nossa cognição produzindo
estranhamento dessa ambiguidade permanente que é estar dentro e estar
fora das instituições, raivosamente agradecer, uma espécie de gratidão
mortífera.
5
Como espectador, é produzida uma extrema ambigüidade na nossa presença,
em especial no momento em que a artista se equilibra num banco molhado de
tinta, de salto alto, na iminência de cair. Ficamos diante de um corpo em risco
verdadeiro, nos tornando estranhos cúmplices. Essa bomba afetiva que nos
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açoita é parte das táticas do trabalho, ocupado em recoreografar todo um


conjunto de convenções que, automatizadas, só refaz a dança da
manutenção colonial.
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A ampliação cognitiva que o trabalho produz tem como matéria não uma
idealização ou uma “positividade” – nem seu contrário, a denúncia – mas
justamente a uma imbricação entre as táticas de morte e a produção de vida.
Uma espécie de efeito de cura pela experiência comum de uma morte
conjunta. Até a maior convenção teatral, o aplauso ao final, parece sem lugar
afinal. Quando o corpo sai de cena, a institucionalidade e uma coleção de
pactos estão nus. E essa visão não é agradável.
7
Entretanto a estratégia não é da literalidade, de mostrar com clareza o que
está certo e o que estaria errado. Os signos estão misturados. Se colocar um
instrumento de tortura, se sangrar, se deformar “branca” não são uma
encenação objetiva do mundo que se deseja. Uma espécie de arte negra que
se atreve a elaborar a doença, a fazer do sangue um signo também de
autonomia de si, que faz da liberação existencial efeito de um ritual de denso
mal estar.
8
Esse ritual nada mais é que o exercício de saquear o exercício da história para
si, refazer a história do imaginário sem comprar a epistemologia do progresso,
da clareza ou da linearidade.
9
Um traço recorrente nas estéticas negras é justamente esse ímpeto de
destruir e instituir epistemologias. Ontem mesmo tava vendo Basquiat tornar
a tela de pintura lugar de anotação, fazer da anotação um fato pictórico, entre
tantas outras reversões inventivas que reinventam ali o que se podia chamar
de pintura.
10
Depois de Merci beaucoup, blanco! fica evidenciada toda uma série de
teatralidades cotidianas que produz uma idéia de normalidade. Body art,
pintura, história e humor, se misturam como uma bomba silenciosa que resulta
como uma das mais sofisticadas elaborações dos processos de silenciamento
e suas atualizações.
11
A máscara é o elemento central nessa ação. Máscara que evitava que os
escravizados falassem, comessem a plantação, mas também que
cometessem geofagia voluntária com fim suicida. A máscara também
interditava o direito à morte. A morte autônoma do corpo escravizado é uma
tática de quebra do jogo que o torna uma mercadoria. Este trabalho aqui em
questão evoca esse exercício de tomar para si os signos e táticas de morte.
Máscara que também parece feita de ralos de pia, com seus furos
arredondados. Assim como a prática de inserir dentro do corpo objetos, jóias
no caso, traz para a cena as práticas das mulheres de famílias marcadas pelo
encarceramento, e aquelas que tentam atravessar as fronteiras carregando
“ilegalidades”.
12

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“É preciso saber rir da morte” diz Ricardo Aleixo num debate ao lado de
Michelle Matiuzzi, no dia seguinte à apresentação de Michelle Mattiuzzi.
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O trabalho político de destruição da objetificação não é exatamente o da
negação da objetificação mas da tomada do processo para si, para aqueles
que são e foram objetificados. Esta ativação ambígua e pessimista do
processo da objetificação/comodificação é o campo do trabalho de Mattiuzzi,
que faz dele material de trabalho voltado para um exorcismo extasiante e
doente.
14
Merci beaucoup, blanco! é um veneno que nos arrasta e desconcerta, e que
deixa rastros muito difíceis de apagar. Viva.

