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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

João Dantas dos Anjos Neto

Não se nasce travesti:


a construção dos corpos no cotidiano da prostituição

Doutorado em Ciências Sociais

São Paulo
2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais

Não se nasce travesti:


a construção dos corpos no cotidiano da prostituição

Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Estudos Em


Pós-Graduação em Ciências Sociais em cumprimento parcial
dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Ciências
Sociais pela Pontifícia Universidade católica de São Paulo
Orientadora: Mariza Martins Furquim Werneck

Doutorado em Ciências Sociais

São Paulo
2018
Não se nasce travesti:
a construção dos corpos no cotidiano da prostituição.

Banca examinadora:

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São Paulo
2018
“O meu corpo é um jardim, a minha vontade o seu jardineiro”.
William Shakespeare
DEDICATÓRIA

À minha primeira professora Nair Souza de Jesus, com quem aprendi


que cada letra tinha um temperamento, umas mais nervosas, tipo “S”
ou “R”, às quais deviam ter mais atenção e ser tratadas com carinho
especial. Outras eram mais amáveis, como “M”, “N”, “B”, e todas as
vogais e semivogais. Havia, em nossos encontros, uma história da vida
de cada letra, as sílabas eram relações de amizades, as palavras
turmas, frases ruas e livros, quanto maiores eram, maiores as cidades.
Quanto amor!
À minha irmã e meu irmão: Railda Batista Fischer, José Augusto
Laranjeira. Houve uma tempestade tórrida, onde o mundo deveria
acabar. Eles se mantiveram ao meu lado. À Sonia Aguiar e Jean
Fabiano, pela amizade, parceria e cumplicidade.
RESUMO

A tese, ora apresentada, “Não se nasce travesti: a construção dos corpos no cotidiano da
prostituição”, tem como objetivo responder à seguinte questão de partida: como se dá o
processo de construção dos corpos das travestis que trabalham como prostitutas no Bairro de
Atalaia, na capital de Sergipe, Aracaju, no período de 2013 a 2018? Pretendemos, a partir dela,
refletir sobre o cotidiano destas profissionais e a relação com seus imaginários, dentre eles, a
ideia de uma Europa construída pelo viés do olhar e vivência das travestis, a qual lhes serve
como marco referencial estético e possibilidades de coexistência. Nesse sentido, nosso percurso
metodológico orienta-se pela pesquisa qualitativa e interpretativa: a Etnografia.

Palavras-chave: Corpo; Travestis; Prostituição; Etnografia urbana.


ABSTRACT

The thesis herein presented, “One is not born transvestite: bodies construction in daily life
prostitution”, aims to answer the following research question: how does occur the process of
construction of transvestites’ bodies who work as prostitutes in Atalaia neighbourhood in
Aracaju, Brazil, in the period from 2013 to 2018? Our objective is to reflect on the intersection
between such professionals’ everyday lives and their imaginaries, amongst them the perception
of a Europe built under the lens and experiences of those transvestites, which operate both as
aesthetic referential framework as well as possibilities of coexistence. In this sense, our
methodological course is oriented by the qualitative and interpretive research: Ethnography.

Keywords: Body; Transvestites; Prostitution; Urban Ethnography.


Agradeço ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) pela concessão de Bolsa Integral
(140066/2016-0) que permitiu a realização dessa pesquisa.
AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Sergipe, que possibilitou meu afastamento, mostrando-se sensível à


capacitação do corpo docente.

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sei que as memórias de luta, desde a Ditadura
Militar, pela redemocratização não sucumbirão.

À Universidade do Porto, especialmente à querida Professora Isabel Dias, pelo acolhimento e


afeto.

Ao suor e sangue dos brasileiros, por meio da Capes/CNPq. Fiz o melhor possível. Enfrentei
incompreensões e questionamentos como: “o que é isso?”. Hoje respondo: é o meu sangue!
Sujo ou limpo. É a minha vida.

Aos meus ancestrais, que me deram um espaço simbólico de ser o que sou, pelas memórias,
consciente de que devo preservar e lutar pelo o que acredito.

À minha Orientadora Professora Mariza Werneck. Sei que há, sim, neste vasto mundo, pessoas
que tenham capacidades de entender a arte e a nobreza de suas propostas em fazer ciência. Pela
capacidade de, em quatro anos e meio, nunca repetir uma disciplina, sempre inovadora.

À Professora Celeste, pelo acolhimento e respeito, pelo grupo de pesquisa Geprac e estar
sempre ativa na tentativa em recuperar o Programa. Hercúlea tarefa!

À banca de defesa, gratidão por aceitar fazer parte deste rito. Meu contentamento em ter
docentes tão competentes, com experiências diversas. Sei que, mais que o ato de defender-me,
será aprender.

Às minhas amigas e revisoras, Cláudia Guarnieri e Karina Nunes, tão entregues, tão desejantes
pela qualidade do trabalho, que chegávamos a discutir, são pessoas de muitas verdades.

A todas as Travestis e a Kaylane, altiva, forte, oriunda de Alagoas, sempre sorridente e dizendo,
antes de entrar nos carros: “João, não vá embora, já volto”. Linda, tão segura de si e racional
em enfrentar o medo nas madrugadas, e por tudo o que vivemos. Gratidão. Às demais, por
tornarem o mundo mais lindo, diverso e por ter a força de questionar valores tão conservadores
com seus próprios corpos.

A André por todos os cuidados e amizade.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Sem título ............................................................................................ 38


Figura 2: Capa do Jornal Lampião (Edição experimental/número zero)
abril/1978 ............................................................................................ 52
Figura 3: Manifestação em defesa da liberdade de gênero no interior do
movimento trabalhista ........................................................................ 55
Figura 4: Manifestação contra a atuação do delegado Richetti .......................... 57
Figura 5: Lançamento do jornal O lampião da Esquina no Diretório
Acadêmico dos Estudantes ................................................................. 62
Figura 6: Boletins informativos do Grupo Dialogay de Sergipe. ....................... 63
Figura 7: Catedral de Chartres – França ............................................................. 74
Figura 8: Selene e Endymion – Nicolas Poussin 1632/1633 - Dimensões: 48 x
66 cm .................................................................................................. 78
Figura 9: Orlando quando menino ..................................................................... 94
Figura 10: A Princesa Russa quando criança ....................................................... 103
Figura 11: Arquiduquesa Harriet Griselda ........................................................... 106
Figura 12: Orlando na época atual ....................................................................... 109
Figura 13: Cartaz fixado no Campus de São Cristóvão da Universidade Federal
de Sergipe, [s.d.] ................................................................................. 114
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABA Associação Brasileira de Antropologia


AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
ANTRA Associação Nacional de Travestis e Transexuais
AZT Azidotimidina (Fármaco usado no tratamento da AIDS)
CBAA Centro Baiano AntiAIDS
CNV Comissão Nacional da Verdade
CID Classificação Internacional de Doenças
CUS Cultura e Sexualidade (Grupo de Pesquisa)
DOB Daughters Of Bilitis
GBB Grupo Gay da Bahia
GRID Gay-Related Immune Deficiency
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
ILGA International Lesbian, Gay, Bisexual, Transand and Intersex
Association
LGBTT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
LGBTQI+ Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers e Pessoas
Intersex
OMS Organização Mundial de Saúde
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização da Nações Unidas
PIB Produto Interno Bruto
SHL Studant Homophile League
SIR Society for Individual Rights
SOMOS (Grupo de afirmação homossexual)
SUMÁRIO

1APRESENTAÇÃO .............................................................................................. 14
1.1Metodologia ....................................................................................................... 18
1.2Não se nasce travesti: A tese ............................................................................ 20

2 CALEIDOSCÓPIO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO .............................. 27


2.1 Gênero: do fixo, flexível ao (re)flexivo ........................................................... 28
2.2 Stonewall: a luta pelos direitos LGBTQI+ ..................................................... 42
2.3 O Brasil visto da Lua ....................................................................................... 48
2.4 E da Lua, via-se Sergipe? ................................................................................ 61

3 A REPRESENTAÇÃO MÍTICA. CORPO: ANDROGINIA E 66


TRAVESTILIDADE .............................................................................................
3.1 Corpo ................................................................................................................. 67
3.2 Mito ................................................................................................................... 70
3.3 O Banquete, de Platão: o que o mito fala sobre nós ..................................... 74

4 OS FIOS DA TRAMA ENTRE OS CORPOS E AS IDENTIDADES EM


ORLANDO: UMA BIOGRAFIA ......................................................................... 80
4.1 Woolf! Uma ideia, Orlando: uma tessitura ................................................... 82
4.2 A Tríade: Virginia, Orlando e o Leitor .......................................................... 88
4.3 Orlando, assim como Diana: um caçador ...................................................... 91
4.4 Tempo em Orlando .......................................................................................... 94
4.5 Androginia e travestilidade ............................................................................. 99
4.6 Travestilidade e androginia ............................................................................ 104

5 OS CORPOS QUE DANÇAM E SE ACOTOVELAM À NOITE:


ETNOGRAFIA DAS TRAVESTIS NO BAIRRO DE ATALAIA, ARACAJU
.............................................................................................................. 111
5.1 O território de prostituição das travestis: Atalaia, Aracaju/Sergipe.......... 113
5.2 As damas da noite em Atalaia: do imaginário ao corpo possível ................ 123
5.3 Silicone: a dor da beleza .................................................................................. 127
5.4 Hormônios: até a morte do corpo ................................................................... 132
5.5 A pele é a parte mais profunda: pele, pelos e cabelos ................................... 137
5.6 Do gestual à indumentária: a metamorfose ................................................... 146
5.7 Do silicone à indumentária: a construção dos corpos .................................. 150
5.8 Os relacionamentos afetivos com os “homens da casa” ............................... 152
5.9 Do Natal ao Carnaval: considerações sobre as últimas visitas a campo ..... 154
5.10 A Europa: a terra sonhada ........................................................................... 157
5.11 Madrid e Paris: a complexidades dos cenários ........................................... 173
5.12 Paris ................................................................................................................. 179

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 184

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 188


14

Não se nasce travesti:


a construção dos corpos no cotidiano da prostituição

1 APRESENTAÇÃO

A cidade possibilitou o anonimato, o surgimento de novos grupos e o questionamento


de antigos valores. Pessoas anônimas perdiam-se na multidão. Hoje, coexistimos com essas
pessoas/espectros cotidianamente, sem efetivamente nos darmos conta. Nesse ambiente, a
individualidade passou a ser central, se comparada com o período anterior ao século XIX. A
cidade passa ser um mosaico de diversidades, porém com uma coexistência nem sempre
pacífica. A luta por territórios, os conflitos por valores e as tentativas em manter o poder por
parte de grupos serão elementos presentes. “Varanda, átrio, janela, portão, escada, telhado são,
ao mesmo tempo, palco e camarote” (BENJAMIN, p. 128, 2004).

Os espaços urbanos, protegidos por certo anonimato, possibilitam a vazão e a


racionalização da sexualidade. As práticas afetivas entre pessoas do mesmo sexo eram antes
categorizadas como “o pecado da sodomia” no mundo judaico-cristão. Segundo Pereira (p. 24,
2009), a expressão “se refere a um tipo de desvio sexual específico, pois ele inclui práticas
sexuais de distintas ordens. Assim, sodomita pode ser quem cometa atos impuros, busque prazer
com animais ou se relacione com pessoas do mesmo sexo”. Homossexuais foram,
posteriormente, sob a tutela da medicina, enquadrados como dementes, logo, passíveis de cura
ou tratamento. Acrescente-se que, para Michael Foucault (p. 23-42, 1995), a modernidade
dispõe-se a discutir a sexualidade, fazendo-a, no entanto, sob a ótica do que moralmente é tido
15

como verdade, e estabelecendo, dessa forma, as dicotomias entre correto/errado,


saudável/patológico. Na cidade, pode-se burlar a ordem, em recantos, jardins e lugares sigilosos
ou aparatos do próprio modelo econômico, como prostíbulos travestidos de bares, motéis, sites,
redes sociais. Estabelecimentos que, dentro da lógica capitalista, protegidos pelos seus muros,
criam sua própria ordem, regida pelo prazer do cliente.

Este trabalho tem como problema de pesquisa: como ocorrem os ritos da construção dos
corpos das travestis que trabalham como prostitutas no território do Bairro de Atalaia, na
Capital de Sergipe, Aracaju, no período de 2013 a 2018? Pretendemos, como objetivo principal,
refletir sobre o cotidiano das travestis que trabalham como prostitutas no território de Atalaia e
a relação com seus imaginários. Além disso, outro objetivo secundário que tomou corpo a partir
do trabalho de campo foi o cotidiano da prostituição na Europa das travestis, sob a construção
do corpo, visto que é neste que seus ritos se referenciam.

“Assim, o uso do substantivo travesti, como feminino, relaciona-se, também, com a


valorização do processo de construção de gênero feminino no corpo e na subjetividade das
travestis” (BENEDETTI, p. 26, 2005). É também no feminino que as travestis se relacionam e
se autorreferem. Todavia, não desejam ser mulheres.

A realização desta pesquisa deu-se de forma processual, marcada, porém, por desejos
de contribuir com um grupo aviltado. Quando aprovado para docente da Universidade Federal
de Sergipe, em junho de 2009, tinha ciência de que a pesquisa seria parte do meu labor diário.
Após efetuar alguns trabalhos sobre a Universidade Federal de Sergipe e sobre as comunidades
que a circundam, foi possível assim expandir o conhecimento sobre a, então, Grande Aracaju
(não tão grande assim). Entendi a negação da cidade pela antiga capital, a cidade de São
Cristóvão, dado que a Universidade oferecia cursos em territórios pertencentes à antiga capital.
No entanto, parte das alunas e alunos sempre se referia à Universidade Federal de Sergipe como
localizada em Aracaju (cidade), por exemplo, escrevendo nos trabalhos monográficos Aracaju,
em vez de São Cristóvão, bem como outros elementos que apresentaremos na etnografia.

Durante os primeiros anos, percebi que, posteriormente ao abandono da antiga Capital,


deixava-se no esquecimento o Centro Histórico de Aracaju. Assim, Atalaia, bairro onde realizo
o trabalho de campo, passou a ser um território de alto valor – simbólico, financeiro, estético –
16

, afinal, é a expressão da modernidade sergipana, com vidros verdes, edificações com


nomenclatura de difícil pronúncia e grafadas em inglês e francês.

Nesse momento, já conhecia, e recordo-me de fazer parte de algumas ações voltadas ao


universo LGBTQI1, por exemplo, participar das paradas do Orgulho Gay, ocorridas na Capital,
sobretudo no interior do Estado de Sergipe. Durante os contatos, principalmente com as
travestis, ao referir-se a Atalaia, havia narrativas cruéis: pessoas que jogavam água quente, fezes
por sobre seus muros, a emblemática senhora da casa da cor X (não identificarei, por uma
questão de preservar o território), que queria o fim da prostituição na localidade. Era um
território em expansão e a tomar forma. No entanto, a decisão por uma imersão antes da
aprovação no doutorado em Ciências Sociais/Antropologia na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo possuía objetivo diferente do presente. Norteava-me em entender o consumo desse
grupo, que resultou em publicações no periódico Novos Debates, da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), e algumas apresentações em congressos, como no Museu Nacional da
UFRJ. Contudo, a capacidade de resistir em Atalaia e lutar contra várias forças mostrou-me
algo novo. Cheguei a coexistir por três meses com um grupo que morava em dois quartos na
Coroa do Meio, um tipo de moradia chamada popularmente de “pela porco”, talvez pelo fato
de existir um banheiro para uso coletivo, razão, por vezes, de conflitos.

A minha escolha deu-se por questões objetivas e outras de cunho pessoal. Aos dezessete
anos, em Salvador, frequentava o Grupo Gay da Bahia (GGB), sobre os quais as narrativas das
travestis sempre me causavam muito incômodo, com suas memórias sobre a noite. Lembro que
o antropólogo Luiz Mott, então fundador e presidente do GGB, fazia uma roda, falávamos e
ouvíamos. Agora, recupero essa memória. Há em mim uma grande empatia pelo universo das
travestis, sinto-me em certa medida nômade e não compactuo que meu corpo siga modelos
sobre a dicotomia masculino e feminino.

Na PUC/SP, após centrar meu trabalho, unicamente, em gênero, por mais de um ano,
passei a problematizar a minha pesquisa, após as disciplinas da Professora e Orientadora Mariza

1
Entendemos ser a denominação LGBTQI a que se aproxima da diversidade do universo tratado:
“Internacionalmente, a sigla mais utilizada é LGBTI, que engloba as pessoas intersex. Órgãos como a ONU e a
Anistia Internacional elegeram esta denominação com um padrão para falar desta parcela da população. Em termos
de movimentos sociais, uma denominação que vem ganhando força é LGBTQ ou LGBTQI – incluindo, além da
orientação sexual e da diversidade de gênero, a perspectiva teórica e política dos Estudos Queer” (Disponível em:
<https://pausadramatica.com.br>. Acesso em: 23 dez. 2017).
17

Werneck, afinal, o gênero está inscrito em um corpo. Assim, a construção dos corpos passou a
ser do universo definido no objetivo, passou a ser central. Todavia, não único. O corpo existe
enquanto interações, memórias, desejos, negações, afirmações, vida e morte. Parecem-me
infinitas as relações que podemos estabelecer do corpo, com o corpo, pelo corpo. Resolvemos
reformular nosso problema e o objetivo de pesquisa, os quais se direcionavam para um
aprofundamento sobre os ritos de consumo, no primeiro momento.

Nesse cenário, talvez sejam as travestis o grupo que rompa com as crenças estabelecidas
e que estrutura a cultura, centrada na religião judaico-cristã, usando o próprio corpo, marcando-
o, metamorfoseando-o de forma mais conflitante para com outros grupos sociais. À medida que
buscam a identidade que desejam, deixam o anonimato e passam a ser um monstro
(FOULCAULT, p. 48, 2014). O anormal que coloca a sociedade em risco, portanto, deve ser
impedido, e assim é retirada sua humanidade, são desumanizadas.

Não sendo totalmente humanas, sendo um tipo de mostro humano (FOULCAULT, p.


48, 2014), suas vidas não possuem o mesmo valor que de uma pessoa, e, certamente, menor
para certos grupos de algumas outras espécies de animais. Essa coisificação, esse rebaixamento,
possivelmente, é uma das variáveis sobre as quais podemos divagar nesse fenômeno complexo
que coloca o Brasil como país que mais comete assassinato de travestis (usamos o termo
travestis genericamente, no entanto é uma nomenclatura brasileira) e trans, no mundo. Outro
aspecto que devemos salientar é a cena da morte, marcada, muitas vezes, por uma catarse de
crueldade, uso de objetos perfurantes, séries de tiros, exposição do cadáver, filmagem do ato.

Segundo o “Mapa de Assassinatos de Travestis e Transexuais 2017”, organizado pela


Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2018 ocorreram 179
assassinatos, sendo 169 de travestis e mulheres trans, 10 de homens trans. A nosso ver, esses
dados não correspondem à realidade, em virtude de a metodologia, que apresenta variações
entre as secretarias de Segurança Pública Estaduais e Organizações Civis, a determinação sobre
a tipificação referente ao crime, tratar-se, comumente, de crime passional ou a especificidade
da passionalidade, seja a homofobia, entre outros, mostrando protocolos de interpretação de
cada autoridade representante do Estado, passível de ser influenciada por elementos culturais
locais. Por outras vertentes, O Grupo Gay da Bahia (GGB), organização mais antiga a fazer
essa catalogação, apoia-se em redes de comunicação, que os informam e seguidamente
investigam – usando seus próprios critérios metodológicos e recursos financeiros. Tratando-se
18

do Estado baiano, estado do escopo de cobertura da organização, possuindo área de 567.295


km/2, população de 15,2 milhões, distribuída em 417 municípios (IBGE), apresenta grande
complexidade e, sob nossa perspectiva, cria possibilidades de muitos dos assassinatos não
serem tipificados adequadamente.

Tornar-se travesti é ser percebido e nomeado pelo outro, esquecer o nome de batismo e
(re)nascer com o nome escolhido pelos mais diversos motivos. Travestis são aquelas que
trabalham, modificam e transformam seus corpos com o objetivo de aproximar-se do corpo
feminino. Além dessas transformações, a indumentária usada cotidianamente é feminina, bem
como a identidade, não havendo o desejo de recorrer ao recurso cirúrgico para a
transgenitalização.

1.1 Metodologia

Com o problema de pesquisa como referência, demandamos, pelo modelo que se


operacionaliza, o que Silva (p. 26, 2006) chamou de “olhar desde dentro”. Adotamos a
etnografia, método possuidor de estruturação teórica e prática própria, como definido por Rocha
e Barros (p. 39, 2006), com base na “ênfase na exploração da natureza de um fenômeno social
particular; entrevistas em profundidade; observação participante; investigação em detalhe e
interpretação de significados”. No entanto, para os autores, “o que marca a etnografia é
investigar por dentro a realidade de um grupo, sendo o saber gerado a partir do ponto de vista
do outro”. Distancia-se, assim, dos métodos artificiais convencionais e comumente utilizados
em pesquisas de mercado.

O método etnográfico foi usado inicialmente em tribos e comunidades tradicionais.


Bronislaw Malinowski, no início do século XX, no livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental,
relata a pesquisa realizada com tribos da Ilha Trobriand, em que se afirma a prática etnográfica
como método, sistematizada na obra Uma teoria científica de cultura (2009). Contudo, foi com
a Escola de Chicago, nos anos 1940, que a etnografia ganhou os centros urbanos, também
chamada de “etnografia urbana”, e acabou por relativizar alguns princípios, por exemplo, o
tempo de convívio com o grupo pesquisado, passando a delimitar aspectos específicos, como o
consumo (ROCHA; BARROS, p. 39, 2006). Mais recentemente, há etnografias que têm como
objetivo pesquisar as comunidades que ocorrem em meios digitais (SHERRY; KOZINETS,
19

2000). Para Hine (2008), a aplicação do método etnográfico no estudo de comunidades virtuais
dilata a aplicação da etnografia tradicional.

A pesquisa, de 2013 a julho de 2018, com intervalos, ora pelo Doutorado Sanduíche na
Universidade do Porto, ora pela distância, bem como a necessidade de maturação e
transformação dos dados coletados em informações, mantinha-me em contato com duas
informantes, por meio de redes sociais, mais especificamente, o Messenger, ferramenta do
Facebook. Importante salientar que, por questões éticas, minha rede social não permite que os
outros conectados saibam quem são os componentes da minha teia, preservando a identidade
delas, fato que também seria difícil identificá-las por haver um número maior de travestis do
que de informantes. No entanto, a aproximação mostrou-se menos difícil que o esperado, e
somente o tempo deu-me a capacidade de adentrar nos universos simbólicos das travestis.

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com as informantes, nas residências das


travestis. Além do convívio diário, acompanhei as travestis durante o uso de serviços públicos
e no local de trabalho; estive presente durante as compras em estabelecimentos comerciais e
quando as sacoleiras fizeram visitas às suas residências, prática comum no público aqui
delimitado. Essa interação foi possível, pois já havia realizado pesquisa durante o primeiro
semestre de 2013, obtendo o consentimento informado de parte significativa das travestis que
trabalhavam nesse território.

Devemos considerar alguns aspectos deste trabalho, como o campo etnográfico, que
possui um caráter limitado, não podendo ser atribuído a outros grupos, mesmo dentro de
Aracaju, sabendo que a maior parte é influenciada pelo nomadismo2. A construção etnográfica
não negligenciou a violência vivida pelas travestis, construiu um caminho sem efetivamente
desejar a totalidade; o aspecto humano ou ético, ao entender como um grupo aviltado, foi
cuidadosamente periciado por revisores. Os nomes foram substituídos por outros (quando
possível, sugerido pelas próprias travestis), objetivando a preservação das identidades. As
localidades não são explícitas, não há nomes de ruas, ou maiores informações. Serão

2
O termo nomadismo é utilizado em contraponto ao conceito de povos sedentários, considerando essa definição
ampla e descartando a definição a seguir pelo valor moral, contudo vale salientar que cada grupo migratório
constitui uma especificidade própria. “Em sentido vulgar, é qualquer forma de vida errante, independente da base
econômica, subestilo de grupo de vida, assim, costuma-se falar do nomadismo dos caçadores paleolíticos, dos
índios das pradarias ou, num plano bem diverso, dos ciganos. Todos os pesquisadores atuais refutam este emprego
excessivamente generalizado, como se pode ver em H. P. Fairchild, R. Sauer, etc.” (DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS, p. 820, 1987).
20

apresentados às travestis os resultados da pesquisa após sua conclusão, e antes de torná-la


pública.

