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Como se vê, trata-se de uma inversão total dos valores: enquanto a linguagem
corrente confunde o mito com as «fábulas», o homem das sociedades
tradicionais descobre nela, pelo contrário, a única revelação válida da
realidade. Não tardou que se tirasse conclusões desta descoberta. Pouco a
pouco, deixou de se insistir no facto de que o mito conta coisas impossíveis
ou improváveis: contentamo-nos em afirmar que constitui uma forma de
pensamento diferente da nossa mas que, em qualquer dos casos, não se deve
tratá-lo, apriori, como aberrante. Foi-se mais longe: tentou-se integrar o
mito na história geral do pensamento, considerando-o como a forma por
excelência do pensamento colectivo. Ora, como o «pensamento colectivo» nunca
é completamente abolido numa sociedade, qualquer que seja o seu grau de
evolução, não se deixou de observar que o mundo moderno conserva ainda um
certo comportamento mítico: por exemplo, a participação de uma sociedade
inteira em certos símbolos foi interpretada como uma sobrevivência do
«pensamento colectivo». Não é difícil demonstrar que a função de uma
bandeira nacional, com todas as experiências afectivas que implica, não
seria em nada diferente da «participação» em qualquer símbolo nas
sociedades arcaicas. O que corrige a afirmação de que, ao nível da vida
social, não existe solução de continuidade entre o mundo arcaico e o mundo
moderno. A única grande diferença nota-se pela presença, na maior parte dos
indivíduos que constituem as sociedades modernas, de um pensamento pessoal,
ausente ou quase, nos membros das sociedades tradicionais.
Para além destes dois mitos políticos, não parece que as sociedades modernas
tenham conhecido outros de amplitude comparável. Pensamos no mito como
comportamento humano e, ao mesmo tempo, como elemento de civilização, isto
é, no mito tal como se encontra nas sociedades tradicionais porque, ao nível
da experiência individual, o mito nunca desapareceu por completo: faz-se
sentir nos sonhos, nas fantasias e nostalgias do homem moderno, e a imensa
literatura psicológica habituou-nos a reencontrar a grande e a pequena
mitologia na actividade inconsciente e semiconsciente de cada indivíduo. Mas
o que nos interessa é, sobretudo, saber o que, no mundo moderno, tomou o
lugar principal que o mito desfrutava nas sociedades tradicionais. Noutros
termos, e reconhecendo que os grandes temas míticos continuam a repetir-se
nas zonas obscuras da psique, podemos perguntar-nos se o mito, enquanto
modelo exemplar do comportamento humano, não sobrevive também, sob uma forma
mais ou menos degradada, entre os nossos contemporâneos. Parece que um mito,
tal como os símbolos que usa, nunca desaparece da actualidade psíquica: muda
simplesmente de aspecto e disfarça as suas funções. Mas seria instrutivo
prolongar a pesquisa e desmascarar disfarce dos mitos ao nível social.
(2) Conf. o nosso Mythe de l'éternel retour (1949), págs. 83 e segs. [Ed.
portuguesa: Mito do Eterno Retorno, Lisboa, 1978, Edições 70, págs. 76 e
segs.]
É apenas um exemplo, mas pode esclarecer-nos sobre uma situação que parece
geral: certos temas míticos sobrevivem ainda nas sociedades modernas mas não
são facilmente reconhecíveis porque sofreram um longo processo de
laicização. Sabe-se disto há muito tempo: com efeito, as sociedades modernas
definem-se como tal, justamente pelo facto de terem levado bastante longe a
dessacralização da vida e do cosmos; a novidade do mundo moderno traduz-se
por uma revalorização ao nível profano dos antigos valores sagrados (3). Mas
trata-se de averiguar se tudo o que sobrevive de «mítico» no mundo moderno
se apresenta unicamente sob a forma dos esquemas e dos valores
reinterpretados ao nível profano. Se esse fenómeno se verificasse por todo o
lado, teríamos de concordar que o mundo moderno se opõe radicalmente a todas
as formas históricas que o precederam. Mas a própria presença do
cristianismo exclui essa hipótese: o cristianismo não aceita, de forma
alguma, o horizonte dessacralizado do cosmos e da vida, que é característico
de toda a cultura «moderna».
O problema não é simples mas, uma vez que o mundo ocidental se afirma ainda
e em grande parte cristão, não o podemos iludir. Não insistirei naquilo que
se chamou, ao longo dos tempos, «elementos míticos» do cristianismo. Seja o
que for que constitua esses «elementos míticos», há muito tempo que foram
cristianizados e, em todo o caso, a importância do cristianismo deve ser
julgada numa outra perspectiva. Mas, de tempos a tempos, elevam-se vozes que
pretendem que o mundo moderno já não é, ou ainda não é, cristão. Para a
nossa finalidade, não temos de nos ocupar daqueles que depositam as suas
esperanças na desmitologização, que consideram que é preciso «desmitificar»
o cristianismo para lhe restituir a sua verdadeira essência. Há quem pense
justamente o contrário. Jung, por exemplo, crê que a crise do mundo moderno
se deve, em grande parte, ao facto de os símbolos e os «mitos» cristãos já
não serem vividos pelo ser humano total e se terem tornado simplesmente em
palavras e gestos desprovidos de vida, fossilizados, exteriorizados e, por
conseguinte, sem qualquer utilidade para a vida profunda da psique.
