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O ANTISSEMITISMO DE MARTIN HEIDEGGER:

FILOSOFIA DA TECNOLOGIA E DA MÍDIA À LUZ


DOS CADERNOS NEGROS. IMPLICAÇÕES PARA
A RECEPÇÃO DE HEIDEGGER NOS ESTUDOS
DE MÍDIA E COMUNICAÇÃO
CHRISTIAN FUCHS

INTRODUÇÃO
No último trimestre de 2014, três volumes dos Schwarze Hefte (Os Cadernos Negros), os
cadernos de anotações filosóficas de Heidegger, foram publicados na edição alemã de suas
obras completas (Heidegger 2014a, 2014b, 2014c). Eles contêm notas escritas entre os anos
de 1931 e 1941 e levaram a debates públicos sobre o papel do antissemitismo no pensamento
de Heidegger. Especialmente a publicação do livro Heidegger und der Mythos der jüdischen
Weltverschwörung (Heidegger e o Mito da Conspiração Mundial Judaica) de Peter Trawny
(2014), que editou os Cadernos Negros, que fomentou esse debate público. A maioria das
pessoas concordam que tais debates públicos sobre o papel da ideologia nazista e do
antissemitismo no pensamento de Heidegger são de crucial importância. Não são meras
discussões sobre Heidegger, mas debates que são, ao mesmo tempo, sobre o pensamento
filosófico, ideológico e político na Alemanha Nazista e seu legado.
No espírito de tais debates, esse artigo se pergunta: quais são e quais deveriam ser as
implicações da publicação dos Cadernos Negros para a recepção de Heidegger no estudo, teoria
e filosofia da mídia, comunicação e tecnologia? Na introdução, darei uma breve visão geral
de alguns dos debates precedentes sobre Heidegger e o Nacional-Socialismo. Na seção
seguinte, introduzo as contribuições de Theodor W. Adorno e Moishe Postone à teoria
crítica do antissemitismo que serão aplicadas na terceira parte às passagens dos Cadernos
Negros de Heidegger que fazem menção aos judeus. A análise mostrará que a lógica da
tecnologia moderna cumpre um importante papel nos Cadernos Negros.
Na penúltima seção, portanto, revisitamos alguns dos escritos de Heidegger sobre tecnologia
à luz dos Cadernos Negros. Na última parte, traço algumas conclusões sobre o que as devidas
reações à publicação dos Cadernos Negros poderiam ser no campo interdisciplinar dos estudos
sobre mídia e comunicação.
Uma das primeiras obras focadas em Heidegger e o Nazismo foi o artigo de Karl Löwith, As
Implicações Políticas do Existencialismo de Heidegger, de 1946. Löwith, um dos alunos de Heidegger,
defende no artigo que há uma conexão inerente entre a filosofia de Heidegger e a ideologia
nazista. Victor Farías, em sua obra de 1989, Heidegger e o Nazismo, foca no início da carreira
de Heidegger e seu papel como vice-chanceler da Universidade de Freiburg. Tom Rockmore,
em seu livro de 1997, Sobre o Nazismo e a Filosofia de Heidegger discute o pronunciamento
reitoral, o Contribuições para a Filosofia (1936–1938), e suas obras sobre Nietzsche e Hölderlin.
Ele também discute em um capítulo a conexão entre nazismo e tecnologia nas obras de
Heidegger. O livro de Emmanuel Faye, Heidegger: A Introdução do Nazismo na Filosofia, de 2009,
foca predominantemente nos escritos, falas, aulas e seminários de Heidegger durante o
período nazista. Tom Rockmore (2009) defende que os livros de Farías e Faye estabeleceram
importantes fases na discussão sobre Heidegger e o Nazismo.
Victor Farías (1989) conclui que “Heidegger permaneceu fiel a toda uma gama de doutrinas
características do Nacional-Socialismo” (p. 7), que seria evidenciada pela “atitude
radicalmente discriminatória a respeito da superioridade intelectual dos alemães, enraizada
em sua linguagem e seu destino; em sua crença no primado do seu próprio pensamento,
muito como o de Hölderlin, tomada como paradigma e guia para o desenvolvimento
espiritual da própria humanidade; em sua oposição radical a qualquer forma de democracia”
(pp. 7-8).
Tom Rockmore (1997, p. 5) defende que “o pensamento filosófico de Heidegger e seu
nazismo são interdependentes e não podem ser separados”, que ele “se voltou ao nacional-
socialismo com base em sua filosofia e que sua evolução ulterior é grandemente determinada
pela sua contínua preocupação com o nazismo”. Nas obras de Heidegger, encontra-se, de
acordo com Rockmore (1997, p. 9), uma “presença constante de um compromisso metafísico
como Volk alemão como objetivo histórico central em seu pensamento, um compromisso
que, como o tema de uma fuga, é consistentemente renovado em intervalos regulares, desde
1933. É esse interesse, acredito – em conjunção com o interesse subjacente de Heidegger
pelo Ser – que o levou ao Nacional-Socialismo. Esse interesse permanece constante ao longo
de sua carreira e determina o desenvolvimento ulterior de sua posição, cuja a evolução não
pode ser percebida de outra forma”.
Tom Rockmore escreve: “Estou convencido de que a teoria de Heidegger reflete uma
variedade de influências contemporâneas, alguns das quais ele pode não ter se dado conta,
tais como o papel de uma forma de catolicismo romano nacionalista e conservador do
sudoeste alemão durante a sua juventude, enfatizada por Ott, Farías e, mais recentemente,
Thomä; o interesse difundido, que ele parecer compartilhar, pela recuperação da Alemanha,
a parte derrotada na I Guerra Mundial, como nação, e assumir o que muitos pensavam ser o
destino alemão manifesto; a reintrodução do destino como fator explanatório de uma
mudança histórica por Spengler; o interesse no conceito de Volk conforme desenvolvido na
Alemanha do século XIX; e o próprio desejo de Heidegger de ter um papel ainda maior no
sistema universitário alemão como pensador central da sua época, até mesmo reformar o
sistema universitário de acordo com sua própria visão de uma educação mais elevada. Estes
e outros fatores são ingredientes da teoria de Heidegger” (Rockmore, 1997, p. 8).
Emmanuel Faye é o autor que expressa de forma mais enfática a ideia de que a filosofia de
Heidegger é a ideologia nazista. “Pelo seu próprio conteúdo, ela dissemina no interior da
filosofia a legitimação explícita e implacável dos princípios orientadores do movimento
nazista” (Faye, 2009, p. 246). “Com a obra de Heidegger, são os princípios do hitlerismo e
do nazismo que foram introduzidos nas livrarias de filosofia do planeta. [...] Para preservar o
futuro do pensamento filosófico, é igualmente indispensável nos debruçarmos sobra a real
natureza das Obras Completas de Heidegger, uma coleção de textos que contem princípios que
são racistas, eugenistas e radicalmente deletérios à existência da razão humana. Tal obra não
pode continuar sendo posta na seção de filosofia das livrarias; seu lugar é nos arquivos
históricos do nazismo e do hitlerismo” (Faye, 2009, pp. 318-319).
Algumas análises do livro, tais como a do jornal alemão Die Zeit, afirmam que os argumentos
de Faye são demasiadamente especulativos e indiretos, quando ele especula, por exemplo, se
Heidegger talvez tenha escrito um discurso para Hitler ou defende que Heidegger é culpado
por associação pois algumas de suas formulações pareceriam similares àquelas feitas pelos
ideólogos nazistas (Meyer, 2005). Faye (2005) respondeu a tais críticas com citações das obras
de Heidegger, tais como de suas palestras dos anos de 1933/1934, onde Heidegger diz, por
exemplo:
Wenn heute der Führer immer wieder spricht von der Umerziehung zur national-
sozialistischen Weltanschauung, heißt das nicht: irgendwelche Schlagworte
beibringen, sondern einen Gesamtwandel hervorbringen, einen Weltentwurf aus
dessen Grund heraus er das ganze Volk erzieht. Der Nationalsozialismus ist nicht
irgendwelche Lehre, sondern der Wandel von Grund aus der deutschen und, wie
wir glauben, auch der europäischen Welt (Heidegger, 2001, p. 225)

Minha tradução:
Quando o Führer fala continuamente de reeducação na direção da visão de mundo
[Weltanschauung] nacional-socialista, isso não quer dizer inculcar algumas
palavras de ordem, mas trazer a cabo uma mudança total, um desenho do mundo
(Weltentwurf) a partir do qual ele educa todo o povo. O nacional-socialismo não
é uma doutrina, mas uma transformação fundamental do mundo alemão e, como
pensamos, também do mundo europeu.

Der Feind kann in der innersten Wurzel des Daseins eines Volkes sich festgesetzt
haben und dessen eigenem Wesen sich entgegenstellen und zuwiderhandeln. Um
so schärfer und härter und schwerer ist der Kampf, denn dieser besteht ja nur
zum geringsten Teil im Gegeneinanderschlagen; oft weit schwieriger und
langwieriger ist es, den Feind als solchen zu erspähen, ihn zur Entfaltung zu
bringen, ihm gegenüber sich nichts vorzumachen, sich angriffsfertig zu halten, die
ständige Bereitschaft zu pflegen und zu steigern und den Angriff auf weite Sicht
mit dem Ziel der völligen Vernichtung anzusetzen (Heidegger, 2001, p. 91)

Minha tradução:
O inimigo pode ter se enxertado na raiz mais íntima da existência [Dasein] de um
povo e opôs a essência mais própria deste último, agindo contra ela. Tanto mais
aguda, mais dura e mais difícil que a luta, pois apenas uma parte muito pequena
da luta consiste em golpes mútuos; muitas vezes é muito mais difícil e exaustivo
procurar o inimigo como tal e levá-lo a se revelar, evitar nutrir ilusões sobre ele,
permanecer pronto para atacar, cultivar e aumentar a prontidão constante e iniciar
o ataque em um longo prazo, com o objetivo de extermínio total. (Faye, 2009, p.
168)

Em 2 de Outubro de 1929, escreveu, em carta para Viktor Schwoerer que “ou devolvemos
as forças genuínas e educadores que emanem do solo nativo à vida espiritual alemã, ou a
abandonamos à sua crescente judeização (Verjudung)” (Heidegger apud. Faye, 2009, p. 34; ver,
também: Sieg, 1989). Richard Hönigswald, que veio de uma família judia, foi professor de
filosofia na Universidade de Munique. Ele perdeu sua cátedra em setembro de 1933, como
consequência de leis nazistas aprovadas em abril do mesmo ano, que baniram os judeus das
universidades e outros serviços públicos (Gesetz zur Wiederherstellung des Berufsbeamtentums, Lei
de restauração do serviço social profissional). O ministério da cultura Bávaro pediu a
Heidegger que comentasse as obras de Hönigswald. Heidegger respondeu numa carta que
ele que considerava que
a nomeação deste homem para a Universidade de Munique é um escândalo, a
única explicação para ela é o fato de que o sistema católico prefere tais indivíduos
que são aparentemente indiferentes a qualquer visão de mundo, pois eles não
representam perigo para seus próprios esforços e porque eles são, num sentido
bem conhecido, ‘liberal-objetivos’. [...] Heil Hitler! (Heidegger apud. Faye, 2009,
p. 37).

