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,

60 Hannah Arendt

terá de criar, para se sustentar, métodos industriais extremamen­


te elaborados. O resultado da «punição» será exactamente o mes­
mo que teve o Tratado de Versailles: também este último fora
concebido como o instrumento mais capaz de esmagar a potên­
cia económica da Alemanha, mas foi ele que se tornou justamen­
te a causa da hiper-racionalização e da espantosa capacidade de
crescimento industriais da Alemanha. Uma vez que, na nossa
época, o potencial em força de trabalho conta muito mais que os
territórios, e que a formação técnica combinada com um nível
elevado de investigação científica promete muito mais que as
matérias-primas, é bem possível que as transferências de popula­ CULPABILIDADE ORGANIZADA
ção sejam o melhor modo de criar no meio da Europa um gigan­
E RESPONSABILIDADE UNIVERSAL
tesco paiol cuja força explosiva surpreenderá os homens de esta­
do de amanhã na mesma medida em que a recuperação da Ale­
manha vencida surpreendeu os homens de estado de ontem. 1
O plano Morgenthau parece, por fim, oferecer uma solução
definitiva. Mas não é possível que transforme a Alemanha nu­ À medida que as derrotas do exército
alemão se tornam mais
ma nação de pequenos agricultores, pois nenhum poder estará pesadas no campo de batalha,
os nazis obtêm vitórias na gue
rra
decerto disposto a exterminar os trinta e tal milhões de alemães que travam no plano político
, uma guerra que, muito erra
da­
que se tornariam, nesse caso, excedentários. Qualquer tentativa mente, é considerada muitas *
vezes como simples propaga
nda .
nesse sentido criaria, segundo todas as probabilidades, a «situa­ A tese central desta guerra polí
tica, que se orienta tanto contra
a
ção revolucionária» que os partidários da restauração temem «frente do interior», quer dize
r. contra o próprio povo alem
ão,
acima de tudo. como contra os seus inimigos
, é a seguinte: não há diferenç
a en­
Portanto, nada há a esperar da restauração. Caso vingasse, o tre o alemão e o nazi, o povo
forma um só bloco com o seu
go­
processo dos trinta últimos anos poderia começar e, desta feita, verno, todas as esperanças nutr
idas pelos Aliados baseadas
a um ritmo enormemente acelerado. Porque a restauração deve ��
i e a de que uma parte do pov
o terá escapado ao c ntágio ideo
na
� -
precisamente começar pela da «questão alemã»! O círculo vi­ 10g1CO, todos os apelos a uma
futura Alemanha democrática
não
cioso que caracteriza todas as discussões sobre a «questão ale­ passam de quimeras. Claro,
esta tese implica que não exis
te
mã» mostra claramente como o «realismo» e a política de po­ qualquer distinção quanto à
responsabilidade, que os alem
ães
tência são utópicas quando se aplicam aos reais problemas do fascistas e antifascistas sofreram
a derrota da mesma maneira
e
nosso tempo. Não há outra alternativa perante esses métodos ca­ que é apenas com um objectiv
o de propaganda que os Alia
dos
ducos, que nem sequer seriam capazes de preservar a paz - pa­
ra já não falarmos da liberdade -, senão a via escolhida pela *
Texto publicado em Jewish Frol
llier, n." 12, 1945, sob o título
Resistência europeia. «German Guilt».
(N. E. O.)
62 Hannah Arendt Compreensão e Política e Outros Ensaios
63

operaram distinções que tais no início da guerra. A consequên­ fo �ação política decisiva da situação, que levou os Aliados a
cia indirecta é que as disposições dos Aliados quanto à punição deIxarem de distinguir entre alemães e nazis. Para avaliarmos a
dos criminosos de guerra se revelarão ameaças sem conteúdo medida desta transformação, é preciso lembrar que, até ao co­
porque não encontrarão ninguém a quem a definição do crimi­ meç ? da guerra, o � até às pri �eiras derrotas militares, só grupos
noso de guerra não possa aplicar-se. relatIvamente restntos de nazIs activos - mas não ainda a mas­
Que estas afirmações possam não ser pura propaganda, que
.

sa do simpatizantes -, bem como um número reduzido de an­
possam pelo contrário apoiar-se numa base bem tangível e re­ tIfascIstas activos, sabiam o que realmente se passava. De acor­
meter para uma realidade terrível, sabemo-lo por experiência, ?
do c m uma inclinação natural, todos os outros, alemães ou não,
.
uma vez que o aprendemos à nossa custa ao longo dos últimos tendlam a acredItar nas declarações de um governo oficial, reco­
sete anos. As organizações encarregadas do exercício do terror
.
? � �
nhecIdo P r odas a potências, mais que nas dos refugiados que
estavam na origem rigorosamente separadas da massa do povo e eram a prlOrL SUSpeItos enquanto judeus ou socialistas. Até mes­
não admitiam nas suas fileiras senão pessoas que pudessem mo entre estes havia apenas uma percentagem relativamente fra­
valer-se de um passado criminoso ou provar que estavam dis­ ca conhecer toda a verdade; e, evidentemente, só uma parte
� . .
postas a transformar-se em criminosos; mas, desse momento em maIs reduzIda amda a ousar enfrentar a impopularidade associa­
diante, as mesmas organizações não pararam de se desenvolver. da ao facto de dizer a verdade. Enquanto os nazis acreditavam na
A proibição que impedia os membros das forças armadas de per­ vitória, as formações encarregadas do terror continuaram distin­
tencerem ao partido foi substituída pelo decreto geral que subor­ tas do povo, o que significa, em tempos de guerra, distintas das
dina aos partidos todos os militares. Os crimes que, desde o iní­ forças armadas. Para se fazer reinar o terror, não se chamavam
cio do regime, pertencem à rotina quotidiana dos campos de con­ estas últimas; em contrapartida, as tropas SS recrutaram cada vez
centração, eram outrora um monopólio ciosamente guardado dos mais pessoas «qualificadas», sem terem em conta a sua naciona­
SS e da Gestapo; hoje, qualquer membro da Wehrmacht pode ser ?
li ade. Se a tristemente célebre «nova ordem europeia» tivesse
encatTegado das tarefas do massacre. Num primeiro tempo, os tnunfado, teríamos assistido ao reinado de uma organização in­
.
nazis esforçavam-se por todos os meios possíveis por manter se­ tereuropela de terror sob dominação alemã; esse terror teria sido
creta a prática dos crimes; assimilada a «histórias de horror de exercido por membros de uma organização pertencentes a todas
pura propaganda», qualquer informação a esse respeito era pas­ as nacionalidades europeias, à excepção dos judeus, numa for­
sível de sanções. Posteriormente, os próprios nazis organizaram �
mação hierar uizada segundo a classificação dos diversos países
fugas de informação através de relatos destinados a passar de bo­ na escala racIal. Bem entendido, o povo alemão não teria sido
ca em boca; hoje, os mesmos crimes são abertamente reivindi­ poupad ? Himmler sempre foi da opinião que, na Europa, o po­
cados como medidas de liquidação, a fim de que aqueles que, ?er deVIa pertencer a uma elite racial incarnada pelas tropas SS,
por razões de ordem operacional, não tinham sido considerados mdependentemente de critérios de nacionalidade.
dignos de fazer parte da Volksgemeinschaft do crime se compro­ Foram as derrotas que obrigaram os nazis a abandonar esta
metam pelo menos através do conhecimento desse crime e pas­ ?
c ncepção e a regressarem, pelo menos na aparência, a velhas di­
sem, nessa medida, a ser cúmplices. Desde a derrota na Batalha vIsas nacionalistas; a identificação activa do povo inteiro com os
de Inglaterra, a propaganda nazi foi acompanhada por uma trans- nazis participa na mesma tendência. Para o nazismo, a possibili-
62 Hannah Arendt Compreensão e Política e Outros Ensaios
63

operaram distinções que tais no início da guerra. A consequên­ fo �ação política decisiva da situação, que levou os Aliados a
cia indirecta é que as disposições dos Aliados quanto à punição deIxarem de distinguir entre alemães e nazis. Para avaliarmos a
dos criminosos de guerra se revelarão ameaças sem conteúdo medida desta transformação, é preciso lembrar que, até ao co­
porque não encontrarão ninguém a quem a definição do crimi­ meç ? da guerra, o � até às pri �eiras derrotas militares, só grupos
noso de guerra não possa aplicar-se. relatIvamente restntos de nazIs activos - mas não ainda a mas­
Que estas afirmações possam não ser pura propaganda, que
.