Para o cristão, Jesus Cristo não é uma personagem mítica mas, muito pelo
contrário, histórica: a sua própria grandeza encontra apoio nessa
historicidade absoluta. Porque Cristo não só se fez homem, «homem comum»,
como aceitou a condição histórica do povo no seio do qual escolheu nascer; e
não recorreu a nenhum milagre para se subtrair a essa historicidade – embora
tivesse feito bastantes milagres para modificar a «situação histórica» dos
outros (curando o paralítico, ressuscitando Lázaro, etc.). Não obstante, a
experiência religiosa do cristão baseia-se na imitação de Cristo como modelo
exemplar, na repetição litúrgica da vida, morte e ressurreição do Senhor, e
na contemporaneidade do cristão com o illud tempus que se inicia com a
Natividade de Belém e termina provisoriamente com a Ascensão. Ora, nós
sabemos que a imitação de um modelo trans-humano, a repetição de um cenário
exemplar e a ruptura do tempo profano por uma abertura que desemboca no
Grande Tempo, constituem as notas essenciais do «comportamento mítico», isto
é, do homem das sociedades arcaicas, que encontra no mito a própria fonte da
sua existência. Somos sempre contemporâneos de um mito, desde o momento em
que o recitemos ou que imitemos os gestos das personagens míticas.
Kierkegaard pedia aos verdadeiros cristãos que fossem contemporâneos de
Cristo. Mas, mesmo sem sermos «verdadeiros cristãos» no sentido em que
Kierkegaard o entendia, somos, não podemos deixar de o ser, contemporâneos
de Cristo, porque o tempo litúrgico no qual vive o cristão durante o serviço
religioso deixou de ser uma duração profana, mas sim o tempo sagrado por
excelência, o tempo em que Deus se fez carne, o illud tempus dos Evangelhos.
Um cristão não assiste a uma comemoração da Paixão de Cristo com a mesma
atitude com que assiste à comemoração anual de um acontecimento histórico -
o 14 de Julho ou o 11 de Novembro, por exemplo. Não comemora um
acontecimento, reactualiza um mistério. Para um cristão, Jesus morre e
ressuscita diante dele, hic et num. Pelo mistério da Paixão e da
ressurreição, o cristão aboliu o tempo profano e integrou-se no tempo sacro
primordial.
É inútil insistir nas diferenças, radicais, que separam o cristianismo do
mundo arcaico: elas são demasiado evidentes para dar lugar a mal-entendidos.
Mas subsiste a identidade de comportamento que acabámos de recordar. Para o
cristão, tal como para o homem das sociedades arcaicas, o tempo não é
homogéneo: comporta rupturas periódicas, que o dividem em «período profano»
e «tempo sagrado»; este último é indefinidamente reversível, entenda-se que
se repete infinitamente sem cessar de ser o mesmo. Quando se afirma que o
cristianismo, diferentemente das religiões arcaicas, proclama e espera o fim
do Tempo, isso é verdadeiro em relação ao «período profano», à História, mas
não ao tempo litúrgico iniciado pela Incarnação: o illud tempus cristológico
não será abolido pelo fim da História.
Mas essa imitação dos modelos não se processa unicamente por interpretação
da cultura escolástica. Em concorrência com a pedagogia oficial, e muito
tempo depois desta última ter cessado de exercer a sua autoridade, o homem
moderno é submetido à influência de toda uma mitologia difusa, que lhe
propõe um número de modelos a imitar. Os heróis, imaginários ou não,
desempenham um papel importante na formação dos adolescentes europeus:
personagens dos romances de aventuras, heróis da guerra, glórias do cinema,
etc. Esta mitologia limita-se a enriquecer com a idade: descobre-se cada vez
mais modelos exemplares lançados pelas sucessivas modas e esforçamo-nos por
nos assemelharmos a eles. A crítica insistiu muitas vezes nas versões
modernas de Don Juan, do herói militar ou político, do apaixonado infeliz,
do cínico e do niilista, do poeta melancólico e assim sucessivamente: ora
todos esses modelos prolongam uma mitologia e a sua actualidade denuncia um
comportamento mitológico. A imitação dos arquétipos denota um certo
desprazer com a sua história pessoal e a tendência obscura para transcender
o seu momento histórico local, provincial, e para recuperar um qualquer
«Grande Tempo» - seja ele o tempo mítico da primeira manifestação
surrealista ou existencialista.