Numa palestra de 1935 que, após sua republicação em 1953, resultou em debates públicos,
Heidegger (2000, p. 213) falou, no contexto do nacional-socialismo, de uma “verdade e
grandeza interna desse movimento (a saber, o encontro entre a tecnologia global e o homem
moderno)”.1 Jürgen Habermas (1953, p. 197) trouxe à atenção do público alemão sua
descoberta de que Heidegger, em 1953, “publica suas palavras, 18 anos depois, sobre a
grandeza e verdade interna do nacional-socialismo” e que era, portanto, “hora de pensar com
Heidegger contra Heidegger”. Christian E. Lewalter, um jornalista do Die Zeit, assim como
o próprio Heidegger, defende que o termo “movimento” se refere à passagem entre
parênteses (Wolin, 1993, pp. 187-188). Outras pessoas, no entanto, dizem que o original não
contem a passagem entre parênteses (ver: Wolin, 1993, p. 188; Pöggeler, 1987, pp. 276-278).
A página manuscrita original que contém essa passagem está faltando no acervo de obras de
Heidegger (Heidegger, 1983, p. 234). Petra Jaeger, a editora de alguns dos volumes das obras
escolhidas de Heidegger, escreveu no posfácio ao volume que contém a aula que ela tem uma
suspeita fundamentada (com base numa folha de prova de 1953) de que Heidegger inseriu a
frase entre parênteses à correção de 1953 (Heidegger, 1983, pp. 233-234). Silvio Vietta (1989,
p. 31) tenta argumentar que essa passagem é antifascista ao afirmar que, por “grandeza”,
Heidegger se refere à monstruosidade da razão instrumental, “a dominação pela própria
razão de cálculo”2 (tradução do alemão). No entanto, hoje sabemos, através dos Cadernos
Negros, que Heidegger via a razão de cálculo como judaica, o que mostra o absurdo do
argumento de Vietta.
Em uma carta a Herbert Marcuse, Heidegger escreveu em 1948 que a carta anterior de
Marcuse, na qual ele indagou por que Heidegger não havia denunciado os nazistas
publicamente, “me mostra precisamente o quão difícil é conversas com pessoas que não
viviam na Alemanha desde 1933 e que julgam o início do movimento nacional-socialista pelo
seu fim” (Wolin, 1993, p. 162) e que não houve apenas “um regime que matou milhões de
judeus”, mas, também, um que matou milhões de “alemães orientais” (Wolin, 993, p. 163).
Marcuse, sendo alguém que vinha de uma família judia e que era um marxista, teve de fugir
da Alemanha nazista, respondeu em maio de 1948 que Heidegger tentava “relativizar [...] um
crime, dizendo que outros teriam feito o mesmo. Além disso, como é possível comparar a
tortura, mutilação e aniquilação de milhões de pessoas com o deslocamento forçado de
grupos populacionais que não sofreram tais ultrajes” (Wolin, 1993, p. 164).
Milhares de páginas foram escritas sobre Heidegger e a ideologia nazistas. Minha pequena
introdução a essa questão será suficiente para dar aos leitores leigos sobre o assunto, uma
ideia básica sobre essa controvérsia. Claro que muito mais poderia ser dito sobre isso. Para
melhor contextualizar as citações sobre os judeus que podem ser encontradas nos Cadernos

1 No original, em alemão: “Was heute vollends als Philosophie des Nationalsozialismus her-umgeboten wird,
aber mit der inneren Wahrheit und Größe dieser Bewegung (nämlich mit der Begegnung der planetarisch
bestimmten Technik und des neuzeitlichen Menschen) nicht das Geringste zu tun hat, das macht seine
Fischzüge in diesen trüben Gewässern der “Werte’ und der “Ganzheiten’” (Heidegger, 1983, p. 208).
2 Original em alemão: “die Nationalsozialismus her des rechnenden Denkens selbst”.
Negros, quero discutir a seguir as contribuições de Theodor W. Adorno e Moishe Postone à
teoria crítica do antissemitismo.
A TEORIA CRÍTICA DO ANTISSEMITISMO
Theodor W. Adorno (2002) identifica sete elementos do antissemitismo:
1. Judeus são considerados como uma raça:
“Para os fascistas, os judeus não são uma minoria, mas uma antirraça, o princípio negativo
como tal; a felicidade do mundo depende do seu extermínio”. (p. 137)
2. Os judeus são considerados gananciosos, orientados por interesses financeiros e poder, e
por serem representantes do capital financeiro:
“A fantasia da conspiração de banqueiros judeus lascivos que financiam o
bolchevismo é um sinal de impotência inata, a vida boa um emblema de felicidade.
Estes se juntam à imagem do intelectual, que parece desfrutar em pensamento o
que os outros negam a si mesmo e é poupado do suor do trabalho e da força
corporal. O banqueiro e o intelectual, dinheiro e mente, os expoentes da
circulação, são as imagens de desejo repudiadas daqueles mutilados pelo poder,
uma imagem que o poder usa para se perpetuar”. (p. 141)

3. Os judeus são, de forma fetichista, culpados pelos problemas abstratos do capitalismo:


“O antissemitismo burguês tem um propósito econômico específico: ocultar a dominação
na produção” (p. 142)
“O trabalho produtivo do capitalista, quer ele justificasse seu lucro como
recompensa da empresa, como no liberalismo, ou como salário do diretor, como
hoje, era a ideologia que ocultava a natureza do contrato de trabalho e a
voracidade do sistema econômico em geral. Essa é a razão das pessoas gritarem:
‘Pega ladrão!’ – e apontarem para o judeu. Ele é, de fato, o bode expiatório, não
apenas de manobras individuais e maquinações, mas, em sentido mais amplo, que
a injustiça econômica da classe como um todo é atribuída a ele”. (p. 142)

“Que a esfera da circulação seja responsável pela exploração é uma ilusão


socialmente necessária. Os judeus não foram os únicos ativos na esfera da
circulação. Mas eles estiveram presos nela há tanto tempo que não poderiam não
refletir em sua constituição algo do ódio por tanto tempo dirigido a essa esfera.
Ao contrário de seus colegas arianos, lhes foi amplamente negado o acesso à fonte
de valor agregado” (p. 143)

4. Há ódios às crenças religiosas judaicas:


“Acusar os judeus de serem incrédulos obstinados não é mais suficiente para
incitar as massas. Mas a hostilidade religiosa que motivou a perseguição dos judeus
por dois milênios está longe de estar completamente extinta. [...] Os outros, que
reprimiram esse conhecimento e com má consciência se convenceram do
cristianismo como uma posse segura, foram obrigados a confirmar sua salvação
eterna pela ruína mundana daqueles que se recusaram a fazer o obscuro sacrifício
da razão. Essa é a origem religiosa do antissemitismo. Os adeptos da religião do
Filho odiavam os partidários da religião do Pai como se odeiam aqueles que sabem
melhor. Esta é a hostilidade do espírito endurecido como fé na salvação para o
espírito como mente” (p. 144, p. 147).

5. A imitação de características naturais afirmadas dos judeus é uma expressão psicológica da


dominação humana da natureza e dos humanos e uma imitação de práticas mágicas:
“Não há antissemita que não sinta um impulso instintivo de imitar o que considera
ser judaísmo. Os mesmos códigos miméticos são constantemente usados: o
movimento argumentativo das mãos, o tom de voz cantado, que anima vivamente
uma situação ou um sentimento independentemente do julgamento, e o nariz,
aquele principium individuationis fisionômico, que escreve a peculiaridade do
indivíduo em seu rosto. Nas ambíguas parcialidades do olfato sobrevive a velha
nostalgia do que é inferior, o desejo de união imediata com a natureza circundante,
com a terra e o lodo”. (p. 151)

“O propósito do culto fascista das fórmulas, da disciplina ritualizada, dos


uniformes e de todo o aparato supostamente irracional, é possibilitar o
comportamento mimético. Os elaborados símbolos próprios de todo movimento
contrarrevolucionário, as caveiras e as máscaras, os tambores bárbaros, a
repetição monótona de palavras e gestos, são tantas imitações organizadas de
práticas mágicas, a mimese da mimese” (152). “Os judeus como um todo são
acusados de praticar magia proibida e rituais sangrentos. […] Eles são declarados
culpados daquilo que, como primeiros cidadãos, foram os primeiros a subjugar
em si mesmos: a suscetibilidade à atração dos instintos básicos, o desejo pela besta
e pela terra, o culto das imagens. Porque eles inventaram o conceito de kasher, eles
são perseguidos como porcos. Os antissemitas se nomeiam executores do Antigo
Testamento: eles cuidam para que os judeus, tendo comido da Árvore do
Conhecimento, voltem ao pó”. (p. 153)

6. Características de um sujeito, como a dominação dentro da sociedade, são projetadas nos


judeus como um objeto. É dito dos judeus, baseado nessa lógica, que eles são, p. ex.,
especialmente poderosos:
“O antissemitismo é baseado em falsas projeções. [...] Impulsos que não são
reconhecidos pelo sujeito, mas que são dele, são atribuídos ao objeto: a vítima em
potencial. [...] Aqueles impelidos pela cega luxúria assassina sempre viram na
vítima o perseguidor que os levou à desesperada autodefesa”. (p. 154)

“Em vez da voz da consciência, ele [o sujeito do antissemitismo] ouve vozes; em vez de
examinar-se interiormente para elaborar um protocolo de sua própria ânsia de poder, atribui
a outros o Protocolo dos Sábios de Sião”. (p. 156)
“Não importa qual seja a composição dos judeus na realidade, sua imagem, a dos derrotados,
tem características que devem fazer do governo totalitário seu inimigo mortal: felicidade sem
poder, recompensa sem trabalho, pátria sem fronteiras, religião sem mito”. (pp. 164-165)
7. O antissemitismo é baseado em estereótipos puramente irracionais, em generalizações e
julgamentos gerais, na forma mais radical de razão instrumental, no pensamento de ticket
que rotula os indivíduos como pertencentes a grupos que devem ser aniquilados e no ódio
contra a alteridade:
“As visões antissemitas sempre refletiram o pensamento estereotipado. Hoje só resta esse
pensamento. As pessoas ainda votam, mas apenas entre totalidades”. (p. 166)
“O julgamento não se baseia mais em um ato real de síntese, mas na subsunção cega”. (pp.
166–167)
“Não é apenas o bilhete antissemita que é antissemita, mas a própria mentalidade
do bilhete. A raiva contra a diferença que é teleologicamente inerente a essa
mentalidade como o rancor dos sujeitos dominados da dominação da natureza
está sempre pronta para atacar a minoria natural, ainda que seja a minoria social
que esses sujeitos principalmente ameaçam”. (p. 172)
“O descaso com o sujeito facilita as coisas para a administração. Grupos étnicos são
transportados para diferentes latitudes; Indivíduos rotulados como ‘judeus’ são despachados
para as câmaras de gás”. (p. 167)
“Foi demonstrado, de fato, que as perspectivas do antissemitismo não são menos boas em
áreas ‘livres de judeus’ do que na própria Hollywood. A experiência é substituída pelo clichê,
a imaginação ativa na experiência pela aceitação diligente”. (p. 166)
“Quanto mais supérfluo o trabalho físico é tornado pelo desenvolvimento da
tecnologia, mais entusiasticamente ele se configura como modelo para o trabalho
mental, que não deve ser tentado, no entanto, a tirar conclusões incômodas. Esse
é o segredo da estupidez avançada, na qual o antissemitismo prospera”. (p. 167)

O teórico político e historiador Moishe Postone fundamenta uma teoria crítica do


antissemitismo e da ideologia na crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria e aponta a
conexão inerente do antissemitismo e do capitalismo. O capitalismo está fundado em um
antagonismo entre o valor da mercadoria e o valor de troca de um lado e o valor e o valor
de uso do outro. Postone diz que no capitalismo o valor é “abstrato, geral, homogêneo”,
enquanto o valor de uso é “concreto, particular, material” (Postone, 2003, p. 90). A lógica da
mercadoria fetichiza o concreto e vela o valor como relação social abstrata subjacente à
mercadoria. No fetichismo da mercadoria, a dimensão abstrata aparece como natural e sem
fim, a dimensão concreta como coisa sem relações sociais (Postone, 2003, p. 91).
Postone (1980, p. 109) argumenta que, na forma do valor, a “tensão dialética entre valor e
valor de uso” do capitalismo é duplicada na aparência do dinheiro como abstrato e da
mercadoria como concreta. O capitalismo requer para sua existência tanto dinheiro quanto
mercadorias, valor e valor de uso, trabalho abstrato e concreto. O dinheiro medeia a troca
de mercadorias, de modo que o dinheiro não pode existir sem a lógica das mercadorias. As
mercadorias são feitas para serem trocadas. O dinheiro é o equivalente geral dessa troca de
mercadorias. Assim, as mercadorias não podem existir sem valor de troca e um equivalente
geral. Outra maneira de expressar a dialética da mercadoria e do dinheiro é dizer que a esfera
da produção de mercadorias existe em relação à esfera da circulação e vice-versa. O
fetichismo da mercadoria é uma forma de aparência em que a sociabilidade abstrata das
mercadorias é separada de sua concretude: apenas o concreto imediato (o bem que se
consome, o dinheiro que se tem na mão) é tomado como realidade. Esse concreto imediato
obscurece a existência das relações sociais mais abstratas, não diretamente visíveis, por trás
dos fenômenos imediatos.
Postone diz que na ideologia antissemita, o caráter dual da mercadoria de valor de uso e valor
é
“duplicado” na forma do dinheiro (a forma manifesta do valor) e da mercadoria
(a forma manifesta do valor de uso). Embora a mercadoria como forma social
incorpore valor e valor de uso, o efeito dessa externalização é que a mercadoria
aparece apenas como sua dimensão de valor de uso, como puramente material. O
dinheiro, por outro lado, aparece como o único repositório de valor, como fonte
e lócus do puramente abstrato, e não como a forma manifesta exteriorizada da
dimensão do valor da própria forma da mercadoria (Postone, 2003, p. 91).