1.2 Não se nasce travesti: A tese

Metamorfose
Súbito pássaro
dentro dos muros
caído,
pálido barco
na onda serena
chegado.
Noite sem braços!
Cálido sangue
corrido.
E imensamente
o navegante
mudado.
Seus olhos densos
apenas sabem
ter sido.
Seu lábio leva
um outro nome
mandado.
Súbito pássaro
por altas nuvens
bebido.
Pálido barco
nas flores quietas
quebrado.
Nunca, jamais
e para sempre
perdido
O eco do corpo
no próprio vento
pregado.
Cecília Meireles

A tese é composta por seis capítulos: 1. Apresentação. 2. Caleidoscópio dos corpos


desviantes; 3. A representação mítica. Corpo: androginia e travestilidade; 4. Os fios da trama
entre os corpos e as identidades em Orlando: uma biografia. 5. A Etnografia, e, por fim, a
Conclusão.
21

O objetivo do segundo capítulo é discutir alguns conceitos e processos, por vezes


controversos nas ciências, como gênero, o movimento feminista e a influência nas lutas pela
construção do movimento LGBTQI. A delimitação temporal, mesmo não se restringido ao
período definido como “primeira onda”3, será o foco das análises, e recai sobre um período de
menor controle da ditadura, no Brasil, na gestão do general Geisel, focando do final da década
de 1970 a meados da década de 19804. Entendemos não haver uma data precisa de início ou
término, mesmo dentro desse período, uma vez que as ações dos governos Geisel e Figueiredo
foram ora mais violentas, ora mais amenas.

Por tratar-se de uma pesquisa sobre a construção do corpo, e é nesse corpo que se dá a
“performatividade de gênero”5, foi-me enriquecedor o aprofundamento no universo simbólico
dos mitos, uma vez que somos também parte de identidades influenciadas por eles. Entendemos
que a matriz judaico-cristã, em muitos momentos relê e apodera-se dos mitos greco-romanos,
a exemplo da obra Metamorfoses, de Ovídio, que apresenta indícios da primeira destruição do
mundo por água, como descrita na Bíblia, em Gênesis, no Antigo Testamento6.

Com o objetivo de criar uma espécie de “lastreamento móvel”7 para a pesquisa aqui
realizada e responder ao problema apresentado, conceituamos e discutimos identidades, gênero,
refletindo sob a ótica da formação higienista, uma perspectiva possível da chegada da província

3
“O primeiro momento, que chamarei de ‘primeira onda’, corresponde ao surgimento e
expansão desse movimento durante o período de ‘abertura’ política e foi registrado pela maior parte da bibliografia
disponível sobre o tema. Nesse momento, as iniciativas estiveram bastante concentradas no eixo Rio-São Paulo,
eram fortemente marcadas por um caráter antiautoritário e comunitarista, pela relação com propostas de
transformação para o conjunto da sociedade e foram tratadas pela bibliografia sobre movimentos sociais a partir
do enquadramento entre os movimentos então chamados de ‘alternativos’ ou ‘libertários’” (FACCHINI, p. 81-
124, 2003).
4
“No ano de 1978 o Brasil era governado pelo penúltimo general ditador: Ernesto Geisel, governo esse que foi de
1974 a 1979 e tinha como promessa a abertura ‘lenta, gradual e segura’, como assinala Reis (2013, p. 200). Nesta
fase final da ditadura, a censura e a repressão já estavam reduzidas, e a abertura política já havia se iniciado em
1974 e Atos Institucionais como o AI-5 já estavam sendo revogados. É neste contexto que surge o Lampião da
Esquina, um jornal da chamada imprensa alternativa, que tinha como diferencial falar sobre a comunidade gay”
(BROERING, p. 19, 2018).
5
Judith Butler define o conceito de “performatividade de gênero”, afirmando que este “[...] não é um ‘ato’ singular,
porque sempre é a reiteração de uma norma ou um conjunto de normas e, na medida em que adquire a condição
de ato no presente, oculta ou dissimula as convenções de que é uma repetição” (BUTLER, p. 34, 2002).
6
Bíblia Sagrada (1999).
7
Refiro-me a “lastreamento móvel” como aquele que deseja mostrar a abstração da percepção dos conceitos, a
depender da área de conhecimento, como argumenta Deleuze e Guattari, em O que é filosofia?: “Todo conceito é,
ao menos, duplo ou triplo etc. Também não há conceito que tenha todos os componentes, já que seria um puro e
simples caos: mesmo os pretensos universais, com os conceitos últimos devem sair do caos, circunscrevendo um
universo que os explica (contemplação, reflexão, comunicação...). Todo conceito tem um contorno irregular,
definido pelas siglas de suas cifras componentes [...] A ideia de conceito é uma questão de articulação, corte e
superposição” (DELEUZE, GUATTTRI, p. 23, 2010).
22

da então Aracaju. Antes de chegarmos à problematização do capítulo, criamos esse diálogo


entre alguns pensadores, áreas do conhecimento e tipos de manifestação, com o objetivo de
cunhar um lastramento que possibilite a compreensão das memórias dos movimentos gays
(referimo-nos a gays com o objetivo de evitar anacronismo) e processos históricos. Entretanto,
é com os estudos de Marcel Mauss, sobre a desnaturalização da mulher, que pretendemos iniciar
as discussões.

O ponto inicial dá-se com a desnaturalização do lugar do corpo na cultura. Afinal, ao


longo da história, o desequilíbrio de poder entre homens e mulheres tinha sido considerado
natural. Contudo, o uso do termo gênero atua como forma de diferenciar os aspectos biológicos
dos sociais, sendo o sexo relacionado à biologia e gênero à cultura. Mauss já demonstrara, em
Técnicas do Corpo (1934), que a conduta corporal humana também é construída culturalmente.
O antropólogo advertiu que a naturalização dos papéis sexuais desempenhados por homens e
mulheres era equivocada.

Seguidamente, continuaremos com a jovem Margaret Mead, que ao regressar de viagem


lança a obra Coming of Age in Samoa8 (1928), na qual demonstra que a passagem pelo que seria
a adolescência, em nossa cultura, dá-se de forma conturbada, e que os problemas decorrentes
dessa fase estão ligados às expectativas e exigências culturais. No entanto, sua afirmação de
que as mulheres de Samoa optavam por adiar o casamento por anos para desfrutar o sexo
ocasional fez com que a obra fosse hostilizada e recebida como mero livro de sexo, pois se
confrontava com o padrão vigente da época (VICENTE, 2014). Em seu livro, Sexo e
Temperamento, publicado em 1935, fruto de pesquisa com aborígenes em Nova Guiné
(Arapesh, Mundugumor e Tchambuli), Mead observou que os papéis sociais de homens e
mulheres variavam de tribo para tribo, não sendo, portanto, inatos, e sim culturais. Nas tribos
Arapesha, as pesquisas mostraram a maternidade como uma imbricada relação entre pai e mãe,
na qual o foco era ajudar o desenvolvimento do filho ou filha.

Compreendemos valioso, antes de adentrar no Universo LGBBTT+, ressaltar o


questionamento que Judith Butler faz da obra O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, ao
buscarmos problematizar sua posição, considerada esta última como limitada, trazendo à tona
a relação fêmea/mulher para criticar a tão difundida expressão: “Ninguém nasce mulher: torna-

8
Adolescência, sexo e cultura em Samoa (tradução nossa).
23

se mulher” (p. 11, 2016). De acordo com Butler, Beauvoir faz declarações que “pressupõem e
definem por antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis de
gênero na cultura” (BUTLER, p. 28, 2003), de algo que ocorrerá no universo cultural. Quanto
à afirmação citada, “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que
se torna mulher seja necessariamente fêmea” (BUTLER, p. 27, 2003).

O percurso sobre o movimento feminista é necessário. É da desnaturalização do


sexo/gênero que os grupos, inicialmente gays, se apoderarão para construir suas pautas.
Seguimos com alguns desdobramentos de marcos importantes, como Stonewall, Milk, a peste
gay9 e suas consequências.

Com o subtítulo O Brasil visto da Lua10, tentaremos recuperar alguns elementos e


memórias da construção dos movimentos sociais, inicialmente GLS, centrados no eixo Rio de
Janeiro capital e São Paulo capital, como o Grupo SOMOS, o jornal Lampião da Esquina e a
expansão para o Nordeste do Brasil, com a Criação do Grupo Gay da Bahia (GGB), o qual viria
a criar uma rede de influências, chegando a Aracaju, onde entendo não ter ocorrido um
movimento social, e sim de um grupo. Entretanto, a criação do Dialogay, nos anos de 1990, foi
um importante marco, fato que discutiremos na última parte do capítulo, intitulada “E na Lua,
via-se Sergipe?”.

Há, nesse título, uma espécie de questionamento identitário, uma vez que Sergipe é o
menor Estado do Brasil, fato que fragiliza a identidade sergipana, com sua elite oriunda da
aristocracia rural, composta por grandes canaviais e criação de gado, até o início deste século.
E foi nos latifúndios que surgiu a criação de uma espécie de elite segregacionista, higienista,
racista, conforme discutiremos na Etnografia.

9
Não distante da discussão aqui apresentada, a AIDS logo foi fortemente ligada à homossexualidade, nos anos
1980, trazendo abertura para que discursos midiáticos fossem construídos e difundidos com essa ideia. Logo, os
sujeitos de um lado do muro enxergavam os sujeitos do outro lado (LGBTS) como transmissores do vírus, e até
atribuindo à AIDS o título de “peste gay”. Com o tempo, os discursos foram mudando, pois as causas e efeitos do
HIV e da AIDS foram sendo esclarecidos por profissionais da área e descontruídos por veículos de informação.
Seguindo a ideia de Assmann (2011), essa memória cultural sobre portadores de AIDS foi construída com a ajuda
de aparatos midiáticos que propagavam esse discurso imagético e textual sobre o tema (MELO, p. 226, 2013).
10
Título da primeira parte da publicação de Trevisan (2000), utilizado aqui como uma metáfora da nossa
impossibilidade desse tão longínquo distanciamento do fato social (TREVISAN, 2000).
24

No capítulo posterior, intitulado “A representação mítica. Corpo: androginia e


travestilidade”, não nos orientamos na relação de causa e efeito. Não seria possível estabelecer
uma linha reta da Grécia à contemporaneidade, criando relações sob o olhar da “epistemé
moderna” (FOUCAULT, p. 55, 1999). Objetivamos, no campo mítico, tecer algumas
considerações, analisar trechos da obra O Baquete (2016), de Platão (380 a.C.), elementos,
relações.

Na apologia a Eros, nos discursos enunciados por Fedro, Pausânias, Erixímaco,


Aristófanes, Sócrates, em O Banquete, interessa-nos o proferido por Aristófanes. O que o mito
da androginia tem a nos dizer nesse discurso? Entendemos que a reflexão se sobrepõe à
objetividade do anacronismo. Salientamos que não se trata de uma relação objetiva, portanto
não buscamos aqui explicar o mito fundador para a travestilidade. Como o universo mítico,
herdado da cultura grega, ainda reverbera na construção dos nossos mitos, parece-nos razoável
pensar sobre corpos, práticas, cotidianos daquela cultura. Tanto no universo mitológico grego
quanto no judaico-cristão, a androginia carrega em si uma marcação, um estigma (GOFFMAN,
p. 13, 2008). A responsabilidade por ter desafiado Zeus, para os gregos. Para os judaico-
cristãos, a androginia aproxima-se da figura demoníaca, bestializada, sendo comum, no período
da Idade Média, a representação dos demônios como seres possuidores de pênis e seios
(HOLLOWAY, 2013).

Após a tentativa de entender outros corpos na mitologia grega, direcionamo-nos para a


literatura. Afinal, este trabalho não trata de uma relação de causas e efeitos, o que certamente
seria mais óbvio, fácil, todavia menos sensível e verdadeiro que atirar-se ao desejo de outra
forma de construção. A sensível obra de Virginia Woolf, Orlando: uma biografia. No capítulo
quarto, objetivamos trabalhar as relações de corporeidade do personagem Orlando, que transita
entre o sexo masculino e feminino, mantendo a memória.

A bem da verdade, desejávamos incluir João Guimarães Rosa, com a obra Grande
Sertão Veredas, devido à trama envolvendo o/a personagem Diadorim, que continua a linhagem
das donzelas guerreiras, afinal, nada seria mais oportuno que trabalhar uma obra com a beleza
e o peso de Grande Sertão Veredas. Entretanto, entendemos que Virgínia nos cabia, certos de
que Rosa nos abriria novos campos. No entanto, suas possibilidades linguísticas, seus processos
de pesquisa, a obra, teríamos que fazer muitos recortes. Contudo, há momentos em que temos
25

que fazer escolhas, pois percebemos que na caminhada, por vezes, em Orlando, não são os
gêneros que estão em questão, muito menos sua nomenclatura.

A Orlando importa o sentimento (como personagem, como uma identidade móvel ao


longo dos séculos). Assim, a apoderação de várias publicações, aproximando a obra de Virginia
Woolf ao pensamento queer, parece-nos uma tentativa de “queerização”. Como podemos impor
um conceito tão contemporâneo a uma obra de 1928? Não nos parece que essa seja a questão
em Orlando: as possibilidades são diversas, e citar apenas uma seria sinônimo de limitar os
caminhos da obra de arte. Discordamos de mais de uma dúzia de trabalhos, que, no afã do novo,
se esquecem de se questionar: há algo tão novo assim sob o sol?

Durante o sentir e produzir da etnografia, mostrou-se o quanto era importante a reflexão


sobre a obra Orlando: uma biografia, visto que aguçou minha forma de sentir, e,
consequentemente, de escrever. Fez-me racionalizar que as questões estilísticas do autor, na
produção de uma tese, assim como de uma etnografia, estão ora mais implícitas, ora mais
explícitas.

A etnografia foi realizada em Aracaju, durante o período que acompanhamos as travestis


e o território (2013-1018), bem como as travestis brasileiras que vivem na Europa – com este
último grupo coexistimos por oito meses. Estas últimas trabalhavam como profissionais do sexo
em territórios na região do Porto/Portugal, Lisboa/Portugal, Madri/Espanha, Paris/França, o que
resultou na pesquisa sobre a qual a construímos parte do capítulo 5, intitulado “Os corpos que
dançam e se acotovelam à noite: uma etnografia”. As travestis de Aracaju, seus desejos de ir à
Europa, os anticonceptivos, o homem da casa, a dor da beleza. Nesse capítulo cria-se uma trama
com as travestis que transitam entre as cidades como nômades ou residentes de determinada
localidade, na Europa. Para tanto, fiz o percurso desejado por elas, ou explicitado por algumas:
sair de Aracaju a São Paulo e, posteriormente, à Europa. Saliento que a Itália é uma lacuna a
ser preenchida nesse eterno devir. Como sabemos, há uma veia – ou até uma artéria – que cria
conexões entre as obras consideradas do campo literário e a etnografia. Se existe uma fronteira
entre elas, esta é borrada. A ideia de limites inexatos, incoerentes, complexos, sobrepostos, é
uma ruptura com as tentativas de isolamentos das diversas áreas do saber. Como pontua Lílian
Ávila (p. 42-43, 2007):
26

Segundo Octávio Ianni, Literatura e Antropologia, ambas constroem o


mundo, seus modos e seus personagens: Dom Quixote, Macunaíma, Hamlet,
o burguês, o operário, o revolucionário, o intelectual. A Literatura, por certo,
convive harmonicamente com esse fato, sua narrativa é interpretativa, é
artística, é ficção, por natureza – para se criar um personagem, o autor serviu-
se de várias pessoas reais. Mas no texto etnográfico também falamos Os Nuer
– empiricamente não existe Os Nuer, existem sujeitos que pertencem a uma
cultura, ou tribo, ou sociedade que chama a si mesma de Nuer. Todos esses
sujeitos reunidos constituem essa coletividade. Por certo, um ou outro
Trobriandês teria algumas ideias, ainda que minimamente, diferenciadas
sobre a crença na magia das grandes canoas ou a fé na existência dos Baloma.
No entanto, no texto etnográfico, todos os trobriandeses creem em suas canoas
e em seus Balomas.

A forma como a tese foi construída possibilita que as divisões capitulares sejam lidas
independentemente. Assim, graças a Moira Láquesis (MEUNIER, p. 227, 1961), há um fio que
perpassa todo o trabalho. Criando pontes diversas entre os vários capítulos, o construto do
trabalho divide-se em seis dimensões, a priori. Uma sobre a qual lançamo-nos a refletir usando
a memória encontrada em dados secundários, uma única entrevista com um pesquisador, dados
da historiografia sobre o movimento feminista e a relação como base para o movimento gay
(nomenclatura utilizada no momento do surgimento) nos EUA e a chegada ao Brasil.
Inicialmente, em São Paulo e Rio de Janeiro, depois, como quem regula um caleidoscópio,
juntando pedaços desse processo, chegamos à Bahia, que muito influenciou um incipiente,
porém importante, grupo em Aracaju. O militante e professor emérito da Universidade Federal
da Bahia, Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), criado na década 1980, grupo
que, posterior ao SOMOS/SP, teve forte atuação e estabeleceu conexões entre os movimentos,
articulando Sudeste e Salvador. O GGB influenciou fortemente a criação do primeiro grupo gay
de Aracaju, Dialogay, que ainda hoje possui vínculos com os grupos sergipanos. Não raro, o
então polêmico Luiz Mott faz apresentações voltadas a políticas públicas, além de outras
atividades referentes ao universo LGBTQI.
27

2 CALEIDOSCÓPIO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO

“Questões”
a)
O
fruto
arquitetado:
como o sermos?

b)
Difícil o real.
O real fruto.
Como, através
da forma, distingui-lo?

c)
Aguda
a
luz
sem forma
do que somos
Como, sem vacilações,
vivê-la?

(Orides Fontela, 2015)

A presente tese trata da construção dos corpos das travestis que trabalham como
profissionais do sexo no bairro de Atalaia, em Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Para
estabelecermos a reflexão sobre o processo de constituição dos gêneros, enquanto construção
social, bem como seus desdobramentos11, buscamos entender, neste capítulo, o que James
Green (2000) chama de primeira onda, aplicada a este estudo.

O objetivo deste capítulo é discutir brevemente alguns conceitos, por vezes controversos
nas ciências, como o conceito de “gênero”. A delimitação temporal restringe-se ao período
definido como primeira onda, suprarreferido, e recai sobre um período de menor controle da
ditadura, na gestão do general Geisel, focando do final da década de 1970 a meados da década
de 1980. Entendemos não haver uma data precisa de início ou término, mesmo dentro desse
período, uma vez que as ações dos governos Geisel e Figueiredo foram ora mais violentas, ora
mais amenas.

11
Um desses desdobramentos deriva do ativismo gay nos Estados Unidos da América, no protesto conhecido como
Stonewall Inn, considerado por alguns ativistas e pesquisadores a grande influência para os grupos gays brasileiros,
ainda que essa influência encontre um cenário local ditatorial.
28

Foram, aqui, utilizadas fontes primárias e secundárias. Realizamos uma entrevista, por
telefone, com o professor e militante Marcos Ribeiro de Melo, fundador do Grupo Dialogay,
primeiro grupo gay de Sergipe, fundado em 1981. Seu relato foi ainda mais importante pelo
fato de haver poucos trabalhos científicos e fontes confiáveis a respeito do tema. Pretendíamos,
ainda, entrevistar o antropólogo Luiz Mott, que também atua no cenário sergipano. No entanto,
sua agenda de viagens e trabalhos tornou inviável nosso contato. Entre as fontes secundárias,
foram utilizados jornais e revistas, destacando-se o periódico Lampião da Esquina.

2.1 Gênero: do fixo, flexível ao (re)flexivo

Muita gente [...] sustentando que uma mudança de sexo é contra


a natureza, esforçou-se para provar que (1) Orlando sempre tinha
sido mulher, (2) Orlando é, neste momento, homem. Deixemos
biólogos e psicólogos decidirem. Para nós é suficiente constatar
o simples fato: Orlando foi homem até os trinta anos; nessa
ocasião tornou-se mulher e assim permaneceu daí por diante
(WOOLF, p. 100, 1982).

Ao longo da história, o desequilíbrio de poder entre homens e mulheres tem sido


considerado sob a perspectiva do que chamavam “natural”. Contudo, na contemporaneidade, o
uso do termo gênero atua como forma de diferenciar os aspectos biológicos dos sociais, sendo
sexo relacionado à biologia e gênero à cultura. Marcel Mauss já demonstrara, em Técnicas do
Corpo (1934), que a conduta corporal humana também é construída culturalmente. O
antropólogo advertiu que a naturalização dos papéis sexuais desempenhados por homens e
mulheres era equivocada.

Em 1947, Denise Paulme publicou o Manual de Etnografia, de Mauss, que foi muito
bem aceito e esgotou-se rapidamente, de acordo com Marie-Élisabeth Handman (2014). Nessa
publicação, referindo-se às técnicas que constam na obra Técnicas do Corpo, já citada, Mauss
ressaltou diversos problemas, sendo um deles a questão da divisão de trabalho de acordo com
os sexos. Como o próprio subtítulo de Handman pontua: Um programa inacabado, Mauss
continua:

[...] No que diz respeito ao transporte: “O homem, ou mais geralmente a


mulher, foi o primeiro burro de carga da história”. [...] Neste livro, pelo menos
cinquenta recomendações são feitas aos jovens etnólogos para que considerem
as mulheres tanto quanto os homens em suas observações (HANDMAM, p.
88, 2014).
29

Para o Dicionário de Verbetes da Associação Brasileira de Antropologia – ABA (2016),


no entanto, Mauss não amadureceu suficientemente sua crítica. Podemos buscar compreender
como o pesquisador começa a descortinar tanto a relação homem versus mulher quanto o corpo.
Mauss, como afirma Handman (2014), era especialista em História e Sociologia das Religiões,
mais especificamente religião indiana, bem como possuía vasto acervo sobre os índios da
América do Norte. Esses fatos nos levam a acreditar que hijras e dois espíritos eram de
conhecimento do pesquisador. Hijra é um gênero institucionalizado na Índia. Dois espíritos é
um termo usado pelos índios norte-americanos.

Hijras não são homem nem mulher, mas contêm elementos de ambos, são
pessoas devotas da Deusa Mãe Bahuchara Mata. Os dois espíritos homem-
mulher, mulher-homem possuíam diferentes funções nas sociedades
ameríndias e eram considerados de diferentes maneiras, dependendo do grupo
em que viviam [...] (HANDMAM, p. 89, 2014).

Sendo verdade que Mauss se dedicou a inúmeros estudos e pouco saía da França,
dependendo, assim, da coleta de dados de colegas (HANDMAM, 2014), o mesmo não se pode
afirmar de Margaret Mead, que realizou várias pesquisas de campo, na década de 1930, um
período em que era pouco usual encontrar mulheres dedicando-se a esse tipo de trabalho
(décadas de 1920-1930). O fato é evidenciado na matéria do site Obvious, dedicado à
antropologia:

22 anos, ir viver na Samoa Americana (no Pacífico Sul), para aí realizar vários
estudos de campo. Não foi de admirar que muitos homens se interrogassem
sobre o que fazia uma jovem mulher branca no meio de uma horda de
bárbaros, em vez de estar em casa a cozinhar para o marido.12

Ao regressar dessa viagem, Mead lança a obra Coming of Age in Samoa13 (1928), na
qual demonstra que a passagem pelo que seria a adolescência, que em nossa cultura dá-se de
forma conturbada, faz parte da metamorfose do corpo e do ligar simbólico que esse indivíduo
ocupa na comunidade, e que os problemas decorrentes dessa fase, no Ocidente, estão ligados
às expectativas e exigências da cultural euro-ocidental. No entanto, sua afirmação de que as
mulheres de Samoa optavam por adiar o casamento por anos para desfrutar o sexo ocasional
fez com que fosse hostilizada e sua obra recebida como mero livro de sexo. Vicente (2014), em
seu livro Sexo e Temperamento, publicado em 1935, fruto de pesquisa com aborígenes em Nova

12
Disponível em:
<http://obviousmag.org/archives/2010/11/margaret_mead_das_tribos_primitivas_a_revolucao_sexual_feminina.
html#ixzz4AywrYFXw>. Acesso em: 21 fev. 2018.
13
Adolescência, Sexo e Cultura em Samoa (tradução nossa).
30

Guiné (Arapesh, Mundugumore Tchambuli), Mead observou que os papéis sociais de homens
e mulheres variavam de tribo para tribo, não sendo, portanto, inatos, e sim culturais. Nas tribos
Arapesha as pesquisas mostraram a maternidade como uma imbricada relação entre pai e mãe,
na qual o foco era ajudar o desenvolvimento do filho ou filha.

Os Mundungomar foram classificados por Mead como um grupo de comportamento


masculino. A autora salienta, em sua obra que, para eles, o nascimento da criança é uma
tessitura complexa. O pai deseja que sua prole seja composta de filhas, pois as meninas podem
ser trocadas por novas esposas, o que o torna um homem rico. Uma vez que são as mulheres
responsáveis pelo processo produtivo do fumo, sua existência e status estão garantidos. No
entanto, esse fato não se dá passivamente pelas mulheres: elas evitam ou não querem
engravidar, para não terem que dividir seu matriarcado. Quando engravidam e os bebês são
homens, estes últimos podem fazer escambo da irmã por uma esposa.

