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CURSO DE DIREITO
Caxias do Sul
2019
MARIANA MARTINS GOMES
Caxias do Sul
2019
MARIANA MARTINS GOMES
Banca examinadora:
__________________________________
Prof. Dr. João Ignacio Pires Lucas (Orientador)
Universidade de Caxias do Sul – UCS
__________________________________
Prof. Dr, Mateus Salvadori
Universidade de Caxias do Sul – UCS
__________________________________
Prof. Dra. Cleide Calgaro
Universidade de Caxias do Sul – UCS
Dedico o presente trabalho a todas as mulheres que
precisaram lutar, arduamente, por tantos e tantos
anos, para que fossem reconhecidas como cidadãs
plenas, apesar das discriminações raciais e de
gênero. Para aquelas que se permitiram falar para
além das próprias cicatrizes. Com a fúria da beleza
do sol, essa pesquisa não é sobre vocês: é para
vocês.
A luta e a resistência continuam.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, aos meus pais, Magda e Carlos Daniel, por me criarem com
senso crítico e liberdade espírito. À minha tia Marlova, por todo o apoio e carinho.
Minha graduação iniciou em fevereiro de 2015; em abril, meu pai, Carlos Daniel,
faleceu. A dor profunda e a saudade não me possibilitaram uma graduação com pleno
aproveitamento. Mas, escrevendo esse trabalho, percebi que minha vocação para o Direito
sempre esteve presente. Meu muito obrigada pelos 19 anos que pude conviver ao teu lado, pai.
E muito obrigada, mãe, pelo estreitamento de laços e por todo o amor que cresce dia após dia.
Vocês são os grandes amores da minha vida.
Agradeço ao meu namorado, Eduardo, pelo apoio incondicional desde o princípio: que
nosso relacionamento nos permita viver muitas mais alegrias. Eu amo a pessoa que sou quando
estou contigo.
Ao meu chefe, mentor e grande amigo Edemir. Não me arrependo nem por um minuto
por ter visto em ti uma figura paterna; teus puxões de orelha e teu cuidado comigo serão eternos
em minha memória – e o que aprendi contigo em quase dois anos de convivência diária me fez
perceber que calma e silêncio, às vezes, são as melhores escolhas, e que família é um sentimento
(provavelmente o mais importante de todos). Muito obrigada, por absolutamente tudo. Espero
um dia ser um terço do profissional que tu és.
Aos amigos de longa data e aos recentes relacionamentos: o tempo não será capaz de
apagar todas as memórias e alegrias que vocês me proporcionaram, além de todo o cuidado e
carinho. Amo-os, muito.
Agradeço com todo o carinho que cabe em mim ao meu querido e adorado orientador
João Ignacio; se o Internacional não foi capaz de nos enlouquecer esse ano, nada mais é.
Desculpe todos os transtornos, mas eu sei que nossa amizade é sincera (e desculpe todos os
abraços inusitados, eu tenho um sério problema com demonstrações de afeto e espaço pessoal).
Em especial, agradeço à minha melhor amiga, Bruna. Graças a ti luto diariamente para
me tornar alguém melhor. No horizonte encontro teus olhos; sei que estamos juntas.
Mas, além de tudo, agradeço a mim mesma, pela perseverança e pela força que
descobri que possuo nos últimos quatro anos. A dor de uma perda germina em coragem, e
acredito estar no caminho certo.
Essa monografia analisou a relação entre a escravidão e o trabalho doméstico no Brasil. Através
de revisão bibliográfica e documental, o estudo propôs a reflexão entre a intersecção de raça,
classe e gênero nas relações de trabalho doméstico, remontando à escravidão, perpassando pelo
período pós-abolicionismo, até a regulamentação do trabalho doméstico como categoria formal
de trabalho após a promulgação da Lei Complementar nº 150, no ano de 2015 – 127 anos depois
da assinatura da Lei Áurea. Ao longo de quatro capítulos, foi proposta uma reflexão quanto à
cronologia de fatos históricos e institutos jurídicos que permitiram a lenta e gradativa conquista
de direitos trabalhistas, sociais e políticos das domésticas. O viés adotado é, especialmente, pela
óptica do racismo enquanto estrutura opressiva e paralisante, fortificada por estereótipos
racistas e construções moralistas quanto ao trabalho doméstico no Brasil. O esquecimento do
feminismo quanto à questão racial contribuiu para com a estagnação das lutas antirracistas, bem
como a negação da sociedade quanto à existência do racismo enquanto realidade no cotidiano
brasileiro – recorrendo, de forma reiterada, ao mito da democracia racial.
Palavras-chave: Raça. Direitos Trabalhistas. Empregada Doméstica. Escravidão.
SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO......................................................................................................................9
2.2 “JÁ VIU ELES CHORAR PELA COR DO ORIXÁ? ” - A INSIPIÊNCIA DAS
MOVIMENTAÇÕES DA BRANQUITUDE NO ÂMBITO JURÍDICO E AS
REITERADAS LUTAS POLÍTICAS E SOCIAIS DA POPULAÇÃO
ESCRAVIZADA.............................................................................................................17
3.1 “SEJA MAIS HUMILDE, BAIXE A CABEÇA; NUNCA REVIDE, FINJA QUE
ESQUECEU A COISA TODA.” – O CONTROLE SOCIAL COM REQUINTES DE
EUGENIA SOB O VÉU DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL .................................. 24
5.2 “CUIDADO, NÃO VOA TÃO PERTO DO SOL, ELES NÃO AGUENTA TE VER
LIVRE. ” – O LENTO PERCURSO JURÍDICO PELA REGULAMENTAÇÃO DO
TRABALHO DOMÉSTICO.................................................................................................50
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................................58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................................59
9
1. INTRODUÇÃO
A presente monografia adota por norte o estudo das relações de raça, gênero, classe e
trabalho no ordenamento jurídico brasileiro. Através de revisão bibliográfica e análise
documental, o trabalho propõe os seguintes questionamentos: quem são as mulheres que
permaneceram nas residências familiares, atreladas aos afazeres domésticos e à criação de
crianças (que não foram geradas dentro de si), e que permitiram a emancipação e o
empoderamento político e econômico de tantas outras? E qual a relação entre o fato de que as
responsáveis pelos bastidores da vida política serem majoritariamente negras e, de forma
diametralmente oposta, as protagonistas e garotas-propaganda do movimento feminista dos
séculos XIX e XX serem brancas?
A metodologia aplicada foi a revisão bibliográfica e documental, analisando sob o viés
sociológico as relações de poder dentro da construção do trabalho doméstico desde o período
escravista até, finalmente, a promulgação da Lei Complementar 150; esmiuçando alguns dos
muitos institutos jurídicos que permearam esse longo trajeto.
As diversas facetas sociais, culturais, políticas e jurídicas que permeiam a realidade
das relações de raça, classe e gênero no mundo do trabalho brasileiro produzem mais
questionamentos do que, por si só, apontam soluções. Ademais, analisar toda a construção do
sujeito empregada doméstica em um país que foi, por quase 400 anos, assolado pelo repulsivo
comércio de corpos humanos sequestrados do continente africano e construído através da mão
de obra escrava, não é uma tarefa simples. Sequer é possível suscitar a mera hipótese de que
uma monografia possa aglutinar e sintetizar os 131 anos de emancipação negra que se
sucederam após a abolição da escravatura. A pretensão aqui apresentada é clara: fomentar o
estudo, gerar desconforto na hegemonia branca, analisar a trajetória jurídica dos institutos legais
entre o pré pós-abolição até a promulgação da Lei Complementar 150; e, acima de tudo, exaltar
e narrar de forma acadêmica a trajetória de mulher negras ao longo de todo esse período
histórico. Propõe-se, principalmente, fugir do método de análise laboratorial; mulheres negras
e a luta antirracista aqui presentes são pessoas e fatos, não objetos de estudo inanimados e sem
personalidade e trajetórias próprias. O trabalho se atém à história e à realidade. O respeito por
todo esse trajeto é a necessidade primordial para que não se recaia em paternalismo racista ou
em uma análise etnocêntrica. Contradições não são bem vindas quando se analisam quase
quatrocentos anos de prejuízo à toda uma população.
O presente é – e sempre será – o resultado de sucessivas reiterações de padrões de
comportamento e condições históricas. A condição do espaço-tempo propicia um ambiente
10
fértil para que certos comparativos sejam tomados por anacronismos. Contudo, cabe salientar
que entre o preto e o branco existem, pelo menos, cinquenta tons de cinza. O véu do racismo
cordial se consagra na medida em que o Brasil permanece preso ao mito da democracia racial;
a miscigenação como justificativa para que o racismo (e toda a sua estrutura solidamente
construída) seja visto como um fantasma longínquo, enterrado na soleira de alguma senzala.
Tal compreensão se torna confortável; a branquitute se vê plenamente amparada para
permanecer como mantenedora do status quo e detendo todo o aparato da ordem social, política
e econômica.
Não há anacronismo algum no paralelo entre o quarto de empregada e a senzala; a
supressão arquitetônica desta última foi o fato gerador do quarto de despejo (com uma cama de
solteiro de qualidade baixa e uma janela basculante). A concepção da condição servil de outrem,
que seja responsável pelos afazeres domésticos, preparo de alimentos e cuidado para com os
filhos, remonta ao patrimonialismo brasileiro. A ordem social que implica em racionalizar e
normatizar comportamentos de relação entre patrão e servo foi milimetricamente calculada no
decorrer dos séculos.