Postone argumenta que o antissemitismo moderno é uma biologização e naturalização do


fetiche da mercadoria. Seria baseado na “noção de que o concreto é ‘natural’” e que o
“natural” é “mais ‘essencial’ e mais próximo das origens” (Postone, 1980, p. 111). “O capital
industrial aparece então como o descendente linear do trabalho artesanal ‘natural’”, a
“produção industrial” aparece como “um processo criativo puramente material” (Postone,
1980, p. 110). A ideologia separa o capital industrial e o trabalho industrial da esfera de
circulação, troca e dinheiro que é vista como “parasitária” (Postone, 1980, p. 110). Na
ideologia nazista, a “dimensão abstrata manifesta também é biologizada – como os judeus.
A oposição do concreto material e do abstrato torna-se a oposição racial dos arianos e dos
judeus” (Postone, 1980, p. 112). O antissemitismo moderno é uma “crítica” unilateral do
capitalismo que vê a esfera da circulação como totalidade do capitalismo, inscreve
biologicamente o judaísmo na circulação e no capitalismo e exclui a tecnologia e a indústria
– que são percebidas como produtivas e arianas – do capitalismo. Na ideologia nazista, o
capitalismo “parecia apenas sua dimensão abstrata manifesta, que por sua vez era responsável
pelas mudanças econômicas, sociais e culturais associadas ao rápido desenvolvimento do
capitalismo industrial moderno” (Postone, 2003, p. 93).
O antissemitismo identifica as mudanças negativas, deslocamentos e desterritorializações
associadas ao capitalismo, como urbanização, proletarização, individualização, tecnificação e
destradicionalização, com o lado abstrato do capitalismo que é percebido como a poderosa
universalidade do capitalismo, socialismo ou algum outro fenômeno. “O capitalismo parecia
estar apenas em sua dimensão abstrata manifesta que, por sua vez, era responsável por toda
a gama de mudanças sociais e culturais concretas associadas ao rápido desenvolvimento do
capitalismo industrial moderno” (Postone, 1980, p. 112).
OS CADERNOS NEGROS
Nos Schwarze Hefte (Cadernos Negros) de Heidegger, podem-se encontrar passagens onde ele
fala sobre os judeus:
a) Die zeitweilige Machtsteigerung des Judentums aber hat darin ihren Grund,
daß die Metaphysik des Abendlandes, zumal in ihrer neuzeitlichen Entfaltung, die
Ansatzstelle bot für das Sichbreitmachen einer sonst leeren Rationalität und
Rechenfähigkeit, die sich auf solchem Wege eine Unterkunft im ‘Geist’
verschaffte, ohne die verborgenen Entscheidungsbezirke von sich aus je fassen
zu können. Je ursprünglicher und anfänglicher die künftigen Entscheidungen und
Fragen werden, um so unzugänglicher bleiben sie dieser ‘Rasse’ (Heidegger,
2014c, p. 46 [XII, pp. 67-68])

Minha tradução:
O aumento temporário do poder do judaísmo é, no entanto, fundamentado no
fato de que a metafísica ocidental, especialmente em seu desenvolvimento
moderno, fornece o ponto de partida para a difusão de uma racionalidade
geralmente vazia e de uma capacidade de cálculo, que assim fornece um refúgio
no 'espírito', sem ser capaz de compreender as regiões de decisão ocultas por
conta própria. Quanto mais originárias e primordiais as decisões e questões
prospectivas, mais elas permanecem inacessíveis a essa “raça”.3

b) Die Juden “leben” bei ihrer betont rechnerischen Begabung am längsten schon
nach dem Rasseprinzip, weshalb sie sich auch am heftigsten gegen die
uneingeschränkte Anwendung zur Wehr setzen. Die Einrichtung der rassischen
Aufzucht entstammt nicht dem “Leben” selbst, sondern der Übermächtigung des
Lebens durch die Machenschaft. Was diese mit solcher Planung betreibt, ist eine
vollständige Entrassung der Völker durch die Einspannung derselben in die
gleichgebaute und gleichschnittige Einrichtung alles Seienden. Mit der Entrassung

3 Fonte desta e das seguintes traduções dos Cadernos Negros: http://www. counter-
currents.com/2014/03/heidegger-on-world-jewry-in-the-black-notebooks/
geht eine Selbstentfremdung der Völker in eines – der Verlust der Geschichte –
d.h. der Entscheidungsbezirke zum Seyn (Heidegger, 2014c, p. 56 [XII, 82–83]).

Minha tradução:
Os judeus “vivem” por seu notável talento para o cálculo, perdendo apenas para
o princípio de raça, razão pela qual estão resistindo à sua aplicação consistente
com a máxima violência. O estabelecimento [Einrichtung] da criação racial
[eugenia] não decorre da “vida” em si, mas da superação da vida através da
maquinação [tecnologia]. O que eles impulsionam com tal plano é a completa
desracialização de todos os povos, prendendo-os em um estabelecimento
uniformemente construído e sob medida [Einrichtung] de todos os seres. Junto
com a desracialização está a autoalienação dos povos – a perda da história – ou
seja, as regiões de decisão do Ser.

c) Auch der Gedanke einer Verständigung mit England im Sinne einer Verteilung
der “Gerechtsamen” der Imperialismen trifft nicht ins Wesen des geschichtlichen
Vorgangs, den England jetzt innerhalb des Amerikanismus und des
Bolschewismus und d. h. zugleich auch des Weltjudentums zu Ende spielt. Die
Frage nach der Rolle des Weltjudentums ist keine rassische, sondern die
metaphysische Frage nach der Art von Menschentümlichkeit, die schlechthin
ungebunden die Entwurzelung alles Seienden aus dem Sein als weltgeschichtliche‚
“Aufgabe” übernehmen kann (Heidegger 2014c, p. 243 [XIV, 121])

Minha tradução:
A ideia de um entendimento com a Inglaterra em termos de distribuição de
“prerrogativas” imperialistas perde a essência do processo histórico, no qual a
Inglaterra joga junto com o americanismo e o bolchevismo e, ao mesmo tempo,
com o judaísmo mundial. A questão do papel do judaísmo mundial não é racial,
mas a questão metafísica do tipo de humanidade que pode aceitar do Ser a “tarefa”
histórico-mundial de desenraizar todos os seres.

d) Das Weltjudentum, aufgestachelt durch die aus Deutschland herausgelassenen


Emigranten, ist überall unfaßbar und braucht sich bei aller Machtentfaltung
nirgends an kriegerischen Handlungen zu beteiligen, wogegen uns nur bleibt, das
beste Blut der Besten des eigenen Volkes zu opfern (Heidegger 2014c, p. 262 [XV,
17])

Minha tradução:
O judaísmo mundial, estimulado por emigrantes autorizados a deixar a Alemanha,
é penetrante e impalpável, usando todos os seus poderes para evitar participar de
ações militares, enquanto tudo o que nos resta é sacrificar o melhor sangue do
melhor de nosso próprio povo.

Peter Trawny (2014, p. 11) argumenta em seu livro Heidegger und der Mythos der jüdischen
Weltverschwörung (Heidegger e o Mito da Conspiração Mundial Judaica) que tais citações são
características do antissemitismo onto-histórico de Heidegger (seins-geschichtlicher
Antisemitismus). Surge a questão de como interpretar essas passagens com a ajuda dos
elementos de antissemitismo de Adorno. Heidegger aconselhou que os Cadernos Negros
deveriam ser publicados como parte final de suas Obras Coletivas (ver: Heidegger 2014c, p.
279), o que pode ser um indício de que eles têm um papel especial, constituem seu legado
(Trawny, 2014, p. 12), ou o fundamento de seu pensamento.
Richard Wolin (2014), que havia expressado ceticismo sobre o livro de Emmanuel Faye
(2009) Heidegger: A Introdução do Nazismo na Filosofia (ver Cohen, 2009), argumentou após a
publicação dos Cadernos Negros: “O partidarismo filosófico de Heidegger pelo nacional-
socialismo não foi uma série de erros contingentes ou erros de julgamento estranhos. Foi
uma traição à filosofia, ao raciocínio e ao pensamento, no sentido mais profundo. [...] Dadas
as inquietantes revelações contidas nos Cadernos Negros, qualquer discussão sobre o legado de
Heidegger que subestime ou diminua a extensão de sua loucura política é culpada, por
extensão, de perpetuar a traição filosófica iniciada pelo próprio Mestre".
Tom Rockmore, autor de Sobre o nazismo e a filosofia de Heidegger (Rockmore, 1997), elogia o
livro de Trawny, mas discorda um pouco de suas conclusões: Trawny “acha que Heidegger
tinha uma espécie de antissemitismo privado, que só foi revelado na segunda metade da
década de 1930 em seu seinsgeschichtlicher Antisemitismus [antissemitismo onto-histórico],
enquanto eu acho que o antissemitismo estava lá o tempo todo e era visível para quem
quisesse olhar” (Rockmore, 2014).
Quero agora relacionar as citações dos Cadernos Negros aos elementos de antissemitismo
de Adorno.
Na citação a), Heidegger vê os judeus como um grupo poderoso, o que tem relação com o
mito de uma conspiração mundial judaica (4). Ele ainda argumenta que esse grupo tem uma
qualidade específica, a saber, uma racionalidade calculista que se baseia na metafísica
ocidental. Ele não argumenta que essa é uma característica biológica, mas socionatural, ou
seja, ele constrói “os judeus” como um coletivo homogêneo (7), atribui a eles e os culpa por
qualidades do capitalismo (3). A identificação dos judeus com a racionalidade instrumental
tem uma dupla característica: a racionalidade instrumental, por um lado, é uma expressão do
impulso para acumular capital e poder e, por outro, o princípio operacional da tecnologia
moderna. Heidegger culpa os judeus tanto pela lógica do capitalismo quanto pelo
industrialismo (2, 7).
A citação b) implica que Heidegger culpa os judeus pelo que ele chama de “desracialização”
(Entrassung). Ele os acusa aqui de impurificar o sangue que considera puro e original. No
entanto, eles se oporiam à aplicação do princípio da raça a si mesmos. O que ele quer dizer
quando fala de tal aplicação? Os nazistas introduziram em 1935 as Leis Raciais de Nuremberg
que classificavam pessoas com três ou quatro avós judeus como “judeus”, aqueles com um
ou dois avós judeus como “mestiços” (Mischling) e aqueles sem avós judeus como “arianos”.
O prefácio da lei dizia que ela é “permeada pela percepção de que a pureza do sangue alemão
é a pré-condição para a sobrevivência do povo alemão” e “animada pela vontade inabalável
de proteger a nação alemã para todo o futuro”.4 Proibiu sexo e casamento entre o que
considerava arianos e não-arianos. Heidegger nesta passagem parece aludir a essas Leis e
culpar os judeus por sua própria perseguição pelos nazistas. Heidegger aqui faz um
argumento racista (1) que constrói os judeus como um coletivo geral (7) a quem ele atribuiu
características biológicas (1). Ele culpa as vítimas por sua opressão (6). Jürgen Habermas
(1983, p. 184) enfatiza em um contexto diferente que Heidegger depois de 1945 não
condenou publicamente os nazistas e seu papel no regime nazista, mas culpou as vítimas. O
princípio da raça seria a consequência das maquinações, conceito pelo qual Heidegger
significa tecnologia moderna. (Trawny 2014, p. 22, p. 34) Assim, Heidegger culpa os judeus
tanto pelas características negativas da tecnologia moderna quanto por sua opressão racista.