sa do simpatizantes -, bem como um número reduzido de an­
possam pelo contrário apoiar-se numa base bem tangível e re­ tIfascIstas activos, sabiam o que realmente se passava. De acor­
meter para uma realidade terrível, sabemo-lo por experiência, ?
do c m uma inclinação natural, todos os outros, alemães ou não,
.
uma vez que o aprendemos à nossa custa ao longo dos últimos tendlam a acredItar nas declarações de um governo oficial, reco­
sete anos. As organizações encarregadas do exercício do terror
.
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nhecIdo P r odas a potências, mais que nas dos refugiados que
estavam na origem rigorosamente separadas da massa do povo e eram a prlOrL SUSpeItos enquanto judeus ou socialistas. Até mes­
não admitiam nas suas fileiras senão pessoas que pudessem mo entre estes havia apenas uma percentagem relativamente fra­
valer-se de um passado criminoso ou provar que estavam dis­ ca conhecer toda a verdade; e, evidentemente, só uma parte
� . .
postas a transformar-se em criminosos; mas, desse momento em maIs reduzIda amda a ousar enfrentar a impopularidade associa­
diante, as mesmas organizações não pararam de se desenvolver. da ao facto de dizer a verdade. Enquanto os nazis acreditavam na
A proibição que impedia os membros das forças armadas de per­ vitória, as formações encarregadas do terror continuaram distin­
tencerem ao partido foi substituída pelo decreto geral que subor­ tas do povo, o que significa, em tempos de guerra, distintas das
dina aos partidos todos os militares. Os crimes que, desde o iní­ forças armadas. Para se fazer reinar o terror, não se chamavam
cio do regime, pertencem à rotina quotidiana dos campos de con­ estas últimas; em contrapartida, as tropas SS recrutaram cada vez
centração, eram outrora um monopólio ciosamente guardado dos mais pessoas «qualificadas», sem terem em conta a sua naciona­
SS e da Gestapo; hoje, qualquer membro da Wehrmacht pode ser ?
li ade. Se a tristemente célebre «nova ordem europeia» tivesse
encatTegado das tarefas do massacre. Num primeiro tempo, os tnunfado, teríamos assistido ao reinado de uma organização in­
.
nazis esforçavam-se por todos os meios possíveis por manter se­ tereuropela de terror sob dominação alemã; esse terror teria sido
creta a prática dos crimes; assimilada a «histórias de horror de exercido por membros de uma organização pertencentes a todas
pura propaganda», qualquer informação a esse respeito era pas­ as nacionalidades europeias, à excepção dos judeus, numa for­
sível de sanções. Posteriormente, os próprios nazis organizaram �
mação hierar uizada segundo a classificação dos diversos países
fugas de informação através de relatos destinados a passar de bo­ na escala racIal. Bem entendido, o povo alemão não teria sido
ca em boca; hoje, os mesmos crimes são abertamente reivindi­ poupad ? Himmler sempre foi da opinião que, na Europa, o po­
cados como medidas de liquidação, a fim de que aqueles que, ?er deVIa pertencer a uma elite racial incarnada pelas tropas SS,
por razões de ordem operacional, não tinham sido considerados mdependentemente de critérios de nacionalidade.
dignos de fazer parte da Volksgemeinschaft do crime se compro­ Foram as derrotas que obrigaram os nazis a abandonar esta
metam pelo menos através do conhecimento desse crime e pas­ ?
c ncepção e a regressarem, pelo menos na aparência, a velhas di­
sem, nessa medida, a ser cúmplices. Desde a derrota na Batalha vIsas nacionalistas; a identificação activa do povo inteiro com os
de Inglaterra, a propaganda nazi foi acompanhada por uma trans- nazis participa na mesma tendência. Para o nazismo, a possibili-
64 Hannah Arendt Compreensão e Política e
Outros Ensaios
65

dade de um trabalho clandestino ulterior depende de vários as­ encomenda ou não se transfor
pectos: que ninguém possa saber quem � nazi e �u:m .não é; que sassinos. «O único alemão
ma em cúmplice dedicado
bom é um alemão morto»,
dos as­
deixem de existir sinais distintivos extenores e VlSlvelS, sobre­ � diz a pa­
lavra de ordem extremista
?
tudo que os vencedores estejam convencidos que na a dlstmgue
.
.
campo, e trata-se de uma pala
que a guerra fez nascer
no nosso
, vra de ordem que tem algu
os alemães uns dos outros. Assim, tomou-se necessano aplIcar na ma ba­
se na realidade: é preciso
que os nazis enforquem algu
Alemanha um terror intensificado visando eliminar qu lquer pe ­� � termos a certeza de que se
ém para

soa cujo passado ou cuja reputação fosse uma gar ntla de antI­ opunha. Não há outra prova
tratava de uma pessoa que
fiável.
se lhes
fascismo. Durante os primeiros anos da guerra, o regIme deu pro­
vas de uma «mansidão» notável para com aqueles que se lhe opu­
.
nham ou tinham oposto no passado, contanto que se mantIves­

sem tranquilos. Em contrapartida, desde há al um tempo, foram
.
2
executadas numerosas pessoas que, há anos pnvadas de lIberda­ Tal é a situação política real
que subjaz à afir mação de
de, não podiam constituir um perigo imediato para o regime. Por culpa partilhada pelo conjun uma
outro lado, os nazis previram prudentemente que, apesar de tod s � de uma política que de fact
to do povo alemão. É con
sequência
as precauções tomadas, os Aliados poderiam sempre desc bnr
.
? qualquer importância à naç
o não tem pátria, que não
ão e se opõe a esta, e para
atribui
em cada cidade algumas centenas de pessoas de um antIfasCIsmo a qual, lo­
gicamente, só existe o pov
� .:
impecável, atestado por antigos prisioneiros de u rra, por traba­ tuais senhores e que festejar
o alemão que se submete
aos seus ac­
ia a sua vitória suprema
lhadores estrangeiros, por penas purgadas na pnsao ou em cam­ com um
desdém irónico se a derrota
pos de concentração: por isso forneceram já aos seus ho �ens de todo o povo da Alemanha
dos nazis acarretasse a des
truição de
confiança documentos e testemunhos análogos, que retlra �a completo a atmosfera de
. A política totalitária, ani
quilando por
possibilidade de utilização de tais critérios. Quanto �os detIdos da quotidiana dos homens
neutralidade em que se des
enrola a vi­
dos campos de concentração, cujo número exacto gnoramos �
: mão a existência privada de
, conseguiu fazer com que
no solo ale­