Resquícios de uma abolição feita às pressas em função de pressões econômicas
externas não simplesmente ecoam através de mais de um século; se solidificam, criam raízes e
guarnecem uma segregação social salvaguardada pelo genocídio, excludente trabalhista e
higienismo urbano, levando a maior parcela da população negra brasileira aos limiares da
marginalidade – o fator gênero, por sua vez, relega à mulher negra americana a situação social
de maior vulnerabilidade. A estruturação da concepção de trabalho doméstico no Brasil remonta
ao período pós-abolição da escravatura e pré-republicano. As chamadas negras da casa, assim
pejorativamente denominadas durante o período escravagista brasileiro, foram realocadas para
outro papel com o transcurso de quase três quinquênios pós-abolição: o quarto de empregada.
Locais sufocantes, com janelas de basculante, pouca ventilação e com o convite
financeiramente irrecusável de “dormir no trabalho”, milhares de mulheres se submetem, em
pleno 2019, às condições análogas à escravidão, a fim de prover sustento aos filhos e assumir
a dignidade de um trabalho remunerado. Enquanto isso, as patroas se deslocam aos seus locais
de trabalho; muitas vezes são estes: escritórios, consultórios médicos ou clínicas odontológicas.
Para que muitas mulheres brancas pudessem ir às ruas, pôr-se em frenesi e esbravejar
contra o patriarcado que as oprime, alguém precisou resguardar os seus lares, alimentar suas
crias e manter salubres suas condições de higiene habitacional. Tal como na Inglaterra vitoriana,
onde funcionárias de fábricas que sobreviviam em condições sub-humanas de emprego e
moradia foram usadas como massa de manobra para que nobres mulheres da emergente
11
Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo,
negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma
práxis de conscientização da questão da discriminação racial nesse país, vai ser muito
difícil o Brasil chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial. No lastro
do todo das questões que estão colocadas, os donos da terra e os intelectuais a serviço
dessas classes, efetivamente, não abrem mão desse poder. Eles não estão a fim de
desenvolver um trabalho no sentido da construção de uma nacionalidade brasileira;
nacionalidade esta que implicará efetivamente a incorporação da cultura negra.
Quando analisamos José Bonifácio, Patriarca da Independência, que luta pela abolição
do tráfico negreiro, constatamos, por exemplo, que seu ideal de nação partia da
12
1
Lélia Gonzalez (1935-1994) foi uma filósofa, antropóloga e socióloga mineira.
13
2
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 13 out. 2019.
3
CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil, p. 11. São Paulo: Paco Editorial,
2018.
4
Ibid., p. 12.
14
Não há uma certeza, no âmbito histórico, de qual seria o primeiro homem ou mulher
trazido ao Brasil na condição de escravo. Quanto aos números de pessoas sequestradas do
continente africano e trazidas em navios negreiros para o continente americano, existem
diversos estudos que se propuseram a catalogar registros históricos do período escravista. No
ano de 2018 a Universidade de Emory, localizada em Atlanta, nos Estados Unidos,
disponibilizou on-line e de forma totalmente gratuita um banco de dados elaborado a partir de
uma pesquisa de dez anos realizada pelo centro de pesquisa universitário Emory Libraries &
Information Technology. Na plataforma7, traduzida em três idiomas (português, espanhol e
inglês), é possível verificar uma ampla base de dados e compilação de informações sobre
embarcações, povos escravizados, traficantes e proprietários de escravos, e rotas de comércio,
além de um extenso memorial com imagens, manuscritos, mapas e listagens de nomes de
5
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado.. 2. ed. São
Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2017, p. 57.
6
EMICIDA. Principia. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em: https://listen.tidal.com/album/
120489000. Acesso em 02 nov. 2019.
7
EMORY LIBRARIES & INFORMATION TECHNOLOGY (Org.). Slave Voyages: EXPLORE THE
DISPERSAL OF ENSLAVED AFRICANS ACROSS THE ATLANTIC WORLD. This digital memorial raises
questions about the largest slave trades in history and offers access to the documentation available to answer them.
European colonizers turned to Africa for enslaved laborers to build the cities and extract the resources of the
Americas. They forced millions of mostly unnamed Africans across the Atlantic to the Americas, and from one
part of the Americas to another. Analyze these slave trades and view interactive maps, timelines, and animations
to see the dispersal in action.. 2018. Disponível em: <https://slavevoyages.org/>. Acesso em: 07 out. 2019.
15
No decorrer de quase 340 anos de sistema escravagista, não foram poucos os institutos
jurídicos que permearam a história Brasileira. A derrocada da escravidão no Brasil não se deu
pela benevolência de nenhum imperial; fatores externos – tais como a industrialização da
Europa – bem como fatores internos contribuíram para abolição da escravidão – mesmo que
em doses homeopáticas, até a assinatura da Lei Áurea em 188811. A proibição do tráfico
negreiro, concebida pelo Ministro da Justiça Eusébio de Queiróz em 1850, promulgou a Lei nº
581, a qual versava sobre a proibição de tráfico de mão-de-obra escrava do Oceano Atlântico
em direção ao Brasil.12 Posteriormente, outras duas leis marcaram época na lenta caminhada
pela abolição institucional da escravidão: a Lei do Ventre Livre13, assinada no ano de 1871, que
8
RAMOS, Jefferson Evandro Machado. Escravidão no Brasil: História da escravidão no Brasil, escravidão negra
africana no Brasil Colônia, tráfico de escravos, os navios negreiros, trabalho escravo nos engenhos e nas minas de
ouro, os castigos, as revoltas, os quilombos, carta de alforria, fim da escravidão. 2019. Disponível em:
<https://www.suapesquisa.com/historiadobrasil/escravidao.htm>. Acesso em: 13 set. 2019.
9
Tomé de Sousa foi um político e miliar português; exerceu a função de primeiro governador-geral do Brasil,
tendo por sede administrativa a capitania da Bahia de Todos os Santos, na cidade de Salvador.
10
PROENEM. GOVERNOS GERAIS E O INÍCIO DA ESCRAVIDÃO AFRICANA NO BRASIL – O INÍCIO
DA COLONIZAÇÃO. 2019. Https://www.proenem.com.br/enem/historia/governos-gerais-e-o-inicio-da-
escravidao-africana-no-brasil-o-inicio-da-colonizacao/. Disponível em: <Em face das dificuldades encontradas
pela grande maioria dos donatários na administração das capitanias hereditárias, o próprio rei D. João III iniciou
o projeto de revisão da recente política de colonização do Brasil.>. Acesso em: 14 out. 2019.
11
LEI. Declara extinta a escravidão no Brasil.. A Princesa Imperial Regente, em Nome de Sua Majestade O
Imperador, O Senhor D. Pedro Ii, Faz Saber A Todos Os Súditos do Império Que A Assembléia Geral
Decretou e Ela Sancionou A Lei Seguinte:. Paço Imperial, Rio de Janeiro, RJ, Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>. Acesso em: 09 set. 2019.
12
BRASIL. Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850. Estabelece medidas para a repressão do trafico de africanos
neste Imperio.. . Rio de Janeiro, RJ, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM581.htm>.
Acesso em: 10 out. 2019.
13
BRASIL. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que
nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento
16
determinava taxativamente que nenhuma pessoa nasceria, dali em diante, escrava no Brasil;
conferindo o direito à alforria quando da maioridade; e a Lei dos Sexagenários, a qual postulava
pela liberdade imediata de qualquer pessoa em situação de escravidão ao completar 65 anos. 14
Portanto, se torna palpável a ideia de que institutos jurídicos, por si só, bem como os
operadores formais do direito, não possuem um papel de destaque na emancipação e
empoderamento civil e político da população negra durante o período escravista e,
posteriormente, quando finda de fato a escravidão enquanto norma jurídica. Em que pese o agir
importantíssimo de abolicionistas brancos como Joaquim Nabuco16, este permaneceu fiel aos
ideias monarquistas após a proclamação da República em 1889. Compreende-se que, por mais
engajado que um diplomata, à época, pudesse ser (e, de forma alguma, diminuindo suas
contribuições), este jamais poderia compreender, de forma ampla e efetivamente empática, a
necessidade do rompimento com qualquer sistema que legitime a venda de corpos humanos
como força de trabalho e animais reprodutores – tal como foi a monarquia. Parafraseando
Angela Davis ao analisar sociologicamente a relação de pessoas brancas quanto à questão da
abolição da escravidão (no contexto norte-americano, contudo, plenamente aplicável à
realidade brasileira): mesmos os abolicionistas brancos mais aplicados condicionavam à
questão da desigualdade racial a um moralismo cristão; uma atrocidade digna de benevolência,
mas sem alterações reais e sólidas na ordem social.
2.2 “JÁ VIU ELES CHORAR PELA COR DO ORIXÁ?17” - A INSIPIÊNCIA DAS
MOVIMENTAÇÕES DA BRANQUITUDE NO ÂMBITO JURÍDICO E AS REITERADAS
LUTAS POLÍTICAS E SOCIAIS DA POPULAÇÃO ESCRAVIZADA.
17
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 13 out. 2019.
18
BRASIL. Agência do Senado. Senado Federal. Lei dos Sexagenários completa 130 anos.: No próximo dia 28
de setembro, a lei que libertou os escravos com 60 anos ou mais completará 130 anos. Apelidada de Lei dos
Sexagenários (1885), ela é menos conhecida do que a Lei do Ventre Livre (1871), que concedeu liberdade aos
18
Senado Federal, na matéria publicada em 31 de Agosto de 2015, referente aos 130 anos da Lei
dos Sexagenários:
A lei foi aprovada após intenso debate na Assembleia Geral, como era chamado o
Congresso Nacional à época. É verdade que, do ponto de vista econômico e
humanitário, a medida teve pouca repercussão. Submetidos a trabalhos extenuantes e
péssimas condições de vida, poucos escravos conseguiam cruzar a marca dos 60. 19
filhos de escravos nascidos a partir de sua promulgação, e do que a Lei Áurea (1888), que finalmente acabou com
a escravidão no Brasil.. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-
dos-sexagenarios-completa-130-anos>. Acesso em: 14 out. 2019.
