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Universidade Jean Piaget Angola

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Monografia

O Poder Constituinte Originário e Seus Limites Frente aos


Direitos Fundamentais do Homem

Discente: Kizua António José Nunes

Licenciatura: Direito

Opção: Jurídico-Forense

Orientador: Dr. Altino Marcelino Kavimbi

Viana, Março de 2014


Universidade Jean Piaget Angola
Faculdade de Ciências Socias e Humanas

Monografia

O Poder Constituinte Originário e Seus Limites Frente aos


Direitos Fundamentais do Homem.

Discente: Kizua António José Nunes

Licenciatura: Direito

Opção: Jurídico-Forense

Monografia elaborada na Universidade Jean Piaget de Luanda no período entre, Julho


de 2013 e Março de 2014.
EPÍGRAFE

«E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará»

“João, 8-32”
DEDICATÓRIA

Começaria por dedicar esta obra aos meus pais, Pedro Nunes e Nsimba Maria
José, que sempre souberam dignar-se aos seus lugares de educadores e encorajando-me
sempre a trilhar na formação.

Aos meus irmãos e sobrinhos, a minha família em geral e em especial a minha


noiva Mansanga Paulo, pela paciência que sempre tiveram em certos momentos de
maior indigência, mesmo quando sentiram-se desprovidos do meu carinho e calor, mas
que sempre souberam gerir a situação, no sentido de encorajarem-me a continuar com
os estudos.

Analogamente dedico aos, Dr. Altino Marcelino Kavimbi, PhD. Aníbal Simões,
pelo grau de maior responsabilidade assumida, nas condições difíceis, souberam ajudar-
me a superar todos os obstáculos nesta inacessível caminhada, bem como a todos que
directa ou indirectamente estiveram ao meu lado em todos momentos.

Por último dedico, em especial memoria ao Msc. Camilo Gomes Buange e ao


Dr. José Inácio Casimiro Cabonge, por tudo que puderam transmitir-nos naquilo que foi
os seus conhecimentos, que até agora deixam saudades as suas aulas.
AGRADECIMENTOS

Com eloquente consideração e maior valia, quero antes agradecer a Deus Pai
Todo Poderoso que sempre garantiu segundo a sua graça, a disposição necessária e
suficiente para que hoje, tudo quanto desejei e pedi se tornasse uma realidade.

Em segundo plano, os meus agradecimentos são extensivos a toda minha


família, em especial a família «José Nunes», e como não poderia esquecer-me aos
Professores: Dr. Altino Kavimbi, PhD. Aníbal Simões, que com muito sacrifício
souberam dar a sábia orientação nos meus estudos que confirmam o essencial da minha
afirmação. Tratando-se de um período de indeterminações com imensas dificuldades e,
finalmente de alegria pela vitória. Com o mesmo espírito são extensivos aos Professores
Dr. Luciano Tânio, Dr. Emiliano Zaila, Dr. David Rocha, Dr. Edgar Escola, Dr. Ângelo
Sapiñala, Dr. António Gaspar, Dr. Júlio de Carvalho, Dr. Elisa Silicavissa e Dr. Maria
Makuta, e tantos que aqui não foram mencionados, mas que muito auxiliaram os meus
estudos.

Minha afeição e reconhecimento aos queridos irmãos Pedro Nunes, Dominigas


Nunes, Ntalani Lukombo, bem como ao Pe. João Kiala e ao Pe. Massidivinga “Ya
Massi”, que sempre me deram força em determinados momentos difíceis.

Foi bom e gratificante contar com o encorajamento e apoio de alguns amigos,


entre eles não podia deixar de mencionar as contribuições; Adérito Quitoco, Hélder
Fulano, Manuel Teca, Claúdia Elizabeth, Miguel Sebastião, Airton Januário Joelma
Domingos, Miguel Teca e Gabriel Ambrósio que muito me excitaram.

Os meus agradecimentos à todos os colegas, pelo espírito de ajuda e


reciprocidade intelectual e pelo apoio material prestado, bem como à todos que comigo
dividiram a mesma experiência e garantiram igualmente as condições necessárias para a
elaboração e apresentação deste trabalho.

Como não podia deixar de ser, maior consideração vai para a direcção da
Universidade Jean Piaget, bem como para todos seus dirigentes desde a sua instituição
até ao momento, pelos feitos produzidos nesta parte do território nacional.
ÍNDICE
EPÍGRAFE
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10
CAPÍTULO I
O PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E O CONSTITUCIONALISMO
MODERNO
1. A Génese do poder constituinte ........................................................................... 13
2. Noção de Poder Constituinte ............................................................................... 17
3. O Poder constituinte material e formal ................................................................ 21
4. Natureza Jurídica do poder constituinte originário.............................................. 25
5. Características do poder constituinte originário .................................................. 29
6. Titularidade do poder constituinte ....................................................................... 32
7. Formas de manifestação do poder constituinte.................................................... 36
8. A Ciência Jurídica e O poder Constituinte .......................................................... 38
CAPÍTULO II
A PROBLEMÁTICA ACTUAL DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO
FRENTE AOS DIREITOS HUMANOS
1. Evolução Histórica dos Direitos Humanos .......................................................... 42
2. A Constitucionalização dos direito humanos ...................................................... 46
3. Conceito de Direitos Humanos ............................................................................ 48
4. Distinção dos Direitos Humanos e Direitos Fundamentais ................................. 50
5. Limitações ao poder constituinte originário ........................................................ 54
6. Os Direitos Humanos como limites ao Poder Constituinte Originário ............... 58
7. Os Tratados de Direitos Humanos Como Limites ao Poder Constituinte
Originário .................................................................................................................... 60
Conclusão ....................................................................................................................... 65
Recomendações .............................................................................................................. 67
Referências Bibliográficas .............................................................................................. 68
SIGLÁRIO

EUA – Estados Unidos da América

A.C – Antes de Cristo

CRA – Constituição da República de Angola

Art – Artigo

DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos

DDHC – Declaração do Direitos dos Homens e do Cidadão

ONU – Organizações das Nações Unidas

DUDP – Declaração Universal dos Direitos dos Povos


RESUMO

Este trabalho surge como uma consequência de reflexão, sobre a questão do


poder constituinte, o qual entende-se maioritariamente como o poder de elaborar as
regras básicas de convivência de determinado grupo social, que sempre existiu nos
diferentes agrupamentos humanos. As origens da doutrina do poder constituinte
remontam a idade moderna, a partir do séc. XVII e XVIII, quando surgem as doutrinas
do contrato social que vieram influenciar a própria noção de Estado. Nos nossos estudos
apresentamos três características predominantes ao poder constituinte originário que
são: inicial, incondicional, Ilimitado. Essas características, actualmente não encontra
unanimidade, razão pelo qual hoje falar-se em limites sobre o poder constituinte
originário quanto a dignidade da pessoa humana. No segundo capítulo fizemos
referência na problemática actual do poder constituinte frente aos direitos humanos,
como sendo o meio de limitação do poder constituinte, pelo facto da ideia do poder
constituinte estar preso à, determinados princípios mundialmente aceites pela
humanidade, ressalvando as sociedades de superioridade dos direitos frente aos Estados.
A ideia de direitos humanos é muito antigo na história, começa-se a relatar sobre direito
comum aos homens na antiguidade pelo código de Hamurabi na babilónia. Mas foi em
consequência das guerras mundiais que surge a DUDH, aprovada aos 10 de Dezembro
de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, foi o mais importante e complexo
documento concebido a favor da humanidade, que reconheceu solenemente a dignidade
da pessoa humana. Quanto ao poder constituinte ser ilimitado essa caracterização, não
se revela de todo pacífica razão pelo qual, distingue-se três categorias de limites
matérias ao poder constituinte originário: transcendentes, imanentes e heterónimos. Esta
última categoria é o foco do nosso estudo pelo facto deste, ser proveniente de regras de
direito internacional para os de direito interno.

Palavras – Chaves: Poder Constituinte Originário, Limites, e Direitos


Fundamentais do Homem.
ABSTRACT

This work appears as a reflection consequence, on the subject of the constituent


power, which understands each other in most as the power of elaborating the basic rules
of coexistence certain social group, that it always existed in the different human
groupings. The origins of the doctrine of the constituent power raise the modern age,
starting from the séc. XVII and XVIII, when the doctrines of the social contract that
came to influence the own notion of State appear. In our studies we presented three
predominant characteristics to the original constituent power that you/they are: initial,
unconditional, Limitless. Those characteristics, now he/she doesn't find unanimity,
reason for which today to speak in limits about the original constituent power as the
human person's dignity. In the second chapter we made reference in the current problem
of the power constituent front to the human rights, as being the middle of limitation of
the constituent power, for the facto of the idea of the constituent power to be arrested to
the, certain beginnings globally acceptances for the humanity, excepting the superiority
societies of the rights front to States. The idea of human rights is very old in the history,
it is begun to tell on right common to the men in the antiquity for the code of Hamurabi
in the babilónia. But it was as a consequence of the world wars that DUDH appears,
approved to the December 10, 1948, for the General meeting of the United Nations, it
was the most important and compound document become pregnant in favor of the
humanity, that recognized the human person's dignity solemnly. As for the constituent
power to be limitless that characterization, it is not revealed of every peaceful reason for
which, he/she stands out three categories of limits matters to the original constituent
power: transcendent, immanent and. This last category is the focus of our study for the
fact of this, to be originating from rules of law international for the one of internal right.

Words - Key: Original Constituent power, Limits, and Fundamental Rights of


the Man.
INTRODUÇÃO

Promovendo a discussão quanto ao aspecto do Poder Constituinte Originário e


seus limites frente aos direitos fundamentais do homem, no presente trabalho, iremos
apresentar situações limitadoras ao Poder Soberano dos povos de constituírem-se, com
ênfase na limitação decorrente dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos,
promovendo a análise da titularidade desse Poder, a adequação à vontade do povo, e o
respeito às normas e princípios fundamentais.

Atendendo a produção doutrinária ser escassa, este trabalho procura justificar a


necessidade, da valorização dos direitos fundamentais da pessoa humana frente à
institucionalização dos direitos e a relativização da soberania popular, dessa forma,
conduzindo a vontade do povo a um patamar superior ao do Estado.

Sendo que essa necessidade decorre do facto de que os Estados


Contemporâneos, a título de protecção à vontade da população, tornaram-se quase
insignificante a participação da sociedade nos actos governamentais. E Os
representantes do povo que deveriam se guiar no exercício de suas funções, pelas
necessidades da sociedade, usurpam desse poder a eles concedido e agem de forma
egoísta, sem se preocupar com a busca do bem comum e com desatenção para com os
problemas da sociedade.

Discorrendo a questão da limitação do Poder Constituinte Originária, com ênfase


na limitação decorrente dos Tratados Internacionais que versam sobre Direitos
Humanos, procuraremos mostrar neste trabalho a importância das normas internacionais
bem como a sua efectivação na democracia dos Estados por meio de pesquisa, trazendo
vários posicionamentos de doutrinadores constitucionais.

Este trabalho vai abordar os aspectos pontuais acerca do poder constituinte originário. O
presente tema é tratado pela doutrina nacional de forma ortodoxa, levando à
caracterização deste poder como inicial, incondicionado e ilimitado. Entretanto, o que
se pretende demonstrar é que o princípio democrático não pode ser absoluto, por mais
nobre que seja sua fonte.

10
1. OBJECTIVOS
1.1 Objectivo Geral
O presente estudo tem como objectivo geral estudar e compreender a questão
ilimitadora do poder constituinte originário, buscar seu enquadramento nos dias de hoje,
apresentar as suas características e, poder restringi-lo com a dignidade da pessoa
humana.

1.2 Objectivos Específicos


(1) Levar ao conhecimento de todos que, o poder constituinte originário é
susceptível de limitação na criação das normas que regerem um determinado
Estado;
(2) Dar a conhecer a quem compete a titularidade desse poder;
(3) Como é que o poder constituinte originário encontra limites nos direitos
humanos, e como pode ser entendida esta questão na ciência jurídica.
2. Actualidade e Importância Do Estudo
No que tange ao assunto em estudo é de salientar que, é de extrema importância
por este dedicar-se a descrever e discutir as peculiaridades das normas que conduz todo
ordenamento jurídico de um determinado Estado, apresentando a capacidade de gerar
um ordenamento hierarquicamente superior.

É de ressaltar ainda, que o assunto em análise tem uma grande pertinência, pelo
facto de todos Estados serem regidos por uma constituição criada por si mesmo através
do poder constituinte, pois, é dele que surge a carta magna de um Estado o qual guia e
limita a produção das normas, além do mais o assunto é dos mais estudados nas
disciplinas de teoria da constituição inerente aos estudantes do curso de direito.

3. Metodologia
Quanto a metodologia, o nosso estudo obedeceu a pesquisa exploratória visto
que o objectivo é o de proporcionar maior familiaridade com o problema em análise,
com vista a torná-la mas explícito. O procedimento técnico implementado neste trabalho
foi o método de pesquisa bibliográfica e documental. Quanto ao método de abordagem
utilizado neste trabalho foi o método de abordagem dedutivo. E por último, quanto ao
método de procedimento, usamos o método monográfico e o método comparativo.

11
CAPÍTULO I

O PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E O


CONSTITUCIONALISMO MODERNO

12
1. A Génese do poder constituinte
O poder constituinte é uma ideia que emergiu na cultura ocidental no século
XVII e XVIII, associada entre si, na saliência da ideologia revolucionária depois
denominada liberalismo, que insurgiu contra o absolutismo real para defender a
liberdade individual. As teorias antigas já diferenciavam as leis de organização política
das normas comuns, como regista Aristóteles. Na prática dos gregos, havia até uma
acção jurídico-política, a (graphé paranomon) para impugnar a legislação que
afrontasse as normas fundamentais da pólis. Foi com este fundamento que levou a
ideologia medieval à explicar a sociedade política dois pactos tácitos:
 A sujeição (pactum subjectionis), pelo qual todos se sujeitavam a um
senhor, depois de terem entrado em sociedade;
 Por outro a união (pactum unionis).

A doutrina das leis fundamentais do Reino tem outro aspecto interessante, que já
nos leva relativamente próximos da doutrina do Poder Constituinte. É que, embora os
legisladores franceses, na sua maioria, ensinassem que aquelas leis fundamentais eram
imutáveis, houve entre eles quem ensinasse que tais leis eram mutáveis, mas só
poderiam ser modificadas por um processo especial, isto é, o monarca não poderia
alterar as leis fundamentais do Reino, que seriam sempre superiores a ele, mas a reunião
dos Estados Gerais (os três Estados):
 Clero;
 Nobreza; e
 Povo – poderia, ela sim, modificá-las.