mas que podemos calcular em vários milh s, os nazls pode a � ter sido autor ou cúmplic
cada indivíduo dependa do
e de um crime. Comparativ
facto de
.
sua vontade «liquidá-los» ou deixá-los fugIr: no caso Improvavel amente, o
sucesso da propaganda naz
de conseguirem sobreviver (um massacre como o de �uchen­ vezes na posição dita van
i nos países aliados, patent
sittartista, parece secundária
e muitas
wald nem sequer é abrangido pelas definições dos cnmes de . Tal atitu­
de releva fundamentalment
guerra), não será possível identificá-los sem risco de rro : : tem a ver com os fenóm
e da propaganda de gue
rra, e nada
Saber se alguém é nazi ou antinazi na Alemanha e �01sa que nos acima descritos. Os esc
enos políticos especifica
mente moder­
ritos e os raciocínios pseudo
só pode fazer quem leia o coração humano, o que precIsamente -históri­
cos engendrados pelo van
sittartismo dir-se-iam ino
está fora do alcance dos seres humanos. As actividades de um centes plá­
gios da literatura frances
a da última guerra; alguns
resistente - uma vez que, evidentemente, os há também na dos redacto­
res que, há vinte e cinco
anos, faziam gemer a imp
Alemanha - seriam imediatamente interrompidas se ele não se rensa atacan­
do «a pérfida Albion», pus
eram desta feita a sua exp
comportasse em palavras e actos como um nazi . Tarefa nada fá­ eriência ao
serviço dos Aliados, circ
unstância que não acarret
cil num país onde se detecta rapidamente quem não mata por a qualquer di­
ferença decisiva.
64 Hannah Arendt Compreensão e Política e
Outros Ensaios
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dade de um trabalho clandestino ulterior depende de vários as­ encomenda ou não se transfor
pectos: que ninguém possa saber quem � nazi e �u:m .não é; que sassinos. «O único alemão
ma em cúmplice dedicado
bom é um alemão morto»,
dos as­
deixem de existir sinais distintivos extenores e VlSlvelS, sobre­ � diz a pa­
lavra de ordem extremista
?
tudo que os vencedores estejam convencidos que na a dlstmgue
.
.
campo, e trata-se de uma pala
que a guerra fez nascer
no nosso
, vra de ordem que tem algu
os alemães uns dos outros. Assim, tomou-se necessano aplIcar na ma ba­
se na realidade: é preciso
que os nazis enforquem algu
Alemanha um terror intensificado visando eliminar qu lquer pe ­� � termos a certeza de que se
ém para

soa cujo passado ou cuja reputação fosse uma gar ntla de antI­ opunha. Não há outra prova
tratava de uma pessoa que
fiável.
se lhes
fascismo. Durante os primeiros anos da guerra, o regIme deu pro­
vas de uma «mansidão» notável para com aqueles que se lhe opu­
.
nham ou tinham oposto no passado, contanto que se mantIves­

sem tranquilos. Em contrapartida, desde há al um tempo, foram
.
2
executadas numerosas pessoas que, há anos pnvadas de lIberda­ Tal é a situação política real
que subjaz à afir mação de
de, não podiam constituir um perigo imediato para o regime. Por culpa partilhada pelo conjun uma
outro lado, os nazis previram prudentemente que, apesar de tod s � de uma política que de fact
to do povo alemão. É con
sequência
as precauções tomadas, os Aliados poderiam sempre desc bnr
.
? qualquer importância à naç
o não tem pátria, que não
ão e se opõe a esta, e para
atribui
em cada cidade algumas centenas de pessoas de um antIfasCIsmo a qual, lo­
gicamente, só existe o pov
� .:
impecável, atestado por antigos prisioneiros de u rra, por traba­ tuais senhores e que festejar
o alemão que se submete
aos seus ac­
ia a sua vitória suprema
lhadores estrangeiros, por penas purgadas na pnsao ou em cam­ com um
desdém irónico se a derrota
pos de concentração: por isso forneceram já aos seus ho �ens de todo o povo da Alemanha
dos nazis acarretasse a des
truição de
confiança documentos e testemunhos análogos, que retlra �a completo a atmosfera de
. A política totalitária, ani
quilando por
possibilidade de utilização de tais critérios. Quanto �os detIdos da quotidiana dos homens
neutralidade em que se des
enrola a vi­
dos campos de concentração, cujo número exacto gnoramos �
: mão a existência privada de
, conseguiu fazer com que
no solo ale­

mas que podemos calcular em vários milh s, os nazls pode a � ter sido autor ou cúmplic
cada indivíduo dependa do
e de um crime. Comparativ
facto de
.
sua vontade «liquidá-los» ou deixá-los fugIr: no caso Improvavel amente, o
sucesso da propaganda naz
de conseguirem sobreviver (um massacre como o de �uchen­ vezes na posição dita van
i nos países aliados, patent
sittartista, parece secundária
e muitas
wald nem sequer é abrangido pelas definições dos cnmes de . Tal atitu­
de releva fundamentalment
guerra), não será possível identificá-los sem risco de rro : : tem a ver com os fenóm
e da propaganda de gue
rra, e nada
Saber se alguém é nazi ou antinazi na Alemanha e �01sa que nos acima descritos. Os esc
enos políticos especifica
mente moder­
ritos e os raciocínios pseudo
só pode fazer quem leia o coração humano, o que precIsamente -históri­
cos engendrados pelo van
sittartismo dir-se-iam ino
está fora do alcance dos seres humanos. As actividades de um centes plá­
gios da literatura frances
a da última guerra; alguns
resistente - uma vez que, evidentemente, os há também na dos redacto­
res que, há vinte e cinco
anos, faziam gemer a imp
Alemanha - seriam imediatamente interrompidas se ele não se rensa atacan­
do «a pérfida Albion», pus
eram desta feita a sua exp
comportasse em palavras e actos como um nazi . Tarefa nada fá­ eriência ao
serviço dos Aliados, circ
unstância que não acarret
cil num país onde se detecta rapidamente quem não mata por a qualquer di­
ferença decisiva.
66 Hannah Arendt
Compreensão e Política e Outros Ensaios 67

Mas até mesmo os debates mais sérios, entre os que defendem Nem a definição da responsabilidade, nem a punição dos cri­
os «bons alemães» e os que acusam os «maus», não só passam minosos de guerra nos porão ao abrigo desta situação. Seme­
ao lado da questão, mas, até à evidência, ficam muito longe de lhantes definições, dada a sua própria natureza, só podem
medir as dimensões do desastre. Esses debates ou se perdem na aplicar-se aos principais culpados, aqueles que não só assumi­
trivialidade de uma constatação geral da existência dos bons e ram a responsabilidade, mas criaram também o inferno presen­
.
dos maus, sobrestimando entretanto de uma maneira extraordI­ te, mas cujos nomes, muito curiosamente, não figuram ainda
nária o papel da «educação», ou adopta � muit? simplesmen:e as nas listas dos criminosos de guerra. O número daqueles que são
teorias raciais dos nazis, limitando-se a mverte-Ias. O que so re­ ao mesmo tempo responsáveis e culpados será relativamente
presenta um perigo na medida em que �s Aliados, desde a céle­ fraco. São muitos os que têm uma parte de responsabilidade
.
bre declaração de Churchill a esse propOSltO, se recusaram a tra­ sem que haja qualquer indício da sua responsabilidade. Mais
var uma guerra ideológica. Sem se darem conta, concederam as­ numerosos ainda são os que se tomaram culpados sem terem
sim aos nazis um avanço que lhes permite organizarem a sua der­ minimamente desempenhado o papel de responsáveis. Entre os
rota no plano ideológico sem se preocuparem minimamente com responsáveis, em sentido amplo, devemos incluir os que se mos­
*
Churchill ; foi desse modo que os Aliados ofereceram uma opor- traram favoráveis a Hitler enquanto tal foi possível, os que o
tunidade de sobrevivência a todas as teorias raciais. ajudaram a aceder ao poder, e os que o aplaudiram tanto na Ale­
"
Todavia ' o verdadeiro problema não é nem provar o que e eVI­ manha como no resto da Europa. E quem ousaria estigmatizar
dente - é óbvio que os alemães não são, desde a época de Tá­ com o nome de criminosos de guerra todos esses homens e mu­
cito, nazis em potência -, nem demonstrar o impossível - que lheres da alta sociedade? De facto, não merecem um título que
todos os alemães são nazis convictos. Trata-se antes de pergun­ tal. Sem dúvida, demonstraram a sua incapacidade de avaliarem
tar qual deve ser para nós o comportamento a adoptar, como su­ as formações políticas modernas, uns, porque, em matéria polí­
.
portaremos o confronto com um povo no qual a f ontelra que se­ � tica, consideravam todos os princípios absurdos moralizadores,
para os criminosos de guerra das pessoas norm ls, os culpados � outros porque sentiam uma atracção romântica pelos gangsters
dos inocentes, foi a tal ponto apagada que amanha, na Ale �anha, que confundiam com os «piratas» de antanho. Pessoas assim,
ninguém poderá saber se está diante de um herói clandestmo ou que foram responsáveis em sentido amplo, não o foram em sen­
de um indivíduo que, no passado, perpetrou massacres. tido estrito, pelo menos na generalidade dos casos . Embora te­