19
BRASIL. Agência do Senado. Senado Federal. Lei dos Sexagenários completa 130 anos.: No próximo dia 28
de setembro, a lei que libertou os escravos com 60 anos ou mais completará 130 anos. Apelidada de Lei dos
Sexagenários (1885), ela é menos conhecida do que a Lei do Ventre Livre (1871), que concedeu liberdade aos
filhos de escravos nascidos a partir de sua promulgação, e do que a Lei Áurea (1888), que finalmente acabou com
a escravidão no Brasil.. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-
dos-sexagenarios-completa-130-anos>. Acesso em: 14 out. 2019
20
É doutora (2004) em História pela Universidade Estadual de Campinas, na qual também se graduou (1988) e
concluiu mestrado (1995). É professora na Universidade Federal do Paraná. Tem experiência na área de História,
com ênfase na História do Brasil do século XIX e da Primeira República, tratando de temáticas relacionadas à
História Social do Trabalho (imigração, escravidão, trabalho compulsório, experiência de afrodescendentes no
Pós-Abolição), às relações entre História, Direito e Justiça, Ensino de História e História Pública.
21
BRASIL. Agência do Senado. Senado Federal. Lei dos Sexagenários completa 130 anos.: No próximo dia 28
de setembro, a lei que libertou os escravos com 60 anos ou mais completará 130 anos. Apelidada de Lei dos
Sexagenários (1885), ela é menos conhecida do que a Lei do Ventre Livre (1871), que concedeu liberdade aos
19
Quando da sua liberdade, a pessoa outrora escravizada deveria estar sob constante
vigilância do Estado e do Poder Público. O medo da insurgência por parte não só da elite, mas
da branquitude num geral – eis que a segregação racial ocorrida durante o período da escravidão
conferiu ao cidadão branco, mesmo aquele da classe mais baixa, um status de superioridade em
relação à população negra – era um fantasma com forma e rosto perfeitamente delineados.
filhos de escravos nascidos a partir de sua promulgação, e do que a Lei Áurea (1888), que finalmente acabou com
a escravidão no Brasil.. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-
dos-sexagenarios-completa-130-anos>. Acesso em: 14 out. 2019.
22
Fundando no séc. XVI, o Quilombo de Palmares, localizado na Serra da Barriga, onde atualmente está localizado
o Estado de Alagoas, serviu de refúgio à população afro-brasileira fugida das capitanias da Bahia e de Pernambuco.
O local chegou a reunir cerca de 30 mil moradores em seu ápice. Zumbi de Palmares, o líder mais memorável de
todo o período quilombola enquanto reduto de resistência ao regime escravista, foi assassinado em 20 de
Novembro de 1695. Atualmente esta data marca o Dia Nacional da Consciência Negra. VALENTE, Jonas (Org.).
Quilombo dos Palmares é reconhecido patrimônio cultural do Mercosul. 2017. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/quilombo-dos-palmares-e-reconhecido-patrimonio-cultural-do-mercosul/>. Acesso
em: 14 out. 2019.
23
A Revolta dos Malês, episódio antológico da luta antiescravista e abolicionista, ocorreu na cidade de Salvador,
no estado da Bahia, entre os dias 24 e 25 de janeiro de 1835. Os malês eram formados por libertos e escravizados
– estes últimos conhecidos pejorativamente como negros de ganho, visto que possuíam a “liberdade” de
desempenhar atividades de alfaiataria e pequeno comércio, por exemplo, pela cidade. O mote da revolta era pela
libertação de todos os africanos e afro-brasileiros escravizados de origem muçulmana. Em que pese seu peso
histórico, a investida não foi bem sucedida. Setenta revoltosos restaram mortos, e cerca de 300 malês foram presos
e julgados – com penas que iam de açoites, deportação para o Continente Africano até a pena de morte. Outra
consequência da Revolta foi a proibição de circulação de africanos e afro-brasileiros muçulmanos ao anoitecer;
bem como a proibição de cerimônias religiosas dos adeptos ao Islã. Fonte: PALMARES FUNDAÇÃO
CULTURAL (Org.). Você já ouviu falar sobre a Revolta dos Malês? 2019. Disponível em:
<http://www.palmares.gov.br/?p=52993>. Acesso em: 14 out. 2019.
24
Ibid., p. 109.
20
de órgãos repressores25. Na província do Amazonas, por sua vez, aprovou sua própria lei áurea
no ano de 1884, constituindo um fundo para compras em larga-escala de pessoas em situação
de escravidão26.
Assim, através dessas e tantas outras movimentações populares pelo fim do sistema
escravista, por volta do ano de 1880 a população escravizada representava uma parcela
populacional mínima em solo brasileiro. Sem justificativas econômicas plausíveis e que
servissem ao Estado para ensejar esforços na manutenção do sistema, com reiteradas
movimentações por parte dos escravos ao longo de todo o período pela libertação (não
simplesmente no sentido jurídico), a escravidão terminou por ruir. A sacramentação do
desmoronamento se deu, enfim, com a assinatura da Lei Áurea – esta, a última pá de cal na
maior atrocidade à humanidade já experienciada no Brasil.
25
Ibid., p. 238-239.
26
Ibid., p. 239.
27
Bacharel em relações públicas com especialização em curso em Sociopsicologia.
11 anos de experiência em comunicação com ênfase em digital, inovação, tecnologia, composição de conteúdo
estratégico e gestão de contas e projetos.
Co-autora do livro #MeuAmigoSecreto: feminismo além das redes.
28
MOURA, Gabriela. Mulher negra — empregada doméstica: origem escravista e manutenção de castas
sociais.: Texto originalmente escrito em 2015 e publicado em um antigo blog, como parte de uma pesquisa.. 2019.
Disponível em: <https://medium.com/@metaforica_gabi/mulher-negra-empregada-dom%C3%A9stica-origem-
escravista-e-manuten%C3%A7%C3%A3o-de-castas-sociais-9e247bdf7728>. Acesso em: 01 out. 2019.
21
29
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós, representantes
do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.. Brasília, DF.
30
BRASIL. Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor..
. Brasília, DF, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm>. Acesso em: 20 out. 2019.
31
BRASIL. Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.. Rio de Janeiro
32
BRASIL. Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989,
que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-
lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.. . Brasília
22
33
EMICIDA. Ismália. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000
34
No dia 23 de julho de 1993, policiais fora de serviço mataram oito crianças e jovens em situação de rua no
entorno da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. O caso que ficou conhecido como Chacina da
Candelária ganhou repercussão internacional. Fonte: Anistia Internacional Brasil. Chacina da Candelária 25
anos: lembramos dessa história para que ela não se repita. 2018. Disponível em:
<https://anistia.org.br/noticias/chacina-da-candelaria-25-anos-lembramos-dessa-historia-para-que-ela-nao-se-
repita/>. Acesso em: 06 nov. 2019.
23
pela normatização do racismo enquanto estrutura; para tanto, foi necessário um processo
veementemente repetido e reproduzido ao longo dos séculos a fim de que a cor da pele não
fosse um fator determinante em si, mas um marco visível de toda uma construção.
Se outrora os escravos eram mantidos presos por grilhões de ferro e eram açoitados,
muitas vezes até a morte, nos dias atuais podemos perceber uma situação bastante
semelhante de forma velada. A senzala que se tornou quarto de empregada, o navio
negreiro que se tornou camburão e o capitão do mato que se tornou agente de caça e
extermínio com respaldo legal são exemplos já conhecidos dessa nova configuração,
que mantém o negro em papéis bem definidos. 35
35
KAHLO, Coletivo Não Me et al (Org.). #MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes.. Rio de Janeiro:
Edições de Janeiro, 2016, p. 49. Elaborado por: Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e
Thaysa Malaquias.
24
3.1. “SEJA MAIS HUMILDE, BAIXE A CABEÇA; NUNCA REVIDE, FINJA QUE
ESQUECEU A COISA TODA. ” – O CONTROLE SOCIAL COM REQUINTES DE
EUGENIA SOB O VÉU DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL.
Assim, a cor da pele passou a ser um marco visível de toda uma estruturação que
solidificou a cultura racista. A visão etnocêntrica ocidental trabalha sob o pressuposto de que a
civilização é exclusivamente de ordem branca; sendo a população negra (ou de outras minorias
étnicas) biologicamente inaptas a concepção de estruturação familiar europeia – sendo esta,
portanto, a única possível do ponto de vista eurocêntrico. Nessa esteira, a população negra
escravizada era entendida como animalizada e, portanto, mais propensa ao trabalho braçal –
tendo intrinsecamente maior tolerância aos abusos físicos perpetrados contra si, bem como
maior capacidade de trato com questões domésticas. Com o advento da abolição, necessário se
fez, no ímpeto de não deixar morrer tal necessidade de controle social, uma nova ordem; um
mote e um alicerce para manter o ex-escravo sob o olhar sanguinário do vigia.37
36
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017: p. 23.
37
RACIONAIS MC’S. Diário de um detento. São Paulo: Cosa Nostra: 1997. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/93315747. Acesso em: 15 de Outubro de 2019.
25
datada de 1930, quanto às relações entre escravos e senhores de escravos durante o período
escravista, que se perpetua no imaginário popular como um eco surdo através das décadas.
Lecionou Abdias Nascimento, entre tantas criações quanto às raízes da democracia racial:
38
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado.. 2. ed. São
Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2017, p. 68.
