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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

ÁREA DO CONHECIMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

CURSO DE DIREITO

MARIANA MARTINS GOMES

DA SENZALA AO QUARTO DE EMPREGADA: UMA ANÁLISE SOCIOJURÍDICA


DA RELAÇÃO ENTRE A ESCRAVIDÃO E TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL.

Caxias do Sul
2019
MARIANA MARTINS GOMES

DA SENZALA AO QUARTO DE EMPREGADA: UMA ANÁLISE SOCIOJURÍDICA


DA RELAÇÃO ENTRE A ESCRAVIDÃO E TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL.

Trabalho de conclusão de curso apresentado no Curso


de Direito da Universidade de Caxias do Sul, como
requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em
Direito.

Orientador: Prof. João Ignacio Pires Lucas.

Caxias do Sul
2019
MARIANA MARTINS GOMES

DA SENZALA AO QUARTO DE EMPREGADA: UMA ANÁLISE SOCIOJURÍDICA


DA RELAÇÃO ENTRE A ESCRAVIDÃO E TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL.

Trabalho de conclusão de curso apresentado no Curso


de Direito da Universidade de Caxias do Sul, como
requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em
Direito.

Aprovado em: 06/12/2019

Banca examinadora:
__________________________________
Prof. Dr. João Ignacio Pires Lucas (Orientador)
Universidade de Caxias do Sul – UCS
__________________________________
Prof. Dr, Mateus Salvadori
Universidade de Caxias do Sul – UCS
__________________________________
Prof. Dra. Cleide Calgaro
Universidade de Caxias do Sul – UCS
Dedico o presente trabalho a todas as mulheres que
precisaram lutar, arduamente, por tantos e tantos
anos, para que fossem reconhecidas como cidadãs
plenas, apesar das discriminações raciais e de
gênero. Para aquelas que se permitiram falar para
além das próprias cicatrizes. Com a fúria da beleza
do sol, essa pesquisa não é sobre vocês: é para
vocês.
A luta e a resistência continuam.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, aos meus pais, Magda e Carlos Daniel, por me criarem com
senso crítico e liberdade espírito. À minha tia Marlova, por todo o apoio e carinho.

Aos amigos que a graduação em Direito me proporcionou: Lucas, Alessandra,


Carolina e, principalmente, Matheus. Vocês foram meus pontos de apoio em muitos momentos
nos últimos cinco anos – e, por isso, serei eternamente grata.

Minha graduação iniciou em fevereiro de 2015; em abril, meu pai, Carlos Daniel,
faleceu. A dor profunda e a saudade não me possibilitaram uma graduação com pleno
aproveitamento. Mas, escrevendo esse trabalho, percebi que minha vocação para o Direito
sempre esteve presente. Meu muito obrigada pelos 19 anos que pude conviver ao teu lado, pai.
E muito obrigada, mãe, pelo estreitamento de laços e por todo o amor que cresce dia após dia.
Vocês são os grandes amores da minha vida.

Agradeço ao meu namorado, Eduardo, pelo apoio incondicional desde o princípio: que
nosso relacionamento nos permita viver muitas mais alegrias. Eu amo a pessoa que sou quando
estou contigo.

Ao meu chefe, mentor e grande amigo Edemir. Não me arrependo nem por um minuto
por ter visto em ti uma figura paterna; teus puxões de orelha e teu cuidado comigo serão eternos
em minha memória – e o que aprendi contigo em quase dois anos de convivência diária me fez
perceber que calma e silêncio, às vezes, são as melhores escolhas, e que família é um sentimento
(provavelmente o mais importante de todos). Muito obrigada, por absolutamente tudo. Espero
um dia ser um terço do profissional que tu és.

Aos amigos de longa data e aos recentes relacionamentos: o tempo não será capaz de
apagar todas as memórias e alegrias que vocês me proporcionaram, além de todo o cuidado e
carinho. Amo-os, muito.

Agradeço com todo o carinho que cabe em mim ao meu querido e adorado orientador
João Ignacio; se o Internacional não foi capaz de nos enlouquecer esse ano, nada mais é.
Desculpe todos os transtornos, mas eu sei que nossa amizade é sincera (e desculpe todos os
abraços inusitados, eu tenho um sério problema com demonstrações de afeto e espaço pessoal).

Em especial, agradeço à minha melhor amiga, Bruna. Graças a ti luto diariamente para
me tornar alguém melhor. No horizonte encontro teus olhos; sei que estamos juntas.
Mas, além de tudo, agradeço a mim mesma, pela perseverança e pela força que
descobri que possuo nos últimos quatro anos. A dor de uma perda germina em coragem, e
acredito estar no caminho certo.

Pela vitória, pelo triunfo.


“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É
necessário ser antirracista”
Angela Davis.
RESUMO

Essa monografia analisou a relação entre a escravidão e o trabalho doméstico no Brasil. Através
de revisão bibliográfica e documental, o estudo propôs a reflexão entre a intersecção de raça,
classe e gênero nas relações de trabalho doméstico, remontando à escravidão, perpassando pelo
período pós-abolicionismo, até a regulamentação do trabalho doméstico como categoria formal
de trabalho após a promulgação da Lei Complementar nº 150, no ano de 2015 – 127 anos depois
da assinatura da Lei Áurea. Ao longo de quatro capítulos, foi proposta uma reflexão quanto à
cronologia de fatos históricos e institutos jurídicos que permitiram a lenta e gradativa conquista
de direitos trabalhistas, sociais e políticos das domésticas. O viés adotado é, especialmente, pela
óptica do racismo enquanto estrutura opressiva e paralisante, fortificada por estereótipos
racistas e construções moralistas quanto ao trabalho doméstico no Brasil. O esquecimento do
feminismo quanto à questão racial contribuiu para com a estagnação das lutas antirracistas, bem
como a negação da sociedade quanto à existência do racismo enquanto realidade no cotidiano
brasileiro – recorrendo, de forma reiterada, ao mito da democracia racial.
Palavras-chave: Raça. Direitos Trabalhistas. Empregada Doméstica. Escravidão.
SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO......................................................................................................................9

2. “O TEMPERO DO MAR FOI LÁGRIMA DE PRETO” – O RESPALDO LEGAL DA


ESCRAVIDÃO NO BRASIL PATRIMONIALISTA ......................................................... 13

2.1 “PORQUE A VIDA É TÃO AMARGA, NA TERRA QUE É CASA DA CANA DE


AÇÚCAR?” – O TRÁFICO, A PRODUÇÃO, O AMPARO LEGAL E A ABOLIÇÃO
......................................................................................................................................... 14

2.2 “JÁ VIU ELES CHORAR PELA COR DO ORIXÁ? ” - A INSIPIÊNCIA DAS
MOVIMENTAÇÕES DA BRANQUITUDE NO ÂMBITO JURÍDICO E AS
REITERADAS LUTAS POLÍTICAS E SOCIAIS DA POPULAÇÃO
ESCRAVIZADA.............................................................................................................17

3. “EXISTE PELE ALVA, E EXISTE PELE ALVO.” A TRANSIÇÃO DO RACISMO


FENOTÍPICO AO CULTURALISMO RACISTA........................................................................... 22

3.1 “SEJA MAIS HUMILDE, BAIXE A CABEÇA; NUNCA REVIDE, FINJA QUE
ESQUECEU A COISA TODA.” – O CONTROLE SOCIAL COM REQUINTES DE
EUGENIA SOB O VÉU DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL .................................. 24

3.2 “A DOR DOS JUDEUS CHOCA, A NOSSA GERA PIADA” – A FORÇA DA


CONSTRUÇÃO DE UM ESTEREÓTIPO RACISTA QUE SUSTENTASSE A
CONCEPÇÃO DA “NEGRA DA CASA”............................................................................26

3.3 “OS LIVROS QUE ROUBOU NOSSO PASSADO IGUAL ALZHEIMER” – A


LITERATURA BRASILEIRA COMO CORO À ESTRUTURAÇÃO DO RACISMO PÓS-
ABOLIÇÃO E A CRIAÇÃO DO MITO DA TIA
NASTÁCIA...........................................................................................................................29

4. “QUIS VIDA DIGNA; ESTIGMA, INDIGNAÇÃO. O TRABALHO LIBERTA – OU


NÃO?” – O PÓS-ABOLIÇÃO E O TRABALHO DOMÉSTICO......................................... 33

4.1 “A FELICIDADE DO BRANCO É PLENA; A FELICIDADE DO PRETO É QUASE”.


O SUFRÁGIO UNIVERSAL, O TRABALHO DOMÉSTICO COMO ATIVIDADE
REMUNERADA E A IMPORTAÇÃO DE IDEAIS DE LIBERTAÇÃO FEMININA – OS
PRIVILÉGIOS DE RAÇA E CLASSE.................................................................................35
4.2 “ERA UM CÔMODO INCÔMODO” – A LIBERDADE CONDICIONADA ENTRE
SOBRADOS..........................................................................................................................41

4.3 "AGUENTAR MADAME MANDAR E TER QUE ACATAR; AINDA OUVINDO O


BAIRRO SUSSURRAR: ‘VOCÊ SABE, MÃE SOLTEIRA É O QUE?’” – A HISTÓRIA
QUE SE REPETE MESMO APÓS 131 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO
BRASIL.................................................................................................................................43

5. “O MESMO IMPÉRIO CANALHA QUE NÃO TE LEVA SÉRIO, INTERFERE PRA TE


LEVAR À LONA; REVIDE!” – O RECONHECIMENTO DA TRABALHADORA
DOMÉSTICA NO MERCADO DE TRABALHO FORMAL E A PROMULGAÇÃO DA LEI
COMPLEMENTAR Nº 150. ............................................................................................................... 49

5.1 “PERMITA QUE EU FALE, NÃO AS MINHAS CICATRIZES” A HISTÓRIA DE


RESISTÊNCIA DE LAUDELINA DE CAMPOS MELO E O INÍCIO DO MOVIMENTO
SINDICAL DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS............................................................49

5.2 “CUIDADO, NÃO VOA TÃO PERTO DO SOL, ELES NÃO AGUENTA TE VER
LIVRE. ” – O LENTO PERCURSO JURÍDICO PELA REGULAMENTAÇÃO DO
TRABALHO DOMÉSTICO.................................................................................................50

5.3 “É UM NOVO TEMPO, MOMENTO PRO NOVO AO SABOR DO VENTO” –


EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 72 E LEI COMPLEMENTAR Nº 150: O IMPACTO
NA VIDA DAS DOMÉSTICAS BRASILEIRAS.................................................................51

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................................58

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................................59
9

1. INTRODUÇÃO

A presente monografia adota por norte o estudo das relações de raça, gênero, classe e
trabalho no ordenamento jurídico brasileiro. Através de revisão bibliográfica e análise
documental, o trabalho propõe os seguintes questionamentos: quem são as mulheres que
permaneceram nas residências familiares, atreladas aos afazeres domésticos e à criação de
crianças (que não foram geradas dentro de si), e que permitiram a emancipação e o
empoderamento político e econômico de tantas outras? E qual a relação entre o fato de que as
responsáveis pelos bastidores da vida política serem majoritariamente negras e, de forma
diametralmente oposta, as protagonistas e garotas-propaganda do movimento feminista dos
séculos XIX e XX serem brancas?
A metodologia aplicada foi a revisão bibliográfica e documental, analisando sob o viés
sociológico as relações de poder dentro da construção do trabalho doméstico desde o período
escravista até, finalmente, a promulgação da Lei Complementar 150; esmiuçando alguns dos
muitos institutos jurídicos que permearam esse longo trajeto.
As diversas facetas sociais, culturais, políticas e jurídicas que permeiam a realidade
das relações de raça, classe e gênero no mundo do trabalho brasileiro produzem mais
questionamentos do que, por si só, apontam soluções. Ademais, analisar toda a construção do
sujeito empregada doméstica em um país que foi, por quase 400 anos, assolado pelo repulsivo
comércio de corpos humanos sequestrados do continente africano e construído através da mão
de obra escrava, não é uma tarefa simples. Sequer é possível suscitar a mera hipótese de que
uma monografia possa aglutinar e sintetizar os 131 anos de emancipação negra que se
sucederam após a abolição da escravatura. A pretensão aqui apresentada é clara: fomentar o
estudo, gerar desconforto na hegemonia branca, analisar a trajetória jurídica dos institutos legais
entre o pré pós-abolição até a promulgação da Lei Complementar 150; e, acima de tudo, exaltar
e narrar de forma acadêmica a trajetória de mulher negras ao longo de todo esse período
histórico. Propõe-se, principalmente, fugir do método de análise laboratorial; mulheres negras
e a luta antirracista aqui presentes são pessoas e fatos, não objetos de estudo inanimados e sem
personalidade e trajetórias próprias. O trabalho se atém à história e à realidade. O respeito por
todo esse trajeto é a necessidade primordial para que não se recaia em paternalismo racista ou
em uma análise etnocêntrica. Contradições não são bem vindas quando se analisam quase
quatrocentos anos de prejuízo à toda uma população.
O presente é – e sempre será – o resultado de sucessivas reiterações de padrões de
comportamento e condições históricas. A condição do espaço-tempo propicia um ambiente
10

fértil para que certos comparativos sejam tomados por anacronismos. Contudo, cabe salientar
que entre o preto e o branco existem, pelo menos, cinquenta tons de cinza. O véu do racismo
cordial se consagra na medida em que o Brasil permanece preso ao mito da democracia racial;
a miscigenação como justificativa para que o racismo (e toda a sua estrutura solidamente
construída) seja visto como um fantasma longínquo, enterrado na soleira de alguma senzala.
Tal compreensão se torna confortável; a branquitute se vê plenamente amparada para
permanecer como mantenedora do status quo e detendo todo o aparato da ordem social, política
e econômica.
Não há anacronismo algum no paralelo entre o quarto de empregada e a senzala; a
supressão arquitetônica desta última foi o fato gerador do quarto de despejo (com uma cama de
solteiro de qualidade baixa e uma janela basculante). A concepção da condição servil de outrem,
que seja responsável pelos afazeres domésticos, preparo de alimentos e cuidado para com os
filhos, remonta ao patrimonialismo brasileiro. A ordem social que implica em racionalizar e
normatizar comportamentos de relação entre patrão e servo foi milimetricamente calculada no
decorrer dos séculos.
Resquícios de uma abolição feita às pressas em função de pressões econômicas
externas não simplesmente ecoam através de mais de um século; se solidificam, criam raízes e
guarnecem uma segregação social salvaguardada pelo genocídio, excludente trabalhista e
higienismo urbano, levando a maior parcela da população negra brasileira aos limiares da
marginalidade – o fator gênero, por sua vez, relega à mulher negra americana a situação social
de maior vulnerabilidade. A estruturação da concepção de trabalho doméstico no Brasil remonta
ao período pós-abolição da escravatura e pré-republicano. As chamadas negras da casa, assim
pejorativamente denominadas durante o período escravagista brasileiro, foram realocadas para
outro papel com o transcurso de quase três quinquênios pós-abolição: o quarto de empregada.
Locais sufocantes, com janelas de basculante, pouca ventilação e com o convite
financeiramente irrecusável de “dormir no trabalho”, milhares de mulheres se submetem, em
pleno 2019, às condições análogas à escravidão, a fim de prover sustento aos filhos e assumir
a dignidade de um trabalho remunerado. Enquanto isso, as patroas se deslocam aos seus locais
de trabalho; muitas vezes são estes: escritórios, consultórios médicos ou clínicas odontológicas.
Para que muitas mulheres brancas pudessem ir às ruas, pôr-se em frenesi e esbravejar
contra o patriarcado que as oprime, alguém precisou resguardar os seus lares, alimentar suas
crias e manter salubres suas condições de higiene habitacional. Tal como na Inglaterra vitoriana,
onde funcionárias de fábricas que sobreviviam em condições sub-humanas de emprego e
moradia foram usadas como massa de manobra para que nobres mulheres da emergente
11

burguesia e da aristocracia britânica conquistassem o tão necessário direito ao sufrágio


universal, no Brasil, tomando por analogia, não houve tantas diferenças. A manutenção do
status quo permaneceu intacta – tanto aqui, quanto no hemisfério oposto. Portanto, em que
pesem as relações étnico-raciais possuírem diferenças gritantes entre Brasil e Europa, uma coisa
é passível de afirmação: o fator classe na Grã-Bretanha tal como o fator raça está para o Brasil.
Somente no ano de 2015, foi assinada a Lei Complementar nº 150, a qual garantia,
com um atraso constitucional de 27 anos, o direito ao FGTS, férias remuneradas, contribuição
previdenciária e todas as garantias trabalhistas previstas na CLT.
Frente ao acima exposto, plausível suscitar os questionamentos quanto à morosidade
para a regularização formal, nos moldes da Consolidação das Leis Trabalhistas, a fim de
assegurar a dignidade laboral das empregadas domésticas no âmbito trabalhista e no
ordenamento jurídico brasileiro. Parafraseando André Emmanuel Batista Barreto Campello: o
constitucionalismo brasileiro, bem como a norma infraconstitucional, não adveio de uma
revolução, visto que a Independência do Brasil, bem como a Abolição da Escravidão não
significou uma ruptura com as antigas premissas do direito consuetudinário que permeia as
relações sociais brasileiras. Portanto, o árduo percurso até os dias atuais para a tentativa de
assimilação popular de que a empregada doméstica não corresponde aos padrões colonialistas
não pode, de forma alguma, deixar de ser analisado sob a perspectiva jurídica. A ciência do
Direito tem por fundamento a equidade social; contudo, sem os devidos recortes e a devida
salvaguarda jurídica, tal fundamento se torna inócuo.
Necessário, portanto, pôr em prática aquilo que Angela Davis propôs por antirracismo:
a necessidade de manter-se ético e assertivo a fim de lutar, incansavelmente, pela equidade
racial – especialmente num continente majoritariamente calcado pelo assassínio de povos
originários, utilização de mão de obra escrava e genocídio biológico com políticas de estupro.
A respeito do tema, Lélia Gonzáles verbalizou:

Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo,
negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma
práxis de conscientização da questão da discriminação racial nesse país, vai ser muito
difícil o Brasil chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial. No lastro
do todo das questões que estão colocadas, os donos da terra e os intelectuais a serviço
dessas classes, efetivamente, não abrem mão desse poder. Eles não estão a fim de
desenvolver um trabalho no sentido da construção de uma nacionalidade brasileira;
nacionalidade esta que implicará efetivamente a incorporação da cultura negra.
Quando analisamos José Bonifácio, Patriarca da Independência, que luta pela abolição
do tráfico negreiro, constatamos, por exemplo, que seu ideal de nação partia da
12

perspectiva de uma nação homogênea, e a heterogeneidade, a diferença que estava tão


presente para ele era justamente o negro, a presença negra.1

No corpo de quatro capítulos, a proposta é fazer apontamentos pertinentes ao estudo


da construção da figura da empregada doméstica na História da sociedade brasileira,
remontando, primeiramente, ao período escravista e patrimonialista; passando à uma análise da
construção do culturalismo racista e seus respectivos estereótipos; posteriormente
pormenorizando os efeitos práticos na vida das mulheres recém-libertas na condição de
serviçais domésticas – com exemplos reais, dados estatísticos e produções audiovisuais que
abordaram o tema –; e, por fim, analisando os institutos jurídicos que permitiram a
pavimentação do caminho até o reconhecimento das empregadas domésticas enquanto classe
trabalhadora e categoria.

