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O DESEJO REPRIMIDO NA OBRA DE LUIS BUÑUEL 1

Henrique Barreto Domingues2

RESUMO: Com o presente artigo pretendo traçar paralelos e interpretações entre Um Cão
Andaluz (1929) e A Idade do ouro (1930), ambos de Luis Buñuel em conjunto com Salvador
Dalí, através das ideias de Fernando Mascarello, André Breton e Sigmund Freud, passando
pela análise do simbolismo da mão como fonte de significados ocultos na produção
surrealista.
Palavras-Chave: Surrealismo; Buñuel; Desejo; Mão.

1 O SURREALISMO COMO SUBVERSÃO DA REALIDADE


O ser humano, esse “sonhador definitivo”, como Breton o classificou no começo do
manifesto surrealista, está perdendo as esperanças. A cada dia que se passa guerras fazem
milhares de mortes, a fome e a crise se espalham violentamente, governos autoritários
ascendem ao poder em todos os lugares do mundo e a maldade humana se mostra cada vez
mais perversa. Assim era a sociedade no começo do século XX, e é nessa sociedade que
nasceria o surrealismo.
Como máxima a liberdade e como meio a quebra total dos padrões de linguagem, o
movimento propôs o fim das relações de causalidade e a morte do pensamento lógico
cartesiano, que havia levado a sociedade até o precipício a qual ela se encontrava. Nasceria
então, uma nova maneira de pensar a arte, uma maneira que encontrava um prazer em
perseguir as mensagens do inconsciente através de um jogo onírico.
O cinema surrealista é a prova disso. O primeiro filme, que marcou o início do
movimento na sétima arte, Um Cão Andaluz3 da dupla Buñuel-Dali, abre com a cena do
próprio Buñuel afiando uma navalha e subsequentemente cortando o olho de uma moça. A
ação simboliza a proposta artística do diretor, que queria demarcar a morte de um certo olhar
sobre o mundo, com o objetivo de fazer nascer uma visão que se libertasse das atas sociais e
das amarras da linguagem. A obra segue então traçando conexões entre cenas que a princípio
não parecem fazer muito sentido, mas que abrem espaço para a interpretação de diversos
novos símbolos.

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Artigo apresentado às disciplinas de Pesquisa I e História do Cinema I, do Bacharelado em Cinema e
Audiovisual da Unespar – Universidade Estadual do Paraná, sob orientação da Profa. Dra. Juslaine Abreu
Nogueira e do Prof. Dr. Fábio Luciano Francener Pinheiro. Curitiba, 2022.
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Estudante do curso de Cinema e Audiovisual – Universidade Estadual do Paraná (Unespar). E-mail:
henriquedomingues04@gmail.com
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Algumas linhas teóricas afirmam que o início do movimento surrealista no cinema se deu com “A Conhca e o
Clerigo” (1928) de Germaine Dulac.
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2 OS DESEJOS DE BUÑUEL
Nascido em uma família abastada em uma pequena vila espanhola chamada Calanda,
onde podia-se “dizer que a Idade Média se estendeu até a Primeira Guerra Mundial”
(BUÑUEL, 2009, p.09), Buñuel foi estudar em uma escola jesuítica, instituição que o ensinou
desde cedo como a igreja consegue cercear as liberdades individuais através de seus tantos
dogmas. Já na adolescência ele se identificou como ateu e anticlerical, visão que ficaria
explícita em toda a sua carreira como diretor. Como é o exemplo das figuras religiosas
presentes em A Idade do Ouro (1930), que se transformam em esqueletos ao longo da
narrativa surrealista.

Fotos 1 e 2: Igreja católica perdendo relevância ao longo da história.

Fonte: A Idade do Ouro (1930), de Luis Buñuel.