39
Nome dado a pequenas estórias satíricas e narrativas populares cômicas, muitas vezes em versos, na literatura
francesa da idade média. FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São
Paulo: Editora Elefante, 2017, p. 65. Tradução: coletivo Sycorax.
40
Teoria elaborada pelo filósofo britânico Herbert Spencer (1820-1903), o qual utilizou-se por analogia da teoria
da evolução darwinista a fim de respaldar a superioridade racial. Tal teoria fundamentou, posteriormente, teorias
como a eugenia, utilizada nos campos de concentração da Alemanha Nazista para realizar alterações genéticas em
pessoas vivas, na intenção de desenvolver uma “raça pura”.
41
Doutrina antropológica que conceitua o agir humano como determinado por variáveis de ordem exclusivamente
biológica, contrapondo a existência da possibilidade do pensamento livre ou da capacidade de escolha. Se pauta,
26
Contudo, assim como o sincretismo religioso foi a força-motriz da Igreja Católica para
facilitar a fagocitose das religiões pagãs na Europa pré-cristianismo, urgiu, em todo o continente
americano, a necessidade de uma construção do culturalismo racista em doses homeopáticas; a
fim de que a digestão popular fosse facilitada e que o mito da democracia racial encontrasse
solo fértil. Portanto, tal transição se deu de forma sutil, a fim de ser socialmente aceita e
contornar a concepção estritamente atrelada ao fenótipo da população negra recém-liberta do
sistema escravista; construindo no imaginário coletivo que a população negra não foi
escravizada e relegada à marginalidade pela sua diferença étnica; e sim pela sua incapacidade
de civilizar-se ao modo europeu – o que caracteriza um crime contra a moral cristã e os bons
costumes ao modo colonizador. Tal conduta, sistematicamente organizada, serviu para a
manutenção da hegemonia europeia.
O terreno fértil do ideário racista, alimentado por três séculos e meio de escravidão e
sucedidos pela perpetuação da lógica patrimonialista na sociedade brasileira – concomitante à
importação de ideias eugenistas que foram aceitos de forma tácita pelo ideário popular –, serviu
via de regra, por características físicas (determinadas por raça, gênero, etnia, nacionalidade, etc.), a fim de justificar
características psicológicas e o agir social de determinados grupos sociais.
42
EMICIDA. Bang!. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2013. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
27
de alicerce para diversas concepções racistas que, ao longo dos anos, permearam as relações
interpessoais da população brasileira e, em diversas camadas do tecido social, normatizaram
estruturas opressivas que convergem no racismo estrutural. Pertine, portanto, pontuar que o
fator racial interfere diretamente nas compreensões do senso-comum quanto à questões básicas
de convívio social.
Durante o período escravista, mulheres negras tiveram todos os aspectos de suas vidas
ofuscados pela condição de trabalho compulsório. O machismo, tendo como mantenedor o
sistema patriarcal, incidiu (e ainda, nos dias de hoje, incide) de forma diferente na vida de
mulheres escravizadas quando comparada à vida de mulheres brancas. Mulheres negras eram
vistas, portanto, como unidades de trabalho lucrativas; podendo, quando conviesse ao “dono”,
serem desprovidas de gênero. Os trabalhos extenuantes e os castigos físicos não eram práticas
exclusivamente aplicadas em homens; mulheres escravizadas eram submetidas a tal barbárie na
mesma proporção – com a incidência, ainda, do fator das violações sexuais e políticas de
estupro (por isso o desprovimento de gênero passava, necessariamente, pelo crivo da
conveniência que o momento propiciasse).
machista e opressiva, em nada se comparavam aos martírios diariamente vividos por qualquer
mulher negra à época da escravidão ou do pós-abolição em solo brasileiro – ou em qualquer
país que possui por alicerce econômico o tráfico de corpos negros sequestrados e sua respectiva
mão de obra.
Aqueles homens ali, dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor
lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a
saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E eu não sou
uma mulher? Olhem pra mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a
colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E eu não sou uma
mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que
eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E eu não sou uma
mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e
quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E eu
não sou uma mulher?44
Eis que, nessa diapasão, o culturalismo racista entrou em cena. A fim de justificar o
desprovimento de gênero, no sentido de feminilidade à moda europeia, foram criados diversos
traços depreciativos de personalidade para mulheres negras, tais como: ingenuidade (sendo
facilmente manipuláveis e com quês de infantilidade, ensejando tutela constante de seus
superiores); agressividade (com necessidade de constante vigília, vez que qualquer insurgência
advinda de uma mulher negra seria uma afronta direta à moral e aos bons costumes brancos e
cristãos); instinto maternal animalesco (despido de afeto socialmente construído; remetendo ao
sentido de proteção extrema e abnegação da própria existência em favor de seus protegidos –
os quais, convenientemente, eram seus senhores e sinhás); humor inabalável (o qual as
tornavam aptas a suportar todo e qualquer assédio de ordem moral ou sexual, de forma resiliente
e divertida); sexualidade aflorada (caracterizando um instinto primitivo de controle sexual sobre
o gênero masculino através de relações sexuais, o que serviu em inúmeras ocasiões como
43
KAHLO, Coletivo Não Me et al (Org.). #MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes.. Rio de Janeiro:
Edições de Janeiro, 2016, p. 38. Elaborado por: Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e
Thaysa Malaquias..
44
THRUTH, Sojouner. 1891.
29
pretexto para violações sexuais por parte de senhores e castigos físicos por parte de sinhás, eis
que homens seriam incontroláveis quando provocados e, invariavelmente, a culpa cristã de tais
atitudes seria exclusivamente de quem as provocou); e tantas outras facetas calcadas em
concepções racistas. Importa frisar que existia (e tal circunstância permanece intacta até os dias
atuais) uma virtude muito bem quista: a gratidão. O motivo é tácito: a “boa” serviçal é, antes
de mais nada, fiel, confiável e agradecida45.
Assim nasceu o arquétipo da negra da casa, uma figura antológica gestada durante o
período escravista e parida quando do pós-abolição – vez que a subjugação de raça e gênero, a
fim de manter a ordem social, se fez mais presente do que nunca.
Como todo ideia, para ser recepcionada pela população em geral, é necessário que ela
seja reproduzida à exaustão. Assim, veicular a construção da negra da casa era artigo de
primeira necessidade. Em se tratando de um período em que a tecnologia dos meios de
comunicação não detinha uma ínfima parcela do que conhecemos nos dias de hoje, sequer os
jornais de maior circulação estariam aptos a difundir com tanta facilidade tal solidificação deste
arquétipo. Nessa esteira, a literatura foi uma forte aliada.
A literatura nacional foi, nesse sentido, pode ser representada por uma personagem
icônica: Tia Nastácia. Elaborada na obra infantil de Monteiro Lobato, Tia Nastácia era
empregada na casa da família de Pedrinho e Narizinho, netos de Dona Benta. A construção da
personagem se refere a uma serviçal amável, maternal, de pouca capacidade intelectual,
ingênua, pronta à servidão incansável e que, acima de tudo, jamais se ofende com quaisquer
circunstâncias ou faltas de decoro às quais poderia vir a ser exposta. No livro As Caçadas de
Pedrinho, o uso das terminologias “preta” e “sinhá” são recorrentes, dano conta da definição
45
DAVIS, Angela Y.. Mulheres, Raça e Classe. Nova York: Boitempo, 1981, p. 114. Tradução: Heci Regina
Candiani.
46
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 15 out. 2019.
30
clara entre quem servia e quem era servido nas relações interpessoais existentes no Sítio do
Pica-Pau Amarelo. No mesmo livro, há um trecho específico em que Tia Nastácia é comparada
a um símio:
[...] era o único jeito e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos,
trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal
agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros. 47
País de mestiços, onde o branco não tem força para organizar uma Klux Klan, é país perdido
para os altos destinos. (...). Um dia se fará justiça ao Klux Klan; tivéssemos aí uma defesa
dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa
carioca —mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor, porque a mestiçagem do
negro destrói a capacidade construtiva.50
47
LOBATO, Monteiro. As Caçadas de Pedrinho. -: Lebooks Editora, 2019, p. 54Disponível em:
<https://pt.scribd.com/book/405826824/Cacadas-de-Pedrinho-Hans-Staden>. Acesso em: 01 nov. 2019.
48
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho: Lebooks Editora, 2019, p. 320. Disponível em:
<https://pt.scribd.com/read/405826882/Reinacoes-de-Narizinho>. Acesso em: 01 nov. 2019.
49
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. 32. ed. São Paulo: Brasiliense, 2002. Disponível em:
<http://www.miniweb.com.br/cantinho/infantil/38/estorias_miniweb/lobato/historias_de_tia_nastacia.pdf>.
Acesso em: 09 nov. 2019.
50
REGINALDO, Lucilene. Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor, afirma
historiadora.: Autora revisita polêmica sobre racismo do escritor, cuja obra entra em domínio público.. 2019.
