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A mímesis de Aristóteles em filmes contemporâneos

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Thallia Souza e Victoria Nassif

Dentro da filosofia da arte, o trabalho do filósofo grego Aristóteles foi de grande


contribuição para as questões da estética no Ocidente. Em “A Poética”¹, ele aborda os
diferentes tipos de poesia, definindo-as como um "meio de imitação", o qual representa
a vida através de caráter, emoção ou ação.

Para ele, a poesia pode ser épica, tragédia, comédia, entre outros tipos. Um dos
conceitos trabalhados no livro é o da mímesis, ou mimese, que abrange os aspectos da
“imitação” e o que ela pode transmitir, não sendo, porém, um conceito estático de
representação artística, já que ela influenciou diferentes modelos de arte.
Primeiramente, nas artes literárias e na oratória, abrangendo também, com o passar dos
séculos, as artes da pintura e escultura.

Já na contemporaneidade, são considerados sete tipos diferentes de artes, de acordo


com o “Manifesto das Sete Artes”, escrito em 1923 pelo italiano Ricciotto Canudo²,
ainda que seja considerado desatualizado, visto que existem outras várias contribuições
artísticas existentes atualmente.

Entre as sete artes está a sétima, o cinema, que possui grande relevância atualmente,
com inúmeros filmes lançados anualmente. O primeiro registro de uma exibição se deu
em Paris, no ano de 1895 pelos irmãos Lumière, que fizeram uma apresentação pública
de seu filme "L'Arrivée d'un Train à La Ciotat''³. Os impactos deste evento foram tão
significativos que influenciaram as gerações futuras no desenvolvimento da indústria
cinematográfica.

Assim, esse trabalho busca relacionar o conteúdo de quatro filmes contemporâneos


(“Capitã Marvel”⁵, “A menina que matou os pais” e “O menino que matou meus pais” e
“Meia noite em Paris”) com o conceito da estética de Aristóteles, de acordo com seus
três pontos da função positiva da mímesis: no intelecto, nas emoções e nas sensações.
Tendo como base discussões em sala de aula e o artigo de Fernando Santoro “Estética
de Aristoteles”.

1. Conceito noético (intelectual) da mímesis no filme “Capitã Marvel”*

A questão da mimesis como lugar da verossimilhança se dá a partir de uma resposta


de Aristóteles ao pensamento platônico de que a mímesis na arte é afastada dois graus
da verdade e que por isso é simuladora. Ou seja, por não ser a realidade em si ela é
enganosa. Para Aristóteles, o sentido real não parte de uma enganação de “passar uma
aparência por uma essência” (SANTORO, 2007, p. 8) ⁴, mas da verdade que vem de
uma representação. Ou seja, uma imagem qualquer não deseja ser, em essência, o que
ela representa, mas apenas mostrar como seria na realidade, podendo retirar algo dessa
representação.

Assim, a arte é capaz de ensinar, fazer seu telespectador aprender algo, retirar algo
daquilo, alguma reflexão ou sentimento, e não apenas representar por representar. Se
representa para ensinar sem que necessite ser o real. O poeta, para Aristóteles, ou no
caso, o cineasta, não descreve fatos ocorridos como historiadores, seu papel é
descrever fatos que poderiam acontecer. A arte representa histórias, pessoas e ideias, e
a partir dela gera possibilidades para o telespectador. A partir dela, ele compreende a
natureza humana e extrai lições dela.

Os filmes, da mesma forma, têm essa capacidade de representação da realidade,


muitas vezes para gerar em seu telespectador um sentimento de representação, de
inclusão, fazendo com que sua realidade seja usada de exemplo. Dessa mesma forma,
os filmes conseguem trazer reflexões e gerar lições, as quais aprendemos com elas.

O filme “Capitã Marvel” ⁵ apresenta a protagonista Carol Danvers (a Capitã Marvel)


como uma poderosa guerreira de elite da raça não-humana Kree. Danvers, durante
alguns momentos, tem lembranças em sua mente a qual não se lembra de onde são e
começa a se questionar sobre elas.