A descolonização é um programa de desordem absoluta


O trabalho de abrir os baús do colonialismo no mundo, evocar e expor seus
registros, suas marcas sempre descartadas é um trabalho político primordial
do nosso tempo. Libertaçãotoma a tarefa de imiscuir-se disto e colocar em
cena depoimentos, registros e outros materiais ligados às lutas anticoloniais
nos países africanos colonizados por Portugal. Assim como tal história não
figura nos livros e aulas das escolas portuguesas, também não consta aqui nos
nossos. De forma que o material trazido a cena tem um potencial de novidade
intenso para uma platéia brasileira, colocando livros numa prateleira antes
vazia.
O trabalho de encenação engendra uma premissa de fato pedagógica, no
qual um certo tom de aula atravessa o espetáculo: o corpo no proscênio que
fala conosco, os esforços de contextualização, as referências e o
estabelecimento de um compromisso com uma idéia de nexo e clareza na
experiência teatral. Sente-se que as fontes e os materiais são respeitados,
como por exemplo, os usos da técnica do recorder delivery indicam. Uma
espécie de duplicação fiel, é o que parecemos ver.
A cena varia entre a exposição performada dos documentos e pequenos
entrechos de interação entre os performers Carla Gomes, Ricardo Cruz e
André Amálio. Este último é o criador do espetáculo (com Tereza Havlíčková,
formando a Companhia Hotel Europa) e também o pesquisador que gerou
quase todo o material que constitui o trabalho cênico. Em cena, André
performa de fato esse que pesquisou. Fala e age como o responsável pelo
material que vemos na cena. A cena converge para sua presença e é animada
pela sua condução. Os outros dois atores não têm na cena características ou
texto semelhante. Executam os números, mas sua persona cênica não tem
material que diferencie seu estatuto em relação aos outros. Me parece
cabível, diante da proposta apresentada, que a peça seja encenada com
outros atores nos papéis de Ricardo e Carla em outra ocasião, mas algo me
faz supor que é impossível que ela o seja sem André. O contrato de verdade e
coincidência que o trabalho indica faz com que André Amálio fazendo André
Amálio em cena seja um dado primordial.
Tais trechos de interação e pequenos números para além da exposição dos
documentos contrastam com o restante do espetáculo por um certo desejo
de impressão de espontaneidade que não vemos se consumar. Não só a
interação com a plateia parece ficar sem relação plena, mas principalmente
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nos momentos em que os três discutem quem performará, por exemplo,