31
[...] O homem da vida quer apagar tantas nuvens e afirma ríspido que não trata-se de
nada disso: a profissão dela se resume a ensinar primeiros passos, a abrir olhos, de
modo a prevenir os inexperientes da cilada das mãos rapaces. E evitar as doenças, que
tanto infelicitam o casal futuro. Profilaxia. Aqui o homem do sonho corcoveia, se
revolta contra a aspereza do bom senso e berra: profilaxia, não! Mas porém deverá
parolar, quando mais chegadinho o convívio, sobre essas “meretrizes” que chupam o
sangue do corpo sadio. O sangue deve ser puro. Vejam por exemplo a Alemanha, que-
dê raça mais forte? Nenhuma. E justamente porque mais forte e indestrutível neles o
conceito da família. Os filhos nascem robustos as mulheres são grandes e claras. São
fecundas. O nobre destino do homem é se conservar sadio e procurar esposa
prodigiosamente sadia. De raça superior, como ela, Fräulein. Os negros são de raça
inferior. Os índios também. Os portugueses também. Mas esta última verdade
Fräulein não fala aos alunos. Foi decreto lido a vez em que um trabalho de Reimer lhe
passou pelas mãos: afirmava a inferioridade dos latinos. Legítima verdade, pois quem
é Reimer? Reimer é um grande sábio alemão. Os portugueses fazem parte duma
raça inferior. E então os Brasileiros misturados? Também isso Fräulein não podia
falar. Por adaptação. Só quando entre amigos de segredo, e alemães. Porém os índios,
os negros quem negará sejam raças inferiores?51
no sentindo de manter a higiene das possíveis relações sexuais do filho mais velho da família
Sousa Costa. De outra banda, Tia Nastácia permanece na figura de uma serviçal dócil,
desprovida de personalidade ou história próprias, existindo unicamente para o bel-prazer da
família residente no Sítio do Pica-Pau Amarelo.
A propriedade real, assim como a intelectual ou moral, tem pois a sua origem na
natureza, e é sagrada, porque, como já dissemos, é o fruto dos esforços, fadigas e
sacrifícios do homem, do suor de seu rosto, é o pão de sua família. [...] O fruto lhe
52
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 15 out. 2019.
53
SOUZA, Duda Porto de; CARARO, Aryane. Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil. S.i:
Seguinte; Companhia das Letras, 2017, p. 108.
54
CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. São Paulo: Paco Editorial,
2018, p. 136.
34
Como bem se verifica, transpondo tal verso à realidade fática brasileira, a meritocracia
evocada se dá no sentido de que possuir a liberdade de uma pessoa escravizada era fruto do
esforço daquele que a subjugou; jamais uma infeliz sucessão de episódios de genocídio, tráfico
humano e apagamento sistemático de memória da população sequestrada do continente
africano.
No decorrer dos anos, com o advento da abolição e ascensão das formas livres de
trabalho, emergiria, em todo o país, a questão de controle sobre a mobilidade de mulheres
libertas – estas agentes do trabalho livre doméstico e dos serviços pessoais prestados à elite
brasileira (seja ela de berço, seja ela como uma emergente burguesia)56. Eis que os fatores raça
e classe encontraram um terceiro elemento, determinante à estrutura opressiva e imobilizante
da sociedade brasileira: o gênero.
55
CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. São Paulo: Paco Editorial,
2018, p. 136 apud Bueno, José Antônio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do
Império. Brasília: Senado Federal, 1978, p. 421.
56
TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre Sobrados: Mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo
(1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013, p. 65-66.
35
A evolução dos debates sobre machismo no Brasil ocorreu de formas diferentes para
mulheres negras e brancas58. Quando se é trabalhada a questão de estruturação de opressão
patriarcal, evocam-se diversos questionamentos e pré-questionamentos quando ao papel da
mulher na sociedade – eis que os debates feministas desenvolveram-se de formas
completamente diferentes em suas respectivas condições de tempo e espaço. Cada uma das
peculiaridades e especificidades abordadas por cada grupo social dentro da homogeneidade do
gênero feminino demonstraram que, claramente, não há homogeneidade alguma; inclusive, tal
premissa é diametralmente oposta à realidade. Mulheres brancas possuem uma notória
vantagem social sobre mulheres negras e de outras minorias étnicas, pois o privilégio branco
diz respeito ao fato de que, se avaliada apenas a aparência, em um país colonizado por brancos
exercendo dominação sobre negros escravizados, a sua posição social pode ser definida pela
cor da pele59.
Não raro nos deparamos com as concepções do sufrágio universal como o alicerce
indispensável à libertação feminina e sendo o precursor da luta por igualdade de gênero na
História. Tal ideal, importado do movimento sufragista britânico e amplamente difundido nos
países de colonização europeia, ganhou popularidade – contudo, majoritariamente, as
idealizadoras dos movimentos pela libertação feminina sequer conheciam a realidade cruel e
desumana da esmagadora parcela da população feminina. Enquanto esposas de aristocratas e
membros do parlamento britânico discursavam em praças e em fábricas durante o período
vitoriano, mulheres proletárias, conduzidas pelo ideário de que o direito ao voto seria o arauto
de esperança para a conquista de direitos sociais e políticos – bem como a dignidade do existir
socialmente de forma ampla – desbravaram as ruas da capital inglesa portando cartazes com
frases de ordem e exigindo o direito ao voto.
57
EMICIDA. Ismália. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000
58
KAHLO, Coletivo Não Me et al (Org.). #MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes.. Rio de Janeiro:
Edições de Janeiro, 2016, p. 36. Elaborado por: Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e
Thaysa Malaquias..
59
Ibid., p. 53.
36
Entretanto, há uma diferença assombrosa entre esses dois grupos sociais: se por um
lado as mulheres abastadas podiam refugiar-se em seus lares quando fosse conveniente após
manifestações públicas em repúdio à discriminação de gênero, mulheres que compunham o
operariado estavam sujeitas à violência da polícia que, em represália às movimentações
feministas que tomaram as ruas da capital inglesa, agrediu, levou sob custódia e, inclusive, nas
situações mais extremas, subjugou essas mulheres a violências sexuais. De certa forma, era
cômodo para uma mulher da alta sociedade sentir-se despida da feminilidade compulsória ao
romper com o decoro social do conceito de “bela, recatada e do lar”. A experiência de brandir
cartazes e bandeiras pela libertação feminina soava tentadora a estas mulheres tão socialmente
reprimidas e que experienciaram por toda uma vida a necessidade de manter-se sempre imóvel
como um objeto decorativo à direita do marido. Porém, tal posicionamento beira o fetichismo,
haja vista que a violência advinda da luta pelo voto foi totalmente direcionada às mulheres da
classe operária; estas, sim, que lutaram por um direito – mesmo que este não tenha significado,
por si, a libertação feminina.
O filme As Sufragistas60 retrata, mesmo que de forma relativamente suave, tal relação
entre mulheres operárias e a aristocracia britânica. No decorrer da película nos deparamos com
o abismo de diferença de classe entre as mulheres vitimadas pela truculência da polícia de
Londres e as damas da aristocracia. Se, de um lado, estavam mulheres em condições sub-
humanas de trabalho, submetidas a cargas horárias extenuantes e absolutamente tolhidas de
educação formal, alimentação adequada e convívio familiar e social, do outro, encontramos
mulheres casadas com membros ou agregados do parlamento britânico, usufruindo das
construções sociais de feminilidade concebidas à época. O patriarcado, em que pese estar
veementemente presente na vida de ambos os grupos de mulheres, possui pesos completamente
diferentes entre estes – o diferencial está, invariavelmente, na classe. Dentro de um sistema
capitalista, em plena Segunda Revolução Industrial, não é sequer plausível cogitar que haveria
a menor hipótese de paridade entre estas mulheres – tão iguais no gênero, mas tão distintas em
suas posições sociais. Apesar do louvável trabalho de algumas figuras da burguesia emergente
que, de fato, se uniram às mulheres operárias, o conceito do direito ao voto estava intimamente
atrelado ao sentido de status quo – uma forma de equiparação confortável e simbólica, sem
alteração significativa da ordem social.
Transponível ao tema proposto no presente artigo, a posição privilegiada de mulheres
brancas no continente americano se deu em moldes bastante semelhantes aos de suas
60
AS SUFRAGISTAS. Direção de Sarah Gavron. Roteiro: Abi Morgan. S.i.: Universal, 2015. P&B.
37
61
ALLENDE, Isabel. A Casa dos Espíritos. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988: p. 86. Tradução: Carlos
Martins Pereira.
62
Author, lecturer, and chief philosopher of the woman’s rights and suffrage movements, Elizabeth Cady Stanton
formulated the agenda for woman’s rights that guided the struggle well into the 20 th century. (1815-1902). Fonte:
38
Tal carta demonstra o indiscutível racismo nada velado de Staton; inclusive, escancara
que, assim como do outro lado do Atlântico mulheres da aristocracia não possuíam qualquer
empatia sincera para com suas irmãs operárias, líderes sufragistas norte-americanas de prestígio
apresentaram posturas extremamente racistas. O texto revela outro ponto curioso a respeito do
racismo culturalista: a síndrome de salvador branco. Tal síndrome social se reporta ao
compadecimento cristão com a causa negra, ilustrado pela afirmativa em tom condescendente
de que, se não fosse pela nobre iniciativa de mulheres brancas, a escravidão jamais teria findado.
Staton revelou sua verdadeira posição quanto à questão racial no Estados Unidos ao afirmar
categoricamente que é preferível ser escrava de um homem branco bem instruído do que de um
infame negro ignorante, inclusive se valendo da falácia de que um homem negro se encontrava
em lugar politicamente superior ao de uma mulher branca instruída – em absolutamente
nenhuma circunstância uma pessoa recém-liberta do sistema escravista estaria em situação de
superioridade em relação às mulheres brancas norte-americanas.
Tais posicionamentos da sufragista (os quais, por consequência, representam um
pensamento recorrente entre várias mulheres ligadas ao movimento sufragista norte-americano)
ensejam o seguinte questionamento: se o voto de um homem negro causava tamanho
desconforto, eis que, na lógica destas mulheres, o voto simbolizada o mais alto patamar de
liberdade e emancipação política, qual seria a reação desse grupo no caso de as mulheres negras
recém-libertas possuírem outras alternativas econômicas que as liberassem da servidão
doméstica? Como dito anteriormente, em análise ao contexto histórico de todo o Continente
Americano, é possível partir da premissa de que a emancipação da mulher branca se deu às
custas de mulheres negras e de outras minorias étnicas que permaneceram em suas funções
domésticas em lares brancos.