Então, após uma missão contra a raça inimiga Skrull não sair como planejado,
Danvers acidentalmente “cai” na Terra e é perseguida por seus inimigos ao tentar
retornar ao seu planeta, descobrindo pistas que dão respostas sobre suas lembranças e
sua verdadeira identidade. Com os Skrulls atrás dela, Danvers conta com a ajuda do
agente Nick Fury com certa resistência e desconfiança, já que se encontrava em um
mundo desconhecido, porém familiar. Fury, até então, estava investigando-a por ser
uma invasora em seu planeta, mas com a perseguição, que acaba o incluindo, ele
resolve ajudar Danvers a fugir e relembrar sua memória nos locais e com as pessoas
que já esteve.

Finalmente, os Skrulls conseguem alcançar Danvers e se revelam aliados, com


informações sobre seu passado que a ajudam a descobrir a verdade sobre sua origem
no planeta Terra e sua raça, até então, os Kree, que eram vilões que enganaram
Danvers para se apropriarem de seus poderes. Assim, se sentindo enganada, ela
resolve lutar contra os Kree, obtendo êxito e respostas sobre sua origem.

Imagem ilustrativa do filme “Capitã Marvel” ⁵

Os filmes de super-herói, como Capitã Marvel, claramente não representam a


realidade como ela é, com seres humanos que possuem dons sobrenaturais e irreais
dentro da realidade que conhecemos, mas uma possibilidade dessa realidade. Por isso
eles podem entrar dentro do conceito Aristotélico de mimesis, como o lugar da
verossimilhança e do reconhecimento. “A diferença entre historiador e poeta é a de
que o primeiro descreve fatos acontecidos e o segundo fatos que podem acontecer”
(ARISTÓTELES, 1451a 36 – b 11)¹, os filmes de super-herói abordam fatos que
poderiam acontecer.

O filme da Capitã Marvel, assim como os demais filmes de mesmo gênero, causa em
seu telespectador dois entendimentos: o de que poderia ser uma possibilidade de
mundo, ou seja, uma verdade (já que apresenta diversos fatores reais adicionados de
não reais) e a da identificação com seus protagonistas ou a história. No enredo do
filme, é possível identificar essa possibilidade de outra realidade, já que a protagonista
é humana, assim como no mundo real, porém com poderes que não fazem parte de
nossa realidade. Essa possibilidade de um mundo com super-heróis pode ser tida
como uma mímesis baseada na verossimilhança, já que é semelhante à verdade, mas
não é a verdade em si. Por outro lado, temos a ideia de reconhecimento e
representação. A protagonista Carol Danvers, enaltece o empoderamento feminino, já
que diversas vezes durante o enredo ela “cai e se levanta”, mostrando sua força e
resiliência e quebrando as barreiras do “sexo frágil”, sendo considerada dentro do
universo Marvel, uma das heroínas mais poderosas, entre homens e mulheres. Dessa
forma, o filme inspira as mulheres e meninas reais dessa mesma forma, de que podem
(e devem) ser mulheres fortes, resilientes e que se elas fracassarem, podem se
reerguer. Reafirmando, assim, o valor noético da mímesis pela utilidade didática da
representação.

Dentro do filme, também é possível observar algumas características da mimesis: a


raça não humana Skrull tem o poder de se transformar fisicamente em qualquer
pessoa. Por algumas vezes durante o filme eles geram dúvidas nas outras pessoas,
pois elas não sabem se são as pessoas em si ou um Skrull transformado. Essa imitação
de um personagem fictício por outro personagem fictício se enquadra em no conceito
da mimesis como representação de uma realidade (porém, a realidade do próprio
filme).

2. Conceito emocional (pathos) da mimesis nos filmes “A menina que matou os


pais” e “O menino que matou meus pais”⁷
Aristóteles via a arte como sendo uma libertação para o homem já que graças a ela o
homem poderia sentir suas emoções ( pathos) de forma livre, ou seja, ela gera o que é
chamado de catarse.

Assim, torna-se relevante trazer nesse estudo o significado da palavra catarse que
pode variar de acordo com área de interesse de pesquisa, porém para Psicanálise
significa ”Processo para trazer à consciência do ser as emoções ou os sentimentos
reprimidos, em seu próprio inconsciente, fazendo com que ele seja capaz de se libertar
das consequências ou dos problemas que esses sentimentos lhe causam.”⁸ , ou seja, é
quando o ser humano é livre para ser dominado por suas emoções sem que essas
venham a gerar consequências para si mesmo.

Aristóteles associa essa liberdade à música orgiástica, utiliza a kátharsis como o ponto
em que toca as emoções humanas, e proporciona justamente a liberdade do homem.