Para a pesquisadora, as chamadas qualidades masculinas e femininas não são baseadas


em diferenças sexuais fundamentais e determinantes, mas refletem condicionamentos culturais
de diferentes sociedades. Dessa forma, a partir dos dados recolhidos em sua etnografia, a autora
concluiu que os Tchambuli, moradores de montanha, por exemplo, possuíam as qualidades de
gentileza como traço fundamental do seu comportamento comum, presente tanto em homens
quanto em mulheres, e por isso os chamou de “graciosos”.

Nas gramáticas das línguas modernas ocidentais, cada palavra possui um gênero,
excetuando raros casos, como o alemão, em que existem pronomes neutros. Em português não
há elemento que indique neutralidade, seja para referir-se a seres animados ou inanimados,
concretos ou abstratos: todos possuem gênero.

Butler, como ressalta Sara Salih, no livro Judith Butler e a Teoria Queer, questiona não
somente a dimensão da nomenclatura, mas o estilismo literário, a síntese e toda a gramática:
“Butler refuta, contudo, a visão, que é parte do ‘senso comum’ de que um ‘bom’ estilo de escrita
é necessariamente um estilo claro, afirmando que nem o estilo, nem a gramática são
politicamente neutras” (SALIH, p. 25, 2012). Além de responder aos seus críticos, que a
classificam como quase incompreensível, Butler dilata a relação de poder da língua.
Essa generalização de atribuição de gênero a tudo foi questionada pelo movimento
feminista nos anos 1980 do século passado, principalmente levando-se em conta a existência
31

de espécies que não têm sexo definido, e o fato de que nem todas se reproduzem por meio do
ato sexual. Esse grupo afirmava que as diferenças entre homens e mulheres não dependiam do
sexo fisiológico, e sim de questões culturais.

O conceito de gênero, como conhecemos hoje, se deve principalmente aos movimentos


feministas europeus e norte-americanos, às lutas e vitórias significativas que conquistaram,
como o direito ao voto, nas primeiras décadas do século XX. A contestação das várias correntes
feministas rompe com o caráter “natural” da subjugação da mulher e o discurso da construção
cultural desse fato ganha espaço. O corpo passa a ser considerado a principal causa da opressão
sexual e da desigualdade social, segundo Joana Maria Pedro (2005). Outro aspecto importante
é a substituição da palavra mulher por mulheres, nos textos e discursos. Afinal, este último
abarca a pluralidade14.

O termo Identidade de Gênero é usado a primeira vez pelo psicanalista Robert Stoller
(1924-1991), em um Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Estocolmo, Suécia,
em 1963 (ABA, 2016), com o objetivo de diferenciar cultura de natureza. No entanto, como
afirma Pedro, foi no interior do universo das mulheres que a categoria de análise “gênero”
passou a ser usada.

Em Gênero: uma categoria útil de análise histórica, texto muito conhecido e aclamado
de Joan Wallach Scott (1987), a autora diferencia a utilização que faz do termo “gênero”
daquela adotada por Stoller. Scott leva em conta a historicidade e o processo social, bem como
desconstrói a utilização inicial feita pelo Dr. Robert, e dialoga com o conceito de poder de
Michel Foucault:

Enfim, precisamos substituir a noção de que o poder social é unificado,


coerente e centralizado por alguma coisa que esteja próxima do conceito
foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas de relações
desiguais constituídas pelo discurso nos campos de forças (SCOTT, p. 86,
1995).

Joan Scott gera, assim, uma categoria útil de análise histórica, ressaltando a questão
cultural. Como outras feministas da época, não se apodera do conceito gênero fundamentado
no determinismo biológico: gênero é utilizado focando na organização social. Para a autora, há

14
Vale ressaltar que Jacques Lacan negava a existência do termo mulher, na linguagem: “Não há mulher senão
excluída da natureza das coisas, que é a natureza das palavras, e temos mesmo que dizer que se há algo que elas
mesmas se lamentam bastante, é mesmo disto [...]” (LACAN, p. 99, 1972-1973).
32

uma paridade em três conceitos que explicariam a desigualdade: classe, raça e gênero.
Entretanto, é na análise crítica do patriarcado, nas teorias marxistas e no pensamento
psicanalítico que ela muito contribui para a discussão.

O patriarcado orientava-se pela supremacia masculina, como base de poder e controle


reprodutivo, garantindo a manutenção do capital às suas crias. A crítica que Scott faz direciona-
se a um único aspecto – o físico – como base para toda a dissimilaridade entre os gêneros. A
autora ressalta que:

As feministas marxistas têm uma abordagem mais histórica, já que elas são
guiadas por uma teoria da história. Mas, quaisquer que sejam as variações e
as adaptações, o fato de que elas se impõem a exigência de encontrar uma
explicação “material” para o gênero limitou ou pelo menos atrasou o
desenvolvimento de novas direções de análise (SCOTT, p.78, 1995).

Scott afirma a diferença e também a inter-relação entre o modelo capitalista e o


patriarcado, que ela chamará de dois domínios. Questões como cuidados do lar e manutenção
da família são meios de produção definidos a partir da distinção sexual de seus membros.
Todavia, à medida que esses modelos são estabelecidos, a lógica das relações passa cada vez
mais a ser econômica, ou seja, é a lógica do “fazer”, da relação econômica.

Para a autora, a psicanálise segue duas vertentes principais: a francesa, desenvolvida


sobre o pós-estruturalismo freudiano com a teoria da linguagem lacaniana, que se liga aos
sistemas de significação, não só referentes às palavras, mas a todo o sistema simbólico que elas
representam; e a anglo-saxônica, fundamentada na teoria das relações de objetos, em que a
identidade de gênero se dá a partir de experiências concretas. Na opinião de Scott, a teoria
anglo-saxônica é limitativa, pois se restringe a circuitos muito estreitos, por exemplo, o de
família, a partir do qual os gêneros são definidos e construídos. Em contraposição, a escola
francesa, compreendendo o sujeito como unidade instável, coloca-o como ser em permanente
construção a partir das significações masculino/feminino, contudo desconsiderando o contexto
histórico-social de construção da subjetividade.

Dessa forma, discorrendo sobre o termo “gênero” num determinado contexto histórico-
social e político, ele pode designar uma categoria de análise. Sendo o gênero a primeira
instância que o sujeito constrói em si, traduz-se também como primeira instância na qual o
33

poder age, uma vez que perpassa toda a organização da vida social, legitimando ou não
construções existentes.

Certamente, em parte do Ocidente, os estudos sobre gênero tenham mudado a partir dos
anos 1990, após a publicação, nos Estados Unidos, de Problema de Gênero, de Judith Butler.
Seu livro, traduzido e publicado no Brasil apenas em 2003, treze anos após seu lançamento,
leva-nos a especular sobre a pouca importância que os estudos de gênero ocupavam em nosso
país, passando a ser mais intensamente discutido. O mesmo se deu com a escritora Beatriz
Preciado, que possuía, até 2018, um único livro publicado em português – lançado no Brasil
em 2014, enquanto na França a mesma obra chegou às livrarias em 2002. Soma-se a esses fatos
a pouca expressividade das nossas publicações sobre o assunto no cenário mundial.

A notoriedade da apoderação de Butler, unicamente como pesquisadora da teoria queer,


tornou-se a grande referência sobre o tema. Alguns aspectos contribuem para a difícil
compreensão de alguns textos de Butler, como afirma Salih (2013), sobre o Prefácio escrito por
Butler, na edição comemorativa de Garden Trouble, em 1999, em que comenta o fato de que
para parte dos leitores deve ser estranho e exasperante o confronto com a produção textual na
qual a autora não se esmera com o objetivo de facilitar a compreensão. No entanto, poderá fazer
exatamente o contrário. A filósofa reitera, contudo, que o senso comum, em busca de “um bom”
estilismo literário, esmera-se em ser claro, por vezes pobre, e, talvez, a mais importante
afirmação, de que nem todo estilo, assim como a gramática, é neutro. A coragem da orientanda
de Jacques Derrida em criar uma linguagem que, em parte, quer sentir, e que a percepção
política sobre sua produção textual dificulta a tradução do inglês (língua anglo-saxônica) para
o português (língua latina). Devemos também considerar a formação em fenomenologia,
Subjects of. Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France15, título de sua
dissertação de mestrado, que viria a ser publicado como livro.

Lembramo-nos de certo manual que orientava os visitantes franceses sobre o Brasil, em


que uma das partes que nos chamou a atenção dizia “brasileiro é sensível à moda”, ou seja,
havia, ali, uma síntese de uma percepção de um país continental que aprecia coisas efêmeras,
passageiras, fugazes, não havendo tempo para aprofundamentos. Pensamos agora que isso
chega à Academia, como afirmam Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (2007):

15
Sujeito do Desejo: Reflexões Hegelianas na França do Século XX (tradução nossa).
34

A difusão é o resultado de uma “aplicação” não justificada e casual de


conceitos. A aplicação, neste sentido, nega o uso de conceitos como rótulos
que nem explicam nem especificam, apenas nomeiam. Tal rotulação continua
quando um conceito emerge como moda, sem a busca por um novo significado
que deve acompanhar seu uso apropriado. Lembro vividamente da frequência
súbita da palavra “estranho” [uncanny], por exemplo, e, também, de forma
muito incômoda, um certo abuso da palavra “trauma” (MISKOLCI;
PELÚCIO apud BAL, p. 33, 2002).

Compactuando com Miskolci e Pelúcio, a “performatividade” é um conceito


controverso, desde sua primeira formulação, por Butler. No caso do Brasil, em parte por
motivos supracitados, multiplicam-se os comentadores da filósofa, com títulos apelativos e
simplistas, como Judith Butler e a Teoria Queer. Se, por um lado, promete soluções rápidas,
como um analgésico, restringe a produção intelectual de Butler, que vai desde fenomenologia,
questões judaicas, literatura, a gênero. Portanto, empobrece e restringe o entendimento de sua
obra.

Os movimentos feministas utilizavam os conceitos de sexo como algo naturalmente


adquirido e o de gênero como culturalmente construído (RODRIGUES, 2014). Em Problema
de Gênero, Butler entende que sexo e gênero são, ambos, construídos culturalmente, não
havendo, portanto, diferenças: “talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a
distinção entre sexo e gênero se revela absolutamente nenhuma” (BUTLER, p. 25, 2003). Sendo
ambos construídos culturalmente, a estabilidade do sexo como algo natural servia à estabilidade
da dicotomia homem x mulher, jogando outros corpos – os que não obedecem a essa norma –
ao lugar de corpos abjetos. Considerando ambos como construção cultural, Butler questiona
essa permanência e inclui, em suas reflexões, outras possibilidades.

É importante ressaltar o questionamento que Butler faz ao pensamento de Simone de


Beauvoir, considerando-o limitado, trazendo à tona a relação fêmea/mulher para criticar a tão
difundida expressão: “Não se nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, p. 11, 2016).
Beauvoir faz suposições que “pressupõem e definem por antecipação as possibilidades das
configurações imagináveis e realizáveis de gênero na cultura” (BUTLER, p. 28, 2003), de algo
que ocorrerá no universo cultural. Quanto à afirmação citada, “não há nada em sua explicação
[de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea”
(BUTLER, p. 27, 2003).
35

A crítica contundente feita por Judith Butler, ao referir-se à primeira parte do livro O
Segundo Sexo, escrito por Simone de Beauvoir, em 1949, parece-nos passível de ponderações.
Butler desconsidera questões fundamentais colocadas pela filósofa Beauvoir, por exemplo,
“que é uma mulher”? (BEAUVOIR, p. 7, 1980).

Em sua obra, Beauvoir, ao buscar resposta (ou respostas) a essa pergunta inicial, formula uma
afirmação que desconstrói a crítica que lhe foi lançada pela filósofa Butler: “Mas antes de mais nada:
que é uma mulher?”. A delicadeza da formulação da questão em não iniciar a pergunta com um artigo
definido “o” conduz-nos à reflexão criteriosa e não limitante. É relevante salientar que essas reflexões
ocorreram em 1949.

Em seguida, continua Beauvoir, “‘Tota mulier in utero16: é uma matriz’, diz alguém. Entretanto,
falando de certas mulheres, os conhecedores declaram que não são mulheres, embora tenham útero como
as outras [...]” (BEAUVOIR, p. 7, 2000), ao contrapor a relação de causa e efeito ao longo do volume
1, desconstrói a ideia do ser biológico mulher/fêmea, o que impactou a compreensão sobre “que é
mulher?”. A força dessa teoria sobre o paradigma vigente positivista fez com que a Academia
necessitasse de anos para digerir a obra, o que parece ter ocorrido somente depois de o livro O Segundo
Sexo ter sido traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, onde consegue, finalmente,
visibilidade (REIS, p. 50, 1998).

Outra dimensão da parcialidade da crítica atribuída ao trabalho de Beauvoir dá-se pelo fato de
o livro sustentar-se em duas teses: “Não se nasce mulher: torna-se mulher”; e sobre a relação com “O
homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”. Parece-nos que, por não se ater a discutir longamente
sobre O Segundo Sexo, Butler recorta a reflexão para, assim, construir sua crítica.

Butler (2003) também introduz a noção de gênero sob a ótica da performatividade. Para
a autora, no território da cultura, repetem-se palavras, movimentos, signos, atos, ritos e
comportamentos. Essa continuidade dá significado ao que entendemos como masculino e
feminino, uma estrutura binária. O “gênero” é um efeito performativo de atos repetidos, sem
um original ou uma essência, que não revelam nem expressam uma identidade preexistente
(AMBRA; SILVA JR., p. 40, 2014). As Travestis, Dragqueens, Drag kings e Trans são um
confronto com o que a pensadora intitula gênero inteligível, ou seja, aqueles nos quais há
coerência entre sexo, gênero e desejo normatizado. Caso outros indivíduos não sejam
reconhecidos como inteligíveis, podem sofrer reações violentas, que vão desde as agressões

16
Toda mulher tem útero (tradução nossa).
36

psicológicas e simbólicas até à física, em muitos casos, levando à morte. Assim, a construção
da alteridade das travestis, por exemplo, serve para explicitar o quanto o gênero é intencional e
performático.

Butler é comumente chamada “a pensadora da Teoria Queer”17, ainda que não tenha
sido a primeira a fazer uso da expressão, que foi definida por Eve Kosofsky Sedgwick como
“um momento, um movimento, um motivo contínuo-recorrente, vertiginoso troublant
[perturbador]” (SEDGWICK, p. 12, 1994). Na ideia de queer não está a preocupação com
cristalização e rigidez; é, antes, transitiva e nega a assimilação. Para a Teoria Queer, não há um
sujeito gay, nem a fêmea ou o macho; tais estabilidades devem ser desconstruídas, sendo a
indeterminação, as instabilidades sexuadas e de gênero substituídas (SALIH, p. 19, 2012).

Há uma ideia subversiva na transitoriedade, afinal, sendo a linguagem uma expressão


de poder, e não havendo nomenclatura adequada, podemos subverter as relações rigidamente
estabelecidas, tanto nas micro quanto nas macrorrelações, por exemplo, com as instituições, ou
com o Estado. Um aspecto importante a ser salientado é o momento histórico de definição da
Teoria Queer, anos 1970 e 1980, principalmente quando a AIDS era comumente chamada, e
ainda assim é considerada por muitos, de peste gay.

Paul Preciado, pesquisadora da Universidade Paris IV, em seu livro Testo Yonqui
(2008), traduzido em 2018 para a língua portuguesa, relata que realizou um protocolo de
autointoxicação com testosterona, em que o hormônio foi absorvido por meio da pele,
utilizando doses de 50 miligramas diárias; por conta disso, o experimento foi chamado de
mutação de uma época. Segundo Lessa, o objetivo do livro centrou-se em:

[...] uma análise sexo-política da economia mundial, em que a testosterona


sintética pode representar tanto uma construção tecnológica de um novo
tecnopoderdifuso como a possibilidade de mudança identitária para as
mulheres através da experiência transexual (LESSA, p. 288, 2011).

Os dois livros de Paul Preciado foram traduzidos para o português, com o título de
Manifesto Contrassexual. Publicado em 2014 e considerado o mais importante sobre o tema, já
na segunda edição, a autora muda de nome, todavia continuando a ser tratada no feminino. Paul
Preciado, a intelectual espanhola, conhecida também pela militância no universo das lutas

17
Uma característica da Teoria Queer é a utilização de seus termos no original, sempre, ainda que a falta de
tradução dificulte a compreensão dos jogos de palavras, ou do sentido pretendido.
37

queer, foi orientanda de Jacques Derrida (LESSA, p. 288, 2011). Para Paul Preciado, o contrato
sexual define-se como:

A contrassexualidade não é a criação de uma nova natureza, pelo contrário, é


mais o fim da Natureza como ordem que legitima a sujeição de certos corpos
a outros. A contrassexualidade é, em primeiro lugar, uma análise crítica da
diferença de gênero e de sexo, produto do contra social heterocentrado, cujas
performatividades normativas foram inscritas no corpo como verdades
biológicas (PRECIADO, p. 21, 2014).

Portanto, podemos perceber a relevância da ruptura com a estabilidade e demarcações


de diferenças rígidas de gêneros, bem como a performatividade, como elementos de sustentação
do pensamento queer.

A versão brasileira desse manifesto de Paul Preciado tem projeto gráfico da cartunista
trans Laerte. Desde o formato, com uma circunferência na base direita penetrando todas as
folhas (algo que remete a um ânus) ou na apoderação da linguagem de manual, até os títulos
dos capítulos, o contrato intitulado um Contrato Contrassexual18 possui alguns aspectos que
chamam a atenção, como o uso da palavra voluntária, unicamente no feminino, ou, ainda, a
ruptura com o incesto, “[...] renuncio a todos os laços de filiação (maritais e parentais)”
(PRECIADO, p. 45, 2014). O corpo é entendido como um produtor de dildo (figura 1), e o
“corpo falante” (derivação do termo falo), que é uma designação comum para pessoa, adotada
por Preciado, é “como um trabalhador do cu” (PRECIADO, p. 45, 2014). A linguagem crua é,
pois, parte da militância e produção intelectual, e não podemos nos esquecer que, por não ser
neutra, é, portanto, também um recurso político.

18
Ver anexo 1.
38

Figura 1: Sem titulo


Fonte: Preciado, 2008, p. 33

A obra traz, nessa primeira parte, treze artigos no formato de dogmas, pois visam
estabelecer aquilo que deve ser observado e obedecido. No primeiro artigo “A sociedade
contrassexual demanda que se apaguem as denominações masculino e feminino correspondente
às características biológicas (homem/mulher, macho/fêmea) da carteira de identidade”. Os
demais artigos seguem a lógica da implantação de uma sociedade contrassexual.

Concordamos que a produção intelectual e a militância política devam ser algo uno,
indissociável, inseparável, pois há muito rompemos com a postura supostamente imparcial, que
se mostra como uma contribuição de parte da própria construção de Preciado. A criação de uma
“sociedade contrassexual” não incorre no risco de uma instituição total, tal como o conceito de
Goffman (2015)19? A Teoria Queer trabalha com a ideia de devir. Como o queer lidaria com o
vir a ser, dado que na obra Contrato Contrasssexual há um contrato, orientado mais pelo pela
flexibilidade, à parmenidiana, que defendia um mundo estático? Resta-nos encontrar um arranjo
a esse mosaico que, por uma vertente influenciada por Butler (2016), se propõe a não amarras
ou limitação a gêneros, o contrato defendido por Paul Preciado (2014) propõe o estático, afinal,
o modelo sugerido abdica da condição de gênero, lidando com a condição de corpos, porém,
como todo contrato, é uma relação estabelecida no tempo e no espaço. Devemos impor uma
identidade institucionalizada? E quanto à exclusão dos que não desejam compor esse universo?
Entre outros aspectos que também julgamos importantes, devemos lembrar a Preciado que
tornar as práticas contrassexuais um trabalho social é também uma institucionalização.

19
“Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em
resumo, toda instituição tem tendências de ‘fechamento’” (GOFFMAN, p. 16, 2015).
39

Podemos questionar se esse caminho não estabelece novas performatividades como centrais, e
até normativas.

Na segunda parte do livro, intitulada Breve genealogia do orgasmo ou vibrador de


Butler, a autora levanta aspectos importantes sobre a sexualidade, como os dispositivos
teorizados por Foucault, que possibilitam compreender a historicização do corpo da mulher, a
pedagogização do sexo da criança, a socialização das condutas procriadoras e a psiquiatrização
do prazer perverso (PRECIADO, 2014). Realiza, assim, uma revisão de conteúdo da obra de
Foucault ou de Butler, em que se destaca a divisão entre prática e teoria.

Tamsim Spargo (2006), em seu livro Foucault e a Teoria Queer, chama a atenção para
alguns aspectos já superados dessa teoria, por exemplo, o gosto pela transgressão, que se
transformou em produto à venda em qualquer sex shop. Usar uma camisa com a estampa “Queer
as Fuck”20 continua a levantar questões. O queer tornou-se mais uma categoria de identificação,
mais uma que fragmenta? “Na sociedade de capitalismo tardio, seriam as pessoas queer
realmente apenas gay e lésbicas, e alguns outros cujo relacionamento mais íntimo é com seus
cartões de créditos?” (SPARGO, p. 78, 2006).

No entanto, simultaneamente à Teoria Queer, outros campos discutiram e conceituaram


a categoria gênero, ora de forma direta, ora de forma transversal. Em Manifesto Ciborgue:
ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX, escrito pela bióloga e
feminista Donna Haraway (1985), encontramos a representação da figura do ciborgue, como
algo renitente nos livros e filmes de ficção, definido por ela como “um organismo cibernético,
um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura
de ficção” (HARAWAY, p. 36, 1985). A característica de força política encontra-se na
continuidade da definição: “realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa
construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo”
(HARAWAY, p. 36, 1985). Assim, a apoderação do ficcional é uma estratégia, a nosso ver,
transgressiva, para pontuar questões renitentes de forma nova. O uso imagético do texto leva-
nos a refletir a esse respeito, ao utilizar metáforas para estabelecer uma abordagem crítica
referente à identidade das diferenças, centrada em discutir os inúmeros caminhos a serem
trilhados pela política e esta, por sua vez, focada na relação ciência e tecnologia.

20
“Bicha é foda” – em tradução livre, apenas para dar ideia da crueza do significado queer seria bicha?
Homossexual masculino?
40

O que nos interessa, nesse momento, é o elemento fronteiriço, também estabelecido, na


obra, entre homem/mulher e máquina. É algo híbrido, não havendo nada de “natural” na relação
máquina e organismo, adentrando no que a autora chama de labirinto da dualidade. Isso se
reflete na relação entre tecnologia, ciência e humanidade, nesse admirável cenário com novos
atores – ou, pelo menos, os mesmos atores em novos lugares de poder. Mesmo não apresentando
conceitualmente gênero, deixa-nos uma pista quando apresenta o quadro intitulado Informática
da dominação, que mostra a substituição do termo reprodução por replicação, e sexo por
engenharia genética. Isso transforma sobremaneira as relações de poder entre os atores,
colocando o ciborgue em posição privilegiada por não possuir gênero. O texto de Haraway
amplia a discussão para diversos campos, no entanto esses são os aspectos que entendemos
como enriquecedores, dentro do que nos propomos a discutir, nos limites deste trabalho21.

Após essa discussão pontual sobre questões conceituais de gênero, adotaremos o mesmo
posicionamento teórico de Ambra e Silva Jr. (2014), que traduz a percepção de Butler: “Gênero
um efeito performativo de atos repetidos, sem um original ou uma essência, que não revelam
nem expressam uma identidade preexistente” (KNUDSEN, p. 78, 2007). Assim, travestilidade
e androginia são entendidas aqui como gêneros. As definições são aprofundamentos das
representações e serão tema de um subtópico neste capítulo.

Como elemento de consideração dessa breve reflexão, a rede social Facebook.com


(2016) possibilitou, na plataforma norte-americana, que, em vez de dois gêneros, os usuários
escolhessem entre nada menos que cinquenta e seis opções. Todavia, ainda Somos levados à
escolha. Somos, de forma autoritária ou indutiva, persuadidos a nos declarar. Ainda Somos
passíveis de agrupamentos, classificação, estigmatização. Imaginamos, contudo, o quanto isso
é importante para as organizações que trabalham com segmentos específicos. Imaginamos o
quanto um indivíduo que não se vê representado sente-se satisfeito, em alguns casos, por poder
escolher seu gênero.

Em Arqueologia do Saber, Michel Foucault (2009) reflete que o objeto não está presente
na formação discursiva referida a este, no entanto relações de diversas ordens, como uma rede,
são formadas e exteriorizadas. Assim, o processo de formação do saber é constituído no campo

21
Outros autores possuem larga reflexão sobre essa relação, como em Nós, ciborgues, o corpo elétrico e a
dissolução do humano, de Tomaz Tadeu (1997) e Genealogia do ciborgue, de Hari Kunzru (1997).
41

discursivo. Nesse aspecto, faltam-nos mais categorias? Ou serão essas expressões de poder
exibidas e colocadas por discursos?

