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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA


CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A CONDIÇÃO FEMININA:


UM OLHAR SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO.

JOÃO BATISTA DO NASCIMENTO FILHO

Itajaí/SC, Setembro de 2011


UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A CONDIÇÃO FEMININA:


UM OLHAR SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO.

JOÃO BATISTA DO NASCIMENTO FILHO

Dissertação submetida ao Curso de Mestrado em Ciência Jurídica da


Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do
Título de Mestre em Ciência Jurídica.

Orientador: Professor Doutor Fernando Antonio de Carvalho Dantas

Itajaí/SC, Setembro de 2011


AGRADECIMENTO

Inicialmente, agradeço ao Professor Doutor Fernando Antonio de Carvalho


Dantas, pela paciência, dedicação e tranqüilidade com que atuou durante os dias
em que eu, aflito, quase desisti desse belo objetivo; à direção e todos os
professores da Univali, por proporcionarem aos professores do Norte do País
essa experiência riquíssima de conhecimento; aos amigos professores, colegas
de Minter que, com alegria e determinação, estiveram juntos comigo até o fim,
servindo de incentivo para que chegar ao final fosse possível e, finalmente, à
minha família, a qual tenho me dedicado em todos os dias da minha vida e que,
sem ela, tudo seria nebuloso e sem sentido.
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho, primeiramente, à minha amada companheira Núbia Fabíola,


pelo incentivo e inabalável fé em minha energia e tenacidade para a elaboração
deste trabalho, por seu amor e dedicação demonstrados nesses anos de intenso
trabalho, mas também de muita alegria . Aos meus filhos Ian e Tainá, que servem
também de motivação e de alegria para que muitas batalhas sejam vencidas em
busca da nossa felicidade. Finalmente, à minha genitora, Maria da Conceição, por
ter-me ensinado que as boas coisas da vida não vêm sem dedicação, esforço e
amor pelo que se faz, e, talvez por isso, sejam tão importantes para nós.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a Coordenação do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica, a
Banca Examinadora e o Orientador, de toda e qualquer responsabilidade acerca
do mesmo.

Itajaí/SC , Outubro de 2011


PÁGINA DE APROVAÇÃO

SERÁ ENTREGUE PELA SECRETARIA DO CURSO DE MESTRADO EM


CIÊNCIA JURÍDICA DA UNIVALI APÓS A DEFESA EM BANCA.
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ONU Organização das Nações Unidas


Convention on the Elimination of All of Discrimanation
CEDAW Against Women – Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
USP Universidade de São Paulo
RBCC Revista Brasileira de Ciências Criminais
ANIS Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
THEMIS Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero
ADPF Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental
IPPF Federação Internacional de Planejamento Familiar
CDD Católicas pelo Direito de Decidir
SUMÁRIO

RESUMO ............................................................................................................. viii

ABSTRACT ........................................................................................................... ix

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10

CAPÍTULO 1 - ASPECTOS HISTÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS ............. 13


1.1 OS DIREITOS HUMANOS E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA ......................... 13
1.2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS CONSTITUIÇÕES
BRASILEIRAS ................................................................................................ 22
1.3 AS “DIMENSÕES DOS DIREITOS” E A “INTERDEPENDÊNCIA” DOS
DIREITOS HUMANOS.................................................................................... 29

CAPÍTULO 2 - OS DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES ................... 40


2.1 OS ORGANISMOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES ...................................................... 40
2.1.1 Primeira Conferência Mundial da Mulher ..................................................... 42
2.1.2 Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação
contra a mulher ............................................................................................... 43
2.1.3 Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena .............................. 51
2.1.4 Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do
Cairo ............................................................................................................... 54
2.1.5 Quarta Conferência Mundial sobre Mulheres de Beijing. ............................. 58
2.2 OS DIREITOS REPRODUTIVOS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
DE 1988 .......................................................................................................... 61
2.3 A LIBERDADE DE REPRODUÇÃO E O CÓDIGO CIVIL ............................... 69
2.4 A AUTONOMIA DE REPRODUÇÃO FEMININA E O SISTEMA
CRIMINAL BRASILEIRO ................................................................................ 75

CAPÍTULO 3 - A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO COMO DIREITO


FUNDAMENTAL DA MULHER ............................................................................ 80
3.1 O ABORTO E A LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA ............................................ 80
3.2 O ABORTO NA HISTÓRIA DA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA ............. 93
3.3 ENTRE A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À VIDA INTRA-UTERINA
DO NASCITURO ANENCÉFALO E OS DIREITOS Á SAÚDE E À
LIBERDADE DE AUTONOMIA REPRODUTIVA DA MULHER
GESTANTE .................................................................................................... 99
3.4 A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO COMO AFIRMAÇÃO DA DIGNIDADE
DA MULHER................................................................................................. 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 127

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ............................................................ 130


RESUMO

A presente Dissertação tem como objetivo a análise do aborto e a possibilidade


de descriminalização de tal prática na legislação brasileira, em atendimento aos
compromissos assumidos pelo Estado brasileiro perante a comunidade
internacional, bem como em reconhecimento à liberdade de autonomia
reprodutiva feminina. A proibição da prática do aborto no Brasil, ao tempo em que
não impede sua prática no território nacional, leva milhares de mulheres, todos os
anos, a praticá-lo ilegalmente, resultando num altíssimo índice de mortalidade
dessas mulheres (principalmente no seio da classe trabalhadora, porção da
população mais atingida por tal índice). O Brasil é signatário de todos os tratados
internacionais que tenha como objeto central os direitos humanos, tendo
assumido o compromisso de integrar ao direito interno as diretrizes internacionais
que buscam a defesa dos direitos daqueles que, historicamente, têm sido
vilipendiados pela sociedade brasileira: os negros, as crianças, os homossexuais
e as mulheres, dentre outros. Assim, a descriminalização da interrupção
voluntária da gravidez vem ao encontro de um direito mais humano e digno,
conferindo o status de direitos humanos aos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres e colocando-as no papel de agente modificador das relações sociais,
numa perspectiva de gênero.

Palavras-chave: Aborto, Direitos Humanos, Dignidade da Pessoa Humana,


Gênero, Direitos Reprodutivos.
ABSTRACT

This thesis aims to analyze the possibility of decriminalizing abortion and the
practice of Brazilian law, in compliance with commitments made by Brazil to the
international community, as well as in recognition of the freedom of reproductive
autonomy of women. The prohibition of abortion in Brazil, while it does not stop its
practice in the country, leads thousands of women, every year to have it done
illegally, resulting in high mortality rates among these women (especially within the
working class, the sector of the population most affected). Brazil is a signatory to
all international human rights treaties, having assumed the commitment to
integrate, within its law, the international guidelines that seek to defend the rights
of those who historically have been vilified by Brazilian society: Black people,
children, women and homosexuals, among others. Thus, the decriminalization of
abortion is a humane and dignified right, giving the status of human rights to the
sexual and reproductive rights of women, and placing them in the role of modifying
agent of social relations, within a perspective of gender.

Key Words: Abortion, Human Rights, Dignity of the Person, Gender,


Reproductive Rights.
INTRODUÇÃO

O objeto da presente Dissertação é a necessidade do


reconhecimento do direito da mulher à liberdade de decisão acerca de seus
direitos reprodutivos, significando que o Estado deve considerar como direitos
humanos o direito à saúde, os direitos sexuais e o direito à liberdade de
reprodução, adequando-se, assim, às normas internacionais elaboradas em
diversos momentos históricos pelos organismos cujo tema central é a defesa dos
direitos humanos.

O seu objetivo institucional é a obtenção do título de Mestre


em Ciência Jurídica pelo Curso de Mestrado em Ciência Jurídica da Univali.

O seu objetivo científico é demonstrar que as condições para


o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como
autênticos direitos humanos, no Brasil, existem e devem ser potencializadas, de
modo a garantir que tais direitos sejam efetivamente observados pelo Estado e
pela sociedade organizada.

Para o equacionamento do problema são levantadas as


seguintes constatações:

a) O Brasil, embora signatário de praticamente todos os


tratados internacionais cujo tema central são os direitos humanos, tem, durante os
últimos anos, implementado precariamente, no ordenamento jurídico pátrio, as
resoluções constantes nos documentos internacionais de defesa dos direitos
humanos, notadamente no que concerne aos direitos das minorias.

b) Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres foram


elevados à categoria de direitos humanos e reconhecidos pelo Estado brasileiro, o
que não se reflete na legislação nacional.
11

c) A sociedade brasileira está preparada para enfrentar a


discussão acerca da descriminalização do aborto, segundo indicam estudos e
pesquisas acerca do tema.

d) Descriminalizar o aborto significa o reconhecimento dos


direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos humanos
fundamentais.

Os resultados do trabalho estão expostos na presente


Dissertação, e são aqui sintetizados, como segue:

O Capítulo 1 trata da evolução histórica dos direitos


humanos, discorrendo acerca das diversas teorias acerca do tema. Com base em
diversos autores pátrios e internacionais, analisou-se as diversas linhas de
pensamento acerca das “dimensões” de direitos, bem como ocorreu a efetivação
dos direitos fundamentais nas várias Constituições brasileiras.

O Capítulo 2 discorre sobre os direitos reprodutivos das


mulheres, sendo objetos de análise os encontros internacionais onde a situação
feminina foi o foco central, com destaque para a Primeira Conferência Mundial
sobre a Mulher, realizada no México, a Convenção sobre a Eliminação de todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher, a Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos de Viena, a Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento do Cairo e, finalmente, a Quarta Conferência Mundial sobre
Mulheres de Beijing. Quanto à forma pelos quais os direitos reprodutivos
femininos são tratados no direito interno, discorreu-se sobre sua previsão na
Constituição Brasileira de 1988, no Código Civil Brasileiro e no Código Penal
Brasileiro.

O Capítulo 3 disserta sobre a descriminalização do aborto


como direito da mulher, fazendo uma análise da forma pela qual a interrupção
voluntária da gravidez é tratada pela legislação brasileira, com ênfase nas normas
criminais. Abordou-se a antecipação terapêutica do parto – um tema de discussão
recente nos tribunais superiores – que colocou em lados opostos o direito à vida
do nascituro e os direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da
12

mulher. Finalmente, afirmamos a legalização do aborto como justa e necessária,


para o reconhecimento e afirmação da dignidade da mulher.

A presente dissertação se encerra com as Considerações


Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da
estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a necessidade de
legalização da interrupção da gravidez como forma de garantia dos direitos
reprodutivos e sexuais das mulheres brasileiras.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, tanto na


Fase de Investigação quanto na Fase de Tratamento dos dados, o Método
utilizado foi o Indutivo. Foram acionadas as técnicas do referente, da categoria,
dos conceitos operacionais, da pesquisa bibliográfica e do fichamento.

Nesta Dissertação as categorias principais estão grafadas


com a letra inicial em maiúscula e os seus conceitos operacionais são
apresentados em glossário inicial, mas também em rodapé quando mencionadas
pela primeira vez.
CAPÍTULO 1

ASPECTOS HISTÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS

1.1 OS DIREITOS HUMANOS E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Inicialmente, pode-se afirmar que, em todas as sociedades


humanas, num grau maior ou menor, os ideais de liberdade, de solidariedade, de
igualdade e de dignidade da pessoa humana sempre estiveram presentes.
Destarte, tais ideais são tão antigos quanto à própria sociedade.1

Foi através do diálogo de várias fontes, desde tradições


estabelecidas em diversas civilizações, até a junção de pensamentos filosófico-
jurídicos, idéias surgidas com o cristianismo e com o direito natural, que surgiram
os direitos humanos fundamentais, em sua concepção atualmente conhecida.2

O estudo dos direitos humanos tem como marco teórico a


origem dos direitos individuais da pessoa humana no antigo Egito e na
Mesopotâmia, onde já existiam ferramentas que possibilitavam a proteção
individual contra o arbítrio do Estado3. A civilização egípcia foi a primeira a
desenvolver um sistema jurídico essencialmente individualista, cabendo aos
mesopotâmios a elaboração de textos jurídicos que continham regras de direito:
os códigos.4

Para o mundo ocidental, Atenas é considerada como o


primeiro grande precedente de limitação do poder político – governo de leis, e não
de homens – e de associação consciente dos cidadãos nos assuntos políticos.
Em Atenas, por meio da Assembléia, “foram concebidas e praticadas idéias e

1
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008
2
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2007.
3
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo:
Saraiva, 2010.
4
GUERRA, Sidney. Direitos humanos na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem
constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
14

institutos considerados atuais, como a divisão das funções estatais por diversos
órgãos, a existência de um sistema judicial e a preeminência da lei, esta, gerada
por um processo formal adequado e válida para todos.” 5

O Código de Hamurabi (1690 a.C.) talvez seja o primeiro


compêndio de normas a consagrar um rol de direitos comum a todos os seres
humanos, com destaque para a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a
família, prevendo, de igual forma, a prevalência das leis em relação aos
governantes.6 O famoso Código consagrou a regra do “olho por olho, dente por
dente”, que, embora seja considerado um avanço, por ser uma norma escrita – o
que impunha limites aos mais fortes, impossibilitando a estes a imposição
incondicional de suas regras – realizava punições conforme a condição social do
apenado, ou seja, puniam-se os pobres com penas mais severas que aquelas
praticadas contra a elite dominante, significando, assim, um regime de
desigualdades.7 A igualdade de todos os homens foi pregada por Buda, um dos
primeiros a exercer influência filosófico-religiosa nos direitos do homem.8

A exemplo do Código de Hamurabi, o Código de Manu é um


modelo de formas jurídicas elementares que, embora não produzam efeitos que a
consciência atual exige, foram as primeiras expressões de defesa da dignidade e
dos direitos da pessoa humana.9

Na Grécia antiga, surgiram os primeiros estudos que


pregavam, de forma mais concertada, a necessidade de igualdade e liberdade do
homem, com destaque para uma maior participação política dos cidadãos

5
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2010.
6
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 6.
7
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 30.
8
Na lição de Comparato (Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 20-
21), “no centro do período axial, entre 600 e 480 a.C., coexistiram, sem se comunicarem entre
si, cinco dos maiores doutrinadores de todos os tempos: Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia,
Confúcio na China, Pitágoras na Grécia e o Dêutero-Isaías em Israel. Todos eles, cada um a
seu modo, foram autores de visões do mundo, a partir das quais estabeleceu-se a grande linha
divisória histórica: as explicações mitológicas anteriores são abandonadas, e o curso posterior
da História não constitui senão um longo desdobramento das idéias e princípios expostos
durante esse período.”
9
KLINGEN, Germán Doig. Direitos humanos e o ensinamento social. São Paulo: Loyola,
1994, p. 38.
15

defendida por Péricles. Sófocles, em sua Antígona10 (441 a.C.), defendeu a


existência de normas não escritas e imutáveis, num grau superior àquelas
escritas pelo homem. Todavia, coube ao Direito romano o estabelecimento de um
complexo mecanismo de comandos, visando à tutela dos direitos individuais
frente à potestade do Estado. Como exemplo, tem-se a Lei das XII Tábuas,
considerada a reunião dos primeiros textos escritos que consagraram os direitos
fundamentais de liberdade, propriedade e dos direitos do cidadão.11

A Magna Charta Libertatum, outorgada por João Sem-Terra,


de 15 de junho de 1215, constitui-se um dos mais importantes antecedentes
históricos das declarações de direitos humanos. Com efeito, a Magna Charta
previa, dentre outras garantias, “a liberdade da Igreja na Inglaterra, restrições
tributárias, proporcionalidade entre delito e sanção (A multa a pagar por um
homem livre, pela prática de um pequeno delito, será proporcional à gravidade do
delito; e pela prática de um crime, será proporcional ao horror deste, sem prejuízo
do necessário à subsistência e posição do infrator – item 20); previsão do devido
processo legal (Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado
dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo
molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele,
senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a
lei do país – item 39); livre acesso à Justiça (Não venderemos, nem recusaremos,
nem protelaremos o direito de qualquer pessoa a obter justiça – item 40);
liberdade de locomoção e livre entrada e saída do país.”12

A Carta de João Sem Terra consolidou-se como um dos


marcos simbólicos da história constitucional, sendo um documento que
resguardava os direitos feudais dos barões, relativamente à propriedade, à
tributação e às liberdades, inclusive religiosa.13 A amplitude de seus termos,

10
A peça Antígona, escrita por Sófocles, destacava a insurgência de Antígona contra as normas
positivadas, ao acreditar que toda família tinha o dever de enterrar piedosamente os parentes.
Determinada, Antígona enfrenta o Estado, na figura de seu tio, o Rei Creonte, e sepulta seu
irmão Polínices, considerado traidor pelo Rei, sendo condenada à morte por seu gesto.
11
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 6.
12
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 7.
13
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo, p. 10.
16

todavia, permitiu que, ao longo do tempo, assumisse o caráter de uma carta geral
de liberdades públicas.

Embora de inegável valor e tido por muitos como o


documento originário dos direitos fundamentais, a Carta de João Sem-Terra era
escrita em latim, o que fez com que tivesse pouca utilidade para a camada mais
pobre da população – que não falava latim. Destarte, tem-se que somente os
barões da época eram os detentores dos direitos consagrados em tão importante
documento.

Ainda na Inglaterra, podem ser citados como antecedentes


históricos importantes a Petition of Right, de 1628, que vedava a prisão ilegal de
qualquer homem livre; o Habeas Corpus Act, de 1679, que previa a possibilidade
do preso, direta ou indiretamente, requerer por escrito sua libertação, diretamente
ao lorde-chanceler ou a algum juiz de tribunal superior; a Bill of Rights, de 1689,
outorgada pelo Príncipe de Orange, que restringiu fortemente o poder estatal,
estabelecendo, dentre outras regulamentações, o fortalecimento ao princípio da
legalidade, impedindo que o rei pudesse suspender leis ou a execução das leis
sem o consentimento do parlamento, criação do direito de petição, liberdade de
eleição dos membros do parlamento, imunidades parlamentares, vedação à
aplicação de penas cruéis e convocação freqüente ao parlamento; o Act of
Settlement, 14 de 12 de junho de 1701, que reafirmou o princípio da legalidade e a
possibilidade de responsabilização política dos agentes públicos, com previsão de
impeachment de magistrados.15

Finalizando a análise quanto aos institutos de origem


inglesa, hodiernamente, o parlamento inglês aprovou duas leis constitucionais
relevantes à temática dos direitos fundamentais: o Human Rights Act,16 de 1998,

14
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo, p. 14.
15
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 7.
16
O Human Right Act possibilitou a declaração de incompatibilidade, no caso concreto, no conflito
entre uma lei e os direitos fundamentais previstos no novo estatuto. Embora não haja
vinculação entre as partes do processo, tampouco seja declarada a nulidade da lei, tem o
condão de demonstrar ao Parlamento a contrariedade de seu ato aos Direitos Humanos. Tem-
se que o instituto foi aprovado como decorrência da participação do Reino Unido na União
Européia, sendo influenciado pelo direito comunitário e suas instituições.
17

que tratou da incorporação ao direito inglês dos direitos previstos na Convenção


Européia de Direitos Humanos; e o Constitutional Reform Act,17 de 2005, que
reorganizou Poder Judiciário do país, conferindo-lhe independência em relação ao
Parlamento e criando uma Corte Constitucional.

No ano de 1776, a Declaração de Independência dos


Estados Unidos da América inaugura uma nova fase na proteção dos direitos
individuais. A Declaração de Direitos de Virgínia é tida como o primeiro
documento histórico que consolida princípios democráticos na sociedade
moderna. O texto, de forma inovadora, reconhece a soberania popular, a
existência de direitos comuns, sem qualquer distinção de sexo, cor ou outra
manifestação social.

A Declaração de Independência proclamou o direito à vida, à


liberdade e à propriedade, o princípio da legalidade, do devido processo legal, o
Tribunal do Júri, o princípio do juiz natural e imparcial, a liberdade de imprensa e
a liberdade religiosa. A Declaração de Independência dos Estados Unidos da
América, produzido por Thomas Jefferson, teve como elemento norteador a
limitação do poder estatal. A Constituição dos Estados Unidos da América, em
suas dez primeiras emendas, limitou o poder estatal, preconizou a separação dos
poderes do Estado e estabeleceu a liberdade religiosa, a inviolabilidade do

17
Está-se num contexto em que inexiste separação orgânica entre o Poder Judiciário e o
Parlamento. Nesse sentido, o Constitutional Right Act recomendou mudanças no Poder
Judiciário inglês. A um só tempo, criou uma Corte Constitucional fora do parlamento e
independente deste e esvaziou as funções judiciais da Câmara dos Lordes – que
desempenhavam, tradicionalmente, a função jurisdicional máxima - e o Lorde Chanceler.
18

domicílio, o devido processo legal, o julgamento pelo Tribunal do Júri, a ampla


defesa e a impossibilidade de aplicação de penas cruéis ou aberrantes.18

Foi na França, porém, que se deu a consagração normativa


dos direitos humanos fundamentais. Com efeito, à Revolução Francesa coube
propiciar as condições para que a Assembléia Nacional promulgasse a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em seus 17 artigos, a
Declaração expressamente previu, dentre outros, os princípios da igualdade, da
liberdade, da legalidade, da presunção de inocência e da livre manifestação de
pensamento.19

Sem embargo, a Revolução Francesa desempenhou,


simbolicamente, um papel avassalador no imaginário dos povos da Europa e do
mundo no final do século XVIII. É atribuído a tal movimento – e não ao processo
revolucionário inglês ou americano – o novo rumo tomado pela humanidade. Há
um consenso de que a onda revolucionária francesa significou um momento
decisivo que levou ao término de uma época e o nascer de outra, indicando,
destarte, uma virada na história do gênero humano.20

18
GUERRA, Sidney. Direitos humanos na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem
constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 11. No mesmo sentido,
Barroso (BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 16), para quem “a declaração
foi inspirada por idéias de John Locke, especialmente pelo Second treatise on civil government.
O texto, de teor retórico, procura enunciar as causas que levaram à decisão extrema. Logo, ao
início, sua profissão de fé jusnaturalista: “Consideramos estas verdades como evidentes por si
mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos
direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. E, ao
final, o rompimento com a monarquia inglesa: “Nós, por conseguinte, representantes dos
Estados Unidos da América, reunidos em Congresso Geral, apelando para o Juiz Supremo do
mundo pela retidão de nossas intenções, em nome e por autoridade do bom povo destas
colônias, publicamos e declaramos solenemente: que estas colônias unidas são e de direito
têm de ser Estados livre e independentes; que estão desoneradas de qualquer vassalagem
para com a Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e a Grã-Bretanha está e deve
ficar totalmente dissolvido.”
19
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 9.
20
BOBBIO, Norberto, 1909 - A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho;
apresentação de Celso Lafer. – Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. – 10ª reimpressão.
19

Embora a “Constituição Francesa” de 1791 tenha criado


novas formas de controle do poder do Estado, foi na Carta de 1793 que ocorreu
uma melhor regulamentação dos direitos humanos.21

Outras Constituições nacionais consagraram os direitos


humanos, dentre as quais, a Constituição Espanhola de 1812 (Constituição de
Cádis), a Constituição Portuguesa de 1822, a Constituição Belga de 1831 e a
Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848. Esta, além dos
tradicionais direitos humanos, previu como direitos dos cidadãos a liberdade do
trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados, às crianças
abandonadas, aos enfermos e aos velhos sem recursos, cujas famílias não
pudessem socorrer. 22

Pode-se citar, ainda, como referência de textos com


conteúdo de afirmação dos direitos humanos, outros diplomas constitucionais,
dentre os quais a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de
1919. De fundamental relevância, também, a Declaração Universal dos Direitos
do Homem, proclamada pela Assembléia Geral da Organização das Nações
Unidas em 10 de dezembro de 1948, onde o humanismo político da liberdade
alcançou seu ponto mais alto no século XX.

Promulgada em 5 de fevereiro de 1917, a “Constituição


Política dos Estados Unidos Mexicanos” teve como referencial ideológico os
princípios anarcossindicalistas difundidos na Europa no final do século XIX, mas
com maior influência em países como a Rússia, a Espanha e a Itália.

De forma inovadora, a Carta Política mexicana erigiu à


categoria de direitos fundamentais os direitos trabalhistas, os direitos políticos e

21
O preâmbulo da Constituição Francesa de 24 de junho de 1793: “O povo francês, convencido
de que o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem são as causas das
desgraças do mundo, resolveu expor, numa declaração solene, esses direitos sagrados e
inalienáveis, a fim de que todos os cidadãos, podendo comparar sem cessar os atos o governo
com a finalidade de toda a instituição social, nunca se deixem oprimir ou aviltar pela tirania; a
fim de que o povo tenha sempre perante os olhos as bases da sua liberdade e da sua
felicidade, o magistrado a regra dos seus deveres, o legislador o objeto de sua missão. Por
conseqüência, proclama, na presença do Ser Supremo, a seguinte declaração dos direitos do
homem e do cidadão.”
22
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 11.
20

as liberdades individuais.23 No tocante aos primeiros, a Constituição mexicana foi


a primeira a proibir-lhe a equiparação a uma mercadoria qualquer, sujeita à lei da
oferta e da procura do sistema capitalista. Deve-se, portanto, à Constituição
mexicana a afirmação do princípio da igualdade substancial de posição jurídica
entre patrões e empregados na relação de trabalho, bem como a
responsabilização dos empregadores por acidentes de trabalho, significando, em
última análise, a criação das bases para a construção do moderno Estado social
de Direito. A carta “deslegitimou, com isso, as práticas de exploração mercantil do
trabalho, e, portanto, da pessoa humana, cuja justificativa se procurava fazer,
abusivamente, sob a invocação da liberdade de contratar.”24

A Constituição alemã de 1919 foi elaborada na cidade de


25
Weimar. Seu ponto mais relevante para a história jurídica é a segunda parte do
texto constitucional, que trata dos direitos e deveres fundamentais do povo
alemão. As seções, divididas em cinco, discorrem sobre o indivíduo, a vida social,
a religião e sociedades religiosas, a instrução e estabelecimentos de ensino e, por
fim, a vida econômica.

Cumpre ressaltar, no que concerne à Constituição alemã de


1919, que seus dispositivos não chegaram ser efetivados, por circunstâncias
históricas diversas. Assim entendeu Luís Roberto Barroso que, a esse respeito,
declarou:

Considerada um marco do constitucionalismo social, essa Carta


jamais logrou verdadeira efetivação. Sua vigência se deu sob
condições econômicas precárias, resultado da política de
reparações de guerra imposta pelo Tratado de Versailles. Tais
obrigações e a própria atribuição de culpa exclusiva pela guerra à

23
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 190. No
mesmo trecho, afirma o autor que “a Constituição de Weimar, em 1919, trilhou a mesma via da
Carta mexicana, e todas as convenções aprovadas pela então recém-criada Organização
Internacional do Trabalho, na Conferência de Washington do mesmo ano de 1919, regularam
matérias que já constavam na Constituição mexicana: a limitação da jornada de trabalho, o
desemprego, a proteção da maternidade, a idade mínima de admissão de empregados nas
fábricas e o trabalho noturno dos menores na indústria.”
24
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 193.
25
A situação na Alemanha, dos mais variados pontos de vista, era desoladora. Ao fim do primeiro
conflito mundial, o país estava devastado política, social e militarmente, não sendo possível
sequer que a Assembléia Constituinte, convocada para instituir um novo quadro constitucional,
se reunisse na capital, Berlim. Daí o nome outorgado à Carta alemã.
21

Alemanha criaram o caldo de cultura adequado para a ascensão


do regime nazista. Com a chegada de Adolf Hitler ao poder, deu-
se a superação da Constituição de Weimar pela realidade política.
Em março de 1933, foi publicada a ‘lei de autorização’
(Ermachtigungsgesetz), que permitia a edição de leis diretamente
pelo governo imperial – na prática, pelo Chanceler Adolf Hitler -,
ainda quando divergissem do texto constitucional.26

Não obstante as fraquezas e ambiguidades, além de sua


curta vigência, a Constituição de Weimar foi importante ao fortalecimento das
instituições políticas ocidentais, fazendo com que o Estado da democracia social
adquirisse uma melhor estrutura e fosse retomada em vários países após o
nazismo e a Segunda Guerra Mundial.27

Em 1948, a ONU (Organização das Nações Unidas)


proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Homem. O documento foi
redigido impelido pelas barbaridades praticadas durante a Segunda Grande
Guerra e cuja revelação começou a ser feita, embora parcialmente, após o
encerrar das hostilidades.28. A Declaração foi fruto do esforço dos Estados-
membros após as barbáries cometidas durante o segundo conflito bélico mundial,
com o reconhecimento da necessidade de se respeitar os direitos naturais de
qualquer ser humano, independentemente do país em que nasceu, da cor, do
sexo, da religião, do partido político ou da orientação sexual.