As portas da história foram abertas para a ideia de poder constituinte pelo


contratualismo. Dominando o pensamento político nos séculos XVII e XVIII, o
contratualismo partiu da hipótese de um contrato social de todos os indivíduos com
todos os indivíduos, para explicar e justificar com certas características a constituição da
sociedade política geral. Emmanuel Joseph Sieyés é, em geral, considerado o
formulador mais consistente da teoria do poder constituinte. Este, porém, existiu desde
que os homens decidiram se organizar politicamente, sendo sua titularidade cambiada
de Deus para o povo, havendo na maioria dos casos a intermediação de um
representante para execução deste poder.

13
Afirma Vanossi (1975. p. 13), que o abade francês adicionou à teoria da
separação de poderes, a peça que lhe faltava, “a concepção de um poder constituinte
como autor e responsável pela formação e distribuição dos poderes constituídos”.

O contexto histórico dessa criação foi Francesa no período imediatamente


anterior à Revolução de 1789. Para Sieyés (1997. p. 128), “há a ideia de que o poder
constituinte originário dever-se-ia manifestar através de uma representação
extraordinária”. Aqui o autor não gostaria que esses representantes tivessem, além disso,
poder para se reunir, em seguida em assembleia ordinária, de acordo com a Constituição
que eles próprios fixassem com qualificação extraordinária.

Acreditava-se que, em vez de trabalhar unicamente pelo interesse nacional, eles


dariam mais atenção ao interesse do próprio corpo que iriam formar. Infelizmente, a
teoria de Sieyés (ibidem p. 117), acerca do poder constituinte foi abraçada pela doutrina
de forma irreflectida e sem a necessária contextualização. Segundo ele, “a nação existe
antes de tudo, ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. Antes
dela e acima dela só existe o direito natural”.

Nestes passos, Touchard (apud Vanossi, op.cit, p. 11), assevera que Sieyés,
não atribuiu nenhuma importância à história.

Entende-se que a particularidade na França pré-revolucionária era a luta contra o


absolutismo e os privilégios dos dois primeiros estados nobreza e clero, contra o
terceiro que seria formado pelo povo, impondo a necessidade de ruptura radical com a
antiga ordem e criação de outra com novos fundamentos, sem qualquer remissão ao
passado. Ora, mas não se pode esquecer que a revolução francesa foi apenas uma de
várias experiências constituintes.

Em livros anteriores, Canotilho (2003. p. 64), diz que “a problemática do poder


constituinte era abordada tendo em vista o chamado paradigma do “pouvoir
constituant” da Revolução Francesa”. Hoje, deve reconhecer-se que este ponto de
partida era redutor porque esquecia dois outros momentos de gestação das normas
básicas: o constitucionalismo inglês e o constitucionalismo americano.

14
Transmutado em Nação, foi o povo a justificativa da Revolução Francesa. O
Terceiro Estado aclamado por Sieyés, (op. cit. p.120), é absoluto e ilimitado. “Qualquer
que seja a forma que a nação quiser, basta que ela queira; todas as formas são boas, e
sua vontade é sempre a lei suprema”.

Conforme já apontado, o direito natural seria o único limite a tal poder


constituinte. Nesta senda, interessa a observação de Ymaz (apud Vanossi, op. cit. p.
23), de que “é possível o desaparecimento dos limites actuantes sobre tal poder quando
uma determinada convicção geral sobre o direito natural se desconstitui, podendo, pois,
o poder constituinte do povo ser utilizado tanto para o bem quanto para o mal”.

Ao definir o Terceiro Estado, Sieyés (op. cit, p.72) garante que “é preciso
entender o Terceiro Estado como o conjunto dos cidadãos que pertencem à ordem
comum”. Tudo o que é privilegiado pela lei, de qualquer forma, sai da ordem comum,
constitui uma excepção à lei comum e, consequentemente, não pertence ao Terceiro
Estado. De acordo com Sampaio (2004, p. 189), “nem só de pobres era composto o
Terceiro Estado, mas também da burguesia e classe média”, concluindo que o terceiro
factor era político.

Também Vieira (1999. p. 44-46), afirma que “o Terceiro Estado referia-se a


produtores, comerciantes e profissionais liberais. E só este grupo teria legitimidade para
encarnar o conceito de nação”. O que culminou no facto de o terceiro Estado se
autoproclamar uma Assembleia Nacional Constituinte, com vista a redigir uma
Constituição moderna para a França. Elster (1993. p. 552), ressalta que “Sieyès fazia
uma distinção entre cidadãos passivos e activos. Mulheres, crianças, e outros que não
contribuíam para a manutenção pública não deveriam ter o direito de influenciar sua
política”.

Mais uma vez, percebe-se que o conceito de nação do abade era reducionista. Ao
considerar a ordem nobre um povo à parte da grande nação, o autor pretendeu ser
revolucionário. A mesma acusação, porém, que fez à nobreza, sobre ser esta realmente
imperium, pode ser feita à sua classificação da elite sobre a cidadania. Evidência do não
enquadramento do povo real no conceito de nação foi à insurgência de vários
constituintes contra a adopção de uma carta de direitos antes que a constituição francesa

15
fosse integralmente escrita. O motivo de tal posicionamento seria o medo de conceder
direitos em excesso, ao invés de conceder poucos.

Cremos que a conveniência da exclusão é uma explicação mais plausível.


Utilizaremos as próprias palavras de Sieyés (op.cit. p. 108), para manifestar a
parcialidade da selecção do critério de voto feito por ele. “Os homens, em geral, gostam
muito de igualar tudo o que lhes é superior, fazem-se, então, filósofos. Só começam a
odiar esta palavra no momento em que percebem que seus inferiores usam os mesmos
princípios”.

Negri (2002. p. 308), aponta o caráter conservador da proposta de Sieyès,


afirmando que “esse pretendia que a sociedade política moderna fosse construída de
modo a representar as estruturas económicas e sociais da França, sem agredi-las”. Trata-
se de representação restrita, O corpo eleitoral é desenhado para ser uma corporação
aberta de proprietários e organizar-se como sistema complexo que fortalece os critérios
de selecção censitários.

Trata-se, enfim, conforme descreve Negrini, de se configurar a soberania por


médias aritméticas, concluindo que o pensamento de Sieyès está voltado inteiramente ao
estabelecimento de novos limites e obstáculos ao poder constituinte. Vale registar,
ainda, que a noção de poder constituinte exposta pelo abade é uma das noções ao redor
das quais se desenvolveu posteriormente o constitucionalismo liberal. E, consoante
anota Vanossi, tal conexão não é meramente casual. Razões por quais, há autores que
ainda hoje defendem uma fundamentação teológica dos direitos humanos, posição esta
que será abordada neste trabalho.

E não só, ao apontar as formas primitivas do Poder Constituinte, acentua-se que


a lei fundamental ou Constituição, destinada a reger a vida de um grupo social
politicamente organizado, esta ideia surge nos Estados teocráticos. A lei fundamental é
sempre de carácter religioso. Nesses Estados a soberania não residia concretamente no
rei. Esta é o executor de vontade superior. Essa origem histórica ocasionou a origem
lógica do poder constituinte. A necessidade lógica atendeu à necessidade histórica. No
momento revolucionário em que foi necessário teorizar um poder que aparelhasse e
justificasse a acção dos representantes do terceiro estado contra o absolutismo do rei, o
poder constituinte teve sua existência deduzida racionalmente dos poderes constituídos.

16
2. Noção de Poder Constituinte

O aspecto que marca maior preocupação nos nossos estudos é o problema do


poder constituinte, que equivale à capacidade de escolher entre um ou outro rumo,
nessas circunstâncias. E nele consiste o conteúdo essencial da soberania na ordem
jurídica interna, porquanto soberania significa faculdade originária de livre regência da
comunidade política mediante a instituição de um poder e a definição do seu estatuto
jurídico.

O Poder Constituinte é aquele que põe em vigor, cria, ou mesmo constitui


normas jurídicas de valor constitucional. Com efeito, por ocuparem estas o topo da
ordenação jurídica, a sua criação suscita caminhos próprios, uma vez que as normas da
formação do direito, quais sejam, aqueles ditados pela própria ordem jurídica, não são
utilizáveis quando se trata de elaborar a própria Constituição.

Sendo assim o poder constituinte pode ser definida como, o poder de elaborar as
normas constitucionais, a faculdade de um povo definir as grandes linhas do seu futuro
colectivo através da feitura da constituição. Esta definição abarca dois sentidos no que
toca ao poder constituinte, isto é, no sentido amplo o poder constituinte abrange a
produção de todas as normas constitucionais, incluíndo as de origem consuetudinárias.
Ao passo que, em sentido estrito, traduz-se apenas na elaboração das normas
constitucionais escritas que são a trave mestra do ordenamento jurídico.

De acordo com os estudos constitucionais, temos visto que o conceito de poder


constituinte não tem sido tão unânime na maior parte da doutrina. Na perspectiva de
Pimenta (2007, p. 54) conceitua “o poder constituinte como um poder social que se
estabelece por meio da elaboração de uma constituição as bases politicas, e normativas
do Estado, ou seja, é o poder de constituir o próprio Estado”.

Nesta senda, o poder constituinte é a elaboração e promulgação da norma


criadora e regulamentadora do Estado, ou seja, a ideia apresentada acima é a de que este
poder passa a ser um poder que é incumbido à sociedade para que estes possam conferir
os seus poderes à uma comissão constituinte para estes criarem normas que vão regular
o Estado, dando-lhes a prerrogativa de nela implementarem alterações, reformando o
texto constitucional de modo a que este possa acompanhar a evolução da própria
sociedade.

17
Como já se vez referência acima sobre o conceito de poder constituinte, que este
parece-nos mais ou menos convergente em termos doutrinários, e é de salientar que,
Pimenta apresenta a sua conceituação com mais ênfase ao poder social. Já para Franco
(2007, p. 78) define “o poder constituinte como o poder de produção das normas
constitucionais por meio do processo de elaboração ou reforma da constituição, com o
fim de atribuir legitimidade ao ordenamento jurídico do Estado”.

O conceito apresentado por Franco foge o sentido amplo do conceito de poder


constituinte, visto que este reduziu-se apenas no poder de produção das normas
constitucionais com o fim de garantir a legitimidade jurídica do Estado, afastando o
poder social, este conceito parece-nos mais restrito. Esta ideia foi apoiada por Moraes
(2003, p. 54) que afirma “o poder constituinte como a manifestação soberana da
suprema vontade política de um povo social e igualmente organizado”.

Todavia, esta posição adoptada pelo autor aponta a contemporaneidade da ideia


de poder constituinte com a do surgimento de constituições escritas, visando à limitação
do poder estatal e a preservação dos direitos e garantias individuais. Esta definição
apresentada por Moraes veio dar a unanimidade no conceito apresentado por Pimenta
que dá maior ênfase ao poder social, no qual Moraes transfere o poder social na vontade
política de um povo social e juridicamente organizado.

Poulson (2009, p.57) realça, “entende-se por poder constituinte a faculdade que
determinada força política (povo ou determinado grupo organizado de pessoas) tem de
aprovar, rever ou alterar a constituição”.

Para o efeito, Poulson apresenta-nos os elementos ínsitos neste conceito os quais


destacaremos:

 Faculdade – o poder constituinte é uma faculdade, ou como nos ensina


Canotilho, é uma “força ou autoridade” política que está em condições
de, numa determinada situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma
constituição entendida como lei fundamental da comunidade política;
 Determinada força política – este elemento vem dar relevância ao
sujeito ou titular do poder constituinte o qual desencadea ao povo, ou
seja a chamada “grandeza política” com força política e legitimidade
para mobilizar organizadamente o povo no sentido de instituir uma lei

18
fundamental. Nesta mesma esteira para Gomes Canotilho, o titular do
poder constituinte só pode ser o povo, que na actualidade, se entende
como uma grandeza pluralística formada por indivíduos, associações,
grupos, igrejas, comunidades, personalidades, instituições, veiculadores,
ideias, crenças e valores, plurais, convergentes ou conflituantes.
 Aprovar, rever ou alterar a constituição – o poder constituinte visa
aprovar uma constituição ex novo rever ou alterar uma constituição já
existente.

Ainda sobre o assunto em análise o professor Gouveia (2007, p. 551 ss),


adverte-nos que:

“O poder constituinte que singelamente consiste na


elaboração de uma nova constituição tem fases e âmbitos
diversos, em razão das circunstâncias concretas que
rodeiam o seu nascimento, podendo ser um poder
constituinte inicial, quando se exerceu pela primeira vez,
ou um poder constituinte posterior, nestes casos é porque
já teve ocasião de exercer anteriormente”.

O conceito sobre o poder constituinte surge como um poder extraordinário que


objectiva construir e desconstruir uma ordem jurídica anterior, e ao mesmo tempo
dispositiva uma ordem constitucional. Para Canotilho (ibidem, p. 63) afirma:

“o poder constituinte se revela sempre como uma questão


de poder de força ou de autoridade política que está em
condições de numa determinada situação concreta criar,
garantir e eliminar uma constituição entendida como lei
fundamental da comunidade política.”

A preocupação que Canotilho nos apresenta, refere-se à imposição de limites


pelo poder constituinte, pelo facto de este ser um poder inicial, autónomo, incondicional
e permanente, porque inova sem condicionantes na ordem jurídica, restringindo como
bem queira a possibilidade de mudança pelo povo.

Nesta senda o poder constituinte equivale à capacidade de escolher entre um ou


outro rumo, nessas circunstâncias. E nele consiste o conteúdo essencial da soberania na

19
ordem interna, porquanto soberania significa faculdade originária de livre regência da
comunidade política mediante a instituição de um poder e a definição do seu estatuto
jurídico.

Em síntese, o poder constituinte é aquele poder ao qual é incumbido a faculdade


de criar ou elaborar uma constituição. Sendo assim o poder constituinte é um poder de
direito que actualmente encontra limites no direito positivo no tocante a questão dos
direitos humanos, bem como no direito natural existente antes da nação e acima dela.
Além disso, o poder constituinte é inalienável, permanente e incondicionado, a nação
não pode perder o direito de querer e de mudar a sua vontade, não está submetida à
constituição por ela criada nem as formas constitucionais, seu poder é permanente,
mesmo depois de realizada a sua obra.

É por estas razões que, o poder constituinte originário é lógico e


cronologicamente anterior à constituição ou é o poder de criar uma constituição para um
Estado que nunca a teve, ou, já não a tem em virtude de uma desagregação social. É o
caso de alguns autores dizerem, só é originário quando se funda um Estado nos
seguintes moldes:
 Quando num determinado território se cria um Estado;
 Quando vários Estados se unem numa nação federal; e
 Por último, quando em consequência de uma guerra ou de uma revolução
um Estado novo substitui o Estado anterior.

Numa mesma abordagem a linguagem poder constituinte é a busca do novo, da


emancipação da sociedade em países periféricos, que passa a ser condição de
possiblidade desse novo que, na tradição engendrada pela noção de Estado Democrático
de Direito, o constitucionalismo já não é, mas de índole liberal, mas sim, um
constitucionalismo produto de um constructo que estabelece, em um novo modo de ser
instituído, pelo pacto constituinte, os limites do mundo jurídico social.