No Brasil, o direto ao voto foi assegurado apenas com a ascensão de Getúlio Vargas
na década de 1930; contudo, houve ressalvas. O direito ao voto se limitada às mulheres cujos
maridos autorizassem tal direito, mulheres viúvas e solteiras que provessem o próprio sustento
de forma totalmente autônoma. Ou seja, em linhas gerais, haviam restrições significativas
quanto às possibilidades de acesso aos pleitos populares. Em se tratando da primeira metade do
séc. XX, bem se compreende que essas mulheres relativamente autônomas se encontravam
numa camada privilegiada da sociedade. As restrições apenas cessaram após 1934, com a
Constituição Federal64, a qual assegurou o direito ao sufrágio universal, e o sufrágio só se tornou
obrigatório para ambos os gêneros em 1946.
Contudo, os esforços para o alcance de tal direito começaram muito antes, no ano de
1891, quando 31 constituintes assinaram uma emenda ao projeto da Constituição conferindo
direito de voto à mulher65. A emenda foi sumariamente rejeitada; tal como foi rejeitada por
séculos em todo o mundo. Não foram poucas as sufragistas que marcaram época no Brasil:
Nísia Floresta, Amélia Rodrigues, Maria Amélia de Queiróz e Maria Tomásia Figueira de Melo.
Inclusive, tanto Maria Tomásia quanto Nísia Floresta eram partidárias do movimento
abolicionista brasileiro.
As mudanças ocorridas após a Proclamação da República, em 1889 (um ano após a
abolição da escravidão), abriram as portas para a criação de redutos de resistência feminina e
luta pelo direito ao voto. O Partido Republicano Feminino, fundado no ano de 1910, tinha por
64
BRASIL. Constituição (1934). Constituição Federal nº 09, de 16 de julho de 1934. Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil: Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus,
reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a
unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte:. Rio de
Janeiro, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 09
out. 2019.
65
TOSI, Marcela. A CONQUISTA DO DIREITO AO VOTO FEMININO.: Há pouco mais de 80 anos,
mulheres ainda não tinham direito ao voto no Brasil. 2016. Disponível em:
<https://www.politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/>. Acesso em: 29 set. 2019.
40
66
RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014, p. 19. (Retratos de Um
Brasil Negro). Obra que versa sobre a trajetória de vida, a produção intelectual e o ativismo político de uma das
maiores lideranças do movimento negro brasileiro do século XX. Através da biografia de Gonzalez, os autores
deixam entrever o processo de abertura democrática, revelando ainda a construção de identidade coletiva de
segmentos excluídos da política nacional, notadamente os negros e as mulheres. Esta obra faz parte da Coleção
Retratos do Brasil Negro, coordenada por Vera Lúcia Benedito, mestre e doutora em Sociologia/Estudos Urbanos
pela Michigan State University (EUA) e pesquisadora e consultora da Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo. O objetivo da Coleção é abordar a vida e a obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da
militância negra..
41
A condição de trabalho doméstico da mulher negra não foi extinta juntamente com a
escravidão. Entre as fazendas senhoriais até as burguesias emergentes dos centros urbanos a
circunstância de permanecer com uma serviçal integralmente disponível aos caprichos
domésticos da família permaneceu intacta. Conforme ponderou Angela Davis:
Aos olhos dos ex-proprietários de escravos, “serviço doméstico” devia ser uma
expressão polida para uma ocupação vil que não estava a nem um passo de distância
da escravidão. Enquanto mulheres negras trabalhavam como cozinheiras, babás,
camareiras e domésticas de todo o tipo, mulheres brancas [...] rejeitavam
unanimemente trabalhos dessa natureza. 70
Mesmo antes do advento da abolição da escravidão, os serviços de locação de escravas
domésticas já eram oferecidos por senhores detentores de escravos. Na obra Libertas Entre
Sobrados, da historiadora Lorena Féres da Silva Telles, constam diversos registros
historiográficos quanto ao aluguel de mulheres escravizadas, a fim de que estas prestassem
67
ROCHA, Maria Isabel Baltar da (Org.). Trabalho e Gênero: Mudanças, Permanências e Desafios. São Paulo:
Editora 34, 2000, p. 298. Texto de Maria Aparecida da Silva Bento.
68
CALDWELL, Kia Lilly. Fronteiras da diferença: raça e mulher no Brasil. Revista Estudos Feministas, vol.
8, nº 2, 2º sem, 2002, p. 92-93.
69
EMICIDA. Levanta e Anda. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2013. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
70
DAVIS, Angela Y.. Mulheres, Raça e Classe. Nova York: Boitempo, 1981, p. 98. Tradução: Heci Regina
Candiani.
42
71
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 478/10, de 2010. : "Revoga o parágrafo único do art. 7º da
Constituição Federal, para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os
demais trabalhadores urbanos e rurais". Brasília, Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=367FA610595239749DE98FEDB
C4ECD87.proposicoesWebExterno2?codteor=755258&filename=Tramitacao-PEC+478/2010>. Acesso em: 10
nov. 2019.
43
força em tais circunstâncias; assim como suas filhas e netas. Uma forma de controle social, em
linhas gerais.
Essas mulheres, “como se fossem da família”, foram agraciadas com um local próprio
para seus raros momentos de repouso: o quarto de empregada. Locais pequenos, apertados, com
pouca ou nenhuma ventilação, mobiliado com móveis de segunda mão, sob a premissa de
oferecer “conforto” pelos serviços prestados com tanta dedicação.
Além de realizar um trabalho com pouca ou sem nenhuma remuneração além de vestes
velhas e alimentação precária, as mulheres trabalhadoras domésticas também eram
submetidas com muita frequência a abusos físicos, morais e sexuais. Como não havia
leis para regulamentar este tipo de trabalho, as poucas mulheres que denunciavam
violência eram silenciadas.72
Os salários eram extremamente precários (realidade ainda recorrente nos dias atuais),
sinalizando um valor muito mais simbólico do que efetivamente uma forma de pagamento por
prestação de serviços. Essa insipiência salarial não permitia a ascensão econômica do grupo,
eis que sequer provia sustento próprio e condições de arcar com uma moradia digna – e própria.
Estas criadas envelheciam sem nunca terem tido condição para manter uma poupança
ou outra forma de economia financeira que lhes assegurasse uma velhice com
condições mínimas de sustento, terminando em asilos ou abandonadas na rua. Esta
situação as mantinha em miséria, permitindo a manutenção da pobreza daquela
população.73
72
MOURA, Gabriela. Mulher negra — empregada doméstica: origem escravista e manutenção de castas
sociais.: Texto originalmente escrito em 2015 e publicado em um antigo blog, como parte de uma pesquisa.. 2019.
Disponível em: <https://medium.com/@metaforica_gabi/mulher-negra-empregada-dom%C3%A9stica-origem-
escravista-e-manuten%C3%A7%C3%A3o-de-castas-sociais-9e247bdf7728>. Acesso em: 01 out. 2019.
73
Idem item anterior.
74
EMICIDA. Ooorra. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2009. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
44
negras ao trabalho doméstico possui um forte impacto social. Lélia Gonzales (1935-1994),
socióloga brasileira de grande prestígio nacional e internacional, versou, em suas memórias,
que na infância foi condicionada ao trabalho doméstico como forma de complementar o
sustendo familiar. Tal ocupação era bastante comum à época em que Lélia era apenas uma
criança impúbere, na década de 1940.
Quando criança eu fui babá de filhinho de madame, você sabe que criança negra
começa a trabalhar muito cedo. Teve um diretor do Flamengo que queria que eu fosse
pra casa dele ser uma empregadinha, daquelas que viram cria da casa. Eu reagi muito
contra isso e então o pessoal terminou me trazendo de volta pra casa... (Em entrevista
concedida ao jornal O Pasquim, em 1986)75
75
RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014, p. 27. (Retratos de Um
Brasil Negro). Obra que versa sobre a trajetória de vida, a produção intelectual e o ativismo político de uma das
maiores lideranças do movimento negro brasileiro do século XX. Através da biografia de Gonzalez, os autores
deixam entrever o processo de abertura democrática, revelando ainda a construção de identidade coletiva de
segmentos excluídos da política nacional, notadamente os negros e as mulheres. Esta obra faz parte da Coleção
Retratos do Brasil Negro, coordenada por Vera Lúcia Benedito, mestre e doutora em Sociologia/Estudos Urbanos
pela Michigan State University (EUA) e pesquisadora e consultora da Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo. O objetivo da Coleção é abordar a vida e a obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da
militância negra..
76
Ibid.. p. 298.
45
15,3% da mão de obra feminina total do país – número esse que corresponde a
aproximadamente 7 milhões de brasileiras, sendo a grande maioria mulheres negras. Também
à época, 73,8% não possuíam carteira profissional devidamente registrada, o que incidia numa
desvalorização de 30% no valor do salário em relação às trabalhadoras formais. No que
concerne exclusivamente às mulheres negras, 59% dessa população estava inserida no mercado
de trabalho informal, recebendo apenas 67,4% do salário mínimo – o que, em 2011
correspondia a R$367,33 (vez que o salário mínimo brasileiro alcançava a monta de
R$545,00)77.
