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O BRILHO DO CÉU ERA INSUSTENTÁVEL

O EXISTENCIALISMO E O ESPECTRO DA GUERRA NO ROMANCE ‘O


ESTRANGEIRO’

por Natália Xavier

O ano é 1942. ‘O brilho do céu era insustentável.’ Diz Meursault, narrador do


romance O estrangeiro de Albert Camus. Enquanto isso, numa conjuntura não-ficcional,
a Europa Ocidental segue sua trajetória extremadamente apolínea rumo ao absurdo.

Escrito num período em que a 2ª Guerra Mundial se mantinha em curso, a


narrativa nos circunda com uma personagem incapturável. Caminhamos pelo romance
acreditando que em algum momento compreenderemos o que leva Meursault a estar
indiferente à morte da mãe, a ser cúmplice de um sujeito que mal conhece num episódio
de violência contra uma mulher, a assassinar um árabe numa espécie de delírio e ainda
dar mais 4 tiros num corpo imóvel. Qualquer sentido lógico nos escapa. Nossa posição
frente ao romance parece assemelhar-se à posição de Camus frente à 2ª guerra e
também com a posição dos existencialistas frente à vida.

Diante da ausência de sentido na barbárie promovida pelo Holocausto, a filosofia


existencialista, gestada neste cenário, propõe que não há um sentido pré-determinado
para o homem e para sua vida. Como proclamou Sartre, um dos maiores representantes
do existencialismo na França: a existência precede a essência. Para ele ‘O homem, tal
como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início,
não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si
mesmo.’ (SARTRE, 1970, p. 10). Nenhum Deus definiu-nos.

Quando olhamos para Meursault, personagem do romance de Camus, ficamos


desnorteados. Para ele, tanto faz trabalhar em Paris ou em sua cidade, amar Marie ou
não, casar ou não casar, ajudar um cafetão ou não, a mãe estar viva ou morta. E encará-
lo na literatura, ou no cinema, pode ser como vislumbrar, escancaradamente, a angústia
contida na liberdade que os existencialistas conceberam.

Mais adiante, diz Meursault: ‘O sol caía quase a pique sobre a praia e o seu
brilho no mar era insustentável.’

Num diálogo com a filosofia existencialista, insustentável no romance pode ser


a figura do Deus pai todo poderoso, para o qual os homens não mais orientarão seus
infortúnios e nem seus atos. No decorrer da narrativa, o protagonista diz que não crê
em nenhuma figura transcendental e recusa a visita do capelão diversas vezes. Mesmo
um tanto vertiginoso com a sentença de morte que recebera. Para os existencialistas
humanistas, a crença na figura de um Deus é sempre algo que ofusca a percepção do
homem acerca de sua própria liberdade.

Insustentável também pode ser a falta de sentido pré-estabelecido para a vida.


Em decorrência do excesso de luz e calor, tudo queima. Frente ao vazio, nada se
sustenta. Reinaria então a indiferença e a melancolia.

Acontece que, para Sartre, a angústia não serve de obstáculo à ação. A


constatação da liberdade utópica do homem, seria como um impulso para o
engajamento na realidade. Como ele mesmo diz:

O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Tal


afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de
que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que
escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue
escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. (SARTRE,
1970, p.13)

Talvez essa seja uma reflexão que podemos ler na obra O estrangeiro, de
Camus. O não-engajamento de Meursault, assim como o de uma população conivente
com a necropolítica de Hitler, assim como o de qualquer um de nós nesta realidade, tem
consequências diretas ou indiretas sobre os outros. A decisão de uma pessoa engaja
toda a humanidade. Por isso a liberdade angustia, porque envolve responsabilidade.
Mais uma vez o Sol de Meursault e o absurdo da guerra

Em várias passagens que cercam o assassinato que Meurseault cometeu no


romance, ele atribui vinculação ao sol: “O sol estava agora esmagador”, “Era o mesmo
brilho vermelho”, “sentia a testa inchar sob o sol”.