Salazar ou o revolucionário da Guiné Amílcar Cabral. Nessas cenas, fica-se
num certo meio de caminho entre uma interação solta e informal e um
registro mais marcado e de texto fixo. De certa maneira podemos dizer que
esse tom, entre o informal e o endurecido, marcam a experiência da peça, no
seu desejo duplo de respeito às evidências históricas e de performativizar
esse material. Como efeito, pode-se perceber um certo ímpeto de uma
energia de conservação, de apaziguamento, que atravessa sutilmente o
trabalho.
Por mais que falar de colonialismo seja sempre falar de
violência, Libertação prima por um certo tom contido que cumpre certos
códigos bastante estabelecidos do teatro documental e contemporâneo.
Além do recorded delivery, os microfones com pedestal, o uso de câmeras ao
vivo, cenografia usada como tela de projeção, a metanarrativa que se
alimenta de variados meios de comunicação, a imbricação entre o pessoal e a
cena: tudo isso estabelece um pertencimento pleno a uma caligrafia bastante
estabelecida no repertório contemporâneo. Essa filiação se destaca
justamente porque seus usos parecem não conseguir produzir uma
experiência de real transformação dos materiais abordados.
Logo no início, ao falarem dos lugares onde nasceram, os atores indicam
partes do corpo, fazendo da pele mapas imaginários. Os três o fazem
igualmente. A indicações cênicas, mais de uma vez, apontam para uma certa
igualdade de condição entre os três: nas disputas pelos personagens ou na
coreografia terna da caminhada com livros na cabeça ao redor do cenário.
Entretanto, há um dado cênico que se duplica pelo assunto escolhido. Em
cena, André é também o único branco. A esse dado se combinam seu
estatuto de personagem central (não só de enunciação, mas também
espacialmente quase sempre está no centro das configurações
coreográficas). O que a cena apresenta é um certo desejo de igualdade
cênica que se choca com a evidência da mesma desigualdade.
Apesar de seu ímpeto de investigação da formação colonial, sobrevive no
palco um certo vetor de apagamento de como a colonialidade se expressa e
sobrevive hoje. A colonialidade é um teatro que se atualiza velozmente
mantendo seu princípio da centralidade eurobranca, ao passo que seus
elementos e mecanismos vão se sofisticando.
Uma das grandes intelectuais brasileiras hoje, também presente no FITBH,
Jota Mombaça escreveu num texto intitulado “A coisa tá branca”:
“O que este texto enseja é, mais precisamente, interrogar os limites da
apropriação branca dos discursos e práticas antirracistas e descoloniais,
evidenciando o modo como certas dinâmicas dessa apropriação tendem a
operar em descontinuidade com uma necessária ética situada, que habilite
corpos historicamente privilegiados pela racialização e pela colonialidade a não
reencenarem o teatro de sua dominância e protagonismo social.”
Logo em seguida ela indica “a maneira contundente a hegemonia do lugar de
fala branco-colonial como infraestrutura dos regimes de verdade que até hoje
determinam as condições onto-epistemológicas de enunciação.”
A conversa com esse texto acima se dá justamente por uma certa postura
que o espetáculo assume ao identificar os traços do colonialismo no passado,
mas sendo insensível às suas atualizações e seu caráter multiforme. Ele é um
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processo que age sobre as maneiras de dizer, as maneiras de constituir um


centro de circulação de dinheiro, as formas variadas de hierarquia e distinção
que reiteram as situações existenciais da plantation.
É muito difícil tirar da experiência da peça a presença do branco explicador,
possuídos dos meios do saber, aquele que encena o centro. Um dos autores
citados no trabalho, Frantz Fanon afirma: “A descolonização é um programa de
desordem absoluta”. É um programa radical de desordamento das hierarquias,
dos fluxos financeiros e subjetivos, das formas de dizer, de uma ideia de
conhecimento e também de história. Portanto, hoje é capital operar por um
certo programa negativo, destrutivo, que deliberadamente desfaça a
centralidade branca em seus domínios materiais e imateriais. A
descolonialidade é necessariamente um programa de manejo e reorganização
da violência. Aqui, a premissa de uma certa fidelidade documental resulta
como operação de manutenção de um modelo de distribuição de saber e
poder na cena.
O convite para que digamos juntos “Viva!” a cada data dita da independência
de um país africano, em sua repetição, vai se tornando vazia e evidenciando a
encruzilhada na qual o trabalho se localiza. Entre localizar as causas e não
trabalhar radicalmente, em si mesmo, os efeitos daquilo sobre o que se
debruça. Comemorar verdadeiramente aquelas datas parece afinal mais um
ritual de produção de um júbilo artificial do que a lembrança da profunda
insuficiência desses processos.
Termino esse escrito com outro trecho do texto acima citado (o qual
recomendo efusivamente que leiam), quando a autora se refere às alianças
brancas no trabalho da descolonização:
“O trabalho político dessas pessoas deve, necessariamente, operar conforme
um certo programa negativo, em que desaprender, desfazer, calar e boicotar
deixam de ser mecanismos acionados contra pessoas negras e dissidentes em
geral para converter-se numa espécie de ética autodestrutiva da qual o
trabalho de aliança branca depende.”
Referência:
MOMBAÇA, Jota. A coisa tá branca. Disponível
em: http://www.buala.org/pt/mukanda/a-coisa-ta-branca