Nesse sentido, torna-se claro que a sétima arte é capaz de gerar diversos sentimentos
em seu telespectador, ao ver um gênero de romance poderia transbordar de amor e
afeição, enquanto o suspense geraria aflição e medo, ou não necessariamente definido
por gênero já que o homem é livre, naquele momento, para sentir o que vier a tona,
literalmente.

Assim, trazemos como exemplo dois filmes atuais lançados pelo streaming Amazon
Prime Video, que abordam o famoso caso da(o) jovem que assassinou um casal em
São Paulo.

Suzane Von Richthofen autora do crime que gerou a morte de seus pais Manfred von
Richthofen e Marísia, com ajuda de seu namorado Daniel Cravinhos e irmão Cristian
em 2002, um caso real que os filmes abordam a partir dos autos dos processos de
Suzzane e Daniel no tribunal, contemplando em seus respectivos filmes os diferentes
pontos de vista que geraram o assasinato.
Imagem ilustrativa do filme: “O menino que matou meus pais” e “A menina que matou os pais”⁷

Tendo em vista que são filmes que abordam a morte de duas pessoas, e ainda, como
assassina condenada a própria filha e o namorado, ao assistir os filmes, o
telespectador então é capaz de sentir raiva, ódio, ansiedade , angústia e diversos outras
emoções, até talvez piedade ou perdão, o que segundo Santono⁴ e a Poética¹ de
Aristóteles, poderiam ser os mesmos sentimentos associados a tragédia.

“Portanto, a tragédia é a imitação de uma ação séria e acabada, que possui grandeza,

que compraz pela palavra, com separação de cada uma das espécies em partes,

através da atuação e não de um relato, que por meio da piedade e do medo

consuma a purgação dessas afecções.”¹

Os filmes em questão, já que apresentam duas versões, chegam ao ponto de gerar a


oportunidade/dilema dentro do homem, independente da profissão que tenha, de se
tornar o juiz, de quem é o verdadeiro culpado do crime.

Dessa forma, para Aristóteles, a arte vem a ter uma função positiva para o pathos já que
possibilita através do fenômeno da catarse a purificação do mesmo.

“O prazer da obra de arte, não é, todavia, um prazer simples, unicamente decorrente da


força expressiva da representação, ou da harmonia orgânica da unidade das partes. As
obras de arte podem e devem suscitar emoções e comoções pelas ações representadas,
de modo que quem as contemple venha a experimentar sentimentos perturbadores
como os de angústia e de horror. A beleza mais sublime pode produzir vertigem e
mesmo ferir. Mas esta dor, profundamente sentida na beleza, paradoxalmente, não
repugna mas atrai, não destrói mas purga e purifica. Não serve para nada, mas é
indispensável.” (SANTORO, 2007, p. 11)⁴

3. Conceito estético (sensação) da mímesis no filme “Meia noite em Paris”⁹

Aristóteles afirma que a importância da mimesis para os seres humanos vem desde
muito cedo e dá o exemplo de crianças, que imitam gestos e falas de seus pais e
pessoas mais velhas como uma forma de entender o que fazem, e dessa forma
aprendem e se desenvolvem, pois esse aprendizado gera um sentimento que o faz
raciocinar acerca, levando ao entendimento.

A poesia na visão aristotélica possui a capacidade de ensinar, pois através das


sensações que elas transmitem os seres humanos aprendem com ela: “Quando
observamos situações dolorosas, em suas imagens mais depuradas, sentimos prazer ao
contemplá-las (...) e o prazer não se construirá em função da mimese, mas do
resultado, ou da totalidade obtida”¹. Esse prazer pode ser entendido como uma
sensação, e esta pode ser sentida involuntariamente a quem analisa a poesia, ou a arte,
e é justamente o resultado deste entendimento que é tido como a mimesis, que aciona
o entendimento e o raciocínio.

O filme narra a história de Gil Pender, um escritor e roteirista de Hollywood que,


apesar de ser bem sucedido em sua carreira, se sente infeliz. Em uma visita a Paris (o
qual é apaixonado) com sua noiva Inez e seus sogros, Gil se questiona sobre a
possibilidade de se mudar para lá, visto que para ele, a cidade é inspiradora, com
tantas histórias e berço de tantos artistas.