20
3. O Poder constituinte material e formal

O poder constituinte reveste duas modalidades, que se correlacionam com a


acepção da Constituição em sentido material segundo o qual, todo o Estado, pelo facto
de o ser, tem, ab initio, de forma explícita ou implícita, um conjunto de regras
superiores balizadoras da organização e do exercício do poder político, ou seja, uma
Constituição e da Constituição em sentido formal (como o conjunto de normas
superiores aprovadas pelo órgão legislativo competente para reger no Estado): poder
constituinte material e poder constituinte formal.

O poder constituinte material, define-se como o poder de auto-conformação do


Estado segundo certa ideia de Direito. Miranda (2002, p. 517, 519), diz que “se erige,
historicamente, como triunfante numa comunidade política que, ao adoptar um novo
sistema constitucional, fixa um sentido para a acção do seu poder e assume um novo
destino”.

Para Silva (2000, p. 82), “o poder constituinte material é, lógico e


cronologicamente, anterior à Constituição formal, pelo que não lhe está vinculado,
traduzindo-se na faculdade de dotar o Estado ex-novo de uma Constituição”. Entretanto,
não é todos os dias que uma comunidade política adopta um novo sistema
constitucional, mediante o exercício do poder constituinte material. Tal acontece em
momentos de viragem histórica, em épocas de crise, em ocasiões privilegiadas
irrepetíveis em que é possível ou imperativo escolher. Constituem exemplos peculiares
desses momentos de viragem histórica a proclamação de um novo Estado e a revolução.
No entanto, podem engendrar fenómenos constituintes uma mudança política na
continuidade, uma reforma política stricto sensu ou uma transição constitucional.

De acordo com Miranda, (op. cit, p.528), para que se surja o poder constituinte
material “deve haver, pois, um contexto político de ruptura com a situação política ou o
regime político até então vigente, com a respectiva tradução numa nova ordem
constitucional”. Neste caso, a entidade determinante do conteúdo essencial dessa
Constituição é a entidade (força política ou social, movimento militar ou popular,
monarca, órgão, grupo, etc.) que influencia a mudança política.

21
O poder constituinte material exprime-se, então, nos contextos em que um
Estado surge de novo, ou é restaurado, ou sofre uma transformação radical da sua
estrutura, aparecendo, assim, dotado de uma Constituição material a que se seguirá uma
Constituição formal ou de uma Constituição material já acompanhada da Constituição
formal.

Mantendo ainda a posição de Miranda (ibidem, p.532), “uma vez estabelecida


uma nova ideia de Direito, ou seja, exercido o poder constituinte material, segue-se a
respectiva formalização, que se traduz ou culmina no acto da decretação da Constituição
formal”. O que corresponderá com o acto constituinte stricto sensu, mediante o
exercício do poder constituinte formal pelo órgão competente (assembleia constituinte
ou com poderes constituintes).

O Poder constituinte formal é, assim, o poder outorgado a um órgão de aprovar a


Constituição formal, vista como um conjunto de normas jurídicas superiores escritas
pelas quais se rege o Estado e às quais se subordinam as demais normas do
ordenamento jurídico-estadual. Nas palavras de Silva (op. cit, p. 85), “o poder
constituinte formal é o poder de elaborar as normas constitucionais escritas, de criar um
complexo normativo ao qual se atribui a força de Constituição”.

Todavia, se, como vimos, Miranda admite a possibilidade de o poder


constituinte material se fazer acompanhar do poder constituinte formal, coincidindo
praticamente os momentos de adopção da Constituição material e da Constituição
formal, a sequenciação não é necessariamente imediata, ou seja, a Constituição formal,
aprovada pelo órgão legislativo competente, pode não surgir em conexão imediata com
a Constituição material decorrente da instauração da nova ideia de Direito na
comunidade política.

Miranda (idem, p. 532-533), refere-se que, “é muito mais frequente abrir-se um


processo, variavelmente complexo e longo, tendente à sua preparação e à redacção do
respectivo texto. E esse processo não só carece de ser regulamentado como em caso de
revolução, implica a necessidade de organização provisória do Estado até à entrada em
funcionamento dos órgãos a instituir pela Constituição formal”.

22
A aprovação da Constituição formal culmina, pois, com um processo de
preparação e elaboração, que pode ser mais ou menos longo, envolvendo, por vezes,
negociações políticas e consultas ao povo, nomeadamente sob a forma de referendo. Até
à aprovação da Constituição formal, com a efectivação do poder constituinte derivado
ou formal, existe, pois, um período em que, a par da Constituição em sentido material,
pode haver normas constitucionais provisórias, de valor reforçado em relação às demais
normas do ordenamento jurídico.

Conforme nos elucida Miranda (Ibidem, p. 533-534):

“Chama-se pré-Constituição, Constituição provisória ou,


sob outra óptica, Constituição revolucionária, ao conjunto
de normas com a dupla finalidade de definição do regime
de elaboração e aprovação da Constituição formal e de
estruturação do poder político no interregno
constitucional, a que se acrescenta a função de eliminação
ou erradicação de resquícios do antigo regime.
Contrapõe-se à Constituição definitiva ou, de duração
indefinida para o futuro como pretende ser a Constituição
produto final do processo constituinte”.

No exercício do poder constituinte formal, podem verificar-se três tipos de actos


constituintes, segundo Miranda (op. Cit, p. 535-537):

1) Actos constituintes unilaterais singulares, que podem ocorrer em contextos


de legitimidade monárquica ou democrática, com ou sem pluralismo, de forma
provisória ou não, como são, historicamente, os casos de:

I) Outorga de uma Carta Constitucional por um monarca (França, 1814; Baviera,


1819; Portugal, 1826, etc.);

II) Decreto presidencial ou de um órgão executivo (Brasil, 1937);

III) Actos de autoridades revolucionárias ou constitutivas do Estado (Angola e


Moçambique, em 1975);

23
IV) Aprovação por assembleia representativa ordinária ou comum dotada de
poder para o efeito (URSS, 1977);

V) Aprovação por assembleia formada especificamente, mas não


necessariamente apenas, para o efeito, denominada assembleia constituinte ou
convenção (França, a partir de 1791, até 1946);

VI) Aprovação por assembleia eleita simultaneamente como assembleia


constituinte e como assembleia ordinária (Brasil, 1988);

2) Actos constituintes unilaterais plurais, assentes na legitimidade


democrática, com mais ou menos pluralismo, combinando, de certo modo, institutos
representativos e de democracia directa ou indirecta, como são os casos que se seguem:

I) Aprovação por referendo de um ou vários grandes princípios ou opções


constitucionais, com base nos quais é elaborada e aprovada a Constituição, podendo
esse referendo ser prévio ou simultâneo com a eleição da assembleia constituinte, como
aconteceu na Itália, em 1946, e na Grécia, em 1974;

II) Definição por uma assembleia representativa ordinária dos grandes


princípios, elaboração do projecto de Constituição pelo Governo e aprovação final por
referendo, como ocorreu em França, em 1958;

III) Elaboração por uma assembleia constituinte seguida de referendo, como na


França, em 1946, e na Espanha, em 1978;

IV) Elaboração por órgão provindo da Constituição anterior, com subsequente


aprovação popular (França, 1799, 1801 e 1804);

V) Elaboração por autoridade revolucionária ou órgão legitimado pela


revolução, seguida de referendo (Portugal, 1933; Cuba, 1976; Chile, 1980; Turquia,
1982);

3) Actos constituintes bilaterais ou plurilaterais, em que se aprovam as


Constituições pactícias, ou seja, Constituições que decorrem de um pacto ou contrato,
nomeadamente entre a assembleia ou povo e o rei ou entre o órgão do poder federal e os
estados membros na União. Tais são os casos de:
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I) Elaboração e aprovação da Constituição por assembleia representativa, com
sujeição a sanção do monarca (Noruega, 1814; França, 1830; Portugal, 1838);

II) Aprovação da Constituição por assembleia representativa, seguida de


ratificação pelos Estados componentes da União (EUA, 1787).

4. Natureza Jurídica do poder constituinte originário

Trata-se aqui de indagar se o poder constituinte é poder de facto ou de direito.


Essa indagação há de partir da tipicidade, afirmando que o poder constituinte típico é o
originário, visto que, quando se origina nova constituição, é que se pode falar
genuinamente em poder constituinte. Mas, acerca da natureza do poder constituinte
originário, as opiniões variam em consonância com a posição filosófica do positivismo
jurídico ou jusnaturalismo.

No tocante a esta questão do poder constituinte originário, este é bastante


controvertida. Para os autores, de formação jusnaturalista defendem o poder constituinte
como um poder de direito. Para os positivistas, em regra preconizam o poder
constituinte como um poder de facto. De acordo com a primeira tese (a corrente jus
naturalista), o poder constituinte originário é um poder de direito, que tem por
fundamento o Direito natural, no qual estes destacam que este é anterior e superior ao
Direito do Estado e deste Direito natural decorre a liberdade de o homem estabelecer as
instituições por que há de ser governado.

Para os positivistas o Poder Constituinte é pré-jurídico, ou seja, é uma


manifestação de força ou uma energia social que não é encontrada no mundo das
normas positivadas. Já os adeptos da doutrina jus naturalista, inaugurada
constitucionalmente por Sieyès, ensinam que há um direito superior, decorrente da
própria natureza humana, além do direito positivo, que precede o próprio Estado.

O aplaudido constitucionalista Bastos (1999, p. 98), prega que “descabe


qualquer indagação a respeito de um Poder Constituinte, nos lides da ciência positiva do
direito, pois, se trata como vimos de um conceito jurídico”.

O conceituado constitucionalista supra citado, considera que a expressão jurídica


máxima aqui é a constituição, porque para ele o poder constituinte só pode ser um poder

25
de facto e não jurídico, este defende o poder constituinte como um poder de facto visto
que surge através de uma imposição político social.

Desta feita a natureza do poder constituinte, continua a ser uma questão que a
doutrina constitucional visa alcançar, para melhor abordagem do assunto, grosso modo
vamos nos apegar a Brito, (2003, p. 29) que faz uma interessante análise partindo do
princípio de que:

“O Poder constituinte não tem que seguir nenhuma regra


de direito que seja anterior à sua manifestação, neste
prisma devendo ser considerado como uma questão de
facto, e não de direito.”

A questão do Poder Constituinte apresentada coloca-se no facto da formação


originária do Estado, é uma questão de facto e não de direito. Por isso, o Poder
Constituinte não é tema jurídico. E sendo facto puro e revolucionário, o positivismo
jurídico rejeita o seu exame, pois não há espaço na ciência do direito público para um
capítulo consagrado à teoria dos golpes de Estado ou das revoluções e de seus efeitos.

O poder constituinte originário é a vontade política na doutrina de Carl Schmitt.


Por isso, a validade de uma Constituição não se apoia na justiça de suas normas (como
pretende o jus naturalismo), mas na decisão política que lhe dá existência. De acordo
com Bonavides, (2004, p. 79) defende que:

“a natureza do poder constituinte é a do poder politico, de


sorte que o poder constituinte precede ao processo de
edição de normas constitucionais, e tem virtude de gerar o
fundamento de validade de toda a ordem jurídica do
estado”.

A perspectiva apresentada encontra-se vinculado à realidade concreta da vida


social em determinado espaço. Sob esse enfoque, dizer que é um poder de facto
equivale a dizer que é um poder político. Mais até, estamos a falar de um poder
exclusivamente político, porque originariamente imbricado em toda a polis, naqueles
raros instantes em que a polis se sobrepõe ao Estado para dizer, por ela mesma, sob que
tipo de Direito quer viver.

26
É bastante controvertida a natureza do poder constituinte. Para alguns, de
formação jus naturalista, é o poder de direito. Para outros, em regra positivistas, trata-se
de um poder de facto. Para Canotilho (2003, p.152), defende uma natureza híbrida ou
mista sobre o poder constituinte originário no qual diz:

“há um poder de direito (quando a constituição antiga é


reformada pela nova), e há uma constituição de facto
(quando há a ruptura que envolve ilegitimidade na
constituição anterior) ao mesmo tempo”.

Diante da perspectiva defendida por Canotilho, este realça a natureza do poder


constituinte, quando surge como ruptura, este é poder de facto. E quando aparece, não
só para desconstitui, mas também para constitui, positivar, nesse momento ele é um
poder de direito.

É de realçar que numa primeira orientação, os movimentos revolucionários e os


golpes de estado não se realizam de acordo com os princípios jurídicos ou regras
constitucionais. Grosso modo o poder constituinte cairá nas mãos do mais forte e não
será outra coisa senão uma manifestação de força. A revolução concebe-se como um
"facto patológico" como um fenómeno "fora do direito", sendo lógico que todos os
factos preparatórios de um constituinte, as imediatas manifestações do poder
constituinte originário se situam no terreno do pré-jurídico. O direito nasceria em
sincronia com a própria constituição. Daqui o poder constituinte originário é um puro
facto.

Num sentido diverso se orientam autores como Machado (2010 p. 33), que não
aceitam que uma revolução seja, por definição, um simples facto antijurídico. Ao
estabelecerem uma ordem jurídica nova, em que “as revoluções não se propõem
transformar situações de facto em situações de direito; visam, sim, substituir uma ideia
de direito por outra ideia de direito, aquela que informa ou inspira as forças revo-
lucionárias”.

De acordo com estas premissas a revolução não rompe com o direito antes
transforma a substância do direito. Neste sentido se afirma também que o acto
revolucionário é uma fonte de direito na medida em que traz consigo um projecto a que

27
atribui vínculo de actividade na medida em que cria órgãos a quem confere o poder de
criar direito, nesta senda o poder constituinte originário é um poder de direito.

De tudo quanto abordaram os nossos autores veremos que, o positivismo


jurídico não admite senão o direito positivo, que histórica e hierarquicamente principia
com a constituição. Antes de entrar em vigor a nova constituição, revolucionando a
anterior, não há direito. Para eles não existe nenhum direito natural, nascido
anteriormente ao direito positivo, o qual tem por princípio a constituição promulgada
pelo poder constituinte. Antes dela, não há direito que subsista sobre ela ou contra ela.
Daí, que esse poder constituinte originário, que positiva a constituição, não pode ser um
poder de direito, mas é apenas um poder de facto, o qual consiste em uma força social,
uma energia que emana da sociedade política, como força suficiente para impor-lhe uma
constituição, inaugurando o Estado ou revogando a constituição anterior do mesmo
Estado, cuja ordem jurídica nasce ou renasce no instante revolucionário que é o
momento constituinte, entendida aqui a revolução como sendo, estritamente em sentido
jurídico, a modificação da constituição por um processo que ela não prevê, não autoriza.