Essas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e


sociais, formas de comportamentos, sistemas de normas, técnicas, tipos de
classificação, modos de caracterização; e essas relações não estão presentes
no objeto; não são elas que são desenvolvidas quando se faz sua análise; elas
não desenham a trama, a racionalidade imanente, essa nervura ideal que
reaparece totalmente, ou em parte, quando o imaginamos na verdade de seu
conceito. Elas não definem a constituição interna do objeto, mas o que lhe
permite aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles,
definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua
heterogeneidade; enfim, ser colocado em um campo de exterioridade
(FOUCAULT, p. 59-60, 1972).

O movimento feminista americano em muito contribuiu para as lutas LGBTQI+, tanto


nos Estados Unidos quanto no Brasil. Foi o periódico Lampião da esquina que se constituiu
como uma nova abordagem jornalística das demandas LGBTQI+, no Brasil. Com uma
linguagem mais política e conteúdo mais abrangente, segundo prenome Rodrigues (2014), o
jornal diferencia-se da mídia da esquerda, que queria construir uma identidade de gênero gay,
mantendo-se distante do que o autor classifica de “rigidez da moral da esquerda ou pragmatismo
da direita”. Assim, nas pesquisas realizadas sobre as questões de lutas sobre a identidade de
gênero e grupos LGBTQI+, é comum perceber que alguns autores desconhecem ou
desconsideram publicações anteriores.

O Lampião, logo em seguida chamado Lampião da Esquina, foi lançado em 1978, com
tiragem de dez mil unidades, bastante significativa para a época. A publicação do periódico só
foi possível porque começava a abertura política e, portanto, a repressão já não era tão violenta.
No entanto, não podemos afirmar que a discriminação tenha acabado ou diminuído
drasticamente, uma vez que existimos em uma sociedade com fortes traços homofóbicos
(MOTT, 2009). O número zero foi entregue nas residências com duas chamadas: Um ensaio de
Darcy Penteado e Celso Curi: processado. Mas qual é o crime deste rapaz?

2.2 Stonewall: a luta pelos direitos LGBTQI+

Após a Segunda Guerra Mundial, intensificaram-se as lutas pelos direitos humanos,


principalmente na América do Norte. O primeiro grupo gay, nos anos 1950, era composto
42

somente por homens e autodenominava-se Mattachine Society. Era radical, realizava reuniões
secretas, constituído de adeptos da visão médica que, na época, tratava a homossexualidade
como patologia. Os membros desse grupo usavam roupas e padrões estéticos da classe média
norte-americana, e sua frase de ordem era: “reforme sua própria imagem e, então, comporte-se
de acordo com a sensibilidade da classe média”. Posteriormente, em 1953, foi criada a revista
One, com foco no público homossexual e, em 1955, o ativo grupo de lésbicas Daughtersof
Bilitis (DOB), ambos críticos das posições patologizantes e conservadoras do grupo Mattachine
Society (CAMARGO, 2007).

Esse cenário, com tão poucas organizações civis, foi se fortalecendo, a exemplo de
outros grupos, e realizando mudanças sociais importantes nas décadas de 1960 e 1970, nos
Estados Unidos. A revolta de Stonewall foi um ponto importante na luta pelos direitos de gays,
travestis e lésbicas.

Stonewall, um pequeno bar localizado no bairro de Greenwich Village, em Manhattan,


New York, foi invadido por uma ação policial na noite de 28 de junho de 1969. Travestis e
dragqueens foram forçadas a se despir; aquelas que possuíssem genitália masculina seriam
detidas – o que não chegou a acontecer devido à intervenção do público. Esse fato, que
expressava a política da época, gerou uma reação conhecida como A Rebelião de Stonewall.
Naquela noite, o grupo resistiu no próprio local. Nas noites seguintes, centenas de pessoas, entre
elas não apenas gays, lésbicas, travestis e dragqueens, mas muitos outros militantes
simpatizantes, organizaram barricadas, realizando manifestos em frente ao Stonewall e
redondezas. No trecho a seguir, do Village Voice, periódico local, temos uma descrição dos
eventos:

De repente, a polícia chegou e as coisas aqueceram. Três das mais descaradas


travestis – todas em drag – foram empurradas para dentro da viatura, tal como
o barman e um outro funcionário, sob um coro de vaias da multidão. Alguém
gritou incentivando o povo a virar a carrinha da polícia. Nisso, saía do bar uma
lésbica, que começou uma briga com os polícias. Foi nesse momento que a
cena se tornou explosiva. Latas e garrafas de cerveja começaram a ser atiradas
em direção às janelas e uma chuva de moedas foi lançada sobre os polícias
[...]22

Há, ainda, outra descrição dos fatos:

22
Disponível em: <http://www.esquerda.net/dossier/batalha-de-stonewall-marco-do-movimento-lgbt>. Acesso
em: 23 jan. 2016.
43

Do nada, apareceu um parquímetro arrancado e usado como porrete na porta


do Stonewall. Ouvi gritos de “vamos pegar gasolina”, mas o clarão de fogo
que surgiu em seguida na janela do Stonewall foi outro choque. Reforços
vieram resgatar os policiais acuados no bar em chamas, mas seu trabalho mal
tinha começado. A rebelião prosseguiu noite adentro [...] na noite seguinte,
pichações com a frase “gay power” aparece nos muros da Chistopher Street
(D’EMILIO, p. 231-232, 1998, apud SIMÕES; FACCHINI, p. 86, 2009).

Tais manifestações contribuíram para uma politização da comunidade LGBTQI+ e


deram início às publicações dos primeiros periódicos para o público gay nova-iorquino e às
primeiras Paradas Gay, que ocorreram no dia 28 de junho de 1970, em New York, Los Angeles
e San Francisco. Hoje, apesar de haver paradas ou marchas do orgulho gay durante todo o ano,
algumas mantêm a data de 28 de junho (DAVID CARTER, 2004).

Havia segregação e obscurantismo nos bares, alguns sob o domínio da máfia, com
frequentes batidas policiais. Raros eram aqueles locais em que se podia dançar, de acordo com
jornais da época, como o New York Times, que escreveu matérias referentes à invasão. Enquanto
isso, o Sunday News, em 6 de julho do mesmo ano, estampou na capa homo nestraided, queer
bees are stingingmad23, o que pode ser traduzido como “o ninho homo foi desbaratado. As
abelhas queer (esquisitas, bichas) estão picando furiosas”. Já o Sunday News optou por uma
cobertura em defesa dos direitos humanos, afirmando que os agressores deveriam ser
enquadrados em um duplo crime: biológico e jurídico, como pudemos perceber, desde a
nomenclatura que lhe deram, quando são classificadas como Queer Bees, possuidoras de um
comportamento perverso, pois, ao passo que usam queer (termo usado pejorativamente) e bees
(abelhas), atribuindo-lhes agressividade.

Foucault, em aula de 22 de janeiro de 1975, citada em Os anormais (2001), trata desse


tipo de figura, que constitui o domínio da anomalia. Até mesmo a adjetivação pejorativa e
jocosa com que é tratada revela a existência de um conflito instalado. Podemos salientar que,
além dessa disputa por espaço, havia nos Estados Unidos dos anos 1960 outras comunidades
com articulações e lutas, como o movimento negro e grupos contrários à guerra do Vietnã. Os
anos 1960 e a década seguinte foram de grandes embates e reivindicações de direitos por grupos
militantes (DAVID CARTER, 2004).

23
Disponível em: <http://www.nydailynews.com/new-york/manhattan/stonewall-raid-enrages-homosexual-
community-1969-article-1.2627685>. Acesso em: 24 jan. 2016.
44

Quando o Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS/UFBA) organizou o


evento Stonewall 40 + o que no Brasil?, em setembro de 2010, na cidade de Salvador/BA, o
então professor e ativista Deco Ribeiro pontuou:

Stonewall é uma palavra com forte significado para a comunidade LGBT. Foi
em um bar gay chamado Stonewall, em Nova York, há pouco mais de 40 anos
que gays, lésbicas, travestis e dragqueens se uniram pela primeira vez para
lutar contra a intolerância. Pela primeira vez todos eles se sentiram iguais –
por serem diferentes (RIBEIRO, p. 153, 2011).

Em maio de 1968, o movimento iniciado por estudantes, com adesão de dois terços dos
trabalhadores franceses, enfraqueceu o governo do então Presidente General Charles De Gaulle.
Diante dos protestos, De Gaulle antecipou eleições e prometeu melhores salários,
desmobilizando, assim, os trabalhadores, que retornaram aos seus postos. Nesse momento, os
aliados de De Gaulle saíram fortalecidos. No entanto, a resistência e união dos mais diversos
grupos sociais transformaram-se em enorme força popular.

Essa nova forma de viver os desejos sexuais, reivindicada pós Stonewall, que muda a
forma como os gays se veem e os fortalece para a luta, seria diferente se não tivessem ocorrido,
também, as discussões sobre questões de gênero levantadas pelas feministas, caso as mulheres
não tivessem queimado seus sutiãs e questionado a opressão dos seus desejos. Se maio de 1968
foi o responsável por ação e argumentos, foi o movimento feminista que pautou ambos,
Stonewall e Maio de 68, como expressões de levantes que se alimentam nos discursos e ações
de diferentes grupos ditos “minoritários”.

Importa, então, repetir o que Vivaldo Lima Trindade (2007) ressalta: Stonewall tornar-
se-ia uma revolta de tamanha escala, caso não fosse precedido por maio de 1968 em Paris? O
pesquisador entende como pouco provável.

Na Columbia University, desde 1965, tentava-se formar um grupo em torno da questão


dos homossexuais, o Student Homophile League (SHL), que só foi institucionalmente
reconhecido em 1967. A repercussão negativa na imprensa, tanto do campus como dos veículos
de comunicação externos, não impediu que o grupo tivesse inúmeras adesões. Com um segundo
grupo de ativistas oriundos da Cornell University, criou-se certo atrito, sobre o qual o caminho
45

a ser seguido deveria concentrar-se nas liberdades civis, ou promover a aceitação da cultura
gay24.

Após a notícia de Stonewall ter atingido a Cornell SHL, decidiu-se tomar uma
medida radical e alinhar-se com o campus de Estudantes para uma Sociedade
Democrática (SDS). [...] Cornell juntou forças com organizações
homossexuais em mais de 175 faculdades e universidades em todo o país para
formar uma coalizão nacional para fazer o movimento gay mais visível25.

Imediatamente após a revolta de Stonewall, em vários Estados norte-americanos, foram


criados grupos militantes que tinham como bandeira a causa gay: Gay Activists Alliance, Gay
Liberation Front, Matta ChineAction Committee, The National Black Feminist Organization,
ACT UP e muitos outros. A esse movimento, que não se restringia aos EUA, foi atribuído o
termo liberação gay (TRINDADE, 2007).

Além de novos grupos, também surgiram informativos e outros tipos de publicações,


ora ligados entre si, ora independentes. A literatura, nesse contexto de transformação social,
como afirma Vivaldo Lima Trindade, passa a marcar as narrativas homoeróticas:

O gênero coming out stories26 é um discurso representacional que constrói um


novo sujeito do discurso, uma nova forma de representação social para o
sujeito excluído. Do ponto de vista dos sujeitos homoeróticos destas
narrativas, elas têm sido objeto do discurso do outro, do discurso do saber, em
inúmeras obras que discutem o homoerotismo, mas, através destas narrativas,
constituem-se como sujeitos do seu próprio discurso (TRINDADE apud
BOLOCCO, p. 20, 2007).

As questões gays, seja a aceitação de uma cultura gay, defendida por alguns grupos, ou
os direitos políticos, por outros, criam um ambiente que os norte-americanos, conservadores ou
não, não podem simplesmente desprezar. Na Costa Leste, New York mostrava-se como ponto
de debate principal; na Costa Oeste, em Los Angeles, uma grande migração de gays para o
bairro de Castro levaria ao poder, em 1977, o primeiro político assumidamente gay, Harvey
Bernard Milk.

Não diferente do resto do país, San Francisco era conservadora. No entanto, o grande
contingente de gays e lésbicas criava um ambiente de maior enfrentamento, no qual
destacavam-se grupos como o Society for Individual Rights (SIR) ou o Daughters of Bilitis

24
Disponível em: <http://outhistory.org/exhibits/show/queer-youth-campus-media/on-college-campuses/glf>.
Acesso em: 24 de janeiro, 2016.
25
Disponível em: <http://outhistory.org>. Acesso em: 24 jan. 2016.
26
“Coming out stories” ou “estórias fora do armário”, em tradução livre.
46

(DOB). Este último travava confrontos contra a perseguição sofrida por gays, travestis e
lésbicas, principalmente nos bares, e à criminalização do sexo oral. Entretanto, as camadas mais
conservadoras e detentoras de poder e capital simbólico mantinham-se rígidas.27

Milk, após três tentativas, foi eleito supervisor municipal (equivalente a vereador, no
Brasil) da Cidade de San Francisco, mas foi morto onze meses depois, por um opositor
conservador, Dan White. Mesmo nesse curto período conseguiu aprovação de um projeto de lei
que tratava da não discriminação por orientação sexual. Sua morte, como era de esperar, foi de
grande comoção para parte da população. Milk tornou-se símbolo da luta gay, sendo tema de
documentários e de várias outras homenagens. O reflexo disso foi uma politização dos grupos
LGBTQI+28.

Mesmo sendo os Estados Unidos da América, segundo Trevisan, o país mais influente
nas lutas sociais pelos direitos LGBTQI+, este ainda tem um fosso que separa claramente
grupos como travestis, gays e lésbicas de heterossexuais. No Texas, por exemplo, o casamento
gay voltou a ser proibido pela Suprema Corte, em 17.02.2015, após apenas dois dias de
legalização. Ainda, mesmo com decisão da Suprema Corte norte-americana de que não se pode
negar a união estável a um casal do mesmo gênero, essa lei possui ressalvas no Texas, onde um
juiz declarou ser católico e, portanto, não realizou a união, por ser contrária à sua fé29.

A questão dos direitos LGBTQI+ nos Estados Unidos é variável de Estado para Estado.
Enquanto em New York pode-se andar de mãos dadas, no sul do país tal ação pode resultar em
agressões. O site huffingtonpost.com salienta o crescimento recorde de assassinatos de
transexuais e do número de suicídios, possivelmente resultante da transfobia.

As questões jurídicas e culturais construíram caminhos e interlocuções diferentes entre


os grupos de representação das lésbicas e gays e a política institucional. Talvez, um fato de
relevância e uso político, seja a sinalização de que os grupos se tornaram pouco porosos, nessa
primeira onda, como salienta Trevisan (2010):

27
Disponível em: <http://www.biography.com/people/harvey-milk-9408170#new-life-in-san-francisco>. Acesso
em: 31 jan. 2016.
28
Disponível em: <http://www.biography.com/people/harvey-milk-9408170#new-life-in-san-francisco>. Acesso
em: 26 jan. 2016.
29
Disponível em: <http://www.wfaa.com/news/local/dallas-co-justice-of-the-peace-refuses-same-sex-
marriages/32754407>. Acesso em: 26 jan. 2016.
47

Os grupos locais e entidades associativas GLBT tornaram-se feudos,


frequentemente disputados por partidos e tendências políticas de esquerda.
Nesse contexto, proliferaram lideranças baseadas no centralismo, disputa de
poder, autoritarismo e personalismo (quando não, puro estrelismo, de olho na
mídia). Em vez da pressão por mobilização comunitária, preferiram-se as
estratégias dos lobbies instalados nos corredores do poder central, de modo
que poderes locais se prevaleceram de um somatório de poderes em níveis
mais altos, para chegar à proposição de leis e de políticas homossexuais.
[...]
Com frequência, lideranças homossexuais se tornaram funcionários/as de
governos e partidos, neste último caso funcionando como correias de
transmissão partidária [...] Em última instância, a dependência governamental
e/ou partidária provocou a ausência de autonomia política – ainda que muitas
vezes disfarçada em congressos e seminários supostamente organizados pelas
lideranças GLBT, mas constrangedoramente convocados e financiados por
órgãos governamentais, como se tem visto nos últimos anos (TREVISAN, p.
51, 2010).

Em 2000, segundo a International Lesbian, Gay, Bisexual, Transand Intersex


Association (ILGA), as legislações que criminalizavam a homossexualidade foram revogadas
em alguns países, tais como Armênia, Bósnia-Herzegovina, Cabo Verde, Geórgia Nicarágua e
Estados Unidos. A Suécia, desde 1944, possui legislação que legitima a homossexualidade, já
a França, em 12 de fevereiro de 2013, promoveu a Assembleia Nacional da França, que foi
favorável à lei que permitia que pessoas do mesmo gênero se casassem e pudessem adotar
crianças30.

Assim, podemos observar que as políticas de direitos LGBTQI+ nos Estados Unidos
são tardias e sofrem fortes resistências. Isso é perceptível pela própria história dos EUA, do seu
traço conservador e seus grupos de extrema direita. No entanto, perguntamos: por que foi esse
o modelo de luta adotado pela militância LGBTQI+ brasileira? Outra questão que nos ocorre é:
os grupos norte-americanos poderiam ser mais efetivos, caso tivessem adotado outras
estratégias e ações?

São perguntas que prescindem de respostas; importa saber se essas questões, que
precisam ser discutidas, foram formuladas à proporção que nos aprofundávamos nas ações, ora
de embate aos corpos dóceis do Estado – a polícia –, ora de confronto intelectual como jornais
e pesquisas, ou, ainda, de alinhamento com outros grupos, como os Pantera Negra e,
principalmente, com o Movimento Feminista e a contracultura.

30
Disponível em: <http://ilga.org/downloads/03_ILGA_WorldMap_ENGLISH_Overview_May2016.pdf>.
Acesso em: 24 jan. 2016.
48

2.3 O Brasil visto da Lua31

“Eu nunca faria outro aborto.


Arrependi-me o resto da vida por um que fiz,
ainda no Brasil, acho que Deus me castigou.”
Carmem Miranda

Os balangandãs requebrados em um colorido tropical e exageros desejados por toda


Drag já haviam sido espalhados Estados Unidos afora por Carmem Miranda, como afirma
Camargo (2007). No entanto, as ações dos movimentos homossexuais, no Brasil, segundo
Trevisan (2010), foram fortemente influenciadas pelas lutas norte-americanas, não só o
Stonewall inn, como as discussões sobre gênero.

Nos anos 1950, o Brasil passava por um período de pouca efervescência política e
cultural, e Carmem Miranda era entendida por certos segmentos como manipulada para a
construção de um “Brazil”, no singular, estereotipado, alegre, e lascivo. No entanto, esse
processo vai lentamente se transformando e a Era Vargas se distanciando. Enquanto os anos
1960 foram uma década de grandes levantes e transformações em países como França e Estados
Unidos, aqui no Brasil, para os “anormais”, a postura de autopreservação do corpo era “manter-
se no armário”, expressão adaptada do Coming out of the closet, só que no sentido inverso.

Para Rodrigues (2014), em seu artigo “Um Lampião Iluminando Esquinas Escuras da
Ditadura”, o público homossexual só passaria a possuir um jornal com arcabouço político,
referindo-se ao conteúdo, com a publicação do periódico Lampião da Esquina, já citado. Esse
sentimento repete-se no artigo “Imprensa Homossexual: surge o Lampião da Esquina”, que
afirma, após pesquisa realizada em mais de uma dezena de jornais, folhetins e similares,
existirem outras publicações, porém sem alcance ou qualidade editorial e gráfica. Não podemos
considerar que o aspecto político esteja apenas nos textos; a própria ação que resulta na criação
desses outros veículos são construções da história da identidade. Fato importante é que esses
outros veículos não se restringiram às classes médias de São Paulo e Rio de Janeiro: Snob, La
Femme, Subúrbio à Noite, Gente Gay, Aliança Ativista Homossexual, Ethus, La Saison, O
Centauro, O VIC, O Grupo, Darling, Gay Press Magazine; em Campos: Le Sofistique; na

31
Título da primeira parte da publicação de João Silveira Trevisan (2000). Utilizado aqui como uma metáfora da
impossibilidade deste tão longínquo distanciamento do fato social.
49

Bahia: O Gay, O Gay Society, O Tiraninho, Fatos e Fofocas. Para os editores de O Lampião,
essas publicações estavam focadas em amenidades e entretenimento.

Analisemos o quanto essas publicações, algumas com dez ou mais anos de antecedência
ao número zero do periódico O Lampião, pavimentaram uma trilha para a chegada deste. No
caso da Snob, foram produzidas 99 edições entre 1963 e 1969. Como salienta Perét (2011), a
revista possuía um grupo de leitores seletos, com material datilografado e mimeografado, em
que o próprio nome a mantinha distante do texto político, porém não podemos discordar que
uma revista em circulação por seis anos torna-se uma ferramenta política, até mesmo pelo ato
de negá-la.

Os textos eram escritos em uma linguagem com forte referência às expressões do


universo homossexual desde o século XIX. Contribuía, assim, para a construção de um código
linguístico próprio do grupo e sua preservação. Mantinha os leitores informados dos lugares de
frequência de gay e lésbicas, mas, quanto às referências às travestis, não foi encontrado autor
que as fizesse. Foi Hélio Gato Preto que, com outros editores, resolveu lançar um novo
periódico, o Gente Gay, em 1976, que logo entraria na clandestinidade. Ele, então, “optou por
continuar como na década anterior circulando o Gente Gay de modo informal” (GREEN, p.
421, 2000). Assim, como fez Lisa Bem, que distribuiu, em 1947 e 1948, seu jornal Vice-Versa
de mão em mão pelos bares de Los Angeles (RODRIGUES, 2014).

A imprensa de caráter editorial político gay, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos,
surgiu do desejo de sair do anonimato e de construir identidades. Lisa Bem32, pseudônimo de
Edy the Eyde, surpreende até hoje pela forma como criou, durante o trabalho como secretária,
um jornal, que variava de nove a vinte páginas, e não possuía nomes, endereços ou desenhos.
Lisa Bem, em entrevista posterior sobre o periódico, afirma ser “um meio através do qual
podemos expressar nossos pensamentos, nossas emoções, nossas opiniões – enquanto o
material fosse ‘dentro dos limites do bom gosto’” (KATZ, p. 618, 1983).

O Lampião, nome utilizado na edição zero, passaria a ser chamado de Lampião da


Esquina a partir da edição seguinte, uma vez que existia um jornal com esse nome no Rio

32
Segundo o site americano. Disponível em: <http://queermusicheritage.com/viceversa.html>. Acesso em: 24 jan.
2016.
50

Grande do Sul. Foi um dos jornais que melhor se confrontou, com o recém-criado grupo
SOMOS, com a questão de gênero, e o que viria ser a identidade gay no Brasil. Foi lançado em
abril de 1978, ano de eleições realizadas pelo governo do General Geisel, que prometia uma
abertura “lenta, gradual e segura”. Em verdade, esse gesto de Geisel já revelava um
enfraquecimento do governo militar, que teve seu ponto mais alto em 1968, com o AI-5 (Ato
Institucional número 5) (FERREIRA, 2010). Nesse momento, começa visivelmente a distensão
política: o Lampião da Esquina posiciona-se contrário, de um lado, à moral conservadora da
esquerda e, de outro, ao pragmatismo da direita. A oposição à direita passava – como, aliás, até
hoje – pela não aceitação de que existem outros gêneros além do masculino e feminino. Já à
esquerda o foco de luta era a união de cunho marxista, desconsiderando as diversas minorias de
gênero, raça, religiosa e tinham como slogan o lema: “É necessário unir-se pela luta maior”.

A influência dos tabloides norte-americanos evidencia-se e, no interior da impressa


alternativa, surge, de acordo com Macrae (1990), o Projeto Lampião da Esquina, antecedido
pela visita ao Brasil do editor do periódico Gay Sunshine, Winton Leyland. O periódico
americano foi um dos grandes expoentes pós-Stonewall e destacou-se pela forma de luta,
ressaltado pelo sucesso alcançado por meio da qualidade das discussões políticas e pela
aceitação do público33. Assim, nesse contato com Layland, participaram da reunião Darcy
Penteado, Adão Costa, Agnaldo Silva, Antonio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Francisco
Bittencourt, Gasparino Damata, Jean Claude Bernardet, João Antônio Mascarenhas, João
Silvério Trevisan e Peter Fry, que, posteriormente, constituíram o Conselho Editorial do jornal
(MACRAE, 1990). Acredita-se que nesse encontro definiu-se o traço editorial do Lampião da
Esquina.