Foram inseridos no texto da Declaração de 1948 os direitos


à liberdade pessoal, à igualdade, à vida e à segurança, além da proibição das

26
BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo, p. 35.
27
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 205. Para o
autor, “a democracia social representou efetivamente, até o final do século XX, a melhor defesa
da dignidade humana, ao complementar os direitos civis e políticos – que o sistema comunista
negava – com os direitos econômicos e sociais, ignorados pelo liberal-capitalismo. De certa
forma, os dois grandes Pactos internacionais de direitos humanos, votados pela Assembléia
Geral das Nações Unidas, em 1966, foram o desfecho do processo de institucionalização da
democracia social, iniciado por aquelas duas Constituições do início do século.”
28
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 238. Na
mesma passagem, o autor assevera: “Além disso, nem todos os membros das Nações Unidas,
à época, partilhavam por inteiro as convicções expressas no documento: embora aprovado por
unanimidade, os países comunistas (União Soviética, Ucrânia e Rússia Branca,
Tchecoslováquia, Polônia e Iugoslávia) a Arábia Saudita e a África do Sul abstiveram-se de
votar.
22

prisões arbitrárias e o direito ao julgamento pelo juiz natural, a presunção de


inocência, além de outros direitos hoje consagrados na Constituição Federal de
1988. Tais direitos foram assegurados conjuntamente com os direitos de asilo, de
nacionalidade e direitos políticos, assegurando a participação do cidadão na
condução do país, conforme o entendimento de Ferreira Filho, que assegura,
sobre a Declaração de 1948:

Nela estão a liberdade pessoal, a igualdade, com a proibição das


discriminações, os direitos à vida e à segurança, a proibição das
prisões arbitrárias, o direito ao julgamento pelo juiz natural, a
presunção de inocência, a liberdade de ir e vir, o direito de
propriedade, a liberdade de pensamento e de crença, inclusive
religiosa, a liberdade de opinião, de reunião, de associação, mas
também direitos ‘novos’, como o direito de asilo, o direito a uma
nacionalidade, a liberdade de casar, bem como direitos políticos -
direito de participar da direção do país -, de um lado, e, de outro,
os direitos sociais – o direito à seguridade, ao trabalho, à
associação sindical, ao repouso, aos lazeres, à saúde, à
educação, à vida cultural –, enfim, num resumo de todos estes –
o direito a um nível de vida adequado (o que compreende o direito
à alimentação, ao alojamento, ao vestuário, etc.) numa palavra -,
aos meios de subsistência.29

Trata-se de um documento de convergência de anseios e


esperanças dos povos que o subscreveram, mas também de uma síntese,
porque, “no bronze daquele monumento se estamparam de forma lapidar direitos
e garantias que nenhuma Constituição insuladamente lograra ainda congregar ao
redor de um consenso mundial.”30

1.2 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Em 1824, o Império do Brasil elaborou a Constituição


Política que previu um vasto rol de direitos humanos fundamentais. O art. 179 da
Constituição ratificou direitos e garantias individuais, dentre os quais os princípios

29
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional. 2ª
ed. – São Paulo: Saraiva, 2010.
30
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26ª ed. atual. – São Paulo : Malheiros,
2011.
23

da igualdade e legalidade, livre manifestação do pensamento, impossibilidade de


censura prévia, liberdade de locomoção, inviolabilidade de domicílio, princípio da
reserva legal e da anterioridade da lei penal, princípio do juiz natural, dentre
outros. Tais garantias e direitos fundamentais foram mantidos pela 1ª
Constituição da República, de 24 de fevereiro de 1891.31

A Constituição de 1934 manteve a tradição dos textos


anteriores em prever um capítulo destinado aos direitos fundamentais e garantias.
Como novidade, consagrou a tríade: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa
julgada, e, também, direitos do autor na reprodução de obras literárias, artísticas
e científicas, irretroatividade da lei penal, mandado de segurança, ação popular,
entre outros. Influenciada em muito pela Constituição alemã de Weimar, a Carta
de 1934 firmou a subordinação do direito de propriedade ao interesse social ou
coletivo, discorreu sobre a ordem econômica e social, a Justiça do Trabalho,
assegurou aos trabalhadores os direitos a salário mínimo, férias anuais
remuneradas, indenização quando da dispensa sem justa causa, amparo à
maternidade, à infância e o direito do exercício do voto às mulheres.32

A Carta de 1937 assegurou os direitos e garantias


anteriormente previstos e trouxe como novidades a impossibilidade de aplicação
de penas perpétuas e maior possibilidade de aplicação da pena de morte, além
dos casos militares. Importante salientar que esta Constituição foi fruto de um
golpe, vez que o Presidente Getúlio Vargas dissolveu o parlamento brasileiro e
outorgou a Carta no dia 10 de novembro de 1937, implantando a nova ordem
denominada Estado Novo, cujo objetivo central era o fortalecimento do Poder
Executivo – uma autêntica ditadura –, que concentrou nas mãos do Presidente da
República os Poderes Executivo e Legislativo. Assim, o Presidente da República

31
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 13.
32
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 369.
24

“legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do
Executivo.”33

A Constituição de 1946 previu diversos direitos sociais


relativos aos trabalhadores e empregados, além de prever direitos de proteção à
família, educação e cultura.34 Merece destaque o inciso IV do art. 157 da
Constituição, que estabeleceu a participação obrigatória e direta do trabalhador
nos lucros da empresa, nos termos da lei.35

O artigo 158 da Constituição da República de 1967 previu


direitos sociais aos trabalhadores, com vistas à melhoria de sua condição social.
O texto constitucional, em seu art. 150, apresentou como novidades o sigilo das
comunicações telefônicas e telegráficas, respeito à integridade física e moral do
detento e do presidiário e previsão de competência mínima para o Tribunal do
Júri.36 Destaque-se o fato de que a Carta de 1967 entrou em vigor em 15 de
março de 1967, quando assumiu a Presidência o Marechal Arthur da Costa e
Silva. A Constituição foi fortemente influenciada pela Carta Política de 1937,
assimilando várias de suas características e conferindo mais poderes à União e
ao Presidente da República.37

Em 17 de outubro de 1969, passou a viger a Emenda


Constitucional n° 01. A despeito de ter produzido sérias alterações na

33
SILVA, José Afonso da.. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed. rev. e atual (até a
Emenda Constitucional n° 67). São Paulo: Malheiros, 2011. Para o autor, a Constituição
Federal de 1937 não teve aplicação regular e vários dispositivos nela inscritos nunca foram
aplicados, embora tenham sofrido um total de 21 emendas, por meio de leis constitucionais que
lhe alteravam o texto, ao sabor das necessidades e conveniências do momento e, não raro, até
do capricho do chefe do governo.
34
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 14. Cumpre enfatizar que, nos
38 parágrafos do seu art. 141, a Constituição de 1946 trouxe previsões específicas sobre
direitos e garantias constitucionais. Pode-se citar as seguintes: a) a lei não poderá excluir da
apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual; b) para proteger direito
líquido e certo não amparado por habeas corpus, conceder-se-á mandado de segurança, seja
qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder; c) contraditório; d) sigilo
das votações, plenitude de defesa e soberania dos veredictos do Tribunal do Júri; e) reserva
legal em relação a tributos; f) direitos de certidão.
35
Art. 157 da Constituição Federal de 1946: “A legislação do trabalho e a da previdência social
obedecerão nos seguintes preceitos, além de outros que visem a melhoria da condição dos
trabalhadores: IV - participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, nos
termos e pela forma que a lei determinar.”
36
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 15.
37
SILVA, José Afonso da.. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 87.
25

Constituição de 1967, não apresentou nenhuma modificação relevante na


enumeração dos direitos humanos fundamentais.38 Cumpre ressaltar que tanto a
Carta de 1967 quanto a de 1969 foram consolidadas num período de intensa
repressão militar aos movimentos sociais de esquerda, que eram contrários ao
regime ditatorial instalado no Brasil.

As barbáries praticadas durante os conflitos mundiais no


Século XX, em relação à dignidade da pessoa humana, sem dúvida, serviram
para que grandes transformações ocorressem no plano internacional. Nesse
sentido, a Segunda Guerra Mundial figurou como um marco de afronta à
dignidade da pessoa humana. Como resposta, os direitos da pessoa humana
ganharam relevância, principalmente quando expostas as atrocidades praticadas
nos campos de concentração nazistas.

Foram criadas legislações que justificavam o tratamento


dispensado aos judeus pelo regime hitleriano, servindo tal doutrina sobre a
“pureza ariana” como sustentáculo a toda sorte de perseguições, prisões e
execuções em massa de judeus e outras populações.39

O segundo conflito bélico mundial deixou na história da


humanidade uma experiência de destruição e desrespeito aos valores mais
elementares da pessoa humana, levando a níveis imensuráveis, jamais vistos, o
sofrimento do ser humano. Num estudo sobre os resultados da Segunda Guerra
Mundial, concluiu-se que esse conflito foi responsável pela destruição de uma
geração inteira, algo próximo de 60 milhões de pessoas, durante seus anos de
duração.40

38
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 15.
39
A Lei para proteção do sangue e da honra alemãs, de 15 de setembro de 1935, previa: “Ficam
proibidos os casamentos entre judeus e alemães ou pessoas de sangue alemão. Os enlaces já
contratados, contrariamente a esta disposição, são nulos, mesmo nos casos em que se devem
celebrar no estrangeiro. As relações sexuais entre judeus e alemães ou pessoas de sangue
alemão são proibidas.”
40
RÉMOND, René. O século XX: de 1914 aos nossos dias. São Paulo: Editora Cultrix, 1993, p.
128. O autor afirma que o estudo em comento concluiu que somente a Polônia perdeu algo em
torno de 6 a 7 milhões de pessoas, ou seja, um quarto de sua população.
26

A crença de que a dignidade da pessoa humana é um valor


que deve legitimar, fundamentar e orientar todo e qualquer exercício do poder fez
com que a teoria dos direitos fundamentais tenha se consolidado perante a
comunidade jurídica internacional.

Especificamente no Brasil, o enorme prestígio alcançado por


tal teoria deveu-se, indubitavelmente, à Constituição Federal de 1988, que
inaugurou um novo ciclo nas relações jurídicas nacionais, pondo fim ao
autoritarismo de 30 anos da ditadura militar e fazendo nascer, embora
tardiamente, a democracia tão desejada pela nação.

Cumpre ressaltar que a ditadura militar, tanto na história


recente do Brasil, quanto na América Latina, traduz-se num período sangrento,
vergonhoso e marcado por perseguições políticas, pelo encarceramento dos seus
opositores e pelo cerceamento das liberdades individuais, além da marcante
censura a tudo que fosse contrário ao totalitarismo.

Não se vivia, durante o regime militar, a liberdade de


expressão, muito menos a liberdade política. Por seu turno, as torturas e
perseguições aos opositores do regime eram simplesmente institucionalizadas.
Destarte, por exigência da sociedade, que foi às ruas clamando pelas “Diretas
Já”, nasceu a Constituição Cidadã, nome oferecido à Carta pelo presidente da
Assembléia Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães que, em seu discurso,
assevera:

O homem é o problema da sociedade brasileira: em salário,


analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania. A
Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o
país. Diferentemente das sete constituições anteriores, começa
com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem,
que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua
esperança. É a Constituição cidadã.41

41
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 66.
27

De início, nota-se que o constituinte conferiu aos direitos


fundamentais uma posição destaque no texto constitucional, por situá-los logo nos
primeiros artigos da Constituição (arts. 5° a 17), após os fundamentos do Estado
brasileiro, quebrando uma tradição brasileira pela qual se colocava os direitos
fundamentais no final do texto constitucional, logo em seguida à disciplina da
organização dos poderes e da divisão das competências. Têm-se, agora, os
direitos fundamentais iniciando a Carta Magna, não podendo os mesmos serem
abolidos, nem mesmo por emendas constitucionais.42

Em seu título II, a Carta Magna previu os direitos e garantias


fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos, a saber: a) direitos individuais
e coletivos, que correspondem aos direitos ligados diretamente ao conceito de
pessoa humana e de sua própria personalidade, tais como vida, dignidade, honra
e liberdade; b) direitos sociais, que tem por finalidade a concretização da
igualdade social, um dos fundamentos do Estado Democrático; c) direitos de
nacionalidade, tendo-se a nacionalidade como o vínculo jurídico político que liga
um indivíduo a um determinado Estado, transformando-o num componente do
povo, fazendo como que exija sua proteção e, ao mesmo tempo, sujeitando o
indivíduo ao cumprimento dos deveres impostos a todos; d) direitos políticos,
sendo estes o conjunto de regras que disciplina as formas de atuação da
soberania popular; e) direitos relacionados à existência, organização e
participação em partidos políticos. Para concretizar o sistema representativo, a
Constituição regulamentou os partidos como instrumentos imprescindíveis à
preservação do Estado Democrático de Direito.43

De notar-se que o constituinte teve a intenção clara de


proteger os direitos fundamentais, criando várias ferramentas hábeis de
proteção a tais direitos, contra o abuso de poder. Citem-se como

42
O art. 60 da Constituição de 1988, em seu § 4º, aduz que “não será objeto de deliberação a
proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais.” Importante
ressaltar que os direitos fundamentais não estão previstos somente no início do texto
constitucional, mas em vários de seus dispositivos, a exemplo do direito ao meio ambiente, que,
hodiernamente, é considerado um direito de terceira dimensão. Para Bobbio (Bobbio, Norberto,
1909. A era dos direitos, p. 5), o direito a viver num ambiente não poluído é o mais importante
dos direitos de terceira dimensão).
43
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 23.
28

instrumentos jurídico-processuais de proteção o habeas corpus,44 habeas


data,45 mandado de segurança46 (incluindo-se o coletivo),47 mandado de
injunção,48 ação popular,49 ação civil pública,50 ações diretas de
in/constitucionalidade,51 argüição de descumprimento a preceito fundamental,52
além de outros instrumentos protetivos eficazes.53

Não obstante a vontade do constituinte em proteger os


direitos fundamentais, na prática, vemos a falta de vontade política das
autoridades públicas em concretizar a previsão do texto constitucional, malgrado
os avanços obtidos pela nação brasileira. Bobbio, a esse respeito, afirmou que
não bastava apenas enunciar os direitos, mas, torna-se imprescindível a sua
proteção e concretização.54 No mesmo sentido, manifestou-se o jurista Paulo

44
“conceder-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer
violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (art.
5°, inc. LXVIII).
45
“conceder-se-á habeas-data: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à
pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades
governamentais ou de caráter público;b) para a retificação de dados, quando não se prefira
fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo” (art. 5°, inc. LXXII).
46
“conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por
habeas-corpus ou habeas-data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for
autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”
(art. 5°, inc. LXIX).
47
“o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com
representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou
associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos
interesses de seus membros ou associados” (art. 5°, inc. LXX).
48
“conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne
inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5°, inc. LXXI).
49
“qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao
patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao
meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé,
isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência” (art. 5°, inc. LXXIII).
50
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...] III - promover o inquérito civil e a
ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos.”
51
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,
cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de
lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou
ato normativo federal.”
52
“A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será
apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.” (art. 102, § 1°).
53
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5°, inc.
XXXV).
54
BOBBIO, Norberto, 1909. A era dos direitos, p. 1.
29

Bonavides, ao afirmar que “o juiz constitucional, tendo por incumbência proteger


os direitos fundamentais, faz da concretização uma tarefa essencial.” 55

Não raro, vemos manifestações jurídico-políticas que, na


contramão dos objetivos propostos pelo constituinte, fazem surgir um sentimento
de frustração quanto à real possibilidade de alcançarmos a plenitude dos direitos
e garantias elencados. Hesse,56 manifestando-se a respeito do assunto, disse
faltar a “vontade de Constituição”, capaz de gerar ampla e popular adesão social
em prol da luta consciente e mobilizada pela efetivação das normas
constitucionais.

1.3 AS “DIMENSÕES DOS DIREITOS” E A “INTERDEPENDÊNCIA” DOS


DIREITOS HUMANOS

Antes de adentrarmos na análise dos direitos e os


momentos históricos de sua construção, cumpre destacarmos a impropriedade
quanto ao uso do termo “geração”, em razão deste, sugerir falsamente que uma
geração, de forma gradativa, substitui a anterior, conduzindo à idéia de que, entre
os direitos, há uma certa hierarquização.57 Pelo contrário. Os direitos de liberdade
não desaparecem quando do surgimento dos direitos sociais. Tem-se, na
verdade, um processo de acumulação e não de sucessão. Destarte, os chamados
direitos de “primeira geração”, que lastreiam o Estado Democrático de Direito, não
cedem lugar aos direitos de “segunda geração”, e assim sucessivamente.

Há relevante discordância na doutrina pátria, quanto à


utilização do termo “geração” para designar os direitos que marcam uma
circunstância histórica. Paulo Bonavides assevera que o uso do referido termo

55
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 577.
56
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991,
p. 19. Para o autor, “embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor
tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente
realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela
estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos
de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-
se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na
consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem
constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de
Constituição (Wille zur Verfassung).”
57
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 57.
30

retrata de forma equivocada o fenômeno, vez que se vislumbra a sobreposição ou


revogação de uma geração por outra. Para o autor, melhor seria a designação
“dimensões de direitos”,58 sendo este também o entendimento de Ingo Sarlet,59
para quem

não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos


direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo,
de complementariedade, e não de alternância, de tal sorte que o
uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa impressão da
substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual
há quem prefira o termo “dimensões” dos direitos fundamentais,
posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais
moderna doutrina.

Não obstante, afastada a idéia equivocada de sucessão, em


que uma geração substituiria a outra, não se pode incorrer no erro de classificar
determinados direitos como se os mesmos integrassem uma dimensão
determinada, deixando-se de atentar para os aspectos da indivisibilidade e
interdependência dos direitos fundamentais. Dessa forma, deve-se analisar os
direitos fundamentais de um ponto de vista múltiplo, vale dizer, em sua dimensão
individual (primeira dimensão), em sua dimensão social (segunda dimensão), na
dimensão democrática (terceira dimensão) e assim em diante. Nisso consiste “a
única forma de salvar a teoria das dimensões dos direitos fundamentais”.60

Por entendermos ser o termo “dimensão” e não “geração” o


que melhor se aplica às análises dos direitos fundamentais, passamos a adotá-lo
nesta dissertação. Ademais, torna-se imprescindível que os direitos fundamentais
sejam tratados como indivisíveis e interdependentes, sob pena de se priorizar, por
exemplo, os direitos de liberdade em detrimento dos direitos sociais ou vice-versa.
Oportuna, portanto, a menção ao art. 5° da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, cujo texto reforça o alegado: “todos os direitos humanos são
universais, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional

58
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, pp. 571-572.
59
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais : uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. – 10. ed. rev. atual. e ampl.; 2. tir. –
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
60
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 58.
31

deve tratar todos os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em


pé de igualdade e com a mesma ênfase”.

Os direitos humanos variam conforme se modificam as


condições históricas. Assim, devem ser considerados holisticamente, posto que
seu caráter absoluto, conforme determinadas circunstâncias, deixará de existir em
outro momento histórico. Basta analisar os direitos ao meio ambiente e à
comunicação, discutidos efusivamente nos tempos atuais, mas que não se
vislumbravam nos séculos anteriores. Com efeito, tem-se que não existe direito
fundamental por natureza, uma vez que “o que parece fundamental numa época
histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e
em outras culturas.” 61

Hodiernamente, de forma quase que sedimentada, os


direitos fundamentais são classificados de primeira, segunda e terceira
dimensões, conforme a ordem histórica cronológica em que passaram a gozar de
status constitucional. Juristas brasileiros utilizam-se da referida classificação,
sendo recorrente sua menção em algumas decisões.62

Há quem aponte apenas três etapas ou momentos de


conscientização na afirmação dos direitos fundamentais, sendo a primeira a do
reconhecimento das liberdades que acompanha o nascimento do

61
BOBBIO, Norberto, 1909 - A era dos direitos. p. 18.
62
O Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello destacou que “enquanto os direitos de
primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas,
negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais
ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que
materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações
sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no
processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos,
caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade” (STF – Pleno – MS n° 22164/SP – rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça,
Seção I, 17 nov. 1995, p. 39.206).
32

constitucionalismo; a segunda, a da consagração dos direitos sociais e a última, a


dos direitos de solidariedade.63

Para Paulo Bonavides, entretanto, a globalização política na


esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta dimensão: o direito
à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Mais: apresenta-
nos a paz como direito de quinta dimensão, justificando-o, seja por meio de
documentos históricos da Organização das Nações Unidas, seja por
manifestações doutrinárias e jurisprudenciais.64

Os direitos de primeira dimensão, também denominados


direitos da liberdade, têm o homem como titular, considerado individualmente,
traduzem-se em direitos oponíveis ao arbítrio estatal e como faculdades ou
atribuições da pessoa, ostentando uma subjetividade que é seu traço mais
característico. Traduzem-se, assim, em legítimos direitos de resistência ou de
oposição perante o Estado.65

No Estado moderno, a população não tinha o direito de


escolher sua própria religião, sendo inexistente a possibilidade de atuação nos
setores econômico, político, jurídico, etc. Àqueles que se opunham ao regime
eram destinadas punições severas. Basta citar o Tribunal da Santa Inquisição,

63
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional. p.
84. Para o autor, é desnecessário falar-se em quarta geração de direitos. Na mesma
passagem, afirma que “em cada uma prepondera um tipo de direito considerado fundamental,
embora não tenha nisso exclusividade. Assim, por exemplo, o direito aos socorros públicos é
um direito social, mas foi reconhecido já na Declaração francesa de 1793 (art. 21). A liberdade
sindical é uma liberdade, contudo não foi identificada como tal senão após a Primeira Guerra
Mundial. O direito à comunicação é incluído entre os direitos de solidariedade, mas num
aspecto – o direito de informar – é uma liberdade; noutro, o de ser informado, é um direito
social. Trata-se, portanto, de uma questão de predominância. Por outro lado, cada uma delas
reflete as exigências de um quadro sociopolítico.”
64
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. pp. 563-564.
65
BONAVIDES, Paulo. Os direitos fundamentais e a globalização. In: George Salomão Leite
(coord.) Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição. 2ª ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Método, 2008, p.
130. Na mesma passagem, afirma o autor que os direitos de primeira geração “entram na
categoria do status negativus da classificação de Jellinek e fazem também ressaltar na ordem
dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento
dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da
liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do
pensamento liberal de teor clássico.”
33

estabelecido pela Igreja Católica, que queimava na fogueira os “hereges” que


questionavam a fé imposta pelo soberano e pela Igreja.66

No âmbito judicial, as pessoas eram condenadas sem direito


à ampla defesa ou mesmo ao contraditório, sendo submetidas a penas cruéis,
desumanas e desproporcionais à gravidade dos ilícitos cometidos. Escrito por
Cesare Bonesana Beccaria no ano de 1764, o clássico Dos delitos e das penas
retrata as atrocidades desse sistema penal degradante, que julgava e condenava
secretamente e usava a tortura como método para obtenção de confissões.67

Acrescente-se à cobrança de uma pesada carga tributária


para que o Estado financiasse suas freqüentes guerras e expansões territoriais, o
fato da nobreza e do clero não se sacrificarem para manter os caprichos do Rei,
bem como a vedação da participação popular na tomada das decisões, e teremos
um terreno propício ao surgimento das revoltas, que não tardaram a ocorrer.68

Martinho Lutero, por meio das suas “95 teses”, cuja


publicação deu-se nas portas das igrejas de Wittenberg, em 1571, impulsionou a
Reforma Protestante e serviu ao enfraquecimento da influência da Igreja Católica,
ao tempo em que fortaleceu o movimento popular favorável a uma maior
tolerância religiosa.69

O Iluminismo, movimento intelectual surgido no século XVIII,


possibilitou que à liberdade de manifestação do pensamento fosse concebida um
valor essencial para o desenvolvimento das idéias, resultando, via de
conseqüência, no progresso da humanidade, uma vez que enaltecia a razão e a
ciência como ferramentas para conhecer a verdade.70

66
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 42.
67
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 42.
68
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 42.
69
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 43.
70
Atribui-se a Voltaire, um dos principais personagens do Iluminismo, a célebre frase que resume
o princípio em favor da liberdade: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que dizeis,
mas defenderei até a morte teu direito de dizê-las.”
34

A falta de liberdade religiosa, os julgamentos sem


possibilidade de defesa, culminando com condenações a penas cruéis, as
cobranças de pesadas e injustas taxas, aliadas a outras circunstâncias,
propiciaram as condições para a deflagração de vários movimentos
revolucionários burgueses, proporcionando mudanças expressivas no cenário
mundial. Surge o Estado democrático de direito, em substituição ao Estado
absoluto. Várias foram as “declarações de direitos” proclamadas durante esse
turbulento período, destacando-se a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776,
decorrente da Revolução Americana e a Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, esta última, como decorrência da Revolução
Francesa.

O pensamento liberal influenciou fortemente a proteção dos


direitos de liberdade e dos demais direitos previstos nas referidas Declarações.
Locke, um dos mais influentes pensadores iluministas, declarou que “o grande e
principal fim dos homens se unirem em sociedade e de constituírem sob um
governo é a conservação da sua propriedade.” 71

Embora tenha a burguesia capitaneado os processos


revolucionários que resultaram no surgimento dos direitos de primeira dimensão,
trazendo o direito de liberdade ao seu mais alto nível de valorização, bem como
todas as declarações de direitos elaboradas à época proclamassem em seu texto
o direito de igualdade, não havia na classe que ascendia ao poder a vontade
verdadeira de garantir a isonomia a todas as pessoas.72

Não obstante, tem-se a Declaração de 1789 como símbolo


verdadeiro do direito de participar do exercício do Poder. Proclamada no impulso
inicial da Revolução Francesa, embora não tenha sido a primeira a declarar o

71
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 76.
72
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 44. A título de exemplo, o autor
cita a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em 1789 pelo parlamento
francês, que começa seu texto proclamando que “os homens nascem e permanecem livres e
iguais em direitos”. Apesar disso, na mesma época, ficou decidido que o direito de voto seria
restrito aos homens que tinham posses (voto censitário). O sufrágio universal sequer foi
mencionado. Com isso, grande parcela da população ficava à margem do jogo político,
inclusive as mulheres. Os ‘homens e cidadãos’, mencionados no texto, eram mesmo pessoas
do sexo masculino e não uma figura de linguagem”
35

direito de liberdade, serviu de paradigma e símbolo do reconhecimento dos


direitos do Homem.73

A segunda dimensão de direitos tem como marco a


Revolução Industrial, iniciada no século XIX e nasceu abraçada com o princípio
da igualdade, “do qual não se pode separar, pois fazê-lo equivaleria a
desmembrá-la da razão de ser que os ampara e estimula.” 74

A Revolução Industrial é o resultado do desenvolvimento de


técnicas de produção que proporcionaram um enorme crescimento econômico,
tornando-se símbolo da prosperidade vivida pela sociedade. Todavia, tal se deu à
custa do sacrifício da maioria da população, notadamente os trabalhadores, que
eram tratados e obrigados a viver de forma desumana. A título de exemplo, não
havia limitação para jornada de trabalho, salário mínimo, férias, nem mesmo
regular descanso. Como o trabalho infantil era admitido, as crianças eram
submetidas ao mesmo tratamento dispensado aos adultos, praticando toda sorte
de trabalhos braçais.

Os direitos fundamentais de segunda dimensão (direitos


sociais, econômicos, culturais, bem como os direitos coletivos), a exemplo dos
direitos de primeira dimensão, foram objeto de formulações especulativas – em
patamares filosóficos e políticos com nítido viés ideológico – sendo proclamados
nas Constituições tanto marxistas quanto socialdemocratas e, posteriormente, nas
Constituições ulteriores à Segunda Guerra Mundial.75

Não só a prosperidade adveio da Revolução Industrial.


Aqueles que não tinham recursos para aproveitar os “prazeres” da “Bela Época” –
os trabalhadores, obviamente –, passavam fome, estavam desempregados ou
morriam por falta de cuidados médicos. Em síntese, estavam à margem da

73
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional, p.
85.
74
BONAVIDES, Paulo. Os direitos fundamentais e a globalização. In: George Salomão Leite
(coord.) Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição, p. 130.
75
BONAVIDES, Paulo. Os direitos fundamentais e a globalização. In: George Salomão Leite
(coord.) Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição, p. 130.
36

riqueza e das vantagens estatais usufruídas pela burguesia. O Estado, por sua
vez, já não garantia a simetria entre as classes sociais. A classe trabalhadora
passou a se organizar politicamente e a reivindicar direitos que lhes
proporcionassem melhorias nas condições de trabalho.76

A classe trabalhadora percebeu que era vital modificar o


modelo político-econômico que vinha sendo praticado. Em 1848, foi escrito o
célebre Manifesto comunista, por Karl Marx, onde o autor conclamava os
trabalhadores de todo o mundo a se unirem e tomarem o poder dos capitalistas.
Na Rússia de 1917, a revolução bolchevique dava sinais de que era possível ao
proletariado o comando de seus destinos, ao tomarem o poder e instalarem, pela
primeira vez na História, um Estado voltado aos interesses do proletariado.77

A Igreja Católica, que dissimulava uma postura de


“neutralidade” quando dos conflitos entre capitalistas e assalariados, publicou a
encíclica Rerum novarum, em 15 de maio de 1891, subscrita pelo Papa Leão XIII.
O documento tecia sérias críticas às condições de vida dos trabalhadores e,
abertamente, reconhecia vários direitos trabalhistas. Estavam lançadas as bases
para o Estado do bem-estar social (Welfare State), modelo político pelo qual o
Estado compromete-se a fomentar maior igualdade social e garantir condições
básicas para uma vida digna aos trabalhadores, sem que isso signifique o
afastamento dos ícones do capitalismo (economia de mercado, livre-iniciativa e
proteção da propriedade privada). 78

Vários foram os direitos trabalhistas assegurados pelo


Estado do bem-estar social. Destaque-se a garantia de recebimento de salário
mínimo, piso salarial, o direito de greve e de sindicalização, o direito a férias, a
limitação da jornada diária de trabalho, entre outros. Paralelas a estes, houve
garantias para os chamados direitos econômicos, sociais e culturais, ligados às

76
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 48.
77
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 49.
78
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 49.
37

necessidades básicas dos homens em geral, como alimentação, saúde, moradia,


educação e assistência social.79

Como exemplos de positivação dos direitos assegurados


pelo Estado do bem-estar social, temos a Constituição mexicana, de 1917,
resultado da Revolução Mexicana de 1910 e a Constituição alemã de Weimar de
1919, sendo as primeiras a prever expressamente tais direitos e, via de
conseqüência, conferir-lhes status de norma constitucional. No Brasil, a
Constituição de 1934 e, de forma mais abrangente, a de 1946, deram os passos
primeiros à formação de um Estado do bem-estar social, fazendo previsão de
vários direitos sociais, tais como aposentadoria, educação e assistência social,
dentre outros.80

Protege-se, da mesma forma que as duas dimensões


anteriores, os direitos de terceira dimensão, entendidos como tais os direitos de
solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente
equilibrado, direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito de propriedade
sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. Uma
característica marcante dos direitos de terceira dimensão é aquela pela qual seu
objeto é comum a toda a coletividade, isto é, o respeito a um direito individual
equivale à satisfação coletiva, da mesma forma que a violação a tal direito atinge
a todos indistintamente.81

Os direitos de terceira dimensão não se destinam


especificamente à proteção dos interesses de um só indivíduo, de um grupo ou de
determinado Estado. Munidos de elevado teor de humanismo e universalidade,
têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo
de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.82

79
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 49.
80
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 51.
81
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional, p.
93.
82
BONAVIDES, Paulo. Os direitos fundamentais e a globalização. In: George Salomão Leite
(coord.) Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição, p. 132.
38

A Constituição brasileira de 1988 consagrou em seu texto


praticamente todos os direitos fundamentais denominados de terceira dimensão,
mantendo uma feliz sintonia com o espírito humanitário internacional. No âmbito
ambiental, o direito de todos a um meio ambiente sadio foi previsto na Lei Maior,
num capítulo específico que rendeu ao constituinte brasileiro muitos elogios pela
atuação de vanguarda na proteção aos direitos metaindividuais.83

Marmelstein84 crê que a positivação desse direito sofreu


influência da Declaração de Estocolmo, aprovada em sede das Nações Unidas
em 1972, cujo texto contempla expressamente o direito ao meio ambiente sadio
como um direito fundamental de toda a humanidade, o que fez projetar, de forma
inédita, no mundo jurídico, com ênfase no direito internacional, a idéia de
vivermos num ambiente equilibrado e saudável, vital para uma vida humana com
dignidade e bem estar.85

A luta pela dignidade humana não é imutável na história da


humanidade. Daí se depreende que não parou nos direitos de terceira dimensão a
evolução dos direitos fundamentais. As novas tecnologias, o mapeamento do
genoma humano, o aquecimento do planeta que gera a atual crise ambiental, o
terrorismo e as medidas de contraofensiva dele decorrentes fazem com que
novas exigências sejam colocadas na pauta do dia da humanidade.

O direito à democracia, à informação e ao pluralismo são


considerados direitos de quarta dimensão, e dos mesmos depende a
concretização aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade,

83
Constituição Federal de 1988, art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.”
84
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 53.
85
SARLET, Ingo Wolfgang. Direito constitucional ambiental. Estudos sobre a Constituição,
os Direitos Fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011, p. 36.
39

“para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de


convivência.” 86

Tem-se, assim, que o processo globalizante que varre o


mundo leva a uma provável dissolução dos Estados nacionais e, via de
conseqüência à debilidade dos laços de soberania. Dessa forma, “globalizar
direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. Só assim
aufere humanização e legitimidade um conceito que, doutro modo, qual vem
acontecendo de último, poderá aparelhar unicamente a servidão do porvir.” 87

Por fim, a paz é considerada um direito de quinta dimensão,


tendo em vista que cabe ao Estado, como obrigação fundamental, proteger o
direito dos povos à paz e fomentar sua realização.88

86
BONAVIDES, Paulo. Os direitos fundamentais e a globalização. In: George Salomão Leite
(coord.) Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição, p. 133.
87
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 571.
88
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 581-585.
40

CAPÍTULO 2

OS DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES

2.1 OS ORGANISMOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS


HUMANOS DAS MULHERES

Os direitos sexuais e reprodutivos somente recentemente


foram reconhecidos como direitos humanos, na esteira de vários encontros
internacionais que tiveram como centro de discussão os direitos humanos. A
Organização das Nações Unidas, nesse sentido, colaborou significativamente
para a certificação dos direitos das mulheres como legítimos direitos humanos, o
que sinalizou para a estruturação de uma sociedade mais igualitária.