Em contrapartida o jusnaturalismo afirma que o direito já existe de forma natural


antes de ser positivado pelo legislador. O direito positivo não é senão a formalização
que desdobra e aprimora o conteúdo e a expressão do direito natural a ele anterior e
superior. Por isso, o direito positivo fica subordinado ao direito natural, ao qual todo o
legislador tem de conformar-se, até e sobretudo o legislador constituinte. Assim, o
poder constituinte é condicionado pelo direito natural, é poder de direito e não poder de
facto, seja quando se entende que o direito natural tem uma origem sobrenatural,
exprimindo em última análise a vontade de Deus, seja quando se concebe um direito
natural de origem natural, por exemplo, deduzido puramente da razão humana ou
nascido da história como repositório dos valores fundamentais e permanentes (os quais
se podem chamar de constantes axiológicas) de um certo povo durante uma certa quadra
de sua história.

Em suma, conforme seja juspositivista ou jusnaturalista, o doutrinador concebe o


poder constituinte originário como mero poder de facto ou poder de direito. No fundo, a
solução da questão da natureza do poder constituinte depende da ideologia jurídica que
enforma a postura crítica. Mesmo quem descarta um direito natural sobrenatural, cuja
origem primeira seria divina, e pensa um direito nascido na história e da história da

28
humanidade, exclusiva e essencialmente natural, mesmo esse pensador tem de
reconhecer que o poder constituinte originário é uma força histórico-social que se
manifesta condicionada a esse direito natural histórico e que, portanto, constitui um
poder de direito, em última análise, e não apenas um simples poder de facto.

5. Características do poder constituinte originário

Para o nosso estudo veremos que podem ser apontadas várias características para
identificar o poder constituinte originário. No âmbito da nossa abordagem, entende-se o
poder constituinte como sendo:
 Inicial;
 Incondicionado; e
 Ilimitado.

a) Inicial

O poder constituinte originário é inicial porque instaura, inaugura, implanta uma


nova ordem jurídica. Como já afirmado anteriormente, ele pode fazer isso a partir, do
nada, quando cria o Estado e lhe dá a primeira Constituição, ou a partir de uma ruptura
da ordem jurídica existente, quando estabelece um novo tipo de Estado e lhe dá uma
nova Constituição, substituindo a anterior. Na primeira hipótese, ele cria o fundamento
de validade do ordenamento jurídico. Na segunda, ele substitui esse fundamento.

Com a obra do poder constituinte, Brito (op. cit, p. 25) diz que algo nasce e
algo morre, visto que, a um só tempo, o poder constituinte cria e mata, parteja e sepulta.
Nesse sentido, ele é a um só tempo, poder constituinte e poder desconstituinte.

E não só, Sob tal perspectiva Canotilho (op. cit, p. 65), reconhece que, no fundo
o poder constituinte:

“Se revela sempre como uma questão de poder, de força


ou de autoridade política capaz de alterarem determinada
situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma
Constituição entendida como lei fundamental da
comunidade política. O momento de ruptura em que o

29
velho morre e, em seu lugar, nasce o novo, representa um
ponto alto do constitucionalismo”.

Nesta perspectiva a nova Constituição será o fundamento de validade da ordem


jurídica, substituindo um Estado por outro. Porém, só uma Constituição pode trocar um
Estado por outro. Não um Estado a trocar sua Constituição por outra.

Desse modo, em 1992 em Angola, não houve apenas a substituição de uma


Constituição por outra. O que ocorreu na verdade, foi à substituição do fundamento de
validade do ordenamento jurídico. A nova Constituição, fruto do poder constituinte
originário, criou um novo tipo de Estado, passou a ser o núcleo irradiador de
legitimidade para todo o ordenamento jurídico.

b) Incondicionado

O poder constituinte originário apresenta a sua incondicionalidade no que tange


ao procedimento. O poder constituinte cria as regras de acordo com as quais, em
seguida, irá trabalhar. Não está condicionada a nenhuma regra jurídica pré-existente,
podendo expressar-se por meio da forma que escolher. Cria suas próprias regras
(regimento interno), o qual irá observar para elaborar a Constituição. Criadas as regras,
ele passa a actuar balizado por elas para elaborar a Constituição. É incondicionado,
assim, porque não precisa observar as regras jurídicas que existem e regulam o
nascimento de normas infraconstitucionais ou de normas constitucionais de reforma.

Isso já foi constatado pelo teórico do poder constituinte Sieyés, (op. cit, p. 96),
“Qualquer que seja a forma que a nação quiser, basta que ela queira; todas as formas são
boas, e sua vontade é sempre a lei suprema”.

c) Ilimitado

O poder constituinte originário não conhece limites para actuar. É livre para
escolher os valores que pretende assegurar na Constituição. Para Sieyés, (ibidem, p.
95), o poder constituinte originário, por ser ilimitado, não fica submetido à Constituição
que edita. Ao contrário, poderá substituí-la, quando entender necessário. “Não só a
nação não está submetida à Constituição, como ela não pode estar e não deve estar o que
equivale a dizer que ela não está”.

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Compreendendo a radicalidade do poder constituinte, tem-se afirmado que há dois
poderes que tudo podem: o poder de Deus no Céu e o poder constituinte na Terra. O
poder de Deus dá início ao mundo em geral, cuja obra terá sequência com a natureza e
os seres humanos. Mas há outro poder o poder constituinte que dá início à criação do
mundo jurídico em particular, prescrevendo o modo pelo qual esse mundo jurídico irá
receber seus complementos, que são necessários e infinitos.

Canotilho (ibidem, p. 65), sintetiza essas características dizendo que:

“O poder constituinte, na teoria de Sieyés, seria um poder


inicial, autónomo e omnipotente. É inicial porque não
existe, antes dele, nem de facto nem de direito, qualquer
outro poder. É nele que se situa, por excelência, a vontade
do soberano (instância jurídico-política doptada de
autoridade suprema). É um poder autónomo: a ele e só a
ele compete decidir se, como e quando, deve dar-se uma
constituição à Nação. É um poder omnipotente,
incondicionado: o poder constituinte não está
subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo”.

O poder constituinte, em razão de sua ilimitabilidade, pode tudo. Todavia, esse


poder tudo necessita ser mais bem compreendido. O objecto de nosso interesse repousa
na terceira característica do poder constituinte (ilimitado). A doutrina não se pacifica em
torno da não limitação do poder constituinte originário. A ideia de limitação do poder
constituinte, passa pela questão da natureza do poder constituinte, que é compartilhada
pelos juristas de formação positivista e, os jusnaturalistas que não aceitam a ideia de um
poder não limitado, estas características se traduziriam na autonomia e não na não
limitação do poder constituinte.

O poder constituinte originário é compreendido também como um poder de


direito tendo por fundamento o Direito Natural, que é anterior e superior ao Direito de
Estado, fundado num poder natural do homem de organizar a vida social; estaria, então,
limitado este poder originário não pelo Direito positivo, mas sim pelo Direito natural. A
tese, segundo o qual o poder constituinte é ilimitado, tem sido rejeitada. Fala-se, por

31
conseguinte em uma vontade de constituição capaz de condicionara vontade do criador.
Matéria que nos levará a uma discussão doutrinária no segundo capítulo.

6. Titularidade do poder constituinte

Tradicionalmente entendia-se que a nação era constituída pelo Monarca, pelo


Clero e pela Nobreza, mas o poder soberano era atribuído exclusivamente ao monarca.
No advento do constitucionalismo moderno, alguns monarcas, confrontados com as
exigências liberais e revolucionários de limitação dos poderes, vão procurar sustentar o
poder constituinte nas suas tradicionais prerrogativas de soberania.

O titular do Poder Constituinte, segundo Sieyés (1997, p. 92), um dos


percursores dessa doutrina, é a nação, pois a titularidade do Poder liga-se à ideia de
soberania do Estado, uma vez que mediante o exercício do poder constituinte originário
se estabelecerá sua organização fundamental pela Constituição, que é sempre superior
aos poderes constituídos, de maneira que toda manifestação dos poderes constituídos
somente alcança plena validade se sujeitar à Carta Magna.

Já se mostrou que o fundador da doutrina do poder constituinte foi Sieyés. Para o


autor acima referenciado, o titular do Poder Constituinte é a nação, entidade que ele
absolutizou como existente só pelo direito natural, para opô-la ao governo absoluto do
rei, constituído pelo direito positivo. Em sua doutrina, Sieyés parte de um axioma: A
nação se forma somente pelo direito natural. O governo, ao contrário, não pode
pertencer senão ao direito positivo.

É de realce que quem faz uma constituição ex-novo está legitimado para uma
constituição real que já existe. Sendo assim a questão da titularidade do poder
constituinte é indissociável da questão do titular da soberania, e, o soberano é o poder
que cria o direito.

Antes da idade média não se colocou a questão da titularidade do poder


constituinte. No entanto nas monarquias teocráticas dos Faraós, da Grécia e Roma havia
uma ilusão de origem divina do poder, uma vez que o rei era considerado descendente
dos deuses e portanto, era um deus. Para Bonavides (Op. cit p. 154), mostra, dentro de
uma abordagem histórica, que “a titularidade do poder constituinte vem atribuída ora a
Deus, ora ao príncipe ou monarca, ao povo, à nação, ao Parlamento ou a uma classe”.

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Em Roma o poder do imperador emanava do povo, porém através do seu mais alto
órgão representativo, o Senado. O Senado formalizava a outorga deste poder através da
lex regia.
Há três teorias que abordam a titularidade do poder constituinte que são:

I – Teoria do direito divino

Esta teoria vigorou numa época dominada por um forte sentimento religioso,
obedecia à ideia de que a fonte do poder reside em Deus. O seu representante na terra
era o papa, que delegava tal poder no rei ou no imperador. Daí a necessidade de o rei ser
sagrado pelo papa. Estas doutrinas justificaram a existência de um vicário de Deus no
plano temporal, porque todo o poder vem de Deus. As teorias subjacentes ao direito
divino são:

a) Teoria do direito divino sobrenatural ou da legitimidade carismática

Nesta teoria os governantes são directamente escolhidos por Deus, governação


pela graça de Deus, o poder era assim um dom divino concedido a certas pessoas, por
possuirem um carísma. Por exemplo: o que revelaria a escolha de um indivíduo seria o
seu aparecimento em circunstâncias difíceis salvando o povo de dificuldades existente,
outras vezes na participação em milagres;

b) Teoria do direito divino providencial

De acordo com esta teoria Deus ao criar o mundo teria criado leis que o hão de
governar e só excepcionalmente intervem para modificar essas leis. O poder vem de
Deus para a sociedade depois o conferia para os governantes, Deus previu desde logo a
designação governantes.

A origem do Poder Constituinte do povo está ligada ao pensamento de Santo


Tomás de Aquino. Este canonista baseou-se na obra de São Paulo que prega a origem
divina do poder para elaborar sua doutrina. Para São Paulo, “non est enim potestas nisi
a deo” não há poder que não venha de Deus. É Deus quem escolhe o governante de um
povo num dado momento, seja porque ele quer e o faz directamente (doutrina do direito
divino originário), seja porque ele age de acordo com a providência, que dispõe as
coisas como elas devem ser (doutrina do direito divino providencial).

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S. Tomás de Aquino não aceita que todo poder venha de Deus, pois ele não é
uma figura abstrata e sim humana. Deus é a fonte de todo o poder, como acreditavam os
canonistas da época, mas ele é dado ao homem para que possa viver. O homem, para S.
Tomás de Aquino, é o povo.

II – Teoria Contratualísta

Na idade média tornou-se corrente a ideia de que a fonte do direito temporal era
o povo. O fundamento da autoridade política era o contrato de submissão pelo qual o
povo voluntariamente o instituia um poder que o regesse. No direito romano foi
reforçada a ideia de que o povo é que conferia o seu poder e autoridade aos governantes,
mesmo que estas tivessem o obtido mediante a conquista ou acto de violação, só o
consentimento popular expresso ou tácito podia legitimá-lo.

Assim o pacto ou contrato era rigorosamente irrevogáveis, outras vezes


revogáveis pelo seu titular dependendo da situação, circunstancias em presença e pode
traduzir-se em:

a) Teoria do poder titular alienável

Segundo esta doutrina o povo detém o poder e transfere-o para o monarca


através de um pacto de sujeição. Essa transferência pode ser definitiva e irrevogável,
passando o governante a exercer o poder por direito próprio, ficando superior ao povo, é
com essa teoria que se chega às monarquias absolutas;

b) Teoria do poder titular inalienável

De acordo com esta teoria, o povo limita-se apenas a conceder o uso ou


exercício do poder, mas reserva para si a raiz da autoridade, permanecendo assim
superior ao monarca.

III – Teoria democráticas

Com as obras de Montesquieu e John Loock, aparecem as bases da democracia


liberal e tem por fundamento essencial a liberdade individual, ao qual é dado um
conteúdo preciso. A liberdade individual é concedida como a soma de autonomia de um
indivíduo perante o Estado. O Estado deve limitar-se a um papel geral e restrito, isto é,
assegurar a paz e a ordem pública.

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O poder político deve ser organizado de modo a não atentar contra a autonomia
individual. O Estado e o poder político devem ver o seu papel e os seus meios e acções
cuidadosamente limitados. Devem ser cuidados como formas de limitar o poder do
Estado e o poder político (separação de poderes, descentralização, controlo da
constituição, etc). A lei deve ser a expressão da razão, deve ser produto da vontade
nacional, a vontade de uma entidade abstrata no seio do qual os interesses individuais se
dissolvam para dar lugar ao interesse nacional.

Assim se vê que a titularidade do poder constituinte comporta variantes políticas


e ideológicas. A ideologia nacionalista a atribui à nação. Nas democracias, é atribuída
ao povo. Nas teocracias, a Deus. Nos estados socialistas, à classe operária. Mas, apesar
dessa flutuação ideológica, prevalece nos países ocidentais um axioma: o princípio do
governo e da administração que o secunda, é que todo o poder, a partir do próprio poder
constituinte, emana do povo, que é seu titular primário, cujo consenso depende da sua
legitimidade.

Modernamente, porém, é predominante que a titularidade do poder constituinte


pertence ao povo, pois o Estado decorre da soberania popular, cujo conceito é mais
abrangente do que o de nação. Assim, a vontade constituinte é a vontade do povo,
expressa por meio de seus representantes. Nessa perspectiva, é de ensina que as
Assembleias Constituintes não titularizam o poder constituinte, são apenas órgãos aos
quais se atribui, por delegação popular, o exercício dessa magna prerrogativa.

Necessário transcrevermos a observação de que, o povo pode ser reconhecido


como o titular do Poder Constituinte mas não é jamais quem o exerce. É ele um titular
passivo, ao qual se imputa uma vontade constituinte sempre manifestada por uma elite.
Assim, distingue-se a titularidade e o exercício do Poder Constituinte, sendo o titular o
povo e o exercente aquele que, em nome do povo, cria o Estado, editando a nova
Constituição.