4 Traduzido do alemão: “Durchdrungen von der Erkenntnis, daß die Reinheit des deut-schen Blutes die
Voraussetzung für den Fortbestand des Deutschen Volkes ist, und beseelt von dem unbeugsamen Willen, die
Deutsche Nation für alle Zukunft zu sichern, hat der Reichstag einstimmig das folgende Gesetz beschlossen,
das hiermit verkündet wird”, http://www.documentarchiv.de/ns/nbgesetze01.html, acessado em 23 de
fevereiro de 2015.
Heidegger (1989, 1999) também usa a noção de maquinação (Machenschaften) em seu Beiträge
zur Philosophie (Contribuições à Filosofia, 1936-1938), onde diz que o “domínio da razão
como equalização de todas as pessoas é meramente a consequência do cristianismo”. e o
cristianismo é fundamentalmente de origem judaica”.5 (Heidegger, 1999, p. 38)
Na citação c), Heidegger usa o termo “judaísmo mundial” (Weltjudentum), que constrói os
judeus como um coletivo homogêneo (7) que governa o mundo (6). Não seria uma
característica biológica, mas social e política dos judeus que eles são “desenraizados”, o que
significa uma oposição ao que ele vê como o enraizamento do alemão no solo, na nação e
na natureza. Heidegger dá a entender que os judeus são cosmopolitas e internacionais, o que
ele vê como características negativas da modernidade que destroem uma organicidade
original que ele identifica com os alemães. Heidegger aqui identifica os judeus com a
modernidade (6, 3) e anseia por uma sociedade pré-moderna que ele associa aos alemães. Ele
também faz alusão a tradições, origens místicas e mágicas que ele considera perdidas por
causa da influência da modernidade que ele vê como sendo de caráter judaico (5).
Na citação d), Heidegger culpa os judeus indiretamente pela guerra contra a Alemanha,
insinuando que eles têm influência sobre as forças aliadas (2, 7). Ele de maneira racista (1)
argumenta que os alemães são vítimas que têm que se defender (6: os criminosos reais são
interpretados como vítimas e as vítimas responsabilizadas como culpadas). A formulação “o
melhor sangue dos melhores” de forma racista pressupõe que os alemães são uma raça
biologicamente superior (1).
Heidegger, nessas citações, emprega seis dos sete elementos do antissemitismo que Adorno
identificou: ele vê judeus e alemães formando duas raças (1), identifica judeus com
modernidade, capitalismo e tecnologia moderna (2, 3), faz uso de lógica mística e naturalista,
argumentando que os judeus são desenraizados e ameaçam o enraizamento dos alemães (5),
e descreve os judeus como um poderoso “judaísmo mundial” que governa o mundo (6), bem
como um coletivo homogêneo ao qual ele atribui aspectos biológicos negativos,
características sociais e políticas (7). A única característica do antissemitismo que não está
presente é o elemento religioso (4), o que pode ser explicado pela circunstância de que a
religião cristã não desempenha um papel na ideologia nazista.
Todas as quatro citações foram escritas entre 1939 e 1941, o que mostra que Heidegger,
depois de ter deixado o cargo de vice-chanceler da Universidade de Freiburg, em 1934,
permaneceu um nazista e antissemita comprometido pelo menos até 1941. Os Cadernos Negros
desconstroem o mito de que Heidegger deixou o cargo de vice-chanceler porque se opunha
à ideologia nazista. Peter Trawny (2014, p. 28) argumenta que Heidegger ficou desapontado
com o modernismo nazista e seu uso da tecnologia moderna e que ele tinha uma versão
específica da ideologia nazista em mente que ele denominou “Nacional Socialismo
espiritual”.6 (Heidegger 2014a, p. 135 [Überlegungen und Winke, III, §72]) Esta versão da
ideologia nazista é, como mostram as citações, definitivamente baseada no antissemitismo.
Em notas feitas nos Cadernos Negros no outono de 1932, Heidegger via o nazismo como

5 Em alemão: “sofern aber die Vernunftherrschaft als Gleichsetzung aller nur die Folge des Christentums ist
und dieses im Grunde jüdischen Ursprungs” (Heidegger, 1989, p. 54).
6 Em alemão: “Geistiger Nationalsozialismus”.
bárbaro e identificava essa barbárie como sua grandeza: “O nacional-socialismo é um
princípio bárbaro. Essa é sua essência e sua possível grandeza”.7
Hermann, filho de Martin Heidegger, responsável pela publicação das obras completas de
seu pai, argumenta que os comentários sobre os judeus estão presentes apenas em “um total
de três das 1250 páginas do Caderno Negro”.8 Ele fala sobre a acusação de que seu pai e sua
filosofia eram antissemitas: “É verdade que ele criticava os judeus do mundo, mas
definitivamente não era antissemita”.9 O termo Judaísmo Mundial (Weltjudentum) é em si
problemático porque constrói os judeus como um poder coletivo mundial homogêneo. É
um argumento perigoso argumentar que Heidegger não era nazista e antissemita porque seus
argumentos antissemitas se limitam a algumas citações. A crítica da modernidade e da
tecnologia moderna é crucial para a obra de Heidegger, mas sua crítica permanece na maioria
de suas obras fenomenológicas sem analisar as causas reais. As citações discutidas são tão
importantes porque mostram que a crítica de Heidegger à modernidade estava em curto-
circuito e de uma maneira típica da ideologia antissemita culpa os judeus por fenômenos que
são característicos e têm suas raízes no capitalismo como um todo. O nacional-socialismo é,
como Moishe Postone (1980, 2003) mostrou, uma crítica em curto-circuito do capitalismo
que não questiona o capitalismo como totalidade, mas inscreve suas características negativas
nos judeus.
As estratégias comumente usadas para defender Heidegger incluem tentativas de argumentar
que os “não iniciados” não entendem a plena significância e o significado de suas obras,10
que as posições políticas e filosóficas de Heidegger não se sobrepõem (Heidegger o homem
e Heidegger o pensador), que Heidegger apenas aderiu à ideologia nazista durante um curto
período em que foi reitor da Universidade de Freiburg em 1933-1934, defendeu os judeus e
se opôs conceitualmente ao nazismo (para uma visão geral de tais argumentos, ver:
Rockmore e Margolis 1989, X; Rockmore, 1997, pp. 3-7). Alguns dos livros sobre o tema de
Heidegger e o nazismo, como os de Farías (1989), Rockmore (1997) e Faye (2009),

7 Em alemão: “Der Nationalsozialismus ist ein barbarisches Prinzip. Das ist sein Wesentliches und seine
mögliche Größe” (Heidegger, 2014a, p. 194 [Überlegungen und Winke, III, §206]).
8 Tradução do alemão. Entrevista publicada em: Junge Freiheit, ed. 40 de 2014, 26 de setembro de 2014.
9 Em alemão: “Es stimmt, daß er kritisch gegenüber dem Weltjudentum war, aber er war auf keinen Fall ein

Antisemit”. Entrevista publicada em Junge Freiheit, ed. 40 de 2014, 26 de setembro de 2014.


10 Rockmore (1997, p. 5) argumenta que essa estratégia toma a forma que alguns heideggerianos dizem que

aqueles que não são “capazes de citar capítulos e versos de um manuscrito na bucha” e não são “capazes,
imediatamente, de acrescentar material inédito em apoio a um argumento” não pode compreender Heidegger.
Tais argumentos são típicos do culto sectário de Heidegger. “Os heideggerianos tendem a aproveitar as
dificuldades do pensamento de Heidegger para fazer de sua interpretação um processo quase místico, hierático.
O resultado, imitando a própria estratégia de Heidegger, é proteger o pensamento de Heidegger de qualquer
tentativa de crítica. [...] O fato óbvio de que os especialistas de Heidegger inevitavelmente têm um pesado
investimento profissional na importância, até mesmo na correção, de sua posição explica sua relutância
generalizada em questioná-la de qualquer maneira, exceto da maneira mais tímida”. (p. 22) “Uma forma
particularmente intransigente dessa tática consiste na negação de que um estranho entende ou possivelmente
poderia entender a posição heideggeriana. Exemplos incluem a afirmação de De Waehlens de que Löwith, ex-
aluno de Heidegger e mais tarde colega, não era suficientemente versado no pensamento do mestre para criticá-
lo, e a afirmação de Derrida de que Farías, que passou uma dúzia de anos escrevendo um livro sobre o nazismo
de Heidegger, não poderia ter passado mais de uma hora estudando o pensamento de Heidegger. Uma forma
mais geral dessa tática é caracterizar tudo o que se diz sobre o mestre pensador como metafísica na teoria de
que Heidegger de alguma forma foi além dela. Isso equivale a afirmar que, como Ryle costumava dizer, há um
erro de categoria, uma vez que uma afirmação metafísica não pode ser aplicada à visão de Heidegger. A
tendência de limitar a discussão heideggeriana aos estudiosos de Heidegger funciona para preservar a visão
heideggeriana de olhares indiscretos, tornando-a invisível para qualquer um, exceto para o crente ortodoxo”
(pp. 23-24).
desconstruíram esses mitos. Não é improvável que os heideggerianos, mesmo após a
publicação dos Cadernos Negros, apresentem argumentos defensivos semelhantes aos
apresentados anteriormente ou estendam tais linhas de pensamento. Eles poderiam, por
exemplo, argumentar que as passagens antissemitas são limitadas a páginas únicas, que
Heidegger não as publicou durante sua vida e que suas opiniões, portanto, permaneceram
privadas. Tais argumentos são agora ainda mais difíceis de fazer do que antes da publicação
dos Cadernos Negros. É fato que o próprio Heidegger instruiu que os Cadernos Negros fossem
publicados como parte dos volumes finais de suas obras coletadas (Trawny, 2014; Heidegger,
2014c, p. 279). Dado que suas notas filosóficas são agora de conhecimento público e
Heidegger considerou sua publicação importante, é crucial se envolver com elas e discutir
seus impactos e implicações.
É improvável que o antissemitismo de Heidegger tenha se restringido à época do nacional-
socialismo (1933-1945). Em uma carta para sua esposa, Heidegger em 1920 escreveu que as
aldeias estavam “inundadas de judeus e bandidos”.11 (Heidegger, 2007, p. 112) O fato de
Heidegger tratar seus alunos judeus e sua amante judia Hannah Arendt com respeito, um
argumento que aqueles que querem defender Heidegger tendem a usar, não se opõe ao seu
antissemitismo; antes, pode ser característico da aceitação antissemita do que Hannah Arendt
(1958, p. 56) em sua caracterização da ideologia antissemita chamou de “judeus
excepcionais”.12 Victor Farías (1989, p. 4) argumenta que quando “Heidegger decidiu filiar-
se ao Partido Nacional-Socialista, ele estava seguindo um caminho já preparado” e que o
pensamento de Heidegger era “alimentado por tradições de autoritarismo, antissemitismo e
ultranacionalismo que santificou a pátria em seu sentido mais local”.
Theodor W. Adorno argumenta que a ideologia nazista também é imanente em Sein und Zeit
[Ser e Tempo], publicado em 1926 (Heidegger, 1926). Adorno escreve em sua análise que a
“metafísica da morte” de Heidegger cultiva “as possibilidades heroicas da morte” e é “uma
propaganda da morte” (Adorno 1965/2001, p. 131; ver também Löwith, 1946). A
combinação de filosofia e poesia de Heidegger é para Adorno (1960/1961) um “kitsch
provincial” (p. 229) que usa “linguagem arcaica” (p. 230) [tradução do alemão]. Para Adorno,
o fetichismo da origem de Heidegger é uma forma de misticismo (Adorno, 1960/1961, pp.
32-34). O “culto da origem e da renovação”, não seria “por acaso e nem externamente
simpatiza com a barbárie que tomou forma em sua história política [de Heidegger]”13 para
que os fundamentos da “ideologia nacional-socialista” fossem contidos em Sein und Zeit [Ser
e Tempo] (p. 241). “A concordância de Heidegger com o fascismo e a ideologia da revolução
conservadora, a versão mais elegante da ideologia fascista, não era uma falta de caráter do
filósofo, mas estava no conteúdo de sua doutrina”.14 (p. 287)

11 Em alemão: “überschwemmt von Juden und Schiebern”.


12 “A sociedade, confrontada com a igualdade política, econômica e legal para os judeus, deixou bem claro que
nenhuma de suas classes estava preparada para conceder-lhes igualdade social, e que apenas exceções do povo
judeu seriam recebidas. Os judeus que ouviram o estranho elogio de que eram exceções, judeus excepcionais,
sabiam muito bem que era essa mesma ambiguidade – que eram judeus e, no entanto, presumivelmente não
como judeus – que lhes abriu as portas da sociedade” (Arendt, 1958, p. 56).
13 Em alemão: “Es kommt indessen bei ihm so zu einem Kult von Ursprung oder Erneuerung, dem die