Com efeito, dentre outros, deve-se destacar os documentos


elaborados por ocasião da realização da Segunda Conferência Mundial dos
Direitos Humanos de Viena, de 1993, a Conferência do Cairo de 1994 e a de
Beijing de 1995, onde importantes pontos sobre a sexualidade e a saúde
reprodutiva foram debatidos numa perspectiva de gênero.89

Podemos denominar direitos reprodutivos o conjunto dos


direitos básicos relacionados ao livre exercício da sexualidade e da reprodução
humana. Daí se depreende que o Estado deve assegurar o acesso a um serviço
de saúde que assegure informação e meios, com vistas ao controle tanto da
natalidade quanto da procriação, sem riscos para a saúde.90

A história demonstra que a luta pelo direito à livre


reprodução iniciou-se nas reivindicações das mulheres em torno da questão

89
GONÇALVES, Tamara Amoroso, CHAMBOULEYRON, Ingrid Cyfer. Direitos humanos das
mulheres: não discriminação, direitos sexuais e direitos reprodutivos. In: Daniela Ikawa,
Flávia Piovesan, Melina Girardi Fachin (coords.). Direitos humanos na ordem
contemporânea. Proteção nacional, regional e global. Curitiba: Juruá, 2010.
90
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos. 3a. ed. – São Paulo : Saraiva, 2009.
41

reprodutiva. Para Flávia Piovesan,91 os direitos reprodutivos refletiam a tensão


entre a obrigação da maternidade, que significava o poder masculino sobre a
vontade feminina, e a contracepção, compreendida pelas mulheres como forma
de se libertar do domínio masculino.

Assim, os direitos reprodutivos têm recebido, por parte do


movimento feminista mundial, um elevado grau de importância, em razão de
atingir praticamente todas as mulheres, que, na maioria das vezes, é quem arcam
com as conseqüências de sua vida sexual. Significa que, se a mulher resolver
pela gravidez ou pela contracepção, ninguém, a não ser ela mesma, suportará o
ônus de tal decisão.

Daí ser imprescindível que os direitos das mulheres sejam


reconhecidos e assumidos pelos Estados no âmbito dos direitos reprodutivos e
sexuais. Somente assim, vale dizer, com o pleno reconhecimento e exercício de
tais direitos, alcançaremos a igualdade de fato e de direito entre os gêneros.

Nesse sentido, é necessário que se faça uma análise de


alguns dos mais importantes documentos históricos gerados pela mobilização de
homens e mulheres na luta pelo respeito mútuo e pela igualdade entre os
gêneros.92

Nesse tópico, serão discutidos os pontos mais importantes à


temática dos direitos humanos das mulheres, com ênfase ao direito à liberdade
reprodutiva, em alguns desses documentos. Assim, analisaremos os pontos
nucleares da Primeira Conferência Mundial da Mulher, realizada no México em
1975, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher, realizada pela ONU, em 1979, da Conferência Mundial sobre os
Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, da Conferência Internacional
sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994 e da
Conferência Mundial de Beijing, na China, em 1995.

91
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 251.
92
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 252.
42

2.1.1 Primeira Conferência Mundial da Mulher

Realizada entre os dias 19 de junho e 2 de julho de 1975, a


Conferência do México, embora não trouxesse a lume a discussão acerca dos
direitos reprodutivos, não pode ser descaracterizada como importante instrumento
mundial de discussão sobre a necessidade de eliminação de qualquer modo de
discriminação contra as mulheres.

Com efeito, a Conferência foi realizada naquele ano para


que coincidisse com o Ano Internacional da Mulher. Sem dúvida, estabelecer um
ano internacional para as mulheres fortaleceu o movimento feminista no mundo.
Mais do que um simbolismo, tal data serviu para ampliar a discussão sobre a
necessidade da elaboração de um plano político-jurídico com vistas à eliminação
da opressão contra as mulheres, favorecendo o avanço feminino em todos os
setores da sociedade e traduzindo-se num grande passo global na tentativa de se
alcançar a igualdade entre homens e mulheres.93

A participação das mulheres no evento foi uma


demonstração de que, mais do que simples receptoras das ações políticas, as
mulheres queriam participar ativamente dos processos de desenvolvimento. Com
efeito, 113, das 133 delegações presentes à Conferência, eram encabeçadas por
mulheres, o que demonstra o seu interesse na busca pela mudança do papel
desempenhado por elas em escala mundial. É dizer, as mulheres buscavam ser
sujeitos do processo histórico de mudanças em busca de uma vida mais digna e
justa.

A Conferência aprovou um plano de ação que indicou


algumas diretrizes aos Estados para os dez anos seguintes, com o compromisso
de as metas estabelecidas serem alcançadas até o ano de 1980. Assim, tais

93
Disponível em http://www.escueladefeminismo.org/spip.php?article383. Acesso em 02 out.
2011.
43

metas visavam garantir às mulheres o acesso à igualdade, à educação, ao


trabalho, à participação política, à saúde, à planificação familiar e à alimentação.94

2.1.2 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação


contra a Mulher

Em 1979, as Nações Unidas aprovaram a Convenção95


sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(CEDAW - Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against
Women), que foi ratificada pelo Brasil em 1984.96 Adotada durante o Decênio das
Nações Unidas para a Mulher (1975-1985), esta Convenção foi fruto do esforço
do movimento feminista mundial no sentido de comprometer os Estados-membros
no reconhecimento e condenação de qualquer tipo de discriminação contra as
mulheres. Tem-se que foi impulsionada pela proclamação de 1975 como Ano
Internacional da Mulher e pela realização da primeira Conferência Mundial sobre
a Mulher, no México, também em 1975.97

Cumpre ressaltar, todavia, que, antes da Convenção, outros


instrumentos de alcance geral referiam-se expressamente à igualdade de direitos
entre os gêneros, condenando-lhe a discriminação. Assim, já existiam a Carta das

94
O plano de ação da Conferência do México identificava três objetivos prioritários: a) a igualdade
plena de gênero e a eliminação da discriminação por motivos de gênero; b) a plena
participação das mulheres no desenvolvimento; c) uma maior contribuição das mulheres à paz
mundial. Destarte, tinha-se o Plano como um guia de ação para o avanço da condição das
mulheres no mundo durante os próximos dez anos e seus objetivos gerais eram a promoção da
igualdade entre gêneros, além de assegurar a integração e contribuição das mulheres ao
desenvolvimento e à paz mundial.
95
Valério Mazzuoli salienta algumas diferenças entre os tratados e as convenções, afirmando que
usualmente são utilizados como sinônimos e em nada diferem estruturalmente. Para o autor,
emprega-se o termo tratado “nos ajustes solenes, cujo objeto, fim, número e poder das partes
contratantes têm maior importância, por criarem situações jurídicas.”. São exemplos os
“tratados de paz”. Já o termo convenção é empregado “nos acordos que criam ou estabelecem
normas gerais, como a Convenção de Havana de 1928 sobre Condições dos Estrangeiros.”
(MAZZUOLI, Valério de Oliveira, 1977. Tratados internacionais : (com comentários à
Convenção de Viena de 1969). 2ª ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo : Editora Juarez de
Oliveira, 2003, pp. 48-49).
96
O Estado brasileiro assinou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher no dia 31 de março de 1981, com reservas aos seus artigos 15,
§ 4°, e 16, § 1°, alíneas a, c, g e h, cuja aprovação deu-se por meio do Decreto Legislativo n°
93, de 14 de novembro de 1983. Posteriormente, por meio do Decreto Legislativo n° 26, de 22
de junho de 1994, revogou-se o Decreto Legislativo n° 93 e o texto da Convenção foi aprovado
sem as referidas reservas.
97
PIOVESAN, Flávia. Os direitos humanos da mulher na ordem internacional. In Temas de
direitos humanos. 3a. ed. – São Paulo : Saraiva, 2009, p. 208.
44

Nações Unidas (1945), que propunha a promoção e o estímulo ao respeito dos


direitos humanos e das liberdades fundamentais sem qualquer distinção de raça,
sexo, idioma ou religião (art. 1°) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
do mesmo ano, que afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos” (art. 1°) e que “toda pessoa tem todos os direitos e
liberdades proclamados sem distinção alguma” (art. 2°).98

A discriminação contra a mulher é conceituada pela


Convenção, em seu art. 1°, como

toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha


por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento,
gozo, exercício pela mulher, independentemente de seu estado
civil, com base na igualdade do homem e da mulher dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

A Convenção possui um preâmbulo e é dividida em seis


partes, num total de trinta artigos. A primeira parte traz disposições e
conceituações gerais (arts. 1° ao 6°). A segunda parte dispõe sobre os direitos
políticos (arts. 7° ao 9°). A terceira parte dispõe sobre os direitos sociais e
econômicos (arts. 10 a 14). A quarta parte inclui normas relativas aos direitos civis
e de família (arts. 15 e 16). A quinta parte traz disposições referentes à aplicação
da Convenção (arts. 17 a 22) e, por fim, há uma série de disposições finais
relativas ao compromisso dos Estados e à ratificação desse instrumento, na sexta
e última parte da Convenção (arts. 23 a 30).

Inicialmente, no preâmbulo da Convenção, nota-se a


primazia dos princípios da dignidade humana e da igualdade, fundamentos
essenciais inspiradores de praticamente todos os instrumentos internacionais de
defesa dos direitos humanos. Também há uma preocupação quanto às
conseqüências da não-observação, por partes dos Estados, dos princípios
supracitados, ao considerar que

98
ESPINOZA, Olga. Convenção sobre a eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra a Mulher. In: Direito internacional dos direitos humanos : instrumentos básicos.
2a. ed. – São Paulo : Atlas, 2007.
45

a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade


de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a
participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na
vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um
obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e
dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher
para prestar serviço a seu país e à humanidade.99

Consagra-se também a urgência em se erradicar todas as


formas de discriminação contra as mulheres, a fim de que se garanta o pleno
exercício de seus direitos civis e políticos, como também de seus direitos sociais
e coletivos. Acolhe-se, assim, a tônica da Declaração Universal, com relação à
indivisibilidade dos direitos humanos.100

Não basta, portanto, a simples menção legal da vedação de


práticas discriminatórias contra as mulheres, a chamada igualdade formal. Ao
contrário, busca-se – além da igualdade perante a lei – a igualdade real, pois
aquela é apenas um meio em busca desta. É dizer, a igualdade de fato, onde às
mulheres sejam dadas todas as oportunidades de desenvolvimento. Para tanto,
faz-se necessário que se opere uma verdadeira transformação social, com a
consequente modificação das normas sociais e culturais.101

Acerca de tais medidas especiais temporárias, denominadas


pela doutrina de “discriminação positiva”,102 tem-se o exemplo do Estado
brasileiro que, no ano de 1995, editou a Lei n° 9.100. Referida Lei estabelecia,
dentre outras normas concernentes às eleições ao Poder Legislativo, a

99
Preâmbulo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher. Saliente-se ainda a preocupação com o fato da mulher continuar sendo objeto de
grandes discriminações, malgrado as resoluções, declarações e recomendações aprovadas
pelas Nações Unidas e pelas agências especializadas para favorecer a igualdade de direitos
entre o homem e a mulher.
100
PIOVESAN, Flávia. Os direitos humanos da mulher na ordem internacional. In Temas de
direitos humanos. 3a. ed. – São Paulo : Saraiva, 2009, p. 209.
101
Art. 4° da Convenção: “A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter
temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se
considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira
implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas
medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem
sido alcançados.”
102
PIOVESAN, Flávia. Os direitos humanos da mulher na ordem internacional. In Temas de
direitos humanos, p. 211.
46

obrigatoriedade do percentual mínimo de 20% das vagas dos partidos políticos às


mulheres.103 Pode-se afirmar que tal medida revestia-se de imenso valor político,
pela qual o Brasil adotava um passo importante com vistas a acelerar o processo
de igualização dos gêneros.104

Importante salientar que os Estados-partes, na


concordância com os termos da Convenção, vincularam-se à obrigação de,
gradualmente, adotar medidas com vistas à eliminação de todas as formas de
discriminação referentes ao gênero, de modo a assegurar a efetiva igualdade
entre eles. Desse modo, o Estado obriga-se a ratificar a Convenção, que prevê,
por exemplo, a necessidade de adoção de políticas igualitárias, bem como de
legislação igualitária e proteção jurídica dos direitos da mulher.105

A Convenção declarou que, para se alcançar a igualdade,


insuficiente seria a mera proibição da discriminação quanto aos direitos das
mulheres. Nesse sentido, assegurar a igualdade entre os gêneros importaria,

103
A redação do art. 11 assim dispunha: “Cada partido ou coligação poderá registrar candidatos
para a Câmara Municipal até cento e vinte por cento do número de lugares a preencher. § 3º
Vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas
por candidaturas de mulheres”.
104
Importante ressaltar a postura adotada pelo Estado brasileiro, no tocante às medidas visando
uma maior participação das mulheres no processo eleitoral. Em 30 de setembro de 1997,
entrou em vigor a Lei n° 9.503 que, em seu art. 10, § 3°, previu que “do número de vagas
resultantes das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o
mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo”.
105
Artigo 2º da Convenção: “Os Estados-partes condenam a discriminação contra a mulher em
todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações,
uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se
comprometem a: a) consagrar, se ainda não o tiverem feito, em suas Constituições nacionais
ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar
por lei outros meios apropriados à realização prática desse princípio; b) adotar medidas
adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda
discriminação contra a mulher; c) estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher em
uma base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais
competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de
discriminação”.
47

106
também, na implementação, pelos Estados-partes, de medidas afirmativas (as
ações afirmativas), com vistas à aceleração do processo de obtenção da
igualdade.107

Um dos avanços mais importantes da Convenção diz


respeito à derrogação de todas as disposições legais que discriminem as
mulheres.108 Nesse ponto, abriu-se a possibilidade concreta de se abolir, por
exemplo, a criminalização do aborto, uma vez que o direito à reprodução ou à
contracepção deve ser exercido única e exclusivamente pelas mulheres. Assim,
inúmeras previsões da Convenção também incorporam uma preocupação de que
os direitos reprodutivos das mulheres devem estar sob o controle delas próprias,
e que o Estado deve assegurar que as escolhas das mulheres não sejam feitas
sob coerção e não sejam elas prejudiciais, no que se refere ao acesso às
oportunidades sociais e econômicas.109

Não obstante os Estados-partes tenham assumido o


compromisso quanto à derrogação de normas internas que constituam práticas
discriminatórias contra as mulheres, poucos efetivamente implementaram o
disposto no art. 2° da Convenção. Países como Portugal, França, Espanha,
Canadá, Holanda, Rússia e Estados Unidos, por exemplo, legalizaram a
interrupção voluntária da gravidez sem restrições, enquanto Chile, Colômbia,

106
Tem-se as ações afirmativas como poderoso instrumento de inserção social, pelo qual os
Estados-partes adotariam medidas especiais e temporárias, cujo objetivo é tornar célere o
processo de igualdade material por parte dos chamados grupos vulneráveis, dentre eles, as
mulheres, visando-se remediar todo um passado de discriminação. Como exemplo de ação
afirmativa no Brasil, temos a Constituição Federal de 1988 que, em seu art. 7°, XX, versa sobre
a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos. Tal dispositivo
foi regulamentado pela Lei n. 9.799/99, que inseriu na Consolidação das Leis do Trabalho
regras que possibilitaram um melhor acesso feminino ao mercado de trabalho. (PIOVESAN,
Flávia. Implementação do direito à igualdade. In: Temas de direitos humanos. 3a. ed. –
São Paulo : Saraiva, 2009, p. 190.
107
Artigo 3º da Convenção: “Os Estados-partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas
esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de
caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o
objetivo de garantir-lhe o exercício e o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais
em igualdade de condições com o homem”.
108
Art. 2° da Convenção, alíneas: f) adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter
legislativo, para modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam
discriminação contra a mulher; g) derrogar todas as disposições penais nacionais que
constituam discriminação contra a mulher.
109
PIOVESAN, Flávia. Os direitos humanos da mulher na ordem internacional. In Temas de
direitos humanos, p. 210.
48

Irlanda, Paraguai e Brasil, dentre outros, permitem o aborto somente em algumas


hipóteses, como o risco de vida para a gestante ou gravidez decorrente de
estupro.110 Nota-se uma grande dificuldade, principalmente no âmbito legislativo,
em se implementar as diretrizes aprovadas nos vários encontros internacionais
sobre direitos humanos.

A Convenção firmou acordos sobre família e reprodução que


obrigavam os Estados a criar mecanismos para sua efetivação. Abriu-se, ainda,
espaço para que a mulher decidisse sobre a quantidade de filhos que geraria e o
intervalo de nascimento. O Brasil ratificou a Convenção com reservas.
Posteriormente, com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, onde
se reconhecia a igualdade de gêneros, particularmente na relação conjugal, o
governo brasileiro ratificou integralmente o texto da Convenção, retirando-lhe as
reservas antes firmadas.111

Como forma de acompanhar os progressos verificados na


aplicação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher, foi criado o Comitê das Nações Unidas para a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW),112
integrado por 23 peritos de grande prestígio moral e competência, ficando os
Estados-partes obrigados a informar tal organismo sobre as providências
adotadas internamente com vistas a atender aos objetivos da Convenção, bem
como os avanços alcançados.

Ao Comitê, de modo ao melhor desenvolvimento de suas


funções, é facultado o direito de convidar organismos especializados, cuja função,
dentre outras, seria o acompanhamento do exame da aplicação das disposições
110
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, p. 88.
111
RINALDI, Alessandra de Andrade. Biodeterminismo e direitos humanos das mulheres : da
diferença à igualdade? In: Temas sobre direitos humanos em homenagem ao professor
Vicento de Paulo Barreto. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2009.
112
Art. 17 da Convenção: “Com o fim de examinar os progressos alcançados na aplicação desta
Convenção, será estabelecido um Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher
(doravante denominado "Comitê"), composto, no momento da entrada em vigor da Convenção,
de dezoito e , após sua ratificação ou adesão pelo trigésimo quinto Estado-parte, de vinte e três
peritos de grande prestígio moral e competência na área abarracada pela Convenção. Os
peritos serão eleitos pelos Estados-partes e exercerão suas funções a título pessoal; será
levada em conta uma distribuição geográfica eqüitativa e a representação das formas diversas
de civilização, assim como dos principais sistemas jurídicos”.
49

da Convenção e a apresentação de relatórios sobre as áreas que correspondam à


sua esfera de atividades.113

Não obstante o relevante papel do Comitê, ao exercer


funções de natureza fiscalizadora e opinativa, o organismo não possuía poder de
decisão, sofrendo sérias restrições no tocante à capacidade de acompanhamento
das decisões adotadas pelos Estados-partes, concernentes à diminuição da
discriminação entre os gêneros. Comentando acerca de tal limitação, ESPINOZA
assim se manifestou:

Sendo o comitê sobre a Eliminação da Discriminação Contra a


Mulher o órgão especialmente criado para promover a
implementação da Convenção, devemos reconhecer que suas
funções são insuficientes e reduzidas para atingir tal fim.
Comparando com as atribuições que a Convenção sobre a
Eliminação Racial outorga a seu Comitê, revela-se evidente essa
limitação. Assim, constatamos que o Cedaw não se ocupa de
analisar as denúncias que um Estado-membro pode apresentar
sobre o outro que não cumpre as disposições da Convenção;
também não pode ter iniciativa de conhecimento de violações aos
direitos humanos das mulheres por vias próprias; não nomeia
comissões especiais de conciliação para assuntos de controvérsia
entre Estados-membros da Convenção; e, principalmente, não
tem capacidade para receber e examinar comunicações de
pessoas ou grupos de pessoas que alegam ser vítimas de
violações aos direitos estabelecidos na Convenção, por parte de
um Estado. Cabe acrescentar que o Cedaw também não pode
encaminhar sugestões aos Estados de forma direta, dependendo
do Conselho Econômico e Social (Ecosoc) para tal. Essa
passividade compromete a eficácia do funcionamento do
Comitê.114

113
Art. 22 da Convenção: “As agências especializadas terão direito a estar representadas no
exame da aplicação das disposições desta Convenção que correspondam à esfera de suas
atividades. O Comitê poderá convidar as agências especializadas a apresentar relatórios sobre
a aplicação da Convenção em áreas que correspondam à esfera de suas atividades.
114
ESPINOZA, Olga. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra a Mulher. In: Direito Internacional dos Direitos Humanos : instrumentos básicos.
p. 46.
50

Criou-se, como forma de proporcionar ao Comitê melhores


condições de supervisão e cobrança das medidas visando à igualdade e o
combate à discriminação entre homens e mulheres, o Protocolo Facultativo à
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, por meio da
Resolução n° A/54/A, de 6 de outubro de 1999. Com a adesão ao referido
Protocolo, os Estados-membros reafirmaram o compromisso de assegurar o
pleno gozo dos direitos humanos às mulheres, adotando medidas eficazes para
evitar a sua violação. Com efeito, foi garantido o acesso ao Comitê, não só pelos
Estados, mas também por qualquer nacional ou grupo de pessoas vítima de
violação de qualquer direito previsto na Convenção, desde que com o
consentimento do interessado, mas prescindindo de tal convencimento, se
justificado.115

Dispõe o art. 8° do Protocolo que, na hipótese de


recebimento de informação fidedigna da ocorrência de graves ou sistemáticas
violações dos direitos previstos na Convenção, por qualquer Estado, este será
convidado no auxílio das investigações necessárias à apuração da veracidade da
denúncia, podendo o Conselho, se entender necessário, designar um ou mais
membros para conduzir a apuração, ao final da qual será apresentado relatório ao
órgão. Há ainda a possibilidade da investigação ser efetuada in loco, desde que
justificada. Para tanto, não se pode prescindir do consentimento do Estado-parte.
Frise-se, por derradeiro, que foi admitida a possibilidade de reserva,116 aos
Estados, quanto ao conteúdo do artigo em comento, não obstante a previsão do
art. 17, que expressamente declara que “não serão permitidas reservas ao
presente Protocolo”.

115
Art. 2° do Protocolo: “As comunicações podem ser apresentadas por indivíduos ou grupos de
indivíduos, que se encontrem sob a jurisdição do Estado Parte e aleguem ser vítimas de
violação de quaisquer dos direitos estabelecidos na Convenção por aquele Estado Parte, ou em
nome desses indivíduos ou grupos de indivíduos. Sempre que for apresentada em nome de
indivíduos ou grupos de indivíduos, a comunicação deverá contar com seu consentimento, a
menos que o autor possa justificar estar agindo em nome deles sem o seu consentimento”.
116
Art. 10 do Protocolo: “1. Cada Estado Parte poderá, no momento da assinatura ou ratificação
do presente Protocolo ou no momento em que a este aderir, declarar que não reconhece a
competência do Comitê disposta nos Artigos 8 e 9 deste Protocolo. 2. O Estado Parte que fizer
a declaração de acordo com o Parágrafo 1 deste Artigo 10 poderá, a qualquer momento, retirar
essa declaração através de notificação ao Secretário-Geral”.
51

Por fim, importante ressaltar que o Protocolo previu


expressamente a necessidade de adoção de medidas eficazes visando à
proteção dos direitos da mulher. Dessa forma, positivo o art. 11 do Protocolo, ao
dispor que “os Estados Partes devem tomar todas as medidas apropriadas para
assegurar que os indivíduos sob sua jurisdição não fiquem sujeitos a maus tratos
ou intimidação como conseqüência de sua comunicação com o Comitê nos
termos do presente Protocolo”.117 Dessa forma, tenta-se impedir possíveis
retaliações por parte de governantes ou instituições denunciadas junto ao Comitê
por violação aos direitos humanos.

2.1.3 Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena

Realizada em Viena, em 1993, a Segunda Conferência


Mundial sobre os Direitos Humanos aclamou o princípio da complementariedade
solidária dos direitos humanos de toda espécie, justificando-se tal princípio na
própria essência do ser humano, que, embora uma, admite a “multiplicidade de
diferenças individuais e sociais, biológicas e culturais existentes na
humanidade”.118 Dessa forma, a Conferência previa, em seu art. 5°, o caráter
universal, indivisível, interdependente e interrelacionado dos direitos humanos,
bem como a necessidade da comunidade internacional vislumbrar tais direitos
holisticamente, de forma justa e equitativa, além de cominar a competência dos
Estados na promoção e proteção de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais, independentemente dos seus sistemas políticos, econômicos e
culturais.

A importância do reconhecimento universal do direito à


igualdade entre homens e mulheres foi reafirmada pela Conferência, que também
clamou a todos os países que ratificassem a Convenção sobre a Eliminação da

117
GARCIA, Emerson. Proteção internacional dos Direitos Humanos: breves reflexões sobre
os sistemas convencional e não-convencional. 2. ed. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2009.
118
MEDEIROS, Noé de. Os direitos humanos e os efeitos da globalização. Barueri, São Paulo :
Minha Editora, 2011.
52

Discriminação contra as Mulheres, de 1979.119 Frise-se, por importante, que a


Convenção, ao tempo em que insiste na necessidade dos países em ratificarem
todos os tratados e protocolos de direitos humanos adotados no sistema das
Nações Unidas, faz um chamamento a que ratifiquem também, de forma
igualmente universal, a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em
1989 e vigente desde 1990. Tal ratificação teria como limite de sua ocorrência o
ano de 1995, sendo que os países assinantes assumiriam a adoção de todas as
medidas legislativas, administrativas e de qualquer natureza, com vistas à sua
efetivação.120

A Conferência enfatizou como estão imbricados os conceitos


de democracia, direitos humanos e desenvolvimento, ressaltando-se seu caráter
de interdependência.121 Dessa forma, vive-se a democracia quando se detém o
poder de determinar seus próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e
culturais com plena participação popular, com a promoção e proteção dos direitos
humanos nos âmbitos interno e externo, bem como se deve fortalecer a promoção
da democracia como meio para se chegar ao pleno desenvolvimento em todo o
mundo.122

119
Art. 39 da Conferência: “39. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela à
erradicação de todas as formas de discriminação, flagrantes ou ocultas, de que as mulheres
são vítimas. As Nações Unidas deverão encorajar a ratificação universal, por todos os Estados,
até ao ano 2000, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres. Deverá ser estimulada a procura de formas e de meios para lidar com o
número particularmente elevado de reservas à Convenção. O Comitê para a Eliminação da
Discriminação contra as Mulheres deverá continuar, inter alia, o exame às reservas formuladas.
Exortam-se os Estados a retirar as reservas contrárias ao objeto e fim da Convenção ou que
sejam, a qualquer título, incompatíveis com o Direito Internacional dos tratados.”.
120
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 3. ed. atual. –
São Paulo : Max Limonad, 1997, p. 207.
121
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos
humanos, vol. II. – Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, pp. 187-192.
122
O art. 8° da Convenção dispõe: “A democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos
humanos e liberdades fundamentais são conceitos interdependentes que se reforçam
mutuamente. A democracia se baseia na vontade livremente expressa pelo povo de determinar
seus próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e culturais e em sua plena participação
em todos os aspectos de suas vidas. Nesse contexto, a promoção e proteção dos direitos
humanos e liberdades fundamentais, em níveis nacional e internacional, devem ser universais e
incondicionais. A comunidade internacional deve apoiar o fortalecimento e a promoção de
democracia e o desenvolvimento e respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais no
mundo inteiro.”
53

Com tal previsão, a Conferência reforça o pedido à


comunidade internacional de apoiar o fortalecimento e a promoção da
democracia, bem como o desenvolvimento, respeito e efetivação dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais em todo o planeta.123

No que concerne à igualdade de gênero, a Conferência


enfatizou, em várias passagens, a necessidade de a comunidade internacional
adotar medidas com vistas a combater a discriminação entre os sexos. Em seu
preâmbulo, exorta a Carta das Nações Unidas, ao “reafirmar a fé nos Direitos
Humanos fundamentais, na dignidade e valor da pessoa humana e na igualdade
de direitos de homens e mulheres, assim como das nações, grandes e
pequenas”, revela preocupação com “as várias formas de discriminação e de
violência a que as mulheres continuam a estar expostas por todo o mundo”,
chama a atenção para a inalienabilidade, integralidade e indivisibilidade dos e
com os direitos das mulheres, ao afirmar que “os Direitos Humanos das mulheres
e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e
indivisível dos Direitos Humanos universais. A participação plena das mulheres,
em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural,
aos níveis nacional, regional e internacional, bem como a erradicação de todas as
formas de discriminação com base no sexo, constituem objetivos prioritários da
comunidade internacional.”

A Conferência reafirmou a inalienabilidade dos direitos


humanos das mulheres e das meninas, sendo aqueles parte integral e indivisível
dos direitos humanos universais. A discriminação de gênero soa, portanto,
incompatível com a dignidade e o valor da pessoa humana, devendo ser
eliminada pela comunidade internacional por todos os meios possíveis.124

A Conferência de Viena invoca a comunidade internacional e


todas as entidades, públicas ou privadas, a empreenderem todos os esforços no
sentido da proteção e promoção dos direitos das mulheres, com ênfase no

123
MEDEIROS, Noé de. Os direitos humanos e os efeitos da globalização, p. 52.
124
MEDEIROS, Noé de. Os direitos humanos e os efeitos da globalização, p. 57.
54

trabalho tendente a eliminar a violência de gênero, exigindo-se, para tanto, uma


resposta rápida e eficaz a tal ocorrência.125

A Declaração e o Programa de Ação de Viena previram,


quanto aos mecanismos de monitoramento da Convenção sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a necessidade da criação
de mecanismos para que as mulheres exercessem de forma eficaz os seus
direitos e combatessem, por meio de tais instrumentos, a discriminação. Com
efeito, é o disposto do art. 40 da Conferência, ao prever que “os órgãos de
monitoramento dos tratados devem disseminar informações necessárias que
permitam às mulheres fazerem uso mais efetivo dos procedimentos de
implementação existentes, com o objetivo do pleno e equânime exercício dos
direitos humanos e da não-discriminação.”

Por fim, mereceu destaque a proposta com vistas à criação


da petição individual, por meio da elaboração de um Protocolo Facultativo à
Convenção. A petição constituiu-se no “sistema mais eficiente de monitoramento
dos direitos humanos internacionalmente enunciados”.126

2.1.4 Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do


Cairo

Em 1994, os direitos reprodutivos foram reconhecidos como


direitos humanos por 184 Estados, que admitiram como direitos fundamentais o
controle sobre as questões relativas à sexualidade e à saúde sexual e

125
Art.38 da Conferência: “A Conferência sobre Direitos Humanos salienta principalmente a
importância de se trabalhar no sentido da eliminação da violência contra as mulheres na vida
pública e privada, da eliminação de todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de
mulheres para prostituição, da eliminação de tendências sexistas na administração da justiça e
da erradicação de quaisquer conflitos que possam surgir entre os direitos das mulheres e os
efeitos nocivos de certas práticas tradicionais ou consuetudinárias, preconceitos culturais e
extremismos religiosos. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela à Assembléia
Geral para que adote o projeto de declaração sobre a violência contra as mulheres, e insta os
Estados a combaterem a violência contra as mulheres em conformidade com as disposições
contidas na declaração. As violações dos direitos das mulheres em situações de conflito
armado constituem violações dos princípios internacionais fundamentais de Direitos Humanos e
de Direito Humanitário. Todas as violações deste tipo, incluindo especialmente, o homicídio, as
violações sistemáticas, a escravatura sexual e a gravidez forçada exigem uma resposta
particularmente eficaz”.
126
PIOVESAN, Flávia. Os direitos humanos da mulher na ordem internacional. In Temas de
direitos humanos, p. 213.
55

reprodutiva, assim como a decisão livre de qualquer coerção, discriminação e


violência.127 De forma inédita, uma Conferência mundial eleva à categoria de
direito fundamental o direito de decisão feminina sobre a reprodução. Nos termos
do art. 4° da Conferência,

Promover a equidade e a igualdade dos sexos e os direitos da


mulher, eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir
que seja ela quem controle sua própria fecundidade são a pedra
angular dos programas de população e desenvolvimento. Os
direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte
inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais.
A plena participação da mulher, em igualdade de condições na
vida civil, cultural, econômica, política e social em nível nacional,
regional e internacional e a erradicação de todas as formas de
discriminação por razões do sexo são objetivos prioritários da
comunidade internacional.