Uma pesquisa realizada em 2014, pelo Ministério do Trabalho e da Previdência e pelo
IPEA mapeou essa categoria no país78. A Nota Técnica Mulheres e trabalho: breve análise do
período 2004-201479 apresentou um panorama quanto à participação de mulheres no mercado
de trabalho, bem como quais os ofícios mais comuns entre o gênero feminino e suas respectivas
remunerações, além dos recortes de raça e faixa econômica. O texto, elaborado pelos
pesquisadores do Ipea Luana Simões Pinheiro, Antonio Teixeira Lima Junior e Natália de
Oliveira, da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc), e de Rosane da Silva, do Núcleo
de Gênero do Gabinete do Ministro do Trabalho e Previdência Social, analisou dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2014, do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Em que pese o aumento de renda entre o lapso temporal
analisado, as mulheres negras permanecem recebendo salários muito inferiores aos homens
brancos (R$ 946 contra R$ 2.393, em 2014). Conforme a pesquisa, o trabalho doméstico no
Brasil no ano de 2014 correspondia a 14% da população feminina brasileira, aproximadamente
5,9 milhões de mulheres, sendo estas majoritariamente mulheres negras.
As realidades dessas mulheres não se resumem em estatísticas: filmes, livros e séries
de reportagens deram espaço para que as narrativas dessas mulheres fossem contadas. No livro
Holocausto Brasileiro, escrito pela jornalista Daniela Arbex, são narradas diversas situações de
77
Dados extraídos da obra Libertas Entre Sobrados. TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre
Sobrados: Mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013, p. 22-
23.
78
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Estudo detalha avanços femininos no mercado de
trabalho.: Nota Técnica do Ipea aponta evolução, mas a realidade das mulheres negras continua muito distante
daquela de outros segmentos.. 2016. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=27349>. Acesso em: 05 nov.
2019.
79
IPEA - Insituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014.
2014. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160309_nt_24_mulher_trabalho_marco_2016.
pdf>. Acesso em: 05 nov. 2019.
46
violações aos direitos humanos contra internos, funcionários os agregados do Hospital Colônia,
antigo manicômio localizado em Barbacena, no Estado de Minas Gerais. Geralda Siqueira
Santiago foi estuprada aos quatorze anos e levada para a Colônia grávida, tendo seu filho tirado
de si sem maiores explicações80. Nascida no interior do Vale do Rio Doce no ano de 1949,
perdeu os pais ainda na infância, sendo criada por vizinhos na ausência de outros familiares.
Aos 11 anos, ainda analfabeta, foi levada para trabalhar numa casa de família na cidade de
Virginópolis. Na casa, era explorada, sendo incutida das tarefas domésticas como cozinhar,
limpar a casa e lavar as roupas. Morava no quarto dos fundos da residência. Quando contava
com 14 anos de idade, foi estuprada pelo patrão, famoso advogado à época. Ao tentar pedir
ajuda para os membros da família empregadora, foi zombada pelo pedido, sob o argumento de
que “homem era assim mesmo”. Em outra oportunidade, foi novamente estuprada pelo patrão
– só que, desta vez, acabou engravidando. Assim que a gestação foi descoberta, a família tratou
de consumir com Geralda – enviando a adolescente ao Hospital Colônia. Lá foi submetia ao
eletrochoque e colocada para trabalhar compulsoriamente no berçário da instituição. Em
outubro de 1966, deu a luz ao filho, João Bosco, com o qual só se reencontrou em 2011, fruto
do esforço de amigos e colegas de trabalho do filho, que prepararam o reencontro. Foi
conduzida à força para fora do Hospital, sendo obrigada a deixar o filho na instituição até estar
financeiramente apta para reaver sua guarda. Durante o pouco período em que Geralda
acompanhou a infância de João Bosco, Geralda reuniu economias trabalhando como empregada
doméstica, a fim de conseguir retirar o filho do Colônia. Porém, um dia, compareceu para as
visitas semanais e não encontrou o filho – foi retirado da instituição e levado ao Patronato Padre
Cunha. O trabalho compulsório e a falta de amparo de Geralda, menina negra, órfã e de baixa
renda resultou em 45 anos longe do filho. Felizmente, pelo menos essa história, terminou com
um final feliz.
No cinema, não são poucos os filmes que tratam da temática do trabalho doméstico. O
filme Que horas ela volta?81, estrelado por Regina Casé, conta a história de Val, mulher
retirante do nordeste do país, se muda para a capital paulista, a fim de trabalhar como doméstica
em casa de família para prover sustento para a filha, Jéssica, que permaneceu residindo em
Pernambuco. Atuando como empregada doméstica e babá na casa dos patrões Bárbara e José
80
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro: Genocídio: 60 mil, mortos no maior hospício do Brasil.. 21. ed. São
Paulo: Geração, 2013, p. 145-165.
81
Que horas ela volta?. Direção de Anna Muylaert. Produção de Fabiano Gullane, Caio Gullane, Débora Ivanov
e Anna Muylaert.. Intérpretes: Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Michel Joelsas e Lourenço Maturelli..
Roteiro: Anna Muylaert. Rio de Janeiro: África Filmes, Globo Filmes., 2015. (114 min.), son., color.
47
Carlos, sendo responsável pela criação do filho do casal, Fabinho, Val só retornou a ver a filha
mais de dez anos depois de sua partida, quando Jéssica vai para São Paulo para prestar vestibular
para Arquitetura. A chegada da jovem causa desconfortos e reviravoltas na família;
primeiramente, por Jéssica não ser concorde com a situação da mãe – trabalhadora em tempo
integral, sem casa própria, residindo num quarto minúsculo aos fundos da casa da abastada
família residente do Morumbi. A patroa, Bárbara, demonstra extremo desconforto com a
presença da jovem, vez que Jéssica “não sabe qual o seu lugar” na vida da família. O patrão,
José Carlos, assedia Jéssica em mais de uma oportunidade, inclusive pedindo-a em casamento.
A película Que horas ela volta?, de direção, roteiro e produção e Anna Muylert, peca
em alguns aspectos. Primeiramente, pelas situações relativamente caricatas às quais todos os
personagens estão inseridos – principalmente Bárbara, a patroa visivelmente arrogante e que
não se conforma com a ideia de a “filha da empregada” não apresentar comportamento servil e
obediente. O desconforto inicial ao expectador se torna um conforto, pois nenhum patrão se
reconhece em Bárbara; sequer se reconhece em José Carlos, em suas atitudes de assédio sexual
em tom velado e sob uma ótima “apaixonada” por Jéssica. Outro ponto a ser observado é que a
questão racial é deixada à parte; porém, se tratam de duas mulheres nordestinas, população
notoriamente vitimada por xenofobia por parte de pessoas do sul e do sudeste do Brasil. Em
que pesem os aspectos negativos, o filme mostra graficamente algumas das micro violências do
cotidiano de uma empregada doméstica: o papel de mãe interina do filho dos patrões, a ausência
de independência econômica, a indiferença dos patrões para com a sua individualidade e a
insatisfação com qualquer situação que minimamente possa resultar em uma quebra do status
quo.
No ano de 2015, o programa jornalístico produzido pela Rede Globo de Televisão
Profissão Repórter82 fez um episódio sobre as dificuldades das empregadas domésticas no
Brasil e os reflexos da promulgação da Lei Complementar 150, que conferiu direitos
trabalhistas plenos à categoria. Em três partes no YouTube, a reportagem conduzida pelo
jornalista Caco Barcelos dá conta do cotidiano real de domésticas no país. Um caso, em
específico, chama a atenção: uma empresária paulista que procura não uma, mas duas
empregadas domésticas em turno integral, para dividirem um quarto nos fundos do
apartamento, guarnecido por duas camas de solteiro e uma janela basculante. Quando
82
PROFISSÃO Repórter.. Direção de Ali Kamel, Silvia Faria. Produção de Apresentação: Caco Barcellos. Rio de
Janeiro: Rede Globo de Televisão., 2015. Son., color. Série Série de Reportagens: Domésticas.. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ejTq8ln1N2c, https://www.youtube.com/watch?v=bH8brgDWg6c e
https://www.youtube.com/watch?v=GJb6pdXADsU>. Acesso em: 01 out. 2019.
48
83
EMICIDA. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000. Acesso em 30 out. 2019.
84
SILVEIRA, Geane José da; MOURA, Gizelson Monteiro de. Os Direitos do Empregado Doméstico Após a
Emenda Constitucional nº 72. Joinville: Edição dos Autores, 2012. Disponível em:
<https://pt.scribd.com/read/421408860/Os-Direitos-Do-Empregado-Domestico-Apos-A-Emenda-Constitucional-
N%C2%BA-72>. Acesso em: 22 ago. 2019.
50
ao ensino. O baixo grau de escolaridade por conta da necessidade de trabalho desde a infância
e até mesmo de analfabetismo fez e, infelizmente, ainda faz parte da realidade de muitas
mulheres afro-brasileiras – mister salientar que, gradualmente, essa realidade está mudando a
passos lentos. Contudo, não foi a falta de educação formal que cerceou a vontade e a
determinação dessa população na busca por seus direitos. Afinal, a benevolência da raça branca
nunca existiu como elemento histórico, apenas no imaginário coletivo branco – assim, a luta se
deu entre elas e, principalmente, por elas.
85
EMICIDA. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000. Acesso em 30 out. 2019.
86
SOUZA, Duda Porto de; CARARO, Aryane. Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil. S.i:
Seguinte; Companhia das Letras, 2017, p. 108.
51
5.2. “CUIDADO, NÃO VOA TÃO PERTO DO SOL, ELES NÃO AGUENTA TE VER
LIVRE.”89 – O LENTO PERCURSO JURÍDICO PELA REGULAMENTAÇÃO DO
TRABALHO DOMÉSTICO.
87
CANAL FUTURA. Laudelina de Campos Melo: Ativista sindical e trabalhadora doméstica. Sua trajetória foi
marcada pela luta contra o preconceito racial, subvalorização das mulheres e exploração da classe trabalhadora.