No que diz respeito à leitura, o problema possui mais facetas. Trata-se, por
um lado, da estrutura e origem míticas da literatura e, por outro, da função
mitológica preenchida pela leitura na consciência daqueles que dela se
alimentam. A continuidade mito-lenda-epopeia-literatura moderna foi inúmeras
vezes exposta à luz e dispensar-nos-á de nela nos determos. Recordemos
simplesmente que os arquétipos míticos sobrevivem de uma certa maneira nos
grandes romances modernos. Os desafios que uma personagem de romance deve
vencer têm o seu modelo no herói mítico. Pôde igualmente mostrar-se como os
temas míticos das águas primordiais, da ilha paradisíaca, da procura do
Santo Graal, da iniciação heróica ou mística, etc., dominam ainda a moderna
literatura europeia. Muito recentemente, o surrealismo marcou uma elevação
prodigiosa dos temas míticos e dos símbolos primordiais. Quanto à literatura
de cordel, a sua estrutura mitológica é evidente. Todos os romances
populares apresentam a luta exemplar entre o Bem e o Mal, o herói e o
celerado (incarnação moderna do demónio), e recuperam os grandes motivos
folclóricos da rapariga perseguida, do amor salvador, da protectora
desconhecida, etc. No próprio romance policial, como muito bem o demonstrou
Roger Caillois, abundam os temas mitológicos. Será necessário lembrar como a
poesia lírica retoma e prolonga o mito? Toda a poesia é um esforço para
recriar a linguagem, para abolir por outras palavras a linguagem corrente de
todos os dias, e inventar uma nova, pessoal e privada, em última instância
secreta. Mas a criação poética, tal como a criação linguística, implica a
abolição do tempo, da história concentrada na linguagem - e tende à
recuperação da situação paradisíaca primordial, no tempo em que se criava
espontaneamente, no tempo em que o passado não existia, porque não havia
consciência do tempo, memória da duração temporal. Actualmente diz-se: para
um grande poeta, o passado não existe; o poeta descobre o mundo como se
assistisse à cosmogonia, como se fosse contemporâneo do primeiro dia da
Criação. De um certo ponto de vista, pode afirmar-se que todos os grandes
poetas refazem o mundo porque se esforçam por vê-lo como se o tempo e a
história não existissem. Eis o que faz recordar estranhamente o
comportamento do «primitivo» e do homem das sociedades tradicionais.
Esta defesa contra o tempo que nos revela todo o comportamento mitológico
mas que, de facto, é consubstancial com a condição humana, voltamos a
encontrá-la camuflada nos modernos, sobretudo nas suas distracções, nos seus
divertimentos. É aí que se mede a diferença radical entre as culturas
modernas e as outras civilizações. Em todas sociedades tradicionais, havia
um qualquer gesto responsável que reproduzia um modelo mítico, trans-humano
e, por conseguinte, que decorria num tempo sagrado. O trabalho, as
profissões, a guerra, o amor eram sacramentos. Reviver o que os deuses e os
heróis tinham vivido in illo tempore traduzia-se por uma sacralização do
cosmos e da vida. Esta existência sacralizada, aberta ao Grande Tempo, podia
ser muitas vezes penosa, mas não era por isso menos rica de significado, em
todo o caso, não era esmagada pelo tempo. A autêntica «queda no tempo»
começa com a dessacralização do trabalho; é apenas nas sociedades modernas
que o homem se sente prisioneiro da sua profissão, porque já não consegue
escapar ao tempo. E como não pode «matar» o seu tempo durante as horas de
trabalho - isto é, agora que desfruta da sua verdadeira identidade social -
esforça-se por «sair do tempo» nas suas horas livres; donde o número
vertiginoso de distracções inventadas pelas civilizações modernas. Noutros
termos, as coisas passam-se justamente de forma inversa daquilo que são nas
sociedades tradicionais, em que as «distracções» quase não existem, porque a
«saída do tempo» se obtém com qualquer trabalho responsável. É por essa
razão que, como acabámos de ver, para a grande maioria dos indivíduos que
não participam numa experiência religiosa autêntica, o comportamento mítico
se deixa decifrar, mais do que na actividade inconsciente das suas psiques
(sonhos, fantasias, nostalgias, etc.), nas suas distracções. É o mesmo que
dizer que a «Queda no Tempo» se confunde com a dessacralização do trabalho e
a mecanização da existência que a ela se segue; que ela implica uma perda
mal disfarçada da liberdade - e a distracção é a única evasão possível à
escala colectiva.
Estes poucos comentários bastarão. Não se pode dizer que o mundo moderno
tenha abolido completamente o comportamento mítico. Limitou-se a inverter-
lhe o campo de acção: o mito já não é dominante nos sectores essenciais da
vida, foi recalcado, tanto nas zonas obscuras da psique, como nas
actividades secundárias ou mesmo irresponsáveis da sociedade. É verdade que
o comportamento mítico se prolonga, camuflado, no papel desempenhado pela
educação: mas esta interessa quase exclusivamente à juventude e, o que é
mais, a função exemplar da instrução está prestes a desaparecer: a pedagogia
moderna encoraja a espontaneidade. Para além da vida religiosa autêntica, o
mito, como vimos, alimenta sobretudo as distracções. Mas nunca desaparece: à
escala colectiva, manifesta-se por vezes com força considerável, sob a forma
do mito político.