*A 24 de Maio de 1944, Churchill afirmava na Câmara dos Comuns:



« medida
nham sido, para os nazis, os primeiros cúmplices e os melhores
dos apoios, não souberam realmente nem o que faziam nem o
tornou-se, na minha opinião, de caracter me­
que se foi desenrolando, esta guerra
nos ideológico." A 2 de Agosto do mesmo ano, referiu-se à �
« onfusãO» causada que tinham pela frente.
pelas suas palavras, e tentou justiflcá-las. E de facto, Churchtll estava
:
cada v z Não é a existência destes responsáveis irresponsáveis e nem
.
mais convencido de que a derrota da Alemanha devia ser total e :
a su �
rendtç o
sequer os actos dos próprios nazis o que suscita o violento movi­
«incondicional», mas também de que, a seguir à guerra, o Estado � le � ao devena
enquanto mento de horror que qualquer pessoa de boa vontade experimen­
ser reorganizado em termos que impedissem a sua futura reemergencla
poder continental por um período de pelo menos cinquenta anos. Cf.
Tlze War ta frente ao caso da Alemanha. Esse movimento é antes suscita­
Speeclzes 01 Winston S. Clzurclzill, compilados por Charles Eade, vol. III, Boston, do pela monstruosa máquina de massacre administrativo ao ser­
Houghton Mifflin, 1953, pp. 149-150; 196. (N. E. O.)
viço da qual podiam ser postas, e o foram efectivamente, não mi-
66 Hannah Arendt
Compreensão e Política e Outros Ensaios 67

Mas até mesmo os debates mais sérios, entre os que defendem Nem a definição da responsabilidade, nem a punição dos cri­
os «bons alemães» e os que acusam os «maus», não só passam minosos de guerra nos porão ao abrigo desta situação. Seme­
ao lado da questão, mas, até à evidência, ficam muito longe de lhantes definições, dada a sua própria natureza, só podem
medir as dimensões do desastre. Esses debates ou se perdem na aplicar-se aos principais culpados, aqueles que não só assumi­
trivialidade de uma constatação geral da existência dos bons e ram a responsabilidade, mas criaram também o inferno presen­
.
dos maus, sobrestimando entretanto de uma maneira extraordI­ te, mas cujos nomes, muito curiosamente, não figuram ainda
nária o papel da «educação», ou adopta � muit? simplesmen:e as nas listas dos criminosos de guerra. O número daqueles que são
teorias raciais dos nazis, limitando-se a mverte-Ias. O que so re­ ao mesmo tempo responsáveis e culpados será relativamente
presenta um perigo na medida em que �s Aliados, desde a céle­ fraco. São muitos os que têm uma parte de responsabilidade
.
bre declaração de Churchill a esse propOSltO, se recusaram a tra­ sem que haja qualquer indício da sua responsabilidade. Mais
var uma guerra ideológica. Sem se darem conta, concederam as­ numerosos ainda são os que se tomaram culpados sem terem
sim aos nazis um avanço que lhes permite organizarem a sua der­ minimamente desempenhado o papel de responsáveis. Entre os
rota no plano ideológico sem se preocuparem minimamente com responsáveis, em sentido amplo, devemos incluir os que se mos­
*
Churchill ; foi desse modo que os Aliados ofereceram uma opor- traram favoráveis a Hitler enquanto tal foi possível, os que o
tunidade de sobrevivência a todas as teorias raciais. ajudaram a aceder ao poder, e os que o aplaudiram tanto na Ale­
"
Todavia ' o verdadeiro problema não é nem provar o que e eVI­ manha como no resto da Europa. E quem ousaria estigmatizar
dente - é óbvio que os alemães não são, desde a época de Tá­ com o nome de criminosos de guerra todos esses homens e mu­
cito, nazis em potência -, nem demonstrar o impossível - que lheres da alta sociedade? De facto, não merecem um título que
todos os alemães são nazis convictos. Trata-se antes de pergun­ tal. Sem dúvida, demonstraram a sua incapacidade de avaliarem
tar qual deve ser para nós o comportamento a adoptar, como su­ as formações políticas modernas, uns, porque, em matéria polí­
.
portaremos o confronto com um povo no qual a f ontelra que se­ � tica, consideravam todos os princípios absurdos moralizadores,
para os criminosos de guerra das pessoas norm ls, os culpados � outros porque sentiam uma atracção romântica pelos gangsters
dos inocentes, foi a tal ponto apagada que amanha, na Ale �anha, que confundiam com os «piratas» de antanho. Pessoas assim,
ninguém poderá saber se está diante de um herói clandestmo ou que foram responsáveis em sentido amplo, não o foram em sen­
de um indivíduo que, no passado, perpetrou massacres. tido estrito, pelo menos na generalidade dos casos . Embora te­

*A 24 de Maio de 1944, Churchill afirmava na Câmara dos Comuns:



« medida
nham sido, para os nazis, os primeiros cúmplices e os melhores
dos apoios, não souberam realmente nem o que faziam nem o
tornou-se, na minha opinião, de caracter me­
que se foi desenrolando, esta guerra
nos ideológico." A 2 de Agosto do mesmo ano, referiu-se à �
« onfusãO» causada que tinham pela frente.
pelas suas palavras, e tentou justiflcá-las. E de facto, Churchtll estava
:
cada v z Não é a existência destes responsáveis irresponsáveis e nem
.
mais convencido de que a derrota da Alemanha devia ser total e :
a su �
rendtç o
sequer os actos dos próprios nazis o que suscita o violento movi­
«incondicional», mas também de que, a seguir à guerra, o Estado � le � ao devena
enquanto mento de horror que qualquer pessoa de boa vontade experimen­
ser reorganizado em termos que impedissem a sua futura reemergencla
poder continental por um período de pelo menos cinquenta anos. Cf.
Tlze War ta frente ao caso da Alemanha. Esse movimento é antes suscita­
Speeclzes 01 Winston S. Clzurclzill, compilados por Charles Eade, vol. III, Boston, do pela monstruosa máquina de massacre administrativo ao ser­
Houghton Mifflin, 1953, pp. 149-150; 196. (N. E. O.)
viço da qual podiam ser postas, e o foram efectivamente, não mi-
68 Hannah Arendt
Compreensão e Política e Outros Ensaios
69

lhares de pessoas, não dezenas de milhares de assassinos esco­


desde há dois mil anos é nesta regra que se baseia o sentimento
lhidos, mas um povo inteiro. Na organização que Himmler con ­ � da justiça e do direito no Ocidente), a culpa implica a consciên­
truiu para prevenir a derrota, cada qual é um executante, uma VI­
cia da culpa, e o castigo manifesta o acto de o criminoso ser uma
tima ou um boneco articulado que espezinha ao avançar os cor­
pessoa responsável. Um correspondente americano descreveu o
pos dos seus companheiros, vítimas escolhidas em primeiro lugar
modo como tal consciência se transformou hoje numa história
nas fileiras AS, mais tarde em qualquer corpo das forças armadas
cujo diálogo é digno da imaginação e do talento de um grande
ou qualquer organização de massa. Porque os massacres i te­
.
�� poeta:
máticos, que são a consequência real de todas as teonas raCIaIS e
de todas as ideologias modernas que advogam o «direito do mais Pergunta: Foram mortas pess
oas no campo?
forte», excedem não só a imaginação humana, mas também os Resposta: Sim.
quadros e as categorias do pensamento e da acção políticos. Seja P. Foram asfixiadas com gás?
qual for o futuro da Alemanha, será determinado apenas pe as
.
� R. Sim.
tristes consequências de uma guerra perdida, e taIs consequenclas
A