Ao escapar de um evento com dois amigos de Inez que encontraram pela cidade, Gil
decide voltar para o hotel caminhando e admirando as ruas de Paris, quando ele se
perde e se depara com várias pessoas animadas em um veículo clássico do século XX,
que os convence a entrar no carro, levando-o para uma festa em outra época na qual
vive, onde conhece vários artistas dos anos 20.
No final da noite, Gil volta para sua época de origem, mas se sente confuso e
empolgado com a situação incomum e inesperada. Então, curioso e animado, ele
passa a fazer novamente caminhadas noturnas para voltar no passado e conhecer seus
ídolos.

Em uma dessas visitas ele conhece Adriana, uma das amantes de Picasso, pela qual se
apaixona e vive aventuras em outras épocas. Adriana compartilha dos mesmos
sentimentos que ele, o que o inspira em seu amor pelo mundo artístico.

Em seus variados encontros, Gil também conhece artistas que não se sentem
valorizados, ou que também gostariam de ter vivido em tempos passados, como ele,
mas ele reflete e entende que a verdadeira beleza e sentido de sua profissão se
encontram no momento presente e assim, ele aceita que deve voltar e ser um escritor
de sucesso, retornando inspirado à Paris de sua época.

Assim, trazendo esse filme para a mímeses de Aristóteles, que diz sobre o fato da
poesia não iludir o homem, mas ao fato de mostrar outra realidade possível , o que é
bem evidente em ‘Meia Noite em Paris”.

Também o fato do personagem principal se inspirar em artistas prediletos para sua


própria obra, como Aristóteles nos diz, o homem é um animal mimético.
Imagem ilustrativa do filme “Meia noite em Paris”⁹

Dessa forma, pode-se concluir em relação às reflexões apresentadas que a mímesis de


Aristóteles continua sendo uma obra de suma importância na contemporaneidade,
sendo possível analisá-la de diferentes ângulos e visões, aqui trazemos apenas três
exemplos que podem ser relacionados porém as possibilidades são infinitas.

Referências bibliográficas:

¹ Aristóteles. “Poética”. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Ed. E. Souza)

² Disponível em <https://abra.com.br/artigos/quais-sao-as-7-artes/> Acesso: Outubro de 2021

³ Disponível em
<https://www.aicinema.com.br/historia-do-cinema-confira-este-guia-e-se-destaque/> Acesso
em: Outubro de 2021

⁴ SANTORO, F. “Sobre a estética de Aristóteles”. In: Viso: Cadernos de estética aplicada, v.


I, n. 2 (mai-ago/ 2007), pp. 1-13.

⁵ CAPITÃ MARVEL; Direção: Anna Boden e Ryan Fleck. Intérpretes: Brie Larson, Samuel
L. Jackson, Ben Mendelsohn, Djimon Hounsou, Lee Pace, Lashana Lynch, Gemma Chan,
Annette Bening, Clark Gregg e Jude Law. Roteiro: Anna Boden, Ryan Fleck, Geneva
Robertson-Dworet. Produção: Marvel Studios. Londres: Walt Disney Studios Motion
Pictures, 2019. (124 minutos). Disponível em: Disney Plus. Acesso em: Outubro de 2021.

⁶ Disponível em:
<https://www.omelete.com.br/filmes/kree-vs-skrull-conheca-as-racas-alienigenas-de-capita-
marvel> Acesso em: Outubro de 2021.

⁷ O MENINO QUE MATOU MEUS PAIS e A MENINA QUE MATOU OS PAIS; Direção:
Maurício Eça. Intérpretes:Carla Diaz,Leonardo Bittencourt, Allan Souza Luma, Leonardo
Medeiros e Vera Zimmermann. Roteiro:Ilana Casoy e Raphael Montes. Produção:Santa Rita
Filmes, Galeria Distribuidora, Grupo Telefilms, 2021. (80 minutos). Disponível em:Amazon
Prime Video. Acesso em: Outubro de 2021.

⁸ Disponível em: <https://www.dicio.com.br/catarse/> Acesso em: Outubro de 2021.

⁹ MEIA NOITE EM PARIS; Direção: Woody Allen. Intérpretes: Owen Wilson, Rachel
McAdams, Michael Sheen Roteiro:Woody Allen. Produção:Letty Aronson, 2011. (1h 34
minutos). Disponível em: Amazon Prime Video. Acesso em: Outubro de 2021.

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