Sympathie mit der Barbarei, die in seiner politischen Geschichte sich ausgeprägt hat, nicht zufällig und nicht
äußerlich ist”. (p. 240)
14 Em alemão: “Heideggers Einverständnis mit dem Faschismus und der Ideologie der konservativen

Revolution, der eleganteren Version der faschistischen Ideologie, war keine Gesinnungslosigkeit des
Philosophen, sondern lag im Gehalt seiner Doktrin”.
A interpretação de Farías (1989) de Sein und Zeit é que a obra contém “crenças filosóficas que
prenunciam as convicções posteriores de Heidegger” (p. 60) e que há uma “continuidade
interna do pensamento de Heidegger entre 1927 e 1933” (p. 62). Farías (1989, p. 4) destaca
especialmente neste contexto os conceitos de Heidegger de “ser-em-comunidade 'autêntico',
e seus próprios vínculos com o povo, o herói e a luta (§74) – e sua rejeição do formas de vida
social, uma rejeição inspirada nas ideias de Paul Yorck von Wartenburg e Wilhelm Dilthey
(§77)”.
Para a filosofia e o estudo da tecnologia e da mídia, é de particular importância que Heidegger
nos Cadernos Negros culpe os judeus pela razão instrumental da tecnologia moderna.
HEIDEGGER, A MÍDIA E A TECNOLOGIA
Peter Trawny (2014, p. 43) aponta a importância do papel da tecnologia no pensamento
antissemita de Heidegger: “Quando Heidegger considera a ‘habilidade de cálculo’ como judia
e tipicamente moderna, então tudo isso é totalmente declarado como um epifenômeno da
tecnologia moderna” (tradução do alemão). “Mas o caráter do técnico, aquilo que é como
'maquinações', era o caráter 'sem fundamento' (das Bodenlose) e 'sem-mundo' (das Weltlose) que
o filósofo atribuiu aos judeus” (Trawny, 2014, p. 55; tradução do alemão). Trawny (2014, p.
79) argumenta que Heidegger via a tecnologia moderna como inimiga dos alemães e,
portanto, se perguntava: “O triunfo da tecnologia não foi afinal a vitória do ‘judaísmo
mundial’?” (tradução do alemão).
A oposição conservadora tecnofóbica de Heidegger à tecnologia moderna já estava presente
em Sein und Zeit, onde ele introduziu o conceito de das Man (o eles) e das Zeug (o equipamento).
“Chamaremos os seres encontrados no cuidado de coisas úteis [das Zeug]. Em nossas relações
encontramos utensílios para escrever, utensílios para costurar, utensílios para trabalhar,
dirigir, medir. Devemos elucidar o tipo de ser das coisas úteis. Isso pode ser feito seguindo
a diretriz da definição anterior do que torna uma coisa útil uma coisa útil: sua utilidade
[Zeughaftigkeit]”.15 (Heidegger, 2010, p. 68)
A tecnologia para Heidegger envolve uma relação meio-fim: “Uma coisa útil é essencialmente
‘algo a fim de [...]’. Os diferentes tipos de “a fim de”, como facilidade de manutenção,
utilidade, usabilidade, praticidade, constituem uma totalidade de coisas úteis. A estrutura de
‘a fim de’ [‘um-zu’] contém uma referência [Verweisung] de algo para algo”16 (Heidegger 2010,
p. 68). “Chamaremos o tipo de ser da coisa útil em que ela se revela por si mesma de
praticidade [Zuhandenheit]”.17 (Heidegger, 2010, p. 69)
Heidegger aponta para o fato de que, com a modernização da sociedade, o uso das
tecnologias deixou de se limitar à economia doméstica, mas se estendeu à criação de uma
infraestrutura pública: “O trabalho realizado em cada caso não está apenas à mão no mundo
doméstico da oficina, mas sim no mundo público. Junto com o mundo público, o mundo

15 Em alemão: “Wir nennen das im Besorgen begegnende Seiende das Zeug. Im Umgang sind vorfindlich
Schreibzeug, Nähzeug, Werk-, Fahr-, Meßzeug. Die Seinsart von Zeug ist her-auszustellen. Das geschieht am
Leitfaden der vorherigen Umgrenzung dessen, was ein Zeug zu Zeug macht, der Zeughaftigkeit” (Heidegger,
1926, p. 92).
16 Em alemão: “Zeug ist wesenhaft »etwas, um zu… «. Die verschiedenen Weisen des »Um-zu« wie Dienlichkeit,

Beiträglichkeit, Verwendbarkeit, Handlichkeit konstituieren eine Zeugganzheit. In der Struktur »Um-zu« liegt
eine Verweisung von etwas auf etwas” (Heidegger, 1926, p. 92).
17 “Die Seinsart von Zeug, in der es sich von ihm selbst her offenbart, nennen wir die Zuhandenheit”

(Heidegger, 1926, p. 93).


circundante da natureza é descoberto e acessível a todos. Ao cuidar das coisas, a natureza é
descoberta como tendo alguma direção definida em caminhos, ruas, pontes e edifícios”.18
(Heidegger, 2010, p. 70)
No entanto, há problemas que a tecnologia enfrenta que Heidegger chama de das Unzuhandene
(o inútil) (Heidegger, 1926, pp. 98-99; Heidegger, 2010, pp. 72-73): coisas que são
inutilizáveis, ausentes, obstáculos, inadequadas, danificadas. O inútil significa
“conspicuidade, intrusão e obstinação”.19 (Heidegger, 2010, p. 73) “Coisas inúteis são
perturbadoras e evidenciam a obstinação do que inicialmente deve ser cuidado antes de
qualquer outra coisa”.20 (Heidegger, 2010, p. 73)
Heidegger introduz esses problemas e perturbações causadas pela tecnologia no §16, que
logo em seguida é seguido por uma seção que discute a ontologia racional do mundo de
Descartes que Heidegger vê em oposição à sua fenomenologia (§§ 19-21). No capítulo
seguinte (capítulo 4), Heidegger introduz o conceito de das Man (os eles), uma forma de ser
sem mundo que, dados os exemplos usados, representa a modernidade e, portanto, também
a tecnologia moderna e a mídia moderna.
Ao apresentar os eles, Heidegger se refere explicitamente (além, por exemplo, do transporte
público) ao jornal e ao entretenimento e argumenta que esses meios trazem massificação,
anonimato, manipulação e ditadura que alienam os humanos uns dos outros, ou seja, da
sociabilidade:
“Mostramos anteriormente como o 'mundo circundante' público está sempre à mão e
cuidado no mundo circundante mais próximo de nós. Na utilização do transporte público,
no uso de serviços de informação como o jornal, cada um é igual ao outro. Esse ser-um-
com-o-outro dissolve completamente o próprio Dasein no tipo de ser dos ‘outros’ de tal
forma que os outros, enquanto distinguíveis e explícitos, desaparecem cada vez mais. Nessa
inconspicuidade e indeterminação, o “eles” desdobra sua verdadeira ditadura. Nós nos
divertimos e nos divertimos do jeito que eles se divertem. Lemos, vemos e julgamos a
literatura e a arte da maneira como eles veem e julgam. Mas também nos retiramos da “grande
massa” do jeito que eles se retiram, achamos “chocante” o que eles acham chocante. O eles,
que não é nada definido e que todos são, embora não como uma soma, prescreve o tipo de
ser da cotidianidade”.21 (Heidegger, 2010, p. 123)

18 Em alemão: “Das je besorgte Werk ist nicht nur in der häuslichen Welt der Werkstatt etwa zuhanden, sondern
in der öffentlichen Welt. Mit dieser ist die Umweltnatur entdeckt und jedem zugänglich. In den Wegen, Straßen,
Brücken, Gebäuden ist durch das Besorgen die Natur in bestimmter Richtung entdeckt” (Heidegger, 1926, p.
66).
19 Em alemão: “Auffälligkeit, Aufdringlichkeit und Aufsässigkeit” (Heidegger, 1926, p. 99).
20 Em alemão: “Dieses Unzuhandene stört und macht die Aufsässigkeit des zunächst und zuvor zu Besorgenden

sichtbar” (Heidegger, 1926, p. 99).


21 Tradução do alemão: “Früher wurde gezeigt, wie je schon in der nächsten Umwelt die öffentliche »Umwelt«

zuhanden und mitbesorgt ist. In der Benutzung öffentlicher Verkehrsmittel, in der Verwendung des
Nachrichtenwesens (Zeitung) ist jeder Andere wie der Andere. Dieses Miteinandersein löst das eigene Dasein
völlig in die Seinsart »der Anderen« auf, so zwar, daß die Anderen in ihrer Unterschiedlichkeit und
Ausdrücklichkeit noch mehr verschwinden. In dieser Unauffälligkeit und Nichtfeststellbarkeit entfaltet das Man
seine eigentliche Diktatur. Wir genießen und vergnügen uns, wie man genießt; wir lesen, sehen und urteilen
über Literatur und Kunst, wie man sieht und urteilt; wir ziehen uns aber auch vom »großen Haufen« zurück,
wie man sich zurückzieht; wir finden »empörend«, was man empörend findet. Das Man, das kein bestimmtes
ist und das Alle, obzwar nicht als Summe, sind, schreibt die Seinsart der Alltäglichkeit vor” (Heidegger, 1926,
p. 169).
Aqui fica evidente que Heidegger faz uma crítica conservadora que vê a tecnologia moderna
como tal problema. O problema é formulado abstratamente como das Man (o eles), mas suas
causas e contexto permanecem obscuros na fenomenologia que Heidegger formulou em Sein
und Zeit. Para Heidegger certamente não é o uso e o design capitalistas e a modelagem
burocrática da tecnologia que formam esse contexto, porque classe, Estado e capitalismo são
categorias ausentes da análise. Heidegger não defende um redesenho da tecnologia moderna
e da sociedade moderna, mas sua abolição. Tom Rockmore (1997, p. 215) argumenta que o
antitecnologismo conservador de Heidegger foi influenciado pelas obras de Friedrich
Nietzsche, Oswald Spengler e Ernst Jünger. Se pudéssemos colocar “a visão tecnológica de
Heidegger [...] em prática, a vida moderna como a conhecemos teria que ser abandonada”
(Rockmore, 1997, p. 233).
David J. Gunkel e Taylor (2014) argumentam que o “ruído incessante do bate-papo público”
é uma forma de das Man (p. 41) e que esse conceito é de especial relevância no tempo das
mídias sociais: “O conceito de Heidegger de conversa fiada é particularmente presciente,
dado o advento de aplicativos de difusão restrita como Facebook e Twitter” (p. 39). Ambas
as plataformas são certamente predominantemente plataformas de informação e
comunicação mundanas do dia-a-dia, muito das quais se trata de publicidade, entretenimento,
autoapresentação e gestão de reputação transmitida em alta velocidade, o que reflete a lógica
instrumental do capitalismo, neoliberalismo e individualismo. Gunkel e Taylor não discutem
com mais detalhes se esse recurso é, a seu ver, imanente nas mídias sociais como tal ou se
não tem a ver com o design capitalista e o uso dessas plataformas que refletem os próprios
padrões do capitalismo. A segunda suposição também implica o potencial para o uso e
redesenho não-capitalista das mídias sociais que estão focados na ação comunicativa, política
lenta, discussão política e organização política.
Para Heidegger (1929), toda metafísica esquece o ser (Seinsvergessenheit), equipara o ser (Sein)
aos seres (Seiendes), esquece e não se pergunta sobre a verdade do ser. No pós-escrito de sua
palestra professoral inaugural de 1929, Was ist Metaphysik? (O que é Metafísica?), na
Universidade de Freiburg, Heidegger argumenta que a ciência moderna é a forma dominante
de metafísica na sociedade moderna, “um meio de reificação calculista do ser”22 (Heidegger,
1929, p. 43), o que mostra a conexão inerente que Heidegger viu entre metafísica, ciência
moderna e tecnologia. Ele aqui novamente traz à tona a noção de razão calculista.
Em 1935/1936, Heidegger realizou uma palestra intitulada Questões Básicas da Metafísica
que foi publicada sob o nome O que é uma coisa? (Heidegger, 1935/1936): ele caracteriza a
ciência moderna como “uma ciência factual, experimental, mensuradora” cuja “característica
fundamental é a maneira de trabalhar com as coisas e a projeção metafísica da coisidade das
coisas” (p. 68). Assim, para Heidegger, a matemática está no cerne da ciência e tecnologia
modernas e sua principal característica é a coisificação. Ele confirma nesta palestra que vê a
matemática, tecnologia, ciência e metafísica modernas como inerentemente conectadas: “[A]
ciência natural moderna, a matemática moderna e a metafísica moderna surgiram da mesma
raiz da matemática no sentido mais amplo”. (p. 97)
A pergunta O que é uma coisa? traz à tona a questão da reificação/coisificação. É evidente
em Sein und Zeit que Heidegger (1926) deve ter lido Lukács (1923) quando pergunta: “Mas o
que significa reificar? De onde surge? Por que ser “inicialmente” “concebido” em termos do
que está objetivamente presente, e não em termos de coisas à mão que, afinal, estão ainda