P. Foram enterradas vivas?


são por natureza passageiras. Em caso nenhum existe resposta R. Aconteceu algumas vezes.
política perante crimes assim. Com efeito, matar entre setent �e P. As vítimas vinham de toda a
Europa?
oitenta milhões de alemães, ou deixá-los morrer de fome (cOIsa R. Penso que sim.
que, evidentemente, ninguém encara à excepção d � �l�uns psicó­ P. Participou pessoalmente na
. morte dessas pessoas?
ticos fanáticos), equivaleria apenas a assegurar a vltona das Ideo­ R. De maneira nenhuma, eu
era simplesmente tesoureiro
logias nazis, ainda que o poder de facto e o «direito do mais for­ do
campo.
te» se encontrem doravante nas mãos de outros povos. P. Que impressão lhe provoca
vam esses actos?
Tal como, frente ao massacre administrativo, a razão política R. A princípio, era duro, mas
acabámos por nos habituar.
pelmanece impotente, frente à mobilização total, a necessidade P. Sabe que os russos o vão enfo
rcar?
humana de justiça é posta em xeque. Onde todos são culpados, R. (entre soluços) Porquê? O
quefoi que eufiz?
ninguém pode, no fundo, ser julgado. Porque a culpa passa a ser (PM, domingo, 12 de Novembro de 1944
.)
desprovida de qualquer aparência ou máscara que seja de res­
ponsabilidadel. Enquanto o criminoso tem direito à punição (e
É verdade que não fez nada. Limitou-se a executar ordens. E
d sde quando é um crime executar ordens? Desde quando é uma

I Os que saíram da Alemanha, porque tinham a sorte de ser judeus ou se terem Virtude revoltar-se? Desde quando só se pode ser honesto en­
havido desde muito cedo com as perseguições da Gestapo, escaparam a, culpa; o frentando uma morte certa? Que fez ele então?
que não é, evidentemente, mérito seu. Porque o sabem e porque retrospecti a­ �
: . Na peça Os Últimos Dias da Humanidade, que aborda os
mente ainda, o horror do que poderia ter-se passado contmua a vIver com eles, m­
troduzem muitas vezes nas discussões deste género um tom insuportável, uma acontecimentos da última guerra, Karl Kraus deixa cair o pano
certeza de terem sido justos que, com frequência, e sobretudo no caso dos judeus, a seguir à exclamação de Guilherme II: «Nunca quis isto.» O
pode levar à mera inversão das doutrinas nazis; como, de facto, temos já obser­ que há de terrivelmente cómico no caso é que o imperador diz
vado. (N. de H. AreI/dr.)
a verdade. Quando o pano cair desta feita, vamos ser obrigados
68 Hannah Arendt
Compreensão e Política e Outros Ensaios
69

lhares de pessoas, não dezenas de milhares de assassinos esco­


desde há dois mil anos é nesta regra que se baseia o sentimento
lhidos, mas um povo inteiro. Na organização que Himmler con ­ � da justiça e do direito no Ocidente), a culpa implica a consciên­
truiu para prevenir a derrota, cada qual é um executante, uma VI­
cia da culpa, e o castigo manifesta o acto de o criminoso ser uma
tima ou um boneco articulado que espezinha ao avançar os cor­
pessoa responsável. Um correspondente americano descreveu o
pos dos seus companheiros, vítimas escolhidas em primeiro lugar
modo como tal consciência se transformou hoje numa história
nas fileiras AS, mais tarde em qualquer corpo das forças armadas
cujo diálogo é digno da imaginação e do talento de um grande
ou qualquer organização de massa. Porque os massacres i te­
.
�� poeta:
máticos, que são a consequência real de todas as teonas raCIaIS e
de todas as ideologias modernas que advogam o «direito do mais Pergunta: Foram mortas pess
oas no campo?
forte», excedem não só a imaginação humana, mas também os Resposta: Sim.
quadros e as categorias do pensamento e da acção políticos. Seja P. Foram asfixiadas com gás?
qual for o futuro da Alemanha, será determinado apenas pe as
.
� R. Sim.
tristes consequências de uma guerra perdida, e taIs consequenclas
A

P. Foram enterradas vivas?


são por natureza passageiras. Em caso nenhum existe resposta R. Aconteceu algumas vezes.
política perante crimes assim. Com efeito, matar entre setent �e P. As vítimas vinham de toda a
Europa?
oitenta milhões de alemães, ou deixá-los morrer de fome (cOIsa R. Penso que sim.
que, evidentemente, ninguém encara à excepção d � �l�uns psicó­ P. Participou pessoalmente na
. morte dessas pessoas?
ticos fanáticos), equivaleria apenas a assegurar a vltona das Ideo­ R. De maneira nenhuma, eu
era simplesmente tesoureiro
logias nazis, ainda que o poder de facto e o «direito do mais for­ do
campo.
te» se encontrem doravante nas mãos de outros povos. P. Que impressão lhe provoca
vam esses actos?
Tal como, frente ao massacre administrativo, a razão política R. A princípio, era duro, mas
acabámos por nos habituar.
pelmanece impotente, frente à mobilização total, a necessidade P. Sabe que os russos o vão enfo
rcar?
humana de justiça é posta em xeque. Onde todos são culpados, R. (entre soluços) Porquê? O
quefoi que eufiz?
ninguém pode, no fundo, ser julgado. Porque a culpa passa a ser (PM, domingo, 12 de Novembro de 1944
.)
desprovida de qualquer aparência ou máscara que seja de res­
ponsabilidadel. Enquanto o criminoso tem direito à punição (e
É verdade que não fez nada. Limitou-se a executar ordens. E
d sde quando é um crime executar ordens? Desde quando é uma

I Os que saíram da Alemanha, porque tinham a sorte de ser judeus ou se terem Virtude revoltar-se? Desde quando só se pode ser honesto en­
havido desde muito cedo com as perseguições da Gestapo, escaparam a, culpa; o frentando uma morte certa? Que fez ele então?
que não é, evidentemente, mérito seu. Porque o sabem e porque retrospecti a­ �
: . Na peça Os Últimos Dias da Humanidade, que aborda os
mente ainda, o horror do que poderia ter-se passado contmua a vIver com eles, m­
troduzem muitas vezes nas discussões deste género um tom insuportável, uma acontecimentos da última guerra, Karl Kraus deixa cair o pano
certeza de terem sido justos que, com frequência, e sobretudo no caso dos judeus, a seguir à exclamação de Guilherme II: «Nunca quis isto.» O
pode levar à mera inversão das doutrinas nazis; como, de facto, temos já obser­ que há de terrivelmente cómico no caso é que o imperador diz
vado. (N. de H. AreI/dr.)
a verdade. Quando o pano cair desta feita, vamos ser obrigados
70 Hannah Arendt Compreensão e Política e Outros Ensaios
71

a ouvir um coro completo de filisteus exclamando: «Nunca fi­ neira decidida e solene de consagrar a vida à mulher e aos fi­
zemos isso.» E ainda que, entretanto, tenhamos perdido a von­ lhos, estamos tão habituados a admirá-lo ou a sorrir ao vê-lo que
tade de rir, o horror da coisa é que, uma vez mais, será verdade. mal nos demos conta de que esse pai de família cheio de solici­
tude, e cuja segurança constitui a principal preocupação, se tor­
nav , contra sua vontade, num aventureiro sob o peso das im­