E não foi só a igreja que Buñuel atacou no filme. Ao longo da obra nós
acompanhamos um casal que quer consumar sua relação, mas é impedido por várias situações
sociais burguesas. A moral da burguesia está sempre em questão na carreira do diretor e aqui
isso fica explícito, ele parece querer refletir sobre sua própria situação na infância em um
ambiente tradicional, cercado por arranjos e obrigações que reprimiram vários de seus
desejos.
Em Um Cão Andaluz (1929) existe uma situação similar: um homem deseja
sexualmente uma mulher e a assedia. A mulher consegue fugir e quando o homem vai
persegui-la acaba tendo que levar consigo o peso de dois pianos, dois bois e dois padres. Não
é certo, como nada na produção surrealista, o que todos esses elementos significam, mas
pode-se afirmar que, por meio de imagens pictóricas, Buñuel coloca seu personagem preso a
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convenções sociais que o impedem de realizar suas fantasias, concordando assim com as
observações de Mascarello acerca do movimento:
Opondo-se radicalmente a tudo quanto denote repressões dessa natureza, a
linguagem pictórica, ancorada em suportes propícios à manifestação de imagens e
gestos, foi, nas mãos dos surrealistas, um instrumento para combater as aleivosias
provocadas pela deturpação da linguagem, visto que, em tais aleivosias, a
intransigência e a hipocrisia da sociedade armazenavam as causas basilares da
constante insatisfação dos seres humanos no transcurso da história.
(MASCARELLO, 2008, p.145).

Ao recorrer ao surrealismo, Buñuel tenta alcançar uma lógica onírica - acompanhar


seu trabalho é como ver um sonho acontecer na nossa frente - ele consegue assim divagar
sobre seus desejos mais obscuros, desejos esses que não seriam aceitos na sociedade vigil.
Como Freud afirma, os sonhos são uma via régia para o inconsciente, uma vez que sua
manifestação é mais direta, acessando os impulsos mais entranhados na nossa psique. A
exemplo disso, volto a citar Um Cão Andaluz e seu “personagem principal”4, que é um
“apaixonado pelo assassinato”, como o próprio Buñuel o descreveu.

3 A MÃO: UMA FONTE DE SEGREDOS


É impossível não reparar na constante presença de mãos em foco ao longo dos dois
filmes. Mãos essas que “figuram como objetos estranhos e mágicos, como textos a serem
lidos para desvendar os segredos da psique, como conectores entre nosso mundo moderno e o
nosso passado primitivo e até mesmo como ícones da arte surrealista.” (POWELL, 1997,
p.517).

4 A MÃO EM UM CÃO ANDALUZ


A mão tem um poder ambíguo, o de causar tanto o extremo prazer, como uma dor
excruciante, e essa ambiguidade é explorada a fundo nos filmes surrealistas de Buñuel e Dalí.
Isso já fica claro quando tentamos interpretar a famosa cena da mão cheia de formigas,
insetos esses que aparecem sem explicação na mão de um homem recém salvo de um acidente
por uma mulher. Existem duas correntes de interpretação para esse frame, elas levam em
conta o significado da expressão “avoir des fourmis (dans la main)”, que pode tanto significar
estar excitado sexualmente, como o desejo de matar, o que faria sentido dado a descrição de
Buñuel acerca do seu protagonista.

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É impossível dizer que em qualquer filme surrealista exista um personagem que possa ser considerado
principal, mas utilizo essa nomenclatura aqui para facilitar a explicação dos enredos.
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Fotos 3, 4 e 5: Formigas brotando no centro da mão de um homem.

Fonte: Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel.

Outra mão que aparece ao longo do filme já está decepada e uma pessoa andrógina
brinca com ela no meio da rua, o casal observa atentamente essa ação de sua janela, até que a
pessoa é violentamente atropelada e cai sem vida na calçada. Essa tragédia é o gatilho dos
desejos sexuais do homem para com a mulher, evidenciando suas tendências de psicopatia,
que o levam a assediá-la. Ele coloca suas mãos nos seios dela e sua mente delira de impulsos.

Fotos 6, 7 e 8: Medo da castração enfatizado na observação de uma pessoa


andrógina brincando com uma mão decepada.

Fonte: Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel.