22 Tradução do alemão: “Weise der rechnenden Vergegenständlichung des Seienden”.


mais próximas de nós? Por que essa reificação vem a dominar de novo e de novo? Como o
ser da “consciência” é positivamente estruturado de modo que a reificação permaneça
inadequada a ele? A ‘distinção’ entre ‘consciência’ e ‘coisa’ é suficiente para um
desdobramento primordial da problemática ontológica?”.23 (Heidegger, 2010, p. 414) No
entanto, como mostram os Cadernos Negros, os contextos da coisa e do processo de
transformação do social em coisas (Verdinglichung, reificação, coisificação) são muito
diferentes nas obras de Lukács e Heidegger. Como em Sein und Zeit, também as conferências
de 1935/1936 conectam a crítica da razão calculista com uma crítica de Descartes. Heidegger
(1935/1936) deixa claro que a pergunta “O que é uma coisa?” é para ele a questão relativa à
tecnologia: “nesta física [moderna] estão fundadas todas as nossas gigantescas centrais
elétricas, nossos aviões, rádio e televisão, toda a tecnologia que alterou a terra e o homem
com ela mais do que ele suspeita. Estas são realidades, não pontos de vista que alguns
investigadores “distantes da vida” defendem. Alguém quer a ciência ainda “mais perto da
vida”? Acho que já está tão perto que nos sufoca. Em vez disso, precisamos da distância
certa da vida para alcançar uma perspectiva na qual medimos o que está acontecendo
conosco, seres humanos. Ninguém sabe disso hoje” (pp. 13-14). A saudade da origem, da
pré-modernidade e do afastamento da tecnologia fica evidente aqui e é outra dimensão que
distingue Heidegger de Lukács.
Em um trecho intitulado Tecnologia e Desenraizamento (Technik und Entwurzelung)
Heidegger (2014a, p. 364 [Überlegungen, V, §87]) expressa nos Cadernos Negros sua oposição à
tecnologia e argumenta que o “rádio e todo tipo de organização […] destroem”24 a aldeia.
Ele vê a tecnologia e a organização como “o oposto de tudo o que é ‘orgânico’”.25 (ibid.) A
discussão sobre tecnologia nos Cadernos Negros mostra que Heidegger considerava os
nazistas muito modernos na medida em que introduziram tecnologias modernas como o
rádio que usavam para fins ideológicos. Heidegger parece ter uma versão pré-moderna do
nacional-socialismo em mente. Ele não deixa dúvidas de que não apenas se opõe ao rádio de
mesa nazista (Volksempfänger) que permitia ao público ouvir apenas uma estação controlada
pela propaganda nazista, mas todas as formas de rádio e tecnologia de comunicação
moderna.
Heidegger, portanto, escreve: “A partir deste contexto essencial segue que a 'tecnologia'
nunca pode ser dominada pela visão de mundo política völkisch [a ideologia nazista]. O que
já é essencialmente escravo, nunca pode se tornar senhor”.26 (Heidegger 2014a, p. 472
[Ueberlegungen, VI, p. 87]) Ele fala do nacional-socialismo influenciado pelo jornalismo e pela

23 “Allein was bedeutet Verdinglichung? Woraus entspringt sie? Warum wird das Sein gerade »zunächst« aus
dem Vorhandenen »begriffen« und nicht aus dem Zuhandenen, das doch noch näher liegt? Warum kommt
diese Verdinglichung immer wieder zur Herrschaft? Wie ist das Sein des »Bewußtseins« positiv strukturiert, so
daß Verdinglichung ihm unangemessen bleibt? Genügt überhaupt der »Unterschied« von »Bewußtsein« und
»Ding« für eine ursprüngliche Aufrollung der ontologischen Problematik?” (Heidegger, 1926, p. 576).
24 Tradução do alemão: “Während Radio und allerlei Organisation das innere Wachsen und d.h. ständige

Zurückwachsen in die Überlieferung im Dorf und damit dieses selbst zerstören, errichtet man Professuren für
‘Soziologie’ des Bauerntums und schreibt hau-fenweise Bücher über das Volkstum”.
25 Tradução do alemão: “Die Technik und ihre Zwillingsschwester – die ‘Organisation’ – beide das Gegenläufige

zu allem ‘Organischen’ – treiben ihrem Wesen nach auf ihr eigenes Ende, die Aushöhlung durch sich selbst,
zu”.
26 Tradução do alemão: “Aus diesem Wesenszusammenhang ergibt sich, daß die »Technik« niemals durch die

völkisch-politische Weltanschauung gemeistert werden kann. Was im Wesen schon Knecht ist, kann nie Herr
werden”.
cultura como “nacional-socialismo vulgar”27 (Heidegger 2014a, p. 142 [Überlegungen und
Winke, III, p. 81]), o que deixa mais uma vez claro que ele esperava a criação de um “nacional-
socialismo espiritual”28 (Heidegger 2014a, p. 135 [Überlegungen und Winke, III, §72]) sem
tecnologia moderna.
As obras mais importantes de Heidegger sobre tecnologia são os dois ensaios A Questão da
Tecnologia e A Virada, que remontam a uma série de palestras que ele deu nos anos de 1949,
1950 e 1955 em Bremen e Munique. Eles foram publicados juntos como o livro Die Technik
und die Kehre (Heidegger, 1962) em alemão e A Questão da Tecnologia e Outros Ensaios (Heidegger,
1977) [The Question Concerning Technology and Other Essays no original em inglês].
Ao começar a falar sobre tecnologia em A Questão da Tecnologia, Heidegger (1962, p. 6) utiliza
o termo Zeug, que pode ser visto como uma referência a Sein und Zeit. Para Heidegger, a
tecnologia em essência é “uma forma de revelar” (Heidegger, 1977, p. 12). Ela “tem a ver
com o presenciar [Anwesen] daquilo que em um determinado momento vem à tona ao gerar.
A geração traz aqui do ocultamento para o desvelamento” (p. 11).
Heidegger (1977, p. 6) argumenta que Aristóteles identificou quatro causas importantes
(causa materialis, causa formalis, causa finalis, causa efficiens), mas a tecnologia moderna é
impulsionada pela causa efficiens que se trata apenas de “meios para obter resultados, efeitos”.
(p. 7). A tecnologia moderna seria uma forma específica de revelação, “um desafiar
[Herausfordern]” (p. 14). Tal desafio desafiaria, ou seja, dominaria a natureza e os humanos.
Seria, portanto, “a monstruosidade” [das Ungeheure] (p. 16), o “perigo” (p. 26) e teria “o caráter
de uma configuração” (p. 16). Heidegger chama a tecnologia moderna de das Gestell (o
Enquadramento), a que ele se refere como “aquela reivindicação desafiadora que reúne o
homem à ordem” (p. 19). O Gestell é uma forma instrumental de revelação. “Enquadramento
significa a reunião daquela colocação sobre a qual se põe sobre o homem, ou seja, o desafia
a revelar o real, no modo de ordenar, como reserva permanente” (p. 20). A tecnologia
moderna, como o Gestell, estaria associada às ciências exatas, matemática e física moderna (p.
21) que possuem uma visão de mundo instrumentalista e acreditam na calculabilidade do
mundo.
O Gestell resultaria na alienação dos humanos; o homem teria se tornado “a ordem da
reserva permanente” [Besteller des Bestandes] (p. 27). O Gestell põe em perigo “o homem em
sua relação consigo mesmo e com tudo o que é” (p. 27). Heidegger toma os jornais e as
revistas ilustradas como um dos exemplos para o Gestell e diz que eles “colocam a opinião
pública a engolir o que é impresso, de modo que uma configuração definida de opinião se
torna disponível sob demanda” (p. 18).
O poder do capitalismo e do Estado moderno, ou o que Habermas (1984, 1987) denomina
os sistemas da sociedade moderna que colonizam o mundo da vida, estão ausentes tanto em
Ser e Tempo quanto em A Questão da Tecnologia, o que é idiossincrático dado que a sociedade
moderna se baseia na acumulação de capital e poder burocrático, duas estruturas que
enquadram o desenvolvimento e o uso da tecnologia moderna. Assim, um grande problema
da abordagem de Heidegger é que ela não é uma economia política, mas apenas uma
fenomenologia da tecnologia. Ele descreve atributos da tecnologia moderna, como lógica
instrumental, cálculo, física, ciências exatas, matemática, em ambos os livros, mas deixa em

27 Tradução do alemão: “Vulgärnationalsozialismus”.


28 Tradução do alemão: “Geistiger Nationalsozialismus”.
aberto a questão: qual é o contexto estrutural da tecnologia moderna? A fenomenologia de
Heidegger em ambos os livros não responde à questão de quais são as causas dos problemas
que ele verifica. Mas ele deixa claro que o problema não é a tecnologia em si: “O que é
perigoso não é a tecnologia. Não há demonização da tecnologia” (p. 28). O perigo seria o
Gestell (p. 28). O Gestell, porém, não é uma explicação em si, mas um atributo da sociedade
moderna. Heidegger negligencia a análise do capital e do poder estatal, duas características
principais da sociedade moderna. Assim, os dois livros deixam em aberto a questão dos
contextos dos problemas da modernidade.
Os Cadernos Negros são, como vimos na seção sobre o antissemitismo de Heidegger, uma obra
em que Heidegger tentou dar uma resposta à questão de quais são os contextos estruturais
da modernidade e da tecnologia moderna. E sua resposta é que a lógica da calculabilidade é
judaica. Heidegger identifica a razão instrumental com os judeus. Assim, para ele, a causa e
o contexto da modernidade e dos problemas da tecnologia moderna – o surgimento da falta
de mundo e da alienação – são vistos nos judeus.
Há uma ligação lógica entre os Cadernos Negros, Ser e Tempo, e A Questão da Tecnologia. O
primeiro fornece o elo perdido e o aterramento para o segundo e o terceiro. Os Cadernos
Negros ajudam a explicar um vazio teórico nos outros dois livros. Das Man (o eles) e das
Gestell (o enquadramento) têm nos Cadernos Negros um fundamento para Heidegger, a saber,
o que ele e outros chamam de “judaísmo mundial”, ou seja, o mito de uma conspiração
mundial judaica.
Somente a publicação completa, sem abreviação e sem censura dos Cadernos Negros que
Heidegger escreveu depois de 1945 e o acesso público ao arquivo de Heidegger podem
mostrar se ele também escreveu notas filosóficas antissemitas após o término da Segunda
Guerra Mundial e na época em que escreveu A Questão da Tecnologia e trabalhos posteriores.29
Heidegger também pensou em A Questão da Tecnologia sobre como a humanidade pode
ser salva da lógica da tecnologia moderna. A tecnologia pôde ver “o possível surgimento do
poder salvador” (p. 32). Heidegger associa tal salvação à “reflexão humana” (p. 33), à arte
como forma alternativa de revelar, “as belas artes” (p. 33), “a poesia” (p. 33), “tudo que é
poético” (p. 33), “a chegada de outro destino” (p. 39), “a verdade” (p. 40), um foco na
linguagem e no pensamento (p. 40), “o relâmpago da verdade do Ser” ( p. 45), “a
introspecção” (p. 47) – o que ele chama de virada (die Kehre). Heidegger finalmente invoca a
noção de pátria de uma maneira mística ao perguntar: “Moraremos como aqueles em casa na
proximidade, de modo que pertenceremos principalmente ao quádruplo de céu e terra,
mortais e divindades?” (p. 49). Esses pensamentos são extremamente abstratos e idealistas.
Heidegger imagina uma nova linguagem e pensamento que está em casa na poesia como
forma de resgate da tecnologia moderna. A única forma de concretude que Heidegger
menciona ao discutir a virada são os poemas de Hölderlin, Goethe e Meister Eckehardt, dos
quais ele cita. Ele alude exclusivamente a poetas alemães não-judeus, o que pode ser uma
indicação de que a virada e o resgate também em A Questão da Tecnologia permaneceram o que
ele nos Cadernos Negros denominou um nacional-socialismo espiritual (ver seção sobre os