Ao refletirmos sobre a identidade de gênero homossexual (termo aplicado na época) no


Brasil, com a qual o Lampião da Esquina contribuiu para dar contorno, acreditamos ser
importante nos determos para além do enfrentamento da questão de grupos de gays mais
desfavorecidos. O periódico tratava de levantar questões diversas referentes a essa parcela da
população que, pelo processo histórico, por uma singular e perniciosa generalização
identificatória, foi invisibilizado (RODRIGUES, 2014) ou, pior, foi transformado em monstros-
humano (FOUCAULT, 1984), estigmatizado (GOFFMAN, 2004), portador de um corpo abjeto,

33
Disponível em: <http://www.leylandpublications.com/>. Acesso em: 24 jan. 2016.
51

como afirmaria Butler (2003), que sofreu punições e foi patologizado (PERES, 2005). Sobre a
construção da identidade e seus sentidos, o autor afirma que:

[...] “identidade nunca é dada, é sempre construída e a (re)construir, em uma


incerteza maior ou menor e mais ou menos durável” (Dubar, 1997, p. 104).
Essa afirmação o aproxima de Ciampa (1987), quando diz que a identidade se
constrói na e pela atividade. A identificação vem do outro, mas pode ser
recusada para se criar outra. De qualquer forma, a identificação utiliza
categorias socialmente disponíveis. (FARIA; SOUZA, p. 36, 2011).

O processo de tensão permanente está implícito, bem como a mobilidade da identidade.


O Lampião, em sua edição zero, surge com uma tiragem de dez mil exemplares, passando a
quinze mil já na edição seguinte. Como podemos analisar na figura 2, a diagramação rompe,
em parte, com os jornais da época, que estampavam na capa uma grande matéria. O Lampião
da Esquina, talvez por seus editores serem intelectuais e ativistas, como o antropólogo Peter
Fry, o cineasta e escritor Trevisan e o artista plástico Darcy Penteado, entre vários outros
importantes nomes, pode conceber uma mídia que extrapolava da forma ao conteúdo, criando
uma unicidade.

Na edição zero, duas chamadas de capa atraem a atenção: na parte superior, ponto de
maior visibilidade, Homo eroticus – um ensaio de Darcy Penteado, e no centro da página Celso
Curi processado. Mas qual é o crime deste rapaz? As letras garrafais e o padrão estético eram
inovadores para a época. Nesse mesmo número havia um ensaio chamado Lontras, piranhas,
ratos, veados, e gorilas, atenção: vocês têm direitos. A ONU decidiu, vocês têm direitos, que,
servindo-se da Declaração dos Direitos dos Animais, utilizava a ironia com as lutas das
minorias como analogia. Parece-nos que a tentativa era a indignação. A leitura era ilustrada por
vários animais sustentando uma faixa na qual se lia COLEGAS: UNI-VOS!!!

Como afirma Green (2014), no momento do lançamento não se sabia se os ventos


sopravam em direção a uma abertura política ou, quatorze anos após o golpe, estava mais para
um vendaval. No entanto, o editorial é otimista:

Brasil, março de 1978. Ventos favoráveis sopram no rumo de uma certa


liberalização do quadro nacional: em ano eleitoral a imprensa noticia
promessa de um Executivo menos rígido, fala-se da criação de novos partidos
políticos, de anistia, de uma investigação das alternativas propostas faz até
com que se fareje uma “abertura” do discurso brasileiro (COELHO;
ALENCAR, 2014, s.p)
52

O periódico, mesmo com toda a sua importância, possuía suas limitações. O jornal,
vendido para um público gay, na sua maioria formada por pessoas de baixa renda, tinha sua
circulação nos principais centros urbanos do País: São Paulo e Rio de Janeiro. A linguagem,
como podemos observar na figura 2, não era de fácil assimilação. Por exemplo, o ensaio sobre
o homo eroticus, termo que, segundo o site inglês Urban Dictionnary34, era uma espécie que se
acreditava extinta, de gênero homo. Muitos queriam crer que sua extinção teria se dado pela
ineficiência em se reproduzir. Assim, os conceitos do periódico nem sempre eram passíveis de
compreensão pelo público mediano.

Figura 2: Capa do Jornal Lampião (Edição experimental/número zero) abril/1978.35


Fonte: Cruzeiro do Sul, 2011.

Havia algumas divergências internas. Em entrevista concedida a Rodrigues, em


2005, o jornalista Antônio Carlos Moreira, que trabalhou nas últimas 14 edições do jornal,
apresentou algumas informações, como a de que o jornal não sabia ao certo qual seu público
leitor, pois não havia pesquisa; ou que Agnaldo Silva queria um jornal para as “bichinhas
suburbanas”, “as bichas da cidade”, enquanto João Silveira Trevisan queria um jornal mais
intelectualizado. Existia, segundo Antonio Carlos Moreira, uma grande divergência entre os
redatores e também entre os públicos leitores, mas o que se sabia, basicamente, era que havia
apenas uma heterogeneidade (RODRIGUES, 2014).

34
Cf. Disponível em: <http://pt.urbandictionary.com/define.php?term=homo%20eroticus>. Acesso em: 28 jan.
2016.
35
Disponível em: https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/281755/artista-idealizou-1-jornal-para-
homossexuais
53

Após inquérito policial que, segundo Trevisan (2002), afirmava serem os editores
“pessoas que sofrem de graves problemas comportamentais”, foi pedido que estes fossem
enquadrados na lei de impressa e do crime contra a moral e os bons costumes. Rodrigues (2014)
diz que o Pasquim, na edição de número 08, fez uma nota de apoio ao Lampião da Esquina.
Renitente, o mesmo se tornou assunto reiteradas vezes. No entanto, houve uma onda
conservadora, que explodia bancas de revistas que comercializassem revistas pornográficas,
descritas em listas deixadas nos locais – entre elas estava o Lampião da Esquina. Várias bancas
passam a não vender mais o periódico. As edições começam a chegar atrasadas às bancas. O
editor desculpa-se no editorial.

Neste cenário, é criado o primeiro Grupo Homossexual do país, o grupo SOMOS, com
sede em São Paulo e, posteriormente, outra no Rio de Janeiro, que logo despertou conflitos
quanto ao posicionamento político. O posicionamento do Lampião da Esquina se fragilizou
ainda mais, pois alguns grupos o boicotaram. Em verdade, nesse momento, havia uma relação
simbiótica entre os grupos e os jornais homossexuais. Em junho de 1981, chega às bancas a
última edição do periódico, com uma linha editorial mais agressiva, tratando de temas ainda
mais polêmicos, como sadomasoquismo e transexualismo, com uma linguagem típica dos
guetos gays. Acabou o gás, porém, o incêndio estava só no início.

Durante sua existência, em pesquisa realizada por Rodrigues (2014), aglutinando as


edições por palavras/imagens-chave em relação às capas, tivemos a palavra violência como o
termo que mais apareceu na capa, utilizada em oito edições; travestis e bichas como termos
referentes a gêneros, presentes em sete edições; ativismo aparece em seis, assim como o termo
comportamento sexual, também presente em seis edições.

A chama se apaga. No entanto, outras foram acesas, como a criação de importantes


grupos ativistas, a exemplo do SOMOS. A chamada peste gay levaria milhões à morte,
adensaria a homofobia, como o próprio nome, apesar de pesquisadores americanos saberem que
heterossexuais usuários de substâncias injetáveis faziam parte do grupo de risco. Carros
paravam e pessoas atiravam contra grupos de travestis no centro de São Paulo. Na Bahia, o
Jornal A Tarde, maior veículo de mídia impressa do Estado, publicava “matar viado não é
homicídio, é caça”. Com o escurecer do Lampião, novas dores e desafios, avanços e retrocessos,
surgiram.
54

A possibilidade de discutirmos a atuação do grupo SOMOS, fundado em 1978, é, antes


de tudo, uma leitura dos processos históricos que, ainda que parcialmente, corroborou para a
construção das identidades LGBTQI+, através dos seus atores e atos políticos. Sendo o SOMOS
o primeiro grupo de ativismo gay do Brasil, foi, inicialmente, intitulado de Grupo de Afirmação
Homossexual. Segundo Green (2014), o nome do grupo seria Núcleo de Ação pelos Direitos
dos Homossexuais, criticado por ser demasiadamente político. Isso nos leva a refletir como,
naquele momento de abertura, a questão política era tratada com todo cuidado, uma vez que
não se sabia o que os aguardava em um futuro próximo. A questão do nome foi solucionada
usando-se apenas SOMOS, em homenagem a um periódico argentino que circulou entre 1971
e 1976. Ainda segundo Green (2000), a revista homenageada destinava-se a questionar os
projetos e ações culturais e econômicos nos dois primeiros anos da ditadura portenha,
adentrando pela opressão e a tortura aos presos políticos, tendo sido, portanto, importante
veículo de resistência naquele país. Perseguida por sua forte oposição à ditadura argentina, foi
extinta em 1976; no entanto, semeou sua visão política e continuou influente, pois seus editores
contribuíram em novos formatos de publicações.

O acervo do SOMOS, assim como os de outros grupos, colaborou para a Comissão


Nacional da Verdade – CNV pudesse denunciar as formas como os homossexuais eram
torturados, e como resistiram pelo longo período de 21 anos de governo militar no Brasil
(GREEN, 2000). A ditadura foi um forte golpe que adiaria a organização dos grupos LGBTQI+.
Marcadas por aprisionamentos e humilhações, as rondas noturnas policiais em Belo Horizonte,
Rio de Janeiro e São Paulo eram sempre ameaçadoras e violentas. A BBC, importante rede de
comunicação britânica, publicou, no dia 10 de dezembro de 2014, uma matéria em seu site,
intitulada LBGTs sofriam torturas mais agressivas no Brasil, diz a CNV. O destaque eram as
torturas às travestis, mas as extorsões, no entanto, não se limitavam a elas. Essa “higienização”
levou mil e quinhentas pessoas à prisão, somente na cidade de São Paulo, além da perseguição
aos movimentos gays embrionários.

Não podemos ser levados a acreditar que o período de 1964 a 1985 reprimiu a todos de
igual forma. Haveria, por parte do Estado, alguma ação em reconhecer essas atrocidades e
buscar políticas sociais que pudessem orientar-se pela reparação? Questões que envolvem o
exército e as manifestações que fortalecem o que foi dito pela Comissão da Verdade foram
encontradas em grande quantidade, desde as matérias do Lampião da Esquina e as publicações
do antropólogo Luiz Mott a livros e artigos de iniciação científica. Todavia, não localizamos
55

sequer um pronunciamento de reconhecimento ou qualquer ação nesse sentido por parte do


exército. Não sei se seria o caso...

O caráter homofóbico parece-nos ainda estar presente nas Forças Armadas brasileiras,
pois não aceitam lésbicas ou homossexuais, diferente, por exemplo, da França, Canadá e
Espanha que, desde a década de 1970, permitem que esses grupos façam parte dos seus quadros.

A criação do grupo SOMOS é quase simultânea ao lançamento do jornal Lampião da


Esquina: dá-se no mesmo ano, e muitos integrantes transitavam entre ambos, criando uma
relação de retroalimentação (CAMARGO, 2007). Esse movimento propiciou o que Green
(2014) chama de “a criação da primeira onda” do movimento LGBTQI+ brasileiro, no final dos
anos 1970 e começo dos anos 1980. Afinal, como argumenta o autor, nesse período de
redemocratização, a sociedade reivindicava espaço para as diversidades de expressões. De
acordo com Green, a perspectiva de afirmação das identidades de gênero passava por construir
alianças com agremiações que fossem representativas de “grupos oprimidos”, referindo-se aos
negros, às feministas e aos indígenas. Esse coletivo buscava construir propostas de políticas
para os trabalhadores que preservassem suas particularidades, tais como: gênero, etnias, credo.
Relembrando o conselho editorial do jornal Lampião da Esquina (1978), pode-se perceber uma
grande similaridade nas propostas: “Nós pretendemos também ir mais longe, dando voz a todos
os grupos injustamente discriminados – dos negros, índios, mulheres, às minorias étnicas do
Curdistão [...]”.

Figura 3: Manifestação em defesa da liberdade de gênero no interior do movimento trabalhista


Fonte: PUFF, 2014
56

Quando o exército interveio no sindicato do ABC, durante a greve geral do setor de


metalúrgico, e vários dirigentes foram afastados, entre os quais o então líder operário Luiz
Inácio Lula da Silva, houve uma união entre diversos grupos em apoio aos operários. O
SOMOS, simpatizante da causa, enviara cinquenta pessoas para participar do 1.º de Maio, em
São Bernardo. O grupo portava duas faixas: uma apoiando o movimento Contra a intervenção
nos sindicatos do ABC e a outra pontuando a posição relativa à orientação sexual dos
trabalhadores Contra a discriminação do/a trabalhador/a homossexual (SOMOS – grupo,
2003). Era a primeira vez que um grupo assumidamente de gays e lésbicas participava de um
fato social desse tipo, ato que demonstra a força política da presença. No entanto, não
encontramos registros quanto à presença de travestis no evento de 1.º de Maio.

O grupo SOMOS abriu uma sede no Rio de Janeiro, onde participou de várias
manifestações, no entanto foi em São Paulo que alcançou maior destaque, como resposta à ação
da polícia que comumente realizava conhecidas rondas, tendo à frente o delegado Richetti. Em
13 de junho de 1980, segundo Isadora Lins França (2006), uma grande operação encarcerou
arbitrariamente travestis, prostitutas e homossexuais. Uma manifestação de porte foi
organizada, envolvendo grupos negros, feministas e gays, como o SOMOS, além de outros que
começavam a se constituir. A repressão a esses grupos chegara, afinal; e, entre 14 de dezembro
de 1976 e 21 de julho de 1977, foram detidas 460 travestis, segundo Green (2014). Para
Rodrigues (2014), trata-se do caso Stonewall inn brasileiro. Entendemos que devem ser levadas
em conta as diversidades culturais, ao atribuirmos essa comparação, mesmo que a luta tenha
como princípio o direito pelo comming out closet (saída do armário), trata-se de décadas
diferentes, em países com contextos repressores e aparatos diversos. No entanto, ao nos
depararmos com fenômenos sociais do tipo do “Caso Richetti”, é impossível não estabelecer
similitude.
57

Figura 4: Manifestação contra a atuação do delegado Richetti


Fonte: Guitzel, 2016.

A atuação do SOMOS e do Lampião da Esquina contribuiu para a construção da


identidade e dos direitos LGBTQI+, além de outras possibilidades de gênero. O movimento
feminista, desnaturalizando sexo e gênero, criou espaço para que, de Stonewall inn ao “Caso
Richetti”, esses grupos pudessem refletir e criar práticas políticas e de prazer, com seus corpos,
social e individualmente. O Grupo SOMOS dilui-se, mas outros grupos são formados,
destacando-se o Grupo Gay da Bahia (GGB) e o Triângulo Rosa, também da Bahia. A chegada
da AIDS e, com ela a ideia construída politicamente, mas não embasada em pesquisas, de que
se trata de um câncer gay, peste gay, traz novo foco à luta.

Ao realizar pesquisas em mídias impressas sobre a AIDS (sigla em inglês para Síndrome
da Inumo Deficiência Adquirida) no universo gay dos anos 1980, havia uma forte vinculação
entre AIDS e os termos peste gay ou epidemia gay, apresentados como designação das doenças
abrangidas pela síndrome, tomados como verdade incontestável. Cabe, então, ao biopoder,
adentrando nos espaços sociais, alcançando um grande percentual da população de modo a
constituir “a assunção da vida pelo poder”, “uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser
vivo, uma espécie de estatização do biológico” (FOUCAULT, p. 285, 2006).

Mesmo com outras formas de transmissão, a AIDS teve e tem o foco da mídia e do
Estado no ato sexual. De início, ela possibilitou uma abordagem do corpo por parte da ciência,
que criou um saber médico estigmatizante. Esse saber valeu-se de uma comunicação
58

compulsória associada ao sexo degenerado, doente, perceptível até no primeiro nome científico
dado à síndrome: GRID – Gay-Related Immune Deficiency (ou seja, Imuno Deficiência Gay
Relatada). A AIDS faz mapeamentos da vida sexual dos gays e a moral médica da vida que
precisa ser preservada se apresenta como uma obrigação. O medo de perder a vida atravessa as
relações dos movimentos, tão afetadas por essa doença mortal. A sexualidade é a ponte dessa
sociedade que define os anormais, mas que detém o direito do cidadão, do homem:

[...] a sexualidade na medida em que está no foco de doenças individuais e


uma vez que está, por outro lado, no núcleo da degenerescência, representa
exatamente este ponto de articulação do disciplinar e do regulamentador, do
corpo e da população (FOUCAULT, p. 300-301, 2002).

A peste gay, como seria conhecida no imaginário popular, era reafirmada pelos veículos
de comunicação. Em Salvador, por exemplo, o jornal A Tarde, de 14 de janeiro de 1985,
publicou várias frases discriminatórias, tais como “A solução para acabar com a AIDS é a
erradicação dos transmissores da peste gay”, ou sugerir “matar um veado por dia”. Em razão
dessa postura, o jornal foi processado pelo Grupo Gay da Bahia.

A mídia impressa não era uma voz solitária: a violência contra o universo LGBTT foi
adensada. Travestis evitavam ficar em grupos, pois temiam ser assassinadas, dado que havia o
risco real de carros pararem e dispararem contra elas. Casos de linchamento e humilhação
pública eram relatados. Como pontua Carlos Alberto Messeder Pereira (2004):

[...] ela [a AIDS] foi, pouco a pouco, sendo reconhecida como capaz de atingir
os mais diferentes grupos sociais sem que, entretanto, essa sua proximidade
simbólica com o mundo homossexual, esta sua “marca de origem” tenha
jamais se apagado inteiramente (PEREIRA, p. 54, 2004).

A presença da AIDS vai, aos poucos, substituindo conquistas que pareciam sólidas e
grupos de direita começam a patologizar o universo gay. A alegria, que foi tomando forma nos
últimos anos da década de 1970, vai sendo substituída por um presente nebuloso e um futuro
incerto e depressivo, tanto no campo pessoal como no espaço coletivo (PEREIRA, 2004). A
revolução sexual parecia ter ficado para trás.

“O meu prazer agora é risco de vida” é um trecho de uma canção do compositor Cazuza
e serve para ilustrar como, na prática, o que houve, em parte, foi o controle do desejo
homoafetivo. A partir da autodeclaração do poeta e cantor Cazuza ser portador do vírus da
AIDS, tornou-se cada vez mais frequente, nas “manchetes de jornais” (Letra de Cazuza)
59

especulações sobre os tratamentos da doença, e o lançamento de seu último disco “O tempo não
para” provocou uma associação entre sua morte e a dificuldade de acesso ao AZT (medicamento
ainda não disponível no mercado, na época). Mesmo não estabelecendo uma relação direta entre
a AIDS e a produção artística de Cazuza, parece-nos haver uma relação dialética entre sua
pulsão de vida e o tratamento. Assim, eram expostas fotografias esqueléticas, imagens doentias
de Cazuza usando óculos escuros, bandanas na cabeça, sob o estigma da peste gay, que foi,
também, reafirmado pelo belo ator Lauro Corona e o cantor e compositor Freddie Mercury, que
morreram em decorrência da doença, criando, assim, uma disciplina sexual do corpo. A criação
dos termos grupo de risco ou comunidade de risco mostrava um discurso muito anterior a
Stonewall. Para que o desejo seja controlado, é necessário que se estabeleça um padrão. Os
corpos gays devem transmitir, portanto, que não são portadores da AIDS.

A ideia de saúde recai sobre o padrão estético heteronormativo, corpos hipertrofiados,


que comunicam ações equilibradas e comportamentos condizentes. A “bicha louca”, o
“viadinho” passam a ser descriminados dentro do próprio universo gay. Para Goffman (2004),
os desacreditados, aqueles que expõem suas identidades, rompem com o desacreditável,
buscam omitir suas orientações sexuais caso estas causem estigmatização.

O primeiro caso de AIDS no Brasil foi chamado de 5H (homossexuais, hemofílicos,


haitianos, heroinômanos e hookers– ou profissionais do sexo); ocorreu em 1980, mas foi
classificado apenas em 1982. As ações de prevenção levaram o governo a dialogar com as novas
organizações não governamentais gays. Na década de 1980, houve o surgimento de várias
entidades, sendo o Grupo Gay da Bahia a primeira a conseguir registro oficial e destacar-se
pelas denúncias de violência. O GGB foi idealizado pelo professor e antropólogo Luiz Mott e
declara ser “a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no
Brasil. Criado em 1980 e registrado como sociedade civil sem fins lucrativos em 1983”36, esse
grupo fundou internamente o Centro Baiano Antiaids (CBAA), com a finalidade de redução do
contágio e da violência contra a população gay, por ser a esta atribuída a responsabilidade pelo
surgimento da AIDS. As ações do GGB eram, e continuam sendo, diversificadas, desde
distribuição de camisinha em bares e casas noturnas na Avenida Carlos Gomes e adjacências,
ou em reuniões na antiga sede na Rua da Ajuda, até às contagens de homicídios por homofobia,

36
<ggb.org.br> (Não mais disponível).
60

tornando a Bahia o primeiro estado a ter esse tipo de acompanhamento por uma organização
não governamental.

No primeiro encontro de organizações gays, ou grupos gays, que ocorreu em São Paulo,
em 1980, já se demonstrava uma busca por identidade. Alguns aspectos tratados foram: a
autonomia das posições políticas (FRY, 1985), o apoio aos grupos feministas, a negação ao
machismo, entendendo que a dicotomia bofe/bicha era uma expressão deste, substituição do
termo gay por entendido. No entanto, o GGB retornaria a essa última questão e adotaria o uso
do epíteto bicha, considerando importante requalificar a palavra (FERRARI, 2006).

O Grupo Gay da Bahia criou certo deslocamento ou expansão das questões gays, antes
restritas ao eixo Rio/São Paulo, agora com representação atuante também no Nordeste. E, talvez
pelo fato de o seu criador ser oriundo do periódico anarquista Inimigo do Rei, podemos entender
a recusa em usar o termo entendido por bicha!!!, e a proximidade com Foucault, que visitou
Salvador em 1976. A identidade do grupo e a do seu fundador, Luiz Mott, são indissociáveis
desde a sua fundação, uma vez que ele sempre esteve à frente, refletindo e elaborando
programas e/ou projetos.

Desde o início houve a preocupação de preservação de documentos históricos, clipagens


e divulgação. Possuindo atualmente uma editora própria, o que permite a produção de novos
materiais, historicizando a luta LGBTQI+, o GGB contribuiu para a construção das identidades
de gênero. Devemos destacar que Salvador, mesmo sendo uma grande cidade, nos anos 1980,
era gerida pelo Carlismo, um tipo de coronelismo que tinha no político Antônio Carlos
Magalhães o grande patriarca. ACM, como era conhecido, apesar de eleito em vários pleitos,
por diversas vezes ocupou cargos “biônicos” ou indicados pela ditadura e o controle era linha
dura. É nesse ambiente que o GGB não só sobrevive, como cria formas de resistência, que serão
discutidas e trocadas com outros grupos gays.

A leitura de Mott (2009) sobre a relação da população do Brasil com o universo LGBTT,
chamada por ele de tribo gay, assemelha-se a Kulick (2009):

O Brasil é um país desconcertantemente contraditório em relação a 10% de


nossa população pertencente à tribo LGBT: em seu lado cor de rosa, abriga a
maior parada gay do mundo, elegeu a transexual Roberta Close como modelo
de beleza da mulher brasileira e agora virou moda mostrar personagens gays
nas telenovelas. Mas nosso país se destaca no cenário global pelo seu lado
61

vermelho sangue: aqui são assassinadas 50% das travestis do mundo, a cada
28 horas é registrado um “homicídio” e segundo recente pesquisa do Disk 100,
da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a cada hora um LGBT é vítima
de alguma violência homofóbica: insultado, expulso de casa, agredido em
bullying escolar, espancado. 605% a mais do que no ano passado! A Bahia,
que no imaginário nacional é a terra da alegria, na verdade, é território da
homofobia: 24 assassinatos só nesse ano, 519 desde que o GGB começou esse
banco de dados em 1980 [...] (MOTT, p. 1, 2009).

Esse seria o período que Green definiu como primeira onda do movimento LGBTQI+
brasileiro. Se o movimento foi oprimido pela ditadura quando ainda embrionário, segundo
afirmam inúmeros dos pesquisadores citados, ao mesmo tempo mostrou-se com capacidade de
articulação e inovação, demonstrada pelo jornal Lampião da Esquina ou a militância do
SOMOS; se os estudos feministas, focados em “gênero”, possibilitaram o entendimento do
“gênero” como uma construção cultural, por outro lado, as estratégias dos movimentos gays
norte-americanos muito influenciaram nas ações, sendo ambos indissociáveis, como afirmou
Trevisan, que se autoexilou naquele país.

5H, Peste Gay, Câncer Gay e todos os vocábulos que colocavam a homossexualidade
como patológica, os movimentos higienistas que pregavam (e, até certo ponto, ainda pregam)
abertamente morte aos gays, criaram dores e levaram muitas vidas. No entanto, os grupos gays
souberam se posicionar e discutir com as esferas públicas seus projetos e programas, ações de
promoção da saúde, atingindo, dessa maneira, uma parcela cada vez maior da população, sendo
os grupos gays responsáveis pela criação da primeira rede de organizações não governamentais
no País.