3 posições e onómicas caóticas do nosso tempo, ele que não po­

de, por mais que se esforce, sentir-se seguro em relação ao dia
As especulações sobre a história alemã e sobre o pretenso ca­ de amanhã. A docilidade deste tipo humano já se manifestara
rácter nacional alemão, cujas virtualidades escapavam comple­ ?
n s co�eços do regime nazi, na época da imposição da nova
tamente aos melhores conhecedores da Alemanha há uns quin­ .
disciplina. Revelara-se por completo disposto a abandonar os
ze anos apenas, em nada ajudam a compreender através de que seus sentimentos, a sua honra e a sua dignidade humana a troco
mola do coração humano as pessoas se transformaram em en­ da sua pensão, do seu seguro vitalício, das garantias de futuro
grenagens da máquina de massacre. Mais rica em ensinamentos da mulher e dos filhos. Mas era necessário o génio satânico de
é a espantosa figura daquele que pode gabar-se de ter sido o gé­
Him�ler para descobrir que, depois de uma tal degradação, es­
nio organizador do assassínio. Heinrich Himmler não é um des­ tava literalmente disposto a tudo quando a parada subia e a sua
ses intelectuais vindos da obscura terra de ninguém a meio família ficava directamente ameaçada na sua existência física. A
caminho entre a boémia e a rua, cuja importância, nestes últi­ única condição que punha era que o aliviassem da responsabili­
mos tempos, tem sido frequentemente sublinhada na formação
dade dos seus actos. De tal modo que o mesmo homem, esse
da elite nazi. Não é nem um boémio, como Goebbels foi, nem
alemã � �é �i � �u� os nazis não conseguiram levar a matar por
um criminoso sexual, como Streicher, nem um fanático perver:
sua propna IniCiativa um judeu que fosse, apesar de uma propa­
tido, como Hitler, nem ainda um aventureiro como Goering. E

ganda del rante mantida durante anos Ce nem sequer quando se
um «burguês», com todas as aparências da respeitabilidade, os
to �o � e."ld��te que tal assassinato não teria qualquer conse­
hábitos de um bom pai de família fiel à sua mulher e preocupa­
quencla JudiCiaI), esse mesmo homem, hoje, trabalha sem difi­
do com o futuro dos filhos. Construiu a sua última organização
culdades ao serviço da máquina de extermínio. Ao contrário do
de terror, cuja rede cobre o país inteiro, baseando-se no pressu­
que se �assava com as primeiras unidades da Gestapo e das SS,
posto consciente de que a maior parte das pessoas não são nem
a organIzação geral edificada por Himmler não se apoia nem em
boémios, nem fanáticos, nem aventureiros, nem criminosos se­
fanáticos, nem em criminosos inatos, nem em sádicos, mas sim
xuais ou sádicos, mas, acima de tudo, empregados e bons pais
na normalidade das pessoas que trabalham e têm uma família.
de família.
Se quisermos mostrar que nenhum traço de carácter nacional
Foi Péguy, creio eu, quem chamou ao pai de família o «últi­
é indispensável para fazer funcionar este novo tipo de funcio­
mo grande aventureiro do século xx». Morreu demasiado jovem
nário, não é sequer necessário citar as infOImações desoladoras
para ver também nele o grande criminoso do século. Conhece­
a respeito dos letões, dos lituanos, dos polacos ou mesmo dos
mos de tal modo no pai de família a sua disposição benevolen­
judeus que arranjaram uma ocupação na organização criminosa
te, a sua concentração séria no interesse da família, a sua ma- .
de Hlmmler. Nem todos têm uma natureza criminosa ou um
70 Hannah Arendt Compreensão e Política e Outros Ensaios
71

a ouvir um coro completo de filisteus exclamando: «Nunca fi­ neira decidida e solene de consagrar a vida à mulher e aos fi­
zemos isso.» E ainda que, entretanto, tenhamos perdido a von­ lhos, estamos tão habituados a admirá-lo ou a sorrir ao vê-lo que
tade de rir, o horror da coisa é que, uma vez mais, será verdade. mal nos demos conta de que esse pai de família cheio de solici­
tude, e cuja segurança constitui a principal preocupação, se tor­
nav , contra sua vontade, num aventureiro sob o peso das im­

3 posições e onómicas caóticas do nosso tempo, ele que não po­

de, por mais que se esforce, sentir-se seguro em relação ao dia
As especulações sobre a história alemã e sobre o pretenso ca­ de amanhã. A docilidade deste tipo humano já se manifestara
rácter nacional alemão, cujas virtualidades escapavam comple­ ?
n s co�eços do regime nazi, na época da imposição da nova
tamente aos melhores conhecedores da Alemanha há uns quin­ .
disciplina. Revelara-se por completo disposto a abandonar os
ze anos apenas, em nada ajudam a compreender através de que seus sentimentos, a sua honra e a sua dignidade humana a troco
mola do coração humano as pessoas se transformaram em en­ da sua pensão, do seu seguro vitalício, das garantias de futuro
grenagens da máquina de massacre. Mais rica em ensinamentos da mulher e dos filhos. Mas era necessário o génio satânico de
é a espantosa figura daquele que pode gabar-se de ter sido o gé­
Him�ler para descobrir que, depois de uma tal degradação, es­
nio organizador do assassínio. Heinrich Himmler não é um des­ tava literalmente disposto a tudo quando a parada subia e a sua
ses intelectuais vindos da obscura terra de ninguém a meio família ficava directamente ameaçada na sua existência física. A
caminho entre a boémia e a rua, cuja importância, nestes últi­ única condição que punha era que o aliviassem da responsabili­
mos tempos, tem sido frequentemente sublinhada na formação
dade dos seus actos. De tal modo que o mesmo homem, esse
da elite nazi. Não é nem um boémio, como Goebbels foi, nem
alemã � �é �i � �u� os nazis não conseguiram levar a matar por
um criminoso sexual, como Streicher, nem um fanático perver:
sua propna IniCiativa um judeu que fosse, apesar de uma propa­
tido, como Hitler, nem ainda um aventureiro como Goering. E

ganda del rante mantida durante anos Ce nem sequer quando se
um «burguês», com todas as aparências da respeitabilidade, os
to �o � e."ld��te que tal assassinato não teria qualquer conse­
hábitos de um bom pai de família fiel à sua mulher e preocupa­
quencla JudiCiaI), esse mesmo homem, hoje, trabalha sem difi­
do com o futuro dos filhos. Construiu a sua última organização
culdades ao serviço da máquina de extermínio. Ao contrário do
de terror, cuja rede cobre o país inteiro, baseando-se no pressu­
que se �assava com as primeiras unidades da Gestapo e das SS,
posto consciente de que a maior parte das pessoas não são nem
a organIzação geral edificada por Himmler não se apoia nem em
boémios, nem fanáticos, nem aventureiros, nem criminosos se­
fanáticos, nem em criminosos inatos, nem em sádicos, mas sim
xuais ou sádicos, mas, acima de tudo, empregados e bons pais
na normalidade das pessoas que trabalham e têm uma família.
de família.
Se quisermos mostrar que nenhum traço de carácter nacional
Foi Péguy, creio eu, quem chamou ao pai de família o «últi­
é indispensável para fazer funcionar este novo tipo de funcio­
mo grande aventureiro do século xx». Morreu demasiado jovem
nário, não é sequer necessário citar as infOImações desoladoras
para ver também nele o grande criminoso do século. Conhece­
a respeito dos letões, dos lituanos, dos polacos ou mesmo dos
mos de tal modo no pai de família a sua disposição benevolen­
judeus que arranjaram uma ocupação na organização criminosa
te, a sua concentração séria no interesse da família, a sua ma- .
de Hlmmler. Nem todos têm uma natureza criminosa ou um
72 Hannah Arendt Compreensão e Política
e Outros Ensaios
73

gosto perverso pela traição. Não é tão-pouco certo que tivessem be am dar remédio. Ob
� jectos de propaganda,
as virtudes nacio­
feito o seu trabalho se tivessem apenas arriscado a sua vida ou naIS apregoadas em alto
e bom som como «o am
or da pátria»
o seu futuro pessoal. Tendo deixado de temer a Deus - porque « �� � �
orage al mã», «a lea
ldade alemã» servem
a sua consciência desaparecera na organização burocrática dos � !� �
V C s naclOna s corres
pondentes, esses, sim
de fachada ao ;
, bem reais. Seria
seus actos -, já só se sentiam responsáveis em relação à famí­ �
dlfIc 1 descobnr um paí
s onde o patriotismo
lia. Outrora membro responsável da sociedade, participando em ��
f n ldo; e os protestos
chauvinistas de corage
esteja menos di­

todos os assuntos públicos, o pai de família transformou-se num �


d sslmulam uma tendên
cia fatal para a deslealda
m e de lealdade
de e para a trai­
«burguês» que se ocupa exclusivamente da sua vida privada e çao por oportunismo.
ignora totalmente as virtudes cívicas; esta transformação é um �
o entanto, o homem de
massas, este último ava
fenómeno moderno e internacional. As desgraças da nossa épo­ �
gue », é um fenómeno
internacional; o melho
tar do «bur­
r seria não o in­
ca - «Pensa na fome e no frio imenso deste vale de onde so­ dUZIr m tentação alim
: entando cegamente a
ideia segundo a
bem lamentações» (Brecht) - podem a todo o momento qual so o homem de ma
ssas é capaz de malfe
itorias tão aterra­
transformá-lo em homem de massa, e fazê-lo instrumento de to­ doras. Aquele a que cha
mámos o «burguês» é
um homem mo­
das as loucuras e de todas as crueldades. Sempre que, através do derno, homem de ma
_ ssas, não observado nos
momentos de
desemprego, a sociedade atinge o homenzinho no seu funciona­ exaltaçao em que partilh
a a excitação das massa
s, mas em sua
mento normal e no respeito que normalmente tem por si pró­
.