Nos bastidores da Conferência, já se desenhava a discussão


que trataria, de forma global, a temática dos problemas populacionais com o
desenvolvimento social, os direitos humanos relacionados às mulheres
(sexualidade, reprodução, não-discriminação, etc.), o combate à pobreza e
medidas que proporcionassem melhoria nas condições de vida da população.128

Dentre os objetivos e metas recomendadas pelo Plano de


Ação do Cairo à comunidade internacional destacam-se: a) o crescimento
econômico sustentado como marco do desenvolvimento sustentável; b) a
educação, em particular das meninas; c) a igualdade entre os sexos; d) a redução
da mortalidade neonatal, infantil e materna e; e) o acesso universal aos serviços
de saúde reprodutiva, em particular de planificação familiar e de saúde sexual.
Dessa forma, a Conferência, ao abordar a temática do direito ao desenvolvimento
como um direito humano em relação ao desenvolvimento sustentável e à saúde

127
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p.253.
128
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos
humanos, vol. II, p. 308.
56

reprodutiva, insistiu na posição central do ser humano em todo o processo de


desenvolvimento.129

A Conferência ratifica o entendimento de que cabe às


mulheres o direito individual de decidir, de forma livre e responsável, protegida de
qualquer coerção e discriminação, o direito à maternidade, cabendo ao Estado
proporcionar todos os meios para a efetivação de tal direito.130 Aos homens cabe
a “responsabilidade pessoal e social, a partir de seu próprio comportamento
sexual e fertilidade, pelos efeitos desse comportamento na saúde e bem-estar de
suas companheiras e filhos.”131

O Capítulo VII da Conferência foi todo destinado à saúde e


aos direitos reprodutivos. Firmou-se o princípio pelo qual as políticas relacionadas
à população deveriam ser orientadas pelo respeito aos direitos humanos
fundamentais universais, significando ainda que a população sujeita à pobreza
dos países envolvidos é a detentora de tais direitos e merecedora das políticas
públicas que a combatam. Ampliou-se, assim, o conceito de direitos reprodutivos,
com vistas a atingir todo o campo relacionado com a reprodução e sexualidade
humanas, sendo os direitos reprodutivos sexuais concebidos, a partir de então, no
âmbito dos direitos humanos.132

Não se pode olvidar, todavia, que foi a pressão exercida pelo


movimento feminista organizado, tanto na fase preparatória quanto por ocasião da

129
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos
humanos, vol. II, p. 308.
130
Nesse sentido é o item 7.2 do Plano de Ação da Conferência Mundial do Cairo: “Saúde
reprodutiva é um estado de completo desenvolvimento físico, mental e bem-estar social e não
meramente a ausência de doença ou enfermidade, em todas as questões relacionadas ao
sistema reprodutivo e suas funções e processos. Saúde reprodutiva implica, portanto, que as
pessoas são capazes de ter uma vida sexual satisfatória e segura e que eles têm a capacidade
de reproduzir e a liberdade de decidir se, quando e quantas vezes a fazê-lo. Implícito nesta
última condição está o direito de homens e mulheres de ser informado e ter acesso a métodos
seguros, eficazes, acessíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua escolha, bem como
outros métodos de sua escolha para a regulação da fertilidade, que não são contra a lei, e o
direito de acesso aos apropriados serviços de saúde que permitam às mulheres para ir com
segurança através da gravidez e ao parto e aos casais com a melhor chance de ter um bebê
saudável.”
131
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 253.
132
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In Temas de direitos humanos, p. 254.
57

própria Conferência, que permitiu a legitimação da noção de direitos reprodutivos,


“apontando para a necessidade de amplos programas de saúde reprodutiva e
reconhecendo o aborto como um grave problema de saúde pública”.133 Trata-se
de bandeiras de luta empunhadas pelas mulheres que sintetizam a luta das
massas por condições dignas de sobrevivência, por direitos humanos que, na
lição de Joaquim Herrera Flores,

foram categorias que, em determinados momentos e sob


determinadas interpretações, cumpriram um papel legitimador
desse novo sistema de relações; e em outros momentos e sob
outras interpretações, desempenharam o papel de mobilização
popular contra a hegemonia das relações que o capital veio
impondo durante seus cinco séculos de existência.134

A Conferência conferiu destaque à discussão acerca da


promoção das relações de gênero, visando o respeito à igualdade e à satisfação
das necessidades educacionais das mulheres adolescentes,135 de modo a permitir
que estas lidem de forma positiva e responsável com sua sexualidade.

A Conferência de Viena, por meio do seu Programa de


Ação, relaciona os direitos reprodutivos com a definição de saúde reprodutiva
adotada pela Organização Mundial de Saúde. Assim, denominou-se saúde
reprodutiva como um estado em que o ser humano esteja bem física, mental e
socialmente, com a plena capacidade de ter uma vida sexual satisfatória e
segura, com total capacidade de decisão sobre sua reprodução, bem como ter a
seu dispor todas as condições para o efetivo exercício de tal direito.136

Os direitos reprodutivos são conceituados pelo Programa de


Ação como “certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais,
documentos internacionais concernentes aos direitos humanos e outros

133
LINHARES, Leila. As conferências das nações unidas influenciando a mudança legislativa
e as decisões do poder judiciário. In: Seminário “Direitos Humanos: rumo a uma
jurisprudência da igualdade.” Belo Horizonte, de 14 a 17 de maio de 1998.
134
FLORES, Joaquín Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como
produtos culturais. Rio de Janeiro : Editora Lumen Juris, 2009.
135
Capítulo VII do Plano de Ação.
136
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In Temas de direitos humanos, p. 254.
58

relevantes documentos consensuais das Nações Unidas”, abarcando o


“reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos decidirem livre
e responsavelmente o numero de filhos e o espaçamento entre eles, tendo
informações e métodos para efetivar tais decisões, no sentido de atingir o mais
elevado padrão de saúde reprodutiva e sexual” e salienta a inclusão, no rol de tais
direitos o de “tomar decisões concernentes à reprodução, livres de todas as
formas de discriminação, coerção e violência, como expresso nos documentos
relativos aos direitos humanos.”137

Pelo exposto, tem-se que a conceituação outorgada aos


direitos reprodutivos pelo Plano de Ação da Conferência do Cairo revela a
compreensão da noção de direitos reprodutivos e sexuais, lastreando a maior
parte das resoluções encontradas na doutrina nacional e internacional a respeito
da temática dos direitos reprodutivos.138

2.1.5 Quarta Conferência Mundial Sobre Mulheres de Beijing.

Cerca de quarenta mil pessoas, entre homens e mulheres,


em setembro de 1995, representando 189 países, reuniram-se em Beijing, na
China, para a realização da Quarta Conferência Mundial Sobre Mulheres. O
evento, não só pela quantidade de representantes, mas pelos pontos discutidos e
aprovados, é considerado o mais importante de todos os que foram realizados
com a mesma temática e reafirmou o compromisso com os direitos humanos das
mulheres, dando continuidade à agenda global para o progresso e fortalecimento
da condição feminina no mundo.

137
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In Temas de direitos humanos, pp. 255-256. Finalizando acerca dos direitos
reprodutivos, o Programa de Ação recomenda que, “No exercício desses direitos, as pessoas
devem levar em conta as necessidades de suas vidas e de seus futuros filhos e suas
responsabilidades para com a comunidade. A promoção do exercício responsável desses
direitos por todas as pessoas deve constituir a base fundamental das políticas e programas
estatais e comunitários na área da saúde reprodutiva, inclusive do planejamento familiar. Como
parte desse compromisso, deve-se dar plena atenção à promoção do respeito mútuo e das
relações equitativas de gênero e particularmente às necessidades educacionais e de serviços
dos adolescentes, para torná-los aptos a tratar de forma positiva e responsável sua
sexualidade.”
138
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In Temas de direitos humanos, p. 256
59

A Conferência gerou, como conseqüência dos debates


realizados, uma abrangente Plataforma de Ação que tinha como finalidade
acelerar as estratégias de promoção, proteção e fortalecimento dos direitos
humanos das mulheres.139

A Plataforma de Ação de Beijing reitera os conceitos de


saúde reprodutiva e direitos reprodutivos discutidos na Conferência do Cairo e
assume como princípios básicos a opção livre e informada, o respeito à
integridade física e o direito de não sofrer discriminação nem coerção em todos os
assuntos relacionados com a vida sexual e reprodutiva.140

A Declaração reafirma o compromisso de combater as


limitações e obstáculos e promover o avanço e o fortalecimento da mulher em
todo o mundo;141 garantir a plena observância dos direitos humanos das mulheres
e das meninas como parte inalienável, integral e indivisível de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais e garantir o acesso igualitário e a igualdade
de tratamento de homens e mulheres na educação e atenção de sua saúde,142
promovendo a saúde sexual e reprodutiva das mulheres.143

139
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos
humanos, vol. II, p. 316. O autor também afirma que a Plataforma de Ação da Conferência de
Beijing visou à eliminação de todos os aspectos que impedem as mulheres de exercer um
papel ativo em todos os domínios da vida pública e privada, inclusive na tomada de decisões e
se baseou no princípio da repartição de poderes e responsabilidades entre e mulheres em toda
parte, tanto nos locais de trabalho como nos lares, e nos planos nacional e internacional.
140
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In Temas de direitos humanos, p. 257. A autora destaca o parágrafo 89 do
art. IV da Plataforma de Ação de Beijing, que dispõe: “A mulher tem o direito de desfrutar do
mais elevado nível possível de saúde física e mental. O gozo deste direito é essencial para sua
vida e seu bem-estar, e para sua capacidade de participar em todas as esferas da vida pública
e privada. A saúde não é só a ausência de enfermidade ou moléstia, mas sim um estado de
pleno bem-estar físico, mental e social. A saúde da mulher inclui o seu bem estar: emocional,
social e físico; contribuem para determinar sua saúde tanto fatores biológicos quanto o contexto
social, político e econômico em que vive. Contudo, a maioria das mulheres não goza de saúde
nem de bem-estar. O obstáculo principal que impede a mulher de alcançar o mais alto nível
possível de bem-estar é a desigualdade entre a mulher e o homem e entre mulheres de regiões
geográficas, classes sociais e grupos indígenas e étnicos diferentes. Em foros nacionais e
internacionais, as mulheres têm ressaltado que a igualdade, inclusive na distribuição das
obrigações familiares, o desenvolvimento e a paz são condições necessárias para que possam
gozar de ótima saúde durante todo o seu ciclo vital”.
141
Capítulo IV, parágrafo 24 da Declaração.
142
Capítulo IV, parágrafo 30 da Declaração.
143
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In Temas de direitos humanos, p. 257.
60

Alguns fatores foram considerados determinantes na


precariedade da saúde sexual e reprodutiva das mulheres, dentre os quais a
violência sexual. Dessa forma, a autodeterminação da mulher, a igualdade e a
equidade constituem princípios de vital importância na temática dos direitos de
reprodução. A Conferência de Beijing, ao afirmar que “os direitos sexuais e
reprodutivos constituem parte inalienável dos direitos humanos, universais e
indivisíveis”, deixou claro que tais direitos só podem ser usufruídos pelas
mulheres na medida em que estas detenham o poder de decisão sobre sua
própria sexualidade.

Por fim, a Plataforma de Ação recomenda que os países


considerem a possibilidade de revisar as leis que estabelecem medidas punitivas
contra as mulheres que praticam abortos ilegais. Tal recomendação é um avanço,
se considerarmos que a Conferência do Cairo, malgrado tenha reconhecido ser o
aborto um problema de saúde pública,144 portanto, uma ameaça à vida das
mulheres, não salientou as legislações criminais que até hoje vigoram em alguns
países e que incriminam mulheres pela prática do aborto fora dos casos previstos
em tais normas.145

A ordem jurídica brasileira acolhe diversas normas que


tratam sobre os direitos reprodutivos, desde a Carta Maior até normas
infraconstitucionais, dentre elas, o Código Penal e o Código Civil. Serão
destacados, não obstante os vários dispositivos legais relativos à matéria,
somente os direitos reprodutivos sob a égide dos diplomas legais supracitados.

144
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In Temas de direitos humanos, p. 257..
145
§ 8.25 do Plano de Ação do Cairo: “Em nenhum caso se deve promover o aborto como método
de planejamento familiar. Exorta-se todos os Governos e as organizações intergovernamentais
e não-governamentais a aumentar seu compromisso com a saúde da mulher; a ocupar-se dos
efeitos sobre a saúde das mulheres dos abortos realizados em condições não adequadas (...) e
a reduzir o recurso ao aborto mediante a prestação dos mais amplos e melhores serviços de
planificação familiar”.
61

2.2 OS DIREITOS REPRODUTIVOS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

A Carta de 1988 é considerada um marco na transição


democrática do País. Trata-se, sem dúvida, do resultado de um grande
movimento de massas que culminou no fim de duas décadas de violações dos
direitos humanos perpetradas pelo militarismo e serviu para apresentar ao povo
brasileiro um elenco de direitos e garantias fundamentais nunca antes visto na
história do Brasil.146

A Constituição Federal nasceu como conseqüência de “um


amplo processo de discussão oportunizado como a redemocratização do País,
após mais de vinte anos de ditadura militar”.147 Comparando o sistema
constitucional anterior à Constituição Federal de 1988, verifica-se que esta já
possibilitava a constatação, de forma inédita na história do constitucionalismo
nacional, de algumas inovações de relevante valor na temática dos direitos
fundamentais.148 Com efeito, trata-se de um marco jurídico de transição e de
“institucionalização dos direitos e garantias fundamentais”.149

A própria situação topográfica dos direitos fundamentais,


dispostos no início da Carta Maior, imediatamente após o preâmbulo e os
princípios fundamentais, a um só tempo, vem ao encontro da melhor tradição do
sistema constitucional no âmbito dos direitos fundamentais, e traduz maior rigor

146
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In Temas de direitos humanos, p. 259.
147
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 63.
148
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 63.
149
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. In:
Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da
Constituição. George Salomão Leite (coordenação). – 2. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo:
Método, 2008, p. 149. Na mesma passagem, afirma a autora que o texto constitucional introduz
“extraordinário avanço na consolidação das garantias e direitos fundamentais, situando-se
como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais
adotado no Brasil. A Carta de 1988 destaca-se como uma das Constituições mais avançadas
no mundo no que diz respeito à matéria. Ressalta-se, ainda, a influência, no constitucionalismo
brasileiro, das Constituições alemã (Lei Fundamental – GrundGesetz, 23.05.1949), portuguesa
(02.04.1976) e espanhola (29.12.1978), na qualidade de Constituições que primam pela
linguagem dos direitos humanos e da proteção à dignidade humana.”
62

lógico, na medida em que os direitos fundamentais “constituem parâmetro


hermenêutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica”.150

O art. 1º da Constituição Federal trata dos princípios


fundamentais do Estado Democrático de Direito, com destaque para a cidadania e
a dignidade da pessoa humana. Percebe-se aqui “o encontro do princípio do
Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, fazendo-se claro que
os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio
democrático”.151

Dispõe o art. 3°, inciso IV, do texto constitucional que um


dos objetivos fundamentais do Brasil é a promoção do bem de todos, sem
preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. Daí resulta a evidência da relação com os direitos reprodutivos, na
medida em que estes integram o verdadeiro exercício de cidadania e de
dignidade da pessoa humana, opondo-se a quaisquer formas de preconceitos ou
discriminações.152

A Constituição Federal, em seu capítulo dos direitos


individuais, inaugura o texto com a afirmativa de que todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5°, caput), deixando claro seu caráter
de norma garantidora do princípio da igualdade, além de solidificar tal princípio

150
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 66. No mesmo trecho da obra, o
autor complementa: “Além disso, a própria utilização da terminologia ‘direitos e garantias
fundamentais’ constitui novidade, já que nas Constituições anteriores costumava utilizar-se a
denominação “direitos e garantias individuais”, desde muito superada e manifestamente
anacrônica, além de desafinada em relação à evolução recente no âmbito do direito
constitucional e internacional. A acolhida dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio
no catálogo dos direitos fundamentais ressalta, por sua vez, de forma incontestável, sua
condição de autênticos direitos fundamentais, já que nas Cartas anteriores os direitos sociais se
encontravam positivados no capítulo da ordem econômica e social, sendo-lhes, ao menos em
princípio e ressalvadas algumas exceções, reconhecido caráter meramente programático.”
151
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. In:
Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da
Constituição, p. 150.
152
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 257.
63

com “outras normas sobre a igualdade ou buscando a igualização dos desiguais


pela outorga de direitos sociais substanciais”.153

O mesmo artigo 5°, inciso I, reafirma a igualdade de gênero,


quando afirma serem iguais homens e mulheres, em direitos e obrigações, nos
termos do texto constitucional, fazendo com que fossem considerados revogados
todos os preceitos discriminatórios existentes na ordem infraconstitucional em
relação à mulher.154

A igualdade é, pois, “o centro medular do Estado social”,


sendo, de todos os direitos fundamentais, “aquele que mais tem subido de
importância no Direito Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia
deixar de ser, o direito-chave, o direito-guardião do Estado Social.”155

A Carta de 1988 expressamente previu a possibilidade de


admissão de outros direitos nela não enumerados. Com efeito, ao prever a
Constituição Federal, no § 2° do mesmo art. 5° que “os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”, o texto constitucional estendeu o universo dos
direitos fundamentais, protegendo tanto os direitos expressos e implícitos na
Constituição Federal, quanto aqueles declarados nos documentos internacionais

153
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34ª ed. rev. e atual. (até a
Emenda Constitucional n. 67, de 22.12.2010). – São Paulo: Malheiros, 2011. Para o autor, “o
direito de igualdade não tem merecido tantos discursos somo a liberdade. As discussões, os
debates doutrinários e até as lutas em torno desta obnubilaram aquela. É que a igualdade
constitui signo fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um
regime simplesmente liberal consagra. Por isso é que a burguesia, cônscia de seu privilégio de
classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que
um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se
harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa”.
154
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 259. A autora ainda afirma que “o art. 5°,
em seu inciso X, assegura ainda serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação. Este inciso consolida importantes cláusulas de defesa dos direitos
sexuais, garantindo o direito à intimidade, à vida privada, à honra, etc.”.
155
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 376.
64

subscritos pelo Brasil. Tem-se, assim, consagrada a interação entre a


Constituição Brasileira e o Direito Internacional.156

Importante ressaltar, ainda no âmbito da interação do texto


da Constituição Federal com o Direito Internacional, “a noção de que o conceito
materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5°, § 2°, da
Constituição Federal de 1988 aponta para a existência de direitos fundamentais
positivados em tratados internacionais, bem como para a previsão expressa da
possibilidade de se reconhecer direitos fundamentais não-escritos”.157 Dessa
forma, tem-se que, além do conceito formal de Constituição, um conceito material,
em razão da existência de direitos que, por seu conteúdo e substância, integram o
corpo fundamental da Constituição de um Estado, ainda que não previsto
expressamente.158

Diverge a doutrina nacional quanto à possibilidade dos


tratados internacionais de direitos humanos surtirem efeitos imediatos no sistema
jurídico interno. Há o entendimento de que o art. 5° da Constituição de 1988, por
expressa disposição do seu § 1°, permitiu a incorporação automática dos
tratados, ao afirmar a imediatidade da aplicação das normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais.159 Por esse prisma, considera-se que a
especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos
direitos humanos encontram-se reconhecidos e sancionados pela Constituição
Federal de 1988, não se exigindo a intermediação do Poder Legislativo no sentido
de outorgar, por meio de ato com força de lei, as suas disposições, vigência ou
obrigatoriedade. Adota-se, destarte, a concepção monista, pela qual o Estado
reconhece a vigência plena do Direito Internacional na ordem interna, por meio de
uma simples cláusula geral de recepção.160

156
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 260.
157
SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional, p. 70.
158
SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional, p. 78.
159
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 111.
160
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos
humanos, vol. II, p. 631.
65

Por outro ângulo, outros inferem que as normas


internacionais referentes aos direitos humanos insculpidas nos tratados
internacionais não têm vigência imediata na ordem interna, não prescindindo de
uma fonte interna para sua reprodução ou transformação. Considera-se, em
defesa de tal argumento, a previsão do § 3° do art. 5° da Constituição Federal, ali
inserido por força da Emenda Constitucional n° 45/2004. Com efeito, a referida
Emenda estabeleceu que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros serão equivalentes às
emendas constitucionais.” Assim, os tratados de direitos humanos dos quais o
Brasil for signatário somente terão recepção no direito interno, com o status de
norma constitucional, se referendadas por decreto legislativo aprovado em tais
condições, conforme a previsão do art. 60 da Constituição, que dispõe sobre o
processo de formação de emendas constitucionais.161

Os direitos sociais são tratados no art. 7° da Constituição


Federal, garantindo a plena fruição dos direitos reprodutivos, uma vez que têm
por objetivo obstar a discriminação no trabalho por questões ligadas à reprodução
e minimizar a incompatibilidade entre as atividades profissionais e a procriação.
Frise-se que a ordem social somente adquiriu dimensão jurídica a partir do
momento em que diversas constituições passaram a discipliná-las
sistematicamente. Nesse sentido, a Constituição Mexicana de 1917 foi
precursora, sendo a Constituição brasileira de 1934 a primeira a inscrever um
título sobre a ordem econômica e social, influenciada pela Constituição alemã de
Weimar.162

Faz-se necessário, antes da análise do art. 7° da


Constituição brasileira, mencionar que as mulheres, décadas antes de verem

161
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, pp. 182-183.
162
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 285. O autor conceitua
os direitos sociais como “dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações
positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas
constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que
tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se
ligam aos direitos de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na
medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o
que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.”
66

insculpido o referido artigo no texto constitucional, já lutavam contra qualquer tipo


de discriminação. Portanto, não se trata de mero ato de vontade do legislador,
mas de reconhecimento da necessidade de se igualar homens e mulheres, formal
e materialmente, em busca da verdadeira igualdade de gêneros.163 Não foi à toa,
portanto, que o Constituinte fixou, em um inciso específico, que homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Não se trata, pois, de simples igualdade formal. É mais do


que igualdade perante a lei: deve-se buscar, implementar e proteger o direito a
uma igualdade em direitos e obrigações. Teremos, então, na hipótese de
tratamento desigual entre a mulher de um lado, e o homem de outro, a par de
situações relativas a um ou outro, uma “infringência constitucional”.164 Com efeito,
veda-se qualquer modalidade de discriminação, com exceção das hipóteses
previstas no texto constitucional e sempre de modo favorável à mulher.

São exemplos dessa discriminação positiva do texto


constitucional a previsão do art. 40, § 1°, inciso III, alíneas a e b, além do art. 201,
§7°, incisos I e II, dispondo que o prazo de contribuição previdenciária, com vistas
à aposentadoria, será menor para as mulheres, bem como o disposto no art. 7°,
incisos XVIII e XIX, que asseguram à mulher o gozo da licença maternidade em
tempo superior à licença paternidade. Tais dispositivos possibilitam afirmar ter o
legislador Constituinte reconhecido a necessidade da existência de direitos

163
São exemplos da luta pela igualdade de gêneros a Primeira Conferência Mundial da Mulher,
realizada no México, em 1975, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, realizada pela ONU, em 1979 e, mais recentemente, a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher,
realizada no Brasil, em 1994.
164
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 216. Na mesma
passagem, acrescenta ainda o autor: “Aqui, a igualdade não é apenas no confronto marido e
mulher. Não se trata apenas da igualdade no lar e na família. Abrange também essa situação,
que, no entanto, recebeu formulação específica no art. 226, § 5°: “Os direitos e deveres
referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Vale
dizer: nenhum pode mais ser considerado cabeça do casal, ficando revogados todos os
dispositivos da legislação ordinária que outorgava primazia ao homem”.
67

específicos, com vistas a encurtar o caminho em busca da igualdade de


gênero.165

Além das licenças maternidade e paternidade, previstos


como direitos sociais relacionados à reprodução, tem-se “a assistência gratuita
aos filhos e dependentes desde o nascimento até cinco anos de idade em
creches e pré-escolas e a vedação de qualquer proibição de diferença de salário,
de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor
ou estado civil.”166

A ordem social foi disciplinada no Título VIII da Constituição


Federal de 1988, enfatizando a maior parte das normas constitucionais relativas
aos direitos reprodutivos, com destaque para as normas referentes aos direitos à
saúde e ao planejamento familiar. Dessa forma, pode-se destacar: a) o art. 196,
que garante a saúde como direito dos cidadãos e dever do Estado, por meio de
medidas com vistas à redução de doenças e ao acesso igualitário de todos;167 b)
o art. 201, que assegura a organização da Previdência Social e a contribuição
compulsória de todos os trabalhadores e trabalhadores, com ênfase na proteção à
gestante;168 c) o art. 203, que garante que “a assistência social será prestada a
quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e
tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à

165
Ainda sobre o tema, ressalte-se a previsão do inciso L, do art. 5° da Constituição Federal do
Brasil: “Às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus
filhos durante o período de amamentação”. Tal previsão reafirma a disposição do Constituinte
em assegurar os direitos relativos à reprodução, pois, ao tempo em que garante à mãe reclusa
o direito à amamentação e ao contato com seu filho, garante ao mesmo o direito de ser
alimentado naturalmente.
166
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 260
167
Constituição Federal de 1988, art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação”. Acerca do tema, vale ressaltar a seguinte decisão: STF – “Paciente com
HIV/AIDS. Pessoa destituída de recursos financeiros. Direito à vida e à saúde. Fornecimento
gratuito de medicamentos. Dever constitucional do Estado (CF, art. 5°, caput e 196)” (STF –
Pleno – Rextr. 232.335-1/RS – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 25 ago.
2000, p. 99. Conferir a íntegra da decisão do Min. Celso de Mello no Informativo STF, n° 202).
168
Constituição Federal de 1988, art. 201: “A previdência social será organizada sob a forma de
regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que
preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: II - proteção à
maternidade, especialmente à gestante”.
68

adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;169 e


d) o art. 226, que assegura ser a família o fundamento da sociedade e gozar de
proteção específica estatal (caput), reconhece a união estável entre o homem e a
mulher como entidade familiar (§3°), afirma a igualdade entre o homem e a
mulher quanto ao exercício da sociedade conjugal, reiterando o princípio da
igualdade entre os gêneros (§5°) e declara a liberdade do casal quanto ao
planejamento familiar, livre de qualquer coação, restando ao Estado a obrigação
de propiciar todos os meios necessários ao exercício efetivo desses direitos (§7°).

No que pertine à previsão do § 3° do art. 226, tem-se a


conservadora limitação referente à entidade familiar, lastreada na união de
pessoas de sexos diferentes, consistindo num entrave ao exercício do direito à
“capacidade de autodeterminação no exercício da sexualidade, bem como o
direito à livre orientação sexual, proibida qualquer discriminação.”170 Trata-se de
dispositivo anacrônico – ainda que amparado constitucionalmente – que não
encontra adequação com os ideais de dignidade e igualdade insculpidos na
ordem internacional e interna.

Os dispositivos ora comentados, resguardados os


comentários sobre a incompletude ou omissão, revestem-se de grande avanço no
âmbito dos direitos humanos das mulheres, porquanto refletem, por um lado, a
luta com vistas à dignidade e à igualdade de gênero, e, por outro, o
reconhecimento dos tratados de direitos humanos firmados pelo Estado Brasileiro,

169
José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, p. 312), assevera que “o
direito à assistência social constitui a face universalizante da seguridade social, porque ‘será
prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição’ (art. 203)”.
170
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 262. A autora destaca importante decisão
da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido: “Trata-se de ação declaratória de
união homoafetiva. [...] a impossibilidade jurídica de um pedido só ocorre quando há expressa
proibição legal e não existe nenhuma vedação para o prosseguimento da demanda que busca
o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. [...] o legislador, caso
desejasse, poderia utilizar expressão restritiva de modo a impedir que a união entre pessoas do
mesmo sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal, mas não procedeu dessa
maneira”. (REsp 820.475-RJ – Rel. Min. Antonio de Pádua Ribeiro- Rel. p/ acórdão Min. Luis
Felipe Salomão – j. em 02/09/2008).
69

com destaque para a Conferência Internacional do Cairo sobre População e


Desenvolvimento, de 1994 e a Plataforma de Ação de Beijing de 1995.171

2.3 A LIBERDADE DE REPRODUÇÃO E O CÓDIGO CIVIL

Quatorze anos após o advento da Constituição Federal


brasileira, passou a vigorar no País o novo Código Civil, importante instrumento
de reforma no ordenamento jurídico brasileiro. Embora tenha sido promulgado no
dia 10 de janeiro de 2002, por meio da Lei n° 10.406/02, somente em 11 de
janeiro de 2003 entrou em vigor no território nacional.

Cumpre ressaltar, antes de comentarmos as novas


disposições do novel diploma, que os direitos da mulher assumem grande
importância no âmbito dos direitos reprodutivos, sendo certo que o pleno
reconhecimento e exercício de tais direitos passam pela questão da igualdade de
fato e de direito entre homens e mulheres.172

Ademais, salientamos que a legislação civil pretérita


apresentava diversas normas que relegavam à mulher o papel de total submissão
ao homem. A simples leitura das normas civis nos leva à conclusão de que não se
poderia sustentar por mais tempo as disposições do legislador de 1916,
considerando-se os ideais de liberdade e de igualdade de gênero previstos na
Constituição Federal.

O Código Civil de 1916, em vários de seus artigos, dispunha


acerca da relação entre os gêneros, concedendo ao homem a primazia da relação
conjugal. Dessa forma, tínhamos uma mulher completamente despojada de
direitos e de dignidade, uma “sombra” do homem em todas as esferas da vida
social, cerceando de forma incontestável a sua capacidade de igualdade e de
desenvolvimento social.

171
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, cit., p. 262.
172
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 265
70

O art. 36, por seu parágrafo único, determinava que o


domicílio da mulher deveria ser baseado no domicílio do homem. Já o art. 186
dispunha sobre a prevalência da vontade paterna em caso de discordância sobre
autorização, para casamento de filho menor. A atuação da mulher, no que
concerne à administração dos bens comuns do casal, era restrita no Código de
1916, por força dos seus art. 226, parágrafo único, e art. 274.

O art. 218 previa regra que, malgrado sua duvidosa


legitimidade em 1916, tornava-se praticamente insuportável a partir do ano de
2000. Tratava-se da possibilidade de o homem anular o casamento, ante o
descobrimento do “defloramento” anterior – circunstância que lhe era
desconhecida – de sua companheira.