2.4 E da Lua, via-se Sergipe?

O movimento pela causa homossexual começará em Sergipe, mais precisamente na


capital, Aracaju, já nos anos 1980. Sergipe nunca ocupou um lugar de destaque no cenário
nacional. Enquanto a ditadura militar pregava a ideia de sermos gigantes, com o maior estádio
do mundo, a maior ponte, a transamazônica e o milagre econômico, a capital sergipana, com
população de 299.422 habitantes, localizada na região Nordeste, distante e pauperizada, mais
se caracterizava por uma oligarquia rural que por ser palco de movimentos sociais e de direitos
humanos (Fundação Joaquim Nabuco).
62

Segundo Marcos Ribeiro de Melo (2013), José Silva conheceu o jornal Lampião da
Esquina, o qual passa a divulgar. De Silva não se sabe a idade, mas somente que era jovem e
trabalhava como operador de fotocópia e atendente de cartório, em Aracaju. Melo afirma que o
contato ocorreu no final de 1979, em um congresso estudantil, não se sabe o local. José Silva
passa a representar o jornal na capital sergipana, realizando o lançamento do periódico, em
1980, no Diretório Acadêmico dos Estudantes da Universidade Federal de Sergipe (UFS). O
evento contou com apresentações e “a presença da transformista baiana Suzana Vermont
[Figura 5], personagem da noite soteropolitana naquele período” (MELO, 2013).

Figura 5: Lançamento do jornal O lampião da Esquina no Diretório Acadêmico dos Estudantes


Fonte: Arquivo pessoal de José apud Melo, p. 81, 2013

Enquanto no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador a formação dos grupos e ações são
predominantemente feitas pela classe média intelectualizada, em Aracaju ocorre o inverso. As
pessoas que formam os grupos são de origem mais simples. A primeira organização gay do
Estado surgiu em 1981, como é relatado pelo próprio grupo: “José [Silva] se reuniu a uma rede
de amigos em sua residência, localizada em uma vila no centro da cidade, e fundou no dia
14.03.1981 o Grupo Dialogay de Sergipe” (GRUPO DIALOGAY DE SERGIPE, 1981). O
evento contou, também, com a presença do presidente do GGB, Luiz Mott. O conceito de vila,
em Aracaju, é o de pequenas casas geminadas com um único acesso e, enquanto algumas
63

utilizam um banheiro coletivo, outras são mais espaçosas. Indubitavelmente, porém, a vila é
um tipo de unidade habitacional direcionada para a população de baixa renda.

O Dialogay, como era mais conhecido, desde seu início focou na visibilidade política
do público gay, o que é, também, uma das principais bandeiras do GGB. Nos informativos
produzidos pelo grupo, era comum a utilização de frases que buscavam demarcar esse território,
como “Procuramos nossa liberdade” ou “Ser ou não ser homossexual, eis a questão”. Outra
característica era não haver pontuação final nas frases, como interrogação, exclamação ou ponto
final, deixando-se a proposição em aberto.

Figura 6: Boletins informativos do Grupo Dialogay de Sergipe.


Fonte: Arquivos Grupo Dialogay de Sergipe apud Melo, p. 83, 2013

Ações como distribuição de camisinhas, realizadas pelo grupo desde 1983, eram vistas
como algo imoral, uma vez que não houve casos de AIDS em Sergipe até 1987. Assim, a
hostilidade era comum contra a população gay, afinal, a doença era entendida como
exclusivamente homossexual (TREVISAN, 2000).

Na manhã do dia 6 de junho de 2016, realizamos, por telefone, entrevista com Marcos
Ribeiro de Melo, professor, ativista, um dos fundadores do grupo Dialogay e doutor em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de Sergipe. Sua pesquisa para o doutorado produziu
uma relevante obra intitulada Itinerários e “lutas”: o engajamento de lideranças dos
movimentos homossexual e LGBTTs em Sergipe (1981-2012), uma das raras bases para
pesquisa bibliográfica sobre o assunto. Assim, pudemos esclarecer algumas questões e discutir
64

aspectos sobre o envolvimento das travestis nessa primeira onda no, já citado, conceito de
Green.

O Grupo Dialogay de Sergipe fechou suas portas em janeiro de 2003, devido a batalhas
judiciais referentes a questões trabalhistas e acusação de desvio de verbas. No entanto, de
acordo com o entrevistado, que foi inocentado após investigação do Ministério Público, “porém
havia perdido o time”, as críticas da população e a justiça sergipana, que o consideraram
culpado antes mesmo das investigações, trouxeram desgastes emocionais e para fins
representativos de imagem. O Professor Marcos Melo ressalta que o Ministério Público chega
a indicar o fechamento de uma organização que tanto contribuiu para a causa LGBTQI+ sem a
devida condenação.

Quando questionado sobre o não aparecimento de travestis nos informes, Melo é


enfático em afirmar que elas sempre estiveram presentes. Nos anos 1980, ele se recorda de
duas; no entanto, a relação com a prostituição nas esquinas passa a ocorrer em 1989, quando
um grupo de aproximadamente dez travestis fica na Rua da Frente (região em frente ao Rio
Sergipe), que até hoje é território delas. Isso talvez explique a omissão de sua participação no
movimento.

A presença da Igreja Católica também foi relatada; consta que o Bispo Dom Lúcio José
Cabral Duarte, apesar de estar com sérios problemas de saúde, fazia rondas na cidade como
ação coercitiva, além de suas homilias homofóbicas. O bispo, assim como no jogo de xadrez,
possuía forte aproximação com os outros poderes e era bastante temido.

Sobre a influência dos movimentos feministas e os estudos de gênero, o entrevistado


salientou que tudo era produzido de forma um tanto intuitiva, não havia fontes, e, sim,
preconceitos: em casa, na rua, na escola, nos grupos, além de agressões físicas. Os estudos das
questões de gênero eram, antes de tudo, um grito de socorro.

O legado do Dialogay é retratado em uma matéria no portal Infonet, maior e mais


importante portal eletrônico em Sergipe, com o título O apagar das luzes: a extinção do
Dialogay e seu legado. Na matéria, o historiador Gilvan dos Santos Rosa diz que as novas
organizações não têm conseguido ocupar o vazio deixado pelo Dialogay, ressalta suas ações e
o fato de que Sergipe possui um amadorismo na gestão das organizações do terceiro setor.
65

Lutas, algumas conquistas, outros retrocessos no horizonte, conflitos, batalhas e um


sentimento de solidariedade entre os grupos. A verdade é que há um fosso a ser atravessado por
todos para entender o diferente, o que vem a ser uma travesti, uma trans, entre tantos outros
gêneros. É igualmente verdade que, ao chegarmos ao outro lado, também nos perceberemos
diferentes e teremos outros valores éticos para o planeta (SZYMBORK, 2000): Parece que/ Tal
como ela a nós / Também nós/ Lhe servimos para algo.
66

3 A REPRESENTAÇÃO MÍTICA. CORPO: ANDROGINIA E TRAVESTILIDADE

FEMININA
Mário de Sá-Carneiro

Eu queria ser mulher


para poder me estender
Ao lado dos meus amigos,
nos banquetes dos cafés.
Eu queria ser mulher
para poder estender
Pó-de-arroz pelo meu rosto,
diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher


para não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos
a quem pedisse dinheiro –
Eu queria ser mulher
para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer potins
– muito entretida.

Eu queria ser mulher


para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho,
antes de me deitar –
Eu queria ser mulher
para que me fossem bem estes enleios
Que num homem,
francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher


para ter muitos amantes
E enganá-los a todos
– mesmo ao predileto –
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro,
o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio,
de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher


para excitar que me olhasse,
Eu queria ser mulher
para me poder recusar...

Paris, fevereiro de 1916


67

3.1 Corpo

O corpo torna-se a gravura do self. O que se é, ou, a interioridade do sujeito, é parte de


uma constância exterior e reduz-se à sua superfície. É preciso se colocar de fora de si para se
tornar “si mesmo”. Mais que nunca, repetindo Paul Valéry, “a pele é o mais profundo” (apud
LE BRETON, 2003).

O corpo deixou de ser, em nossa cultura ocidental, um fim em si. Ao passar a ser o mais
profundo, ele é agora um elemento passível de transformações, hipertrofias, implantes,
pigmentação, cirurgias corretivas, cirurgias para aproximações estéticas, tatuagens. O design
do corpo mostra-se insaciável.

Quando retrocedemos em busca do radical da palavra “corpo”, encontramos uma


definição que possui um valor em si, com o significado de “beleza”, oriundo do sânscrito karp;
como em uma paralela de significados, se nos apoderarmos do latim, remeteremos ao radical
indo-europeu kar, que representa fabricar, fazer e criar. Portanto, quanto à origem do termo,
observando por dois radicais, o corpo estaria em uma teia a ser apreciada ao tempo da criação,
modelação e apropriação. O corpo objeto (práxis), o corpo beleza (CANTO-SPERBER, p. 235,
2013).

Para além do corpo-relógio de Descartes, esse corpo máquina, que Michel Foucault
definiu como objeto com avarias, apresenta-se como uma presença ambígua: algo nosso, ou
melhor, o que somos, a experiência dos nossos corpos nos transforma diferentemente de outros
corpos; somos ligados aos nossos corpos e deixamos de existir quando os mesmos falecem,
pelo menos em nossa cultura ocidental.

Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo se fabrica; de uma


massa informe, e um corpo inapto, fez-se máquina de que se precisa;
corrigiram-se aos poucos as posturas: lentamente uma coação calculada
percorre cada parte do corpo, assenhoreia-se dele, dobra o conjunto, torna-o
perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos
hábitos. (p. 133, 2014)

A construção do corpo encontra-se presente na cultura ocidental como uma alegoria do


corpo ideal, um corpo a ser atingido. O corpo enquanto da espécie, aquele que nasce, cresce e
morre, possui enfermidades, não poderá ser exemplo de um corpo cultural, pois o corpo cultural
busca a "docilidade" (Id., 2014).
68

Berenice Bento, na apresentação do livro de Jorge Leite Junior (2011), entre várias
reflexões sobre as quais poderíamos discorrer, inclui uma questão sobre o discurso de gênero
que nos salta aos sentidos. Inicialmente, ela recorre a um fragmento do livro: “Uma nova ciência
para uma nova sociedade, uma nova psique para um novo corpo, novos limites e novas
transgressões para novas normas” (BENTO apud LEITE JR., p. 17, 2011), e, em seguida,
argumenta: “Tudo que se fala de sexo e de gênero já traz em si uma demanda moral, portanto,
reguladora” (Id., 2011).

A apresentadora do livro pontua também o afã por nomenclaturas, como podemos notar,
ao ter na atualidade quase meia centena de gêneros. Todavia, o aumento das possibilidades não
significa uma não classificação, mas somente um maior número, sendo, da mesma forma, uma
ferramenta de controle. Tais mudanças históricas, possivelmente, não representam liberdade,
mas este aspecto não é menos importante e foi salientado por Leite Jr. (2011). A cada mudança
social cria-se uma nova forma de conhecer, que gera novas normas, limites e transgressões.

A perspectiva do texto (fundamental) Técnicas do Corpo, de Marcel Mauss, conceitua


o corpo através do resgate da dimensão sócio histórica e o constrói de período a período, de
forma sociocultural e mutável, ou, como afirma Vitor Sérgio Ferreira (p. 02, 2009):

O conceito de “técnica do corpo” de Mauss respeitava e guardava esta


dimensão de carnalidade do corpo, olhando para o corpo no diálogo com a
realidade social, cultural e material que o circunscreve, mas não o perdendo
de vista na sua realidade concreta, na sua fisicidade, enquanto matéria viva,
vivida e em devir nas suas propriedades, sejam elas necessidades,
potencialidades ou limitações de várias ordens (morfológicas, fisiológicas,
neurológicas, motoras, sensoriais ou outras).

O autor argumenta sobre as mudanças de paradigma referentes ao corpo, resultantes da


contribuição das pesquisas de Mauss. Pontua a importância de não se perder a matéria viva
além dos limites. Assim como Mauss retira o corpo da natureza e o inscreve na realidade social
e cultural, novos pensadores contribuirão, como Le Breton (2003, p. 54), indagando sobre o
corpo na modernidade: “o corpo é associado a um valor incontestável, e essa admiração tende
à psicologização, a torná-lo um local felizmente habitável a ele, acrescentando-se uma espécie
de suplemento de alma (suplemento simbólico)”. O corpo, na modernidade, é fetichizado, logo,
esta representação simbólica só faz sentido na cultura.
69

Foucault (Ibid., 2014), no conceito de “corpo dócil”, afirma que no século XVII houve
uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Para tanto, é facilmente perceptível a
atenção focada no corpo, assim, este se torna obediente, modelado, responde às forças que o
manipulam. Quando o autor recorre ao discurso da representação de um corpo mais idôneo,
utiliza como ilustração o corpo de um Oficial, e relata: “a cabeça direita, o estômago levantado,
os ombros largos, as pernas finas e os pés secos”, afinal, um homem deste tipo não deixaria de
ser ágil e forte. A identidade do soldado, em nada é particular, é um corpo a serviço de outrem,
transformado pela relação com uma instituição, e sua identidade é “oficial”.

Para além dos conceitos de base, devemos compreender que é no corpo que o gênero se
figura, logo, a “performatividade” atua como elemento entre dois polos, masculino e feminino.
Judith Butler (2003) traz à cena o conceito de “identidade de gênero” sob a perspectiva da
performatividade:

Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou


substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo
de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio
organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações,
entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência
ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações
manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos.
O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não
tem status ontológico separado (BUTLER, p. 194, 2003).

Para a autora, no território da cultura repetem-se palavras, movimentos, signos, atos,


ritos e comportamentos. Esta continuidade confere significado ao que entendemos como
masculino e feminino, isto é, uma estrutura binária. Dito de outro modo, “O gênero é um efeito
performativo de atos repetidos, sem um original ou uma essência, não revelam, nem expressam
uma identidade preexistente” (AMBRA; SILVA JR., p. 40, 2014). Butler também desvincula a
relação sexo e gênero: “O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural
de significado num sexo previamente dado” (p. 25, 2010). Todas as outras possibilidades, fora
do circuito binário, são categorizadas como monstros (FOUCAULT, p. 48, 2014) e suas
variações.
70

3.2 Mito

O (res)sentir – ou buscar sentir de outras formas para ser tocado(a) por uma obra de
importante envergadura, que transpassa a filosofia, as artes e as ciências – conduz-nos a refletir
sobre as fronteiras, cria-se em nós o desejo de aproximar-se do mundo de forma diferente das
já estabelecidas e ancoradas em certo status quo.

Começaremos apresentando alguns conceitos de mito, algo que se justifica pelo próprio
caráter da obra O Banquete, de Platão, escrita por volta de 380 a.C. Seguidamente, as formas
de transmissão do mito na Grécia, e somente depois analisaremos fragmentos, como o discurso
de Aristófanes e outros, não exatamente nesta ordem, porém, que construam uma espécie de
cenário de percepções da representação mítica, estética e literária. O primeiro aspecto que
suscita este imperativo é o próprio recorte metodológico: não queremos discutir as várias ou
inúmeras possibilidades que a obra de Platão nos apresenta, dentre eles, um discurso de
contemplação sobre as várias invocações de Eros ou a reflexão de como os Deuses agem e
pensam sobre nós, humanos. Objetivamos, como aqueles que refletem sobre o corpo andrógino
e a travestilidade, pistas, afirmações que possam traçar esboços, isto é, a força e importância da
presneça e da ausência dos andróginos e/ou travestidos na obra, de forma que possamos senti-
las e interpretá-las.

Partimos do presuposto ancorado em Vernant (p. 229, 1996) para nossas reflexões sobre
mito, mais especificamente a mitologia grega, uma vez que trabalharemos com O Banquete, de
Platão. Ressaltando a aproximação com a religião, Vernant inicialmente apresenta de forma
simples o conceito de mito: “Grosso modo e essencialmente, trata-se de um conjunto de
narrativas que falam de deuses e heróis, ou seja, de dois tipos de personagens que as cidades
antigas cultivam”. Este politeísmo confere uma complexidade à política e à sociedade grega,
ao tempo que uma certa ordem.

Os mitos não eram impostos sobre o peso da culpa, obedecendo dogmas, bem como não
eram escritos em livros sagrados. Assim, o mesmo mito alterava-se entre regiões. Afinal, não
se aterrava o fiel pela culpa ou outra doutrinação. Vernant (p. 2 1996) explica que o texto não
é absoluto, “ao pé da letra”, e exemplifica com um fragmento da Ilíada:
71

Quando Homero conta o episódio dos amores ilícitos de Ares e


de Afrodite, pegos como ratos na ratoeira pela rede de Hefesto,
em flagrante de adultério, na frente de todos os deuses reunidos,
o poeta estabelece, com seu próprio relato, uma distância
irônica o bastante para mostrar que o está tratando no tom do
jogo, até mesmo piada37.

Quanto às narrativas dos mitos gregos, não havia diferenciação entre a literatura e a
religião, entre a narrativa fictícia e a verdade que é narrada, entre a fabulação do mito e a
“veracidade” do divino, imbricada. Logo, tentar sentir os mitos gregos requer entender um
sistema religioso sem igrejas, em que a tradição oral ocupava o centro.

Outras abordagens sobre mito, comumente encontradas em periódicos e outras


publicações, são vagas, e poucas contribuem efetivamente para este estudo. Todavia, ressalte-
se Mito e Realidade (ELIADE, p. 09, 1963): “O mito é uma realidade cultural extremamente
complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e
complementares”. Mesmo sendo esta definição ampla, quando trata mito como “realidade
cultural”, aproxima-se do ethos da antropologia, ao ponto que não retira do mesmo seus
atributos e aproximação com a religião, por exemplo, pois a conclui como passível de
“perspectivas múltiplas”.

Aspectos do Mito (ELIADE, p. 15, 1929) apresenta-se seguindo a acepção anterior, a


qual argumenta sobre a complexidade e multiplicidades de se definir mito. Nesta abordagem, o
pesquisador estabelece uma relação entre a gênese e o mito: “O mito conta uma história sagrada,
narra um fato importante ocorrido no tempo primordial, no tempo fabuloso do começo”. Esta
é, pois, a resposta para a origem dos seres, seja mortal, herói ou deus. Coloca-se, em acordo
com Caillois (p. 63, 2001), que a representação do mito produz uma imagem referida a um
comportamento de que a consciência sente o pedido insistente: “Da realidade externa ao mundo
da imaginação [...] em todo o lado os mesmos fios tecem os mesmos desenhos. O próprio mito
é o equivalente de um acto”. Se é verdade que a consciência pulsa, demandando certos atos,
também podemos inferir que para o Caillois esta consciência é coletiva. Usa-se a alegoria de
tecer o mesmo fio. Parece-nos o tear das Moiras (Μοῖραι), senhoras incontestes do destino, de
Cloto, Láquesis e Átrapos; enquanto a primeira tem como função fiar e puxar o fio da vida, à

37
O trecho citado refere-se à armadilha construída por Hefesto (deus grego do fogo). Ares, chamado na tradição
romana de Marte, tinha uma relação com a deusa do amor, Afrodite. Com uma teia invisível sobre o leito e com a
ajuda do Sol, a armadilha funcionará e todos os deuses foram avisados. Ares e Afrodite ficaram presos por longo
período, como castigo designado por Zeus, que era também pai de Ares (BRUNEL, p. 20, 1997).
72

Láquesis é dado o trabalho de quem deve padecer, e por fim, Átrapos, adjetivada como
inflexível por Bradão (p. 433, 2014), sua missão é cortar o fio da vida, a morte. O mito das
Moiras aplica-se à humanidade, porém, de forma individual, conjecturamos que seja essa a
intenção do pesquisador: entender o mito do uno ao coletivo, pois “os mesmos fios tecem os
mesmos desenhos”.

O mito, entendido como narrativa, é repleto de minúcias, o que possibilita e enriquece


o elemento reflexivo. Talvez por essa razão O Banquete seja uma sucessão de discursos e
discussões sobre Eros e não somente um monólogo, tendo em vista que esta é a forma utilizada
por Platão, a exemplo de Fédon, A República e demais obras. Assim, ressalta-se a dinâmica, o
ato, ou seja, a narrativa, do conceito de mito (DURAND, pp. 62-63, 2002):

Entendemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e


esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a
compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que
utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os
arquétipos em idéias [sic]. O mito explicita um esquema ou um grupo de
esquemas. Do mesmo modo que o arquétipo promovia a idéia [sic] e que o
símbolo engendrava o nome, podemos dizer que o mito promove a doutrina
religiosa, o sistema filosófico.

No campo da etnologia, as reflexões recaem sobre dois modelos: 1) a expressão dos


fenômenos naturais, a exemplo de Max Muller, o qual centrava suas análises na maior parte de
suas pesquisas no Deus Sol; ou 2) como Freud, que centrava os estudos em questões culturais
(KECK, p. 138, 2013). As duas óticas ou formas de perceber o mito são auto excludentes.
Segundo Keck (p.143, 2013), Lévi-Strauss define-o, na maioria das vezes, como: “Uma
narrativa estruturada em episódios, contados em ocasiões particulares, amiúde sagradas, e
reproduzida por meio de diferentes relatos feitos dela, sem que sua estrutura geral se
decomponha.”

A particularidade do mito inclui e possibilita variações. No entanto, o antropólogo Lévi-


Strauss defendeu que importava a estrutura do mito, assim, como já apontado anteriormente,
sua transcrição do oral para o escrito não alterava ou transformava-se, afinal, a estrutura
permanecia: “Trata-se do mesmo mito, em que todos os casos, e as aparentes divergências entre
as versões devem ser tratadas como produtos das transformações que se operam no seio de um
mesmo grupo” (RABINOW apud KECK, p. 84, 2013). Portanto, novos elementos podem
passar a compor os mitos, em substituição a antigas formas que foram “esquecidas” ao longo
do tempo.
73

Outro aspecto percebido por Lévi-Strauss: “os mitos não têm autor: do momento em
que são apreendidos como mitos e independentemente de sua origem real, eles só existem
encarnados numa tradição” (apud BRUNEL, p. XVII, 2005). A etimologia da palavra “mito” é
“narrativa transmitida” (id., ibid), de modo que o texto, as peças, os poemas, as novelas são
como territórios de transmissão destas narrativas com uma temporalidade própria e que não
comporta a historiografia.

A dilatação de tentar racionalizar ou sentir o que é mito vai da filosofia à ciência e à


arte, bem como à religião. Estamos convencidos de que somente desta forma, atravessando
como uma flecha ou entendendo o conceito em uma área não fixa de interseção, possamos obter
novas perguntas e respostas. Assim exprimiu Fernando Pessoa (p. 25, 1972), no poema Ulisses:

ULISSES

O mito é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,


Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre


A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Embaixo, a vida, metade
De nada, morre.

A professora e pesquisadora Mariza Martins Furquim Werneck apresenta, em sua tese


de doutoramento, o conceito de mito segundo uma compreensão da forma. No entanto, longe
da estagnação, reflete em termos de “reversão da forma” e “metamorfose”. Outro aspecto
importante é a aproximação realizada pela autora entre o conceito de mito e arte: “[...] é rebus,
móbile, colagem [...]”, dilata a possibilidade de compreensão do que seja mito, como afirma ser
também “rosáceo”, induzindo-nos a duas outras perceptivas: a cor e a forma, presentes na
Arquitetura Gótica ou como a lente de um telescópio. Enquanto na Arquitetura a luz era filtrada
por uma espécie de mosaico em forma arredondada, no telescópio, o observador tem outra
relação com a luz: são perspectivas antagônicas, mas que se completam, gerando uma terceira
perspectiva: “É forma, e um lugar onde formas se cruzam. Mitosfera. É rébus, móbile, colagem,
74

elipse, rosácea, pura geometria. Mas é também matéria informe que se retorce, se
metamorfoseia: anamorfose” (WERNECK, p. 12, 2002).

Figura 7: Catedral de Chartres - França38


Fonte: Pinterest, 2016.

A definição da pesquisadora adentra pela distorção da anamosfera ou pelo enigma


representado pelo rébus. Assim, buscamos estruturar um mosaico flexível, com definições,
mantendo o fio condutor que se conecta e nos demonstra que se fôssemos buscar definições
absolutas, teríamos este fio cortado (certamente por Átrapos).

3.3 O Banquete, de Platão: o que o mito fala sobre nós

O Banquete apresenta um dos mais belos diálogos platônicos, pois ele nos traz um
confronto entre a filosofia e a arte. Segundo Souza (p. 190, 2016), há uma necessidade dialética
que faz a marcação do ritmo: “arranjos lentos, sinuosos, das discussões, através da repetição,
abandonos, acrescimos e recapitulação de argumentos”.