29 Ver: http://www.hoheluft-magazin.de/2015/02/heidegger-enthuellung/ (acessado em 1º de março de


2015). Di Cesare, Donatella. Heidegger – “Jews Self-Destructed”. New Black Notebooks Reveal Philosopher’s Shocking
Take on Shoah. Corriere della Sera, 9 de fevereiro de 2015.
http://www.corriere.it/english/15_febbraio_09/heidegger-jews-self-destructed-47cd3930-b03b-11e4-8615-
d0fd07eabd28.shtml (acessado em 1º de março de 2015).
Cadernos Negros). A nova língua que ele imagina é definitivamente de caráter alemão. O
Deutschtümelei (jingoísmo alemão) permaneceu um elemento da filosofia da tecnologia de
Heidegger depois de 1945.
Tom Rockmore (1997, p. 241, pp. 242-243) conclui sua análise da filosofia da tecnologia de
Heidegger apontando o papel da ideologia nazista nela:
A falha de Heidegger em denunciar, ou mesmo em reconhecer, a prática nazista
pode ser interpretada como uma resistência oblíqua às consequências práticas de
seu compromisso teórico. Ele obviamente não estava disposto a reconhecer o
fracasso de sua virada para o nazismo, não por meras razões psicológicas, mas
por bons fundamentos filosóficos; pois sua virada para o nazismo foi
fundamentada em sua própria teoria do Ser, que ele nunca abandonou. Pela
mesma razão, ele também não estava disposto a abandonar o nacional-socialismo,
ou pelo menos uma forma ideal dele, por causa de seu interesse contínuo em
certos pontos onde seu pensamento convergia com o nazismo, incluindo o
surgimento dos alemães como alemães e o confronto com a tecnologia. A
insensibilidade de Heidegger aos efeitos do nazismo na prática é acoplada, então,
a um entusiasmo teórico residual por uma forma de nazismo na teoria. [...] os
defensores de Heidegger sugeriram que Heidegger confrontou o nazismo por
meio de sua teoria da tecnologia, ou mesmo que sua teoria da tecnologia surge de
seu confronto com o nazismo. O estudo dos textos de Heidegger apresenta uma
imagem diferente e mais sombria de Heidegger, um pensador teimosamente
comprometido com o racismo metafísico que compartilhava com o nazismo e
com uma versão revisada do suposto esforço nazista de se opor à tecnologia. A
teoria da tecnologia de Heidegger não é, então, um confronto com o nazismo,
mas um confronto com a tecnologia de uma perspectiva nazista. A teoria da
tecnologia de Heidegger apenas estende, mas não o liberta, de sua preocupação
com o nacional-socialismo.

Rockmore (2009) também argumenta que a filosofia da tecnologia de Heidegger compartilha


“a insistência na reunião autêntica do Volk. Como sua teoria do Ser, a teoria da tecnologia
que deriva da teoria do Ser é intrinsecamente política, onde a política é direcionada para a
autenticidade dos alemães e além dos alemães, para o conhecimento do Ser”. (p. 207)
Heidegger, em uma palestra de 1949 em Bremen que se concentrou no Gestell, o conceito de
tecnologia moderna de Heidegger, argumentou: "A agricultura é hoje uma indústria alimentar
motorizada (motorisierte), em essência o mesmo que a fabricação de cadáveres nas câmaras de
gás e campos de extermínio, o mesmo que o bloqueio e matança de fome do campo, o
mesmo que a produção das bombas de hidrogênio”.30 (citado em: Farías, 1989, p. 287) Essa
palestra foi um dos eventos que prepararam a publicação de A Questão da Tecnologia. No texto
publicado, a citação foi resumida: “A agricultura é agora a indústria mecanizada de alimentos”
(Heidegger, 1977, p. 15).
Mahon O'Brien (2010) interpreta essa passagem de uma forma que tenta transformar
Heidegger em um analista crítico do nazismo, argumentando que ele não compara
tecnologias agrícolas a câmaras de gás porque a formulação “em essência” implicaria um
nível mais fundacional de análise:
Heidegger acredita que a indústria alimentícia motorizada, o Holocausto, a divisão
do átomo, as bombas nucleares, têm como característica comum um pano de

30Original em alemão: “Ackerbau ist jetzt motorisierte Ernährungsindustrie, im Wesen das Selbe wie die
Fabrikation von Leichen in Gaskammern und Vernichtungslagern, das Selbe wie die Blockade und
Aushungerung von Ländern, das Selbe wie die Fabrikation von Wasserstoffbomben” (Heidegger, 1994, p. 27).
fundo tecnológico. Ou seja, independentemente do status moral do que acontece
ou é feito em cada um, eles envolvem uma forma tecnológica de revelar o mundo,
ou pessoas ou energias ou animais. Isso não quer dizer que Heidegger esteja
igualando moralmente o consumo de animais com genocídio. O que ele está
dizendo, eu diria, é que a essência da tecnologia, Gestell, prevalece como o que é
comum em sua abordagem de situações que nunca teríamos concebido dessa
maneira antes. Indicam um modo de revelar o mundo ou pessoas ou animais até
então inimagináveis. O fato de podermos “revelar” um povo, neste caso “Os
judeus”, de tal forma, pode ser moralmente mais repugnante do que qualquer um
dos outros exemplos mencionados. Mas também há algo terrivelmente sinistro
em procurar soluções para problemas militares através da liberação do poder
armazenado e aproveitado da natureza e, assim, erradicar cidades inteiras. A
própria produção em massa de carne representa uma mudança na forma como
vemos os animais e seus habitats. A questão é que todos eles têm em seu cerne
uma maneira de revelar o mundo para o qual Heidegger está tentando chamar a
atenção. Não é um julgamento moral no sentido de que não há diferenças
qualitativas. Ele está chamando a atenção para o fato de que cada um deles
envolve uma maneira muito específica e perturbadora de revelar. (O'Brien, 2010,
p. 13)

Gunkel e Taylor (2014, ix) fazem um argumento defensivo comparável:


“É extremamente importante notar aqui que Heidegger não está dizendo que a
mecanização da agricultura e os campos de extermínio são fenômenos
equivalentes. Em vez disso, a semelhança aludida é essencial, e é essa conceituação
que tem profundas implicações para nossa compreensão da mídia como parte
integrante de um ambiente tecnológico diverso que compartilha certas
características essenciais”.

Eles argumentam que Heidegger quer apontar para o “significado mais amplo e generalizável
da natureza exclusivamente industrial do Holocausto” (x).
Tanto O'Brien quanto Gunkel e Taylor tentam defender Heidegger estabelecendo uma
comparação implícita com o argumento de Horkheimer e Adorno (2002) na Dialética do
Esclarecimento de que a razão instrumental resulta em valores do Iluminismo voltando-se
contra si mesmos, de modo que formas de barbárie que permitem Auschwitz emergem. A
razão instrumental levada até o fim possibilita Auschwitz, mas tal desenvolvimento requer
um contexto político, capitalismo e fascismo, sobre o qual Heidegger tende a silenciar em
seus escritos. Moishe Postone (1980, 2003) construiu o argumento de Horkheimer e Adorno
e argumenta que Auschwitz era uma fábrica negativa, ou seja, uma fábrica para a aniquilação
de inimigos percebidos, negatividade absoluta.
O nacional-socialismo foi a realização final das tendências fascistas do capitalismo. Foi um
projeto político que tentou destruir os judeus, a classe trabalhadora e seus representantes
políticos, e outros grupos com extrema violência, incluindo trabalhos forçados e campos de
extermínio. Não era simplesmente uma extensão ou a forma mais elevada do capitalismo, o
fordismo ou o sistema fabril capitalista, mas sim uma fábrica negativa para o extermínio de
judeus, adversários políticos e outros que os nazistas consideravam inimigos. Moishe
Postone descreve este sistema da seguinte forma:
Uma fábrica capitalista é um lugar onde se produz valor, que “infelizmente” tem
que assumir a forma de produção de bens, de valores de uso. O concreto é
produzido como o portador necessário do abstrato. Os campos de extermínio
não eram uma versão terrível de tal fábrica, mas, ao contrário, deveriam ser vistos
como sua negação grotesca, ariana, “anticapitalista”. Auschwitz era uma fábrica
para “destruir o valor”, ou seja, para destruir as personificações do abstrato. Sua
organização era a de um processo industrial diabólico, cujo objetivo era “libertar”
o concreto do abstrato. O primeiro passo foi desumanizar, isto é, arrancar a
"máscara" da humanidade, da especificidade qualitativa, e revelar os judeus pelo
que "eles realmente são" - sombras, cifras, abstrações numeradas. O segundo
passo foi então erradicar essa abstração, transformá-la em fumaça, tentando no
processo arrancar os últimos resquícios do “valor de uso” concreto, material:
roupas, ouro, cabelo, sabão. (Postone, 1980, p. 114)

Os nazistas transformaram totalmente o trabalho em um dispositivo de matança e


extermínio. As forças de trabalho forçado tiveram que trabalhar na indústria de armas e
outras indústrias que eram administradas de forma privada e exigiam força de trabalho.
Auschwitz e outros campos de extermínio eram em grande parte fábricas negativas – fábricas
que visavam a morte de judeus e outros grupos e indivíduos que os nazistas consideravam
seus inimigos.
Heidegger apenas enfatiza as continuidades da razão instrumental e desconsidera os
contextos que fazem uma diferença qualitativa, a saber, que Auschwitz não produz valores
de uso, mas aniquila humanos, o que é capturado pela categoria da fábrica negativa. Esse
descaso e o contexto da própria história política de Heidegger é o que tornam sua observação
tão problemática. Nem O’Brien, nem Gunkel e Taylor se envolvem com a teoria crítica do
antissemitismo ao discutir o comentário de Heidegger. A “estrutura de cuidados” de seus
argumentos parece ser toda para defender Heidegger contra qualquer crítica que argumente
que ele era nazista e que sua ideologia se refletia em seu trabalho. É de se perguntar se a
publicação dos Cadernos Negros pode desafiar ou não tais crenças e defesas de Heidegger.
Emmanuel Faye (2009, p. 272) conclui sobre a passagem na palestra de Bremen que “tende
a exonerar o nacional-socialismo de sua responsabilidade radical na aniquilação do povo
judeu e na destruição do ser humano a que a indústria do nazismo foi comprometida”.
As obras da Escola de Frankfurt formam uma crítica da razão instrumental, uma crítica da
redução capitalista dos humanos a instrumentos cujo trabalho serve à acumulação de capital,
uma crítica da dominação questionando a instrumentalização dos humanos para promover
o domínio e o poder de poucos, e uma crítica de ideologia questionando a instrumentalização
do pensamento humano. A crítica da Escola de Frankfurt da razão instrumental é, no
entanto, fundamentalmente diferente da análise de Heidegger. Enquanto o contexto da
Teoria Crítica é a economia política, a fenomenologia de Heidegger está em curto-circuito e,
portanto, propensa a se transformar em uma ideologia instrumental. Stanley Aronowitz
resume a crítica da Escola de Frankfurt à razão instrumental na introdução de uma coleção
de ensaios de Horkheimer:
A burguesia tolerou a razão crítica durante sua ascensão revolucionária ao poder
contra as restrições impostas pelas relações sociais feudais. Uma vez vitoriosa,
porém, a razão só poderia ser tolerada em suas formas quantitativas – matemática
e ciência, que se tornaram instrumentos do domínio burguês na medida em que
exigia a expansão do capital para manter sua hegemonia sobre a sociedade. Na
sociedade capitalista, a ciência era útil na medida em que se transformava em
técnica industrial. Mas o empirismo tinha ido longe demais. Deixou o pensamento
escravo da realidade dada. A burguesia desmitificou sistematicamente o
pensamento de sua herança feudal, mas criou novos mitos envoltos no novo
absolutismo da ciência. Os dois lados do pensamento burguês, o positivismo e a
metafísica, são a visão de mundo unificada da burguesia, dividida de acordo com
a divisão do trabalho predominante entre a ciência, que serve à indústria, e as
religiões e ideologias espirituais seculares, que servem à dominação social. (In.
Horkheimer, 2002, XV)