A gênese da desigualdade social no Brasil encontra terreno na escravidão; as relações


de raça e gênero dão contornos definidos às relações de trabalho originadas no período
escravista. Quem são, porque são e de onde surgiram essas mulheres é a proposta da presente
monografia – um estudo base que servirá, futuramente, de sustentáculo para uma pesquisa mais
aprofundada.

1
Lélia Gonzalez (1935-1994) foi uma filósofa, antropóloga e socióloga mineira.
13

2. “O TEMPERO DO MAR FOI LÁGRIMA DE PRETO2” – O RESPALDO LEGAL


DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL PATRIMONIALISTA.

Certa vez um etnólogo disse que “o caminho do progresso é cheio de


aventuras, rupturas, e escândalos”. Devemos, assim, começar
examinando o maior de todos os escândalos, aquele que ultrapassou
qualquer outro na história da humanidade: a escravização dos povos
negro-africanos.
ABDIAS NASCIMENTO, O genocídio do negro brasileiro.

Para que seja possível compreender as raízes escravistas do trabalho doméstico no


Brasil, se faz necessária a análise generalista do ordenamento jurídico que sustentou o período
de quase 340 anos de escravidão em terras tupiniquins. A escravidão não era apenas uma relação
de força de um indivíduo (ou grupo social) sobre outro; mas sim um fenômeno social legitimado
pelo Estado, vez que encontrava pleno respaldo no ordenamento jurídico brasileiro3. A
positivação da escravidão tornou factível e passível de análise documental todo um período em
que, de forma majoritariamente equivocada, é percebido como um fenômeno fático4, sem
quaisquer nuances sociológicas ou econômicas.

O tráfico de pessoas sequestradas do continente africano foi um dos alicerces da


economia brasileira; baseada na agricultura de larga-escala de cana-de-açúcar, tabaco, algodão
e café, as plantações necessitavam de mão-de-obra na mesma proporção. O trabalho escravo
serviu como a força-motriz para o crescimento econômico brasileiro – portanto, pertinente
pontuar que não há equivoco ao dizer que a construção do Brasil como o conhecemos hoje se
deu através da exploração de pessoas negras; estas trazidas à força de diversas regiões do
continente africano, dentro de porões de navios em condições sub-humanas, separados de suas
famílias e grupos étnicos ao aportarem na terra Brasilis, e vendidos, tal como gado para o abate,
para fazendeiros ou quaisquer outras pessoas financeiramente aptas a pagar por tal.

A formação do Brasil como conhecemos hoje advém de uma extensa sequência de


fatos históricos intimamente ligados à escravidão. Um período que durou três séculos e meio

2
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 13 out. 2019.
3
CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil, p. 11. São Paulo: Paco Editorial,
2018.
4
Ibid., p. 12.
14

gerou reflexos transgeracionais; a marginalização da população afro-brasileira não é um


fenômeno sociológico formado por geração espontânea. Conforme versa Abdias Nascimento:

No Brasil, é a escravidão que define a qualidade, a extensão, e a intensidade da relação


física e espiritual dos filho de três continentes que lá se encontraram: confrontando
um ao outro no esforço épico de edificar um novo país, com suas características
próprias, tanto na composição étnica do seu povo quanto na especificidade do seu
espírito – quer dizer, uma cultura com seu próprio ritmo e identidade. 5

Assim, para a execução do presente trabalho, a fim de possibilitar a compreensão ao


leitor quanto à formação histórica, política, social e jurídica do trabalho doméstico no Brasil, o
remonte histórico e a regressão aos primórdios da escravidão se faz de máxima necessidade.

2.1. “PORQUE A VIDA É TÃO AMARGA, NA TERRA QUE É CASA DA CANA DE


AÇÚCAR?6” – O TRÁFICO, A PRODUÇÃO, O AMPARO LEGAL E A ABOLIÇÃO.

Não há uma certeza, no âmbito histórico, de qual seria o primeiro homem ou mulher
trazido ao Brasil na condição de escravo. Quanto aos números de pessoas sequestradas do
continente africano e trazidas em navios negreiros para o continente americano, existem
diversos estudos que se propuseram a catalogar registros históricos do período escravista. No
ano de 2018 a Universidade de Emory, localizada em Atlanta, nos Estados Unidos,
disponibilizou on-line e de forma totalmente gratuita um banco de dados elaborado a partir de
uma pesquisa de dez anos realizada pelo centro de pesquisa universitário Emory Libraries &
Information Technology. Na plataforma7, traduzida em três idiomas (português, espanhol e
inglês), é possível verificar uma ampla base de dados e compilação de informações sobre
embarcações, povos escravizados, traficantes e proprietários de escravos, e rotas de comércio,
além de um extenso memorial com imagens, manuscritos, mapas e listagens de nomes de

5
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado.. 2. ed. São
Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2017, p. 57.
6
EMICIDA. Principia. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em: https://listen.tidal.com/album/
120489000. Acesso em 02 nov. 2019.
7
EMORY LIBRARIES & INFORMATION TECHNOLOGY (Org.). Slave Voyages: EXPLORE THE
DISPERSAL OF ENSLAVED AFRICANS ACROSS THE ATLANTIC WORLD. This digital memorial raises
questions about the largest slave trades in history and offers access to the documentation available to answer them.
European colonizers turned to Africa for enslaved laborers to build the cities and extract the resources of the
Americas. They forced millions of mostly unnamed Africans across the Atlantic to the Americas, and from one
part of the Americas to another. Analyze these slave trades and view interactive maps, timelines, and animations
to see the dispersal in action.. 2018. Disponível em: <https://slavevoyages.org/>. Acesso em: 07 out. 2019.
15

pessoas escravizadas trazidas ao continente Americano. Conforme a pesquisa, desde a primeira


viagem de tráfico intercontinental de pessoas africanas às colônias do Novo Mundo, em 1525,
até a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, 4.722.143 africanos foram desembarcados em
solo brasileiro.

No Brasil, a escravidão teve início com a produção de açúcar na primeira metade do


século XVI8. Até os dias atuais a pesquisa brasileira não chegou a um consenso de qual foi o
fatídico ano em que o instituto da escravidão criou raízes no país. A data mais aproximada de
que se tem notícia seria entre os anos de 1548 e 1549; quando Tomé de Sousa9 assumiu, por
ordem da Coroa Portuguesa, como governador-geral do Brasil; aportando na Bahia no mesmo
ano, trazendo consigo os primeiros escravos sequestrados da África.10

No decorrer de quase 340 anos de sistema escravagista, não foram poucos os institutos
jurídicos que permearam a história Brasileira. A derrocada da escravidão no Brasil não se deu
pela benevolência de nenhum imperial; fatores externos – tais como a industrialização da
Europa – bem como fatores internos contribuíram para abolição da escravidão – mesmo que
em doses homeopáticas, até a assinatura da Lei Áurea em 188811. A proibição do tráfico
negreiro, concebida pelo Ministro da Justiça Eusébio de Queiróz em 1850, promulgou a Lei nº
581, a qual versava sobre a proibição de tráfico de mão-de-obra escrava do Oceano Atlântico
em direção ao Brasil.12 Posteriormente, outras duas leis marcaram época na lenta caminhada
pela abolição institucional da escravidão: a Lei do Ventre Livre13, assinada no ano de 1871, que

8
RAMOS, Jefferson Evandro Machado. Escravidão no Brasil: História da escravidão no Brasil, escravidão negra
africana no Brasil Colônia, tráfico de escravos, os navios negreiros, trabalho escravo nos engenhos e nas minas de
ouro, os castigos, as revoltas, os quilombos, carta de alforria, fim da escravidão. 2019. Disponível em:
<https://www.suapesquisa.com/historiadobrasil/escravidao.htm>. Acesso em: 13 set. 2019.
9
Tomé de Sousa foi um político e miliar português; exerceu a função de primeiro governador-geral do Brasil,
tendo por sede administrativa a capitania da Bahia de Todos os Santos, na cidade de Salvador.
10
PROENEM. GOVERNOS GERAIS E O INÍCIO DA ESCRAVIDÃO AFRICANA NO BRASIL – O INÍCIO
DA COLONIZAÇÃO. 2019. Https://www.proenem.com.br/enem/historia/governos-gerais-e-o-inicio-da-
escravidao-africana-no-brasil-o-inicio-da-colonizacao/. Disponível em: <Em face das dificuldades encontradas
pela grande maioria dos donatários na administração das capitanias hereditárias, o próprio rei D. João III iniciou
o projeto de revisão da recente política de colonização do Brasil.>. Acesso em: 14 out. 2019.
11
LEI. Declara extinta a escravidão no Brasil.. A Princesa Imperial Regente, em Nome de Sua Majestade O
Imperador, O Senhor D. Pedro Ii, Faz Saber A Todos Os Súditos do Império Que A Assembléia Geral
Decretou e Ela Sancionou A Lei Seguinte:. Paço Imperial, Rio de Janeiro, RJ, Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>. Acesso em: 09 set. 2019.
12
BRASIL. Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850. Estabelece medidas para a repressão do trafico de africanos
neste Imperio.. . Rio de Janeiro, RJ, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM581.htm>.
Acesso em: 10 out. 2019.
13
BRASIL. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que
nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento
16

determinava taxativamente que nenhuma pessoa nasceria, dali em diante, escrava no Brasil;
conferindo o direito à alforria quando da maioridade; e a Lei dos Sexagenários, a qual postulava
pela liberdade imediata de qualquer pessoa em situação de escravidão ao completar 65 anos. 14

Contudo, as legislações que gradativamente diminuíram o número de pessoas


escravizadas não se tratavam de institutos que garantissem uma liberdade plena e imediata; mas
de alforrias legalizadas submetidas a indenizações aos ex-senhores de escravos, denotando
claramente uma servidão mascarada e de pouco ou nenhum efeito prático15. Não houve uma
insurgência da população escravizada frente às novas “liberdades”; o desconforto e a
inconformidade com a venda de seus corpos remonta ao primeiro navio que sequestrou pessoas
de países africanos. Revoltas, fugas, ancestralidade cultural e religiosa, fundação e emancipação
de comunidades quilombolas e tantos outros meios de sobrevivência ao longo do período
escravista demonstram que, em que pese a árdua batalha da hegemonia branca em suprimir a
existência de uma identidade da população negra e, principalmente, uma individualidade em
cada cidadão subjugado à escravidão, a existência e a resistência de todo um grupo social.

Portanto, se torna palpável a ideia de que institutos jurídicos, por si só, bem como os
operadores formais do direito, não possuem um papel de destaque na emancipação e
empoderamento civil e político da população negra durante o período escravista e,
posteriormente, quando finda de fato a escravidão enquanto norma jurídica. Em que pese o agir
importantíssimo de abolicionistas brancos como Joaquim Nabuco16, este permaneceu fiel aos
ideias monarquistas após a proclamação da República em 1889. Compreende-se que, por mais
engajado que um diplomata, à época, pudesse ser (e, de forma alguma, diminuindo suas
contribuições), este jamais poderia compreender, de forma ampla e efetivamente empática, a
necessidade do rompimento com qualquer sistema que legitime a venda de corpos humanos

daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de escravos...... Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm>. Acesso em: 09 set. 2019.
14
BRASIL. Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885. Regula a extincção gradual do elemento servil.. : D. Pedro
II, por Graça de Deus e Unânime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil:
Fazemos saber a todos os Nossos subditos que a Assembléa Geral Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte:. Rio
de Janeiro, RJ, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3270.htm>. Acesso em: 14 out.
2019.
15
Ibid., p. 233.
16
Joaquim Nabuco (Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo), escritor e diplomata, nasceu no Recife, PE, em
19 de agosto de 1849, e faleceu em Washington, EUA, em 17 de janeiro de 1910. Compareceu às sessões
preliminares de instalação da Academia Brasileira, fundador da cadeira nº 27, que tem como patrono Maciel
Monteiro. Designado secretário-geral da Instituição na sessão de 28 de janeiro de 1897, exerceu o cargo até 1899
e de 1908 a 1910. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Joaquim Nabuco, Biografia. Disponível em:
<http://www.academia.org.br/academicos/joaquim-nabuco/biografia>. Acesso em: 29 out. 2019.
17

como força de trabalho e animais reprodutores – tal como foi a monarquia. Parafraseando
Angela Davis ao analisar sociologicamente a relação de pessoas brancas quanto à questão da
abolição da escravidão (no contexto norte-americano, contudo, plenamente aplicável à
realidade brasileira): mesmos os abolicionistas brancos mais aplicados condicionavam à
questão da desigualdade racial a um moralismo cristão; uma atrocidade digna de benevolência,
mas sem alterações reais e sólidas na ordem social.

Necessário, enfim, pontuar que o protagonismo nas ações de combate à escravidão e


desmantelamento desse sistema é, de forma inquestionável, daqueles que sofreram de fato as
dores e as mazelas dessa afronta à humanidade que assolou o país até 1888 – e que perpetua
suas consequências até os dias atuais. Apenas quem sentiu o corte do chicote às costas seria
apto a compreender todas as necessidades do povo escravizado.

2.2 “JÁ VIU ELES CHORAR PELA COR DO ORIXÁ?17” - A INSIPIÊNCIA DAS
MOVIMENTAÇÕES DA BRANQUITUDE NO ÂMBITO JURÍDICO E AS REITERADAS
LUTAS POLÍTICAS E SOCIAIS DA POPULAÇÃO ESCRAVIZADA.

Em que pese a existência e a promulgação dos dispositivos legais supracitados (e de


tantos outros que permearam o séc. XIX no Brasil no que concerne à escravidão), não é sequer
plausível suscitar a remota hipótese de que tais legalidades tenham sido aprovadas no único
intuito de, mesmo que de forma tentada e insipiente, reparar o dano histórico de mais de três
séculos de escravidão. Tomando, por exemplo, a Lei dos Sexagenários, esta foi aprovada após
intenso debate e divergências políticas – inclusive com a dissolução da Câmara de Deputados
e demissão então presidente da Câmara, Moreira Barros, no ano de 1884. A negociação da
referida lei se deu em Assembleia Geral, como era chamado o Congresso Nacional, à época,
com ressalvas quanto às indenizações às elites cafeeiras, obtendo êxito na satisfação dos
senhoris e visando acalmar os ânimos (cada vez mais exaltados) da população escravizada e
todos aqueles que se posicionavam politicamente pela abolição18. Conforme consta no site do

17
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 13 out. 2019.
18
BRASIL. Agência do Senado. Senado Federal. Lei dos Sexagenários completa 130 anos.: No próximo dia 28
de setembro, a lei que libertou os escravos com 60 anos ou mais completará 130 anos. Apelidada de Lei dos
Sexagenários (1885), ela é menos conhecida do que a Lei do Ventre Livre (1871), que concedeu liberdade aos
18

Senado Federal, na matéria publicada em 31 de Agosto de 2015, referente aos 130 anos da Lei
dos Sexagenários:

A lei foi aprovada após intenso debate na Assembleia Geral, como era chamado o
Congresso Nacional à época. É verdade que, do ponto de vista econômico e
humanitário, a medida teve pouca repercussão. Submetidos a trabalhos extenuantes e
péssimas condições de vida, poucos escravos conseguiam cruzar a marca dos 60. 19

O argumento então utilizado pelos donos de cafezais e senhores de escravos girava em


torno de dois eixos temáticos estritamente delimitados: a ruína da economia, vez que a mão de
obra escrava servia ao crescimento econômico do pais; e que a população negra não seria dotada
de civilidade suficiente para compreender a necessidade do labor, recaindo, invariavelmente,
no ócio e na chamada vagabundagem. Conforme Joseli Maria Nunes Mendonça20, doutora em
História pela Universidade Estadual de Campinas, em entrevista concedida à Agência do
Senado:

Não há fundamento algum nesse argumento. Os escravos eram extremamente


capacitados para atuar no mundo livre e há muito tempo negociavam melhores
condições de trabalho com os senhores. A ideia da incapacidade das classes
trabalhadoras e, sobretudo, dos afrodescendentes é muito presente não só no
imaginário, mas nas instituições brasileiras em geral. No século 20, o racismo
direcionado aos negros contribuiu para perpetuar as desigualdades. Ao escravo
incapaz, seguiu-se a ideia de negro incapaz. Esse é um pensamento que, aos poucos,
com a intensa participação dos afrodescendentes e com políticas públicas, a gente está
superando.
[...]
A preocupação que havia era como controlar e disciplinar essa população. Depois da
Lei Áurea, o Parlamento aprovou uma lei de repressão à ociosidade, cujo objetivo
central era controlar a população egressa da escravidão. 21

filhos de escravos nascidos a partir de sua promulgação, e do que a Lei Áurea (1888), que finalmente acabou com
a escravidão no Brasil.. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-
dos-sexagenarios-completa-130-anos>. Acesso em: 14 out. 2019.
19
BRASIL. Agência do Senado. Senado Federal. Lei dos Sexagenários completa 130 anos.: No próximo dia 28
de setembro, a lei que libertou os escravos com 60 anos ou mais completará 130 anos. Apelidada de Lei dos
Sexagenários (1885), ela é menos conhecida do que a Lei do Ventre Livre (1871), que concedeu liberdade aos
filhos de escravos nascidos a partir de sua promulgação, e do que a Lei Áurea (1888), que finalmente acabou com
a escravidão no Brasil.. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-
dos-sexagenarios-completa-130-anos>. Acesso em: 14 out. 2019
20
É doutora (2004) em História pela Universidade Estadual de Campinas, na qual também se graduou (1988) e
concluiu mestrado (1995). É professora na Universidade Federal do Paraná. Tem experiência na área de História,
com ênfase na História do Brasil do século XIX e da Primeira República, tratando de temáticas relacionadas à
História Social do Trabalho (imigração, escravidão, trabalho compulsório, experiência de afrodescendentes no
Pós-Abolição), às relações entre História, Direito e Justiça, Ensino de História e História Pública.
21
BRASIL. Agência do Senado. Senado Federal. Lei dos Sexagenários completa 130 anos.: No próximo dia 28
de setembro, a lei que libertou os escravos com 60 anos ou mais completará 130 anos. Apelidada de Lei dos
Sexagenários (1885), ela é menos conhecida do que a Lei do Ventre Livre (1871), que concedeu liberdade aos
19

Quando da sua liberdade, a pessoa outrora escravizada deveria estar sob constante
vigilância do Estado e do Poder Público. O medo da insurgência por parte não só da elite, mas
da branquitude num geral – eis que a segregação racial ocorrida durante o período da escravidão
conferiu ao cidadão branco, mesmo aquele da classe mais baixa, um status de superioridade em
relação à população negra – era um fantasma com forma e rosto perfeitamente delineados.