O momento é um jantar na casa do poeta Agatão, cenário no qual celebram a vitória do


mesmo num concurso de tragédias (PLATÃO, p. 17, 2016). Apesar de não ser cultuado em
público, em Atenas, os convidados do banquete resolvem proferir discussos e elogios ao deus

38
Disponível em: < https://fr.pinterest.com/pin/398146423289149065>
75

Eros. Sócrates sugere, então, que antes se faça uma definição do que seria o amor. No entanto,
a discussão pretende estabelecer a superioridade da racionalidade sobre a religião, presente na
poesia de Homero e Hesíodo.

Nesse ínterim, há várias dimensões analíticas sobre Eros. Assim, a relação entre amor
e política estabeleceriam, a partir daí, fortes vínculos, presentes nas teorias políticas de Sócartes,
Platão e Aristóteles.

Cinco filósofos se colocam na disputa da conceituação do amor (Eros), a saber, Fedro,


Pausânias, Eriximaco, Aristófanes, e, por fim, o próprio Sócrates.

Fedro busca legitimar a precedência de Eros em relação aos demais deuses,


fundamentando seu discurso na obra de Hesíodo, autor da célebre Teogonia, e apresenta Eros
como o mais antigo dos deuses, nascido logo após o Caos, juntamente com a Terra. Além de
elencar as várias virtudes que Eros possui e inspira nos humanos, Fedro salienta que são a
bravura e o destemor, as mais nobres das virtudes, afinal, através das mesmas, eles poderiam:

Formar, por algum modo, um estado ou exército exclusivamente composto de


amantes e amados, assim se obteria uma constituição política insuperável, pois
ninguém faria o que fosse desonesto, e todos, naturalmente, se estimulariam
para a prática de belas coisas. (PLATÃO, p. 68, 2016).

Fedro argumenta, a partir dos mitos, que morrer pelo amado é a verdadeira prova de
amor puro. Pausânias afirma que Eros é mais de um, concentrando-se na dicotomia bem e mal,
real e divino. Erixímaco defende que o amor harmoniza corpo e alma. Sócrates, último a
discursar, afirma que o amor é sempre o amor de algo, concentrando-se no desejo, sendo a
satisfação deste, a sua morte. Antes de Sócrates, Aristófanes se pronuncia.

Apesar de sabermos que Sócrates é o personagem principal dos diálogos platônicos,


nos concentraremos, para fins deste estudo, no discurso de Aristófanes. Ele inicia explicitando
uma construção discursiva invertida, na qual primeiramente exporá a importância de conhecer
a história do homem, e logo depois, o expressivo poder que representa o deus Eros. Desse modo,
nutre a esperança de que este ensinamento se multiplique, pois, julgava haver uma ignorância
quanto a origem do mesmo: “Se o conhecessem, haviam de construir-lhe os templos mais
magníficos, de lhe elevarem os altares mais suntuosos e votarem-lhe os mais ricos sacrifícios”
(PLATÃO, p. 50, 2016).
76

O desprezo dos humanos por Eros, que Aristófanes salienta, é elemento necessário para
conhecer a transformação, que se deu num passado primordial, ao introduzir pela primeira vez
o conceito de andrógino:

Com efeito, a nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas
diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois
como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro,
comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa;
andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum
aos dois: (PLATÃO, p. 75, 2016).

Aqui, o andrógino é afirmado. Entende-se que durante o discurso há a valorização do


passado da humanidade. Há também, na construção do discurso, novidade, quando comparado
ao formato dos anteriores, afinal, ele não se aprisiona aos feitos de Eros ou a adjetivá-lo,
somente.

Referindo-se ao universo da crítica literária (MIGUE apud LEITE JR., p. 34, 2011), o
verbete “andrógino”, presente no Dicionário de Mitos Literários, sustenta a hipótese de que
havia no período antigo (tradição, entre outras origens, babilônica) o elemento fundador,
presente no mito da androginia de Platão, além de influenciar outros autores, como Ovídio e a
cultura cristã ocidental.

Havia, portanto, três “espécies particulares”. Acreditamos que o uso de “espécie” deva
permanecer, não somente por ter encontrado o termo em várias versões textuais de O Banquete,
pesquisadas, mas porque acreditamos que seria anacrônico o uso do termo “gênero”. No
entanto, na respeitada tradução de José Cavalcante de Souza, a pedido da Editora 34, utiliza-se
“gênero”: “Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade” (PLATÃO, p. 125, 1995).

O aspecto físico do andrógino (por mais que haja dessemelhança relacionada à ideia do
corpo humano) não é a monstruosidade, mas o diferente que precisa ser conhecido, como
salienta no início do discurso:
77

O homem possuidor desta forma arredondada tinha costas e flancos a seu


redor, quatro mãos e quatro pernas, duas faces sobre um pescoço redondo,
uma só cabeça para esses dois rostos opostamente colocados, quatro orelhas,
dois órgãos de geração, e mais na mesma proporção. (PLATÃO, p.75, 2016).

Este ser é descrito de forma grandiosa, com quatro pernas, duas faces, quatro ouvidos,
o que o coloca na condição de existência de organismo mais adaptado que os humanos bípedes
(limitaremos a discussão a este ponto, por enquanto). Entretanto, tanta força será motivo de
conflito com os deuses e não tardará a extinção dos andróginos.

Esses seres eram esféricos, tanto na forma quanto no movimento. Assemelhavam-se aos
seus progenitores. No discurso, Aristófanes considera o andrógino um descendente de Selene
(Lua):

Três sexos havia, como disse, e isto porque o masculino era descendente de
Hélios (Sol), o feminino (Geia, Terra) e [o andrógino] participa dos dois, de
Selene (Lua), a qual, como se sabe, participa tanto de um quanto de outro
(PLATÃO, p. 75, 2016).

Filhos dos titãs Teia e Heperíon, Selene, Hélios e Eros. Ela causou grande inveja devido
à beleza e Hélios foi lançado nas águas negras do Rio Eridano. Quando Selene mergulhou à
procura do irmão, despertou, e no céu foi absorvida pelas águas. Quando informada, Teia os
procurou até adormecer.

Despertou, e, ao olhar o céu, este estava iluminado, colocando luz sobre o sofrimento e
as alegrias dos mortais. Eros preparava-se para a chegada de Hélios – o Sol, companheiro do
dia, e Selene, a Deusa da Lua, jovem de pele branca e delicada, acompanhava a noite sempre
em uma carruagem de prata, puxada por dois cavalos e seu lindo manto prateado.
78

Figura 8: Selene e Endymion – Nicolas Poussin 1632/1633 - Dimensões: 48 x 66 cm


Fonte: Eventos Mitologia Grega, 2011.

[...] Falai da eterna Lua39 de longas asas, ó Musas


De doce voz, filhas de Zeus Cronida, conhecedoras do canto.
De sua cabeça imortal, uma luz se mostra no céu
e circunda a terra, e vasto é o ornamento que se forma a partir
da luz brilhante. O ar escuro resplandece devido à
sua coroa de ouro, e seus raios brilham no céu
sempre que, tendo banhado o belo corpo em Oceano,
a divina Selene se veste com trajes que brilham de longe,
atrela à carruagem radiantes potros de pescoço arqueado
e para a frente, com ímpeto, dirige os cavalos de belas crinas
na noite do meio do mês. Sua grande órbita se completa,
e nesse momento seus raios aumentam e atingem o céu
(RIBEIRA JR., p. 43, 2010).

O mito de Selene encontra oposições com Hélios: a relação dia/noite, homem/ mulher,
quente/frio. Ademais, ressaltamos que o sacrificado é Hélios e a possuidora de ação é Selene.
A representação figurativa é adequada, pois possui elementos dos opostos.

Os andróginos eram robustos, fortes e audaciosos e destacavam-se pela sua coragem.


Em certo momento, eles resolveram escalar o céu e confrontar-se com os deuses. Zeus e as
demais divindades refletiram qual seria a ação frente aos revoltosos. Caso usassem o raio e o

39
Segundo o trad. Wilson A. Ribeiro Jr.: “Mene é um antigo nome da lua. Este verso é o único lugar em que asas
são atribuídas à deusa; segundo Daremberg, trata-se de uma alusão à rapidez de sua evolução no céu, mas pode-
se tratar, igualmente, de influências asiáticas ou egípcias. No III milênio a.C., os egípcios representavam às vezes
o sol com asas; esse símbolo foi associado a Hórus e, mais tarde, ao deus solar Ra.”
(https://acropolepoetica.wordpress.com/2012/05/11/a-selene/).
79

trovão, eles seriam dizimados, continua Aristófanes, seria algo similar aos gigantes. Os deuses,
por assim afirmar, dependem do culto, da veneração humana.

Assim, Zeus encontra um caminho valioso: dividi-los ao meio. Por um lado, eles se
tornariam mais fracos, por outro, acabaria com a insolência e dobraria a população, ou seja,
aumentaria a veneração. Afirma Zeus: “Ficarão mais fracos e mais úteis” (PLATÃO, p. 46,
1945). Dessa forma, passarão a ter duas pernas, dois braços – e continua o deus dos deuses –,
caso continuem em suas revoltas, cortará mais uma vez, e eles andarão sobre uma só perna.

O corte dos corpos andróginos, segundo o discurso de Aristófanes, foi realizado. Zeus
ordenou a Apolo que curasse os ferimentos, mas não somente: deveria inclinar a face e o
pescoço dos seres amputados para a direção da separação, com o objetivo de tornar o homem
mais humilde (humildade é entendida no discurso como cura do orgulho). Seguidamente, o
Deus Apolo deu a volta em toda a pele, de modo que retornasse para a região chamada hoje de
ventre, e após as costuras deixou um pequeno orifício, que chamamos, em português, de
umbigo.

A dubiedade da relação entre deuses e homens (andróginos) explicita, ora a manipulação


de Zeus sobre o homem, ora o mesmo homem sendo observado e passível de ter o corpo mais
uma vez partido ao meio, caso não se prostre ao desejo dos deuses.
80

4 OS FIOS DA TRAMA ENTRE OS CORPOS E AS IDENTIDADES EM ORLANDO:


UMA BIOGRAFIA

FOR ***
Vita Sackville West

No eyes shall see the poems that I write


For you; not even yours; but after long
Forgetful years have passed on our delight
Some hand may chance upon a dusty song

Of those fond days when every spoken word


Was sweet, and all the fleeting things unspoken
Yet sweeter, and the music half unheard
Murmured through forests as a charm unbroken.

It is the plain and ordinary page


Of two who loved, sole-spirited and clear.
Will you, O stranger of another age,
Not grant a human and compassionate tear
To us, who each the other held so dear?
A single tear fraternal, sadly shed,
Sincethat whichwas so living, isso dead40.

Refletirmos sobre seres fronteiriços e migratórios é um exercício que requer capacidade


de operar também com deslocamentos e fronteiras na análise. Optamos pela literatura ficcional,
mais especificamente, Orlando: uma biografia (1928), como quem escolhe uma “linha de
fuga”: “É sempre sobre uma linha de fuga que se cria, não é claro, porque se imagina ou se
sonha, mas ao contrário, porque se traça algo real, compõe-se um plano de consistência. Fugir,
mas fugindo procurar uma arma.” (DELEUZE; PARNET, p. 49, 1998). É sob esta perspectiva
que esse capítulo compõe a presente tese, como a busca que, pelo abandono dos padrões, pode
nos conduzir a experimentar outros caminhos, no caso, outras formas de refletirmos sobre nosso
sujeito de pesquisa: as travestis. Corpos que transitam, ou em trânsito, possuem referências
outras, diversas das que postulam as culturas nas quais eles estão imersos. Trazem outras
riquezas, outras vivências ainda não classificadas pelos saberes da scientia sexualis. Ou, talvez,
classificados, mas como aberrações e desvios. Orlando: uma biografia, obra de ficção de

40
Para/ Nenhum olho deve ver os poemas que escrevo/ Para você; nem mesmo os seus; mas após/ Longos anos
esquecidos terem passado sobre nosso deleite /Alguma mão pode ter chance sobre uma canção
empoeirada//Daqueles dias carinhosos quando cada palavra falada/ Era doce, e todas as coisas fugazes não faladas
/ Eram ainda mais doces, e a música entreouvida/ Murmurada através de florestas com um encanto ininterrupto.//
É a página simples e despretensiosa/ De dois que se amaram, único espírito e transparente./ Não irá você, ó,
estranho de outra época,/ Conceder uma lágrima humana e compassiva/ Para nós, que apoiamos um ao outro tão
amorosamente?/ Uma única lágrima fraternal, tristemente derramada/ Uma vez que aquilo que era tão vívido está
tão morto. (Tradução nossa)
81

Virginia Woolf, autora que ocupa parte significativa da cultura ocidental europeia, talvez possa
nos conduzir na elaboração de nossas reflexões, na discussão das metáforas, alegorias ou
metamorfoses que perpassam este corpo indócil, que é o corpo da travesti.

Sentir e caminhar com Orlando, nesta trama, tem como objetivo, entender as
representações da androginia e da travestilidade que permeiam a existência do/a personagem
de Orlando. Para começar, voltemo-nos para Orlando, nome e título, de forma cuidadosa,
afinal: “Mas preste atenção: suponho que se descubra que Orlando também é Vita” (WOOLF,
p. 07, 2014).

Na contemporaneidade, a relação interdisciplinar da literatura com outras áreas e


ciências tornou-se mais comum, rica e flexível, deixando de lado certo “literaturismo” (ASSIS,
p. 07, 1914). As possibilidades de pesquisa abandonam a relação de causa e efeito, abandonam
a obviedade, e não é absolutamente importante, para explicar sua obra, que Charles Baudelaire
tenha contraído sífilis, ou se Manuel Bandeira era portador da temida tuberculose, pois estes
fatos não podem ser considerados como determinantes na interpretação das suas artes. A arte
não é uma imitação da vida, apenas a ilumina. Como afirma Vargas Llosa em Verdade das
Mentiras: “Os romances sempre mentem: eles sempre apresentam uma falsa visão da vida [...]
eles exprimem uma curiosa verdade que só pode ser expressa de um modo velado e escondido,
disfarçando-se com o que não é. (LLOSA, s/p, 1984)”.

Portanto, as reflexões e contextualizações, aqui, são como elucubrações, e são também


uma ambientação móvel, ou um cenário em uma peça em que o telespectador chegou após o
início, e saiu antes do fim. Como a própria obra de Orlando: uma biografia, todavia, não uma
investigação sobre o ato da criação da mesma, ou de qualquer outra obra de Virginia Woolf.

O conceito de “rizoma” pode ser útil para ilustrar essa biografia sem começo ou fim,
que requer não o respeito a uma cronologia na análise, mas acuidade para sentir os personagens,
os espaços, e o tempo:

Não tem começo nem fim, mas sempre um meio [Platôs] pelo qual ele cresce e
transborda... é feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de
estratificação... mas também linha de fuga ou de desterritorialização como
dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se
metamorfoseia, mudando de natureza... [Princípio da multiplicidade]
(DELEUZE; GUATTARI, p. 32, 1995).
82

Para o linguista Bakhtin (p. 211, 2014), que discute a interligação fundamental das
relações temporais e espaciais, “artisticamente assimiladas em literatura, [...] o tempo
condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se,
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história” (BAKHTIN, 2014, p. 211). Bakhtin,
em seu ensaio, se atém a três tipos de “cronotropos”41 a que chama de “fundamentais”. São
eles, tanto os cronotopos do romance sofista (referindo-se, do século II ao IV a.C.), quanto os
cronotopos do romance moderno, até chegar, por fim, aos romances biográficos. Para ele, tanto
os cronotropos quanto os personagens do cotidiano passavam a constituir a obra.

Na obra de Virginia Woolf, uma perspectiva que analisasse a vida da autora,


relacionando-a com a obra prestar-se-ia não só a Orlando (1928), mas também a Um Teto Todo
Seu (1927), entre outros livros. Rejeitamos a estrutura hierarquizada da árvore, tronco acima, e
ficaremos com seus rizomas, e com a ideia de tempo/espaço (Bakhtin, p. 211, 2014), presentes
na obra, que se passa em três séculos, tempo em que Orlando envelhece apenas vinte anos.

4.1 Woolf! Uma ideia, Orlando: uma tessitura

No início do século XX, Woolf, na obra em questão, de forma ficcional, atentou-se a


várias discussões de seu tempo – que permanecem –, como os aspectos culturais do corpo, que
seriam tratados, talvez pela primeira vez, por Marcel Mauss, em Técnicas do Corpo, publicado
na França, somente em 1950. As questões de gênero começarão a ser abordadas pelo
feminismo, que se constitui palco da política pública norte-americana e inglesa, em torno da
segunda metade do século XIX, através das petições que solicitaram o sufrágio feminino, e das
campanhas pela igualdade, junto ao legislativo (ZOLIN, p. 220, 2009) Virginia, já no começo
de sua carreira, defendia, em crítica literária, uma presença mais marcante das mulheres na
literatura e na sociedade inglesa. Para ela, o pensamento machista impedia a Inglaterra da época
de receber, credibilizar e criar uma geração de mulheres escritoras. Assim, somente afastando
os preconceitos da educação patriarcal, as mulheres conseguiriam desnaturalizar a condição de
subalternidade.
Virginia Woolf mostrou-se sempre, segundo suas resenhas, textos e publicações em
jornais, contrária à imposição machista, e que poucas mulheres conseguiam penetrar no campo

41
Cronotopo refere-se à relação tempo/espaço (cronos: deus grego do tempo; topo: espaço).
83

da produção literária. Neste pequeno fragmento, Profissão para Mulheres (WOOLF, pp.43-44,
1997), cria uma expressão, “The Angel in The House” (“O Anjo da Casa”), na qual mostra uma
capacidade de explicitar o cotidiano das mulheres, fazendo uso de muita ironia:

O que poderia ser mais fácil do que escrever artigos e comprar gatos persas
com os ganhos? Mas esperem um momento. Artigos devem falar sobre algo.
O meu, pelo que lembro, era sobre o romance de um homem famoso. E
enquanto eu estava escrevendo essa resenha, descobri que se fosse resenhar
livros precisaria travar batalha com um certo fantasma. E o fantasma era uma
mulher, e quando vim a conhecê-la melhor eu comecei a chamá-la como a
heroína de um famoso poema, The Angel in the House (O Anjo da Casa). Era
ela que costumava aparecer entre mim e o papel quando eu estava escrevendo
resenhas. Era ela que me incomodava e roubava meu tempo e assim me
atormentava até que afinal eu a matei. Vocês, que vêm de uma geração mais
jovem e mais feliz não devem ter ouvido falar dela – vocês não devem saber
o que eu quero dizer com o Anjo da Casa. Eu vou descrevê-la da forma mais
sucinta possível. Ela era intensamente compassiva. Era imensamente
encantadora. Era profundamente abnegada. Ela dominava todas as difíceis
artes da vida familiar. Sacrificava-se diariamente. Se havia galinha, ela ficava
com o pé; se havia uma corrente de ar, tomava seu lugar nela – resumindo, ela
era tão condescendente que nunca tinha uma ideia ou desejo próprio – em vez
disso preferia concordar sempre com as ideias e desejos dos outros. Acima de
tudo – nem preciso dizer – era pura. A pureza era considerada sua maior beleza
– o rubor de suas faces, sua graça maior. Naqueles dias – os últimos da Rainha
Vitória – cada casa tinha o seu anjo.

O Anjo da Casa pode ser percebido como a ‘mulher do lar’, que cuida das crianças, a
passiva, sem voz, submissa, “a pureza era considerada sua maior beleza” (Id., 1997). Todos
os valores definidos pelos homens. Assim, as mulheres que desejassem adentrar no mundo da
literatura deviam, em primeiro lugar, matar este anjo maldito.

A pensadora, crítica, escritora, e ensaísta toma posições mais aguerridas na defesa da


produção de textos, romances e outros gêneros literários produzidos por mulheres. Quando
convidada para resenhar o livro The Women Novelists42, de autoria de Reginald Brimley
Johnson Collins (1918), ela ressalta as qualidades da literatura produzida por mulheres, e
responde às indagações do autor sobre o período vigente na Inglaterra, e os porquês do aumento
do número de escritoras produzindo romances. Tece ainda comentários sobre os críticos que
não sabiam exatamente o que existia na literatura produzida por mulheres. Para Woolf, esse
fato os tornava maus críticos, pois afirmavam, sobre as obras femininas, apenas tratar-se de
uma literatura inferior às produções masculinas.

42
As Mulheres Romancistas (Tradução nossa).
84

A escritora vai metamorfoseando-se, de forma cada vez mais sensível, ao aprofundar


seus estudos e publicações. Como se a ironia fosse um vinho que equilibra seu paladar com o
tempo e a dedicação, Virginia torna-se aguda nas críticas, nas suas convicções. Mesmo não
estando só nesta luta, ela representava o corpo do confronto. Todavia, é importante ressaltar
que a literatura é o lugar simbólico de destaque da sua família. Afinal, o pai era escritor, e Woolf
viveu, por assim dizer, e diferentemente de uma mulher de sua época, por entre as letras. Apesar
dessa análise, o trabalho de Woolf não busca estabelecer uma conexão entre sua vida e obra.

Utilizamos uma edição original e quatro traduções diferentes na leitura que fizemos de
Orlando: uma biografia. Na primeira delas, da editora Penguin, com tradução do Diplomata
Jorio Dauster, ficou-nos um sentimento de sensibilidade e beleza; na segunda e terceira, da
editora Lord Mark, uma edição bilíngue com tradução Doris Goettems, ligado a Universidade
Federal do Rio de Janeiro, talvez pelo fato de já termos feito outras leituras sobre a decadência
do período vitoriano, entendemos o livro de outra forma. Por fim, após longa busca pela
tradução da grande escritora Raquel de Queiroz, nossa percepção havia, como o próprio
Orlando, se transformado. Por fim, deparamo-nos com o volume da Editora Autêntica, o qual,
além da qualidade da tradução de Tomaz Tadeu, é a única edição disponível no Brasil e em
Portugal com as gravuras originais. Não necessariamente, temos que conhecer a autora para
conhecer a obra, como dissemos anteriormente; salientamos apenas que informações históricas
e pessoais, sobre o processo de produção, mudam a percepção.

Retornando à jovem Virginia, ainda Virginia Stephan, já em 1905 vinculou-se aos


operários no Morley College, onde começa a lecionar. Durante as noites de quinta-feira,
encontrava-se com intelectuais, artistas, críticos e, entre eles, seu futuro esposo, Leonard Woolf.
Nascia, assim, o Grupo de Bloomsbury, que se manteve ativo por mais de 30 anos. Além de
artistas e pensadores importantes, o Bloomsbury contou, entre seus membros, com a presença
de John Keynes. Considerado ainda hoje um dos mais influentes economistas ingleses, Keynes
criticou a escola econômica neoclássica, que acreditava que os mercados livres oportunizariam
empregos. A pertinência de sua crítica torna-se mais clara nas crises subsequentes e nos pós-
guerra. A partir daí, Keynes torna-se referência econômica para o governo e cria a “escola
econômica keynesiana” (BIVAR, p. 30, 2015).

O Grupo de Bloomsbury foi se tornando mais robusto, e claramente destoava das


discussões da época. A integração da escritora Vita Sackville-West, e seu envolvimento com
85

Virginia, foi um momento marcante do Grupo, afinal, o Bloomsbury possibilitou a aproximação


de ambas e, por conseguinte, a inspiração para Orlando: uma biografia (Id., BIVAR).

Tratava-se de uma associação pequena e informal de artistas e intelectuais que, por


circunstâncias, viviam e trabalhavam na área de Bloomsbury, nos arredores do centro de
Londres. Sem sombra de dúvida, seu componente de mais alto talento era a romancista, ensaísta
e crítica, Virginia. No início, por volta de 1910, o Grupo Bloomsbury reuniu-se em períodos
irregulares, com finalidade de trocas intelectuais, culturais e filosóficas. O espírito de
solidariedade, de nutrição e reabastecimento das energias criativas também circundavam os
objetivos. Os "Bloomsberries", como eram chamados os membros do grupo, prezavam a
lealdade ao pensamento do grupo, mantinham um espírito mutualista, e defendiam mudanças
paradigmáticas e estéticas. Apesar de terem passado por uma guerra mundial, mantiveram-se
ativos por três décadas. Os membros não compartilhavam entre si todas as ideias de ordem
polítco partidária, ou mesmo estéticas; pelo contrário, havia muitas discordâncias, e
constituíam, em verdade, uma usina de contrapontos.

Um aspecto relevante e singular sobre muitos dos “Bloomsberries” é que alguns deles
somente atingiriam a fama muito mais tarde, pois, eram todos ainda estudantes do King's
College e do Trinity College, da Universidade de Cambridge. Discutiam ideias sobre cultura e
sexualidade, entre outras, o que, certamente, em muitos estudantes de hoje causaria certa
estranheza: a avaliação amoral das relações homossexuais, a prática e o discurso contrário à
monogamia, etc. A prática destas ações na Inglaterra de 1910 era considerada uma “aberração”.