O art. 233 conferia ao marido a posição de “chefe da


sociedade conjugal”, cabendo à função de colaboração no interesse comum do
casal e dos filhos. Assim, ao homem competia a representação legal da família
(inciso I), a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao
marido incumbir administrar, em virtude do regime matrimonial adotado, ou de
pacto antenupcial (inciso II), o direito de fixar o domicílio da família, ressalvada a
possibilidade de recorrer a mulher ao juiz, no caso de deliberação que a
prejudique (inciso III) e prover a manutenção da família (inciso IV).

Pela previsão do art. 240, após o casamento, a mulher


assumiria a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos
encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta,
podendo, caso quisesse, acrescentar ao seu o nome do marido. Não poderia,
todavia, sem expressa autorização deste, dentre outras vedações, praticar
qualquer negócio que pudesse acarretar alienação dos bens do casal.

Dentre outras previsões que vedavam à mulher o exercício


real de cidadania, havia o direito do homem à administração dos bens do casal,
em preferência à mulher (art. 274), a competência privativa do marido em
contestar a legitimidade dos filhos nascidos de sua mulher (art. 344), o exercício
do pátrio poder pelo homem, relegando à mulher o papel de “colaboradora" de tal
71

capacidade (art. 380) e, finalmente, a vedação imposta à mulher em aceitar


mandato, salvo se contasse com a autorização do marido.

Com o advento do Código Civil de 2002, muitas disposições


do Código anterior foram reformuladas, buscando adequação às normas previstas
na Constituição Federal de 1988. Com efeito, a norma contida no art. 1.511,173
estabelece a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres durante a
sociedade conjugal. O art. 1.565 174 passou a prever que a regra para o acréscimo
do sobrenome do cônjuge – “concedido” apenas à mulher, segundo dispunha o
revogado art. 240 – permite que qualquer dos cônjuges acresça ao seu o
sobrenome do outro. O citado artigo, em seu § 2°, reproduz a regra de
planejamento familiar prevista pela Constituição Federal em seu art. 226, § 7°.

A igualdade entre os gêneros, durante a sociedade conjugal,


é intensificada por força do art. 1.566,175 que prevê, dentre outros deveres, o de
respeito e consideração mútuos (inciso V), bem como da previsão do art. 1.567,
que determina a colaboração entre o homem e a mulher na melhor tomada de
decisões para o casamento. Nesse sentido, a lição de Mílton Paulo de Carvalho
Filho,176 para quem

O legislador pôs fim à disposição do Código Civil de 1916 que


estabelecia ser o marido o chefe da sociedade conjugal. Por força
do princípio constitucional da igualdade entre os cônjuges (art.
226, § 5°, da CF), a sociedade conjugal passou a ser dirigida por
ambos os cônjuges. Assim, a representação da família, a
administração dos bens comuns e particulares dos cônjuges, o
direito de fixar o domicílio da família e o dever de prover à
manutenção da família passaram a ser exercidos pelo marido e

173
Código Civil Brasileiro, art. 1.511: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base
na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.
174
Código Civil Brasileiro, art. 1.565: “Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a
o
condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. § 1 :
o
Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro. § 2 O
planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por
parte de instituições privadas ou públicas.”
175
Código Civil Brasileiro, art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II
- vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e
educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos.
176
Código Civil comentado : doutrina e jurisprudência : Lei n. 10.406, de 10.01.2002, coordenador
Cezar Peluso. – 5. ed. rev. e atual. – Barueri, SP : Manole, 2011
72

pela mulher, em colaboração (cogestão), não em conjunto –


necessidade de prática conjunta - já que existem atos de direção
que dispensam a participação dos dois cônjuges. As únicas
exceções à disposição legal contida neste artigo, que atribuem a
apenas um dos cônjuges a chefia plena da sociedade conjugal,
estão enumeradas no art. 1.570. O parágrafo único do artigo
estabelece a possibilidade de intervenção judicial quando os
cônjuges divergirem sobre assuntos relativos à gestão da
sociedade familiar. O juiz decidirá tendo em consideração os
interesses do casal e dos filhos.

O Código Civil de 2001, ao dispor, em seu art. 2° que a


personalidade civil do homem começa do nascimento, mas a lei põe a salvo,
desde a concepção os direitos do nascituro trouxe, para alguns, a idéia de que a
vida é um direito absoluto, sendo o momento inicial desta o momento da
concepção. Para os adeptos de tal corrente, a interrupção da gravidez é
inconcebível – mais que isso, é inconstitucional – ainda que tal ato possa levar ao
óbito da gestante, ou a gravidez tenha sido gerada em decorrência de estupro.177

Para outros178 – posição a qual aderimos – a discussão em


torno do enunciado leva à conclusão de que os direitos do nascituro referidos pela
norma são especificamente os direitos patrimoniais, dentre os quais o de receber
doações e o direito de sucessão. Todavia, a eficácia de tais direitos subordina-se,
inexoravelmente, ao nascimento com vida. Não teria o nascituro, enfim, o
reconhecimento de sua personalidade civil, com todas as conseqüências
advindas de tal reconhecimento. Assim, não pode prosperar a idéia que afirma
177
Tal é a posição da Igreja Católica, que entende que a vida humana começa com a fertilização,
no encontro de espermatozóide e óvulo, combinando seus genes para a formação de um
indivíduo com um conjunto genético único. Assim, tem-se um novo ser humano, com direitos
iguais aos de qualquer pessoa. Sobre o tema: “A posição do Magistério da Igreja Católica não
foi sempre unânime. Assim, Santo Agostinho (séc. IV) dizia que só a partir de 40 dias após a
fertilização podia-se falar em pessoa (unidade corpo-espírito ou hominização) para o feto
masculino. Para o feto feminino, exigia-se o dobro, 80 dias para falar em pessoa. Santo Tomás
de Aquino (séc. XIII) reafirmou que não se pode reconhecer como humano o embrião que ainda
não completou 40 dias, quando então lhe é infundida a ‘alma racional’. Essa posição virou
doutrina oficial da Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (encerrada em 1563). Mesmo
assim, sempre foi contestada por outros teólogos que, baseados na autoridade de Tertuliano
(séc. III), e de Santo Alberto Magno (séc. XIII), defendiam a hominização imediata, ou seja,
desde a fertilização trata-se de um ser humano em processo”. (BARCHIFONTAINE, Christian
de Paul de. Bioética e início da vida. In: Dignidade da vida humana. Alfredo Domingues
Barbosa Migliore... [et al] (coordenadores). – São Paulo : LTr, 2010).
178
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 266.
73

como pessoa humana o nascituro, sendo tal afirmação só admitida a partir de um


ponto de vista moral ou religioso, o que impossibilita sua acepção pelos demais
sujeitos de direitos não afetos à religiosidade ou, ainda que sensíveis aos
mandamentos religiosos discordem do fundamentalismo religioso que inadmite a
interrupção da gravidez, seja qual for a hipótese.

As divergências sobre o tema não ficaram à margem do


parlamento brasileiro. Com efeito, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei
n° 478/2007, de autoria dos deputados Luiz Bassuma (PV/BA) e Miguel Martini: o
chamado Estatuto do Nascituro, aprovado pela Comissão de Seguridade Social e
Família da Câmara dos Deputados, no dia 19 de maio de 2010. O Projeto é
considerado para os grupos de defesa dos direitos femininos um dos maiores
retrocessos aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres brasileiras.179

A título de exemplo, o art. 13 do Projeto de Lei, ao tempo em


que veda a interrupção da gravidez decorrente de crime sexual, prevê o
pagamento de pensão alimentícia por parte do estuprador, desde que identificado,
ou, no caso da não identificação, deverá tal benefício ser pago pelo Estado, até
que se proceda à identificação do pai ou até a adoção da criança, caso seja da
vontade da mãe.180

Chamado de bolsa-estupro por grupos de defesa dos


direitos das mulheres,181 o “benefício”, se aprovado pelo Poder Legislativo federal,
poderá ser efetivado pelo Estado brasileiro, que estará, a um só tempo, tornando-
se cúmplice do crime sexual que tem natureza hedionda no ordenamento jurídico
pátrio e legitimando a violência sexual contra as mulheres, além de não
considerar os graves efeitos psicológicos e físicos na vida da mulher.

179
Comentários acerca do Projeto n° 478/2007 estão disponíveis no site do Centro Feminista de
Estudos e Assessoria – CFEMEA (http://www.cfemea.org.br). Acesso em 08 jul. 2011.
180
Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/747985.pdf. Acesso em 08 jul. 2011.
181
Destacam-se, entre os grupos que integram o movimento nacional de defesa dos direitos das
mulheres, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria - Cfemea (http://www.cfemea.org.br), a
Organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir – CDD
(http://www.católicasonline.org.br) e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS
(http://www.anis.org.br).
74

O projeto em discussão no parlamento brasileiro afronta as


disposições do Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969,
ratificadas pelo Brasil por meio do Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992, no
que concerne à vedação imposta ao legislador quanto à possibilidade da
elaboração de dispositivos que restrinjam ou suprimam os direitos humanos
previstos no ordenamento jurídico interno. Com efeito, dispõe o art. 26 do Pacto:

Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências,


tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional,
especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir
progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem
das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e
cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados
Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na
medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros
meios apropriados.

No art. 29, ao tratar das normas de interpretação contidas


em seu texto, o Pacto assegura que nenhum Estado-parte, ao analisar o sentido
do referido artigo, poderá: a) suprimir o gozo e o exercício dos direitos e
liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a
nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que
possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou
em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir
outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da
forma democrática representativa de governo e; d) excluir ou limitar o efeito que
possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e
outros atos internacionais da mesma natureza.

Destarte, tem-se o princípio do não-retrocesso social como


acolhido pelo ordenamento jurídico, após a ratificação do Pacto pelo Estado
brasileiro, sendo vedado ao legislador pátrio, portanto, a redução ou supressão
dos direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal. Em interpretação
diversa, infere-se que ao legislador cabe a obrigação de produzir normas de
acordo com a consagração dos valores fundamentais. Pode-se assegurar, assim,
que, malgrado não esteja suficientemente disseminado no direito brasileiro, o
75

princípio em comento “tem encontrado crescente acolhida no âmbito da doutrina


mais afinada com a concepção do Estado democrático de Direito consagrado pela
nossa ordem constitucional.” 182

É evidente a falta de legitimação do legislador ordinário, por


se encontrarem os direitos humanos – mais especificamente o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana – realizados e efetivados por
normas internacionais e internas de proteção anteriores, subsistindo a
inconstitucionalidade de qualquer tentativa de anulação do núcleo essencial de
tais direitos.183 Alegar o contrário é admitir que os órgãos legislativos dos Estados,
não obstante o vínculo com os direitos fundamentais e as normas constitucionais
em geral, “dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em
flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte.” 184

2.4 A AUTONOMIA DE REPRODUÇÃO FEMININA E O SISTEMA CRIMINAL


BRASILEIRO

Em seus artigos 124 a 128, o Diploma Penal Brasileiro


vislumbra as normas que abordam o crime de aborto, sendo a análise de tais
dispositivos importante para que se vislumbre o tratamento que o Estado
brasileiro dispensa a tão importante tema, fortemente imbricado com os direitos
reprodutivos em nosso país.185

182
STRECK, Lênio Luis. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 31.
183
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed.
Coimbra: 1998, p. 321.
184
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso:
algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de
crise. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004, p. 162
185
Comentando as modalidades de aborto previstas na legislação criminal, Carlos Roberto
Siqueira Castro afirma que “a questão do aborto é, reconhecidamente, a que mais atiça o
galope das paixões e a explosão de controvérsia, ensejando o interminável enfrentamento entre
as óticas religiosa, filosófica, médica, jurídica e econômico-social. Conquanto incomportável um
aprofundamento global nessa matéria nos estreitos limites desta obra, não se pode
desconhecer a atualidade da questão para o direito constitucional pós-moderno e a proteção
supralegal dos direitos fundamentais do homem. A visão legalista brasileira continua até este
fim de século desconsiderando as dramáticas realidades sociais que envolvem o problema do
abortamento, capitulando-o como crime nas modalidades dos artigos 124 a 128 do Código
Penal vigente”. (A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Ensaios sobre o
constitucionalismo pós-moderno e comunitário. 2ª ed.- Rio de Janeiro : Forense, 2010, p.
678).
76

Por força dos artigos supracitados, pune-se a gestante que


praticar em si mesma, dolosamente, atos tendentes à interrupção da gravidez
(autoaborto), o abortamento praticado por terceiro, mas com o consentimento da
gestante e ainda o abortamento por aquele praticado, desta feita, sem o
consentimento da mulher.

As penas variam conforme o autor da conduta, a validade do


consentimento e o resultado, o que leva ao agravamento das sanções cominadas.
Assim, no autoaborto (art. 124), a gestante será apenada, na hipótese de
condenação, a uma pena de detenção que varia de um a três anos. Caso um
terceiro auxilie a gestante na prática abortiva (aborto consentido, previsto no art.
126), o mesmo poderá ser punido com uma pena de reclusão variável de um a
quatro anos, não se considerando tal consentimento, por força do parágrafo único
do referido artigo, se emanado de gestante não maior de 14 anos, alienada ou
débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou
violência, o que levaria o participante a responder pelo tipo mais grave de aborto,
previsto no art. 125 (aborto sem o consentimento da gestante), cuja pena
cominada é de reclusão de três a dez anos.

Duas são as formas qualificadas para o crime de aborto,


conforme o art. 127 do Diploma penal: a primeira, na hipótese de sobrevir à
gestante lesão corporal grave, eleva a pena originariamente prevista em um terço,
ou, no caso de morte da gestante, a reprimenda será aplicada em dobro.
Ressalte-se que as duas qualificadoras previstas somente têm aplicação ao
terceiro que, de alguma forma, participar do aborto.186

Não obstante as modalidades criminosas de aborto acima


comentadas, o legislador previu duas hipóteses pelas quais tal conduta não será
apenada. Trata-se da previsão do art. 128 do Diploma Penal, pela qual é isento
de pena o médico que praticar o aborto quando impossível salvar a vida da
gestante por outro meio (inciso I, denominado de aborto necessário), ou quando a
gravidez decorre do crime de estupro (inciso II, denominado de aborto

186
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2 : parte especial : dos crimes
contra a pessoa. – 10. ed. – São Paulo : Saraiva, 2010.
77

sentimental), desde que a gestante consinta na interrupção da gravidez ou, se


incapaz, se representante assim o faça. Ressalte-se, por importante, que a lei
isenta somente o médico das penas previstas à interrupção da gravidez nos dois
casos em análise. Nada obsta, entretanto, que no caso de um estranho (uma
parteira, por exemplo), seja invocada a tese de inexigibilidade de conduta diversa,
o que resultaria na impossibilidade de se invocar um juízo de culpabilidade sobre
tal pessoa.

Não previu o legislador outras hipóteses pelas quais se


possa isentar de responsabilidade a mulher gestante ou o médico. Todavia,
repercute no país a discussão acerca da possibilidade de interrupção da gravidez
diante de um quadro de anencefalia, onde não há possibilidade de vida
extrauterina após a expulsão do ventre materno.

Várias são as manifestações doutrinárias e judiciais que


corroboram a idéia de que não se pode obrigar a mulher a manter uma gestação
da qual poderá resultar sérias complicações de ordem física, além dos problemas
de natureza psicológica advindos da manutenção daquele tipo de gestação. 187

Ademais, não se pode ignorar o fato de que, apesar da


proibição legal, anualmente, milhares de mulheres no Brasil praticam o aborto
ilegal, sendo que muitas delas – pobres, diga-se de passagem, uma vez que tal

187
Nesse sentido, deve-se ressaltar o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ayres de
Brito, no julgamento que admitiu a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) sobre a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencefálicos. A ADPF foi
ajuizada no ano de 2010, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS –
e o pedido de liminar foi concedido pelo Ministro Marco Aurélio, que concedeu o direito de
interrupção da gravidez às gestantes de fetos anencefálicos, prescindindo, para tanto, de
autorização judicial. No referido voto, Ayres de Brito afirma que “a antecipação terapêutica do
parto de feto anencéfalo é fato típico, sim, é aborto, sim, mas sem configurar prática
penalmente punível. Pois se a razão fundamental desse tipo de despenalização reside na
consideração final de que o abalo psíquico e a dor moral da gestante são bens jurídicos a
tutelar para além da potencialidade vital do feto, essa mesma fundamental e definitiva razão
pode se fazer presente na gestação anencéfala; aliás, pode se fazer presente com uma força
ainda maior de convencimento, se considerados os aspectos de que o feto anencéfalo dificulta
sobremodo a gravidez e nem sequer tem a possibilidade de viver extrauterinamente; senão
para se debater nos estertores que são próprios daqueles que, já com morte cerebral
comprovada, se vêem desligados dos aparelhos hospitalares que lhes davam uma aparência
de vida. Donde o mais que justificado emprego do brocardo latino ubi eadem ratio, ibi eadem
legis dispositio, a se traduzir na fórmula de que “onde existe a mesma razão decisiva prevalece
a mesma regra de Direito.” Disponível em: http://www.conjur.com.br/2005-abr-
28/votou_carlos_britto_aborto_anencefalo. acesso em: 11 set. 2011.
78

discussão não se coloca às mulheres com melhores condições financeiras e que


decidam pela interrupção da gravidez indesejada – vêm a óbito ou sobrevivem
com graves sequelas, por praticarem o abortamento em condições inadequadas
de higiene.188

Para os adeptos da impalpabilidade da letra da lei, não pode


haver ampliação acerca das exceções previstas no Código Penal, porquanto
entendem que aquilo que o legislador não previu, não pode o intérprete pretender
legalizar. Por outro lado, há os que consideram a interrupção da gravidez como
medida necessária e legítima para a manutenção do bem estar da mulher
gestante.189

Observação importante deve ser feita quanto à omissão do


legislador de 1940 que, por ocasião da elaboração do Diploma Penal, não
dispunha da tecnologia que hoje possibilita a detecção precoce de qualquer
anomalia fetal. À falta de equipamentos hábeis a identificar a condição de
anencéfalo do feto, decerto não vislumbrou o legislador essa que poderia ser a
terceira hipótese a justificar a prática de atos abortivos por parte da mulher.

Deve-se ter claro, ainda, que uma flagrante contradição


encerra a discussão sobre o aborto de feto anencéfalo: não permite a lei que a
mulher interrompa uma gravidez de um ser sem expectativa de vida extrauterina,
obrigando a mulher a manter um estado que, ao seu término, há de lhe impor
grande sofrimento físico e psicológico. Todavia, o mesmo texto legal admite a
possibilidade de a mulher interromper a gravidez de um ser saudável, com todas

188
Segundo o Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA –, 1 em cada 7 mulheres já
praticou aborto e sua prática clandestina é responsável por 602 internações diárias no Brasil,
além de ser a terceira causa de morte materna. Disponível em <www.cfemea.org.br>. Acesso
em: 12 jul. 2011.
189
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. In: Temas de direitos humanos, p. 268. A autora, manifestando-se
favoravelmente acerca da interrupção da gravidez em razão da condição do feto anencefálico,
afirma que “a jurisprudência tem apresentado tendências de perfilhar esse segundo ponto de
vista, autorizando a prática do aborto nos casos de a gravidez por em risco a saúde da gestante
ou de não haver viabilidade de nascimento com vida. Quanto à má-formação do embrião ou
feto, a matéria é polêmica, havendo julgados que autorizam a interrupção da gravidez em tais
casos e outros que negam tal interrupção. [...] Embora o inciso refira-se somente aos casos de
gravidez resultante de estupro, por respeito à coerência, devem ser estendidos seus efeitos
para os casos de gravidez resultante de outros atos de violência sexual sofridos pela mulher,
que não o estupro propriamente dito.”
79

as possibilidades de uma vida viável, quando conseqüência do crime de estupro.


Não há sentido em se preocupar com o estado psicológico da mulher, nesta
última hipótese, e se esquecer da tortura que lhe será imposta, ao se ver
impedida de interromper a gravidez de um ser sem qualequer expectativa de vida
fora do ventre materno.

A interrupção da gravidez pode se dar nas duas


modalidades elencadas no art. 128 do Código Penal, uma por ato de vontade da
mulher e outra, pelo médico, a fim de salvar-lhe a vida. Não obstante, a doutrina e
a jurisprudência pátrias admitem também a cessação do estado de gravidez ante
um quadro de anencefalia. De nada adiantará, todavia, conceder tal direito à
mulher sem que o Estado implemente programas de atendimento na rede pública,
colocando à sua disposição os serviços da rede pública de saúde que atenda tal
finalidade, “medida que viria a proteger o direito de inúmeras mulheres, em
especial as de baixa renda.” 190

190
PIOVESAN, Flávia. A proteção dos direitos reprodutivos no direito internacional e no
direito interno. in: Temas de direitos humanos, p. 271. Acrescenta, ainda, a autora: “A
respeito, reitere-se a recomendação da Plataforma de Ação de Beijing, no sentido de que os
países considerem a possibilidade de revisar as leis que estabelecem medidas punitivas contra
as mulheres que praticam abortos ilegais, situando a questão do aborto no âmbito da saúde
publica.”
80

CAPÍTULO 3

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO COMO DIREITO


FUNDAMENTAL DA MULHER

3.1 O ABORTO E A LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA

Poucos assuntos suscitam tanta polêmica e paixões quanto


o tema do aborto. O tratamento jurídico que deve ser dispensado ao aborto coloca
em lados diametralmente opostos aqueles que defendem o direito a liberdade de
autonomia reprodutiva da mulher e os que se manifestam pela defesa inexorável
da vida do feto, gerando acaloradas discussões de natureza jurídica, moral,
religiosa e de saúde publica.191

Vários países, com processos de discussão diversos,


legalizaram o aborto e não se pode debater o tema sem considerar que a
interrupção da gravidez deve, necessariamente, dar-se no âmbito dos direitos
sexuais e de reprodução da mulher.192

191
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos.– Rio de Janeiro : Lumen Juris Editora, 2007.
192
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994,
reconheceu como direitos humanos os direitos sexuais e de reprodução, prevendo, em seu
preâmbulo que a “saúde reprodutiva é um estado de completo desenvolvimento físico, mental e
bem-estar social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade, em todas as
questões relacionadas ao sistema reprodutivo e suas funções e processos. Saúde reprodutiva
implica, portanto, que as pessoas são capazes de ter uma vida sexual satisfatória e segura e
que eles têm a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir se, quando e quantas vezes a
fazê-lo”. Nesse mesmo sentido, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Desenvolvimento e
Paz, realizada no ano de 1995, em Beijing, por força de seu art. 14: “Os direitos das mulheres
são direitos humanos” e do art. 17: “O reconhecimento explícito e a reafirmação do direito de
todas as mulheres de controlar todos os aspectos de sua saúde, em particular sua própria
fertilidade, é básico para seu fortalecimento”.
81

No âmbito dos direitos reprodutivos, inegável a contribuição


da Conferência do Cairo,193 ao conferir à mulher, por um lado, o direito individual
de decidir sobre o exercício da maternidade e, por outro, o direito à informação e
acesso aos serviços para que tal direito seja efetivado.194

A legalização do aborto, em alguns países, passou a ser


tratada, partindo-se do reconhecimento da necessidade de proteção dos direitos
sexuais e reprodutivos, como medida viável e necessária. Sem a pretensão de
querer discutir minuciosamente os processos vividos nos países que modificaram
suas legislações acerca do tema, numa análise comparativa com o direito
nacional, vislumbrou-se elencar alguns países onde importantes discussões foram
travadas acerca dos direitos humanos, sobretudo os direitos de reprodução.
Destarte, analisaremos a importância conferida ao aborto nos Estados Unidos da
América, na França, na Espanha e em Portugal.

Nos Estados Unidos da América, o debate que serve para


ilustrar a controvertida temática acerca do aborto é o célebre caso Roe vs. Wade,
onde se discutiu se cabia ou não à mulher o direito de decidir pela continuidade
de sua gestação.

Anote-se, preliminarmente, que a questão do aborto não é


tratada diretamente pela Constituição Federal, o que possibilita aos Estados
Federados decidirem individualmente pela legalização ou criminalização da
interrupção voluntária da gravidez. Todavia, o próprio texto constitucional confere
à Suprema Corte americana o poder de declarar a inconstitucionalidade de leis

193
A Conferência do Cairo reconhece, em seu princípio 4, que a “promoção da igualdade e a
eqüidade de gênero e o empoderamento das mulheres e a eliminação de todos os tipos de
violência contra as mulheres, e garantir a capacidade das mulheres de controlar sua própria
fertilidade, são pilares da população e desenvolvimento relacionados com os programas. Os
direitos humanos das mulheres e crianças do sexo feminino são uma parte inalienável, integral
e indivisível dos direitos humanos universais. A participação plena e igualitária das mulheres na
vida civil, cultural, econômico, político e social, nos níveis nacional, regional e internacional, e a
erradicação de todas as formas de discriminação em razão do sexo, são objetivos prioritários
da comunidade internacional.
194
PIOVESAN, Flávia. Direitos sexuais e reprodutivos: aborto inseguro como violação aos
direitos humanos. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da vida:
aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. – Rio de
Janeiro : Lumen Juris Editora, 2007.
82

elaboradas pelo Congresso Nacional ou pelos Estados. Discorrendo acerca do


tema, Ronald Dworkin afirma:

Nos termos da Constituição, o tribunal tem o poder de declarar


inconstitucionais as leis adotadas pelo Congresso ou por qualquer
estado, isto é, podem ser invalidadas por serem incompatíveis
com as restrições que a Constituição impõe ao governo. Uma vez
que o Supremo Tribunal tenha se manifestado, nenhuma outra
instância governamental pode contrapor-se à sua decisão, por
maior que seja a desaprovação popular a ela. É verdade que as
pessoas podem reverter a decisão do Supremo Tribunal por meio
de uma emenda à Constituição que confira explicitamente aos
legisladores o poder que o Tribunal negou que possuíssem. Mas é
extremamente difícil fazê-lo e, na prática, os políticos e as
pessoas que rejeitam uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal
só podem esperar pela nomeação de novos juízes que concordem
com eles, e que um dia um Supremo Tribunal renovado anule
suas próprias decisões anteriores, algo que tem o poder de
fazer.195

No caso Roe vs. Wade, a Suprema Corte decidiu, numa


votação de sete a dois, pela inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Texas
que deliberou pela criminalização do aborto, com exceção apenas na hipótese de
risco de morte da mãe.

Na referida decisão, o Tribunal conferiu exclusivamente à


mãe o direito de decidir pelo abortamento, desde que tal decisão ocorresse no
primeiro trimestre da gestação, contando a gestante com o acompanhamento
médico. A mulher, no segundo trimestre, continuaria a ser detentora do direito de
interrupção, mas tal direito seria regulamentado pelo Estado e, por fim, no terceiro
trimestre – quando maior a viabilidade da vida fetal extra-uterina -, os Estados
teriam a liberdade de vedar a interrupção da gravidez.

Importante salientar que, nos dois primeiros trimestres, o


objetivo é a proteção da vida e da saúde da gestante, ao passo que, no terceiro
trimestre, a vida do nascituro ganha potencial proteção. Não se pode olvidar,
195
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução
Jefferson Luiz Camargo; revisão da tradução Silvana Vieira. – 2ª. Ed. – São Paulo : Editora
WMF Martins Fontes, 2009. – (Biblioteca jurídica WMF).
83

todavia, que a mulher poderia interromper a gravidez qualquer que fosse o


estágio em que a mesma se encontrasse, na hipótese de sérios riscos à sua
saúde ou à sua vida.196

O Tribunal foi além: decidiu pela inconstitucionalidade de


qualquer lei proibindo o aborto sob a alegação de proteção da vida do nascituro,
nos seis primeiros meses de gestação e dando aos Estados a prerrogativa de
impedir a interrupção da gravidez nos três últimos meses, sob a alegação de
proteção da vida do nascituro. 197

A decisão da Suprema Corte não foi pacificamente adotada


em todo o território norteamericano. À época, e ainda hoje, provoca intensa
polêmica. Por um lado, há o questionamento acerca da legitimidade do Tribunal
que, a despeito de poder reconhecer a inconstitucionalidade de normas
produzidas pelo Poder Legislativo, não foi eleito para exercer tal atribuição. Há
ainda os críticos de tal decisão, que afirmam que o tribunal autorizou o homicídio,
pois, “para eles, o feto é uma pessoa a partir do momento da concepção, e seu
direito à vida é mais importante do qualquer razão que uma mulher possa ter para
matá-lo”.198

Assim, não obstante os críticos reconhecerem não ter sido


exatamente um erro a decisão tomada pela Suprema Corte americana, entendem

196
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, pp. 8-9. Na mesma passagem, o autor cita um trecho do
decisão do Juiz Harry Blackmun: “O direito de prevacidade (...) é amplo o suficiente para
compreender a decisão da mulher sobre interromper ou não sua gravidez. A restrição que o
Estado imporia sobre a gestante ao negar-lhe esta escolha é manifesta. Danos específicos e
diretos, medicamente diagnosticáveis até no início da gestação, podem estar envolvidos. A
maternidade ou a prole adicional podem impor à mulher uma vida ou futuro infeliz. O dano
psicológico pode ser iminente. A saúde física e mental podem ser penalizadas pelo cuidado
com o filho. Há também a angústia, para todos os envolvidos, associada à criança indesejada e
também o problema de trazer uma criança para uma família inapta, psicologicamente ou por
qualquer outra razão, para criá-la. Em outros casos, como no presente, a dificuldade adicional e
o estigma permanente da maternidade fora do casamento podem estar envolvidos (...).
197
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. 7.
198
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. 141. O
autor afirma ainda: “Contudo, muitos dos críticos mais sofisticados adotam outro ponto de vista.
Não argumentam que a opinião do tribunal sobre essas grandes questões filosóficas tenha sido
um erro, mas que não lhe cabia, em absoluto, decidi-las em julgamento, pois a Constituição
atribui às assembléias legislativas estaduais, democraticamente eleitas, e não aos juízes, que
não são eleitos, o poder de decidir se e quando o aborto pode ser legítimo”.
84

inexistir qualquer argumento jurídico que a justificasse, revestindo-se o ato de um


caráter meramente político,199 seja porque, claramente, a vontade do parlamento
estaria sobrepujada pelo valor conferido ao tema pelo Poder Judiciário, seja
porque inexiste na Constituição Federal qualquer definição acerca da matéria.200

Embora positivos os efeitos gerados a partir da decisão


tomada em 1973 pela Suprema Corte americana, em decisões posteriores,201 o
mesmo Tribunal decidiu que os Estados não eram obrigados à realização gratuita
de abortos na rede pública de saúde, tampouco poderiam ser responsabilizados
pelos custos de tal ato, ainda que se tratasse de mulheres carentes, normalmente
sem condições de suportar as despesas dos procedimentos médicos necessários.

Não se pode conceber que os Estados tomem decisões


jurídicas protetivas relacionadas aos direitos de reprodução, como a decisão do
caso Roe vs.Wade, sem que, para sua efetivação, sejam adotadas outras
medidas tão necessárias quanto aquelas. Aliás, a adoção de tais medidas foi
veementemente discutida e aprovada por ocasião da realização da Conferência
Internacional do Cairo, em 1994. Dispondo acerca dos direitos reprodutivos e
saúde reprodutiva, o texto da Conferência assegura que

Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de


todos os casais e indivíduos de decidir livre e responsavelmente o
número, espaçamento e timing de seus filhos e de ter a
informação e os meios para fazê-lo, e o direito de alcançar o mais
alto padrão de assistência sexual e saúde reprodutiva. Também
inclui o direito de todos a tomar decisões sobre a reprodução livre
de discriminação, coerção e violência, como expressa nos
documentos de direitos humanos.