Horkheimer, por exemplo, explica o plano de fundo da razão instrumental da seguinte forma:
Assim, na Europa, nas últimas décadas antes da eclosão da guerra atual,
encontramos o crescimento caótico de elementos individuais da vida social:
gigantescas empresas econômicas, impostos esmagadores, um enorme aumento
de exércitos e armamentos, disciplina coercitiva, cultivo das ciências naturais, e
assim por diante. Em vez da organização racional das relações domésticas e
internacionais, houve a rápida disseminação de certas porções da civilização em
detrimento do todo. Um ficou contra o outro, e a humanidade como um todo foi
destruída por isso. [...] Na vida empresarial, o Fachgeist, o espírito do especialista,
conhece apenas o lucro, na vida militar o poder, e mesmo na ciência apenas o
sucesso em uma disciplina especial. Quando este espírito é deixado sem controle,
tipifica um estado anárquico da sociedade. (Horkheimer, 2002, p. 266)

Se alguém quiser fundamentar uma crítica da tecnologia e da mídia modernas, existem


abordagens disponíveis que são muito mais fundamentadas na análise da sociedade e da
economia política do que a fenomenologia de Heidegger. A crítica da Escola de Frankfurt é
uma delas, embora certamente não a única.
CONCLUSÃO
Neste capítulo, fiz a pergunta: quais são e devem ser as implicações da publicação dos
Cadernos Negros para a recepção de Heidegger no estudo, teoria e filosofia da mídia,
comunicação e tecnologia?
A análise mostrou que os Cadernos Negros de Heidegger utiliza a maioria dos elementos do
antissemitismo que Adorno identifica: Heidegger vê judeus e alemães formando duas raças,
identifica judeus com modernidade, capitalismo e tecnologia moderna, faz uso de lógica
mística e naturalista argumentando que os judeus são desenraizados e ameaçam o
proclamado enraizamento dos alemães, e considera os judeus como um poderoso “judaísmo
mundial” que governa o mundo, bem como um coletivo homogêneo ao qual ele atribui
características biológicas, sociais e políticas negativas. Ele atribui aos judeus uma
característica específica do capitalismo, a saber, a razão instrumental, dizendo que eles têm
um talento para o cálculo e, assim, conduz uma crítica nacional-socialista em curto-circuito
do capitalismo que atribui o capitalismo e seus males aos judeus.
Dado que Heidegger identifica a razão instrumental com os judeus, seu antissemitismo tem
implicações maiores para sua filosofia da tecnologia e da mídia. Há uma ligação lógica entre
o antissemitismo dos Cadernos Negros e a análise da tecnologia em Ser e Tempo e A Questão da
Tecnologia. O primeiro fornece o elo perdido e o aterramento para o segundo e o terceiro. Os
Cadernos Negros ajudam a explicar um vazio teórico nesses outros dois livros. Das Man (o eles)
e das Gestell (o enquadramento) têm uma base para Heidegger nos Cadernos Negros, ou seja, o
que ele e outros chamam de “judaísmo mundial”, ou seja, o mito da conspiração mundial
judaica. O Deutschtümelei (jingoísmo alemão) permaneceu um elemento da filosofia da
tecnologia de Heidegger depois de 1945.
Quais podem e devem ser as implicações do antissemitismo dos Cadernos Negros e seu caráter
de fundamentação para outras obras de Heidegger para o campo dos estudos de mídia e
comunicação?
As obras de Heidegger tiveram uma influência significativa nos estudos contemporâneos de
mídia e comunicação, como evidenciado por trabalhos que o tornam a influência filosófica
central e se concentram em questões como televisão e radiodifusão (Scannell, 2014, 1996),
ética da informação (Capurro, 2003; Capurro, Eldred e Nagelm 2013), a filosofia geral da
tecnologia (Stiegler, 1998, 2009, 2011; Ihde, 2010), a teoria da mídia e mídia digital (Gunkel
e Taylor, 2014), robótica e inteligência artificial (Gunkel, 2012), a internet (Dreyfus, 2009), a
filosofia da informação (Borgmann, 2000), cultura digital (Miller, 2012), vigilância de mídia
digital (Herzogenrath-Amelung, 2013), mídia digital e transporte (Herzogenrath-Amelung,
Troullinou e Thomopoulos, 2015), estudos de interação (Dourish, 2004), filosofia da
realidade virtual (Heim, 1993, 1998).
As obras desses estudiosos tendem a ser interessantes e críticas. Não vejo por que eles
precisam de Heidegger e não podem expressar as coisas que querem articular sem Heidegger
e fazendo uso de tradições alternativas e críticas. Parece-me que o fetichismo de Heidegger
é muitas vezes l’art pour l’art ´ [arte pela arte], Heidegger pour Heidegger [Heidegger por
Heidegger], uma tática que visa criar uma aura de complexidade evocando Heidegger,
embora o mesmo conteúdo pudesse ser expresso sem ele. A maioria desses estudiosos se vê
como progressistas políticos. Muitas vezes, eles também expressam discordância com a
opinião de que a filosofia de Heidegger é uma forma de nazismo. Então, por exemplo,
Gunkel e Taylor argumentam que a filosofia de Heidegger é uma boa maneira de entender
criticamente a tecnologia no nazismo e na ideologia nazista:
Não há nada na filosofia de Heidegger que seja inatamente fascista. De fato, sua
crítica à tecnologia explorada neste livro levanta questões profundas sobre o papel
da tecnologia na desumanização das pessoas, dos quais os campos de extermínio
nazistas foram a manifestação histórica mais sombria. Nesse caso, a censura pura
do pensamento de Heidegger com base em sua filiação política profundamente
falha não é apenas uma resposta inadequada – ela perde uma oportunidade de
entender melhor o papel que a tecnologia desempenhou na facilitação da ideologia
nazista. (Gunkel e Taylor, 2014, viii)

Ao mesmo tempo, que eu saiba, nenhum dos acadêmicos mencionados até agora (até março
de 2015) comentou publicamente se o antissemitismo evidenciado nos Cadernos Negros que
foi publicado na primavera de 2014 deve ou não levar a mudanças na recepção de Heidegger
nos estudos de mídia e comunicação. O julgamento de Tom Rockmore (1997, p. 2) em seu
estudo Sobre o Nazismo e a Filosofia de Heidegger vale também para a recepção dos Cadernos
Negros: “Colocar 'entre parênteses' essa questão, simplesmente afastar-se do problema,
recusar-se de enfrentá-lo, é aceitar silenciosamente o que muitos viram como a dimensão
totalitária em uma das teorias mais importantes deste século”. Essa não-reação constitui uma
estranha assimetria na forma como os heideggerianos lidam com a relação de seu guru
filosófico com o nazismo.
Para ser justo, é preciso dizer que se pode e não se deve exigir de quem é especialista em
Heidegger que entenda alemão. Pode-se ser um perfeito conhecedor das obras de um filósofo
sem ter lido os originais. Afirmar o contrário é uma estranha forma de jingoísmo. Nem os
Cadernos Negros nem a análise ponderada de Peter Trawny (2014) foram traduzidos do alemão
para o inglês, o que torna difícil para os estudiosos que não leem alemão comentar.
Esperamos que uma tradução em inglês da análise de Trawny esteja disponível em breve.
Enquanto isso, também gravações de conversas e discussões em inglês interessantes sobre
os Cadernos Negros envolvendo Peter Trawny, Tom Rockmore e outros estão disponíveis
online: as palestras de Peter Trawny “Filosofia e Antissemitismo: O Caso Heidegger”31 e
“Heidegger, ‘Judaísmo Mundial’ e Modernidade”32, a palestra de Tom Rockmore “O
antissemitismo de Heidegger: filosofia ou visão de mundo?”33, as palestras proferidas na
conferência de 2014 “Os Cadernos Negros de Heidegger: Filosofia, Política,
Antissemitismo”34, uma painel de discussão com Emmanuel Faye, Jeffrey van Davis, Karsten
Harries, Richard Wolin e Thomas Sheehan35, ou um painel de discussão com Peter Trawny
e Babette Babich.36 Esses materiais permitem e permitiram que acadêmicos e outros
formassem uma opinião sobre o assunto.
Portanto, meu argumento é que não há boas razões para o silêncio. Um bom exemplo de
reação concreta à publicação dos Cadernos Negros é a prática antifascista de Günter Figal,
professor de filosofia da Universidade de Freiburg, que no início de 2015 renunciou ao cargo
de presidente da Heidegger Society. Ele argumentou que os Cadernos Negros contêm “frases
antissemitas” e que seria difícil para ele “representar uma pessoa que fez tais comentários e
que fez comentários que só posso achar detestáveis [abscheulich]”37 (tradução do alemão). Ele
diz que acha que o futuro filosófico é “o fim do heideggerianismo”38 (tradução do alemão).
Peter Trawny (2014), que é editor dos Cadernos Negros e alguns outros volumes das Obras
Escolhidas de Heidegger, bem como diretor do Martin-Heidegger-Institute da Universidade
de Wuppertal, argumenta que, dado que o antissemitismo de Heidegger foi formulado em
um contexto filosófico (p.120), é fato que Heidegger escreveu esses comentários filosóficos
em uma época em que as sinagogas ardiam na Alemanha (p. 122), e que neles formulou muita
mágoa sobre o que considerava ser o sofrimento alemão, mas nada sobre o sofrimento
judaico (p. 122); os Cadernos Negros resultarão em uma “crise de recepção de seu pensamento”
(p. 114) e exigirão uma “revisão do engajamento com o pensamento de Heidegger” (p. 117)
[tradução do alemão].
Como pode e será esse envolvimento com o antissemitismo de Heidegger e que forma ele
assumirá no campo dos estudos de mídia e comunicação, onde a filosofia geral de Heidegger
e sua filosofia da tecnologia desempenharam um papel influente? Este capítulo é minha
contribuição e uma tentativa de iniciar tal debate. Minha visão pessoal é que a reação mais
adequada é que os estudiosos se distanciem das obras de Heidegger e deixem de dar-lhes
destaque nos estudos de mídia e comunicação (e outros campos). É hora de os
heideggerianos abandonarem Heidegger e se concentrarem em tradições alternativas de
pensamento.

31 https://www.youtube.com/watch?v=LwNiMl1g9us, acessado em 27 de fevereiro de 2015.


32 https://www.youtube.com/watch?v=zzLMdQh9iTA, acessado em 27 de fevereiro de 2015.
33 https://www.youtube.com/watch?v=loj5dQr_lJk, acessado em 27 de fevereiro de 2015.
34 https://www.youtube.com/playlist?list=PLgEhVQ4kQGSpaE84Ha2Zec5t7b8c_8CKP, acessado em 27

de fevereiro de 2015.
35 https://www.youtube.com/watch?v=hMizd8GplEA, acessado em 27 de fevereiro de 2015.
36 https://vimeo.com/93782805, acessado em 27 de fevereiro de 2015.
37 “So denkt man nicht, wenn man Philosophie treibt”. Günter Figal: Interview mit Radio Dreyeckland, 9 de

janeiro de 2015, https://rdl.de/beitrag/so-denkt-man-nicht-wenn-man-philosophie-betreibt, acessado em 1º


de março de 2015.
38 Original em alemão: “Das Ende des Heideggerianertums”. In: Interview mit Günter Figal. Badische Zeitung,

January 23, 2015. http://www.badische-zeitung.de/literatur-und-vortraege/ das-ende-des-heideggerianertums,


acessado em 1º de março de 2015.
O filósofo francês Emmanuel Faye (2009, p. 319) argumenta que Heidegger, “que defendeu
os fundamentos do nazismo não pode ser considerado um filósofo” e que o “momento
chegou a resistir à opinião imprudente de que Heidegger foi um 'grande filósofo'". A
publicação dos Cadernos Negros tornou esse julgamento ainda mais atual. É agora também
o momento em que os estudiosos devem considerar parar de elogiar e referenciar Heidegger
ao teorizar e analisar a mídia, comunicação, cultura, tecnologia, mídia digital e Internet.

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