Não foram poucas as insurgências, rebeliões, fugas e constituições de quilombos como


redutos de resistência negra no Brasil colonial. A existência do Quilombo de Palmares22, bem
como a insurgência da Revolta dos Malês23, são apenas dois de tantos exemplos a serem
rememorados quanto à resistência viva e pulsante ao sistema escravista.

Em maio de 1883 foi fundada a Confederação Abolicionista, sociedade organizada


com intuito de centralizar o movimento abolicionista em todas as províncias do Império,
unificando os diversos movimentos autônomos já existentes que compactuavam com o mesmo
propósito24. Abolicionistas radicais enviaram ao Ceará, Província que aprovou uma lei que
proibiu a importação de escravos e que possuía, ao ano de 1883, 57 municípios com a abolição
da escravidão proclamada, escravos que haviam empreendido fuga. Estes eram acolhidos na
localidade, sendo-lhes fornecidos documentos falsos para acobertamento diante da fiscalização

filhos de escravos nascidos a partir de sua promulgação, e do que a Lei Áurea (1888), que finalmente acabou com
a escravidão no Brasil.. 2015. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/31/lei-
dos-sexagenarios-completa-130-anos>. Acesso em: 14 out. 2019.
22
Fundando no séc. XVI, o Quilombo de Palmares, localizado na Serra da Barriga, onde atualmente está localizado
o Estado de Alagoas, serviu de refúgio à população afro-brasileira fugida das capitanias da Bahia e de Pernambuco.
O local chegou a reunir cerca de 30 mil moradores em seu ápice. Zumbi de Palmares, o líder mais memorável de
todo o período quilombola enquanto reduto de resistência ao regime escravista, foi assassinado em 20 de
Novembro de 1695. Atualmente esta data marca o Dia Nacional da Consciência Negra. VALENTE, Jonas (Org.).
Quilombo dos Palmares é reconhecido patrimônio cultural do Mercosul. 2017. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/quilombo-dos-palmares-e-reconhecido-patrimonio-cultural-do-mercosul/>. Acesso
em: 14 out. 2019.
23
A Revolta dos Malês, episódio antológico da luta antiescravista e abolicionista, ocorreu na cidade de Salvador,
no estado da Bahia, entre os dias 24 e 25 de janeiro de 1835. Os malês eram formados por libertos e escravizados
– estes últimos conhecidos pejorativamente como negros de ganho, visto que possuíam a “liberdade” de
desempenhar atividades de alfaiataria e pequeno comércio, por exemplo, pela cidade. O mote da revolta era pela
libertação de todos os africanos e afro-brasileiros escravizados de origem muçulmana. Em que pese seu peso
histórico, a investida não foi bem sucedida. Setenta revoltosos restaram mortos, e cerca de 300 malês foram presos
e julgados – com penas que iam de açoites, deportação para o Continente Africano até a pena de morte. Outra
consequência da Revolta foi a proibição de circulação de africanos e afro-brasileiros muçulmanos ao anoitecer;
bem como a proibição de cerimônias religiosas dos adeptos ao Islã. Fonte: PALMARES FUNDAÇÃO
CULTURAL (Org.). Você já ouviu falar sobre a Revolta dos Malês? 2019. Disponível em:
<http://www.palmares.gov.br/?p=52993>. Acesso em: 14 out. 2019.
24
Ibid., p. 109.
20

de órgãos repressores25. Na província do Amazonas, por sua vez, aprovou sua própria lei áurea
no ano de 1884, constituindo um fundo para compras em larga-escala de pessoas em situação
de escravidão26.

Assim, através dessas e tantas outras movimentações populares pelo fim do sistema
escravista, por volta do ano de 1880 a população escravizada representava uma parcela
populacional mínima em solo brasileiro. Sem justificativas econômicas plausíveis e que
servissem ao Estado para ensejar esforços na manutenção do sistema, com reiteradas
movimentações por parte dos escravos ao longo de todo o período pela libertação (não
simplesmente no sentido jurídico), a escravidão terminou por ruir. A sacramentação do
desmoronamento se deu, enfim, com a assinatura da Lei Áurea – esta, a última pá de cal na
maior atrocidade à humanidade já experienciada no Brasil.

Contudo, o final da escravidão sinalizou a derrocada de um sistema jurídico, não de


uma realidade excludente para milhões de afro-brasileiros. Sem amparo legal ou qualquer
política pública que efetivasse a inserção social digna dessas pessoas, urgiu a necessidade de
adaptação. E enquanto os escravos que trabalhavam no campo se deslocaram aos grandes
centros em busca de novas condições de vida, muitos outros de seus irmãos ficaram para trás;
trabalhando nas casas de famílias brancas e abastadas. Mulheres negras recém-libertas foram a
parcela mais expressiva a permanecer nos lares senhoriais, em condições praticamente idênticas
às quais foram submetidas durante o período escravista. Conforme a escritora e especialista em
sociopsicologia Gabriela Moura27

A realidade da época colonial brasileira apresenta reflexos ainda em nosso cenário


atual, e mostra como o trabalho de empregada doméstica não significou uma escolha,
mas uma estratégia de sobrevivência a uma sociedade hostil com mulheres negras. As
reflexões e problematizações sobre o trabalho doméstico sofreram apagamento, para a
manutenção do local onde as mulheres negras foram compulsoriamente alocadas ao
longo da História.28

25
Ibid., p. 238-239.
26
Ibid., p. 239.
27
Bacharel em relações públicas com especialização em curso em Sociopsicologia.
11 anos de experiência em comunicação com ênfase em digital, inovação, tecnologia, composição de conteúdo
estratégico e gestão de contas e projetos.
Co-autora do livro #MeuAmigoSecreto: feminismo além das redes.
28
MOURA, Gabriela. Mulher negra — empregada doméstica: origem escravista e manutenção de castas
sociais.: Texto originalmente escrito em 2015 e publicado em um antigo blog, como parte de uma pesquisa.. 2019.
Disponível em: <https://medium.com/@metaforica_gabi/mulher-negra-empregada-dom%C3%A9stica-origem-
escravista-e-manuten%C3%A7%C3%A3o-de-castas-sociais-9e247bdf7728>. Acesso em: 01 out. 2019.
21

A estruturação social do racismo deu amparo à manutenção de mulheres negras na


condição de subalternas e na informalidade labora. Não é à toa: o Estado de Direito se omitiu
por décadas quanto à necessidade de reconhecimento do racismo enquanto estrutura opressiva
e passível de sanção. Tal omissão está enraizada no mito da democracia racial; partindo da
premissa que o racismo não é fato determinante para relações de poder e sequer a escravidão
possuiu um caráter efetivamente opressivo, criando a ilusão de relações amigáveis entre
senhores de escravos e a população escravizada num geral. Essa cordialidade é, na realidade,
uma forma de renegar o passado obscuro do país.

A prática de racismo só recebeu o devido respaldo legal após a própria Constituição


Federal de 198829, no ano de 198930; e a concepção de injúria racial só foi incluída junto ao
Código Penal Brasileiro31 através da promulgação de legislação específica no ano de 199732, a
qual acrescentou um terceiro parágrafo ao texto insculpido no artigo 140 do referido dispositivo
legal.

Portanto, vislumbra-se que a servidão doméstica permaneceu. E uma figura, aquela


responsável pela criação das crianças brancas, pelo zelo do lar e por todas as funções domésticas
precisava se manter intacta, para além da escravidão. A necessidade era para além da prática da
manutenção da casa senhorial; se dava em caráter de status. O questionamento é: como se
construiu o imaginário coletivo da negra da casa?

29
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós, representantes
do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.. Brasília, DF.
30
BRASIL. Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor..
. Brasília, DF, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm>. Acesso em: 20 out. 2019.
31
BRASIL. Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.. Rio de Janeiro
32
BRASIL. Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989,
que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-
lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.. . Brasília
22

3. “EXISTE PELE ALVA, E EXISTE PELE ALVO.”33 A TRANSIÇÃO DO


RACISMO FENOTÍPICO AO CULTURALISMO RACISTA.

Primeiro, sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles.


Nega o Deus deles, ofende, separa eles.
Se algum sonho ousa correr, cê para ele.
E manda eles debater com a bala que vara eles, mano.
Infelizmente onde se sente o Sol mais quente,
o lacre ainda tá presente só no caixão dos adolescente.
Quis ser estrela e virou medalha num boçal – que coincidentemente
tem a cor que matou seu ancestral.
Um primeiro salário.
Duas fardas policiais.
Três no banco traseiro.
Da cor dos quatro Racionais.
Cinco vida interrompida.
Moleques de ouro e bronze.
Tiros e tiros e tiros,
os menino levou 111.
EMICIDA, Ismália.

Até o presente capítulo, os apontamentos realizados se ativeram de forma a


contextualizar as circunstâncias que propiciaram a construção do que hoje se entende por
trabalho doméstico. Assim como citou Jessé Souza: o presente não se explica sem o passado, e
apenas a explicação que reconstrói a gênese efetiva da realidade vivida pode, de fato, ter poder
de convencimento. A semente societária brasileira é a escravidão; em que pesem as reiteradas
tentativas históricas de apagamento sistemático de tal realidade. Numa pirâmide social, se
percebe que a gênese escravista moldou a população brasileira tendo como base a mulher negra
e pobre – a mão de obra mais barata e tacitamente conhecida socialmente como figura apta a
segurar o peso do mundo nas costas.

O que hoje se compreende por racismo estrutural e institucionalizado perpassou por


diversos processos até se consolidar. Existem pontos comuns entre o tráfico negreiro, a Chacina
da Candelária34 e o trabalho doméstico. Esses e tantos outros fenômenos sociais se pautaram

33
EMICIDA. Ismália. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000
34
No dia 23 de julho de 1993, policiais fora de serviço mataram oito crianças e jovens em situação de rua no
entorno da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. O caso que ficou conhecido como Chacina da
Candelária ganhou repercussão internacional. Fonte: Anistia Internacional Brasil. Chacina da Candelária 25
anos: lembramos dessa história para que ela não se repita. 2018. Disponível em:
<https://anistia.org.br/noticias/chacina-da-candelaria-25-anos-lembramos-dessa-historia-para-que-ela-nao-se-
repita/>. Acesso em: 06 nov. 2019.
23

pela normatização do racismo enquanto estrutura; para tanto, foi necessário um processo
veementemente repetido e reproduzido ao longo dos séculos a fim de que a cor da pele não
fosse um fator determinante em si, mas um marco visível de toda uma construção.

O racismo fenotípico passou a perder força na medida em que a ciência e as teorias


evolucionistas ganharam maior alcance e alcançaram novas tecnologias e metodologias mais
precisas de estudo e pesquisa. Portanto, o demarcador físico se tornou secundário; foi necessária
a transição ao culturalismo racista – onde o oprimido fosse legitimamente oprimido; onde
houvesse uma explicação pseudosociológica e pseudocientífica que não atrelasse a
inferioridade racial ao formato do crânio, e sim à incapacidade de civilização e costumes
tipicamente eurocêntricos.

Tal higienismo social, pautado pelo determinismo biológico (estes a seguir


pormenorizados), possuiu um objetivo específico – entre tantos outros adjacentes: manter a
população negra, agora liberta da instituição legal da escravidão, na condição de cidadãos de
segunda classe. Relegá-los aos papéis de subserviência e mantendo tal estrutura opressiva sob
a premissa de esta ser, invariavelmente, a ordem natural das coisas foi a melhor e mais efetiva
fórmula para que, apesar da transição do sistema político e econômico, os valores do
patrimonialismo e a dominação branca perdurassem.

Apenas através da manutenção de papeis sociais perfeitamente delineados é possível


manter a hegemonia de poder econômico, político e social nas mãos (e bolsos) da branquitute.
Na transição do patrimonialismo ao capitalismo no Brasil, raça e classe se equiparam.

Se outrora os escravos eram mantidos presos por grilhões de ferro e eram açoitados,
muitas vezes até a morte, nos dias atuais podemos perceber uma situação bastante
semelhante de forma velada. A senzala que se tornou quarto de empregada, o navio
negreiro que se tornou camburão e o capitão do mato que se tornou agente de caça e
extermínio com respaldo legal são exemplos já conhecidos dessa nova configuração,
que mantém o negro em papéis bem definidos. 35

Possível, então, compreender que a mudança de sistema político e econômico no Brasil


não demonstrou qualquer tipo de mudança positiva à população negra ou de baixa renda; o
capitalismo deu novas curvas à opressão de classe e raça.

35
KAHLO, Coletivo Não Me et al (Org.). #MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes.. Rio de Janeiro:
Edições de Janeiro, 2016, p. 49. Elaborado por: Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e
Thaysa Malaquias.
24

3.1. “SEJA MAIS HUMILDE, BAIXE A CABEÇA; NUNCA REVIDE, FINJA QUE
ESQUECEU A COISA TODA. ” – O CONTROLE SOCIAL COM REQUINTES DE
EUGENIA SOB O VÉU DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL.

O panorama generalista do contexto do sistema escravista acima exposto serve de pano


de fundo para ensejar toda uma construção de inferioridade de raça; contudo, com o passar dos
anos e a proximidade com a era das telecomunicações e da industrialização, a simples
justificativa do racismo tradicional (aquele construído pelo fenótipo, o qual se reporta à
constituição física de determinado grupo étnico) não seria o suficiente para ensejar respaldo. A
lógica de que pessoas negras seriam incapazes de constituir a condição cristã de família nuclear
e serem donas da própria existência advém de uma construção mais densa e complexa. Portanto,
a necessidade de uma cientificidade que constituísse um lastro probatório para tal estruturação
e controle social se fez urgente. Para tanto, pouco a pouco, numa transição quase imperceptível,
surgiu o culturalismo racista.

A vantagem comparativa do culturalismo racista sobre o racismo clássico é que, como


não se vincula à cor da pele, até os negros americanos podem se sentir superiores, por
exemplo, aos latinos e estrangeiros. A utilidade prática desse racismo ocultado, que é
o culturalismo para os países dominantes e, muito especialmente, para suas classes
dominantes, é muito maior que a do racismo explícito que vigorava antes. 36

Assim, a cor da pele passou a ser um marco visível de toda uma estruturação que
solidificou a cultura racista. A visão etnocêntrica ocidental trabalha sob o pressuposto de que a
civilização é exclusivamente de ordem branca; sendo a população negra (ou de outras minorias
étnicas) biologicamente inaptas a concepção de estruturação familiar europeia – sendo esta,
portanto, a única possível do ponto de vista eurocêntrico. Nessa esteira, a população negra
escravizada era entendida como animalizada e, portanto, mais propensa ao trabalho braçal –
tendo intrinsecamente maior tolerância aos abusos físicos perpetrados contra si, bem como
maior capacidade de trato com questões domésticas. Com o advento da abolição, necessário se
fez, no ímpeto de não deixar morrer tal necessidade de controle social, uma nova ordem; um
mote e um alicerce para manter o ex-escravo sob o olhar sanguinário do vigia.37

O mito da democracia racial possui um forte e emblemático papel na História de


formação social brasileira. A corrente que principia com a infeliz construção de Gilberto Freyre,

36
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017: p. 23.
37
RACIONAIS MC’S. Diário de um detento. São Paulo: Cosa Nostra: 1997. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/93315747. Acesso em: 15 de Outubro de 2019.
25

datada de 1930, quanto às relações entre escravos e senhores de escravos durante o período
escravista, que se perpetua no imaginário popular como um eco surdo através das décadas.
Lecionou Abdias Nascimento, entre tantas criações quanto às raízes da democracia racial:

Há ainda outra lenda justificadora da tese da “democracia racial” no Brasil: ela se


localiza na mistificação da sobrevivência cultural africana. Este fundamental
argumento se reveste de grave perigo, pois seu apelo tem sido sedutor e capaz de
captar amplo e entusiástico suporte. Postula o mito que a sobrevivência de traços da
cultura africana na sociedade brasileira teria sido o resultado de relações relaxadas e
amigáveis entre senhores e escravos. Canções, danças, comi- das, religiões,
linguagem, de origem africana, presentes como elemento integral da cultura brasileira,
seriam outros tantos comprovantes da ausência de preconceito e discriminação
racial dos brasileiros “brancos”.38

Como na Europa da baixa idade média, as fabliaux39 foram utilizadas como


instrumento para a consolidação de estereótipos contra a independência feminina (sendo essas
mesmas mulheres satirizadas pela sua adesão aos movimentos heréticos), os estereótipos
racistas, baseados na lógica do darwinismo social, possuíam a função de perpetuar pseudo-
racionalidades, afim de explicar os motivos pelos quais a população escravizada era, de fato,
escravizada. Entre os séculos XIX e XX adotou-se, de forma errônea e equivocada, a Teoria da
Seleção Natural (esta formulada por Charles Darwin, o qual se utilizou de metodologia
científica para explicar a origem das espécies na natureza) como instrumento de análise da
constituição da sociedade, a fim de explicar a existência de classes sociais e subjugações de
raça e gênero. Assim, criou-se, o Darwinismo Social.40 Cabe frisar que não há, até o presente
momento, literatura confiável que aponte concordância de Darwin ou de seus sucessores para
com tal neologismo. Contudo, a fim de legitimar a discursiva do estereótipo do negro
animalizado (o qual poderia ser adestrado aos critérios de seu dono, tanto no âmbito do trabalho
braçal quando no trato com as questões domésticas cotidianas - inclusive amamentação de
crianças brancas ou sendo mulheres negras escravizadas vistas como animais reprodutores), o
darwinismo social se utilizava de determinismo biológico41, pautando-se pela discursiva de que

38
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado.. 2. ed. São
Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2017, p. 68.
39
Nome dado a pequenas estórias satíricas e narrativas populares cômicas, muitas vezes em versos, na literatura
francesa da idade média. FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São
Paulo: Editora Elefante, 2017, p. 65. Tradução: coletivo Sycorax.
40
Teoria elaborada pelo filósofo britânico Herbert Spencer (1820-1903), o qual utilizou-se por analogia da teoria
da evolução darwinista a fim de respaldar a superioridade racial. Tal teoria fundamentou, posteriormente, teorias
como a eugenia, utilizada nos campos de concentração da Alemanha Nazista para realizar alterações genéticas em
pessoas vivas, na intenção de desenvolver uma “raça pura”.
41
Doutrina antropológica que conceitua o agir humano como determinado por variáveis de ordem exclusivamente
biológica, contrapondo a existência da possibilidade do pensamento livre ou da capacidade de escolha. Se pauta,
26

a população branca era detentora de um estágio superior de civilização e, portanto, possuía, de


forma nata, o direito de subjugar as ditas “raças inferiores” – quais sejam: quais grupos étnicos
convenientes.