casa, na egura ça (e �
hoje seria melhor dizer
a insegurança) do
prio, prepara-o para essa última etapa em que ele se dispõe a as­ seu domInI �nvado. ? �
Levo tão longe a sep
aração entre o pri­
sumir qualquer função que seja, incluindo a de carrasco. Um ju­ vado e pubh o,
? � �
profissao e a família,
que já não consegue
deu libertado de Buchenwald descobriu, entre os SS que lhe en­ descobnr em SI propn.
o nenhuma ligação ent
re uma coisa e ou­
tregavam os seus documentos à saída do campo, um ex­ �
tra. Q ando a sua profiss
ão o força a matar, não
se considera um
-companheiro de escola, ao qual não dirigiu a palavra, mas que assaSSInO porque o seu
acto não resulta de um
olhou bem nos olhos. Por sua própria iniciativa, aquele que ele �
so l, mas de uma aptidã
o profissional. Movid
a tendência pes­
o pela paixão, não
olhava desse modo disse-lhe: «Tens de compreender, tenho cin­ fana mal a uma mosca
.
co anos de desemprego atrás de mim; comigo, eles podem fazer S� disséssemos a um indivíduo desta pro
fissão recente pro­
dUZIda pela �ossa época
tudo o que quiserem.» , qu� tem contas a pre
star pelo q �e co­
É verdade que este tipo humano moderno - que é o exacto met� u, ele �ao expen. me
ntana sentimento algum
, a não ser o de
oposto do «cidadão» e que, à falta de melhor, designamos aqui ter SIdo traIdo. M�s se
no choque da catástrof
e, compreendesse
que na v�rda�e nao fOI �
como «burguês» - conheceu na Alemanha condições de de­
.
�m funcionário qualquer mas um assas­
senvolvimento particularmente favoráveis. São raros os países SInO entao nao procur
� ana a saída na revolta
mas no suicídio
de cultura ocidental tão pouco marcados pelas virtudes clássicas opçao que muitos já
tomaram na Alemanha
_

ligadas à vida pública. Em nenhum outro, a vida privada e os � ente uma vaga de aut
odestruição se segue
, onde manifesta­
a outra. E também
cálculos pessoais desempenharam um papel tão vasto. Trata-se ISSO nada nos adianta.
de uma realidade que os alemães sempre conseguiram disfarçar
durante os períodos de desgraça nacional, mas à qual nunca sou-
72 Hannah Arendt Compreensão e Política
e Outros Ensaios
73

gosto perverso pela traição. Não é tão-pouco certo que tivessem be am dar remédio. Ob
� jectos de propaganda,
as virtudes nacio­
feito o seu trabalho se tivessem apenas arriscado a sua vida ou naIS apregoadas em alto
e bom som como «o am
or da pátria»
o seu futuro pessoal. Tendo deixado de temer a Deus - porque « �� � �
orage al mã», «a lea
ldade alemã» servem
a sua consciência desaparecera na organização burocrática dos � !� �
V C s naclOna s corres
pondentes, esses, sim
de fachada ao ;
, bem reais. Seria
seus actos -, já só se sentiam responsáveis em relação à famí­ �
dlfIc 1 descobnr um paí
s onde o patriotismo
lia. Outrora membro responsável da sociedade, participando em ��
f n ldo; e os protestos
chauvinistas de corage
esteja menos di­

todos os assuntos públicos, o pai de família transformou-se num �


d sslmulam uma tendên
cia fatal para a deslealda
m e de lealdade
de e para a trai­
«burguês» que se ocupa exclusivamente da sua vida privada e çao por oportunismo.
ignora totalmente as virtudes cívicas; esta transformação é um �
o entanto, o homem de
massas, este último ava
fenómeno moderno e internacional. As desgraças da nossa épo­ �
gue », é um fenómeno
internacional; o melho
tar do «bur­
r seria não o in­
ca - «Pensa na fome e no frio imenso deste vale de onde so­ dUZIr m tentação alim
: entando cegamente a
ideia segundo a
bem lamentações» (Brecht) - podem a todo o momento qual so o homem de ma
ssas é capaz de malfe
itorias tão aterra­
transformá-lo em homem de massa, e fazê-lo instrumento de to­ doras. Aquele a que cha
mámos o «burguês» é
um homem mo­
das as loucuras e de todas as crueldades. Sempre que, através do derno, homem de ma
_ ssas, não observado nos
momentos de
desemprego, a sociedade atinge o homenzinho no seu funciona­ exaltaçao em que partilh
a a excitação das massa
s, mas em sua
mento normal e no respeito que normalmente tem por si pró­
.

casa, na egura ça (e �
hoje seria melhor dizer
a insegurança) do
prio, prepara-o para essa última etapa em que ele se dispõe a as­ seu domInI �nvado. ? �
Levo tão longe a sep
aração entre o pri­
sumir qualquer função que seja, incluindo a de carrasco. Um ju­ vado e pubh o,
? � �
profissao e a família,
que já não consegue
deu libertado de Buchenwald descobriu, entre os SS que lhe en­ descobnr em SI propn.
o nenhuma ligação ent
re uma coisa e ou­
tregavam os seus documentos à saída do campo, um ex­ �
tra. Q ando a sua profiss
ão o força a matar, não
se considera um
-companheiro de escola, ao qual não dirigiu a palavra, mas que assaSSInO porque o seu
acto não resulta de um
olhou bem nos olhos. Por sua própria iniciativa, aquele que ele �
so l, mas de uma aptidã
o profissional. Movid
a tendência pes­
o pela paixão, não
olhava desse modo disse-lhe: «Tens de compreender, tenho cin­ fana mal a uma mosca
.
co anos de desemprego atrás de mim; comigo, eles podem fazer S� disséssemos a um indivíduo desta pro
fissão recente pro­
dUZIda pela �ossa época
tudo o que quiserem.» , qu� tem contas a pre
star pelo q �e co­
É verdade que este tipo humano moderno - que é o exacto met� u, ele �ao expen. me
ntana sentimento algum
, a não ser o de
oposto do «cidadão» e que, à falta de melhor, designamos aqui ter SIdo traIdo. M�s se
no choque da catástrof
e, compreendesse
que na v�rda�e nao fOI �
como «burguês» - conheceu na Alemanha condições de de­
.
�m funcionário qualquer mas um assas­
senvolvimento particularmente favoráveis. São raros os países SInO entao nao procur
� ana a saída na revolta
mas no suicídio
de cultura ocidental tão pouco marcados pelas virtudes clássicas opçao que muitos já
tomaram na Alemanha
_

ligadas à vida pública. Em nenhum outro, a vida privada e os � ente uma vaga de aut
odestruição se segue
, onde manifesta­
a outra. E também
cálculos pessoais desempenharam um papel tão vasto. Trata-se ISSO nada nos adianta.
de uma realidade que os alemães sempre conseguiram disfarçar
durante os períodos de desgraça nacional, mas à qual nunca sou-