Assim, embora a decisão da Suprema Corte americana pela


inconstitucionalidade da lei do Estado do Texas tenha gerado debates acalorados,

199
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, p. 9.
200
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. 142.
201
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, p. 10. O autor cita, como exemplo, o caso Harris vs.
McRae (448 U.S.297), de 1980.
85

dividindo o país entre os que defendem que à mulher cabe a decisão de


interromper uma gravidez indesejada, e os que defendem o direito à vida do
nascituro como algo intrínseco – opinião pela qual o feto é uma pessoa a partir da
concepção – tal decisão conferiu à mulher, na maior democracia do mundo, o
reconhecimento de seu direito à liberdade de reprodução.

O direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG) foi


estabelecido na França por meio da ação do parlamento, ao contrário da
experiência americana. O legislador francês, por meio da Lei 75-17 (Lei Veil, em
alusão à Ministra da Saúde francesa, Simone Veil), permitiu o aborto nas dez
primeiras semanas de gestação, desde que acompanhado por médico e mediante
assistência e conselhos obrigatórios apropriados, com o fim de auxiliar a gestante
a resolver os problemas que a estivessem levando a tomar tal decisão.

A norma geraria efeitos nos cinco anos seguintes, quando


então deveria ser submetida ao Conselho Constitucional, órgão incumbido de
declarar a compatibilidade da norma com a Constituição francesa.202

Com efeito, no ano de 1979, o disposto da lei n° 75-17 foi


declarado compatível com a Constituição Federal e, em 1982, editou-se nova lei,
desta feita, para determinar à Previdência Social o denominado reembolso, que é
a obrigação de custear até 70% das despesas médicas e hospitalares
decorrentes da interrupção da gestação.203

Michèle Ferrand, socióloga e ativista dos direitos humanos


das mulheres, participante ativa do processo que culminou com a legalização do
aborto na França, afirma:

A liberdade de procriação permitiu uma verdadeira abertura do


mundo social e profissional para as mulheres. Se sempre houve
na França uma grande tradição do trabalho das mulheres, a
modificação essencial se manifestou na construção de trajetórias
202
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, p. 11.
203
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, p. 11.
86

profissionais, quando não mais se precisava parar para criar os


filhos, o que ocorria com as mães em gerações precedentes. A
taxa de atividade feminina de mães de duas crianças passa de
26% em 1962 a 76% em 2002. A difusão da contracepção
feminina e, sobretudo, a possibilidade de recorrer ao aborto em
caso de gravidez não prevista inegavelmente participaram dessa
mutação da relação das mães com a atividade profissional, o que
lhes permitiu pensar numa carreira de atividades contínuas.204

Em 2001, novamente o parlamento tratou do aborto, por


meio da Lei 588, ampliando a possibilidade de interrupção da gestação, de 10
para 12 semanas e retirou a obrigatoriedade das mulheres de realizarem a
consulta prévia junto às instituições governamentais. Instado novamente a se
manifestar, o Conselho Constitucional, mais uma vez, declarou a norma
constitucional.205

Hodiernamente, a partir de 2004, nova norma autorizou a


utilização de medicamento contraceptivo206 para a realização de aborto
medicamentoso no médico da família, possibilitando o acesso a uma camada
maior da população às ações de saúde promovidas pelo Estado. Tal medida vem
ao encontro das recomendações de vários instrumentos internacionais referentes
à necessidade de o Estado assegurar às mulheres todos os meios para o
exercício de seus direitos sexuais e de reprodução.

204
FERRAND, Michèle. O aborto, uma condição para a emancipação feminina. Caderno
Espaço Feminino. In: Instituto de Estudos de Gênero. Disponível em:
http://www.ieg.ufsc.br/revista_detalhe.php?id=9. Acesso em 17 jul. 2011.
205
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, pp. 11-12. No mesmo trecho, o autor cita a decisão n°
2001-446, do Conselho Constitucional: “Ao ampliar de 10 para 12 semanas o período durante o
qual pode ser praticada a interrupção voluntária da gravidez quando a gestante se encontre
numa situação de angústia, a lei, considerando o estado atual dos conhecimentos e técnicas,
não rompeu o equilíbrio que o respeito à Constituição impõe, entre, de um lado, a salvaguarda
da pessoa humana contra toda forma de degradação, e, do outro, a liberdade da mulher, que
deriva da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”.
206
Trata-se da chamada pílula do dia seguinte. Segundo a U.S. News, a droga mifepristona,
também conhecida por RU-486, tem esse nome porque as iniciais R.U. são do seu fabricante
francês, Roussel Uclaf. Nos Estados Unidos, sua subsidiária, a Hoechst Marion Roussel, diante
das discussões acabou doando os direitos para a Population Council em 1994, para que esta
encontrasse um fabricante, jogando para frente a questão da liberação do RU-486, que vem de
muito antes do governo Clinton. Disponível em http://boasaude.uol.com.br/lib/emailorprint.cfm.
Acesso em 18 jul. 2011.
87

Embora os estudos acerca da legalização do aborto na


França indiquem a consolidação deste direito concernente à reprodução feminina,
o médico ginecologista e professor de ginecologia obstetrícia do Hospital de
Estrasburgo, Israel Nisand, afirmou que tal direito, na França atual, encontra-se
fragilizado.

O conceituado ginecologista, em entrevista concedida ao


jornal France Soir, denunciou a redução do orçamento dos hospitais públicos, o
fechamento dos centros onde ocorrem as interrupções voluntárias de gravidez e
firmou a necessidade de reforçar a prevenção, além da aplicação da lei que, em
2001, passou a obrigar o os centros escolares a dar educação sexual.

Dentre outras dificuldades alegadas por Israel Nisand está o


fato de os médicos, de forma cada vez mais frequente, recusarem-se a atender as
mulheres implicadas dentro do tempo regulamentado, obrigando-as a ir a países
vizinhos, como a Grã-Bretanha ou Holanda para realizar a IVG, bem como a
redução de centros IVG no país.207

Por meio da Lei Orgânica n° 9, de 05 de julho de 1985, (Lei


de Saúde Sexual e Reprodutiva e da Interrupção Voluntária da Gravidez), a
Espanha passou a permitir a interrupção da gestação, conferindo à mulher, com
o adequado acompanhamento, o direito de decidir pela continuidade ou não de
seu estado gestacional.

A referida Lei modificou o art. 417 do Código Penal, que


passou a prever três situações nas quais seria permitido o aborto: a) risco grave
para a sua vida ou saúde física ou psíquica, em qualquer momento; b) no caso de
estupro, nas primeiras doze semanas e; c) no caso de má-formação fetal, nas
primeiras vinte e duas semanas.

Contrários à lei descriminalizadora, parlamentares


acionaram a Corte Constitucional espanhola, com o fito de obterem uma

207
Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero – NEMGE. Aborto: conquista
feminina em perigo na França, publicado em 9 mar. 2011. Disponível em:
http://nemge.wordpress.com/2011/03/09/aborto-conquista-feminina-em-perigo-na-franca/.
Acesso em 18 jul. 2011.
88

declaração de inconstitucionalidade da novatio legis. Com efeito, a Corte apreciou


o pleito, mas se manifestou contra os interesses dos parlamentares, ao declarar
que, embora contando com a proteção da Constituição, a vida do nascituro não
possui o mesmo valor conferido à vida humana após o nascimento, de tal forma
que se julgou razoável a ponderação entre a vida do feto e outros direitos da
gestante, exceto sua própria vida.208

Em fevereiro de 2010, o Senado Federal espanhol, numa


votação que contou com 132 votos a favor, 126 contrários e uma abstenção,
aprovou nova lei acerca do aborto, cujo texto, aprovado anteriormente pela
Câmara dos Deputados dois meses antes, trouxe mais polêmica ao tema.

O novel dispositivo passou a vigorar em 5 de junho de 2010


e, a partir de tal data, todas as mulheres, incluídas as adolescentes entre 16 e 18
anos, passaram a ter o direito de interrupção voluntária da gravidez, de forma
livre, caso estejam até na 14ª semana de gravidez, podendo, ainda, praticar o
aborto até a 22ª semana, na hipótese de risco de vida ou à saúde, ou sérias
anomalias no feto. Para esta última hipótese, torna-se imprescindível que dois
médicos especialistas emitam parecer e nenhum destes pode participar da
atividade abortiva.

A lei contou com a oposição do Partido Popular e da Igreja


Católica, que pediram ao Tribunal Constitucional a suspensão de alguns artigos,
sob o argumento de que o aborto, da forma como foi previsto – a liberdade

208
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, pp. 19-20. O autor cita parte da decisão proferida pela
Corte Constitucional da Espanha, que asseverou que os casos envolvendo aborto “não podem
contemplar-se tão-somente desde a perspectiva dos direitos da mulher nem desde a proteção
da vida do nascituro. Nem esta pode prevalecer incondicionalmente frente àqueles, nem os
direitos da mulher podem ter primazia absoluta sobre a vida do nascituro... Por isso, na medida
em que não se pode afirmar de nenhum deles (os interesses em conflito) seu caráter absoluto,
o intérprete constitucional se vê obrigado a ponderar os bens e direitos... tratando de
harmonizá-los se isto for possível ou, em caso contrário, precisando as condições e requisitos
em que se poderia admitir a prevalência de um deles.” Disponível em: http://www.boe.es/.
Acesso em 19 jul. 2011.
89

conferida à mulher é maior que a anteriormente prevista – contrariava o direito à


vida do nascituro, garantido constitucionalmente.209

A oposição também alegou preocupação quanto à fixação


da maioridade para abortar, fixada em 16 anos, além do fato de as menores não
serem obrigadas a comunicar seus pais de tal decisão, caso se sentissem
coagidas ou fossem agredidas no seio familiar, cabendo ao médico, presente tal
hipótese, a decisão de atuar sem a presença dos pais da menor, mas contando,
se for de sua vontade, com o apoio de um psicólogo ou um assistente social.

Em que pese a forte oposição política e religiosa à lei que


alterou o quadro legal sobre a interrupção da gravidez em seu território, a
Espanha confere proteção especial aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher,
responsabilizando-se pelas despesas resultantes do processo de interrupção da
gravidez, por meio do sistema nacional de saúde, se operacionalizado em
hospitais da rede pública.

Destarte, oportuna a manifestação da Ministra da Igualdade


espanhola, Bibiana Aído, acentuando que a nova lei é “o mais equilibrada
possível” e fruto de um intenso debate promovido pelo Governo e que contou com
a participação de especialistas, organizações sociais, mulheres, jovens e
profissionais de diversos ramos.210

O aborto em Portugal foi descriminalizado com a edição da


Lei n° 6, de 1984, que concedeu à mulher o direito de interrupção do estado
gestacional quando presentes os riscos de morte ou lesão grave para sua saúde
física ou psíquica, na hipótese de doença grave ou malformação do feto (até às
24 semanas de gravidez), ou no caso de estupro, até às 12 semanas.

Em controle preventivo de constitucionalidade, realizado no


mesmo ano em que a Lei entrou em vigor no país, o Tribunal Constitucional

209
Estadão.com.br/saúde. Nova lei do aborto entra em vigor na Espanha com grande
polêmica. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,nova-lei-do-aborto-entra-
em-vigor-na-espanha-com-grande-polemica,576643,0.htm. Acesso em 19 jul. 2011.
210
A entrevista realizada com a Ministra Bibiana Aído encontra-se disponível em:
http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1233259&seccao=Europa. Acesso em 19
jul. 2011.
90

reconheceu à lei em comento sua legitimidade constitucional, nas hipóteses


aventadas, afirmando que a Constituição tutelava o direito à vida do nascituro,
mas com intensidade menor àquela conferida às pessoas já nascidas, alegando,
ainda, a necessidade de ponderação entre os direitos fundamentais em colisão e
a impossibilidade de censura ao cotejo realizado pelo legislador.211

No ano seguinte, novamente o Tribunal Constitucional foi


instado a se manifestar sobre o temática envolvendo o direito à vida do
nascituro.212 Por meio do acórdão n° 85, em um dos trechos, o Tribunal asseverou
que

a vida intra-uterina não é constitucionalmente irrelevante ou


indiferente, sendo antes um bem constitucionalmente protegido,
compartilhando da proteção conferida em geral à vida humana,
enquanto bem constitucional objetivo (Constituição, art. 24, n° 1).
Todavia, só as pessoas podem ser titulares de direitos
fundamentais – pois não há direitos fundamentais sem sujeito –
pelo que o regime constitucional de proteção especial do direito à
vida, como um dos ‘direitos, liberdades e garantias pessoais’, não
vale diretamente e de pleno para a vida intra-uterina e para os
nascituros.

Em 1997, foi editada a Lei n° 90, que modificou novamente


as disposições legais acerca do aborto. Com efeito, pelo disposto na recente
norma, ampliou-se o prazo para a interrupção da gravidez em situações de

211
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, p. 16. Na mesma passagem, o autor destaca alguns
trechos da decisão: “A idéia de uma capacidade jurídica apenas restrita ao nascituro perde... o
caráter chocante se se considera que o nascituro, enquanto já concebido, é já um ser vivo,
humano, portanto, digno de proteção, mas enquanto ‘não nascido’, não é ainda um indivíduo
autônomo e, nesta medida, é só um homem em devir. Em todo caso, o sacrifício de uma em
face da outra, embora devendo ser proporcional, adequado e necessário à salvaguarda da
outra..., pode ser maior ou menor, em face da ponderação que o legislador faça no caso
concreto, sempre restando então uma certa liberdade conformativa para o legislador,
dificilmente controlável pelo juiz, pelo Tribunal Constitucional.”
212
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, p. 17.
91

malformação fetal e na hipótese de crime contra a liberdade e autodeterminação


sexual da mulher (de 12 para 16 semanas).213

Foi formulada uma proposta de referendo, que versava


sobre a despenalização geral da interrupção da gestação, nas suas primeiras 10
semanas, com o custo da intervenção sob a responsabilidade do sistema público
de saúde.

Em 1998, o Tribunal Constitucional manifestou-se sobre a


questão e, em conformidade com a decisão proferida no Acórdão n° 85, reiterou o
entendimento da supremacia da autonomia da vontade da mulher frente ao direito
à vida do nascituro.

Pela importância da decisão, seguem trechos do Acórdão do


Tribunal Constitucional:

Esta tutela progressivamente mais exigente à medida que avança


o período de gestação, poderia encontrar, desde logo, algum
apoio nos ensinamentos da biologia, já que o desenvolvimento do
feto é um processo complexo em que ele vai adquirindo
sucessivamente características qualitativamente diferentes... Mas
o que releva, sobretudo, é que essa tutela progressiva encontra
seguramente eco no sentimento jurídico coletivo, sendo visível
que é muito diferente o grau de reprovação social que pode atingir
quem procure eventualmente ‘desfazer-se’ do embrião logo no
início de uma gravidez ou quem pretenda ‘matar’ o feto pouco
antes do previsível parto; aliás, esse sentimento jurídico coletivo,
que não pode deixar de ser compartilhado por povos de uma
mesma comunidade cultural alargada que encontra sua expressão
na União Européia, encontra-se bem refletida na legislação dos
países que a compõem...

213
A Lei n° 90/97 modificou o art. 142 do Código Penal lusitano, estendendo o prazo para a
interrupção nas seguintes hipóteses: “c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro
virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congênita, e for realizada
nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio
adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso
em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo e; d) A gravidez tenha resultado de
crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras
16 semanas.
92

Ora, poderá acrescentar-se, a harmonização entre a proteção da


vida intra-uterina e certos direitos da mulher, na procura de uma
equilibrada ponderação de interesses, é suscetível de passar pelo
estabelecimento de uma fase inicial do período de gestação em
que a decisão sobre uma eventual interrupção da gravidez cabe à
própria mulher. 214

Embora a proposta do citado referendo tenha sido validada


pelo Tribunal Constitucional, a população – cuja maioria absteve-se de votar -,
manifestou-se desfavoravelmente quanto à possibilidade de se legalizar, de forma
incondicional, a interrupção da gravidez em seu início.

Segundo a Comissão Nacional de Eleições portuguesa, por


meio do Mapa Oficial n° 2/98,215 de um total de 8.496.089 inscritos, somente
2.709.503 - 31% - foram às urnas para decidir tão importante tema relacionado
aos direitos reprodutivos femininos.

Dessa forma, naquele momento importante para o País, a


população, respondendo ao questionamento formulado,216 dizia não à liberdade
da mulher decidir livremente pelo exercício da procriação. O Poder Legislativo, na
esteira da decisão manifestada pelo sufrágio popular, embora desobrigado, em
razão do caráter não deliberativo do referendo, não acatou a mudança que se
pretendia fazer na legislação.

No dia 11 de fevereiro de 2007, realizou-se o terceiro


referendo no País, o segundo abordando o tema do aborto. A população, mais
uma vez, foi às urnas para responder se concordava com a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10
primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.

214
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: Daniel Sarmento e Flávia
Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos, p. 18-19.
215
Diário da República n° 183, de 10.8.1998, disponível em:
http://dre.pt/pdf1sdip/1998/08/183A00/38563857.PDF. Acesso em 19 jul. 2011.
216
Cada cidadão inscrito deveria responder ao seguinte questionamento: "Concorda com a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas
10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?".
93

Novamente, o número de votantes foi inferior aos que se


abstiveram (56,43% deixaram de comparecer à votação). Diferentemente do
último referendo a respeito do tema, a população votou pelo sim, indicando uma
significativa mudança na forma pela qual a população enxergava a questão.217

Como consequência do referendo realizado, em 17 de abril


de 2007, passou a vigorar em Portugal a Lei n° 16, que acrescentou ao rol das
permissões previstas no art. 142 do Código Penal a alínea “e”, tratando-se de
mais uma possibilidade da mulher interromper o estado gestacional, por sua livre
vontade, nas primeiras dez semanas de gravidez.

Destaque-se, afinal, que a autorização ao órgão do sistema


público de saúde responsável pela realização do aborto, será dada pela mulher
em documento por ela assinado e entregue até o momento da intervenção.
Imprescindível, porém, que tal se dê após no mínimo três dias, nos quais a mulher
deverá refletir sobre sua decisão, de forma livre, consciente e responsável.218

3.2 O ABORTO NA HISTÓRIA DA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA

Inicialmente, cumpre destacar que este estudo não discutirá


o ponto de vista religioso sobre a temática do aborto. Mantemos o respeito pela
visão da Santa Igreja Católica, no sentido de que é vedada a interrupção da
gravidez, seja qual for o motivo, mas reafirmamos o entendimento de que tal juízo
não pode ser estendido ao conjunto da população brasileira. Assim, comentários
que eventualmente citem o ponto de vista religioso servirão apenas para
contextualizar o momento que porventura esteja sendo abordado.

Historicamente, a mulher sempre recebeu tratamento


opressor no que concerne ao controle de seu corpo e de sua sexualidade. Assim,

217
Segundo o Mapa Oficial n° 1/2007, da Comissão Nacional de Eleições, 8.814.016 cidadãos
portugueses inscreveram-se para votar, mas somente 3.840.176 (43,57%) efetivamente
participaram do pleito. Deste total, 2.231.529 (59,25%) disseram sim, e 1.534.669 disseram não
concordar com a prática livre do abortamento. Disponível em:
http://dre.pt/pdf1sdip/2007/03/04300/14291429.PDF. Acesso em 19 jul. 2011.
218
Diário da República n° 75, de 17.4.2007, disponível em:
http://www.dre.pt/pdf1sdip/2007/04/07500/24172418.PDF. Acesso em 19 jul. 2011.
94

A condição feminina no Brasil Colônia estava associada aos


interesses religiosos, políticos, econômicos e sociais da época, ou
seja, estritamente ligada ao projeto da colonização do império
colonial português. O Estado português tinha como preocupação
central o vazio demográfico do Brasil Colônia, ao passo que a
preocupação central da Igreja Católica era com a questão moral
no incipiente Estado colonial, construindo uma associação da
mulher à imagem da “santa mãe”. “Para isso, através dos editos
papais, enumeravam-se os comportamentos adequados e
inadequados, a fim de criar a dualidade entre ‘mulher aceitável e
louvável’ e ‘mulher agente do satã, diabolizada, confundida com o
mal, o pecado e a traição.219

A Igreja Católica tinha uma preocupação especial para com


os direitos de reprodução femininos, sem qualquer relação com a vida do feto,
mas com os aspectos morais da conduta feminina e com o adestramento da
mulher na instituição do casamento. A igreja valorizava a procriação como meio
de “consagrar a maternidade como função nobre, cabendo à mulher, pela
gestação dos filhos, limpar a sujeira do coito, transformando assim uma pulsão
biológica num ato de vontade divina.”220

O plano de expansão colonial exigia urgentemente o


povoamento do território e contava, para tanto, com o aprisionamento físico e
moral da mulher. A prática do aborto inquietava tanto o Estado como a Igreja
Católica, porquanto era usada como controle à procriação pelos casais ilegítimos,
colidindo frontalmente com os ideais de ocupação, mas também por ser
considerada uma tentativa da mulher de controle de seu corpo e, via de
conseqüência, de sua sexualidade.221

À Igreja Católica coube, desde o Império, denunciar a prática


do aborto como algo abominável praticado contra Deus. Não obstante a intensa

219
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia. Rio de
Janeiro : Editora Lumen Juris, 2008.
220
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, p. 55.
221
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, p. 55.
95

propaganda religiosa contra o aborto, este não era previsto legalmente como
crime.222

Apesar da forte atuação da Igreja Católica e do Estado


quanto à pratica do aborto, somente com a promulgação do Código Penal do
Império, em 1830, a interrupção voluntária da gravidez foi considerada crime. O
Código tratava o tema nos dispositivos abaixo:

Art. 199. Ocasionar aborto por qualquer meio empregado interior,


ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas -
de prisão com trabalho por um a cinco anos. Se este crime for
cometido sem consentimento da mulher pejada. Penas -
dobradas.

Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou


quaisquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não
verifique. Penas - de prisão com trabalho por dois a seis anos. Se
este crime for cometido por médico, boticário, cirurgião, ou
praticante destas artes. Penas - dobradas.

Pela leitura dos dispositivos nota-se que o legislador da


época não se preocupou em punir a mulher que praticasse o aborto, mas tão-
somente o terceiro que o fizesse, contando ou não com a colaboração da
gestante, significando, em tese, uma maior preocupação com a segurança da
pessoa – a mulher – e não a vida do feto.223

Parece-nos, ainda, um tanto desproporcional que se punisse


de forma mais grave a conduta de fornecer medicamentos à prática do aborto
(pena de dois a seis anos de prisão com trabalho), podendo chegar a 12 anos –
quando praticado por profissional da medicina – ainda que o aborto não se

222
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no
Brasil Colônia. 2ª ed. - São Paulo: Unesp, 2009. A autora, na mesma passagem, salienta que
“as teses moralistas e canonistas tornavam-se perceptíveis às camadas populares e aos fiéis,
sobretudo pelos manuais de confessores. Eles traziam recomendações precisas para condenar
sistematicamente o aborto, controlar suas formas, de puni-lo com penitências que variavam de
três a cinco anos de duração. (...) A Igreja matava, assim, dois coelhos com uma só cajadada,
além, é claro, de afirmar-se como juíza dos comportamentos femininos e de vincar o seu poder
de instituição moralizadora sobre as novas terras coloniais. O aborto passava a ser visto,
sobretudo depois dessa longa campanha da igreja, como uma atitude que ‘emporcalhava’ a
imagem ideal que se desejava para a mulher.”
223
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, p. 58.
96

configurasse, e, com menor intensidade, a conduta de ocasionar o aborto, ainda


que sem o consentimento da mulher (pena de um a cinco anos de prisão com
trabalho).

O Código Penal da República de 1890, influenciado pelos


ideais liberais que recém chegavam ao País, trouxe como novidades a punição à
mulher que praticasse aborto em si mesma e a redução da pena aplicada ao
médico ou parteira que, na tentativa de salvar a vida da gestante, por imperícia ou
negligência, levasse a mulher a óbito.

O aborto foi previsto pelo Código Republicano da seguinte


forma:

Art. 300. Provocar aborto, haja ou não a expulsão do fructo da


concepção: No primeiro caso: – pena de prisão cellular por dous a
seis annos. No segundo caso: – pena de prisão cellular por seis
mezes a um anno. § 1º Si em consequencia do abôrto, ou dos
meios empregados para provocal-o, seguir-se a morte da mulher:
Pena – de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos.§ 2º Si o
abôrto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada
para o exercicio da medicina: Pena – a mesma precedentemente
estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo
igual ao da condemnação.

Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante:


Pena – de prissão cellular por um a cinco annos. Paragrapho
unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar
voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com
reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a
deshonra propria.

Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou


abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel,
occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia: Pena – de
prisão cellular por dous mezes a dous annos, e privação do
exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação.

O parágrafo único do art. 301 merece destaque, por cominar


a sanção ao autoaborto com redução de um terço, se a mulher tiver em mente a
ocultação da própria desonra. O legislador, ao que parece, preocupou-se não
97

mais com a segurança da mulher, mas com sua honra, e menos ainda com a
proteção da vida do feto. Nesse sentido,

É no contexto histórico da chegada dos ideais liberais ao Brasil, às


portas do século XX, e ao mesmo tempo a permanência dos
ideais machistas, patriarcais e conservadores, que nasceu o
Código Penal da República. Nesse novo diploma legal, o que
estava em jogo não era mais a segurança da pessoa, como no
Código do Império, mas sim a honra da mulher. Conforme se
depreende dos artigos 300 a 302, o bem jurídico tutelado, mais
uma vez, não é a vida do feto. Dessa forma, é bem provável que a
legislação penal brasileira não tivesse uma preocupação com a
proteção da vida do feto desde o momento da concepção; que tal
proteção não era relevante para o mundo do direito.224

Por meio do Decreto Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de


1940, entrou em vigor no Brasil o Código Penal Brasileiro. A criminalização do
aborto foi prevista no Título I, Capítulo I, Dos Crimes Contra a Vida, nos artigos
124 (autoaborto), 125 (aborto provocado por terceiro sem consentimento da
gestante), 126 (aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante),
127 (formas qualificadas) e 128 (exclusão da criminalidade, quando praticado o
aborto como única forma de salvar a vida da gestante ou para interromper uma
gravidez decorrente de estupro).

A Constituição Federal nada disse acerca do aborto, embora


faça a previsão da inviolabilidade do direito à vida, considerada esta como
autêntica cláusula pétrea, de acordo com o art. 60, § 4°, IV do texto constitucional,
incumbindo ao legislador ordinário a tarefa de regular a matéria. 225

O Diploma Penal pátrio, ao discorrer sobre o aborto nas seis


figuras típicas elencadas nos supracitados artigos, regulou as formas criminosas
de interrupção da gravidez (arts. 124 a 127), bem assim as hipóteses nas quais

224
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, p. 59.
225
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta (...) § 4º - Não será objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais.
98

não se pune a mulher por tal ato (art. 128, II), tampouco o médico que a auxilie
(art. 128, I).226

Interessa-nos, neste momento, a questão da utilidade dos


dispositivos penais brasileiros referentes ao aborto, no âmbito dos direitos
reprodutivos e sexuais das mulheres, frente às legislações de outros países que,
num processo de intenso debate que contou com a participação robusta do
movimento organizado de mulheres, previu outras formas de exclusão da
ilegalidade das suas condutas ou simplesmente legalizou o abortamento em seus
territórios.

É notório que o Código Penal Brasileiro, no que se refere


aos direitos reprodutivos femininos, encontra-se num anacronismo que se justifica
em razão de vários fatores, dentre os quais o conservadorismo das forças
políticas nacionais, e o fato de a maioria da população brasileira ser adepta da fé
cristã, o que inviabiliza a discussão sobre a legalização do aborto por parte da
maioria dos parlamentares brasileiros, por temor à perda de votos.

Embora a cessação voluntária da gravidez em decorrência


de estupro ou o risco à vida da gestante esteja prevista como justificativa para a
prática abortiva, o Código Penal brasileiro excede no rigor quanto às demais
figuras típicas, o que revela o descompasso, tanto em relação aos diplomas
penais estrangeiros, que legalizaram a interrupção da gestação, quanto em
relação às recomendações dos eventos mundiais de proteção dos direitos
humanos, no sentido da descriminalização total da prática do aborto.

Outro ponto merecedor de análise são as penas previstas


para o aborto ilegal, quando comparadas com aquelas previstas para o crime de
homicídio. Tem-se que o legislador, ao cominar para este penas mais severas,
conferiu maior valor à vida da pessoa já nascida, em detrimento à vida do feto.
Ressalte-se, ainda, que na figura qualificada prevista no art. 127 – nas hipóteses
de advir lesão corporal grave ou morte da mulher como resultado do aborto – o

226
Sobre a estruturação e classificação das formas de aborto criminoso ou legal, vide o item 2.4 do
2° Capítulo deste trabalho.
99

objetivo, mais uma vez, não foi a proteção da vida do feto, mas a integridade
corporal e a vida da gestante.227
Insere-se no rol das medidas urgentes e necessárias para o
efetivo exercício dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres brasileiras, por
parte do legislador, o reconhecimento legal à interrupção da gravidez em razão de
anomalia fetal incompatível com a vida extra-uterina, na esteira das corajosas e
históricas decisões de países como Estados Unidos da América, França, Espanha
e Portugal, não sem a devida pressão do movimento organizado de mulheres por
seus direitos reprodutivos de reprodução livre.

Com efeito, tais países promoveram o debate, seja por meio


do Tribunal Constitucional ou por intermédio do Poder Legislativo, autorizando o
aborto sem restrições ou autorizando-o quando da detecção da grave e fatal
anomalia que, em 100% dos casos, leva o feto à morte. 228

Resta garantir às mulheres brasileiras o verdadeiro direito à


sua sexualidade e reprodução, com a necessária atualização da legislação
concernente à interrupção voluntária da gestação, consoante as reivindicações do
movimento nacional de mulheres e dos organismos e documentos internacionais
de proteção.