Contudo, assim como o sincretismo religioso foi a força-motriz da Igreja Católica para
facilitar a fagocitose das religiões pagãs na Europa pré-cristianismo, urgiu, em todo o continente
americano, a necessidade de uma construção do culturalismo racista em doses homeopáticas; a
fim de que a digestão popular fosse facilitada e que o mito da democracia racial encontrasse
solo fértil. Portanto, tal transição se deu de forma sutil, a fim de ser socialmente aceita e
contornar a concepção estritamente atrelada ao fenótipo da população negra recém-liberta do
sistema escravista; construindo no imaginário coletivo que a população negra não foi
escravizada e relegada à marginalidade pela sua diferença étnica; e sim pela sua incapacidade
de civilizar-se ao modo europeu – o que caracteriza um crime contra a moral cristã e os bons
costumes ao modo colonizador. Tal conduta, sistematicamente organizada, serviu para a
manutenção da hegemonia europeia.

A violência que outrora fora através do açoite, passou, gradativamente, a transcender


os castigos físicos e a humilhação do sistema escravista; tornou-se uma política de Estado: uma
manutenção do status quo, devidamente legitimada pela “comunidade científica” e
convenientemente aceita pela classe dominante, inclusive encontrando salvo-conduto em
institutos jurídicos, eis que há, tacitamente, uma política de ignorância quanto à necessidade de
reparação histórica e uma omissão latente do Estado quanto à esta realidade.

3.2. “A DOR DOS JUDEUS CHOCA, A NOSSA GERA PIADA”42 – A FORÇA DA


CONSTRUÇÃO DE UM ESTEREÓTIPO RACISTA QUE SUSTENTASSE A CONCEPÇÃO
DA “NEGRA DA CASA”.

O terreno fértil do ideário racista, alimentado por três séculos e meio de escravidão e
sucedidos pela perpetuação da lógica patrimonialista na sociedade brasileira – concomitante à
importação de ideias eugenistas que foram aceitos de forma tácita pelo ideário popular –, serviu

via de regra, por características físicas (determinadas por raça, gênero, etnia, nacionalidade, etc.), a fim de justificar
características psicológicas e o agir social de determinados grupos sociais.
42
EMICIDA. Bang!. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2013. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
27

de alicerce para diversas concepções racistas que, ao longo dos anos, permearam as relações
interpessoais da população brasileira e, em diversas camadas do tecido social, normatizaram
estruturas opressivas que convergem no racismo estrutural. Pertine, portanto, pontuar que o
fator racial interfere diretamente nas compreensões do senso-comum quanto à questões básicas
de convívio social.

Importa salientar que a chamada “sutileza” na transição do racismo fenotípico ao


racismo cultural se deu através de diversas metodologias extensamente implementadas – isso
em todo o continente americano. A construção de estereótipos se deu em diversas esferas da
vida cotidiana, a fim de fugir da esfera estritamente “aristocrática” e caindo nas graças
populares. Tal como outrora a construção da ideia de que os judeus seriam responsáveis pela
queda livre da economia da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial deu vazão ao
antissemitismo e a construção de Auschwitz II (e tantos outros campos de concentração) para
assassínio em massa da população judaica em câmaras de gás durante a Alemanha Nazista
(1939-1940), foi necessária uma massiva propaganda para que o racismo cultural germinasse
de forma útil em solo brasileiro (e em toda a América).

Durante o período escravista, mulheres negras tiveram todos os aspectos de suas vidas
ofuscados pela condição de trabalho compulsório. O machismo, tendo como mantenedor o
sistema patriarcal, incidiu (e ainda, nos dias de hoje, incide) de forma diferente na vida de
mulheres escravizadas quando comparada à vida de mulheres brancas. Mulheres negras eram
vistas, portanto, como unidades de trabalho lucrativas; podendo, quando conviesse ao “dono”,
serem desprovidas de gênero. Os trabalhos extenuantes e os castigos físicos não eram práticas
exclusivamente aplicadas em homens; mulheres escravizadas eram submetidas a tal barbárie na
mesma proporção – com a incidência, ainda, do fator das violações sexuais e políticas de
estupro (por isso o desprovimento de gênero passava, necessariamente, pelo crivo da
conveniência que o momento propiciasse).

Enquanto o estereótipo de feminilidade construído na Inglaterra Vitoriana era


importado para toda a Europa e suas respectivas colônias e ex-colônias, a mulher negra em
condição de escravidão era percebida como uma anomalia. O imaginário da construção da
figura feminina como fisicamente frágil, emocionalmente vulnerável, subjugada a todos os
papéis de gênero da construção da chamada feminilidade (bela, recatada e do lar) estavam a um
oceano de distância das mulheres negras ou de outras minorias étnicas; a mulher negra, em sua
condição perpétua de servidão, não detinha qualquer amparo em tais alicerces da construção da
feminilidade. Os papéis de gênero relegados às mulheres brancas, em que pese a constituição
28

machista e opressiva, em nada se comparavam aos martírios diariamente vividos por qualquer
mulher negra à época da escravidão ou do pós-abolição em solo brasileiro – ou em qualquer
país que possui por alicerce econômico o tráfico de corpos negros sequestrados e sua respectiva
mão de obra.

Quanto à concepção de feminilidade, Sojouner Truth, nascida em cativeiro nos Estados


Unidos (país este que só aboliu a escravidão em todos os estados no ano de 1863) e tendo
conquistado sua liberdade através de empreendimento de fuga no ano de 1826, considerada uma
das precursoras do feminismo negro norte-americano, declamou, na Convenção dos Direitos da
Mulher (Akron, estado de Ohio, Estados Unidos da América, 1851), seu emblemático discurso
“Eu não sou uma mulher?”43:

Aqueles homens ali, dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor
lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a
saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E eu não sou
uma mulher? Olhem pra mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a
colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E eu não sou uma
mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que
eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E eu não sou uma
mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e
quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E eu
não sou uma mulher?44

Eis que, nessa diapasão, o culturalismo racista entrou em cena. A fim de justificar o
desprovimento de gênero, no sentido de feminilidade à moda europeia, foram criados diversos
traços depreciativos de personalidade para mulheres negras, tais como: ingenuidade (sendo
facilmente manipuláveis e com quês de infantilidade, ensejando tutela constante de seus
superiores); agressividade (com necessidade de constante vigília, vez que qualquer insurgência
advinda de uma mulher negra seria uma afronta direta à moral e aos bons costumes brancos e
cristãos); instinto maternal animalesco (despido de afeto socialmente construído; remetendo ao
sentido de proteção extrema e abnegação da própria existência em favor de seus protegidos –
os quais, convenientemente, eram seus senhores e sinhás); humor inabalável (o qual as
tornavam aptas a suportar todo e qualquer assédio de ordem moral ou sexual, de forma resiliente
e divertida); sexualidade aflorada (caracterizando um instinto primitivo de controle sexual sobre
o gênero masculino através de relações sexuais, o que serviu em inúmeras ocasiões como

43
KAHLO, Coletivo Não Me et al (Org.). #MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes.. Rio de Janeiro:
Edições de Janeiro, 2016, p. 38. Elaborado por: Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e
Thaysa Malaquias..
44
THRUTH, Sojouner. 1891.
29

pretexto para violações sexuais por parte de senhores e castigos físicos por parte de sinhás, eis
que homens seriam incontroláveis quando provocados e, invariavelmente, a culpa cristã de tais
atitudes seria exclusivamente de quem as provocou); e tantas outras facetas calcadas em
concepções racistas. Importa frisar que existia (e tal circunstância permanece intacta até os dias
atuais) uma virtude muito bem quista: a gratidão. O motivo é tácito: a “boa” serviçal é, antes
de mais nada, fiel, confiável e agradecida45.

Assim nasceu o arquétipo da negra da casa, uma figura antológica gestada durante o
período escravista e parida quando do pós-abolição – vez que a subjugação de raça e gênero, a
fim de manter a ordem social, se fez mais presente do que nunca.

3.3. “OS LIVROS QUE ROUBOU NOSSO PASSADO IGUAL ALZHEIMER”46 – A


LITERATURA BRASILEIRA COMO CORO À ESTRUTURAÇÃO DO RACISMO PÓS-
ABOLIÇÃO E A CRIAÇÃO DO MITO DA TIA NASTÁCIA.

Como todo ideia, para ser recepcionada pela população em geral, é necessário que ela
seja reproduzida à exaustão. Assim, veicular a construção da negra da casa era artigo de
primeira necessidade. Em se tratando de um período em que a tecnologia dos meios de
comunicação não detinha uma ínfima parcela do que conhecemos nos dias de hoje, sequer os
jornais de maior circulação estariam aptos a difundir com tanta facilidade tal solidificação deste
arquétipo. Nessa esteira, a literatura foi uma forte aliada.

A literatura nacional foi, nesse sentido, pode ser representada por uma personagem
icônica: Tia Nastácia. Elaborada na obra infantil de Monteiro Lobato, Tia Nastácia era
empregada na casa da família de Pedrinho e Narizinho, netos de Dona Benta. A construção da
personagem se refere a uma serviçal amável, maternal, de pouca capacidade intelectual,
ingênua, pronta à servidão incansável e que, acima de tudo, jamais se ofende com quaisquer
circunstâncias ou faltas de decoro às quais poderia vir a ser exposta. No livro As Caçadas de
Pedrinho, o uso das terminologias “preta” e “sinhá” são recorrentes, dano conta da definição

45
DAVIS, Angela Y.. Mulheres, Raça e Classe. Nova York: Boitempo, 1981, p. 114. Tradução: Heci Regina
Candiani.
46
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 15 out. 2019.
30

clara entre quem servia e quem era servido nas relações interpessoais existentes no Sítio do
Pica-Pau Amarelo. No mesmo livro, há um trecho específico em que Tia Nastácia é comparada
a um símio:

[...] era o único jeito e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos,
trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal
agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros. 47

Em outro dos livros da série do Sítio do Pica-Pau Amarelo, Reinações de Narizinho,


Tia Nastácia é descrita da seguinte forma:
Respeitável público, tenho a honra de apresentar vovó, dona Benta de Oliveira,
sobrinha do famoso cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira, que já morreu.
Também apresento a princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora,
e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim
até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se
quebrará e ela virara uma linda princesa loura. 48

Na coletânea de contos Histórias de Tia Nastácia, Emília, a boneca de pano falante de


Narizinho, se dirige à personagem da seguinte forma: “Bem se vê que é preta e beiçuda! Não
tem a menor filosofia, está diaba. Sina é o seu nariz, sabe?”49. Claramente, a forma como Tia
Nastácia é descrita na literatura de Lobato demonstra uma visão racista e estereotipada da
funcionária doméstica negra. Pertinente pontuar que, em que pese a sugestão de que o autor era
apenas uma pessoa de sua época (década de 1930) e não uma pessoa necessariamente racista, o
linguajar utilizado é nitidamente pejorativo, inclusive havendo um sem-número de trabalhos
acadêmicos disponíveis em plataformas de consulta on-line tratando da questão da figura do
negro na obra de Monteiro Lobato. Ademais, o autor era associado à Sociedade Brasileira de
Eugenia e, em carta datada de 1928, período em que residia em Washington (EUA), se
correspondeu com um amigo enaltecendo a atuação da Ku Klux Klan – grupo terrorista de
supremacistas brancos, responsáveis por diversos atentados e assassinatos nos Estados Unidos:

País de mestiços, onde o branco não tem força para organizar uma Klux Klan, é país perdido
para os altos destinos. (...). Um dia se fará justiça ao Klux Klan; tivéssemos aí uma defesa
dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa
carioca —mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor, porque a mestiçagem do
negro destrói a capacidade construtiva.50

47
LOBATO, Monteiro. As Caçadas de Pedrinho. -: Lebooks Editora, 2019, p. 54Disponível em:
<https://pt.scribd.com/book/405826824/Cacadas-de-Pedrinho-Hans-Staden>. Acesso em: 01 nov. 2019.
48
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho: Lebooks Editora, 2019, p. 320. Disponível em:
<https://pt.scribd.com/read/405826882/Reinacoes-de-Narizinho>. Acesso em: 01 nov. 2019.
49
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. 32. ed. São Paulo: Brasiliense, 2002. Disponível em:
<http://www.miniweb.com.br/cantinho/infantil/38/estorias_miniweb/lobato/historias_de_tia_nastacia.pdf>.
Acesso em: 09 nov. 2019.
50
REGINALDO, Lucilene. Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor, afirma
historiadora.: Autora revisita polêmica sobre racismo do escritor, cuja obra entra em domínio público.. 2019.
31

Contrariamente à figura da negra da casa, foi desenvolvida uma personagem


diametralmente oposta à Tia Nastácia: Fräulein Elza. Personagem principal do livro de Mario
de Andrade – contemporâneo de Monteiro Lobato – Amar, Verbo Intransitivo, Fräulein era uma
governanta alemã, contratada pela família Sousa Costa. Sua função no núcleo familiar era
simples: iniciar sexualmente e amorosamente o filho mais velho da abastada família, Carlos.
Tal prática era comum no Brasil das décadas de 1920-1930; contratar imigrantes de origem
alemã para trabalharem na condição de governantas e, assim, não expor os filhos das famílias
burguesas à possibilidade de aventuras sexuais com mulheres inferiores – lê-se: negras,
nordestinas ou de baixa renda em geral. Na própria obra, Fräulein pondera sobre a supremacia
da raça alemã em detrimento dos brasileiros, especialmente dos negros, dando vazão à uma
alegoria que remonta o pensamento vigente à época.

[...] O homem da vida quer apagar tantas nuvens e afirma ríspido que não trata-se de
nada disso: a profissão dela se resume a ensinar primeiros passos, a abrir olhos, de
modo a prevenir os inexperientes da cilada das mãos rapaces. E evitar as doenças, que
tanto infelicitam o casal futuro. Profilaxia. Aqui o homem do sonho corcoveia, se
revolta contra a aspereza do bom senso e berra: profilaxia, não! Mas porém deverá
parolar, quando mais chegadinho o convívio, sobre essas “meretrizes” que chupam o
sangue do corpo sadio. O sangue deve ser puro. Vejam por exemplo a Alemanha, que-
dê raça mais forte? Nenhuma. E justamente porque mais forte e indestrutível neles o
conceito da família. Os filhos nascem robustos as mulheres são grandes e claras. São
fecundas. O nobre destino do homem é se conservar sadio e procurar esposa
prodigiosamente sadia. De raça superior, como ela, Fräulein. Os negros são de raça
inferior. Os índios também. Os portugueses também. Mas esta última verdade
Fräulein não fala aos alunos. Foi decreto lido a vez em que um trabalho de Reimer lhe
passou pelas mãos: afirmava a inferioridade dos latinos. Legítima verdade, pois quem
é Reimer? Reimer é um grande sábio alemão. Os portugueses fazem parte duma
raça inferior. E então os Brasileiros misturados? Também isso Fräulein não podia
falar. Por adaptação. Só quando entre amigos de segredo, e alemães. Porém os índios,
os negros quem negará sejam raças inferiores?51

Portanto, frente à exemplificação dessas duas personagens tão emblemáticas na


literatura brasileira, percebe-se que há uma discrepância entre a figura de uma governanta e de
uma empregada doméstica. A questão racial fala mais alto; nota-se que a função de Elza se dá

Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-monteiro-lobato-e-tao-


racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml>. Acesso em: 10 out. 2019.
51
ANDRADE, Mário de. Amar, Verbo Intransitivo: Idílio. São Paulo: Via Leitura, 2016, p. 24.
32

no sentindo de manter a higiene das possíveis relações sexuais do filho mais velho da família
Sousa Costa. De outra banda, Tia Nastácia permanece na figura de uma serviçal dócil,
desprovida de personalidade ou história próprias, existindo unicamente para o bel-prazer da
família residente no Sítio do Pica-Pau Amarelo.

A figura da negra da casa nos meios de comunicação literária, teatral e


cinematográfica não é exclusividade brasileira. Se na teledramaturgia nacional possuímos uma
enorme variedade de histórico de atrizes negras interpretando empregadas domésticas
estereotipadas, os Estados Unidos o fizeram muito antes do que os brasileiros: o filme ... E o
Vento Levou, produzido e distribuído pela produtora de filmes Metro-Goldwing-Mayer em
1939, demonstra a relação da personagem Scarlet O’Hara (interpretada por Vivien Leight) com
a empregada doméstica Mommy (interpretada por Hattie McDaniel). Percebe-se que a
personagem de McDaniel sequer possui um nome – ela apenas é chamada por Mommy (em
português: mamãe). A figura de Mommy é uma alusão à figura homônima do imaginário
popular norte-americano: a mãe preta – também vista como ama do leite, criadora de crianças
brancas de seus patrões e desprovida de qualquer traço de personalidade que lhe confira
autenticidade.