; 74 Hannah Arendt Compreensão e Política


e Outros Ensaios
75

4 bui o mono ólio da falt


� a - é a única garantia
que podemos ter
a fim de evItar que as
. «ra ças sup erio res», alternadamente, se
.
Há já vários anos que encontramos alemães que têm vergonha smtam obngadas a exterm
. inar as «raças inferiores
indignas de
de o ser. Tentei muitas vezes responder-lhes que tinha vergonha sobrevIverem», num pro
. . cesso tal que no termo
. ' da «era Impe-
.
de pertencer ao género humano. Esta vergonha fundamental, ho­ n hsta», os nazIs figuran.
� am como grosseiros pre
je compartilhada por grande número de pessoas das nacionalida­ � �
m to os p h, ICO .
� � S ulteriores. Desenvolver
cur sores dos
uma política que não
des mais diversas é a única coisa que nos restou, afinal de con­ seja Impenah sta e con
servar opiniões que não
sejam racistas
tas do nosso sentido da solidariedade internacional, e ainda não �
to a-se de dIa .
para dia mais difícil por
que é de dia para dia

en ontrou uma tradução política apropriada. É certo que a espé­ �
maIS claro q e a humani
dade é para o homem um
fardo pesado.
cie de entusiasmo, inspirado aos nossos pais pela ideia de huma­ : ��
Talve os Ju e s, a cuj
os antepassados devem
os a primeira
nidade, passava com alguma leviandade por cima da «questão concepçao da IdeIa de
humanidade, soubessem
alguma coisa
nacional». Mas o que é muito mais grave é que não havia nesse � �
de se fa do, eles que tod
os os anos, recitando o
«Nosso Pai e
entusiasmo qualquer ideia do terror suscitado pela ideia de hu­ ReI, pecamos e ante Ti»
p: , assumiam sobre eles não
só os peca­
manidade e a crença judaico-cristã numa origem única do géne­ dos da sua propna com .
umdade, mas igualment
e todas as faltas
ro humano. Nada teve de agradável termos de enterrar a ilusão dos homens. Hoje, os que
estão prontos a seguir este
caminho
numa versão moderna, não
do bom selvagem após a descoberta do facto de que os homens
tamente: «Graças a Deus,
se contentarão com suspir �
ar hipocri
podiam ser canibais. A partir de então, os povos aprofundaram o não sou assim», horroriza
seu conhecimento mútuo, e sabem melhor aquilo de que os ho­ �
a possibilidades inimagi
náveis comportadas pel
ndo-se com
o carácter na­
mens são capazes. O resultado é que recuam cada vez mais pe­ CIOnal alemão. Acabaram
decerto por compreender,
no temor e
rante a ideia de humanidade e se tomam cada vez mais recepti­ �
tre or, a Ilo��
.
de que o homem é capaz,
e tal é, com efeito, uma
vos às doutrinas raciais que vão ao ponto de rejeitar a ideia da �
pre-co dIçao de todo o
pensamento político mo
derno. Pessoas
possibilidade de uma humanidade comum. Sentem instintiva­ que tats não serão, é
verdade, bons funcionár
. ios da vingança.
mente que há na ideia de humanidade, quer sob a sua forma re­ �
Mas um COIsa e, certa:
é com aqueles que são
presa de um me­
ligiosa quer sob a sua forma humanista, uma obrigação de res­ �
do efect vo perante a falt
a inelutável do género
humano, é com
ponsabilidade colectiva que não desejam assumir. Porque a ideia eles, e so com eles, que
poderemos contar para faz
er frente sem
de humanidade, uma vez desembaraçada de toda a sua carga sen­ medo nem compromissos
timental, comporta uma consequência de peso no plano político: zes e que é sem limites
.
, ao mal de que os hom

ens são apa­

de uma maneira ou de outra, devemos assumir a responsabilida­


de de todos os crimes cometidos pelos homens, e os povos de­
vem assumir a responsabilidade do mal cometido por outros po­
vos. A vergonha de sermos seres humanos é uma expressão pu­
ramente individual, mas ainda não política, desta descoberta.
De um ponto de vista político, a ideia de humanidade - uma
humanidade que não exclui de si nenhum povo e a nenhum atri-

; 74 Hannah Arendt Compreensão e Política


e Outros Ensaios
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4 bui o mono ólio da falt


� a - é a única garantia
que podemos ter
a fim de evItar que as
. «ra ças sup erio res», alternadamente, se
.
Há já vários anos que encontramos alemães que têm vergonha smtam obngadas a exterm
. inar as «raças inferiores
indignas de
de o ser. Tentei muitas vezes responder-lhes que tinha vergonha sobrevIverem», num pro
. . cesso tal que no termo
. ' da «era Impe-
.
de pertencer ao género humano. Esta vergonha fundamental, ho­ n hsta», os nazIs figuran.
� am como grosseiros pre
je compartilhada por grande número de pessoas das nacionalida­ � �
m to os p h, ICO .
� � S ulteriores. Desenvolver
cur sores dos
uma política que não
des mais diversas é a única coisa que nos restou, afinal de con­ seja Impenah sta e con
servar opiniões que não
sejam racistas
tas do nosso sentido da solidariedade internacional, e ainda não �
to a-se de dIa .
para dia mais difícil por
que é de dia para dia

en ontrou uma tradução política apropriada. É certo que a espé­ �
maIS claro q e a humani
dade é para o homem um
fardo pesado.
cie de entusiasmo, inspirado aos nossos pais pela ideia de huma­ : ��
Talve os Ju e s, a cuj
os antepassados devem
os a primeira
nidade, passava com alguma leviandade por cima da «questão concepçao da IdeIa de
humanidade, soubessem
alguma coisa
nacional». Mas o que é muito mais grave é que não havia nesse � �
de se fa do, eles que tod
os os anos, recitando o
«Nosso Pai e
entusiasmo qualquer ideia do terror suscitado pela ideia de hu­ ReI, pecamos e ante Ti»
p: , assumiam sobre eles não
só os peca­
manidade e a crença judaico-cristã numa origem única do géne­ dos da sua propna com .
umdade, mas igualment
e todas as faltas
ro humano. Nada teve de agradável termos de enterrar a ilusão dos homens. Hoje, os que
estão prontos a seguir este
caminho
numa versão moderna, não
do bom selvagem após a descoberta do facto de que os homens
tamente: «Graças a Deus,
se contentarão com suspir �
ar hipocri
podiam ser canibais. A partir de então, os povos aprofundaram o não sou assim», horroriza
seu conhecimento mútuo, e sabem melhor aquilo de que os ho­ �
a possibilidades inimagi
náveis comportadas pel
ndo-se com
o carácter na­
mens são capazes. O resultado é que recuam cada vez mais pe­ CIOnal alemão. Acabaram
decerto por compreender,
no temor e
rante a ideia de humanidade e se tomam cada vez mais recepti­ �
tre or, a Ilo��
.
de que o homem é capaz,
e tal é, com efeito, uma
vos às doutrinas raciais que vão ao ponto de rejeitar a ideia da �
pre-co dIçao de todo o
pensamento político mo
derno. Pessoas
possibilidade de uma humanidade comum. Sentem instintiva­ que tats não serão, é
verdade, bons funcionár
. ios da vingança.
mente que há na ideia de humanidade, quer sob a sua forma re­ �
Mas um COIsa e, certa:
é com aqueles que são
presa de um me­
ligiosa quer sob a sua forma humanista, uma obrigação de res­ �
do efect vo perante a falt
a inelutável do género
humano, é com
ponsabilidade colectiva que não desejam assumir. Porque a ideia eles, e so com eles, que
poderemos contar para faz
er frente sem
de humanidade, uma vez desembaraçada de toda a sua carga sen­ medo nem compromissos
timental, comporta uma consequência de peso no plano político: zes e que é sem limites
.
, ao mal de que os hom

ens são apa­

de uma maneira ou de outra, devemos assumir a responsabilida­


de de todos os crimes cometidos pelos homens, e os povos de­
vem assumir a responsabilidade do mal cometido por outros po­
vos. A vergonha de sermos seres humanos é uma expressão pu­
ramente individual, mas ainda não política, desta descoberta.
De um ponto de vista político, a ideia de humanidade - uma
humanidade que não exclui de si nenhum povo e a nenhum atri-

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