35
7. Formas de manifestação do poder constituinte

Originado ou não de uma revolução, social ou jurídica, é possível ao Poder


Constituinte usar de variados modos para exprimir-se, ou seja, há várias formas de
manifestação do poder constituinte originário para positivar a constituição. Dentre as
várias formas de manifestação do poder constituinte temos: a outorga, o bonapartista e a
assembleia constituinte. As duas primeiras não têm compromisso com a legitimação
democrática do poder e do ordenamento jurídico. O mais simples é a outorga, ainda
quando não seja o mais democrático. Pela outorga, o agente simplesmente promulga a
nova constituição, à qual o povo dá eficácia por aceitação tácita, cumprindo-a. As duas
formas apresentadas prescindem da participação popular. Consistem, sob essa óptica,
em verdadeira negação do poder constituinte do povo.

Assembleia constituinte é a forma que de preferência, deve ser eleita de forma


livre e soberana democraticamente pelo povo, com o fim de elaborar e promulgar a
nova constituição. Deste modo, mesmo que se lhe possa discutir ou impugnar a
legitimidade, tem-se aí uma assembleia constituinte, que alguns preferem chamar
congresso constituinte, para não confundi-la com a autêntica assembleia constituinte.

A legitimidade provinda da eleição popular levou a distinguir entre constituição


e carta: aquela, promulgada por assembleia democrática, e esta, decretada por outorga
autoritária. Mas a melhor doutrina não aceita tal diferença terminológica, visto que
ambas as formas de expressão do poder constituinte a assembleia e a outorga são causa
de uma nova constituição, que produz o efeito de revogar a anterior, quando ganha
eficácia por sua aceitação global pelo povo, depois de ser promulgada pelo constituinte,
seja democrática, seja autoritariamente.

A diferença existe, realmente, no processus de obter o consensus, mas o efeito


prático é o mesmo: a eficácia da constituição seja ela produto de uma assembleia
democrática ou de uma outorga autoritária. Não há, pois, inconveniente algum em usar
o termo carta com referência a qualquer constituição, sem levar em conta a forma de
expressão do poder constituinte.

36
Ainda em busca do consensus populi, pratica-se a consulta popular por referendo
ou por plebiscito. A doutrina costuma fazer distinção: o referendo é posterior e o
plebiscito é anterior ao acto que eles têm por objecto. Mas pouco importa o momento. O
facto é que, seja de um, seja do outro, nem sempre resulta democracia, ainda quando
resulte eficácia, no processo constituinte. Por exemplo, o modelo bonapartista, assim
dito por que gerado por Napoleão Bonaparte e por Luís Bonaparte, usa da consulta
popular para obter do titular do poder constituinte a autorização ou a legitimação para o
exercício autoritário desse poder por aquele que, em dado momento histórico, empolga
o povo. É o que fez Augusto Pinochet no Chile.

Segundo Silva, (op. cit, p. 70-72), realçar que a forma democrática de exercício
do poder constituinte pode ser classificada em quatro modos, conforme o lugar e o
momento histórico em que tem sido utilizada para a elaboração da Constituição que são:

a) Exercício directo do poder constituinte, um grupo de pessoas que


assumiu o poder para governar transitoriamente elabora um projeto de Constituição e
submete-o, directamente, à apreciação popular. O projecto pode ser aprovado por
referendo ou, pelo menos em tese, por aclamação. Após tal aprovação, a Constituição é
promulgada sem que tenha existido uma Assembleia Nacional Constituinte;

b) Exercício indirecto do poder constituinte, o poder constituinte é exercido


por um órgão cujos membros são eleitos pelo povo. Esse órgão, Assembleia
Constituinte ou Convenção Constituinte elabora a Constituição e a promulga;

c) Forma mista de exercício do poder constituinte, o poder constituinte é


exercido por um órgão Assembleia Constituinte ou Convenção Constituinte. Elaborada
a Constituição, esta é submetida à aprovação popular;

d) Exercício pactuado do poder constituinte, o poder constituinte é exercido


de forma consensual. O pacto celebrado entre forças antagônicas faz nascer, de forma
consensual, a Constituição. O equilíbrio de forças, embora precário, gera a Constituição
pactuada.

37
8. A Ciência Jurídica e O poder Constituinte

A partir do século XIX, o direito começa a desenvolver-se com as ideias


produzidas pela revolução francesa, a cerca dos conceitos de república e democracia:
três soluções são apontadas pelos juristas para resolver a problemática que envolve o
poder constituinte. Para Bonavides (op. cit, p. 83) defende:

“o poder constituinte como transcendente face ao sistema


a partir do poder constituído, sua dinâmica é imposta ao
sistema a partir do exterior; para o outro grupo de jurista,
o poder constituinte é ao contrário, imanente, sua
presença é intíma, sua acção é aquela de um fundamento;
um terceiro grupo de juristas, por fim, não consideram o
poder constituinte como fonte transcendente ou imanente,
mas como fonte integrada, coexistensiva e sincrónica do
sistema constitucional positivo”.

Num primeiro caso apresentado acima, o poder constituinte é exterior ao direito,


servindo-lhe de fonte transcendente, segundo esse grupo o direito actua no âmbito do
dever ser, enquanto que o poder constituinte pertence ao âmbito do ser. Na mesma
esteira o poder constituinte seria um facto empírico, primeiro é exterior a partir do qual
é feita a produção das normas. No entanto esta perspectiva apresentada rompe com esse
movimento que lhe dá existência para posteriormente impor-lhes limites, dobrando-o
sobre sua própria constituição normativa de poder.

O princípio constituinte enquanto produtor de justiça política é lançado,


inevitavelmente no campo da justiça procedimental onde estará sujeito às regras e
hierarquia da estrutura jurídica como um todo. Na senda de Filho (1999, p. 140),
descreve que:

“A limitação que o poder constituinte encontra na


máquina contratual de sua expressão, acrescenta-se aqui
um limite ético-politico sobre determinada (condição
Katiana de constituição do transcendental). A imanência é
pálida, de grau mínimo ainda que seja efectiva”.

38
O grau de imanência abordado acima em relação ao poder constituinte é mas
acentuado, a legitimação da ordem normativa constitucional é dada pela adequação
entre duas realidades, social (material) e jurídica (formal), e foi estabelecida pelo poder
constituinte como poder extraordinário e pré-formador. Sendo assim o poder
constituinte seria intermediário das duas realidades acima referida, em tais condições o
poder constituinte é entendido como, inerente à estrutura do Estado, o que vemos aqui é
a naturalização da força constituinte como criada no cerne do organismo entendido
como Estado.

O processo constituinte interno ao sistema constitucional, de início dinamizado o


desenvolvimento desse sistema, mas sendo posteriormente reformado por ele. Na
avaliação de Vanossi (op. cit, p. 203):

“Mais uma vez, é uma operação de neutralização do


poder constituinte a que assim se realiza. E ainda que tais
autores o neguem, sustentando que a evolução do Estado
é também a realização progressiva de um conjunto de
normas constituintes, torna-se absolutamente incerta a
determinação que estas assumem no movimento real. A
imanência do poder constituinte manifesta-se no Estado
sob a forma de evolução natural”.

Esta posição adoptada demonstra-nos que o pensamento jurídico a ser


apresentado aqui, é que considera o poder constituinte como força integrada,
coexistente, sincrônica ao sistema constitucional positivo não aceita uma historia natural
deste. Esta vertente apresentada é baseada no facto de que o elemento histórico
institucional deve ser considerado como princípio vital, e o facto normativo é concedido
em termos de actividade, cujo desenvolvimento emana a ordem jurídica.

Como percebemos essas três propostas não são tão diferentes umas das outras e
o poder constituinte se encontra suprimido pelo poder constituído. Para Negri (op. cit,
p. 34) “a falha consiste em justamente reduzir essa força aos limites do campo jurídico,
quando a própria história das revoluções modernas”.

39
Tendo em vista o que foi exposto, mostra-nos que este é uma força que rompe
com a ordem pública instituída pelo próprio direito e lança sobre a necessidade de uma
mudança radical. Esse conceito é convertido de potência constituinte a dinâmica de
poder constitucional dentro dos limites de um Estado soberano. Após uma breve
exposição de análise das três vertentes do pensamento jurídico acerca do poder
constituinte, podemos concluir claramente que, sendo ele transcendente imanente ou
coextensivo-integrado ao sistema jurídico, ele está sempre de início ou fim, sendo
absorvido pela ciência jurídica.

40
CAPÍTULO II

A PROBLEMÁTICA ACTUAL DO PODER


CONSTITUINTE ORIGINÁRIO FRENTE AOS
DIREITOS HUMANOS

41
1. Evolução Histórica dos Direitos Humanos

A ideia de Direitos Humanos é muito antiga na história. Até os tempos em que


foram codificadas as leis, os governantes exerciam seu poder sem qualquer limitação,
variando as suas decisões de acordo com a própria vontade e a forma que lhes conviam.

De acordo com Taiar, (2009, p. 134), os direitos humanos começam a ter o seu
primeiro impacto na antiguidade, com o Código de Hamurabi na Babilónia, foi a
primeira codificação a relatar os direitos comuns aos homens e a mencionar leis de
protecção aos mais fracos. O rei Hamurabi (1792 a 1750 a.C.), há mais de 3.800 anos,
ao mandar redigir o famoso Código de Hamurabi, já fazia constar alguns Direitos
Humanos, tais como o direito à vida, à família, à honra, à dignidade, protecção especial
aos órfãos e aos mais fracos. O Código de Hamurabi também limitava o poder por um
monarca absoluto. Nas disposições finais do Código, fez constar que aos súbditos era
proporcionada moradia, justiça, habitação adequada, segurança contra os perturbadores,
saúde e paz.

Segundo António, (2004, p. 24), “tanto no Direito Romano, como nas inúmeras
civilizações ancestrais já se concebia a noção de Direitos Humanos”. No pensamento de
Amenófolis (Egipto, século XIV a.C), na República de Platão (Grécia, século IV a.C),
na civilização egípcia (dinastia XVIII). Fazendo uma reflexão a filosofia política,
veremos que os Estóicos defendiam a fraternidade entre todas as pessoas e a existência
de princípios morais, universais, eternos e imutáveis, que resultavam dos direitos
inerentes ao homem e da igualdade de natureza entre os seres humanos. Para essa
filosofia, não importava a classe social, etnia ou estágio cultural.

Nesta senda, é de realçar que o cristianismo considera o homem à imagem e


semelhança de Deus, prega o amor ao próximo, justiça social, a solidariedade, a
igualdade, a unidade, a fraternidade da espécie humana e a esperança de que algum dia
possamos aprender o sentido do verdadeiro amor. Atribui-se à Idade Média, entretanto,
o surgimento dos antecedentes mais directos das declarações de direitos, sob o
fundamento da teoria do Direito Natural, que condicionou o aparecimento do princípio
das leis fundamentais do reino, limitadoras do poder do monarca.

42
Para Moco, (2010, p. 33), “uma das primeiras manifestações para a evolução
dos direitos humanos nesse sentido foi, sem dúvida, o dinamismo persistente e precoce
movimento reivindicativo de direitos na Inglaterra”. Foi graças esta Magna Carta,
firmada em 15 de Junho de 1215, na localidade de Runnymede. Redigida em latim, a
fim de obstar e dificultar o acesso à mesma por parte dos cidadãos leigos, somente foi
traduzida para o idioma inglês no século XVI. Portanto, com esta pressão observada
aqui vimos que, o crescimento político da burguesia favoreceu o crescimento dos
Direitos Humanos. Assim, em 1215, os bispos e barões impõem ao Rei João-Sem-Terra
a Carta Magna que limita o poder do soberano. Referido documento não tinha natureza
constitucional, foi feita para proteger os privilégios dos barões e os direitos dos homens
livres. Outros institutos inaugurados na Inglaterra e que reflectiam direitos fundamentais
de igual quilate foram o Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus (1679) e o Bill of
Rights (1688).

Verifica-se, portanto, que os direitos e liberdades seriam conquistas de elites, do


alto clero ou da aristocracia contra o monarca, como foi o caso do Rei João-Sem-Terra
que outorgou aos seus súbditos, mas essencialmente aos barões, que o pressionaram, a
Magna Carta em 1215 na Inglaterra.

Nessa mesma esteira Moco, (op. cit, p. 33), “continuando a escalpelizar a


evolução dos direitos humanos, refinou-nos ao ano de 1628, em que foi aprovado mais
um documento importante na senda da conquista dos direitos e liberdades dos cidadãos
na Inglaterra que constitui num reforço de grande dimensão na Magna Carta”. Com
efeito, é de destaca-se a Declaração de Direitos (Bill of Rights), que decorreu da
Revolução de 1688, que continha certas restrições ao poder do Estado e pela qual se
firmou a supremacia do Parlamento, surgindo, daí, a monarquia constitucional da
Inglaterra, submetida à soberania popular. Seu principal teórico foi John Locke que
pregava a imposição de limites à monarquia e a afirmação da supremacia do Poder
Legislativo, que acabou inspirando a formação das democracias liberais da Europa e da
América nos séculos XVIII e XIX.

Prosseguindo a mesma linha de pensamento, foi nos Estados Unidos que surge a
primeira declaração de direitos fundamentais modernos. A Declaração de Direitos do
Bom Povo de Virgínia, datada de 1776, foi inspirada nas teorias de Locke, Rousseau e
Montesquieu, e se preocupava, basicamente, com a estrutura do governo democrático e

43
o sistema de limitação de poderes do governante, protegendo os indivíduos contra sua
arbitrariedade.

A América do Norte, fortemente influenciada pelos protestantes que haviam


fugido ou sido expulsos da Inglaterra, desenvolveu uma empenhada luta contra o
absolutismo Inglês, o que culminou com a sua independência, criando documentos que
visavam garantir unicamente a supremacia da vontade do povo. A Declaração de
Independência dos Estados Unidos, de 1776, foi um documento de valor histórico
considerável, uma vez que influenciou a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, adoptada pela Assembleia Constituinte Francesa em 1789.

Neste diapasão, há que se fazer referência à Declaração dos Direitos do Homem


e do Cidadão adoptada pela Assembleia Constituinte francesa em 27.08.1789 que
representou o pensamento político, moral e social despontado no século XVIII,
especialmente nos ideais filosóficos humanitários de Rousseau, Locke e Montesquieu,
cujo objectivo era a liberação do homem esmagado pelas regras do absolutismo e do
regime feudal. Dentre as mais importantes normas estabelecidas pela Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, destacam-se a garantia da igualdade, da liberdade, da
propriedade, da segurança, da resistência à opressão, da liberdade de associação
política, bem como o respeito ao princípio da legalidade, da reserva legal e a livre
manifestação do pensamento.

Insta destacar que a Revolução Inglesa, a Revolução dos Estados Unidos da


América e a Revolução Francesa, foram três movimentos que traçaram os ideais do
Estado Democrático, como a supremacia da vontade do povo, a preservação da
liberdade e a igualdade de direitos. Contudo, esses princípios que deram o sustentáculo
aos movimentos liberais, não garantiram à maioria do povo o bem-estar social
almejado, porquanto a democracia foi uma consequência dos objectivos de uma classe
económica (burguesia) que usou o próprio povo para obtê-la. Com a liberdade veio a
desigualdade, isto porque em não podendo o Estado interferir em quase nada, os
indivíduos que detinham posse de bens passaram a explorar os indivíduos que não
detinham, estando estes últimos desprovidos de protecção e sem qualquer possibilidade
de usufruir dos direitos que possuíam formalmente.