Por analogia, pode-se compreender a construção cultural através dos meios de


comunicação do estereótipo da negra da casa tal como tantas outras propagandas utilizadas a
fim de difundir ideias e ideologias. Como anteriormente citado, a concepção do antissemitismo
que ensejou o holocausto se deu, num primeiro momento, com charges demonstrando judeus
de forma pejorativa. A força de um estereótipo, principalmente quando atrelado e propagado
através do humor, é algo praticamente indestrutível. A propaganda nazista, salvadas as devidas
proporções, possui diversas semelhanças com o culturalismo racista brasileiro.

De forma pejorativa, é possível consolidar no senso-comum que o negro é inferior ao


branco – e, mais especificamente, a mulher negra é inferior a todo o resto da sociedade. E o
estereótipo da negra da casa consolidou o moralismo cristão da benevolência da família branca
ao autorizar a existência de uma serviçal negra na imaculada vida comum desse privilegiado
grupo e, em contrapartida, essa mesma mulher seria total e completamente devota à esta família,
sem vida pessoal e despida de individualidade. Assim, mulheres que ousaram corromper essa
lógica foram e ainda são vistas como ingratas. Por isso o debate em torno do trabalho doméstico
foi, é e por muito tempo ainda será um assunto espinhoso na sociedade brasileira; afinal, o
racismo não existe em uma sociedade “bela e miscigenada”, correto?
33

4. “QUIS VIDA DIGNA; ESTIGMA, INDIGNAÇÃO. O TRABALHO LIBERTA


– OU NÃO?”52 – O PÓS-ABOLIÇÃO E O TRABALHO DOMÉSTICO.

E assim, no dia 13 de maio de 1958, eu lutava contra a escravatura


atual: a fome!
CAROLINA MARIA DE JESUS.

A carta de alforria e o fim da escravidão não foram capazes de sanar quase


quatrocentos anos de prejuízo à população negra brasileira. Sem qualquer amparo, política
pública ou incentivos governamentais, milhões de pessoas foram jogadas à margem social. Uma
omissão desse porte por parte do Estado Brasileiro não é facilmente reparada – e foi, assim, que
o trabalho doméstico se consolidou como uma relação de emprego.

Descendente direto da escravidão, o trabalho doméstico no Brasil ainda é um retrato


da discriminação de raça, gênero e classe, por ser exercido, majoritariamente, por mulheres
pobres e negras.53 Num país originário do patrimonialismo, a ideia de possuir, no sentido de
posse, alguém subjugado à sua vontade denota local de destaque social; economicamente
falando, num passado não tão distante durante o período escravista, quanto maior o número de
escravos, maior prestígio social o indivíduo ostentava – vez que adquirir a liberdade de outrem
não meramente demonstra poder aquisitivo, mas também poder social. O patrimônio é um
elemento indispensável à personalidade do indivíduo e que está relacionado à sua capacidade
para adquirir a propriedade real54. A concepção de propriedade real advém da terminologia
utilizada pelos operadores do direitos em meados do séc. XIX; sendo um dos direitos
fundamentais dos cidadãos brasileiros à época.

A propriedade real, assim como a intelectual ou moral, tem pois a sua origem na
natureza, e é sagrada, porque, como já dissemos, é o fruto dos esforços, fadigas e
sacrifícios do homem, do suor de seu rosto, é o pão de sua família. [...] O fruto lhe

52
EMICIDA. Boa Esperança. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2015. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/109841167. Acesso em 15 out. 2019.
53
SOUZA, Duda Porto de; CARARO, Aryane. Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil. S.i:
Seguinte; Companhia das Letras, 2017, p. 108.
54
CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. São Paulo: Paco Editorial,
2018, p. 136.
34

deve ser garantido em toda a sua plenitude, ou a propriedade se bens móveis ou


imóveis, corpóreos ou incorpóreos.55

Como bem se verifica, transpondo tal verso à realidade fática brasileira, a meritocracia
evocada se dá no sentido de que possuir a liberdade de uma pessoa escravizada era fruto do
esforço daquele que a subjugou; jamais uma infeliz sucessão de episódios de genocídio, tráfico
humano e apagamento sistemático de memória da população sequestrada do continente
africano.

No decorrer dos anos, com o advento da abolição e ascensão das formas livres de
trabalho, emergiria, em todo o país, a questão de controle sobre a mobilidade de mulheres
libertas – estas agentes do trabalho livre doméstico e dos serviços pessoais prestados à elite
brasileira (seja ela de berço, seja ela como uma emergente burguesia)56. Eis que os fatores raça
e classe encontraram um terceiro elemento, determinante à estrutura opressiva e imobilizante
da sociedade brasileira: o gênero.

Outra vez, a liberdade estava novamente condicionada. O capitalismo emergente nos


anos finais do séc. XIX e início do séc. XX, concomitante à completa ausência de amparo aos
recém-libertos, restaram por subjugar, novamente, a existência de pessoas negras às vontades e
necessidades da população branca. Outrora, a possibilidade da aquisição própria da alforria não
advinha da vontade unilateral daquele que fora escravizado; o ponto determinante de tal
circunstância residia na vontade do detentor jurídico da liberdade – aquele que se beneficiava
diretamente da mão de obra escrava. Com o novo arranjo social quando da transição pós-
abolição, tal circunstância recebeu um novo polimento: o trabalho doméstico.

55
CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. São Paulo: Paco Editorial,
2018, p. 136 apud Bueno, José Antônio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do
Império. Brasília: Senado Federal, 1978, p. 421.
56
TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre Sobrados: Mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo
(1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013, p. 65-66.
35

4.1. “A FELICIDADE DO BRANCO É PLENA; A FELICIDADE DO PRETO É


QUASE”57. O SUFRÁGIO UNIVERSAL, O TRABALHO DOMÉSTICO COMO
ATIVIDADE REMUNERADA E A IMPORTAÇÃO DE IDEAIS DE LIBERTAÇÃO
FEMININA – OS PRIVILÉGIOS DE RAÇA E CLASSE.

A evolução dos debates sobre machismo no Brasil ocorreu de formas diferentes para
mulheres negras e brancas58. Quando se é trabalhada a questão de estruturação de opressão
patriarcal, evocam-se diversos questionamentos e pré-questionamentos quando ao papel da
mulher na sociedade – eis que os debates feministas desenvolveram-se de formas
completamente diferentes em suas respectivas condições de tempo e espaço. Cada uma das
peculiaridades e especificidades abordadas por cada grupo social dentro da homogeneidade do
gênero feminino demonstraram que, claramente, não há homogeneidade alguma; inclusive, tal
premissa é diametralmente oposta à realidade. Mulheres brancas possuem uma notória
vantagem social sobre mulheres negras e de outras minorias étnicas, pois o privilégio branco
diz respeito ao fato de que, se avaliada apenas a aparência, em um país colonizado por brancos
exercendo dominação sobre negros escravizados, a sua posição social pode ser definida pela
cor da pele59.
Não raro nos deparamos com as concepções do sufrágio universal como o alicerce
indispensável à libertação feminina e sendo o precursor da luta por igualdade de gênero na
História. Tal ideal, importado do movimento sufragista britânico e amplamente difundido nos
países de colonização europeia, ganhou popularidade – contudo, majoritariamente, as
idealizadoras dos movimentos pela libertação feminina sequer conheciam a realidade cruel e
desumana da esmagadora parcela da população feminina. Enquanto esposas de aristocratas e
membros do parlamento britânico discursavam em praças e em fábricas durante o período
vitoriano, mulheres proletárias, conduzidas pelo ideário de que o direito ao voto seria o arauto
de esperança para a conquista de direitos sociais e políticos – bem como a dignidade do existir
socialmente de forma ampla – desbravaram as ruas da capital inglesa portando cartazes com
frases de ordem e exigindo o direito ao voto.

57
EMICIDA. Ismália. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000
58
KAHLO, Coletivo Não Me et al (Org.). #MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes.. Rio de Janeiro:
Edições de Janeiro, 2016, p. 36. Elaborado por: Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e
Thaysa Malaquias..
59
Ibid., p. 53.
36

Entretanto, há uma diferença assombrosa entre esses dois grupos sociais: se por um
lado as mulheres abastadas podiam refugiar-se em seus lares quando fosse conveniente após
manifestações públicas em repúdio à discriminação de gênero, mulheres que compunham o
operariado estavam sujeitas à violência da polícia que, em represália às movimentações
feministas que tomaram as ruas da capital inglesa, agrediu, levou sob custódia e, inclusive, nas
situações mais extremas, subjugou essas mulheres a violências sexuais. De certa forma, era
cômodo para uma mulher da alta sociedade sentir-se despida da feminilidade compulsória ao
romper com o decoro social do conceito de “bela, recatada e do lar”. A experiência de brandir
cartazes e bandeiras pela libertação feminina soava tentadora a estas mulheres tão socialmente
reprimidas e que experienciaram por toda uma vida a necessidade de manter-se sempre imóvel
como um objeto decorativo à direita do marido. Porém, tal posicionamento beira o fetichismo,
haja vista que a violência advinda da luta pelo voto foi totalmente direcionada às mulheres da
classe operária; estas, sim, que lutaram por um direito – mesmo que este não tenha significado,
por si, a libertação feminina.
O filme As Sufragistas60 retrata, mesmo que de forma relativamente suave, tal relação
entre mulheres operárias e a aristocracia britânica. No decorrer da película nos deparamos com
o abismo de diferença de classe entre as mulheres vitimadas pela truculência da polícia de
Londres e as damas da aristocracia. Se, de um lado, estavam mulheres em condições sub-
humanas de trabalho, submetidas a cargas horárias extenuantes e absolutamente tolhidas de
educação formal, alimentação adequada e convívio familiar e social, do outro, encontramos
mulheres casadas com membros ou agregados do parlamento britânico, usufruindo das
construções sociais de feminilidade concebidas à época. O patriarcado, em que pese estar
veementemente presente na vida de ambos os grupos de mulheres, possui pesos completamente
diferentes entre estes – o diferencial está, invariavelmente, na classe. Dentro de um sistema
capitalista, em plena Segunda Revolução Industrial, não é sequer plausível cogitar que haveria
a menor hipótese de paridade entre estas mulheres – tão iguais no gênero, mas tão distintas em
suas posições sociais. Apesar do louvável trabalho de algumas figuras da burguesia emergente
que, de fato, se uniram às mulheres operárias, o conceito do direito ao voto estava intimamente
atrelado ao sentido de status quo – uma forma de equiparação confortável e simbólica, sem
alteração significativa da ordem social.
Transponível ao tema proposto no presente artigo, a posição privilegiada de mulheres
brancas no continente americano se deu em moldes bastante semelhantes aos de suas

60
AS SUFRAGISTAS. Direção de Sarah Gavron. Roteiro: Abi Morgan. S.i.: Universal, 2015. P&B.
37

congêneres do continente europeu. Aqui, na América, o conceito de raça e classe estão


intimamente ligados – pelos motivos anteriormente expostos. A condição de espaço-tempo é
ponto crucial para qualquer análise histórica; o mesmo no que concerne a análises
sociojurídicas.
A importação de tais discursivas germinou por todo o continente Americano. Isabel
Allende, escritora chilena, compôs, em um simples parágrafo de sua obra A Casa dos Espíritos,
uma definição bastante precisa e sarcástica do tragicômico frenesi entre as mulheres da alta
sociedade quanto ao direito a voto, perpassando a história de Clara, uma criança com poderes
tele cinéticos; e sua relação com sua mãe Nívea, dama da alta sociedade chilena – esta letrada
e composta pela concepção burguesa britânica à moda vitoriana:
Clara acompanhava por vezes a mãe e duas ou três das suas amigas sufragistas em
visitas às fábricas, onde trepavam em caixotes para arengarem às operárias, enquanto,
a distância prudente, os capatazes e patrões observavam, zombeteiros e agressivos.
Apesar de sua pouca idade e completa ignorância das coisas do mundo, Clara podia
perceber o absurdo da situação e descrevia nos seus cadernos o contraste entre a mãe
e suas amigas, com casacos de pele e botas de camurça, falando de opressão, de
igualdade e de direitos, a um grupo triste e resignado de trabalhadoras, com toscos
aventais de cotim e as mãos vermelhas de frieiras, da fábrica, as sufragistas iam para
a confeitaria da Praça das Armas, tomar chá com pasteizinhos e comentar os
programas da campanha, sem que essa distração frívola as afastasse nem um segundo
dos seus inflamados ideais. Outras vezes sua mãe levava-a aos bairros suburbanos e
aos cortiços, onde chegavam com o carro carregado de alimentos e roupa que Nívea
e as amigas cosiam para os pobres. Também nessas ocasiões, a menina escrevia com
assombrosa intuição que as obras de caridade não podiam mitigar tamanha injustiça. 61

A alegoria elaborada por Allende ilustra, de forma literária, os reflexos da concepção


burguesa quanto ao direito ao voto e a libertação feminina como um todo.
Em se tratando dos Estados Unidos da América e do Brasil, países estes que foram
expoentes quanto à utilização do tráfico de pessoas sequestradas do continente africano para
utilização de mão de obra escrava, as circunstâncias do debate em torno do sufrágio universal
ganharam mais um contorno: a questão racial.
O movimento sufragista nos Estados Unidos ganhou força na segunda metade do séc.
XIX, concomitantemente aos primeiros indícios do início da Guerra Civil norte-americana, que
teve por uma de suas consequências a abolição da escravidão em todo o país. Uma das benesses
concedidas aos cidadãos afro-americanos que lutaram na Guerra Civil foi o direito ao voto.
Contudo, tal circunstância não caiu nas graças das sufragistas brancas. Elizabeth Cady Staton 62,

61
ALLENDE, Isabel. A Casa dos Espíritos. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988: p. 86. Tradução: Carlos
Martins Pereira.
62
Author, lecturer, and chief philosopher of the woman’s rights and suffrage movements, Elizabeth Cady Stanton
formulated the agenda for woman’s rights that guided the struggle well into the 20 th century. (1815-1902). Fonte:
38

notória feminista norte-americana, nome de destaque no movimento abolicionista e pelo


sufrágio feminino, declarou em carta enviada ao jornal New York Standart em 1865:
Embora esta seja uma questão sobre a qual os políticos ainda vão se desentender por
cinco ou dez anos, o homem negro continua, de um ponto de vista político, muito
acima das mulheres brancas instruídas dos Estados Unidos. As mulheres mais
representativas da nação deram o melhor de si nos últimos trinta anos para garantir a
liberdade para o negro; e, enquanto ele ocupou o ponto mais baixo da escala dos seres,
nós estivemos dispostas a defender suas reivindicações; mas agora que o portão
celestial dos direitos civis move lentamente suas dobradiças, uma questão séria que
se coloca é se agimos bem ao nos afastarmos para ver “Sambo” ser o primeiro a entrar
no reino. Como a autopreservação é a primeira lei da natureza, não teria sido mais
inteligente manter nossas lamparinas prontas e acesas, para que quando a porta
constitucional se abrisse nós nos aproveitássemos dos braços fortes e dos uniformes
azuis dos soldados negros para entrarmos ao seu lado, tornando, desse modo, a
passagem tão larga que nenhuma classe privilegiada conseguiria fechá-la novamente
às cidadãs e aos cidadãos mais humildes da república?
“Chegou a hora do negro.” Temos garantia de que, assim que ele estiver protegido em
todos os seus direitos inalienáveis, não será um poder a mais para nos deter? Não
ouvimos “cidadãos negros do sexo masculino” dizendo que acreditavam não ser
inteligente estender o direito de sufrágio das mulheres? [...] Na verdade, é melhor ser
escrava de um homem branco instruído do que de um infame negro ignorante [...].63

Tal carta demonstra o indiscutível racismo nada velado de Staton; inclusive, escancara
que, assim como do outro lado do Atlântico mulheres da aristocracia não possuíam qualquer
empatia sincera para com suas irmãs operárias, líderes sufragistas norte-americanas de prestígio
apresentaram posturas extremamente racistas. O texto revela outro ponto curioso a respeito do
racismo culturalista: a síndrome de salvador branco. Tal síndrome social se reporta ao
compadecimento cristão com a causa negra, ilustrado pela afirmativa em tom condescendente
de que, se não fosse pela nobre iniciativa de mulheres brancas, a escravidão jamais teria findado.
Staton revelou sua verdadeira posição quanto à questão racial no Estados Unidos ao afirmar
categoricamente que é preferível ser escrava de um homem branco bem instruído do que de um
infame negro ignorante, inclusive se valendo da falácia de que um homem negro se encontrava
em lugar politicamente superior ao de uma mulher branca instruída – em absolutamente
nenhuma circunstância uma pessoa recém-liberta do sistema escravista estaria em situação de
superioridade em relação às mulheres brancas norte-americanas.
Tais posicionamentos da sufragista (os quais, por consequência, representam um
pensamento recorrente entre várias mulheres ligadas ao movimento sufragista norte-americano)
ensejam o seguinte questionamento: se o voto de um homem negro causava tamanho