3.3 ENTRE A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À VIDA INTRA-UTERINA DO


NASCITURO ANENCÉFALO E OS DIREITOS Á SAÚDE E À LIBERDADE DE
AUTONOMIA REPRODUTIVA DA MULHER GESTANTE

O debate acerca da prática do aborto no Brasil ganhou


novos contornos, em razão da polêmica em torno das autorizações concedidas

227
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, pp. 61-
62.
228
De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), o anencéfalo é um natimorto cerebral,
por não possuir os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral, mas somente o tronco. Como
causas de tal problema podem ser apontadas anormalidades genéticas, fatores ambientais,
entorpecentes, enfermidades metabólicas, interação de fatores genéticos e ambientais e
deficiências nutricionais e vitamínicas, especialmente a baixa ingestão de ácido fólico.
Disponível em: http://www.medicosecurador.com/sncfetal/articulos/anomalias2htm. Acesso em
20 jul. 2011.
100

pela Justiça nacional para a interrupção da gravidez nos casos de fetos


portadores de anencefalia.229

No Brasil, a estimativa é de 1 caso de anencefalia a cada


1.600 nascidos vivos, e tal percentual tem aumentado significativamente, o que
coloca o Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), na posição de
quarto país mundial em casos de anencefalia.230

Preliminarmente ao debate acerca da colisão entre os


direitos do feto anencéfalo231 e da mulher gestante, cumpre tecer algumas
considerações sobre a anencefalia, anomalia que atinge indistintamente mulheres
de todas as classes sociais, mas alcança seu ápice nas camadas mais
desassistidas da população brasileira. Do ponto de vista da medicina, a
anencefalia é

um defeito no tubo neural (uma desordem envolvendo um


desenvolvimento incompleto do cérebro, medula e/ou suas
coberturas protetivas). O tubo neural é uma estreita camada
protetora que se forma e se fecha entre a 3ª e 4ª semanas de
gravidez para formar o cérebro e a medula do embrião. A
anencefalia ocorre quando a parte de trás da cabeça (onde se
localiza o tubo neural) falha ao se formar, resultando na ausência
da maior porção do cérebro, crânio e couro cabeludo. Fetos com
esta disfunção nascem sem testa (a parta da frente do cérebro) e
sem um cerebrum (a área do cérebro responsável pelo
pensamento e pela coordenação). A parte remanescente do
cérebro é sempre exposta, ou seja, não protegida ou coberta por
ossos ou pele. A criança é comumente cega, surda, inconsciente
e incapaz de sentir dor. Embora alguns indivíduos com

229
Segundo a Federação Brasileira de das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
(FEBRASGO), a anencefalia “constitui grave malformação fetal que resulta da falha de
fechamento do tubo neural, cursando com ausência de cérebro, calota craniana e couro
cabeludo (...), resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer
possibilidade de sobrevida, por não possuir o cérebro. Disponível em:
http://itpack31.itarget.com.br/uploads/fba/arquivos/Carta-FETO-ANENCEFALO.pdf. Acesso em
2 ago. 2011.
230
Disponível em http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm. Acesso em 2 ago. 2011.
231
O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução n° 1752/2004, publicada no Diário
Oficial da União de 13 de setembro de 2004, seção I, p. 140, declara que o anencéfalo é um
natimorto cerebral, por não possuir os hemisférios cerebrais, sofrendo parada
cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos
podem ter sofrido franca hipoxemia, o que torna inviável e inaplicável ao mesmo os critérios de
morte encefálica, por sua inviabilidade vital ante à ausência de cérebro.
101

anencefalia talvez venham a nascer com um tronco rudimentar de


cérebro, a falta de um cerebrum em funcionamento permanente
deixa fora do alcance qualquer ganho de consciência. Ações de
reflexo, tais como a respiração, audição ou tato podem talvez se
manifestar. A causa da anencefalia é desconhecida. Embora se
acredite que a dieta da gestante e a ingestão de vitaminas
possam caracterizar uma resposta, cientistas acreditam que há
muitos fatores envolvidos. 232

O feto portador de anencefalia, num percentual aproximado


de 65%, tem parada cardíaca antes do início do parto, enquanto uma pequena
parcela pode apresentar batimentos cardíacos e podem ainda respirar após o
parto, sendo que tais funções podem durar por algumas horas e,
233
excepcionalmente, alguns dias. Por isso, tem-se que interromper a gravidez
diante desse quadro irreversível não é considerado aborto, mas antecipação de
parto.

Não fosse suficiente a certeza de impossibilidade de


sobrevivência fora do útero materno do feto anencefálico, ainda há os riscos para
a saúde da mulher, em razão da continuidade da gestação.

Com efeito, é unânime a opinião dos especialistas da


medicina do país que afirmam, por um lado, a impossibilidade de sobrevida fetal
após a expulsão do útero materno e, por outro, os riscos à saúde e à vida da
mulher. Thomaz Gollop, médico obstetra e especialista em medicina fetal e
professor da Universidade de São Paulo (USP), sobre o tema, ensina que

Uma gestação de feto com anencefalia acarreta riscos de morte à


mulher grávida. (...) em primeiro lugar, há pelo menos 50% de
possibilidade de polidrâmio, ou seja, excesso de líquido amniótico
que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no
pós-parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso de líquido,
a possibilidade de deslocamento prematuro de placenta, que é um
acidente obstétrico de relativa gravidade. Além disso, os fetos

232
FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise
constitucional. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto,
clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. – Rio de Janeiro:
Lumen Juris Editora, 2007.
233
Disponível em http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm. Acesso em 2 ago. 2011.
102

anencéfalos, por não terem o pólo cefálico, podem iniciar a


expulsão antes da dilatação completa do colo do útero e ter o que
nós chamamos de distorcia do ombro, porque nesses fetos, com
freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e poder haver
um acidente obstétrico na expulsão no parto do ombro, o que
pode acarretar dificuldades muito grandes do ponto de vista
obstétrico. Assim sendo, há inúmeras complicações em uma
gestação cujo resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de
sobrevida. A distorcia de ombro acontece em 5% dos casos, o
excesso de líquido em 50% dos casos e a atonia do útero pode
ocorrer em 10% a 15% dos casos.234

A mulher, ao descobrir que tem em seu ventre um feto


anencefálico, deve ter a seu dispor todo o acompanhamento médico necessário à
sua especial condição, pois é grande a possibilidade de apresentar doenças
hipertensivas na gravidez, levando à ocorrência de eclampsia – síndrome
multissistêmica, caracterizada por hipertensão e proteinúria (excesso de proteína
na urina), após 20 semanas de gravidez, em mulheres com pressão arterial
normal previamente – e pré-eclâmpsia – presença de convulsão em mulheres
com eclâmpsia –,235 bem como a apresentação de doenças hipertensivas e um
quadro de desmaios e convulsões.

Os partos de fetos anencefálicos são muito mais difíceis que


os de fetos sem a anomalia. Os riscos são maiores (25%) em razão do feto não
possuir caixa craniana – o que faz com que não se encaixe na posição adequada
para nascer. Por não possuir ossos na cabeça, não consegue forçar o colo do
útero e, dessa forma, nascer normalmente. O parto, que duraria entre 6 a 8 horas,
pode durar entre 14 a 18 horas, o que leva à necessidade de a gestante ser
medicada com analgésicos e até fazer uso de anestesia.236

234
GOLLOP, Thomaz Rafael. Riscos graves à saúde da mulher. In: ANIS: Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero. (Org). Anencefalia, o pensamento brasileiro em sua
pluralidade. Brasília: Editora Letras Livres, 2004.
235
REZENDE, Jorge de e MONTENEGRO, Carlos Antonio Barbosa.Obstetrícia Fundamental.
Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan, 9ª ed., 2003, p. 227.
236
FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise
constitucional. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto,
clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos, p. 15.
103

Diante do quadro exposto, resta indagar se é saudável,


digno e conveniente obrigar a mulher gestante a levar a termo uma gravidez com
a total certeza de morte do feto após seu nascimento. Obviamente, se for da
vontade da gestante levar a gravidez até seu final, o Estado deve fornecer todas
as condições para que tal ocorra, com acompanhamento médico adequado. Se
decidir interromper a gestação, deve a gestante contar, de igual modo, com a
assistência de especialistas das áreas médica e psicológica, para que o quadro
de sofrimento físico e mental seja minimizado ao máximo.

Uma vez detectado o quadro de anencefalia, nada será


possível fazer para revertê-lo, sendo, pois, fundamental a prevenção,
principalmente no caso de mulheres que já tenham dado à luz ou interrompido a
gravidez de um feto anencefálico. Estudos indicam que, nesses casos, é de 10%
a chance de a mulher desenvolver outro quadro gestacional com tal anomalia.237

O Código Penal de 1940 criminaliza a interrupção voluntária


da gravidez, em seus artigos 124 a 127, prevendo como excludentes da
criminalidade apenas as hipóteses de risco de morte para a gestante e gravidez
decorrente de estupro (art. 128). O legislador de então não tinha a seu dispor
informações sobre tecnologias de pré-natal que possibilitassem, como ocorre
hoje, a detecção de anomalia fetais. Somente a partir da década de 1950 foram
desenvolvidos estudos sobre fetos em gestação, com o aperfeiçoamento da
tecnologia que proporcionou análises mais aprofundadas do quadro gestacional.
A partir da década de 1970 passou-se a utilizar o termo “diagnóstico pré-natal” e,
da década de 1990 em diante, por meio do progresso na área de informática, com
o advento dos aparelhos de ultra-som, os exames tornaram-se precisos, com a
possibilidade de avaliação do feto por meio de imagens tridimensionais.238

Quer-nos parecer que a falta de informações técnicas que


pudessem oferecer à sociedade – e ao legislador – a detecção precoce de um

237
GOLLOP, Thomaz Rafael. Riscos graves à saúde da mulher. In: ANIS: Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero. (Org). Anencefalia, o pensamento brasileiro em sua
pluralidade, p. 28.
238
FRIGÉRIO, Marcos Valentim. Aspectos bioéticos, médicos e jurídicos do abortamento por
anomalia fetal grave no Brasil. In: Revista brasileira de ciências criminais (RBCC), ano 11,
jan.-mar. 2003, pp. 268-270.
104

quadro de anencefalia pode ter contribuído para a não-inclusão de mais essa


hipótese autorizatória da interrupção da gravidez.

Nos últimos anos foram propostas, por diversos segmentos


da sociedade, reformulações no Código Penal Brasileiro, algumas para fazer
constar no Diploma Penal, como mais uma causa excludente de ilegalidade, a
cessação voluntária da gravidez de feto anencéfalo e outras para descriminalizar
a prática do aborto em qualquer hipótese.239

Não obstante a omissão do legislador brasileiro, o Poder


Judiciário tem autorizado o aborto de feto anencéfalo, alegando, para tanto,
questões de natureza social e moral, bem como a dignidade da pessoa humana.
240
Até o ano de 2007, cerca de 3.000 autorizações para interrupção de gravidez
de feto anencéfalo foram concedidas, principalmente nos Estados do Rio de
Janeiro, São Paulo e Brasília, sendo certo que, em praticamente todos os casos,
era impossível a sobrevida do feto.241

No ano de 2003, o Brasil viu-se diante de um fato que serviu


de parâmetro para que o Judiciário discutisse de forma mais clara e efetiva a
questão do aborto de feto portador de anencefalia. No dia 06 de novembro
daquele ano, a Defensoria Pública apresentou ao Juízo Criminal de Teresópolis,
no Estado do Rio de Janeiro, um pedido de autorização para que uma mulher
grávida de feto anencéfalo pudesse interromper a gravidez de 16 semanas. O
pleito foi indeferido liminarmente pelo magistrado, sob a alegação de que o caso

239
FRIGÉRIO, Marcos Valentim. Aspectos bioéticos, médicos e jurídicos do abortamento por
anomalia fetal grave no Brasil. In: Revista brasileira de ciências criminais (RBCC), pp.
270. O autor cita o Projeto de Lei n° 4.403/04, de autoria de Deputada Federal Jandira Fechali e
o Projeto de Lei n° 4.834/2005, dos Deputados Federais Luciana Genro e Dr. Pinotti, ambos
versando sobre a inclusão, ao art. 128 do Código Penal Brasileiro, da hipótese de anencefalia
como causa a justificar o aborto e, via de conseqüência, isentar o médico de qualquer tipo de
penalidade.
240
GOLLOP, Thomaz Rafael. Riscos graves à saúde da mulher. In: ANIS: Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero. (Org). Anencefalia, o pensamento brasileiro em sua
pluralidade, p. 28.
241
DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anencefalia fetal. Brasilía: Ed. Letras
Livres, 2003. p. 47. A autora, ao analisar as pesquisas recentes sobre o tema, afirma que “não
há, no Brasil, até o momento, nenhum registro de autorização de aborto para casos de má-
formação fetal compatível com a vida (...) Até onde se tem conhecimento da dinâmica do
processo judicial, as autorizações foram apenas para casos de anomalias fetais gravíssimas
em que a sobrevida do feto era cientificamente considerada impossível.”
105

em questão não constava no rol das hipóteses excludentes de ilicitude previstas


no art. 128 do Código Penal Brasileiro.

A Defensoria Pública recorreu do indeferimento à 2ª Câmara


Criminal, sendo o Ministério Público, em contra-razões, favorável ao pleito. O
recurso foi distribuído à Desembargadora Gizelda Leitão Teixeira que, em 19 de
novembro, concedeu a liminar requerida, autorizando a interrupção da
gravidez.242

Os advogados Carlos Brazil e Paulo Silveira Martins Leão


Júnior interpuseram agravo regimental à Segunda Câmara Criminal, cujo
presidente, no dia 21 de novembro de 2003, suspendeu a decisão da
Desembargadora Gizelda Leitão. Posteriormente, processado o agravo, este foi
desprovido pelo Colegiado no dia 25 de novembro de 2003, mantendo-se a
liminar anteriormente concedida.

Antes mesmo da decisão acerca do agravo regimental,


naquele dia 21 de novembro, o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente da
Associação Pró-Vida, sediada na cidade de Anápolis-GO, impetrou habeas
corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça, em favor do feto e contra a decisão
liminar concedida no dia 21 de novembro e confirmada no dia 25 do mesmo mês
pelo Colegiado da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro. A Ministra Laurita Vaz, liminarmente, sustou a decisão do Tribunal do Rio
de Janeiro, remetendo o feito ao julgamento pela 5ª Turma do STJ. Ressalte-se,
por importante, que a decisão da Ministra Laurita Vaz foi proferida na mesma data
em que o Tribunal carioca manteve a liminar que autorizava o aborto, mas tal fato
não foi citado pela Ministra em sua decisão.

242
A relatora do recurso, em sua decisão, afirma: “Não se pode ficar insensível ao sofrimento
desta mãe. Mais do que qualquer outra pessoa, a apelante busca um fim ao seu sofrimento,
positivado cabalmente nos autos às fls. 12 pelo atestado médico que refere-se a ‘estado
emocional abalado, necessitando de cuidados especiais’ (...) É justo condenar-se a mãe a
meses de sofrimento, de angústia, de desespero, quando, desde logo, já se sabe que o feto
está condenado de forma irremediável ao óbito, logo após o parto? (...) Não se pode impor à
gestante o insuportável fardo de, ao longo de meses, prosseguir na gravidez já fadada ao
insucesso. A morte do feto, logo após o parto, é inquestionável. Logo, infelizmente, nada se
pode fazer para salvar o ser em formação.”
106

No dia 18 de fevereiro de 2004, três meses após a


concessão da liminar que impediu a interrupção da gravidez, o STJ julgou o
habeas corpus, decidindo pela impossibilidade do aborto por falta de disposição
legal. Eis alguns trechos da decisão:

3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é


sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser
preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela
estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se a interpretação
extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer,
nesses casos, o princípio da reserva legal.

4. O legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses


autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal o
caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os
defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca
exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais
uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo
Legislador.

5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo


Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas
peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação
interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação
exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por
ocasião do julgamento do agravo regimental.

Após tal acordão da 5ª Turma do Superior Tribunal de


Justiça, duas organizações não-governamentais243 impetraram ao Supremo
Tribunal Federal um novo habeas corpus, desta feita, em favor da gestante, onde
pediram a cassação da referida decisão, para autorizar a gestante a realizar a
antecipação do parto. Distribuído o processo ao Ministro Joaquim Barbosa, este,
em seu relatório e voto, manifestou-se favoravelmente pela interrupção da
gravidez, mas nada mais se podia fazer a respeito, uma vez que, durante a
sessão, chegou ao conhecimento do Tribunal a informação da realização do
243
ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e THEMIS – Assessoria Jurídica e
Estudos de Gênero. Ambas as organizações alegaram, em sede de habeas corpus, “a coação
da liberdade por proibição de antecipação do parto, a inocorrência do crime de aborto, a
necessidade de tutela à saúde física e mental da paciente e o desrespeito ao princípio da
dignidade da pessoa humana.”
107

parto, sobrevivendo o feto por apenas sete minutos, encerrando-se a sessão, com
a consequente extinção do processo, pela perda do objeto.

Pela importância do voto do Ministro Joaquim Barbosa para


o tema, eis um trecho de sua manifestação:

Em se tratando de feto com vida extra-uterina inviável, a questão


que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto
venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja
o momento do parto ou a qualquer momento em que se
interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo:
a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em
nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao
princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva de
liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a
eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia
ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso
porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos
tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade e
autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve
prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de
liberdade desta de escolher aquilo que melhor represente seus
interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu
sentimento pessoal (...) Seria um contra-senso chancelar a
liberdade e a autonomia privada da mulher no caso do aborto
sentimental, permitido nos casos de gravidez resultante de
estupro, em que o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da
mulher, e vedar o direito a essa liberdade nos casos de
malformação fetal gravíssima, como a anencefalia, em que não
existe um real conflito entre bens jurídicos detentores de idêntico
grau de proteção jurídica. Há, na verdade, a legítima pretensão da
mulher em ver respeitada a sua vontade de dar prosseguimento à
gestação ou de interrompê-la, cabendo ao direito permitir essa
escolha, respeitando o princípio da liberdade, da intimidade e da
autonomia privada da mulher.

Com o nascimento e subsequente morte do feto, O Supremo


Tribunal Federal, de uma só vez, deixou de atender ao apelo da gestante, que,
pacientemente – mas não sem angústia e sofrimento – aguardou a decisão da
108

justiça brasileira, bem como deixou de aproveitar a oportunidade para promover


uma reformulação de sua jurisprudência sobre o tema.244

Uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental


(ADPF),foi ajuizada perante o STF, pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde (CNTS), no mês de junho de 2004. A Confederação
pleiteava decisão do Supremo Tribunal no sentido de suspender todos os
processos em andamento cuja discussão de mérito fosse a antecipação
terapêutica de parto de feto anencéfalo, de modo a assegurar às gestantes o
direito à interrupção da gravidez e, ao médico, a possibilidade de realizá-la,
bastando, para tanto, que um profissional médico atestasse a anencefalia,
restando dispensável qualquer autorização de autoridade pública.

A CNTS pretendia que o STF reconhecesse que a


interpretação dos artigos 124, 126, caput e 128 I e II, do Código Penal Brasileiro,
levava inexoravelmente ao não cumprimento de preceito fundamental insculpido
no art. 5° da Lei Maior, ou seja, alijava a gestante do direito à saúde. Assim, a
ação tinha como fim demonstrar que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo
tratava-se de conduta atípica, por não estar inserida nas hipóteses previstas nos
referidos artigos.245

Em decisão de 01.07.2004, o Ministro Relator Marco Aurélio


Mello deferiu o pedido de liminar, concedendo às gestantes de fetos
anencefálicos o direito de interromper a gravidez sem a necessidade de
autorização judicial. Tal decisão foi parcialmente revogada numa sessão realizada
no dia 20.10.2004, cujo objetivo era a análise de questão de ordem levantada
pelo Procurador-Geral da República, acerca da legitimidade da ADPF como
instrumento hábil para discutir o tema da interrupção de gravidez de feto portador
de anencefalia.

244
FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise
constitucional. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto,
clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos, p. 125.
245
FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise
constitucional. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto,
clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos, p. 126.
109

Pelo voto da maioria dos Ministros, suspenderam-se os


processos e decisões judiciais acerca do tema, mas foi negada a possibilidade de
antecipação do parto ante a anencefalia do feto. Pedido de vista foi feito pelo
Ministro Carlos Ayres Brito, o que fez com que a questão de ordem fosse
suspensa e o Tribunal, em seguida, julgou a liminar antes concedida. Desta feita,
a maioria dos Ministros decidir denegar a liminar.

Em novo julgamento realizado no dia 27.04.2005, a


admissibilidade da ADPF foi aprovada pelo STF, que reconheceu a
constitucionalidade da interrupção da gravidez, refutando a alegação contrária de
que, ao assim agir, atuava como legislador positivo246. Ao contrário, firmou o
entendimento de que interpretava o debate acerca do direito à vida intra-uterina
do feto e à saúde da gestante à luz do texto constitucional.

Do ano de 2005 até 2011, várias foram as movimentações,


no âmbito do STF, do processo de discussão acerca da ADPF. Audiências
públicas foram realizadas, com a participação de entidades públicas e não-
governamentais, além da Igreja Católica, em datas diversas, possibilitando a
explanação e o exame das correntes de pensamento sobre a interrupção da
gravidez de feto anencéfalo. Espera-se ainda para o ano em curso a decisão final
do Supremo Tribunal Federal.247

Não se discute o fato de o feto anencéfalo ser detentor de


direitos, uma vez que, por ter vida, recebe proteção constitucional a partir da sua
concepção. Todavia, o debate deve ocorrer a partir de uma das decisões
possíveis de ser tomada pela gestante: o prosseguimento da gestação ou sua
interrupção. Se a mulher decidir pelo prosseguimento da gestação e o feto nascer

246
Votaram a favor da ADPF os Ministros Carlos Ayres Brito, Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim,
Marco Aurélio Mello, que foi seu relator e Joaquim Barbosa. Deste último, destaca-se o
seguinte trecho de sua manifestação: “Não tenho dúvidas de que centenas de mulheres
espalhadas pelo País vêm sendo ou correm risco potencial de ser molestadas, ameaçadas,
constrangidas por atos do poder público, caso venham a tomar a decisão, de profundo
conteúdo autonômico, de interromper a gestação, se constatado, por atos médicos apropriados,
que o feto de que são gestantes tem a deformação congênita denominada anencefalia. O risco
de lesão a um direito fundamental da mulher parece-me evidente.”
247
O andamento processual da ADPF n° 54 pode ser feito pelo endereço eletrônico,
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=54&classe=ADPF&or
igem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M
110

com vida, terá este o tratamento dispensado a todos os fetos, por ser titular de
todos os direitos das crianças, por força da legislação brasileira. Terá ele
dignidade, por ser humano, mas não terá vida digna, pela precariedade de sua
existência, ou seja, não apresenta nem apresentará qualquer grau de consciência
da sua existência e da relação com o mundo e com os outros, uma vez que não
tem estrutura cerebral que lhe dê competência para alcançar essa condição de
desenvolvimento humano.248

Paralelo ao direito à vida do nascituro tem-se o direito à


saúde da mulher. O direito à saúde é um dos direitos sociais assegurados pela
Constituição Federal, sendo que a garantia de tal direito envolve não somente a
proteção do direito em si, mas também a obrigação estatal em adotar medidas
que resguardem tal direito.

No que tange à interrupção da gravidez de feto portador de


anencefalia, não se pode vislumbrar o exercício de tal direito reprodutivo por parte
da mulher, sem que o Estado adote políticas públicas aptas a implementá-la na
rede pública de saúde, o que só ocorrerá com a legalização do aborto por parte
do legislador. Dessa forma, conclui-se que a criminalização do aborto, nessas
circunstâncias, significa uma grave lesão ao direito à saúde feminina, porquanto a
manutenção do estado gestacional gera graves riscos à sua saúde física e
psíquica, vindo de encontro ao sentimento manifestado pela população brasileira,

248
LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. 1ª
ed. (ano 2008), 2ª reimp. Curitiba: Juruá, 2010.
111

que tem opinado favoravelmente à antecipação do parto de feto portador de


anencefalia.249

Privar a mulher da liberdade de decidir pela manutenção ou


interrupção da gravidez de feto anencéfalo somente agravará mais ainda sua
saúde física e psíquica, uma vez que a solução para o problema, cuja decisão
somente à mulher deve ser conferida, é a ela determinada, correndo o risco de,
em assim não agindo, responder criminalmente e ser apenada pelo crime de
aborto, conforme legislação vigente no país.250 Destarte, deve-se garantir o direito
de interromper a gravidez à gestante, “pessoa cuja consciência está mais
diretamente ligada à escolha, uma vez que será a mais atingida pelos riscos
decorrentes de tal decisão.” 251

Questão fundamental é averiguar se a garantia da


inviolabilidade do direito à vida, de cunho constitucional, restará violada com a
interrupção da gravidez de feto anencefálico252. As argumentações contrárias ao
aborto, bem como à antecipação terapêutica do parto, fundamentam-se no direito
à vida do feto.

249
Em pesquisa encomendada pelas organizações não-governamentais Católicas pelo Direito de
Decidir e Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e publicada na versão online
do Jornal O Estadão, o IBOPE entrevistou 2.002 pessoas nas 24 unidades da federação, mais
o Distrito Federal, entre 11 e 15 de setembro de 2008, utilizando como fonte de dados para a
elaboração da amostra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005 e o
Censo de 2000, ambos do IBGE. A pesquisa mostrou que 72% das mulheres católicas
entrevistadas são a favor de que grávidas de feto anencéfalo tenham o direito de optar entre
interromper a gestação ou mantê-la. O índice vai a 77% na faixa dos 25 aos 29 anos. Os
entrevistados (77,6% da população em geral e 78,7 dos católicos) ainda afirmaram ser um
dever dos hospitais públicos o atendimento à mulher que deseja interromper a gestação de feto
anencéfalo. Entre os entrevistados com nível superior, o apoio ao atendimento nas instituições
públicas sobe para 79% e entre moradores das capitais aumenta mais: chega a 84,2%. Os
jovens, novamente, demonstraram maior concordância com a interrupção: 85% dos
entrevistados entenderam que o atendimento deve ser obrigação do Estado. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,72-defendem-aborto-de-feto-
anencefalo,267088,0.htm. Acesso em: 11 ago. 2011.
250
LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão, p.
115.
251
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. 18.
252
O direito à vida, além do art. 5° da Constituição Federal de 1988, encontra guarida na
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), prevendo, em
seu art. 4°, que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser
protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da
vida arbitrariamente.”
112

Por ser a anencefalia uma anomalia fetal grave, tornando


impossível a vida extra-uterina, cumpre afirmar que a proteção constitucional à
vida dos fetos anencéfalos não pode ocorrer em grau de igualdade aos demais
seres humanos, tampouco em detrimento aos direitos da mulher gestante. Assim,
protege-se, de fato, tanto o direito à vida do feto quanto os direitos da mulher,
com a prevalência destes, em razão da inviabilidade daquele. Nesse sentido, a
posição do Ministro Joaquim Barbosa (HC n° 84.025-6-RJ, p. 22), para quem

o feto, desde sua concepção até o momento em que se constatou


clinicamente a irreversibilidade da anencefalia, era merecedor da
tutela penal. Mas, a partir do momento em que se comprovou sua
inviabilidade, embora biologicamente vivo, deixou de ser
amparado pelo art. 124 do Código Penal (...) Por fim, com relação
ao argumento de que o aborto eugênico não se encontra incluído
no rol de excludentes de ilicitude previsto no art. 128 do Código
Penal, tenho que, sendo o comportamento atípico, a questão fica
prejudicada.

Tem-se, então, que não há afronta ao direito à vida do feto,


por ser este considerado um ser, embora vivo do ponto de vista biológico, mas,
morto, do ponto de vista jurídico. Outra não pode ser o entendimento, se
considerarmos que a má-formação fetal torna 100% impossível a vida extra-
uterina do feto anencéfalo, sendo este considerado morto desde o momento da
detecção da anomalia, não sendo titular, portanto, da garantia do direito à vida,
insculpida no art. 5° da Constituição Federal de 1988.253

Ora, a norma penal tem como objeto jurídico o direito à vida


do feto, mas não uma vida precária ou efêmera. O quadro de anencefalia
apresenta um ser natimorto, com a impossibilidade de vida extra-uterina. Resta
claro que, não havendo vida a proteger, não se pode considerar ofendida tal
garantia constitucional. A ausência de potencialidade de vida fora do útero faz

253
FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção de gravidez de feto anencefálico: uma análise
constitucional. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto,
clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos, p. 134. A autora,
na mesma passagem, afirma que o crime de aborto somente existirá se a morte do feto for
conseqüência direta da interrupção da gravidez, numa relação de causa/efeito, o que não
ocorrerá na hipótese de feto anencéfalo, dada a inevitabilidade de sua morte.
113

com que seja atípica tanto a conduta da gestante, quanto a conduta do médico
que realize o procedimento.254

Por não haver qualquer possibilidade de sobrevivência fora


do útero, o aborto de feto portador de anencefalia deve ser considerado de um
ponto de vista diferente daquele que se deve ter quando da análise do aborto de
feto viável, uma vez que, somente no caso deste, tem-se um autêntico conflito de
princípios constitucionais, levando à necessidade de utilização da ponderação,255
técnica pela qual adota-se um dos princípios na resolução do conflito, sem que
isso signifique a invalidação do outro. 256

3.4 A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO COMO AFIRMAÇÃO DA DIGNIDADE DA


MULHER

Impedir que a mulher possa decidir livremente sobre a


manutenção ou interrupção de uma gravidez não desejada afronta não só as
normas previstas no art. 5° da Constituição Federal, mas também todos os
documentos internacionais que têm os direitos humanos como objeto central, aos
quais o Brasil se comprometeu a respeitar e implementar.

Tal proibição faz com que seja exercido um controle


discriminatório e injustificado sobre o corpo feminino, sua sexualidade e seus

254
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1942. Sobre o
tema, assim manifestou-se o autor: “O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser
um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresentar como um processo
verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que
pudesse salvar a vida do feto, não há [como] falar-se em aborto, para cuja existência é
necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto (...). Afirmando, ainda,que
não estaria em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir
normalmente vida própria, de modo que as conseqüências dos atos praticados se resolvem
unicamente contra a mulher.”
255
A ponderação “consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis,
em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma
situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções
diferenciadas.” (BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional: ponderação,
argumentação e papel dos princípios. In: George Salomão Leite (coord.) Dos princípios
constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição.
2ª ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Método, 2008).
256
Para Alexy, o que ocorre é que “um dos princípios tem precedência em face do outro sob
determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de
forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os
princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência.”
(ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 94).
114

direitos de reprodução, afrontando um direito fundamental, uma vez que cabe à


mulher – até porque é em seu corpo que o processo gestacional se desenvolverá
– a melhor decisão a ser tomada. Outro não é o papel do Estado senão o de
adotar todas as providências assumidas internamente e perante a ordem
internacional, no sentido de garantia da autodeterminação das mulheres.257

Uma mulher a quem é negado o direito de interrupção de


uma gravidez que não deseja não pode ser considerada sujeito de direitos, por
viver subjugada a um sistema que não a reconhece como tal. Este é o
entendimento de Dworkin258, para quem

As leis que proíbem o aborto, ou que o tornam mais difícil e caro


para as mulheres que desejam fazê-lo, privam as mulheres
grávidas de uma liberdade ou oportunidade que é crucial para
muitas delas. Uma mulher forçada a ter uma criança que não
deseja porque não pode fazer um aborto seguro pouco depois de
ter engravidado não é dona de seu próprio corpo, pois a lei lhe
impõe uma espécie de escravidão. Além do mais, isso é só o
começo. Para muitas mulheres, ter filhos indesejados significa a
destruição de suas próprias vidas. (...) Decidir sobre um aborto
não é um problema isolado, independentemente de todas as
outras decisões, mas sim um exemplo expressivo e extremamente
emblemático das escolhas que as pessoas devem fazer ao longo
de suas vidas, todas as quais expressam convicções sobre o valor
da vida e o significado da morte.

No sentido de reconhecimento dos direitos reprodutivos


das mulheres como integrantes do conjunto dos direitos humanos,
259
vislumbre-se o disposto nas Conferências do Cairo, de 1994 e de

257
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, p. 88.
258
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida : aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. 143.
259
O princípio de n° 4 da Conferência Internacional do Cairo dispõe que a “promoção da igualdade
e a eqüidade de gênero e o empoderamento das mulheres e a eliminação de todos os tipos de
violência contra as mulheres, e garantir a capacidade das mulheres de controlar sua própria
fertilidade, são pilares da população e desenvolvimento relacionados com os programas. Os
direitos humanos das mulheres e crianças do sexo feminino são uma parte inalienável, integral
e indivisível dos direitos humanos universais. A participação plena e igualitária das mulheres na
vida civil, cultural, econômico, político e social, nos níveis nacional, regional e internacional, e a
erradicação de todas as formas de discriminação em razão do sexo, são objetivos prioritários
da comunidade internacional.”
115

Beijing,260 de 1995, que significaram um importante fortalecimento dos direitos,


numa perspectiva de gênero.261

Defender o direito à liberdade de autonomia reprodutiva da


mulher conduz-nos, inexoravelmente, a admitir a violabilidade da vida do feto,
num autêntico conflito entre direitos fundamentais, significando para o intérprete a
necessidade de ponderá-los, fazendo com que ocorra a prevalência de um direito
fundamental em detrimento do outro, sem que isso acarrete a invalidade de
qualquer deles.