Quando a moça consegue finalmente escapar das agressões, ela prende a mão dele na
porta, o levando ao desespero de ter seu membro também decepado.
Segundo Stent (2014), essa repetição da mão ao longo do filme cria uma
"fetichização'' acerca dela, exaltando a ambiguidade desse membro, fato que nos leva a pensar
no complexo de castração de Freud. Esse conceito faz parte da teoria de desenvolvimento
sexual freudiana, e seria um estágio que ocorre nos meninos com cerca de 5 anos - mas que
perdura a vida toda - se mostrando como um medo irracional de ter seu pênis cortado pelo pai,
como forma de punição por desejar sexualmente a própria mãe, fruto do Complexo de Édipo.
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5 A MÃO EM A IDADE DO OURO


Enquanto em Um Cão Andaluz a mão simboliza o medo da castração, aqui ela vai ser
o grande ícone da masturbação e da repressão social acerca do ato.
Após ter tido seus desejos de consumar sua relação com uma mulher reprimidos pela
sociedade burguesa, um homem, o herói do nosso filme, vê uma mão feminina tomando vida
em um anúncio publicitário e ela começa a fazer com os dedos um movimento sugestivo,
atiçando mais ainda seus impulsos sexuais.
O foco da trama muda para a moça que é o interesse sexual do nosso herói, ela está se
preparando para um jantar em sua casa e tem o dedo anelar enfaixado, o que segundo Stent
(2014), retoma a expressão “bander”, que em francês, num significado mais formal pode
significar “com bandagem”, ou em gíria, que significa estar excitado. Portanto, pode-se ler a
situação como a repressão dos desejos sexuais dessa moça, não condizentes com o ambiente
no qual ela se enquadra.
Depois de acompanharmos várias sequências de violência, finalmente chega a hora do
jantar e a casa está lotada de burgueses. Nosso herói e a moça se observam de longe, tentando
se conectar a distância sem que ninguém os perceba. Quando há uma brecha, os dois fogem
para o jardim e finalmente podem consumar sua relação, longe de todas as atas sociais que os
reprimiam. Essa consumação é feita com um chupando os dedos do outro, cada vez mais
excitados. A ideia original da sequência veio de um esboço de Dalí, no qual um homem
arrancaria as unhas de uma mulher com os dentes, cena que segundo ele seria ainda mais
chocante que o olho cortado de Um Cão Andaluz. Porém, como é possível ver na versão final
do filme, essa mutilação foi substituída pelas mãos do nosso herói se transformando
lentamente em mãos amputadas, sem precisar de violência explícita.

Fotos 9, 10 e 11: Mão do homem perdendo os dedos.

Fonte: A Idade do Ouro, de Luis Buñuel


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Em suma, os filmes surrealistas de Buñuel e Dalí tentaram seguir com os ideais do


movimento, rompendo as regras da linguagem para talvez tentar mudar também o olhar que as
pessoas têm sobre o mundo. “Por que não tentar usar a arte para mudar o nosso universo?”
parece ser a pergunta que eles se faziam antes de começar cada roteiro. E por maior frustração
que eles possam ter tido pelas recepções agressivas às suas obras, a maneira de retratar o
universo dos sonhos na tela a fim de acessar o nosso inconsciente ficou marcada para sempre
na história da sétima arte.

REFERÊNCIAS

A IDADE do Ouro. Direção: Luis Buñuel. Roteiro: Luis Buñuel, Salvador Dalí. Paris: [s. n.],
1930. (60 min.)

ANÁLISE DO FILME "A IDADE DO OURO" (L’age d'or) de Luís Buñuel e Salvador Dalí.
Portal Alexandria: YouTube, 2014. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cVZG7fg3iQM&t=1089s. Acesso em: 20 maio 2022.

ANÁLISE do filme: Um Cão Andaluz. Portal Alexandria: YouTube, 2014. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=R9UuGno7k2c&t=892s. Acesso em: 20 maio 2020.

BRETON, André. Manifesto Surrealista. França: [s. n.], 1924. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000015.pdf. Acesso em: 20 maio 2022.

BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. 1. ed. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2009.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre, RS: L & PM, 2012.

MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. 3. ed. Campinas, SP: Papirus


Editora, 2008.

POWELL, KRISTEN H. Hands- On Surrealism. Estados Unidos: Blackwell Publishers,


1997.

STENT, Sabina. Surrealism, symbols and sexuality in Un Chien Andalou (1929) and
L’age D’or (1930). Estados Unidos: [s. n], 2014. Disponível em:
https://silentlondon.co.uk/2014/03/14/surrealism-hands-and-sexuality-in-un-chien-andalou-19
29-and-lage-dor-1930/amp/. Acesso em: 20 maio 2022.

UM CÃO Andaluz. Direção: Luis Buñuel. Roteiro: Luis Buñuel, Salvador Dalí. França: [s.
n.], 1929. (16 min.)

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