Sob aquosas fiações do tempo


Quaseilhas se dá numa situação espacial específica. À entrada, os
espectadores são distribuídos entre três seções de um mesmo grande
espaço, uma espécie de grande barracão construído, numa zona plana do
Parque Lagoa do Nado. Cada um desses espaços recebe por sessão um
grupo de espectadores que não conhecerá os outros dois. São eles Camumu,
Pantaleon e Quebra-Machado. O que pude experienciar, e que será o que
embasa esse texto, é Pantaléon. Permanece a sensação de que poder
retornar e presenciar as encenações dos outros dois espaços deve ser uma
experiência ainda mais rica que ver um só. Apesar de haver duas sessões no
FIT BH, só pude ir a essa.
Dentre o que pude ver no festival, sem dúvida este me parece o trabalho mais
desafiador. Me lembro de pouquíssimas peças que escolhem esse tipo de
pacto com quem assiste. O acordo proposto pelo trabalho destes artistas
passa bem pouco por um entendimento racional dos princípios do que
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acontece na cena. Se me perguntassem sobre o que é Quaseilhas eu talvez


tivesse dificuldade de responder, entretanto a experiência dá muito o que
falar. Só que a forma das ideias propostas na cena parece se dar de maneiras
bastante sutis e bem pouco discursivas, em especial para quem não entende
o Yorubá, como eu.
Antes de entrar no espaço, fiquei na dúvida, caminhando no parque se aquele
era o espaço da peça ou uma espécie de tenda precária de trabalhadores da
construção civil. Madeira, compensado, plástico preto, instalações elétricas
artesanais, funcionam como signos que evocam esse repertório
arquitetônico. Há uma intensa dramaturgia material atuando no trabalho. Na
medida em que os sentidos não são me dados pelo texto (interface
tradicional do sentido no teatro), que não posso entender, busco outras falas.
No ambiente Pantaleon, há uma banheira no centro, uma passagem ao fundo
que somos avisados que não se pode atravessar (suponho que para os outros
dois ambientes), e uma tela translúcida onde são projetados vídeos, e onde,
dependendo da iluminação, podemos ver músicos performando. Pelo que
entrevejo e ouço, parecem haver mais músicos que atores em cena. Em
alguns momentos, um homem atrás dessa tela manipula uma grande lâmpada
incandescente, numa espécie de coreografia mansa, colocando-a dentro de
sua roupa branca.
Lâmpadas, iluminação e eletricidade são signos importantes do trabalhos e
formam alguns de seus momentos mais intensos. No espaço onde estive, o
chão, coberto de plástico preto de obra, estava com várias poças de água,
misturadas à terra. Havia duas ou três lâmpadas fluorescentes penduradas no
espaço que são usadas como objeto de cena e como iluminação. O trabalho
investe nesta espécie de imaginário elétrico-aquoso que, combinada a
primeira imagem em vídeo exibida, uma vizinhança de palafitas, com efeito
visual de gotas, faz com que liguemos a nossa experiência espacial a uma
moradia periférica, onde a água e fiação de luz convivem intensamente. A
tensão do encontro das duas (água e eletricidade) funciona como um sutil
disparador de relações entre nós e o elenco, essa sugestão do risco de
tomarem um choque, de serem condutores de energia.
Os corpos que performam o trabalho têm tranças brancas, fita isolante no
corpo como grafismos de pinturas tradicionais e roupa que tendem a tons de
cinza e preto. Como elemento, a fita isolante remete a este imaginário do
elétrico, ao mesmo tempo que ancestral pela disposição gráfica de sua
aplicação no corpo. Essa relação entre conexão e isolamento, além de
remeter ao nome do trabalho, soa como um processo importante na relação
que a cena propõe. Passamos boa parte do tempo procurando conexões,
porque assim somos ensinados a “ler” peças. Entretanto, a experiência aqui
proposta passa ao largo disso.
Essa espécie de ritual negro atualizado através de uma iconografia material e
plástica urbana e metropolitana aponta para uma dimensão sensível da
experiência. Não por acaso, a fruição sonora é objeto de enorme
investimento. Na primeira aparição do trio, antes que eles cheguem, ouvimos
seus tambores ao nosso redor por uns bons minutos, traçando auditivamente
um espaço que não vemos. Esse recurso de uma sugestão espacial através
do som é reutilizado algumas vezes marcando os momentos mais altos da
experiência. Todo o desenho sonoro do trabalho, incluindo ruídos, falas e
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03/12/2023, 00:43 4 textos sobre teatro pro blog do FITBH – juliano gomes