MICHALS, Debra. Elizabeth Cady Stanton. 2017. Disponível em: <https://www.womenshistory.org/education-


resources/biographies/elizabeth-cady-stanton>. Acesso em: 31 out. 2019.
63
Trecho reproduzido na obra Mulheres, Raça e Classe. DAVIS, Angela Y.. Mulheres, Raça e Classe. Nova
York: Boitempo, 1981. p. 79. Tradução: Heci Regina Candiani.
39

desconforto, eis que, na lógica destas mulheres, o voto simbolizada o mais alto patamar de
liberdade e emancipação política, qual seria a reação desse grupo no caso de as mulheres negras
recém-libertas possuírem outras alternativas econômicas que as liberassem da servidão
doméstica? Como dito anteriormente, em análise ao contexto histórico de todo o Continente
Americano, é possível partir da premissa de que a emancipação da mulher branca se deu às
custas de mulheres negras e de outras minorias étnicas que permaneceram em suas funções
domésticas em lares brancos.
No Brasil, o direto ao voto foi assegurado apenas com a ascensão de Getúlio Vargas
na década de 1930; contudo, houve ressalvas. O direito ao voto se limitada às mulheres cujos
maridos autorizassem tal direito, mulheres viúvas e solteiras que provessem o próprio sustento
de forma totalmente autônoma. Ou seja, em linhas gerais, haviam restrições significativas
quanto às possibilidades de acesso aos pleitos populares. Em se tratando da primeira metade do
séc. XX, bem se compreende que essas mulheres relativamente autônomas se encontravam
numa camada privilegiada da sociedade. As restrições apenas cessaram após 1934, com a
Constituição Federal64, a qual assegurou o direito ao sufrágio universal, e o sufrágio só se tornou
obrigatório para ambos os gêneros em 1946.
Contudo, os esforços para o alcance de tal direito começaram muito antes, no ano de
1891, quando 31 constituintes assinaram uma emenda ao projeto da Constituição conferindo
direito de voto à mulher65. A emenda foi sumariamente rejeitada; tal como foi rejeitada por
séculos em todo o mundo. Não foram poucas as sufragistas que marcaram época no Brasil:
Nísia Floresta, Amélia Rodrigues, Maria Amélia de Queiróz e Maria Tomásia Figueira de Melo.
Inclusive, tanto Maria Tomásia quanto Nísia Floresta eram partidárias do movimento
abolicionista brasileiro.
As mudanças ocorridas após a Proclamação da República, em 1889 (um ano após a
abolição da escravidão), abriram as portas para a criação de redutos de resistência feminina e
luta pelo direito ao voto. O Partido Republicano Feminino, fundado no ano de 1910, tinha por

64
BRASIL. Constituição (1934). Constituição Federal nº 09, de 16 de julho de 1934. Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil: Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus,
reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a
unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte:. Rio de
Janeiro, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 09
out. 2019.
65
TOSI, Marcela. A CONQUISTA DO DIREITO AO VOTO FEMININO.: Há pouco mais de 80 anos,
mulheres ainda não tinham direito ao voto no Brasil. 2016. Disponível em:
<https://www.politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/>. Acesso em: 29 set. 2019.
40

objetivo combater a exploração relativa ao gênero e reivindicar a necessidade do sufrágio


universal.
Porém, há um ponto interessante a ser observado no movimento sufragista brasileiro:
em que pese a necessidade urgente de emancipação política feminina através do voto, e de toda
a luta árdua dessas mulheres que se atreveram a romper barreiras em prol de um direito, o fator
racial foi deslocado ao segundo plano. A compreensão das diferenças entre mulheres brancas e
negras não foi fator determinante – também – entre as sufragistas brasileiras. Mesmo após
quarenta anos da abolição da escravidão, a posição da mulher negra na sociedade brasileira
permaneceu intacta, apesar do direito ao sufrágio feminino.
Na década de 1930, a empregada doméstica negra era tratada como mucama (antiga
escrava doméstica). Nessa situação enquadravam-se as cozinheiras, as lavadeiras e as
amas de leite. Em 1935, embora as mulheres tivessem acabado de conquistar o direito
ao voto, seu acesso à escola e ao mercado de trabalho ainda era muito precário. O voto
feminino foi uma conquista lenta, mas progressiva, que veio de campanhas da segunda
metade do século XIX e ganhou força no início do século seguinte.66
O direito ao voto não foi o suficiente para que a mulher negra pudesse se desvencilhar
do legado histórico da escravidão doméstica. A década de 1930, na qual o sufrágio finalmente
foi conferido às mulheres, a servidão condicionada ao âmbito doméstico de famílias brancas
estava a todo vapor. Os primeiros agenciadores de empregadas domésticas surgiram no Brasil,
e os escassos salários impediam essas mulheres de migrarem de classe social. Novamente,
verifica-se que o voto se tornou, em um primeiro momento, muito mais uma questão de
privilégio do que um direito – eis que estavam previstas exatamente quem seriam as mulheres
aptas ao voto. E, mesmo após a Constituição de 1934, esse direito não conferiria às mulheres
negras a plenitude da liberdade política, social e econômica.
Assim, é possível afirmar que o sufrágio universal é um direito resultante de diversas
e árduas lutas feministas; contudo, não é a última instância da emancipação feminina. A
indignação diante da opressão de gênero e classe não inclui naturalmente a indignação frente à

66
RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014, p. 19. (Retratos de Um
Brasil Negro). Obra que versa sobre a trajetória de vida, a produção intelectual e o ativismo político de uma das
maiores lideranças do movimento negro brasileiro do século XX. Através da biografia de Gonzalez, os autores
deixam entrever o processo de abertura democrática, revelando ainda a construção de identidade coletiva de
segmentos excluídos da política nacional, notadamente os negros e as mulheres. Esta obra faz parte da Coleção
Retratos do Brasil Negro, coordenada por Vera Lúcia Benedito, mestre e doutora em Sociologia/Estudos Urbanos
pela Michigan State University (EUA) e pesquisadora e consultora da Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo. O objetivo da Coleção é abordar a vida e a obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da
militância negra..
41

opressão de raça67, depende do nível de conscientização daquelas que se propõe ao embate


antirracista. Tal faceta do feminismo demonstra o descaso para com a questão racial,
secundarizando-a e excluindo-a da pauta permanente e constante da emancipação feminina.
Feministas não-brancas há muito já dizem que o enfoque dado pelo feminismo exclusivamente
ao gênero como fonte de opressão de mulheres não consegue estabelecer conexões entre o
sexismo e outras formas de dominação.68
Como acima exposto, a gênese do movimento sufragista foi marcada pelos privilégios
de classe, e, ao chegar no continente Americano, o elemento racial se tornou fundamental para
demonstrar que, apesar do voto, a liberdade das mulheres negras não estava garantida. A luta
perduraria por muito mais tempo.

4.2. “ERA UM CÔMODO INCÔMODO”69 – A LIBERDADE CONDICIONADA ENTRE


SOBRADOS.

A condição de trabalho doméstico da mulher negra não foi extinta juntamente com a
escravidão. Entre as fazendas senhoriais até as burguesias emergentes dos centros urbanos a
circunstância de permanecer com uma serviçal integralmente disponível aos caprichos
domésticos da família permaneceu intacta. Conforme ponderou Angela Davis:
Aos olhos dos ex-proprietários de escravos, “serviço doméstico” devia ser uma
expressão polida para uma ocupação vil que não estava a nem um passo de distância
da escravidão. Enquanto mulheres negras trabalhavam como cozinheiras, babás,
camareiras e domésticas de todo o tipo, mulheres brancas [...] rejeitavam
unanimemente trabalhos dessa natureza. 70
Mesmo antes do advento da abolição da escravidão, os serviços de locação de escravas
domésticas já eram oferecidos por senhores detentores de escravos. Na obra Libertas Entre
Sobrados, da historiadora Lorena Féres da Silva Telles, constam diversos registros
historiográficos quanto ao aluguel de mulheres escravizadas, a fim de que estas prestassem

67
ROCHA, Maria Isabel Baltar da (Org.). Trabalho e Gênero: Mudanças, Permanências e Desafios. São Paulo:
Editora 34, 2000, p. 298. Texto de Maria Aparecida da Silva Bento.
68
CALDWELL, Kia Lilly. Fronteiras da diferença: raça e mulher no Brasil. Revista Estudos Feministas, vol.
8, nº 2, 2º sem, 2002, p. 92-93.
69
EMICIDA. Levanta e Anda. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2013. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
70
DAVIS, Angela Y.. Mulheres, Raça e Classe. Nova York: Boitempo, 1981, p. 98. Tradução: Heci Regina
Candiani.
42

“serviços” em casas senhoriais de terceiros; na condição de amas do leite, cozinheiras, babás e


quantas mais tarefas fossem possíveis.
Com o declínio da escravidão, diversas políticas foram adotadas a fim de
“regulamentar” e “controlar” as trabalhadoras domésticas – alforriadas ou alugadas. Os
mecanismos de controle se davam na medida em que haviam registros municipais dando conta
de onde cada uma dessas mulheres estava localizada. Contudo, tal regulamentação pelo
aparelho Estatal não foi bem recebida entre os patrões. O uso de cadernetas de controle
colocaria as empregadas domésticas sob constante vigilância das autoridades, o que não foi
encarado pelos patrões e senhores de escravos como uma afronta à privacidade doméstica. Tal
conceito foi, muito anos depois, adotado pelas pessoas que se opuseram, já no séc. XXI, à
regulamentação do trabalho doméstico no ordenamento jurídico brasileiro. As semelhanças
entre os arrazoamentos daqueles que eram contrários ao controle do trabalho doméstico em
1880 e os votos contrários à PEC das Domésticas (Proposta de Emenda à Constituição
478/10)71, votada no ano de 2012 – que será esmiuçada no próximo capítulo.
Contudo, em que pese qualquer regulamentação vigente à época, essas mulheres não
estavam à salvo das jornadas extenuantes de trabalho e da aglutinação de afazeres domésticos:
da cozinha ao quarto das crianças; como amas do leite e lavadeiras; e, de forma grotesca,
necessário dizer que as práticas de abuso sexual ocorriam tanto na escravidão doméstica quanto
nas fazendas. Tal realidade, nos mesmos moldes, continuou no pós-abolição. Após o término
do período escravista, essas mulheres permaneceram nos lares de famílias brancas, pois não
tinham outro lugar para ir. Assim, a concepção de “dormir no trabalho” surgia nos bastidores
da vida doméstica branca.
O surgimento do conceito de “dormir” no trabalho foi mais uma das práticas reiteradas
de manter mulheres negras na condição de cidadãs de segunda classe. Numa subespécie
escabrosa da servidão por dívida, essas mulheres permaneciam em lares senhoriais e burgueses,
em condições de dignidade subumana e envoltas pelo véu da pseudo benevolência de seus
patrões e patroas. Assim, crianças eram submetidas ao trabalho doméstico mesmo a partir da
mais tenra idade, com a premissa de estar sendo beneficiadas pelo desfrute da convivência com
brancos efetivamente civilizados. Não raro mulheres negras no pós-abolição foram colocadas à

71
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 478/10, de 2010. : "Revoga o parágrafo único do art. 7º da
Constituição Federal, para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os
demais trabalhadores urbanos e rurais". Brasília, Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=367FA610595239749DE98FEDB
C4ECD87.proposicoesWebExterno2?codteor=755258&filename=Tramitacao-PEC+478/2010>. Acesso em: 10
nov. 2019.
43

força em tais circunstâncias; assim como suas filhas e netas. Uma forma de controle social, em
linhas gerais.
Essas mulheres, “como se fossem da família”, foram agraciadas com um local próprio
para seus raros momentos de repouso: o quarto de empregada. Locais pequenos, apertados, com
pouca ou nenhuma ventilação, mobiliado com móveis de segunda mão, sob a premissa de
oferecer “conforto” pelos serviços prestados com tanta dedicação.
Além de realizar um trabalho com pouca ou sem nenhuma remuneração além de vestes
velhas e alimentação precária, as mulheres trabalhadoras domésticas também eram
submetidas com muita frequência a abusos físicos, morais e sexuais. Como não havia
leis para regulamentar este tipo de trabalho, as poucas mulheres que denunciavam
violência eram silenciadas.72

Os salários eram extremamente precários (realidade ainda recorrente nos dias atuais),
sinalizando um valor muito mais simbólico do que efetivamente uma forma de pagamento por
prestação de serviços. Essa insipiência salarial não permitia a ascensão econômica do grupo,
eis que sequer provia sustento próprio e condições de arcar com uma moradia digna – e própria.
Estas criadas envelheciam sem nunca terem tido condição para manter uma poupança
ou outra forma de economia financeira que lhes assegurasse uma velhice com
condições mínimas de sustento, terminando em asilos ou abandonadas na rua. Esta
situação as mantinha em miséria, permitindo a manutenção da pobreza daquela
população.73

A ocupação compulsória destas mulheres no trabalho doméstico reverberou como um


eco o longo do tempo; mais de cem anos se passaram e essa ainda é a realidade para milhões
de mulheres afro-brasileiras. Compreende-se, portanto, que o quarto de empregada é, na
verdade, uma espécie de supressão e anexação da senzala à casa dos patrões.

4.3. “AGUENTAR MADAME MANDAR E TER QUE ACATAR; AINDA OUVINDO O


BAIRRO SUSSURRAR: ‘VOCÊ SABE, MÃE SOLTEIRA É O QUE?’” 74 – A HISTÓRIA QUE
SE REPETE MESMO APÓS 131 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL.

Mesmo após quase um século e meio da abolição, o trabalho doméstico permanece


sendo uma realidade entre mulheres negras e de baixa renda. A predestinação de mulheres

72
MOURA, Gabriela. Mulher negra — empregada doméstica: origem escravista e manutenção de castas
sociais.: Texto originalmente escrito em 2015 e publicado em um antigo blog, como parte de uma pesquisa.. 2019.
Disponível em: <https://medium.com/@metaforica_gabi/mulher-negra-empregada-dom%C3%A9stica-origem-
escravista-e-manuten%C3%A7%C3%A3o-de-castas-sociais-9e247bdf7728>. Acesso em: 01 out. 2019.
73
Idem item anterior.
74
EMICIDA. Ooorra. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2009. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
44

negras ao trabalho doméstico possui um forte impacto social. Lélia Gonzales (1935-1994),
socióloga brasileira de grande prestígio nacional e internacional, versou, em suas memórias,
que na infância foi condicionada ao trabalho doméstico como forma de complementar o
sustendo familiar. Tal ocupação era bastante comum à época em que Lélia era apenas uma
criança impúbere, na década de 1940.
Quando criança eu fui babá de filhinho de madame, você sabe que criança negra
começa a trabalhar muito cedo. Teve um diretor do Flamengo que queria que eu fosse
pra casa dele ser uma empregadinha, daquelas que viram cria da casa. Eu reagi muito
contra isso e então o pessoal terminou me trazendo de volta pra casa... (Em entrevista
concedida ao jornal O Pasquim, em 1986)75

A situação de Lélia, bem como a de diversas intelectuais negras no Brasil, é a exceção


que confirma a regra: a sociedade hegemônica branca dispendeu um esforço exorbitante a fim
de firmar a posição da mulher negra como cidadã de segunda classe. A ascensão intelectual da
socióloga é a demonstração clara que não há qualquer impeditivo de cunho biológico quanto à
capacidade de desenvolvimento (em qualquer esfera) da população negra; a questão que acabou
por tolhir a existência de muitas mais Lélias é de ordem social. Os baixos níveis de escolaridade
da população negra brasileira contribuíram fortemente para que o trabalho doméstico crescesse.
E a dificuldade de acesso ao ensino formal se ampara na miopia seletiva do Estado e da
sociedade brasileira no que concerne à necessidade da universalização da educação, tirando-a
da exceção (como foi Lélia Gonzales) e colocando-a como regra.
Pesquisas estatísticas quanto à quantidade de mulheres negras inseridas no trabalho
doméstico são realizadas no Brasil desde a segunda metade da década de 1980. Segundo dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1995, 47,1% das mulheres negras
brasileiras estavam concentradas na prestação de serviços domésticos – contra 27,4% de
mulheres brancas. À época, 26,6% das mulheres negras da categoria se encontravam sem
carteira de trabalho assinada pelo empregador76.
No ano de 2011, uma pesquisa feita sob a coordenação da Secretaria de Políticas para
as Mulheres (SPM) do Governo Federal levantou que o trabalho doméstico empregava, à época,

75
RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro Edições, 2014, p. 27. (Retratos de Um
Brasil Negro). Obra que versa sobre a trajetória de vida, a produção intelectual e o ativismo político de uma das
maiores lideranças do movimento negro brasileiro do século XX. Através da biografia de Gonzalez, os autores
deixam entrever o processo de abertura democrática, revelando ainda a construção de identidade coletiva de
segmentos excluídos da política nacional, notadamente os negros e as mulheres. Esta obra faz parte da Coleção
Retratos do Brasil Negro, coordenada por Vera Lúcia Benedito, mestre e doutora em Sociologia/Estudos Urbanos
pela Michigan State University (EUA) e pesquisadora e consultora da Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo. O objetivo da Coleção é abordar a vida e a obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da
militância negra..
76
Ibid.. p. 298.
45

15,3% da mão de obra feminina total do país – número esse que corresponde a
aproximadamente 7 milhões de brasileiras, sendo a grande maioria mulheres negras. Também
à época, 73,8% não possuíam carteira profissional devidamente registrada, o que incidia numa
desvalorização de 30% no valor do salário em relação às trabalhadoras formais. No que
concerne exclusivamente às mulheres negras, 59% dessa população estava inserida no mercado
de trabalho informal, recebendo apenas 67,4% do salário mínimo – o que, em 2011
correspondia a R$367,33 (vez que o salário mínimo brasileiro alcançava a monta de
R$545,00)77.
Uma pesquisa realizada em 2014, pelo Ministério do Trabalho e da Previdência e pelo
IPEA mapeou essa categoria no país78. A Nota Técnica Mulheres e trabalho: breve análise do
período 2004-201479 apresentou um panorama quanto à participação de mulheres no mercado
de trabalho, bem como quais os ofícios mais comuns entre o gênero feminino e suas respectivas
remunerações, além dos recortes de raça e faixa econômica. O texto, elaborado pelos
pesquisadores do Ipea Luana Simões Pinheiro, Antonio Teixeira Lima Junior e Natália de
Oliveira, da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc), e de Rosane da Silva, do Núcleo
de Gênero do Gabinete do Ministro do Trabalho e Previdência Social, analisou dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2014, do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Em que pese o aumento de renda entre o lapso temporal
analisado, as mulheres negras permanecem recebendo salários muito inferiores aos homens
brancos (R$ 946 contra R$ 2.393, em 2014). Conforme a pesquisa, o trabalho doméstico no
Brasil no ano de 2014 correspondia a 14% da população feminina brasileira, aproximadamente
5,9 milhões de mulheres, sendo estas majoritariamente mulheres negras.
As realidades dessas mulheres não se resumem em estatísticas: filmes, livros e séries
de reportagens deram espaço para que as narrativas dessas mulheres fossem contadas. No livro
Holocausto Brasileiro, escrito pela jornalista Daniela Arbex, são narradas diversas situações de