44
Importa realçar que, com as terríveis experiências e lições advindas das duas
grandes guerras, especialmente as violações, nas mais diversas formas dos Direitos
Humanos, deu-se início à fase da celebração de tratados e outros instrumentos
Internacionais alusivos à protecção Internacional dos Direitos Humanos. Em 1919 entra
em vigor a Constituição de Weimar, Magalhães (2000, p. 31), diz nos que “foi esta
constituição que dedicou uma parte exclusivamente aos Direitos Humanos”. Mas foi a
Constituição do México, de 1917, a primeira Constituição a elevar os direitos sociais a
um nível constitucional. Em seguida é criada a Sociedade Das Nações Unidas e
especificamente no campo dos Direitos Sociais, foi criada pelo Tratado de Paz assinado
em Versalhes em Junho de 1919, a Organização Internacional do Trabalho. Logo após,
vinte e um países da América se reuniram no México no início do ano de 1945,
firmando a Carta das Nações Unidas, imbuída da ideia do respeito aos Direitos
Fundamentais.

Em consequência, foi redigida a Declaração Universal dos Direitos Humanos,


aprovada em 10 de Dezembro de 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A
Declaração de 1948 foi o mais importante e completo documento concebido em favor
da humanidade, em que se reconhece, solenemente, a dignidade da pessoa humana
como base da liberdade, da justiça e da paz, além de outros ideais. Desde a Carta Magna
de 1215 até a Carta das Nações Unidas muitos documentos legislativos, declarações e
resoluções versaram sobre direitos humanos. Nenhum deles foi tão longe e tão amplo
quanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos estão inseridos nas


principais constituições contemporâneas e os seus trinta artigos fixaram um código
universal dos direitos humanos ao constituir uma súmula de direitos e deveres
fundamentais do homem, sob os aspectos individual, social, cultural e político, com o
objectivo de promover o reconhecimento universal dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais.

No caso concreto de Angola, os Direitos Humanos começam a ganhar sua


estrutura a partir do ano de 1992. Para garantir a eficácia dos Direitos Humanos
consagrados nos documentos Internacionais, aos quais aderiram muitos países. Fez-se a
necessária positivação desses direitos no texto das constituições. Mais recentemente,
observa-se a internacionalização desses direitos que recebem uma protecção supra

45
constitucional. A segunda guerra mundial com a série de atrocidades cometidas veio
demonstrar que os direitos do homem deveriam ser protegidos pelo Direito
Internacional.

2. A Constitucionalização dos direito humanos

O mundo contemporâneo tem assistido a um processo de mudanças profundas e


bastante rápidas, originadas por acontecimentos históricos surgidos nas mais diversas
partes do globo e que se perpetuam até os dias de hoje. O início do novo milénio sugere
a manutenção deste panorama, dando continuidade a este ritmo de intensas
transformações que marcaram o passado recente para sempre como o breve século XXI.

No âmbito dos Estados, tal situação teve uma inegável influência na organização
das estruturas política, económica e social, no que se inclui o Direito e, em especial, o
Direito Constitucional. Várias foram às pressões sofridas pelos legisladores no sentido
de adaptarem as regras aos novos tempos e às novas exigências que daí decorreram, o
que muitas vezes, paradoxalmente, resultou em severas críticas e grandes polémicas.

De modo surpreendente, por outro lado, o tema relativo à doutrina do Poder


Constituinte atravessou todo este período de forma praticamente incólume na concepção
da maioria dos doutrinadores, como se o cenário de activas transformações advindas das
mais diferentes esferas, tanto no plano interno dos Estados como no Internacional, em
nada houvesse afectado o seu desenvolvimento e caracterização.

É impossível, entretanto, ignorar o facto de que, hoje, não se admite mais aceitar
passivamente todos os pressupostos construídos no nascedouro da teoria do poder
constituinte, tal como então idealizado pelo abade Sieyés, na França do século XVIII,
sem questionar os seus fundamentos e o real posicionamento nos dias actuais.

Indagações similares e, de certa maneira, estreitamente relacionadas ao tema do poder


constituinte, relacionam-se com a questão das eventuais limitações materiais ao
exercício do poder constituinte originário, matéria bastante polémica, por contrariar
entendimentos em sentido oposto fortemente arraigados entre a maior parte da doutrina.

46
Por outro lado, ainda que, no um primeiro momento, não se possa vislumbrar
uma relação directa entre os assuntos, ao se discutir a elaboração de um novo
documento constitucional para o Estado, é forçoso admitir que o fim último deste
processo reside, sempre, na necessidade de garantir o bem-estar dos indivíduos que ali
habitam. Por esta razão, o tema dos direitos humanos, objecto de intensos debates e
acordos no plano mundial, adquire um papel de destaque e traz à luz uma nova
perspectiva a ser considerada nesta situação.

Na actualidade, a democraticidade das Constituições é aferida, em larga medida,


pelo grau de acolhimento no seu articulado dos Direitos Humanos. Como se referiu
atrás, a Constituição Angolana possui um catálogo alargado de direitos e liberdades
fundamentais dos cidadãos. A elevada densidade normativa da chamada parte
dogmática da CRA, traduz a preocupação de nela serem amplamente vertidos os
Direitos Humanos, colocando o país no pelotão da frente dos Estados democráticos, em
que os órgãos do poder político e a actuação das autoridades têm como referência
incontornável da sua actuação a salvaguarda da dignidade da pessoa humana nas suas
diversas formas de manifestação. Não obstante, a CRA na sua alínea e) nº 1 do art. 12º
consagra que “ a república de Angola respeita e aplica os princípios da carta da
organização das nações unidas e da carta da união africana e estabelece relações de
amizade e cooperação com todos os Estados e povos, na base do respeito dos Direitos
Humanos”.

Buscando a esse preceito constitucional, veremos, que o nosso sistema de


direitos fundamentais plasmados na actual constituição, já é muito desenvolvido, para lá
do alargamento do catálogo de direitos fundamentais, surpreendemos ainda no actual
texto constitucional uma adequada arrumação desses direitos. Assim, o art. 26º da CRA
abre uma porta para entrada de direitos fundamentais de que Angola faça parte. E mais,
o legislador constitucional, em matéria de direitos fundamentais impõe que a
interpretação dos direitos fundamentais seja feita em “harmonia” com os importantes
instrumentos jurídicos fundamentais: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a
Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e os Tratados Internacionais sobre a
matéria, ratificados pela República de Angola, nos termos do nº 2 do art. 26º da CRA.

47
3. Conceito de Direitos Humanos

O homem por natureza desde os primórdios da história, procurou viver em


sociedade para melhor compreensão das coisas e desta forma, poder concretizar os seus
objectivos de convivência social, mas esta tendência nunca foi toda uniforme, podendo
surgir momentos de icotombe, isto é, os mais fortes procuraram sempre subjugar os
mais fracos, colocando desta forma a sociedade no caos sem precedentes o que levou a
que se reconhecesse o princípio da igualdade entre a espécie humana. Foi nesta
perspectiva que os direitos humanos aparecem no íntimo do homem, com o objectivo de
terminar com todas as formas de absolutismo, incondicionalismo e ilimitabiliadade do
poder constituinte que os monarcas apresentavam na época. Sendo assim, o seu conceito
foi variando consoante a visão de cada autor.

A ideia de direitos humanos, surge perante a percepção de que a pessoa humana


transporta consigo determinados valores, fundados na sua dignidade e no carácter
transcendental da vida humana. Para o pensamento religioso, estes valores especiais que
envolvem a pessoa são um dom do Criador, enquanto, para o pensamento leigo eles
derivam simplesmente da natureza humana de que o próprio ser humano se dá conta ao
longo do seu próprio percurso individual e colectivo.

Quanto a conceituação do que sejam direitos humanos, socorremo-nos de Ana


Martins (apud Moco 2010, p.53), que refere que:

“É um conjunto de regras jurídicas Internacionais,


quaisquer que sejam a fonte de onde emanam, que
reconhecem, sem discriminação, aos indivíduos
direitos e faculdades que asseguram a liberdade e
a dignidade da pessoa humana e que beneficiam de
garantias institucionais”.

Segundo Moraes (2003, p.39), define os direitos humanos como:

“O conjunto institucionalizado de direitos e


garantias do ser humano que têm por finalidade
básica a sua dignidade, por meio de sua protecção
contra o arbítrio do poder estadual e o

48
estabelecimento de condições mínimas de vida e
desenvolvimento da personalidade humana”.

Entretanto, dizer que os direitos humanos são institucionalizados então, grosso


modo, estaria a positivar os direitos humanos, desta feita devemos ter em atenção que os
direitos humanos existem independentemente de serem ou não institucionalizados,
partindo do princípio que os mesmos são direitos supra estadual. De acordo com o
exposto acima pode-se dizer que os direitos humanos é um conjunto de faculdades e
instituições que em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade,
liberdade e desenvolver a igualdade humana, os quais devem ser reconhecidos
positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional.

Para Aragão (2000, p.105), os direitos humanos “são os direitos que em função
da natureza humana, são reconhecidos universalmente pelos quais o indivíduo e a
humanidade, em geral, possam sobreviver e alcançar suas próprias realizações”.

É de realçar, que a ideia de direitos humanos, isto é, próprio do homem não pode
na sua origem dissociar-se da lei da natureza que imprime carácter, pelo que se o direito
natural funda-se na natureza, também os direitos humanos fundam-se na natureza
antropológica, sociológica do homem. Portanto, torna-se necessário que ao observar a
capacidade sensitiva do ser humano este deverá a todo custo defender a sua integridade
a todo o momento, de forma a encontrar a sua felicidade.

Para Canotilho (2003, p. 517), define os direitos humanos como sendo “aqueles
direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos”. Aqui o autor busca
justificar a posição jusnaturalista dos direitos humanos, pelo facto de, que estes são
anterior a qualquer pensamento positivo, isto é, anterior ao Estado, os direitos humanos
pertencem a uma natureza própria que assenta na ordem moral, visto que, busca em
primeiro lugar a semelhança entre os seres e em consequência traça uma pirâmide de
igualdade, onde cada homem se revê e toma consciência desta realidade.

Na perspectiva de Hanmah Arendt (apud Comparato 1999, p.251), afirma


que “a essência dos direitos humanos é o direito de ter direito”. Aqui, o autor nos
apresenta duas situações sociais diversas, o direito e ter direito, pelo facto de que
corresponde a todas definições possíveis, tanto numa vertente objectiva quanto numa

49
vertente subjectiva, mas o facto de ter direito poderá ser o reconhecimento absoluto a
cada ser humano um tratamento igualitário, isto é, joga papel importante na afirmação
dos direitos humanos a todos seres humanos, simplificando a condição de que não
existe uma vontade absoluta, incondicionada e ilimitada do poder constituinte, mas sim,
somente culturas diferentes.

Em tom de desfecho é de realçar que, os direitos humanos correspondem ao


sistema de normas que em cada momento histórico foi alicerçando a sua pertinência,
mas que tem uma especial ligação com aspectos antropológicos dos seres humanos, são
direitos imanentes e naturais, que a cada pessoa reconhece os mesmo princípios,
colocando o homem numa posição humana e não de raça.

Diante de todo articulado, pode-se tecer o seguinte comentário: os direitos


fundamentais limitam a actuação do Estado, traçando uma linha limite de actuação
deste, frente à liberdade individual, non facere (não fazer), porém, também de acordo
com os direitos fundamentais, este lhe impõe facere (um fazer), uma actuação
governamental em face do indivíduo para lhe assegurar direitos básicos, sociais, que
devem ser garantidos para que os direitos de liberdade possam ser executados com a
substancial liberdade.

4. Distinção dos Direitos Humanos e Direitos Fundamentais

Os Direitos do Homem ou seja, os direitos humanos são os direitos aceites como


válidos por toda a Humanidade para todos os povos e todas as épocas, com base no
carácter inviolável, intemporal e universal da natureza da pessoa humana. Derivam da
natureza da pessoa humana, fazem parte da essência da Humanidade entendida aqui
como uma comunidade de gerações presentes e futuras.

Fazendo parte da essência da Humanidade e sendo conaturais ao próprio


Homem, os Direitos Humanos têm por objectivo a protecção da personalidade humana
na sua dimensão social e impõem limites à autoridade e soberania dos Estados
modernos. Os Direitos Humanos têm um carácter universal e indivisível e a
Comunidade Internacional possui organizações (como a Amnistia Internacional) e
normas, Tratados ou Convenções que visam a sua protecção ou salvaguarda (como a
DUDH).

50
Já os Direitos Fundamentais, são a consagração dos Direitos do Homem,
garantidos pelos Estados aos seus cidadãos através das respectivas Constituições ou
Leis Fundamentais. São os Direitos do Homem em vigor num ordenamento jurídico
concreto num dado momento histórico. Assim, os Direitos Humanos têm maior ou
menor consagração no direito positivo dos Estados. No entanto, o direito positivo só
tem efectividade numa sociedade se, se fundamentar em valores aceites pela
generalidade dos cidadãos e que, decorrendo da própria natureza humana (Direito
Natural), servem de referencial para a conformação do Direito positivo vigente. Como
nos refere Ana Martins (apud Moco, op. cit, p.55), O Direito Positivo “é constituído
pelo conjunto das normas jurídicas efectivamente em vigor, em dado momento e em
dada comunidade”. Ao passo que o Direito Natural “é o direito justo por excelência,
fundado na natureza humana e ou, que tem origem na vontade divina”. Sendo que o
Direito Natural teria assim por função dar legitimidade ao Direito Positivo
(ordenamento jurídico) que, por sua vez, para ser respeitado como válido deve
conformar-se com os princípios do Direito Natural, entendido como:

 Aquilo que é devido como justo em virtude da natureza das coisas (Lei
Natural);
 As normas emanadas da vontade divina;
 Os direitos subjectivos que todos os homens, enquanto pessoas, devem
desfrutar (Direitos Fundamentais, Direitos Humanos).