música constitui um dos trabalhos mais sofisticados de áudio no teatro que já


pude presenciar. Há um jogo de transições que quase sempre nos embala
entre uma situação sonora e outra, onde um canto se torna um ruído, que vira
parte de uma música que começa, que deságua numa cena diante de nós. A
forma de composição é formada por esses ciclos que vão se transformando
em outros e assim gradativamente. A idéia de teatro musical tem
em Quaseilhas um dos seus representantes mais inventivos , apesar do rótulo
lhe parecer insuficiente.
Uma possível hipótese para o que seria o material de trabalho central aqui
talvez seja a idéia de conexão. Ligação com espectadores, ligação elétrica, elo
pela água que nos forma por dentro e por fora, elo ancestral, vínculo
geográfico: o que está em jogo aqui é justamente o conceito de relação, de
como fazê-las. Uma espécie de ética da relação se desenha, onde nada está
dado mas muito está oferecido, apontando para uma experiência sensorial de
presença (a audição é nosso sentido espacial por definição) onde vivemos os
vínculos em sua constituição e quebra, permanentemente.
A partitura corporal dos atores varia entre uma certa lentidão e um primado
do uso das mãos, como quem examina as coisas com cuidados e reverência, e
uma forma mais solta, mundana, como no momento em que cantam
um rap para nós ou jogam balde d’água nos nossos pés. Sugere assim uma
ligação entre um corpo ritual, atento e reverente e um outro, mais solto,
mundano e espontâneo. Com isso, formam algumas imagens que ficam na
memória, composições plásticas, presenças, que vão e vêm diante de nós,
como numa espécie de santa vermelha com olhos de lâmpada acesa que
presenciamos na porção final, ou no próprio rapper com uma espécie de
viseira laser que aponta para nós.
A exuberância do trabalho sonoro aponta que o tempo é uma espécie de
assunto de base. O tempo histórico heterogêneo, com as fitas isolantes, o
yorubá, o barracão, eletricidade, projeções, elementos que não deixam que
nos localizemos num ponto específico do tempo histórico, é uma marca
decisiva do que o trabalho almeja instituir. O que está em jogo na experiência
cênica é viver esse tempo, esse jogo de pulsações, ciclos e voltagens, onde
uma experiência negra transtemporal se materializa.
Se persiste o afeto interrogativo ao final do trabalho (“o que acabei de ver?”)
é porque justamente o que se quer é nos jogar numa situação em que
sejamos forçados, se assim desejamos, a constituir elos nós mesmos.
Entretanto, não há nenhum segredo a descobrir. Tudo ali é familiar. Mas talvez
nunca tenham sido combinados desta maneira. Temos aí uma boa definição
de arte.
Em um momento em que urge a invenção de poéticas da negritude e das
experiências diaspóricas que não joguem o jogo marcado da algoritmia do
consumo e do “capitalismo blackface”, um trabalho pretensioso
como Quaseilhas funciona como uma lufada de ânimo na constituição de um
imaginário desobediente neste campo. Um intenso trabalho político da
imaginação é o que pude viver, visitando uma das salas desse grande barraco.
Espero poder voltar. Esse barraco é um mundo.

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03/12/2023, 00:43 4 textos sobre teatro pro blog do FITBH – juliano gomes

juliano gomes
Escrevo sobre cinema, música, dou aulas, faço filmes e aceito convites.

27 set 2018
Sem categoria
2018, critica, descolonização, estética, fitBH, negritude, performance, teatro

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