77
Dados extraídos da obra Libertas Entre Sobrados. TELLES, Lorena Féres da Silva. Libertas entre
Sobrados: Mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013, p. 22-
23.
78
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Estudo detalha avanços femininos no mercado de
trabalho.: Nota Técnica do Ipea aponta evolução, mas a realidade das mulheres negras continua muito distante
daquela de outros segmentos.. 2016. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=27349>. Acesso em: 05 nov.
2019.
79
IPEA - Insituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014.
2014. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160309_nt_24_mulher_trabalho_marco_2016.
pdf>. Acesso em: 05 nov. 2019.
46

violações aos direitos humanos contra internos, funcionários os agregados do Hospital Colônia,
antigo manicômio localizado em Barbacena, no Estado de Minas Gerais. Geralda Siqueira
Santiago foi estuprada aos quatorze anos e levada para a Colônia grávida, tendo seu filho tirado
de si sem maiores explicações80. Nascida no interior do Vale do Rio Doce no ano de 1949,
perdeu os pais ainda na infância, sendo criada por vizinhos na ausência de outros familiares.
Aos 11 anos, ainda analfabeta, foi levada para trabalhar numa casa de família na cidade de
Virginópolis. Na casa, era explorada, sendo incutida das tarefas domésticas como cozinhar,
limpar a casa e lavar as roupas. Morava no quarto dos fundos da residência. Quando contava
com 14 anos de idade, foi estuprada pelo patrão, famoso advogado à época. Ao tentar pedir
ajuda para os membros da família empregadora, foi zombada pelo pedido, sob o argumento de
que “homem era assim mesmo”. Em outra oportunidade, foi novamente estuprada pelo patrão
– só que, desta vez, acabou engravidando. Assim que a gestação foi descoberta, a família tratou
de consumir com Geralda – enviando a adolescente ao Hospital Colônia. Lá foi submetia ao
eletrochoque e colocada para trabalhar compulsoriamente no berçário da instituição. Em
outubro de 1966, deu a luz ao filho, João Bosco, com o qual só se reencontrou em 2011, fruto
do esforço de amigos e colegas de trabalho do filho, que prepararam o reencontro. Foi
conduzida à força para fora do Hospital, sendo obrigada a deixar o filho na instituição até estar
financeiramente apta para reaver sua guarda. Durante o pouco período em que Geralda
acompanhou a infância de João Bosco, Geralda reuniu economias trabalhando como empregada
doméstica, a fim de conseguir retirar o filho do Colônia. Porém, um dia, compareceu para as
visitas semanais e não encontrou o filho – foi retirado da instituição e levado ao Patronato Padre
Cunha. O trabalho compulsório e a falta de amparo de Geralda, menina negra, órfã e de baixa
renda resultou em 45 anos longe do filho. Felizmente, pelo menos essa história, terminou com
um final feliz.
No cinema, não são poucos os filmes que tratam da temática do trabalho doméstico. O
filme Que horas ela volta?81, estrelado por Regina Casé, conta a história de Val, mulher
retirante do nordeste do país, se muda para a capital paulista, a fim de trabalhar como doméstica
em casa de família para prover sustento para a filha, Jéssica, que permaneceu residindo em
Pernambuco. Atuando como empregada doméstica e babá na casa dos patrões Bárbara e José

80
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro: Genocídio: 60 mil, mortos no maior hospício do Brasil.. 21. ed. São
Paulo: Geração, 2013, p. 145-165.
81
Que horas ela volta?. Direção de Anna Muylaert. Produção de Fabiano Gullane, Caio Gullane, Débora Ivanov
e Anna Muylaert.. Intérpretes: Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Michel Joelsas e Lourenço Maturelli..
Roteiro: Anna Muylaert. Rio de Janeiro: África Filmes, Globo Filmes., 2015. (114 min.), son., color.
47

Carlos, sendo responsável pela criação do filho do casal, Fabinho, Val só retornou a ver a filha
mais de dez anos depois de sua partida, quando Jéssica vai para São Paulo para prestar vestibular
para Arquitetura. A chegada da jovem causa desconfortos e reviravoltas na família;
primeiramente, por Jéssica não ser concorde com a situação da mãe – trabalhadora em tempo
integral, sem casa própria, residindo num quarto minúsculo aos fundos da casa da abastada
família residente do Morumbi. A patroa, Bárbara, demonstra extremo desconforto com a
presença da jovem, vez que Jéssica “não sabe qual o seu lugar” na vida da família. O patrão,
José Carlos, assedia Jéssica em mais de uma oportunidade, inclusive pedindo-a em casamento.
A película Que horas ela volta?, de direção, roteiro e produção e Anna Muylert, peca
em alguns aspectos. Primeiramente, pelas situações relativamente caricatas às quais todos os
personagens estão inseridos – principalmente Bárbara, a patroa visivelmente arrogante e que
não se conforma com a ideia de a “filha da empregada” não apresentar comportamento servil e
obediente. O desconforto inicial ao expectador se torna um conforto, pois nenhum patrão se
reconhece em Bárbara; sequer se reconhece em José Carlos, em suas atitudes de assédio sexual
em tom velado e sob uma ótima “apaixonada” por Jéssica. Outro ponto a ser observado é que a
questão racial é deixada à parte; porém, se tratam de duas mulheres nordestinas, população
notoriamente vitimada por xenofobia por parte de pessoas do sul e do sudeste do Brasil. Em
que pesem os aspectos negativos, o filme mostra graficamente algumas das micro violências do
cotidiano de uma empregada doméstica: o papel de mãe interina do filho dos patrões, a ausência
de independência econômica, a indiferença dos patrões para com a sua individualidade e a
insatisfação com qualquer situação que minimamente possa resultar em uma quebra do status
quo.
No ano de 2015, o programa jornalístico produzido pela Rede Globo de Televisão
Profissão Repórter82 fez um episódio sobre as dificuldades das empregadas domésticas no
Brasil e os reflexos da promulgação da Lei Complementar 150, que conferiu direitos
trabalhistas plenos à categoria. Em três partes no YouTube, a reportagem conduzida pelo
jornalista Caco Barcelos dá conta do cotidiano real de domésticas no país. Um caso, em
específico, chama a atenção: uma empresária paulista que procura não uma, mas duas
empregadas domésticas em turno integral, para dividirem um quarto nos fundos do
apartamento, guarnecido por duas camas de solteiro e uma janela basculante. Quando

82
PROFISSÃO Repórter.. Direção de Ali Kamel, Silvia Faria. Produção de Apresentação: Caco Barcellos. Rio de
Janeiro: Rede Globo de Televisão., 2015. Son., color. Série Série de Reportagens: Domésticas.. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ejTq8ln1N2c, https://www.youtube.com/watch?v=bH8brgDWg6c e
https://www.youtube.com/watch?v=GJb6pdXADsU>. Acesso em: 01 out. 2019.
48

entrevistada, a patroa demonstra orgulho ao oferecer o trabalho às empregadas; inclusive mostra


a mesa disponível para as refeições delas (que também é o local utilizado para passar as roupas
da família) e diz que elas estão autorizadas a utilizar a rede de internet wi-fi da casa livremente.
O salário oferecido era de R$1.500,00, com folgas a cada quinze dias. Tal circunstância denota
uma clara situação análoga ao sistema escravista – mulheres negras desprovidas de vida pessoal
ou individualidade, remuneradas de forma básica e tolhidas do direito de possuir residência
própria. Infelizmente, a realidade da referida empresária repercute em todo o país – o que leva
ao questionamento: quem, sem necessidades clínicas (como deficiências físicas e dificuldades
de locomoção) ou pelo fator de idade necessita de duas empregadas domésticas em turno
integral? Há uma clara relação de poder nessa e em tantas outras histórias idênticas ou
semelhantes em todo o país.
A série de reportagens sobre as empregadas domésticas do Profissão Repórter visitou
agências de domésticas. Conforme a empresa, após a promulgação da Lei Complementar 150,
a procura por funcionárias do lar teve uma diminuição importante. Os argumentos dos patrões
eram simples: não detinham de condições financeiras de arcar com os custos trabalhistas
integrais das empregadas.
Como esses e tantos outros exemplos que poderiam ser citados no presente trabalho,
verifica-se um descaso para com a classe trabalhadora doméstica – eis que para patrões em geral
essas mulheres sequer são parte de uma classe de trabalhadoras. O racismo cordial, o
culturalismo racista, o elitismo e a ideia de caridade para com as empregadas domésticas não
são compatíveis com a aceitação de uma classe trabalhadora digna de direitos trabalhistas,
jornadas pré-estabelecidas em lei e remuneração adequada. Isso seria uma afronta direta à
manutenção das castas sociais.
Frente a tantas afrontas diretas à dignidade da pessoa humana, essas mulheres não
permaneceram inertes. Até a regulamentação completa do trabalho doméstico no Brasil, houve
um percurso árduo de lutas e resistências, em prol da dignificação da classe das domésticas, a
fim de serem reconhecidas como sujeitos não apenas de deveres, mas de direitos, no pleno gozo
da cidadania que lhes é devida.
49

5. “O MESMO IMPÉRIO CANALHA QUE NÃO TE LEVA SÉRIO, INTERFERE


PRA TE LEVAR À LONA; REVIDE!”83 – O RECONHECIMENTO DA
TRABALHADORA DOMÉSTICA NO MERCADO DE TRABALHO FORMAL E A
PROMULGAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR Nº 150.

Somente quem é pertencente à esta categoria de trabalho pode compreender


plenamente o estigma social que o trabalho doméstico carrega; serem vistas como inferiores,
superar dia após dia a discriminação de trabalho, gênero, classe e raça e sobreviver com baixos
salários, aferidos a duras penas. A desqualificação do trabalho doméstico é o resquício da lógica
escravocrata de servidão – enquanto patrões não reconhecem empregadas domésticas como
trabalhadoras. É bem verdade que o trabalho de “faxineira”, atualmente, possui um histórico de
necessidade de sobrevivência frente ao crescente desemprego formal no país.
Além de exercerem uma função desvalorizada na sociedade, são submetidas a
diversas condições precárias que as condicionam a permanecerem nessa profissão,
não atingindo um grau de estudo elevado, não tendo outras oportunidades já que o
salário do empregado doméstico - muitas vezes - não permite uma vida digna, pois
são extremamente baixos, com o gravame de exigir muito do empregado.
O Portal Brasil (2016) traz outra abordagem relevante, destacando a falta de opções
que muitos domésticos enfrentam, acabando por escolher essa profissão não por amor
ou por se sentir realizado, mas apenas para não passar fome e ter atendidas
necessidades básicas de sobrevivência.84

Contudo, a despeito dessa realidade, necessário o reconhecimento da formalidade do


emprego doméstico, a fim de salvaguardar o mínimo de dignidade trabalhista e todos os direitos
inerentes às relações de trabalho. Se houve omissão quando da formulação da Consolidação das
Leis Trabalhistas e nas legislações subsequentes – inclusive após a vigência da Constituição
Federal de 1988 – a necessidade de preenchimento dessa lacuna jurídica se fez presente.
Frente a todo o contexto que formulou a concepção de trabalho doméstico no Brasil, a
história de resistência dessas mulheres é admirável. Em que pesem as reiteradas circunstâncias
degradantes às quais a população negra foi submetida, a subversão e a inconformidade sempre
estiveram presentes em suas vidas. Não foram poucas as provações: as dificuldades residuais
da escravidão incidiram diretamente na impossibilidade de milhões de mulheres negras ao
longo da História Brasileira em ingressar no mercado de trabalho formal, bem como ter acesso

83
EMICIDA. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000. Acesso em 30 out. 2019.
84
SILVEIRA, Geane José da; MOURA, Gizelson Monteiro de. Os Direitos do Empregado Doméstico Após a
Emenda Constitucional nº 72. Joinville: Edição dos Autores, 2012. Disponível em:
<https://pt.scribd.com/read/421408860/Os-Direitos-Do-Empregado-Domestico-Apos-A-Emenda-Constitucional-
N%C2%BA-72>. Acesso em: 22 ago. 2019.
50

ao ensino. O baixo grau de escolaridade por conta da necessidade de trabalho desde a infância
e até mesmo de analfabetismo fez e, infelizmente, ainda faz parte da realidade de muitas
mulheres afro-brasileiras – mister salientar que, gradualmente, essa realidade está mudando a
passos lentos. Contudo, não foi a falta de educação formal que cerceou a vontade e a
determinação dessa população na busca por seus direitos. Afinal, a benevolência da raça branca
nunca existiu como elemento histórico, apenas no imaginário coletivo branco – assim, a luta se
deu entre elas e, principalmente, por elas.

5.1. “PERMITA QUE EU FALE, NÃO AS MINHAS CICATRIZES” 85 A HISTÓRIA DE


RESISTÊNCIA DE LAUDELINA DE CAMPOS MELO E O INÍCIO DO MOVIMENTO
SINDICAL DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS.

Se hoje as empregadas domésticas contam com direitos trabalhistas e organização


sindical, muito disso se deve à atuação de Laudelina de Campos Melo86. Natural de Campinas,
no estado de São Paulo, filha de Sidônia e Marco Aurélio, Laudelina nasceu no ano de 1904.
Sua mãe trabalhava em casa de família (a mesma que foi proprietária da liberdade de seus avós).
Laudelina passou a trabalhar como empregada doméstica aos dezessete anos de idade,
e frequentou, durante toda a sua adolescência, associações culturais voltadas à cultura afro-
brasileira. Laborando no ofício de empregada doméstica, sempre percebeu a incidência do
racismo e do machismo em sua vida; os fatores de raça, classe e gênero afetavam não só a sua
vida, mas a vida de todas as mulheres negras com as quais tinha contato e trabalhavam na
mesma área.
No ano de 1936 filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, no mesmo ano,
fundou a Associação de Empregadas Domésticas de Santos – conferindo-lhe a vanguarda do
movimento sindicalista da categoria. A Associação foi fechada com o advento do Estado Novo,
sendo reaberta apenas no ano de 1946. Fundou na cidade Campinhas/SP o primeiro sindicato
propriamente dito de empregadas domésticas no Brasil. À frente da associação, apoiou dois
tipos de ações: um voltado para alfabetização, pois considerava que seria o primeiro passo para
conscientização e entendimento da legislação trabalhista e consequentemente reivindicação dos
direitos da classe; e atividades que tinham como objetivo estimular a solidariedade entre as

85
EMICIDA. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000. Acesso em 30 out. 2019.
86
SOUZA, Duda Porto de; CARARO, Aryane. Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil. S.i:
Seguinte; Companhia das Letras, 2017, p. 108.
51

trabalhadoras87. O pioneirismo de Laudelina não estava exclusivamente na sindicalização das


domésticas, mas também na inserção da pauta antirracista no movimento sindical como um
todo.
Para além das demandas sindicais, Laudelina de Campos Melo sempre foi adepta às
artes e agremiações sociais e culturais.
Laudelina mudou-se para Campinas em 1955, entrou para o movimento negro da
cidade e participou de atividades culturais e sociais, especialmente com o Teatro
Experimental do Negro (TEN), cujo objetivo era elevar a autoestima e a confiança da
juventude negra, através da formação de grupos de teatro e dança. Criou uma escola
de música e de balé na cidade. Trabalhou como empregada doméstica até 1954,
quando abriu seu próprio negócio, uma pensão, e passou a vender também salgados
nos dois campos de futebol da cidade (Guarani e Ponte Preta). A partir daí, ela se
dedicou integralmente à militância sindical e cultural, inclusive promovendo, em
1957, um baile de debutantes (Baile Pérola Negra) para jovens negras, no Teatro
Municipal de Campinas.88

Faleceu em 1991, com o pioneirismo na luta sindical da classe das trabalhadoras


domésticas, e podendo ver os frutos de suas reivindicações ao longo de 70 anos de militância
classista e antirracista florescerem: presenciou a queda do regime da Ditadura Militar e o
período da redemocratização, com a implementação da Constituição Federal de 1988 – a qual
conferiu direitos importantes às empregadas domésticas.

5.2. “CUIDADO, NÃO VOA TÃO PERTO DO SOL, ELES NÃO AGUENTA TE VER
LIVRE.”89 – O LENTO PERCURSO JURÍDICO PELA REGULAMENTAÇÃO DO
TRABALHO DOMÉSTICO.