Sendo assim, os direitos fundamentais integram o chamado direito objectivo


enquanto conjunto de normas gerais e abstractas que se destinam a ordenar a vida em
sociedade. Para Mendes (apud Moco. ibidem, p. 51) os Direitos Fundamentais
costumam ser divididos, em função da época histórica em que surgiram, em quatro
gerações:

1ª Geração

Direitos Civis e Políticos, tem como referências históricas a Declaração da


Virgínia (Estados Unidos da América, 1776) e a DDHC (França, 1789) e inclui, entre
outros, os direitos à vida, à integridade física, à identidade pessoal, à cidadania, ao bom
nome e à reputação, à liberdade e à segurança, à liberdade de expressão de opinião, de
reunião, associação e manifestação, à liberdade de pensamento, consciência e de culto, o

51
direito de defesa, direito de contrair matrimónio e de constituir família, direito de voto,
de participação na vida política, de acesso a cargos públicos, de constituir ou participar
em associações e partidos políticos, direito à greve e liberdade sindical, etc.);

2ª Geração

Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Emergem entre o século XIX e início


do século XX, e incluem direitos ao trabalho, à iniciativa económica privada, à
propriedade privada, à segurança social, à protecção da saúde, à habitação, à protecção
da família, à protecção da paternidade e da maternidade, à protecção da infância, à
educação e formação profissional, ao desporto e à cultura física, à fruição e criação
culturais, etc., etc.). Algumas das referências históricas são a Constituição Mexicana de
1917 e a Constituição Russa de 1919.

3ª Geração

Direitos dos Povos e da Solidariedade (direitos dos povos à autodeterminação e


à soberania, à paz e ao desenvolvimento económico, aos seus recursos naturais, a uma
nova ordem política, económica e Internacional mais justa e equitativa, à paz e à
segurança Internacionais, a um meio ambiente equilibrado, etc. Como marcos
referenciais desta geração, citam-se, entre, outros documentos, a DUDH (ONU, 1948) e
a Declaração Universal dos Direitos dos Povos DUDP (1976).

4ª Geração

Direitos ao ambiente e à qualidade de vida. Tendo como uma das referências a


Carta da Terra ou a Declaração do Rio (1992), esta geração de direitos enfatiza os
direitos dos homens e dos povos a uma vida saudável, em harmonia com a natureza, o
direito a um ambiente saudável e ao desenvolvimento sustentável, etc.

Vê-se que os direitos da 4ª geração constituem um desprendimento dos direitos


da terceira geração, com maior ênfase colocada à problemática do ambiente e da
sustentabilidade do desenvolvimento. Fala-se, ainda, actualmente, numa nova geração
de direitos emergentes da Sociedade de Informação, colocando-se a ênfase no combate
à chamada infoexclusão. Preferimos, entretanto, considerar que tais direitos podem

52
enquadrar-se nos da 4ª geração, posto que ainda se está na senda da salvaguarda da
qualidade de vida.

Não basta, porém, que sejam formalmente consagrados os Direitos


Fundamentais, o que acontece na maior parte dos Estados da actualidade. Mais do que
reconhecer é mister garantir a efectividade dos Direitos e Liberdades Fundamentais.
Neste particular, existe um caminho longo a percorrer, como o demonstram as notícias
que, diariamente, são difundidas sobre a violação dos direitos mais elementares do
homem, como o direito à vida, à liberdade, à integridade física, ao nome, à liberdade,
dignidade, etc., apesar da acção sistemática de denúncia da sua inobservância por parte
de organizações internacionais e nacionais vocacionadas.

Por outro lado, o facto de os chamados direitos da 1ª geração, acima referidos,


serem conhecidos por alguma doutrina como direitos exigíveis e os restantes direitos,
em especial os socioeconómicos, como direitos não exigíveis (ou direitos sob reserva do
possível) pode levar a algum laxismo dos Estados na promoção do segundo grupo de
direitos, sem os quais a liberdade e a democracia ficam destituídas de conteúdo, por
falta de um elemento substancial que é a justiça social ou igualdade de oportunidades no
acesso efectivo a bens tangíveis de natureza socioeconómica.

O laxismo dos Estados a que se refere tende ainda a agravar-se quando as


Constituições, em sede da sua garantia e salvaguarda, incluem normas de fiscalização da
constitucionalidade que desconhecem em absoluto o instituto da inconstitucionalidade
por omissão, ou seja, por falta da diligência no sentido da promoção e da realização da
constituição dogmática.

Entretanto, a distinção existente entre os direitos humanos e os direitos


fundamentais é, o facto destes, serem o conjunto de normas e princípios consagrados
institucionalmente, reconhecidos e positivados no âmbito do direito constitucional
assentes num determinado Estado. Enquanto, que os direitos humanos estão abarcados
pelo direito internacional, porquanto, são extensivos a todos os seres humanos,
independentemente de sua vinculação a determinada ordem constitucional,
apresentando validade universal e carácter supranacional.

53
5. Limitações ao poder constituinte originário

O poder de fundar uma nova ordem jurídica, por meio da criação de uma
Constituição é, na plena acepção do termo, livre e incondicionado e, sob o aspecto
positivo, um poder pré-jurídico, antecedendo o próprio Direito. Mas, por outro lado,
também é um poder que visa um determinado fim, orientado por um objectivo jurídico
e, deste modo, passível de controlo e essencialmente limitado.

Saldanha, (1986, p. 90), argumenta que se “o poder constituinte não fosse


limitado, não seria jurídico. E se, por outro lado, o fosse completamente limitado não
seria um poder sociologicamente distinto e nem constituinte”. Na proporção de seus
limites, então, é que estariam os seus alcances, pois na medida em que é restringido é
que lhe são fornecidas as mais concretas perspectivas de actuação.

Entretanto, verifica-se que, na prática, a concepção usualmente encontrada na


maior parte dos Manuais é aquela que imputa ao poder constituinte originário uma
tríplice caracterização, repetida como um verdadeiro dogma, no sentido de ser este
inicial, incondicionado e ilimitado.

Para o efeito, há que se admitir seu carácter inicial, eis que tem o poder
constituinte originário a função de elaborar uma Constituição, documento que é a base
da ordem jurídica do Estado. Tão pouco se questiona o facto de ser considerado como
incondicionado, tendo em vista a não sujeição a qualquer forma prefixada para
manifestar sua vontade, não havendo um procedimento específico para tal. A
caracterização deste poder como ilimitado, porém, não se revela de todo pacífica, sendo
encontrado posicionamentos que se insurgem contra tal opinião.

O constitucionalista português Miranda (op. cit, p. 106), por exemplo, é um dos


que admite expressamente a existência de limites ao poder constituinte. E, de modo a
bem marcar sua posição, assinala que, “embora seja mais corrente na doutrina
considerar a existência de limites materiais do poder de revisão constitucional (ou poder
constituinte derivado), não se pode deixar de considerar a existência de limites materiais
(ainda que em graus diversos) do poder constituinte originário, por ele denominado de
verdadeiro e próprio”. Nesta ordem de ideias, distingue este autor três categorias de
limites materiais ao poder constituinte originário:

54
 Transcendentes;
 Imanentes; e
 Heterónimos.

Os limites transcendentes, são aqueles que se impõem à vontade do Estado (ou,


em termos democráticos, à vontade do povo) e provêm do Direito natural, como valores
éticos superiores, emanados de uma consciência colectiva. Dentre eles, se incluiriam os
direitos fundamentais relacionados com a dignidade da pessoa humana, tendo em vista
que seria inválido ou ilegítimo decretar normas constitucionais que, de alguma forma,
os ofendessem.

Grosso modo, é de considerar que negar a sujeição do poder constituinte a


determinados valores jurídicos equivaleria a destruir as bases éticas e convivências da
própria comunidade política. O direito, antes de ser lei, é valor, é ideia, é projecto
assumido pela comunidade. Não obstante veremos que, nenhum direito positivo,
nenhuma ideia de organização política, nenhum princípio pode tornar-se concretamente
eficaz sem que alguma força histórica e política dele se aproprie e o leve para a
realidade política e histórica.

Os limites imanentes, são os que decorrem da noção e do sentido do poder


constituinte formal enquanto poder estabelecido, identificado por certa origem e
finalidade e que se manifesta sob certas circunstâncias. Estariam aí compreendidos os
limites referentes à soberania do Estado, bem como à sua forma e à legitimidade política
em concreto. Ora, o que está em causa nos limites imanentes, é a necessária atinência
num concreto momento histórico de um concreto Estado, do exercício do poder
constituinte formal ao poder constituinte material.

Por último temos, os limites heterónomos, provenientes da relação com outros


ordenamentos jurídicos, tanto podendo referir-se às regras ou actos de Direito
Internacional como às de Direito interno, em caso de Estado composto ou complexo, e
assim tenha de ser seu ordenamento. Estes podem ser:

Limites heterónomos de direito internacional, com carácter geral, são os


princípios de jus cogens (como os constam de alguns artigos da DUDH e do art. 2º da
Carta das Nações Unidas);

55
Limites heterónomos de direito internacional, com carácter especial, são os que
correspondem à limitações do conteúdo da constituição por virtude de deveres
assumidos por um Estado para com outro Estado ou para com a comunidade
Internacional no seu conjunto.

Já os limites heterónomos de direito interno são tipicamente os limites


recíprocos, entre o poder constituinte federal e o dos estados federados. Aquele deve
respeitar a existência destes e assegurar a sua participação nos órgãos e nos actos
jurídicos principais a nível central.

No mesmo sentido, Bidart Campos (apud Saldanha, op. cit, p. 91-2), realça
que embora admitindo que o poder constituinte, ao fundar um Estado, não se ache
condicionado por instâncias positivas, podendo conferir qualquer conteúdo à
Constituição que venha a elaborar, alerta que isto não significa ser este totalmente
ilimitado.

Isto porque, o autor realça que acima das instâncias positivas, há que se
reconhecer a existência do direito natural ou da justiça, que impõem critérios de valor
que a vontade humana não pode simplesmente ignorar. Assim, é possível enumerar
certas questões a que todos os documentos constitucionais deveriam, necessariamente,
ajustar-se, dentre os quais se incluem a dignidade da pessoa humana, os direitos
individuais, a chamada justiça social e a liberdade.

Além destes, considerados como valores transcendentes, afirma o autor que todo
poder constituinte deveria seguir certas directrizes, as quais, inevitavelmente, também
funcionam como limitações, relacionadas ao próprio ambiente social e histórico daquela
comunidade em particular.

Com efeito, não se pode aceitar que as, Constituições sejam meros esquemas
teóricos, elaborados abstractamente. Tanto o passado, quanto o presente da sociedade
fornecem elementos que não podem ser desconsiderados, sob pena de estabelecer-se
uma estrutura dissociada por completo da realidade e que, por consequência, tenha sua
vigência prejudicada. As tradições, os costumes e as práticas sociais devem orientar os
trabalhos constituintes.

56
Saldanha, (Ibidem, p. 90), após assinalar genericamente, a forma bastante
firme, é ser o poder constituinte limitado, eis que orientado por um objectivo jurídico,
como já apontado, passa a discorrer mais detalhadamente sobre o tema, de modo a
melhor aclarar seu posicionamento.

O autor enfatiza, nesta ordem de ideias, a existência de duas espécies de limites,


relacionados, no plano interno, com a soberania (que, paradoxalmente, também é fonte
do poder constituinte) e com os princípios gerais de direito, e, por outro lado, com o
fenómeno da crescente intensificação da vida internacional.

O autor apresenta a soberania como um limite básico de todo poder constituinte,


pois seu actuar se restringe, por óbvio, aos limites físicos ou espaciais por ela abarcados.
Limites fundamentais a este poder seriam, também, aqueles decorrentes dos princípios
gerais do direito, sob o ponto de vista da justiça e dos valores essenciais a esta,
relacionados com destaque para aqueles concernentes às liberdades individuais,
necessariamente consagrados por todas as Constituições dos Estados que se intitulam
como democráticos.

Quanto à questão da internacionalização, trata-se de um processo que tem se


intensificado na actualidade, diante do incremento das relações entre os Estados, com a
consequente assunção de compromissos inter-estatais, que trazem reflexos inevitáveis
nos documentos constitucionais e geram uma série de desdobramentos e dificuldades
jurídicas.

Observa-se, portanto, que a possibilidade de instituírem-se limites ao poder


constituinte originário não é de todo estranha à doutrina, ainda que não exista, na
verdade, consenso a que se refeririam os mesmos, podendo ser relacionadas as mais
diversas opiniões neste sentido.

57
6. Os Direitos Humanos como limites ao Poder Constituinte Originário

Como já discorrido acima, o Poder Constituinte Originário é a manifestação do


poder soberano de um povo, o qual institui ou destitui um Estado, mediante vontade
conjugada de seus indivíduos. Esse poder soberano actualmente tende a ser relativizado,
visto que, sofre limitação pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Dessa
forma, para Mazzuoli (2010, p. 170), “a soberania perde o carácter absoluto na medida
em que admitem intervenções externas no plano interno”.

Quanto aos direitos humanos, na concepção de Mazzuoli (ibidem, p. 163), são:

“Aqueles direitos inerentes a todo e qualquer ser humano


(sem distinção de cor, raça, sexo, religião, condição
social, etc.), que visam estabelecer um patamar mínimo
ético de protecção da dignidade humana. São direitos que
ultrapassam as fronteiras territoriais dos Estados no
intuito de assegurar a todo e qualquer cidadão todos os
meios necessários para a salvaguarda da vida humana e
seus demais desdobramentos, permitindo a toda pessoa
que o desenvolvimento de suas qualidades pessoais e o
resguardo de sua integridade física e mental não sejam
frustrados pelo Estado ou seus agentes e, mais
modernamente, inclusive por determinadas relações
jurídicas de direito privado”.

Sendo que o autor nos apresenta os Direitos Humanos como, direitos que
ultrapassam as fronteiras territoriais dos Estados, esses Direitos não são inerentes à
entidade estatal, visto que, este tem limite territorial, mas o são ao indivíduo, pois
carrega seus direitos consigo independentemente do lugar. Posicionamento também
corroborado por Bonavides (op. cit, p. 807), quando diz que com a limitação da
soberania absoluta do Estado, o indivíduo deixa de ser apenas objecto e passa a ser
também, sujeito de direito Internacional Público.

Após os horrores do holocausto e com a transformação do indivíduo em sujeito


de direito internacional, a internacionalização dos Direitos Humanos se intensificou e
passou-se a adoptar medidas que garantissem o respeito pelos princípios de Direito
58
Natural, como o da dignidade humana, aplicando-se sanções àqueles que violassem
essas garantias fundamentais. Não sendo justificável, por exemplo, desobediência em
razão de diversidade cultural, sistema adoptado ou protecção à soberania dos Estados,
devendo haver um padrão mínimo de dignidade independentemente da cultura dos
povos.

Como referência no nosso ordenamento jurídico veremos que a Constituição


vigente, uma constituição social respeitador dos preceitos internacionais, deu o devido
valor às normas que tratam de direitos humanos, inclusive aos tratados internacionais,
estabelecendo no seu art. 26º, nº 1 que “os direitos fundamentais estabelecidos na
presente Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e regras
aplicáveis de direito internacional”.

Com esse dispositivo, a Constituição Angolana dá maior importância aos


Tratados Internacionais de Direitos Humanos, garantindo a aplicabilidade imediata
destes direitos no ordenamento jurídico nacional. Aprovados, os tratados internacionais
de Direitos Humanos passam a ser inderrogáveis, visto que, nenhum outro tratado ou
norma pode revogar essas cláusulas.