Combateu a discriminação da sociedade em relação às empregadas domésticas, exigindo melhor remuneração e
igualdade de direitos sociais. Sua atuação permitiu a regulamentação do emprego doméstico como fundadora do
Sindicato das empregadas domésticas.. A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-
brasileira, fruto de uma parceria entre o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan - Centro de Informação e Documentação
do Artista Negro, o MEC, a Fundação Palmares, a TV Globo e a Seppir - Secretaria de políticas de promoção da
igualdade racial. O projeto teve seu início em 2004 e, desde então, tem realizado produtos audiovisuais, ações
culturais e coletivas que visam práticas positivas, valorizando a história deste segmento sob um ponto de vista
afirmativo.. Disponível em: <http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/laudelina>. Acesso em: 09 nov. 2019.
88
Idem item anterior.
89
EMICIDA. Ismália. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000
52
os acalorados debates sobre sindicalização e direitos dos trabalhadores, houve um decreto que
dispôs sobre a locação dos empregados em serviço doméstico.
No ano de 1941, na então sede do Governo Federal, no Rio de Janeiro, Getúlio Vargas
assinou o Decreto Lei nº 3.078/4190. Com o advento deste Decreto Lei a carteira profissional
devidamente registrada passou a ser um direito e, também, uma obrigação do empregado
doméstico. Contudo, a abrangência do referido dispositivo legal era muito ampla, dando uma
excessiva margem ao entendimento de quem se enquadraria na condição de empregado
doméstico. No texto do Decreto Lei, constam como deveres do empregador o tratamento digno
ao empregado, a pontualidade do pagamento do salário devido e segurança quanto a questões
de higiene, habitação e alimentação. Em que pese o caráter genérico do Decreto Lei, este foi
um marco importante no progresso jurídico quanto à regularização e regulamentação formal do
trabalho doméstico.
Quando da promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas91, um dos marcos
históricos mais emblemáticos de todo o período getulista, houve a regulamentação da
manifestação dos interesses coletivos dos trabalhadores; com o fim de organizar a classe
trabalhadora dentro da norma estatal. Contudo, a Consolidação cometeu um erro crasso: a
exclusão sumária da categoria dos empregados domésticos. Tal omissão é um reflexo da
sociedade quarentista: arcaica e mergulhada em discriminação racial e de classe. O Art. 7º da
CLT original excluía categoricamente a classe, deixando a categoria à margem da
regulamentação formal.
Apenas no ano de 1972, com a instituição da Lei nº 5.85992 a situação do empregado
doméstico no âmbito jurídico trabalhista começou a ganhar contornos mais bem definidos e
seguridade. O referido dispositivo classifica o empregado doméstico como "aquele que presta
serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito
residencial destas.". Assim como no Decreto Lei de 1941, a Lei nº 5.859/72 exigia a
apresentação de carteira de trabalho e previdência social, atestado de boa conduta e atestado de
90
BRASIL. Decreto Lei nº 3078, de 27 de fevereiro de 1941. Decreto-lei Nº 3.078: Dispõe sobre a lotação dos
empregados em serviço doméstico.. Rio de Janeiro, Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3078-27-fevereiro-1941-413020-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 09 nov. 2019.
91
BRASIL. Decreto Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do
Trabalho.. Consolidação das Leis do Trabalho.. Rio de Janeiro, Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 09 nov. 2019.
92
BRASIL. Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972. Dispõe sobre a profissão de empregado doméstico e dá
outras providências.. . Brasília, Revogada pela Lei Complementar nº 150.. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5859.htm>. Acesso em: 09 nov. 2019.
53
93
BRASIL. Constituição (1934). Constituição Federal nº 09, de 16 de julho de 1934. Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil: Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus,
reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a
unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte:. Rio de
Janeiro, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 10
nov. 2019.
54
94
DAVIS, Angela Y.. Mulheres, Raça e Classe. Nova York: Boitempo, 1981, p. 239. Tradução: Heci Regina
Candiani.
95
EMICIDA. Levanta e Anda. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2013. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
55
96
SILVEIRA, Geane José da; MOURA, Gizelson Monteiro de. Os Direitos do Empregado Doméstico Após a
Emenda Constitucional nº 72. Joinville: Edição dos Autores, 2012. Disponível em:
<https://pt.scribd.com/read/421408860/Os-Direitos-Do-Empregado-Domestico-Apos-A-Emenda-Constitucional-
N%C2%BA-72>. Acesso em: 22 ago. 2019.
97
Câmara dos Deputados. PEC 478/2010. Revoga o parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal, para
estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os demais trabalhadores urbanos
e rurais.. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=473496>. Acesso em: 10 nov.
2019.
56
98
Palavra Aberta. Dep. Jair Bolsonaro (PP-RJ) foi contra aprovação da PEC das Domésticas. Uma das poucas
vozes contrárias à aprovação da PEC das Domésticas foi a do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ). A preocupação
dele é não deixar que as domésticas fiquem na informalidade e com dificuldade de arranjar emprego. Muitas delas,
que hoje têm carteira assinada, serão reaproveitadas como diaristas. Isso acontecerá, na visão do deputado, porque
o patrão que ganha um salário entre R$ 3 mil e R$ 4 mil terá dificuldade para pagar uma funcionária com esses
novos encargos.. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/tv/401065-dep-jair-bolsonaro-pp-rj-foi-contra-
aprovacao-da-pec-das-domesticas/>. Acesso em: 10 nov. 2019.
99
BRASIL. Lei Complementar nº 150, de 1 de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico;
altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro
de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de
julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26 de
dezembro 1995; e dá outras providências.. . Brasília, Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm>. Acesso em: 11 nov. 2019.
57
tão simples e tão necessária, foi protelada por mais de um século. Milhões de mulheres ao longo
de 131 anos após a abolição da escravidão foram expostas a todos os tipos de violações de
direitos, em prol do bem-estar de famílias brancas – nesse ponto, necessariamente, reside a
importância de uma reparação histórica que perdure na História Brasileira. Se tal retardo
jurídico não possui cunho racista, o que, de fato, o possui?
Os direitos trabalhistas regulamentam relações de trabalho na sociedade. O
trabalhador, naturalmente hipossuficiente em relação ao empregador, através do Direito
Trabalhista, passa a ser juridicamente amparado em caso de desacordo com relações salutares
no ambiente laboral. Assim, gera-se a coibição de cargas-horárias abusivas, salários em
desacordo com o mínimo legal, obrigatoriedade de urbanidade e respeito mútuo entre
contratante e contratado, além de resguardar a dignidade do empregado em caso de demissão
injusta, doença ocupacional, assédio moral e até mesmo assédio sexual. Órgãos como o
Ministério Público do Trabalho e sindicatos das categorias são locais adequados para realização
de denúncias quanto ao desrespeito às normas trabalhistas – inclusive, empresas e empresários
que reiteradamente são denunciados por tais práticas podem ser punidos tanto
administrativamente, quando em caso de descumprimento de Termo de Ajuste de Conduta
firmado com a Procuradoria do Trabalho de sua respectiva região, bem como podem ser réus
em Ação Civil Pública.
Assim, finalmente, é possível afirmar que a conquista de direitos trabalhistas das
empregadas domésticas é fazer valer os fundamentos insculpidos nos incisos II e III do Artigo
1º da Constituição Federal – quais sejam: a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Somente
com o respeito a estes princípios e atendendo integralmente os Direitos e Garantias
Fundamentais da população é possível almejar um futuro com mínimas condições de equidade
– para que, um dia, seja possível a realidade de redistribuição de renda e igualdade plena (em
todas as suas nuances) entre todas as pessoas brasileiras.
58
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, frente ao acima exposto, e mais do que nunca, necessário rememorar a
importância da adesão à luta antirracista por todos aqueles que possuem empatia e
compreendem as mazelas sociais deixadas como resquícios da escravidão. Fala-se em
responsabilidade, reconhecimento de privilégios e, acima de tudo, consciência de classe e de
raça. Pois o antirracismo é o único caminho para uma sociedade igualitária.
60
REFERÊNCIAS
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Tradução: Carlos Martins Pereira.
ANDRADE, Mário de. Amar, Verbo Intransitivo: Idílio. São Paulo: Via Leitura, 2016, p. 24.
AS SUFRAGISTAS. Direção de Sarah Gavron. Roteiro: Abi Morgan. S.i.: Universal, 2015.
BRASIL. Agência do Senado. Senado Federal. Lei dos Sexagenários completa 130 anos.
2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-dos-
sexagenarios-completa-130-anos>. Acesso em: 14 out. 2019
BRASIL. Decreto Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do
Trabalho.. Consolidação das Leis do Trabalho.. Rio de Janeiro, Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 09 nov. 2019.
CALDWELL, Kia Lilly. Fronteiras da diferença: raça e mulher no Brasil. Revista Estudos
Feministas, vol. 8, nº 2, 2º sem, 2002, p. 92-93.
CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. São Paulo:
Paco Editorial, 2018.
DAVIS, Angela Y.. Mulheres, Raça e Classe. Nova York: Boitempo, 1981, p. 98. Tradução:
Heci Regina Candiani.
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 13 out. 2019.
EMICIDA. Levanta e Anda. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2013. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
63
KAHLO, Coletivo Não Me et al (Org.). #MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes.. Rio
de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016, p. 36. Elaborado por: Bruna de Lara, Bruna Rangel,
Gabriela Moura, Paola Barioni e Thaysa Malaquias..
LEI. Declara extinta a escravidão no Brasil.. A Princesa Imperial Regente, em Nome de Sua
Majestade O Imperador, O Senhor D. Pedro Ii, Faz Saber A Todos Os Súditos do Império
Que A Assembléia Geral Decretou e Ela Sancionou A Lei Seguinte:. Paço Imperial, Rio de
Janeiro, RJ, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>.
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