Como nos capítulos anterior foi esmiuçado, a locação de empregadas domésticas


remonta ao período anterior à abolição da escravatura, inclusive com regulamentações
municipais quanto ao controle do trabalho destas mulheres. Após a ascensão getulista, e com

87
CANAL FUTURA. Laudelina de Campos Melo: Ativista sindical e trabalhadora doméstica. Sua trajetória foi
marcada pela luta contra o preconceito racial, subvalorização das mulheres e exploração da classe trabalhadora.
Combateu a discriminação da sociedade em relação às empregadas domésticas, exigindo melhor remuneração e
igualdade de direitos sociais. Sua atuação permitiu a regulamentação do emprego doméstico como fundadora do
Sindicato das empregadas domésticas.. A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-
brasileira, fruto de uma parceria entre o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan - Centro de Informação e Documentação
do Artista Negro, o MEC, a Fundação Palmares, a TV Globo e a Seppir - Secretaria de políticas de promoção da
igualdade racial. O projeto teve seu início em 2004 e, desde então, tem realizado produtos audiovisuais, ações
culturais e coletivas que visam práticas positivas, valorizando a história deste segmento sob um ponto de vista
afirmativo.. Disponível em: <http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/laudelina>. Acesso em: 09 nov. 2019.
88
Idem item anterior.
89
EMICIDA. Ismália. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/120489000
52

os acalorados debates sobre sindicalização e direitos dos trabalhadores, houve um decreto que
dispôs sobre a locação dos empregados em serviço doméstico.
No ano de 1941, na então sede do Governo Federal, no Rio de Janeiro, Getúlio Vargas
assinou o Decreto Lei nº 3.078/4190. Com o advento deste Decreto Lei a carteira profissional
devidamente registrada passou a ser um direito e, também, uma obrigação do empregado
doméstico. Contudo, a abrangência do referido dispositivo legal era muito ampla, dando uma
excessiva margem ao entendimento de quem se enquadraria na condição de empregado
doméstico. No texto do Decreto Lei, constam como deveres do empregador o tratamento digno
ao empregado, a pontualidade do pagamento do salário devido e segurança quanto a questões
de higiene, habitação e alimentação. Em que pese o caráter genérico do Decreto Lei, este foi
um marco importante no progresso jurídico quanto à regularização e regulamentação formal do
trabalho doméstico.
Quando da promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas91, um dos marcos
históricos mais emblemáticos de todo o período getulista, houve a regulamentação da
manifestação dos interesses coletivos dos trabalhadores; com o fim de organizar a classe
trabalhadora dentro da norma estatal. Contudo, a Consolidação cometeu um erro crasso: a
exclusão sumária da categoria dos empregados domésticos. Tal omissão é um reflexo da
sociedade quarentista: arcaica e mergulhada em discriminação racial e de classe. O Art. 7º da
CLT original excluía categoricamente a classe, deixando a categoria à margem da
regulamentação formal.
Apenas no ano de 1972, com a instituição da Lei nº 5.85992 a situação do empregado
doméstico no âmbito jurídico trabalhista começou a ganhar contornos mais bem definidos e
seguridade. O referido dispositivo classifica o empregado doméstico como "aquele que presta
serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito
residencial destas.". Assim como no Decreto Lei de 1941, a Lei nº 5.859/72 exigia a
apresentação de carteira de trabalho e previdência social, atestado de boa conduta e atestado de

90
BRASIL. Decreto Lei nº 3078, de 27 de fevereiro de 1941. Decreto-lei Nº 3.078: Dispõe sobre a lotação dos
empregados em serviço doméstico.. Rio de Janeiro, Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3078-27-fevereiro-1941-413020-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 09 nov. 2019.
91
BRASIL. Decreto Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do
Trabalho.. Consolidação das Leis do Trabalho.. Rio de Janeiro, Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 09 nov. 2019.
92
BRASIL. Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972. Dispõe sobre a profissão de empregado doméstico e dá
outras providências.. . Brasília, Revogada pela Lei Complementar nº 150.. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5859.htm>. Acesso em: 09 nov. 2019.
53

saúde. O atestado de boa conduta possui, intrinsecamente, um caráter generalista e


estigmatizante, em certos aspectos. Diferentemente das negativas de antecedentes criminais
que, nos dias de hoje, podem ser retirados de forma online no endereço eletrônico da Polícia
Civil, o atestado de boa conduta possuiu uma abrangência maior, o que poderia levar a
entendimentos equivocados quanto à idoneidade da pretensa contratada. O direito às férias
remuneradas foi finalmente conferido à empregada doméstica: 20 dias úteis a cada 12 meses de
período laborado - contudo, a carga discriminatória novamente se fez presente, vez que o gozo
de férias remuneradas de outras categorias de trabalhadores se referia a 30 dias.
Com a redemocratização do país nasceu a Constituição Federal de 1988 93; a qual é
popularmente conhecida por Constituição Cidadã, vez que prima pela dignidade da pessoa
humana e incorpora a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu corpo textual.
Alguns dos preceitos básicos da Constituição são a igualdade social – independentemente de
gênero, raça ou religião –, a erradicação da pobreza e que todos são iguais perante a Lei.
Contudo, o Art. 7º da Carta Magna era uma afronta à ela própria, vez que reduzia os direitos
assegurados pelo Art. 5º da Constituição em se tratando de empregos domésticos. Assim, frente
a tal contradição, questionamentos começaram a ser suscitados: porque as empregadas
domésticas, em pleno período de reorganização política e social do país, estavam, novamente,
sendo excluídas (de novas formas) das garantias constitucionais e infraconstitucionais do
trabalho remunerado?
Bem verdade que, apesar de todos esses institutos jurídicos no ordenamento do Estado
de Direito Brasileiro, a prática era (e continua sendo) diametralmente oposta: a informalidade
do trabalho doméstico permanece até os dias atuais. Como bem verifica-se nos exemplos de
histórias reais expostos no capítulo anterior da presente monografia, mulheres negras foram
expostas por décadas à situação de violência, negligência e violação de princípios básicos de
direitos humanos e dignidade da pessoa humana na condição de empregadas domésticas. O
fator racial, atrelado à questão de gênero (considerando que tarefas domésticas são socialmente
aceitas enquanto deveres femininos) importou em jogar essas mulheres na informalidade:
carteiras assinadas para empregadas domésticas era um luxo à vontade dos patrões que

93
BRASIL. Constituição (1934). Constituição Federal nº 09, de 16 de julho de 1934. Constituição da República
dos Estados Unidos do Brasil: Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus,
reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a
unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte:. Rio de
Janeiro, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 10
nov. 2019.
54

estivessem minimamente dispostos a arcar com os encargos trabalhistas do registro formal na


carteira profissional. Cabe colacionar o seguinte pensamento de Angela Davis, em sua obra
Mulheres, Raça e Classe:
Devido à intrusão adicional do racismo, um vasto número de mulheres negras teve de
cumprir as tarefas de sua própria casa e também os afazeres domésticos de outras
mulheres. E com frequência as exigências do emprego na casa de uma mulher branca
forçavam a trabalhadora doméstica a negligenciar sua própria casa e até mesmo suas
próprias crianças. Enquanto empregadas remuneradas, elas eram convocadas a ser
mães e esposas substitutas em milhões de casas de famílias brancas. 94

Assim sendo, frente à informalidade do trabalho doméstico apesar dos institutos


jurídicos existentes, uma nova abordagem se fez urgente. E eis que a PEC das Domésticas
surgiu.

5.3. “É UM NOVO TEMPO, MOMENTO PRO NOVO AO SABOR DO VENTO”95 –


EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 72 E LEI COMPLEMENTAR Nº 150: O IMPACTO NA
VIDA DAS DOMÉSTICAS BRASILEIRAS

A PEC das Domésticas, que originou a Emenda Constitucional nº 72 no ano de 2013


e, posteriormente, a Lei Complementar nº 150 no ano de 2015, repercutiu bastante na Câmara
de Deputados e em todos os meios de telecomunicação do país. A regulamentação formal do
trabalho doméstico gerou polêmicas entre os patrões em todo o país: conforme a Lei, acima de
dois dias semanais de serviço, a empregada abandona automaticamente o posto de diarista e
passa à categoria formal de trabalhadora doméstica - sendo apta a gozar de todos os direitos
trabalhistas da categoria, tais como: salário com base no mínimo nacional; registro formal na
carteira profissional; férias remuneradas com direito ao acréscimo de 1/3; décimo terceiro
salário; depósitos a título de FGTS; direito ao acesso do benefício seguro-desemprego quando
demitida injustificadamente após um ano de vigência de contrato; e todas as garantias e deveres
trabalhistas.
O empregado doméstico, por sua vez, não se reporta exclusivamente à ou ao
responsável pela limpeza e manutenção da casa: babás, motoristas, enfermeiros e demais
prestadores de serviço doméstico de forma continuada, subordinada, onerosa, pessoal e de

94
DAVIS, Angela Y.. Mulheres, Raça e Classe. Nova York: Boitempo, 1981, p. 239. Tradução: Heci Regina
Candiani.
95
EMICIDA. Levanta e Anda. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2013. Disponível em:
https://listen.tidal.com/album/82713831
55

finalidade não lucrativa dentro da residência do contratante são enquadrados como


trabalhadores domésticos formais. Com a alteração do texto constitucional através da PEC nº
72, o Art. 7º da Constituição Federal foi acrescido de um parágrafo único, o qual versa sobre os
direitos atualizados que, anteriormente, eram direcionados apenas aos demais trabalhadores.
Conforme Geane José da Silveira e Gizelson Monteiro de Moura, organizadores do livro Os
Direitos do Empregado Doméstico Após a Emenda Constitucional nº 72:
Esse foi, sem dúvida, o maior passo que o legislador ordinário deu em relação à
discrepância sofrida pelos empregados domésticos em toda a trajetória do Brasil.
Antes a Lei dos domésticos em 1972 tinham apenas oito artigos para regulamentá-los,
agora, com essa emenda, muitos novos direitos lhe foram atribuídos, com isso, foi
necessária uma alteração na Lei nº 5.859/72 - que foi posteriormente revogada com a
chegada da Lei Complementar nº 150/2015 [...].96

A PEC das Domésticas, aprovada em dois turnos na Câmara de Deputados e,


posteriormente, aprovada no Senado Federal (também em dois turnos), foi aprovada com 347
votos a 2, com 2 abstenções. A proposta foi apresentada sob o nº 478/2010 pelo Deputado
Federal Carlos Bezerra (PMDB-MT), tendo como ementa: "Revoga o parágrafo único do art.
7º da Constituição Federal, para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os
empregados domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais.". Foi arquivada em 31 de
janeiro de 2011 e desarquivada dezesseis dias depois. O percurso da PEC durou até o ano de
201397.
O presidente da comissão especial que analisou a PEC, deputado Marçal Filho
(PMDB-MS), rejeitou o argumento dos críticos da proposta de que a ampliação dos direitos das
empregadas poderia gerar desemprego. Marçal Filho frisou que o texto foi minuciosamente
pensado para que pudesse ser aplicado de forma adequada. A proposta possuía, à época, benção
do Governo Federal - durante o mandato da então Presidenta da República Dilma Roussef. Os
dois votos vencidos na votação da Câmara de Deputados foram do Deputado Vanderlei Siraque
(PT) e do então Deputado Federal, atualmente Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro
(atualmente filiado ao PSL e, à época, integrante do PP). Bolsonaro argumentou estar votando
em defesa das empregadas domésticas, vez que os patrões não estariam aptos a arcar com os

96
SILVEIRA, Geane José da; MOURA, Gizelson Monteiro de. Os Direitos do Empregado Doméstico Após a
Emenda Constitucional nº 72. Joinville: Edição dos Autores, 2012. Disponível em:
<https://pt.scribd.com/read/421408860/Os-Direitos-Do-Empregado-Domestico-Apos-A-Emenda-Constitucional-
N%C2%BA-72>. Acesso em: 22 ago. 2019.
97
Câmara dos Deputados. PEC 478/2010. Revoga o parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal, para
estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os demais trabalhadores urbanos
e rurais.. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=473496>. Acesso em: 10 nov.
2019.
56

custos trabalhistas e, por consequência, a Emenda Constitucional geraria uma reação de


desemprego em massa98.
Finalmente, após dois anos da emenda ser aprovada e passar a vigorar, chega-se à tão
esperada Lei Complementar nº 15099. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico no Brasil,
definindo o funcionário doméstico nos mesmos moldes da PEC nº 72 Os direitos conferidos
pela nova legislação, que entrou em vigor no mês de maio de 2015, garantem ao trabalhador
doméstico o pagamento correto de horas-extra laboradas, jornada semanal de 44 horas
semanais, com duração máxima de 8 horas diárias e todos os outros direitos anteriormente
elencados. A Lei Complementar nº 150 estabeleceu a obrigatoriedade do controle de frequência
por parte do empregador, de forma individual. O sistema de banco de horas só é válido após o
excedente de 40 horas-extra mensais, bem como a jornada de meio período possui regras
trabalhistas da mesma forma que a jornada integral. Os direitos de repouso interjornadas e
intrajornadas deve ser respeitado conforme a nova legislação. A licença maternidade também é
assegurada pela Lei, pelo prazo de 120 dias. Estabilidade em razão de gravidez passou a vigorar,
tal como a obrigatoriedade do salário-família. Os depósitos a título de FGTS e contribuição
previdenciária (direitos de vital importância), passaram ao caráter obrigatório - dando segurança
às trabalhadoras domésticas.
A importância da Lei Complementar 150 se dá no sentido de garantir, enfim, o direito
às trabalhadoras domésticas do reconhecimento jurídico e do respaldo legal de suas atividades
laborais. Contudo, importa frisar que o atraso legal de tal regulamentação importa em 131 anos
de prejuízo. Nos dias que estão por vir, cabe à população brasileira reconhecer a categoria e
zelar pelo respeito aos direitos dessas mulheres que lutaram arduamente, por tantos anos, para
acessaram direitos básicos conferidos a todo cidadão brasileiro.
A ironia de uma trajetória tão extensa para um texto de Emenda Constitucional tão
pequeno contribuiu para o entendimento da sociedade racista brasileira: uma solução, no final,

98
Palavra Aberta. Dep. Jair Bolsonaro (PP-RJ) foi contra aprovação da PEC das Domésticas. Uma das poucas
vozes contrárias à aprovação da PEC das Domésticas foi a do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ). A preocupação
dele é não deixar que as domésticas fiquem na informalidade e com dificuldade de arranjar emprego. Muitas delas,
que hoje têm carteira assinada, serão reaproveitadas como diaristas. Isso acontecerá, na visão do deputado, porque
o patrão que ganha um salário entre R$ 3 mil e R$ 4 mil terá dificuldade para pagar uma funcionária com esses
novos encargos.. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/tv/401065-dep-jair-bolsonaro-pp-rj-foi-contra-
aprovacao-da-pec-das-domesticas/>. Acesso em: 10 nov. 2019.
99
BRASIL. Lei Complementar nº 150, de 1 de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico;
altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro
de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de
julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26 de
dezembro 1995; e dá outras providências.. . Brasília, Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm>. Acesso em: 11 nov. 2019.
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tão simples e tão necessária, foi protelada por mais de um século. Milhões de mulheres ao longo
de 131 anos após a abolição da escravidão foram expostas a todos os tipos de violações de
direitos, em prol do bem-estar de famílias brancas – nesse ponto, necessariamente, reside a
importância de uma reparação histórica que perdure na História Brasileira. Se tal retardo
jurídico não possui cunho racista, o que, de fato, o possui?
Os direitos trabalhistas regulamentam relações de trabalho na sociedade. O
trabalhador, naturalmente hipossuficiente em relação ao empregador, através do Direito
Trabalhista, passa a ser juridicamente amparado em caso de desacordo com relações salutares
no ambiente laboral. Assim, gera-se a coibição de cargas-horárias abusivas, salários em
desacordo com o mínimo legal, obrigatoriedade de urbanidade e respeito mútuo entre
contratante e contratado, além de resguardar a dignidade do empregado em caso de demissão
injusta, doença ocupacional, assédio moral e até mesmo assédio sexual. Órgãos como o
Ministério Público do Trabalho e sindicatos das categorias são locais adequados para realização
de denúncias quanto ao desrespeito às normas trabalhistas – inclusive, empresas e empresários
que reiteradamente são denunciados por tais práticas podem ser punidos tanto
administrativamente, quando em caso de descumprimento de Termo de Ajuste de Conduta
firmado com a Procuradoria do Trabalho de sua respectiva região, bem como podem ser réus
em Ação Civil Pública.
Assim, finalmente, é possível afirmar que a conquista de direitos trabalhistas das
empregadas domésticas é fazer valer os fundamentos insculpidos nos incisos II e III do Artigo
1º da Constituição Federal – quais sejam: a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Somente
com o respeito a estes princípios e atendendo integralmente os Direitos e Garantias
Fundamentais da população é possível almejar um futuro com mínimas condições de equidade
– para que, um dia, seja possível a realidade de redistribuição de renda e igualdade plena (em
todas as suas nuances) entre todas as pessoas brasileiras.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir alguns pontos interessantes a partir da elaboração do presente


trabalho. O primeiro, invariavelmente, é que não há uma democracia racial no Brasil. A História
serve de substrato à esta afirmativa. O reconhecimento da população branca como
historicamente responsável quanto às mazelas sociais ligadas à questão racial no Brasil é um
passo importante para a amplificação do debate quanto às questões relacionadas aos resquícios
sociais da escravidão. Se reconhecer socialmente racista é um processo doloroso e
extremamente necessário à ruptura da estrutura opressiva do racismo. A presente monografia é
parte de uma pesquisa que será prolongada posteriormente, vez que a complexidade do tema
não permite a condensação do estudo em apenas um trabalho de conclusão de graduação.

O trabalho doméstico foi construído com base em estereótipos racistas de mulheres


negras e na violação de direitos dessas mesmas mulheres. O pós-abolição não aderiu qualquer
política social que contemplasse a população feminina recém-liberta. A necessidade de manter-
se nas casas senhoriais a fim de auferir subsistência condenou as gerações subsequentes ao
trabalho doméstico informal – sem qualquer garantia de direitos trabalhistas e desprovidas de
personalidade própria. A reação em cadeia desse problema social culminou numa
marginalização da população negra feminina e, por consequência, na exclusão dessa parcela
populacional do mercado de trabalho formal. A estereotipação do trabalho doméstico como
subserviência espontânea, sendo a empregada doméstica uma figura desprovida de
individualidade e integralmente disponível às necessidades dos patrões embasou o moralismo
cristão quanto à concepção da contratação dessas mulheres sob o motivo da benevolência. Tal
moralismo coloca em posição confortável os contratantes de serviços domésticos, os quais
julgaram por muitas décadas (e, ainda hoje, muito permanecem com o mesmo senso-comum)
que fornecer moradia e alimentação à uma doméstica é um ato de compaixão e bondade – não
um direito fundamental e respeitoso à dignidade da pessoa humana. Assim, a exigência de
direitos trabalhistas é mais do que uma afronta ao status quo branco; é uma ofensa direta aos
empregadores. O tema do trabalho doméstico no Brasil gera muito desconforto – e, assim,
fomente o estudo e o debate. Não se mede a importância de uma pauta pela calmaria e fata de
animosidades.

A importância de legislações que conferissem o mínimo de dignidade trabalhista deve


ser celebrada; não foram poucas as lutas que mulheres negras travaram ao longo de quase um
século e meio para que suas netas e bisnetas que permaneceram na condição de empregadas
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domésticas pudessem usufruir de direitos trabalhistas plenos e garantidos em Lei. Contudo, o


caminho ainda será longo até que o trabalho doméstico perca definitivamente seus ares de culpa
cristã. A conscientização por parte da população branca e de classes sociais favorecidas é
crucial; hoje, mais do que nunca. Não é plausível, em pelo ano de 2019, tangenciar um tema
tão importante e se esquivar de confrontos diretos quanto às reparações históricas necessárias.

Por fim, frente ao acima exposto, e mais do que nunca, necessário rememorar a
importância da adesão à luta antirracista por todos aqueles que possuem empatia e
compreendem as mazelas sociais deixadas como resquícios da escravidão. Fala-se em
responsabilidade, reconhecimento de privilégios e, acima de tudo, consciência de classe e de
raça. Pois o antirracismo é o único caminho para uma sociedade igualitária.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós,


representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para
instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.. Brasília, DF.

BRASIL. Lei Complementar nº 150, de 1 de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de


trabalho doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho
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