Uma outra leitura simbólica que pode ser feita dessa presença marcante do sol
no romance é considerar este excesso de luz que chega a ser insustentável como um
espelhamento do racionalismo excessivo da época.

O discurso higienista de Hitler, apontado no documentário ‘Arquitetura da


destruição’, é todo pautado na ciência moderna cartesiana e eurocêntrica. Os métodos
da ciência poderiam assegurar o ‘embelezamento’ do mundo. Esse era o discurso
recorrente dos nazistas. Embelezamento todo pautado numa política de morte e
exclusão. E também na narrativa do homem branco hétero europeu como topo da
civilização. Mito este criado e difundido muito antes da Segunda Guerra Mundial. O
maiores cúmplices de Hitler são os doutos da razão cientificista: os médicos. Quarenta
e cinco por cento dos médicos alemães faziam parte do Partido.

Filha do tal século das luzes que tiraria o homem das trevas, a ciência moderna
construiu seus argumentos higienistas em consonância com o discurso imperialista e
todo o processo violento de colonização a consolidação do capitalismo mundial. Não há
nada de novo no discurso do líder do Partido Nazista. Talvez o que cause tanta comoção
é que toda a sua violência voltou-se para a própria Europa colonizadora. Aquela mesma
que detém a narrativa hegemônica da história.

Anne McClintock, (2010) afirma: ‘A partir de 1859, a teoria da evolução entrou


numa ‘aliança profana’ com o fascínio dos números, a pletora de medidas e a ciência
da estatística. Essa aliança deu à luz o racismo “científico”, a mais autorizada tentativa
de colocar o ordenamento social e a inaptidão social num pé biológico e “científico”.’
Nesse período a imagem da árvore foi posta à disposição dos cientistas raciais, com o
europeu como apogeu do progresso.

A ideia de degeneração tão presente no discurso de Hitler também não nasceu


com ele. Mais pra frente McClintock diz:

Por volta da segunda metade do século XIX, a analogia entre degeneração de


raça e de gênero passou a exercer uma forma especificamente moderna de
dominação social, com o surgimento de uma intrincada dialética - entre a
domesticação das colônias e a racialização da metrópole. Na metrópole, a ideia
do desvio racial era evocada para policiar as classes “degeneradas” - a classe
trabalhadora militante, os irlandeses, os judeus, as feministas, os gays e as
lésbicas, as prostitutas, os criminosos, os alcoólatras e os loucos -, que eram
vistas coletivamente como desviantes raciais, atávicos em regressão a um
momento primitivo na pré-história humana, sobrevivendo ominosamente no
coração da moderna metrópole imperial.(McCLINTOCK, 2010, p. 77)

A ciência moderna possui sua contribuição, assim como a luz do sol que acalenta
e ilumina. Mas em excesso ofusca e destrói. O brilho do céu talvez seja insustentável
assim como o percurso exclusivamente apolíneo. A razão não responde tudo. Muito
menos a razão cartesiana que se coloca como verdade única. Sigo em acordo com os
existencialistas humanistas que já não creem em Deus. A morte do Deus homem
branco, que se projeta numa posição superior aos humanos, é necessária. Mas me
pergunto: será que o desencantamento do mundo é o caminho de maior contribuição
para nós hoje?

BIBLIOGRAFIA

CAMUS, A. O estrangeiro, disponível em pdf em


https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1-G2lZKxg6huqaALUE-EvsceC9kUqWP55
SARTRE, J. O existencialismo é um humanismo. Tradutora: Rita Correia Guedes.
Fonte: L’Existentialisme est un Humanisme, Les Éditions Nagel, Paris, 1970.
McCLINTOCK, Anne. Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial.
tradução: Plínio Dentzien. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2010.
Documentário Arquitetura da destruição, de Peter Cohen, Suécia, 1989.
Filme O estrangeiro, dirigido por Luchino Visconti, Itália, 1967.

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