Porém, indaga-se quando à revogabilidade dos Tratados Internacionais na


vigência de Poder Constituinte Originário, visto que, uma das características desse
poder é a não limitação jurídica, ou seja, não sujeição a ordenamento jurídico anterior.
Entretanto, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos possuem um impedimento
à sua denúncia, que é o facto de serem normas jus cogens (normas jurídicas que não
podem ser afastadas pela vontade das partes ou direito imperativo).

De acordo com Mazzuoli (op. cit, p.104):

“Tais regras de jus cogens, a exemplo dos direitos


humanos, assim, têm o carácter de serem normas
imperativas de direito internacional geral, sendo
consideradas aceitas e reconhecidas pela sociedade
internacional dos Estados, em seu conjunto, como normas
que não admitem acordo em contrário (é direito
imperativo para os Estados) e que somente podem ser

59
modificadas por uma norma ulterior de direito
internacional geral que tenha, ademais, o mesmo
carácter”.

Portanto, torna-se difícil o processo de denúncia das normas jus cogens só sendo
revogado por outra norma da mesma espécie. Neste caso, uma nova Constituição
posterior à que aprovou este tratado, até mesmo por sua obrigação como instituidora de
um Estado Democrático, deverá se sujeitar a essa norma visto que no art. 5º da DUDH e
Programa de Acção de Viena, elaborada pela ONU 1993, determina-se que “é dever dos
Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais,
sejam quais forem seus sistemas políticos, económicos e culturais”.

Discorrendo sobre as teorias em relação à hierarquia dos Tratados Internacionais


de Protecção aos Direitos Humanos, expõe-se a teoria defendida pelo Professor Celso
D. Albuquerque Mello (apud, Mazzuoli, op. cit, p. 174), a qual em consonância com
o posicionamento adoptado no presente artigo eleva esta categoria de tratados
internacionais a norma supra constitucional, limitando até mesmo o Poder Constituinte
Originário que possa vir a elaborar nova Constituição.

Apesar de este posicionamento ser minoritário, tal teoria é consoante com o


carácter humanitário dos Tratados Internacionais dos Direitos Humanos, visto que,
procura valorizar os direitos mais fundamentais da pessoa humana, elevando o povo à
posição de verdadeiro titular do Poder Constituinte, impedindo a usurpação da vontade
popular por parte dos Poderes Constituídos.

7. Os Tratados de Direitos Humanos Como Limites ao Poder


Constituinte Originário

Apresentada a questão concernente à duvidosa legitimidade em torno da real


titularidade do poder constituinte enquanto poder de constituir um Estado, diante da
constatação de falhas no processo de representação popular, aliada à admissibilidade
doutrinária da oposição de limites ao poder constituinte originário, propõe-se que sejam
os Tratados Internacionais de Direitos Humanos identificados como a legítima limitação
material a este poder, visando o fortalecimento dos ideais democráticos no âmbito dos
Estados.

60
O poder constituinte e a democracia são destacados por Negri (2002, p. 7.)
como conceitos correspondentes e que sempre estiveram inseridos em um processo
histórico que, com o passar dos tempos, fez com que se identificassem cada vez mais:

“O poder constituinte não tem sido considerado apenas a


fonte omnipotente e expansiva que produz as normas
constitucionais de todos os ordenamentos jurídicos, mas
também o sujeito desta produção, uma actividade
igualmente omnipotente e expansiva. Sob este ponto de
vista, o poder constituinte tende a se identificar com o
próprio conceito de política, no sentido com que este é
compreendido numa sociedade democrática. Portanto,
qualificar constitucional e juridicamente o poder
constituinte não será simplesmente produzir normas
constitucionais e estruturar poderes constituídos, mas
sobretudo ordenar o poder constituinte enquanto sujeito,
regular a política democrática”.

Assim, de modo a assentar em bases firmes os princípios democráticos que


devem nortear a estrutura política dos Estados e preservar sua legitimidade, não pode o
poder constituinte, ao elaborar o documento que institucionalizará “o domínio de
homens sobre homens, afastar-se dos direitos da pessoa humana.

Significa dizer que, nos Estados de matriz democrática ou que, ao menos,


tenham a consolidação da democracia por objectivo, a estrutura de domínio só resta
plenamente justificada quando o poder se institua pela vontade do povo e tenha por
finalidade a emancipação humana, por meio, sobretudo, da garantia de acesso àqueles
direitos universalmente reconhecidos aos indivíduos.

Trata-se, assim, do reconhecimento de que a promoção dos chamados direitos


humanos é um factor indissociável da própria concepção de democracia, razão pela
qual, sem sombra de dúvidas, ao priorizar aqueles, tem-se o fortalecimento desta última.

61
Importa registar, com arrimo em Luzia Cabral Pinto (apud Negri op. cit, p.
11), que, ao se propor o uso dos direitos humanos como limitação ao poder constituinte
e, por consequência, critério legitimador do exercício do poder político.

Além do processo de constitucionalização de direitos, que dificilmente esgota o


tema por completo, a materialização desta opção política se dá também, hodiernamente,
por meio da adesão do Estado aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos,
documentos de abrangência mundial, que veiculam de forma explícita, por meio de
normas positivadas de cumprimento obrigatório por aqueles que a ele adiram, o que
abstractamente se convencionou denominar de direitos humanos.

E, considerando que são as exigências sociais de cada momento histórico, muitas


vezes decorrentes de árduos processos de luta política ou da constatação de que a prática
de certas condutas contrárias à dignidade da pessoa humana não mais devem ser aceitas,
que conduzem à institucionalização dos direitos humanos, verifica-se que os tratados
acabam por funcionar como marcos fundamentais de todo este processo servindo de
limite ao poder constituinte.

Sendo assim, no momento em que um Estado decide aderir a um determinado


Tratado Internacional que verse sobre Direitos Humanos, comprometendo-se a adoptar,
em seu âmbito de jurisdição, certos valores de promoção da pessoa humana que vêm a
ser agregados aos que eventualmente já eram reconhecidos pelo mesmo, estabelece ali
um marco que não admitiria supressão, sob pena de um odioso retrocesso, o que se
estende também para a hipótese de elaboração de uma nova Constituição, situação em
que o poder constituinte originário estaria limitado por aqueles documentos
internacionais.

De facto, tais ideias se amoldam à perspectiva de Bidart Campos (apud


Saldanha, op. cit, p. 87), segundo o qual, se, com o reconhecimento dos direitos
humanos em escala mundial o homem se tornou sujeito de direito internacional,
tampouco se pode negar que, em última instância, o exercício destes direitos se dá na
circunscrição do Estado ao qual pertence o indivíduo. Impõe-se, portanto, o amplo e
permanente diálogo entre os âmbitos interno e internacional.

62
Na perspectiva de Neves, (2006, p. 220), verifica-se existir aí um argumento
adicional para tratar o conteúdo dos Tratados de Direitos Humanos como limite material
ao poder constituinte originário, tendo em vista que estes documentos não poderiam ser
afastados sob a simples afirmação de que pertencem exclusivamente ao direito
internacional, já que é através do direito interno dos Estados que os mesmos irão se
concretizar.

Seguindo o raciocínio do autor é de afirmar que, neste processo de


concretização, estabelecem direitos novos ou ampliam a interpretação e aplicação dos já
existentes, de sorte que, assim sendo, passarão a estar incorporados no rol protegido e
garantido pelo Estado, razão pela qual não poderia ser admitida, no futuro, sua
instantânea supressão, ainda que por meio do eventual exercício do poder constituinte
originário.

Ademais, ainda que se partilhe do entendimento de que o poder constituinte


originário deva ter plena liberdade para fundar uma nova ordem constitucional, ao
ignorar os Tratados de Direitos Humanos a que o Estado aderiu, sob o argumento de
que a soberania estatal está acima da sociedade internacional, restam profundamente
prejudicados os princípios democráticos, que deveriam sempre nortear a conduta estatal,
como bem adverte Neves (op. Cit, p. 222):

“Os Estados que recorrem ao princípio clássico da


soberania para negar a possibilidade de controlo
internacional sobre o desrespeito interno dos direitos
humanos, em regra, afastam-se radicalmente do modelo
de Estado de Direito. De facto, onde houver Estado
Democrático de Direito, apesar das diversidades
culturais, não surgirão problemas relevantes entre
direitos humanos com pretensão de validade mundial e
soberania do Estado. Ao contrário, tenderá a haver um
crescente reconhecimento das declarações internacionais
de direitos, assim como a positivação legal e a
concretização dos respectivos conteúdos”.

63
Observa-se, assim, a existência de uma relação de verdadeira dependência entre
a democracia e os direitos humanos. A garantia de direitos aos indivíduos exige a
instituição do regime democrático, pois apenas neste os requisitos da dignidade da
pessoa humana podem ser plenamente atendidos, já que afastado o arbítrio do poder
político. E, por outro lado, a democracia só pode ser integralmente realizada, na plena
acepção do termo, por intermédio dos direitos assegurados aos indivíduos.

Depreende-se daí que a democracia se apresenta como um objectivo constante a


ser perseguido e não como algo definitivamente realizado, a partir da indicação de
metas que visem a realização dos direitos da pessoa humana, em um processo de
consolidação da própria legitimidade.

A constante invocação da dignidade da pessoa humana significará a libertação


real de todos os homens e não funcionará como máscara da legitimidade de interesses
particulares assimilados pelo direito. Assim, a defesa da limitação do poder constituinte
originário pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos se apresenta em perfeita
consonância com a promoção dos ideais democráticos, de modo a que, valorizando-se
cada vez mais os indivíduos, para que se possa ser alcançada e almejada a legitimidade
do exercício deste poder.

64
Conclusão

A teoria do poder constituinte originário é, na maioria das vezes, discutida, ainda


hoje, sob uma perspectiva doutrinária cujas bases remontam ao século XVIII, tendo por
objecto a situação política específica da França naquele conturbado momento histórico.
Decorre daí a noção correntemente aceita de que este poder tem por característica
primária ser ilimitado, sob o fundamento de que, ao elaborar uma Constituição para o
Estado, fundando um ordenamento jurídico completamente novo, estaria investido com
o manto da soberania popular, exercendo este mister como representante da vontade
popular, razão pela qual restaria afastada qualquer espécie de limite à sua actuação.

O poder constituinte originário foi tratado neste trabalho com o intuito de


esclarecer a ideia de que não é mais admissível a defesa de um poder ilimitado,
ressaltando a influência do contexto em toda Constituição que se pretende criar, como
confirmado pela história. Esclarecer também a ideia de que transições constitucionais
tendem a ser cada vez mais comuns que as anteriores revoluções que pretendiam ab-
rogar ordens constitucionais sem o menor compromisso com a dignidade da pessoa
humana.

Ao reflectirmos sobre quais limites seriam estes, começa a parte em que este
trabalho pretendeu problematizar a própria fundamentação dos direitos humanos, a
partir de tantas teorias existentes, pedindo a licença para não optar por nenhuma delas
de forma absoluta, ao mesmo tempo em que se opta por todas, na medida em que
defendem o ser humano em seus valores essenciais e reforçando a defesa de limites a
esta vontade humana. Os direitos fundamentais substanciais seriam, para nós, esta ponte
entre o passado e o presente. E, mais que tudo, a base para qualquer futura recriação
constitucional.

Assim é que a verdade, esculpida em textos internacionais, a proclamar que toda


pessoa tem direito ao reconhecimento de sua dignidade, não decorre de consentimento
mútuo acerca deste dispositivo, nem decorre de estar ele positivado, emana antes e
fundamentalmente do valor intrínseco do ser humano. Valor este reconhecido
explicitamente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

65
É com essa ideia que se iniciou este trabalho e não há outra que melhor o
finalize, a dignidade da pessoa humana. É este o limite omnipresente a que o poder
constituinte deve obedecer. Outros tantos podemos ver como: circunstanciais,
temporais, enfim, históricos existem. Mas nenhum outro é eterno, a não ser este, os
direitos fundamentais sempre decorrentes desta dignidade.

Considerando, então, que a teoria constitucional contemporânea está marcada,


em âmbito mundial, entre outras questões, especialmente pela variável democrática, e
que a democracia, por princípio, mantém uma relação de dependência com os direitos
fundamentais dos indivíduos, propõe-se que seja o conteúdo dos Tratados Internacionais
de Direitos Humanos adoptado como limites materiais ao poder constituinte originário.

Assim, se críticas há a este processo, não se pode ignorar que a imposição de


limites ao poder constituinte originário tem por único fim o fortalecimento dos ideais
democráticos, alcançando, por consequência, a plena valorização da pessoa humana, na
desejável consagração dos ditames da justiça social em escala mundial.

Sendo assim, a limitação dos Tratados Internacionais ao Poder Constituinte de


um Estado é necessária, visto que, protege os indivíduos e a colectividade, garantindo-
lhes os direitos que a eles são inerentes pelo simples facto de serem humanos. Também,
é possível perceber a importância das boas relações internacionais para que se
constituam os Estados Democráticos. Por fim, o Poder Constituinte Originário, apesar
de representar a força suprema de um Estado, sofre limitação pelas normas
Internacionais de Protecção aos Direitos Humanos, visto que, estas protegem a
dignidade e garante aos seus titulares o usufruto de seus direitos.

66
Recomendações

É importante que os Estados encontrem as melhores vias de inclusão, para


solucionarem as questões relacionadas a não limitação do poder constituinte, pelo facto
de este ser a base crucial de um Estado naquilo que é as linhas orientadoras do
ordenamento jurídico, para melhor aproveitarem as oportunidades e minimizar os riscos
e as ameaças no que toca a dignidade da pessoa humana como sendo, o limite máximo
deste poder, no qual recomenda-se:

– Que a democracia se apresente como um objectivo constante a ser perseguido


e não como algo definitivamente realizado, a partir da indicação de metas que visem a
realização dos direitos da pessoa humana, em um processo de consolidação da própria
legitimidade;

– Os direitos fundamentais do ser humano superam a ideia de serem outorgados


pelo Estado, dependente de sua criação pelo ente estatal;

– O pensamento jurídico deve desenvolver fórmulas de protecção eficazes a


estes direitos;

– A não limitação do poder Constituinte, como poder criador do Estado atentaria


contra esses mesmos direitos fundamentais;

– Desta forma a ideia de não limitação do poder constituinte originário encontra


obstáculos no próprio titular deste poder, o ser humano. O poder constituinte, através do
seu ou dos seus agentes, não esta autorizado a violar a existência e o reconhecimento
dos direitos fundamentais, não os prevendo na constituição do Estado;

– Proporcionar maior atenção à todos fazedores de direitos, os juízes,


procuradores, docentes e outros intelectuais, afectos com a vontade em construir a
ciência jurídica em Angola, para que mereçam a ajuda necessária quanto as
investigações cientificas;

– Estimular e promover a política no domínio da ciência da tecnologia de


investigação e do desenvolvimento;

67
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