Cumpre analisar, ainda que de forma não aprofundada, as


diferenças entre regras e princípios, a fim de que avancemos no debate quanto
aos direitos em colisão objeto deste capítulo. Deve-se buscar a definição da
estrutura normativa desses direitos fundamentais, vale dizer, se estes têm a
natureza de regra ou de princípio, sob pena de não conseguirmos resolver o
conflito aparente entre ambos.

Embora exista muita divergência doutrinária acerca dos


conceitos de regras e princípios, aceita-se que estes possuem força normativa e
que desempenham um papel importante no processo de interpretação dos direitos
em colisão.

As regras são consideradas normas que podem ser


cumpridas ou não e possuem um caráter de comando definitivo que determina se
a conduta pode ou não ser praticada. Declarada a validade da regra, seu
mandamento deve ser cumprido literalmente, nem mais, nem menos. As regras
são normas que podem ou não ser satisfeitas, inexistindo graus diferentes quando

260
O Plano de Ação da Conferência Mundial de Beijing, em seu Capítulo I, item 2, “reafirma o
princípio fundamental, estabelecido na Declaração e no Programa de Viena, aprovados pela
Conferência Mundial de Direitos Humanos, de que os direitos humanos das mulheres e das
meninas são uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. Como
programa de ação, a Plataforma objetiva promover e proteger o gozo pleno de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais por todas as mulheres, ao longo de toda a vida.”
261
BARSTED, Leila Linhares. Direitos humanos e descriminalização do aborto. In: Daniel
Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e
eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. – Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora,
2007.
116

de sua aplicação, fazendo com que o conflito seja solucionado na dimensão da


sua validade.262

Já os princípios são considerados normas de otimização e


ordenam que algo seja realizado na melhor medida possível, considerando-se as
possibilidades fáticas e jurídicas, podendo, por tal motivo, “ser satisfeitos em
graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não
depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades
jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e
regras colidentes.”263

Regras e princípios não se confundem, têm natureza distinta


e, via de conseqüência, distinta solução. Estabelecido o conflito entre regras, dá-
se a solução com a introdução de uma cláusula de exceção que fará com que
cesse o conflito, ou mediante a declaração de invalidade de uma das regras.
Destarte, invalidada estará uma regra com o reconhecimento da validade da
outra.

Diversa é a solução ante a ocorrência de colisão entre


princípios. Se um deles permite algo, que é diametralmente vedado por outro,
deve um dos princípios ceder para que o outro conserve a sua força, sem que
isso signifique a invalidação do princípio preterido, uma vez que o conflito entre
princípios é solucionado na dimensão do valor e não da validade. Tal solução dá-
se com a utilização da técnica de ponderação, instrumento hábil a estabelecer
uma relação de preferência entre os princípios, considerando-se as circunstâncias
do caso concreto, ou seja, um dos princípios tem prevalência sobre o outro em
razão de determinadas condições. Daí se depreende que, sob outras condições, a
precedência pode ser resolvida de forma oposta. Assim, “quanto maior for o grau

262
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. alemã. Tradução de Virgílio Afonso
da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
263
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 90.
117

de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a


importância da satisfação do outro.”264

Em resumo, temos que as regras aplicam-se no modo tudo-


ou-nada, o que leva o intérprete, obrigatoriamente, diante de um conflito, a
considerar a validade de uma, rejeitando-se a outra. Para Dworkin,265
diferentemente, os princípios, quando em colisão, não se invalidam, mas são
ponderados até que um deles prevaleça:

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de


natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para
decisões particulares acerca da obrigação jurídica em
circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza
da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira
tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a
regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser
aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a
decisão [...] Os princípios possuem uma dimensão que as regras
não têm – a dimensão do peso ou da importância. Quando os
princípios se entrecruzam, aquele que resolverá o conflito tem que
levar em conta a força relativa de cada um.”

Na hipótese de conflito entre o direito à vida do feto e os


direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher, ambos sob a
proteção do art. 5° da Constituição Federal de 1988, deve-se fazer a devida
ponderação entre os princípios, de modo que haja a prevalência dos direitos da
mulher, consoante o direito interno e o sistema internacional dos direitos
humanos, cujos tratados foram ratificados pelo Estado brasileiro.

264
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. alemã. Tradução de Virgílio Afonso
da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 167. O autor explica que tal regra “expressa uma lei
que vale para todos os tipos de sopesamento de princípios e pode ser chamada lei do
sopesamento. Segundo a lei do sopesamento, a medida permitida de não-satisfação ou de
afetação de um princípio depende do grau de importância da satisfação do outro. Na própria
definição do conceito de princípio, com a cláusula ‘dentro das possibilidades jurídicas’, aquilo
que é exigido por um princípio foi inserido em uma relação com aquilo que é exigido pelo
princípio colidente. A lei de colisão expressa em quê essa relação consiste. Ela faz com que
fique claro que o peso dos princípios não é determinado em si mesmo ou de forma absoluta e
que só possível falar em pesos relativos.”
265
Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 39-42.
118

Embora o legislador pátrio tenha positivado vários direitos


relacionados ao bem-estar e desenvolvimento das mulheres, poucas medidas
foram adotadas com vistas à sua regulamentação, constatando-se a ausência de
providências concretas para a proteção e garantia dos direitos femininos.266

Tome-se como exemplo a legislação acerca do aborto, que


continua a incriminar a interrupção voluntária da gravidez, não obstante o
Brasil ter ratificado todos os tratados internacionais que recomendavam a sua
descriminalização, o que viola flagrantemente os direitos humanos das mulheres,
na contramão do que decidiram vários países com legislação semelhante à
brasileira.267

Não obstante a criminalização do aborto na legislação


brasileira, aliada à forte campanha da Igreja Católica e de organizações
conservadoras, tem-se verificado um alto índice de interrupção voluntária de
gravidez, que leva milhares de mulheres, todos os anos, a procurarem o sistema
público de saúde, na busca do tratamento das complicações pela prática de
aborto inseguro. A conclusão é óbvia: temos uma lei que, por não impedir aquilo
que se propõe, é inócua, mas que leva um número considerável de mulheres –
notadamente mulheres das camadas mais pobres da população -, à morte,
justamente pela prática insegura a que são submetidas.

Em pesquisa realizada pela Federação Internacional de


Planejamento Familiar (IPPF, na siga em inglês), instituição que atua em 150
países, intitulada "Morte e Negação: Abortamento Inseguro e Pobreza",
constatou-se que, no mundo, a cada ano, são realizados cerca de 46 milhões de

266
Pesquisa realizada pela organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir,
durante os anos de 1989 e 2002, constatou que, em tal período, foram registrados 845 abortos
legais no Brasil. A pesquisa envolveu 58 instituições nas 24 unidades da federação e, em 78%
dos hospitais pesquisados, o máximo de procedimentos realizados foi de 30. Do total de 845,
270 foram realizados no Estado de São Paulo. A pesquisa também atestou que, embora o
Código Penal Brasileiro autorize o aborto nas hipóteses de risco de morte à gestante ou no
caso de gravidez decorrente de estupro, somente a partir do ano de 1989 o serviço passou a
ser implantado na rede pública – e de forma precária -, ou seja, cinco décadas após a entrada
em vigor do Diploma Penal, revelando o descaso do País quanto ao respeito e à proteção dos
direitos reprodutivos femininos. Os dados da pesquisa estão disponíveis em:
http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=18934. Acesso em 11 ago. 2011.
267
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, p. 90.
119

abortos para interrupção de gravidez indesejada, dos quais 19 milhões são feitos
de forma insegura e 70 mil resultam em morte materna.268

Segundo a pesquisa, cerca de 96% dos abortos inseguros


são praticados em países em desenvolvimento, sendo a América Latina
responsável pelo percentual de 17%. A África está à frente do Brasil, com 58%. O
Brasil possui uma estimativa de um milhão de abortos anuais, numa média de
2,07 abortos induzidos por grupo de 100 mulheres.

O número de abortos praticados no Brasil, não obstante sua


criminalização, longe de proteger a vida, conduz à morte mulheres trabalhadoras
que não têm outra saída diante de uma gravidez indesejada, a não ser a sua
interrupção de forma insegura, revelando o fracasso duplo do Estado, pois, por
um lado, não impede a prática abortiva no País e, por outro, revela-se incapaz de
proteger as vidas das mulheres brasileiras.269

A Federação Internacional de Planejamento Familiar


calculou ainda a ocorrência de um caso de aborto em cada grupo de 138

268
A pesquisa destaca destaca o exemplo da Romênia, onde o taxa de mortalidade materna caiu
depois que uma lei que proibia o aborto foi revogada. A lei havia sido aprovada em 1966. Entre
1964 e 1988, a mortalidade materna no país subiu de 80 mortes por grupo de 100 mil nascidos
vivos para 180 mortes. Após a revogação da lei, a taxa de mortalidade caiu para 40 mortes
para cada 100 mil nascidos vivos. Os dados da pesquisa podem ser consultados no site da
IPPF, em:
http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3300&Itemid=1.
Acesso em 14 ago. 2011.
269
Para o diretor-geral da Federação Internacional de Planejamento Familiar, Steven Sinding, “o
abortamento inseguro é uma das maiores causas de mortalidade materna em todo o mundo:
uma tragédia humana que poderia ser evitada e que revela o fracasso dos governos nacionais
e da comunidade internacional em solucionar um tema de saúde pública e que perpetua uma
das maiores injustiças sociais, separando as nações ricas das pobres.” Disponível em:
http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3300&Itemid=1.
Acesso em 14 ago. 2011. Nesse sentido ver também ÉBOLI, Evandro. Aborto de alto risco é
a terceira causa de morte materna no país. O Globo, Rio de Janeiro, 20 de maio de 2007.
Caderno O País. p. 3.
120

adolescentes na região Norte270. Na Região, Sul, o percentual é de um aborto em


cada grupo de 318 adolescentes, o que revela, mais uma vez, que as regiões
mais pobres do País são as que apontam para um maior número de casos de
interrupção de gravidez. Isso nos leva a conclusão óbvia de que a falta de acesso
aos direitos fundamentais da pessoa humana tem um efeito determinante no alto
índice de abortos praticados no Brasil. Nesse sentido,

Entre as mulheres que morrem por complicações pós-aborto, a


grande parte é oriunda das camadas pobres da sociedade:
mulheres jovens, pobres, negras, com baixa escolaridade e em
sua maioria legalmente solteiras, o que demonstra que quem mais
sofre com os efeitos da ilegalidade do aborto são as mulheres
desprovidas do acesso aos serviços públicos tais como educação,
saúde, assistência social, mostrando, além da desigualdade de
gênero, uma desigualdade social no que se refere aos efeitos do
aborto inseguro e clandestino.271

Cumpre reafirmar que a criminalização do aborto no Brasil


não atinge somente o direito à autonomia reprodutiva da mulher, mas outros
direitos humanos fundamentais a ela inerentes. Isso porque o modelo repressivo
da lei penal relativa ao aborto deixa transparecer a vulnerabilidade feminina, por
ser a mulher a única a ser responsabilizada pela decisão de interromper uma
gravidez indesejada, sofrendo, sozinha, a violação do seu direito à vida, à saúde,
à não-discriminação de gênero, à liberdade e à autonomia, além do direito de não
ser tratada de forma desumana.272

Infelizmente, quando se trata de exemplos negativos na


temática dos direitos humanos, o Brasil está fadado a sempre possuir papel de

270
Segundo a diretora da IPPF, Carmem Barroso, é preocupante o índice de abortos praticados
pelas mulheres brasileiras, que engravidam cada vez mais cedo, aumentando o número de
abortos entre as meninas e as adolescentes. Em 2005 foram registrados 2.781 atendimentos
no Sistema Único de Saúde (SUS) de meninas de 10 a 14 anos para tratamento de
complicações pós-aborto. entre as mulheres de 15 a 19 anos, foram 46.504 atendimentos.
Carmem Barroso, para quem o problema assume um caráter coletivo, e não individual, “as
meninas de 10 a 14 anos são as que têm menos informações e menos recursos para evitar
uma gravidez e menos recursos para se submeter a um aborto mais seguro.” Disponível em:
http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3300&Itemid=1.
Acesso em 14 ago. 2011
271
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, p. 93.
272
EMMERICK, Rulian. Aborto: (des) criminalização, direitos humanos, democracia, p. 92.
121

destaque, pelo descumprimento de preceitos fundamentais previstos tanto na


Constituição Federal quanto nos tratados internacionais dos quais é signatário.
Para ilustrar, temos o fato ocorrido na Cidade de Alagoinha, Estado do
Pernambuco, onde uma criança de apenas 9 anos de idade – cujos abusos
sexuais tiveram inicio quando a vítima tinha apenas 6 anos de idade –, foi
estuprada por seu padrasto e engravidou de gêmeos.

Cuidava-se de um caso concreto em que, a um só tempo, as


duas únicas previsões legais de autorização de interrupção de gravidez fizeram-
se presentes: tanto a vítima fora estuprada pelo infrator – no caso, seu padrasto,
sendo que a genitora da menor tinha conhecimento dos abusos por aquele
praticados –, quanto havia riscos concretos para sua vida, em razão de sua
estrutura corporal não ser capaz de suportar um feto em desenvolvimento.

A gravidez foi descoberta no dia 25 de fevereiro de 2009,


quando a menor foi levada a uma casa de saúde num município vizinho, em razão
de sentir dores abdominais, vômitos, dores de cabeça e tontura.273 Descoberto o
quadro gestacional pelos médicos, comunicou-se a Polícia e teve início, a partir
de então, uma batalha entre aqueles que defendiam o direito à vida do feto –
capitaneados pela Igreja Católica –, e instituições de defesa dos direitos da
mulher, que pugnavam pela interrupção da gravidez, lastreados pela previsão do
art. 128 do Código Penal Brasileiro que, em seus dois incisos, autorizam o aborto.

O Arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso


Sobrinho, manifestou-se contrário à interrupção da gravidez, afirmando que “a
menina engravidou de maneira totalmente injusta, mas devemos salvar vidas”,274
numa declaração claramente a favor da vida do feto, desconsiderando o fato de
que a gravidez decorria da prática de um crime hediondo, praticado pelo padrasto
da menor, bem como os riscos à saúde à vida da criança.

273
MAGENTA, Matheus. Menina de 9 anos estuprada interrompe gravidez de gêmeos em
Recife (PE). Folha.com. Caderno Cotidiano, 04 mar. 2009. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u529301.shtml. Acesso em 14 ago. 2011.
274
Disponível em: http://www.paulopes.com.br/2009/03/igreja-tentou-impedir-aborto-em-
menina.html. acesso em: 14 ago. 2011.
122

No dia 4 de março de 2009, o aborto foi realizado numa


unidade hospitalar da Cidade de Recife, com todos os cuidados médicos e
psicológicos que o caso exigia. Ao tomar conhecimento do procedimento, Dom
José Cardoso declarou que todos os que participaram da interrupção da gravidez,
com exceção da menor, seriam excomungados automaticamente da Igreja
Católica. Instado a se manifestar acerca do fato de o estuprador não sofrer tal
punição, de acordo com as leis da Santa Igreja, afirmou que “o aborto é um crime
pior que o estupro”, reafirmando o posicionamento definitivo da Igreja Católica
quanto à questão, no que foi apoiado pelo Vaticano.275

O episódio demonstra a contradição da Igreja Católica, que


simplesmente ignorou os ideais cristãos referentes à proteção a que fazia jus uma
criança de 9 anos de idade, desprovida de qualquer possibilidade – seja do ponto
de vista físico, emocional ou psicológico –, de dar continuidade àquela gravidez
decorrente de um crime brutal, cujas conseqüências para sua vida seriam
desastrosas.

Não se pode olvidar que a mesma disposição demonstrada


pela Santa Igreja brasileira e referendada pelo Vaticano, em expulsar da Igreja
pessoas que agiram amparada pela lei e de forma legítima – no sentido de salvar
a vida de uma criança abusada sexualmente, humilhada e exposta publicamente
–, não é demonstrada quanto às condutas de padres envolvidos em toda sorte de
crimes sexuais e que, uma vez descobertos, contam com toda a solidariedade de
sua Instituição. No máximo, a Igreja busca admitir os erros de seus membros,
participa de acordos onde paga quantias milionárias às vítimas – a maioria,
crianças e adolescentes –, mas, em momento algum, ventila a possibilidade de
expulsar de suas fileiras os autores desses bárbaros crimes, tampouco ameaça

275
O Cardeal Giovanni Batista Re, em declarações feitas ao jornal italiano La Stampa, em matéria
publicada no site do Jornal O Estado de São Paulo, firmou o apoio ao arcebispo brasileiro,
alegando que “os gêmeos tinham o direito de viver”, declarando como injustas as críticas feitas
contra a Igreja Católica brasileira e que o arcebispo estava correto ao excomungar a mãe e a
equipe médica que atuou na interrupção da gravidez. Disse ainda que se trata de “um caso
triste, mas o problema real é que os gêmeos concebidos eram pessoas inocentes que tinham o
direito de viver e não podiam ser eliminados”. As declarações do Cardeal Giovanni Batista
estão disponíveis em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,vaticano-apoia-excomunhao-
apos-aborto-no-brasil. Acesso em 14 ago. 2011.
123

excomungá-los, como fez com a equipe médica e a genitora da menor


gestante.276

Em pesquisa realizada no mês de julho de 2009 pelo


IBGE,277 encomendada pela organização não-governamental Católicas pelo
Direito de Decidir (CDD) e realizada em 142 municípios de todas as regiões do
País, a população reprovou a atitude da Igreja Católica. Formulou-se a seguinte
indagação: “O arcebispo excomungou, ou seja, expulsou da Igreja Católica a mãe
da menina e a equipe médica que realizou o aborto. O (a) Sr.(a) concorda ou
discorda da atitude do arcebispo nesta situação?”. 86% dos entrevistados
discordaram da excomunhão e concordaram com a afirmação do Ministro da
Saúde, José Temporão, que classificou de “radical” e “inadequada” a postura do
representante da Igreja Católica e afirmou que "a lei é clara e garante o aborto,
pois foi resultado de estupro e a menina corria risco de vida."278

A pesquisa demonstrou que 71 % dos entrevistados


consideraram uma violência a atitude do arcebispo, porquanto tentou impedir a
realização do aborto e, posteriormente, condenou religiosamente os envolvidos. O
caso em comento possibilita que afirmemos a existência de um forte sentimento
de compaixão e solidariedade na população brasileira quanto ao tema, que vai de
encontro à criminalização da conduta dos médicos e de todos que participaram de
276
O jornal O Estado de São Paulo, no dia 09.12.2010, informou que, na Holanda, foi elaborado
um relatório por uma comissão indicada pela Igreja Católica, por solicitação da Conferência dos
Bispos da Holanda, após a opinião pública tomar conhecimento de casos de pedofilia
envolvendo padres na própria Holanda, na Bélgica, na Irlanda, na Alemanha, na Austrália, no
Canadá e nos Estados Unidos da América. A comissão chegou ao número impressionante de
1.975 casos de abuso sexual e físico na infância e adolescência das vítimas, desde o ano de
1945, números que obrigaram o papa Bento XVI a pedir desculpas às vítimas de abuso sexual
cometidos por padres católicos. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,relatorio-holandes-registra-1975-casos-de-abuso-por-
religiosos,651726,0.htm. Acesso em 14 ago. 2011. Mais recentemente, o mesmo matutino, em
18.01.2011, noticiou que uma carta escrita por um bispo do Vaticano, escrita em 1997 e
divulgada recentemente, pedia aos bispos católicos da Irlanda que não relatassem à polícia
todos os casos de suspeita de abuso sexual contra crianças. O documento informava que a
Igreja não pretendia entregar as informações às autoridades civis e que resolveria a questão
internamente, significando que não só a Igreja sancionava a proteção aos padres pedófilos,
como a própria Santa Sé assim o determinava, num afronta histórico à dignidade da pessoa
humana. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,vaticano-ordenou-
bispos-irlandeses-a-nao-relatar-abusos,667865,0.htm. Acesso em 14 ago. 2011.
277
Disponível em: http://catolicasonline.org.br/ExibicaoNoticia.aspx?cod=554. Acesso em: 15 ago.
2011
278
Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3616261-EI5030,00-
Arcebispo+critica+aborto+em+criancas+vitimas+de+estupro.html. Acesso em: 15 ago. 2011.
124

alguma maneira no evento, sem contar o forte repúdio que as pessoas


demonstraram quanto ao posicionamento assumido pela Igreja Católica.

Em novembro de 2010, o IBOPE realizou nova pesquisa


sobre como a população vê a prática do aborto279. 2002 pessoas foram ouvidas
em 14 capitais brasileiras e demonstraram que avançou no país o sentimento de
respeito à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher, ainda que presente a
resistência da Igreja Católica e de setores conservadores da sociedade brasileira.

À população foram realizados questionamentos sobre: a) o


direito de a mulher interromper a gravidez em casos específicos; b) quem deve
decidir pela interrupção de uma gravidez não desejada e; c) a posição que deve
ser adotada pelo Estado frente a uma gravidez decorrente de estupro.

Ao primeiro questionamento, 66% concordaram que a


mulher tem o direito de interromper a gravidez em caso de risco para sua vida,
65% quando o feto não tem chance alguma de sobrevivência fora do útero e 52%
reconheceram o direito de a mulher praticar o aborto na hipótese de gravidez
decorrente de estupro. Nenhuma novidade quanto às duas hipóteses já previstas
no art. 128 do Código Penal (risco á vida da gestante e estupro), de amplo
conhecimento da população brasileira. Todavia, nota-se que a sociedade aceita
majoritariamente a interrupção da gravidez no caso de feto anencéfalo, o que
revela o anacronismo do Código Penal Brasileiro ao não prever expressamente tal
situação.

À pergunta sobre quem deve decidir pela interrupção de


uma gravidez não desejada, 61% declararam que cabe à mulher tal decisão e
apenas 4% concordaram que o homem deve decidir. Houve ainda quem
entendesse que o poder de decisão cabe ao marido/parceiro (6%), à Igreja (3%),
ao Poder Judiciário (5%), ao Presidente da República (2%) e ao Congresso
Nacional (1%). Os números falam por si: à mulher, e a mais ninguém, cabe decidir
pela conveniência ou não de uma gravidez não desejada, consoante o direito

279
Disponível em: http://catolicasonline.org.br/ExibicaoNoticia.aspx?cod=1248. Acesso em: 15
ago. 2011.
125

fundamental à liberdade de autonomia reprodutiva e em atenção aos documentos


elaborados pelo sistema internacional de direitos humanos das mulheres.

Ao terceiro questionamento, sobre que posição deve ser


adotada pelo Estado no caso de uma gravidez decorrente de estupro, somente
4% manifestaram-se favoráveis à prisão da mulher, enquanto 48% entenderam
que a mulher deveria ser convencida a prosseguir na gravidez, com o
recebimento de uma pensão paga pelo Estado e 40% opinaram que o sistema
público de saúde deveria prestar assistência à mulher para a prática do aborto,
caso esta fosse a sua vontade. Chamou a atenção, no que pertine às mulheres
entrevistadas, a posição adotada pelas mulheres católicas e pelas evangélicas,
porquanto aquelas demonstraram menor concordância a que a mulher seja
convencida pelo governo a não fazer o aborto e aceitar uma pensão paga pelos
cofres públicos.280

A pesquisa entrevistou pessoas que se declararam católicas


e com um posicionamento diferente daquela assumida pela Igreja, uma vez que
afirmaram ser favoráveis ao direito de decidir das mulheres quanto à sua própria
reprodução, revelando uma contradição quanto àquilo que elas defendem e a
doutrina da instituição religiosa a qual pertencem. Não se pode olvidar que devem
ser respeitados os posicionamentos religiosos e morais daqueles que não aceitam
o aborto em toda e qualquer situação, mas isso não se pode querer estender
genericamente aos que entendam de modo diverso.281

O aborto deve ser descriminalizado no Brasil, passando a


ser tratado não mais como um caso de polícia, mas como um caso de saúde
publica, considerando-se esta como um direito fundamental insculpido na
280
Disponível em: http://catolicasonline.org.br/ExibicaoNoticia.aspx?cod=1248. Acesso em: 15
ago. 2011.
281
PIMENTEL, Sílvia. Um pouco de história da luta pelo direito constitucional à
descriminalização e à legalização do aborto: alguns textos, várias argumentações. Assim
temos falado há décadas. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da
vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. –
Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2007. Afirma ainda a autora que “o respeito à diversidade
e à pluralidade, valores tão cultuados nesse nosso século XXI, deve ser mais do que simples
retórica, deve traduzir-se em razões concretas. Exemplo concreto de respeito à dignidade da
pessoa humana, princípio fundamental constitucional, é acatar, (não necessariamente
concordar) a vontade de uma menina, adolescente ou mulher que não queira/possa dar à luz
fruto de um hediondo estupro.”
126

Constituição Federal de 1988, sendo imprescindível, portanto, a garantia da


implementação de tal direito na rede pública de saúde.

O direito à liberdade de autonomia de reprodução feminina


deve ser garantido e exercido junto ao sistema de saúde pública do País,
afiançado que está pela Carta de 1988 e pelos compromissos assumidos pelo
Estado brasileiro por meio de vários tratados internacionais, com destaque para
as Conferências do Cairo (1994) e Beijing (1995).282

282
PIMENTEL, Sílvia. Um pouco de história da luta pelo direito constitucional à
descriminalização e à legalização do aborto: alguns textos, várias argumentações. Assim
temos falado há décadas. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (coords.). Nos limites da
vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos, p.
180.
127

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dos crimes cometidos contra a vida humana, aquele que


suscita mais discussões acaloradas e, por que não dizer, apaixonadas,
certamente, é o aborto.

A interrupção da gravidez está intrinsecamente relacionada


aos direitos sexuais e de reprodução femininos, merecendo destaque nos últimos
encontros internacionais em que os direitos das mulheres foram seriamente
discutidos.

O Estado brasileiro assumiu, frente à comunidade


internacional, o compromisso de, internamente, criar, implementar e garantir
condições para que as mulheres tenham seus direitos respeitados. Nesse sentido,
ganha relevo a efetivação dos direitos à liberdade de autonomia reprodutiva e
sexuais, significando, em última análise, que à mulher cabe a decisão acerca de
sua reprodução.

Nas últimas décadas temos assistido a evolução dos direitos


humanos e sua valorização pelos Estados, servindo as experiências trágicas da
humanidade como escopo para sua positivação nas Constituições internas,
elevando-os à categoria de cláusulas pétreas e, com isso, tratando de
salvaguardá-los do arbítrio do próprio Estado.

Os direitos sexuais e de reprodução foram reconhecidos


pela comunidade internacional como autênticos direitos humanos, sendo
referendados da mesma maneira pelos Estados participantes das Convenções e
Conferências mundiais sobre os direitos das mulheres.

Da Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada


no México, em 1975, até os dias atuais, vários foram os momentos em que
representantes da maioria dos países participaram de discussões acerca dos
direitos humanos, principalmente para tratar dos direitos das minorias e daqueles
128

considerados mais fracos, como as crianças, os negros, os homossexuais e as


mulheres.

Vários foram os encontros, como vários foram os


documentos produzidos e por todos ratificados, com o compromisso de, no direito
interno de cada país, serem implementadas as diretrizes acordadas. Os anos se
passaram e os países, alguns em maior, outros em menor grau, efetivamente
cumpriram com os ideais aos quais se comprometeram perante o mundo.

O aborto sem restrição foi legalizado em vários países. Em


outros, legalizou-se a interrupção da gravidez com reservas. Debates acalorados
foram realizados, onde os setores organizados da sociedade manifestaram sua
posição sobre tal polêmico tema. No Brasil, razões históricas, políticas, de cunho
moral e religioso, travam o debate, fazendo com que deixemos de impedir a morte
de milhares de mulheres pobres todos os anos, por se submeterem a um aborto
sem condição alguma de dignidade.

A população, por meio de pesquisas sérias de opinião, dá


sinais de que o tema não é mais considerado um tabu. Ao contrário, em todas as
pesquisas citadas neste trabalho, manifestou-se favoravelmente à mulher, quando
questionada sobre a quem competia decidir pela interrupção ou continuidade do
quadro gestacional. Um avanço na temática dos direitos femininos que a Igreja
Católica e setores conservadores da sociedade brasileira ignoram
conscientemente.

O parlamento brasileiro, de onde deveríamos esperar ventos


de modernidade e respeito as direitos das mulheres, não só impede o trâmite de
projetos que fazem alusão ao tema, como ensaiam entregar à sociedade
brasileira – formada, em sua maioria, por mulheres –, projetos que são um
flagrante desrespeito a direitos já consolidados constitucionalmente e um
retrocesso histórico, a exemplo do infeliz Estatuto do Nascituro que, se aprovado,
impedirá a mulher vítima de estupro de interromper a gravidez, obrigando-a levar
a termo o estado gestacional para, em contrapartida, ser “beneficiada” com uma
pensão – batizada de “bolsa-estupro” – paga pelo próprio estuprador ou pelo
129

Estado, numa bizarrice que só se justifica na cabeça daqueles que não têm a
menor noção sobre o significado da expressão dignidade da pessoa humana.

À mulher brasileira, igual às mulheres em todos os cantos do


planeta, sempre foi reservado o papel de subalterna do arbítrio masculino, sendo
assim desde o Brasil-Colônia – onde era vista como um mero ser reprodutor –,
até os dias atuais, embora a legislação pátria em muito tenha avançado no
reconhecimento dos direitos femininos. Obviamente, tal ocorreu não pela
benevolência ou conscientização do Estado brasileiro frente à condição feminina,
mas, fundamentalmente, pela capacidade de organização e de luta do movimento
feminista no Brasil e no mundo, responsáveis por poderosa participação nos
eventos mundiais sobre direitos humanos das mulheres.

É, pois, graças às próprias mulheres que a Constituição


Federal de 1988 e o Código Civil Brasileiro, por exemplo, consagraram os ideais
de igualdade e fraternidade entre homens e mulheres, fazendo com que muito se
avançasse na efetivação dos compromissos assumidos internacionalmente. Não
obstante, muito deve ser feito, ainda, na busca pela igualdade material entre os
gêneros. A legislação criminal brasileira, por exemplo, deve ser urgentemente
revista, de modo a suprimir do texto legal dispositivos que afrontam os direitos de
reprodução das mulheres, como os artigos 124 a 127, referentes ao aborto,
tipificados no Código Penal Brasileiro.

Descriminalizar o aborto no Brasil não visa apenas ao


cumprimento do disposto nos documentos internacionais de direitos humanos
ratificados pelo Estado brasileiro, mas, fundamentalmente, a tratar as mulheres
brasileiras como verdadeiras cidadãs, conscientes de suas obrigações e direitos,
conferindo-lhes o papel que sempre mereceram na História e que, por ignorância
ou indignidade, teimamos em lhes negar.
130

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