A integrante que, de certa maneira, mantinha a liderança do Bloomsbury Group era


Virginia Woolf. Ela nasceu Adeline Virginia Stephen, viveu em uma abastada casa vitoriana.
Seu pai, Sir Leslie Stephen, “o erudito autor dos 63 volumes do Dictionary of National
Biography” (BIVAR, p. 13, 2015), foi uma forte influência intelectual para a filha. Com sua
morte, em 1904, Woolf e seus dois irmãos, Thoby e Adrian, transferiram-se para a localidade
de Bloomsbury. A jovem Virginia, desde esse período, já se destacava como escritora criativa
e inovadora. Seus ensaios, contos e romances são peças fundamentais da história da literatura
inglesa. Entre outros livros, Mrs. Dalloway (1925) expôs todo o talento da produção da artista.
É possível especular que as produções de Sigmund Freud influenciaram Woolf.
86

O Grupo Bloomsbury não desejava exatamente ser um movimento intelectual, afinal,


suas discordâncias eram em maior número do que as ideias compartilhadas. Todavia, como
salienta Bivar (p. 15, 2015), compartilhavam “O Principia Ethica de G. E. Moore [que] foi, para
estes jovens, uma obra revolucionária. Sua proposta era a substituição da irracionalidade pela
razão e o ódio pelo amor”. O termo que foi traduzido como Principia Ethica referenciava a
rejeição à moral vulgar e, nunca é demais lembrar, estava-se na iminência da Primeira Grande
Guerra. Daí a importância fundamental das ideias racionalistas.

A visceralidade do grupo e o desejo pela experimentação expressavam, como salienta


Quentim Bell (apud BIVAR, p. 15, 2015), uma das características mais importantes do
Bloomsbury, ou seja, a “combinação de um método pacífico com o propósito revolucionário”.

Importante para os Bloomsberries, importante para a vida financeira do casal Woolf foi,
após comprar uma impressora de segunda mão, fundar a editora The Hogarth Press, que foi a
primeira a publicar Freud na Inglaterra, e também Elliot, entre muitos outros.

Orlando constrói uma superfície móvel e polifórmica. Quando a narradora, ou narrador,


diz: “O amor não tinha sido para ele mais que serradura e cinzas” (WOOLF, p. 22, 1920),
abrem-se tantas portas para refletirmos e sentirmos, sobre desde a nossa relação com os afetos,
e com as relações sociais, até sobre o significado de uma existência desprovida de Eros.

Afirmar – como diz o clichê – que Woolf estaria à frente do seu tempo seria equivocado.
Woolf mergulhou e, por isso mesmo, sentiu aguçadamente com os sentidos do seu tempo. Em
Um Teto Todo Seu, publicado na Inglaterra, em 1929, Virginia realiza uma análise de várias
autoras, mulheres e personagens femininas da história, chegando a criar uma irmã para
Shakespeare, Judith. Ela, Judith, não foi à escola, não teria “tido” oportunidades, porém, era
genial. Há, no texto de Virginia, uma constante ironia, como recurso de explicitação, um jogo.
Afinal, ao analisar a presença, ou não, da mulher na literatura desde o século XVIII, Virginia
Woolf estava, em verdade, expondo a dominação exercida pelos homens, e considerando quão
subalternas eram as mulheres:

Por que exemplo, não houve uma produção contínua de escrita feita por
mulheres antes do século XVIII? Por que elas nessa época escreveram quase
tão habitualmente quanto os homens e no desenvolvimento dessa escrita
criaram, um após outro, alguns dos clássicos da ficção inglesa? Por que então
87

sua arte assumiu a forma de ficção e por que isso, até certo ponto, ainda
prevalece. (WOOLF, p. 270, 2014)

Virginia levanta questões: como podemos avaliar se seriam bem-sucedidas ou não as


mulheres escritoras, uma vez que não se sabe absolutamente nada sobre as mesmas? Ao
ressaltar que o processo histórico é constituído por homens, e para homens, ela afirma que a
mulher é uma incógnita. Farjardo (p.17, 2017) reproduz as palavras-lâminas da própria Woolf:
nossa história conta a “história da linha masculina” (WOOLF, p. 270, 2014).

Período de intensa produção, ainda em 1920, Woolf publicou Mulheres: Capítulos


sobre as Discórdias dos Sexos. O texto desencadeou fortes reparos da crítica masculina,
sobretudo de um homem escondido sob o pseudônimo de “Falcão Afável”, que escreveu uma
resenha dessa publicação. Nela, o então “Falcão Afável” enobrecia a literatura masculina e o
intelecto dos homens, ao mesmo tempo em que desconstruía o universo literário feminino.
Woolf prontamente respondeu com refinada acidez (FARJARDO, p. 14, 2017).

Após essa pequena reflexão sobre o que parece conduzir a vida de Woolf, sua relação e
imbricamento entre papéis, ora de escritora, ora de mulher, outras questões se abrem, entre elas:
existiria uma literatura feminina? E, se sim, quais são seus limites?

Não seria o gênero uma segmentação de corpos marcados a ferro e fogo, e com espaços
definidos? Todavia, culturalmente não há como desconhecermos o que seja o corpo do homem,
suas experiências, sua linguagem e subjetividade, e todas suas grandes variações na cultura
ocidental. Ou, mais especificamente, na cultura europeia do período aqui estudado, trata-se de
um corpo possuidor de valores, apropriações simbólicas e territórios próprios, agressivamente
defendidos. Apenas para darmos um exemplo na literatura brasileira, parece ser infindável a
discussão se a obra de Clarice Lispector ou a de Rachel de Queiroz constituem o que poderia
ser chamado de literatura feminina.

O texto é uma relação de poder, segundo Butler (1988). A cada frente de luta Virginia
Woolf abria os peitos para os tiros, pois possuía corpo para suportá-los, já que esta relação de
poder requeria armas e estrutura. A própria autora, como afirma Curtis (p.17, 2005), começou
a assinar suas “primeiras escrituras anonimamente, e embora ela tenha disfarçado seu sexo sob
uma primeira pessoa assexuada no plural [Mr. Courtney]” (CURTIS, p. 17, 2005), com a ideia
88

de um nome dúbio. Virginia Woolf mostrava-se reflexiva desde o início da sua carreira, de
acordo com Curtis (Id., 2005).

Um encontro entre Simone de Beauvoir e Woolf teria sido rico e vivo, no sentido de
refletirmos sobre a literatura feita por mulheres para além da demarcação do campo de poder,
afinal, como afirma Beauvoir:

Eu não acredito que existam qualidades, valores, modos de vida


especificamente femininos; seria admitir a existência de uma natureza
feminina, quer dizer, aderir a um mito, inventado pelos homens para prender
as mulheres na sua condição de oprimidas. Não se trata para as mulheres de
se afirmar como mulheres, mas de tornarem-se seres humanos na sua
integralidade. (BEAUVOIR, p. 34, 1990)

E aqui nunca é demais lembrar a epígrafe de Pitágoras, utilizada por Simone de


Beauvoir (1949) em O Segundo Sexo, para entendermos melhor as verdades impostas com as
quais Woolf confrontou-se, e que, ao longo da história ocidental, ela não foi a primeira e, sim,
posterior a outras e outras: “Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um
princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher”.

4.2 A Tríade: Virginia, Orlando e o Leitor

A vida e morte de Woolf foram marcadas por fatos fortes. Entre todos eles, o mais forte
de todos: a morte, ou melhor, a escolha por morrer. Assim, Virginia, no cotidiano, e em suas
escolhas, viveu e escolheu a liberdade. Campos (p. 292, 2014) questiona: “Chegou a ser a
mulher mais livre da Inglaterra?”. Devemos entender que liberdade estava associada à liberdade
do lar, da condição que hoje ainda chamamos de “livrar-se do poder heteronormativo”. Campos
(p. 292, 2014) responde que “pelo menos viveu e se matou para isso”.

E aqui se impõe, necessariamente, a questão da possível influência exercida sobre a


obra Orlando: uma biografia, por meio de Vita Sackville-West, pois, como afirmou a própria
Virginia, esta obra era uma referência a Vita. A relação amorosa entre elas é algo importante,
tanto na produção literária de Vita, quanto na produção de Virginia, como afirma o biógrafo de
Vita, Horland Nicolson (apud CURTIS, p. 169, 2005). Porém, não se trata aqui de confundir a
relação amorosa com a obra. Ao ser entrevistada, a filha de Vita, Benedict, afirma: “o problema
é que o melhor sempre foi publicado e, nesse caso, o arquivo foi saqueado mais de uma vez...
89

todos os biógrafos querem materiais inéditos – o que os franceses chamam de ‘lajoie de


l’inédit’43” (Id., 2005).

O trabalho de pesquisa sobre Virginia e Vita foi realizado de forma intensa e tornou-se
uma referência para o movimento feminista, na segunda metade do século XX. A construção
de referenciais era importante, como para qualquer movimento. Afinal, tratava-se de construir
personagens, memórias, ícones. Certamente, a busca incessante por estas memórias deu-se mais
intensamente na França, país onde o movimento feminista deu grandes contribuições,
inicialmente. Não por acaso, a filha de Vita utiliza-se de uma expressão em francês para
expressar esse eterno garimpo.

O livro The Lettersof Vita Sackville-West and Virginia Woolf (SACKVILLE-WEST, p.


84, 1985) tornou-se importante no cenário, e ressalta mais do que uma relação amorosa: havia,
entre elas, uma relação de trocas intelectuais, e trocas de afetos. Há que se salientar, ainda,
como salta aos olhos a riqueza com que são escritas as cartas, o que pode ser percebido neste
pequeno fragmento, em que Virginia convida Vita para um jantar:

Look here Vita — throw over your man, and we’ll go to Hampton Court and
dine on the river together and walk in the garden in the moonlight and come
home late and have a bottle of wine and get tipsy, and I’ll tell you all the things
I have in my head, millions, myriads — They won’t stir by day, only by dark
on the river. Think of that. Throw over your man, I say, and come. 44 (S/D)

43
A alegria do inédito. (Tradução nossa)
44
Olhe aqui Vita - abandone o seu homem, e iremos ao Hampton Court e jantaremos no rio juntas e caminharemos
no jardim ao luar e voltaremos tarde para casa e tomaremos uma garrafa de vinho e ficaremos tontas, e eu direi a
você todas as coisas que tenho em minha cabeça, milhões, miríades - Eles não se agitam de dia, apenas pelo escuro
no rio. Pense nisso. Abandone seu homem, eu digo, e venha. (Tradução nossa)
90

Já Vita atribui-se, na relação, o lugar da protetora para com Virginia. Em seu diário,
referindo-se a uma cena passada em Tavistock Square, afirma que se sentou e acariciou os
cabelos de Virginia de forma maternal. Reconhecendo isso, Woolf escreve à Vita, referindo-se
à cena, e coloca-se em um lugar frágil, “Como uma criança, acho que se você estivesse aqui,
eu seria feliz” (Id., ibid.). Para Curtis (p. 184 2005), Virginia atribui à Vita o papel de mãe
substituta. Ao analisar este aspecto da relação, o escritor de The interrupted Moment – A Viewof
Virginia Woolf Novel’s45, Lucio Ruotolo, salienta que Orlando foi uma tentativa de resgate da
relação. Para ele, Vita experimentava um certo prazer nesta carência materna de Woolf.

Quando Virginia nos atenta para o fato de que devemos tomar cuidado ao olharmos para
Orlando, pois estamos vendo Vita, nele também estamos vendo Virginia, assim como o próprio
Orlando, da infância aos 36 anos, vividos em três séculos. O livro desafia-nos a olhar para
nossas capacidades e intuições, e nos faz penetrar em uma nebulosa onírica, que foi escrita em
uma tormenta, como afirma Campos (p. 293, 2014). Talvez o mais importante seja refletirmos
sobre os lugares que ocupamos, nossos papéis e máscaras. Ao terminar a leitura da última
tradução, realizada por Rachel de Queiroz, perguntávamo-nos: seríamos nós, Orlando, ou a
cabeça com a qual ele brincava, aquela que seu pai havia decepado, certamente de um mouro?
Qual o nosso lugar, nesta identidade móvel?

Já sobre o abreviamento da própria vida, realizada por Woolf, podemos levantar


algumas questões, a partir de Curtis (p. 193, 2005). Nestes espaços nebulosos habitados por
pessoas, personagens, romances, poemas e ritos de uma nobreza em decadência, poderia Vita
ter impedido este abreviamento da vida, por vontade própria, levado a cabo por Virginia Woolf?
Mostrar-se e ser mais companheira? Segundo a pesquisadora, após a morte de sua antiga amada,
Vita sofreu e leu por inúmeras vezes o poema Sissinghurst, que a ela dedicou, e que era o nome
do castelo onde Vita morava.

When sometimes I stroll in silence, with you


Through great floral meadows of open country
I listen to your chatter, and give thanks to the gods
For the honest friendship, which made you my companion
But in the heavy fragrance of intoxicating night
I search on your lip for a madder caress

45
O Momento Interrompido – Vista do Romance de Virginia Woolf. (Tradução nossa).
91

I tear secrets from your yielding flesh


Giving thanks to the fate which made you my mistress46
(THE GUARDIAN, s.d., s.p.)

Virginia já havia tentado envenenar-se, amargurada. Por fim, como quem se refere à
própria morte, segundo Curtis (p.193, 2005), através de sua amiga Julia Stephen, mas sob nossa
ótica, fazendo referência à morte da própria mãe, Julia Prinsep Duckworth Stephen, Woolf
escreveu em 1895:

Nadadora cansada nas ondas do tempo


Eu jogo as minhas mãos para cima: deixo que a superfície se feche.

Refere-se ao ato, seja prevendo o próprio, ou remetendo-se à sua mãe, ou à amiga, de


forma delicada e clara. Ao escrever “cansada nas ondas do tempo”, esta contração “nas”
(em+as), indica alguém que se encontra exaurido com as turbulências, mas tudo se soluciona,
quando a narradora resolve desistir de continuar a nadar, e, conscientemente diz: “Eu jogo as
minhas mãos para cima”. Uma solução rápida, mais uma vez agente e consciente da ação:
“deixo que a superfície se feche”. Entendemos que a construção é elaboradamente racional; ao
final, no entanto, torna-se rica alegoria, quando nos damos conta de que se trata de um grande
tabu: o suicídio.

4.3 Orlando, assim como Diana: um caçador

Obsessão de Diana
(Cecília Meireles)
A Raquel Bastos

Diana, teu passo esteve


em onda, em nuvem, na água
- e foi lúcido e leve.

Tão rápido e tão belo


que era espanto senti-lo
e impossível prendê-lo.

Memória e sonho, agora,


- a existência visível
da veloz caçadora!

46
Quando às vezes eu passeio em silêncio, com você/ Através de grandes prados florais em campo aberto/ Eu
escuto sua conversa, e agradeço aos deuses/ Pela amizade sincera, que fez de você minha companheira/ Mas na
fragrância pesada da noite inebriante/ Eu busco no seu lábio por uma carícia mais louca/ Rasgo os segredos de sua
carne que se rende/ Dando graças ao destino que te fez minha amante. (Tradução nossa).
92

Bastaria querer-te
pelas estrelas nadas
de teu vestígio inerte.

Mas ah! quem descreverá


tuas mãos e teus olhos!
E teu rumo qual era!...

No começo do primeiro capítulo, “Orlando estava atacando a cabeça de um mouro, que


pendia das vigas” (WOOLF, p. 11, 2015). Assim começa Orlando: uma biografia. Pelo
inesperado da imagem somos pegos de surpresa, como as caças surpreendidas pela deusa Diana.
A partir, daí Orlando passará a vida em uma espécie de busca por sua identidade. Porém, nessa
caçada, Orlando é a caça e o caçador, procura a si mesmo, passando por culturas e amores,
mudando de sexo, e de jogos do amor.

A deusa Diana estava destinada a permanecer virgem, e a não conhecer o amor. Nesta
relação de Diana com o amor, já que ela não deveria envolver-se, a deusa chegava ao ponto de
negar o desejo do outro, punindo-o por vezes de forma cruel, como quando transformou um
caçador em cervo, pois ele a desejou, enquanto se banhava. Assim como Diana, Orlando
começa sua biografia, desconhecendo Eros.

Diana, a princípio, foi identificada com a deusa Ártemis e seguidamente mimetizou-se


em Selene (Lua), absorvendo para si a triformis dea ("deusa de três formas"), bastante comum
na mitologia latina. É Selene quem Aristófanes, em O Banquete, diz ser a deusa da Androginia.
À Diana era atribuída a adjetivação de selvagem, por habitar as selvas.

Mas, que paralelos podemos estabelecer entre Diana e Orlando? O primeiro deles:
Woolf chama o livro de selvagem, de alguma forma, algo não domesticado. Alguns
comentadores de Orlando criaram forte relação entre Orlando e Diana.

Já no Brasil, a pesquisadora Carla Cristina Garcia (p. 14, 2001) preferiu estabelecer
uma similitude entre o poderoso Oráculo Tirésias e Orlando. Tirésias está presente em muitos
dos mitos gregos revisitados no presente pelo ocidente, como Édipo, Narciso, ou, como aquele
que ajuda Ulisses. Para Garcia, Tirésias é “o vidente da Odisseia, que se tornou cego depois de
ver duas serpentes copularem” (GARCIA, p. 45, 2001). Mais do que isso, Tirésias torna-se
mulher ao observar duas serpentes venenosas praticarem sexo e, ao matar a fêmea, permanece
neste sexo por sete anos.
93

Poderíamos nos apoderar da análise da obra para explicitar o pouco cuidado com as
representações mitológicas greco-romanas. Porém, distante deste objetivo, outro aspecto que
nos conduz a distanciar Orlando de Tirésias é o argumento cedido pela própria pesquisadora,
que, mesmo não citando a fonte, mais uma vez, afirma: “Tirésias, cujo nome significa ‘o que
se deleita com os signos’, está em condições de julgar, tem memória e consciência, foi homem
e mulher. Não tem mais necessidade ver: já sabe.” (id., ibid.). Após extensa pesquisa,
encontramos em espanhol: “lo que se deleita com los signos” (ORSI, p. 288, 2007), trecho não
constando na lista bibliográfica. Quando comparado com a obra, o sentimento em Orlando é da
incerteza, enquanto que Tirésias, sendo o importante Oráculo, é a certeza, construindo uma
estrutura de oposição e completude, sendo pouco possíveis as similitudes. Vejamos o quanto
são instáveis os “eus” de Orlando:

Esses eus de que somos construídos, um em cima do outro, como pratos se


empilhando nas mãos de um garçom, têm afeições em outros lugares, simpatias,
certas exigências e direitos próprios, dê-se a isso o nome que se queira (e, para
muitas dessas coisas, não existe nenhum nome), de maneira que um virá apenas
se estiver chovendo, um outro se o quarto tiver cortinas verdes, um outro ainda
se a sra. Jones não estiver ali, e um outro mais se lhe for prometido um cálice
de vinho... e assim por diante; pois cada um pode, com base em sua própria
experiência, ampliar a lista, enumerando as diferentes condições que foram
acordadas com seus diferentes eus – e algumas são tão incrivelmente ridículas
que não podem, de modo algum, ser mencionadas em letra de fôrma. (WOOLF,
p. 202, 2015)

No entanto, quando Orlando entusiasma-se com a possibilidade de receber visitas, rasga


os convites e deixa suas tardes livres, como quem aguarda uma presa. O/A narrador/a, então
da/o qual não se sabe o sexo, afirma:

Na verdade, bibliografias e críticas poderiam poupar-se a todos o trabalho, se


os leitores quisessem apenas seguir este conselho. Pois quando lemos:

Se a ninfa não cumprir o preceito de Diana,


Se romper fino jarrão de porcelana
Se em seu brocado ou em sua hora for mancada,
Se esquecer a oração, faltar a mascarada
Perder coração ou o colar numa festa.
(WOOLF, p. 123, 1982)

Diana possui um séquito de ninfas que devem permanecer virgens e castas. Quando
lemos, vemos Orlando enredar-se no desejo pelos senhores Pope, Addison e Swift, cabendo-
lhe ficar no posto de quem se prepara para a sedução. No entanto, isso poderá sair por demasiado
caro, como o seria para Diana e suas ninfas. Um Oráculo, que possui a razão, sobretudo, não
viveria essa realidade.
94

A pluralidade de caminhos para sentir Orlando é inegável. Atemo-nos, pois, ao nosso


objetivo, que é o de refletir por meio do romance, sobre androginia e travestilidade. Este
percurso será dividido em três partes: a relação tempo e memória; androginia versus
travestilidade e travestilidade versus Androginia. A obra apresenta-se como um solo instável,
que requer cuidado ao ser atravessado, pois são muitas as veredas, caminhos e passagens.
Orlando não é, e não será jamais um ser acabado, mas alguém que transita em constante devir.

4.4 Tempo em Orlando

Figura 9: Orlando quando menino


Fonte: WOOLF, s. p., 2015.

Orlando é um romance repleto de figuras moldadas pelo tempo, este que torna-se, por
isso mesmo, elemento constitutivo da obra. Poderíamos, talvez, até dizer que ocupa o lugar de
um personagem nas diferentes etapas vividas por Orlando. Discutir o seu papel no romance
torna-se, então, elemento importante na análise.

Na descrição da casa de Orlando, feita por Woolf, já podemos observar o papel


fundamental que o tempo ocupa no romance: a casa tem 365 quartos, e 52 escadas. Segundo
Sandra M. Gilbert, que faz a introdução da tradução das Edições Penguin, este número
representa o número de dias e de semanas em que se divide um ano. Seria uma materialização
do tempo. Percorrer a casa pode ser tomado como o tempo que se esvai ou “um número cuja
95

conotação simbólica ainda se baseia na realidade extravagante, significa que ela/ele herdou não
só um lugar no tempo.” (Gilbert (p. 86, 2014), mas o próprio tempo:

A Inglaterra não pôde conter certa vaidade, ao descrever a casa em que


nascera, casa que tinha trezentos e sessenta e cinco dormitórios e era
propriedade de sua família havia quatrocentos ou quinhentos anos. Seus
ancestrais eram Conde ou ao menos Duque, acrescentou. (WOOLF, pp. 86-
87, 1982)

As reflexões sobre o tempo ocorrem de forma consciente e inconsciente, a não


demostrar importância ao passar dos anos ou não dar-se conta da passagem do mesmo.
Recusando o tempo de Cronos como única medida para este personagem, não o nega, o
narrador. Porém, o lamenta: “Mas, desgraçadamente, o tempo, que faz florescerem e
murcharem animais e vegetais com espantosa pontualidade [...]” (WOOLF, p. 58, 1982).
Todavia, quando trata do ser humano, de suas identidades, memórias, e suas formas de
racionalizar afirma que “a mente humana, por outro lado, atua com igual estranheza sobre o
corpo do tempo” (Id., 1982).

Em outro momento afirma: “Uma hora, instalada no estranho elemento do espírito


humano, pode ser distendida cinquenta ou cem vezes mais do que a sua medida no relógio”
(Ibid., 1982); porém, não somente a dilatação do tempo é possível, seu encolhimento também
o é. O que significa uma nova forma de observar o tempo que marcará a modernidade.
Inversamente, uma hora pode representar o tempo “metal” por um segundo. Este extraordinário
desacordo entre o “tempo do relógio” e o “tempo do espírito” é menos conhecido do que devia
ser, e merece profundas investigações.

O trecho acima atraiu a nossa atenção para o que Woolf chama de “tempo metal”.
Referência fria, dura e despersonalizada, fato que nos conduz a refletir sobre algo que cria um
tempo particular, com memórias involuntárias, e que coexiste com o anterior. Assim, o relógio,
servo de Cronos, torna-se mais um adorno cultural ou tecnológico para o tempo particular de
Orlando. Durante várias passagens, Orlando desconsidera o relógio, logo, age, vive e sente com
seu tempo próprio.

Em verdade, já havia, na época, estudos voltados para a psicanálise e também para a


filosofia de Bergson, com sua teoria de que a consciência humana é uma estrondosa força das
96

memórias que se entrelaçam, penetram e emergem no que tendemos a chamar agora


(BERGSON, 2006).

Woolf não nega o tempo metálico, manipula-o, em uma inversão, sendo ele – o tempo
– um “personagem” possuidor de um ritmo próprio e o tempo rítmico da obra. Assim, em
Orlando, há duas passagens que entendemos valiosas, considerando-se o objetivo final desta
reflexão, a saber, a androginia e a travestilidade. Elas não são as únicas. No entanto, é apenas
essa relação com o tempo que possibilita as inúmeras experiências e metamorfoses de Orlando:
por isso Cronos é chamado à cena.

A primeira passagem está no primeiro grande sono de Orlando, após entrar em reclusão
em sua casa de campo, por estar arruinado, como afirma a bela tradução de Raquel de Queiroz,
naquele “verão calamitoso inverno” (WOOLF, p. 39, 1982). O exílio da Corte e o fato de ter
caído em desgraça com os nobres do seu tempo, como os Desmonds da Irlanda, deixaram
Orlando encolerizado. Por esta razão, Orlando se recolhe em sua casa de campo, onde viveu
em profunda solidão:

Um sábado, 18 - deixou de levantar-se à hora habitual, quando a camareira foi


chamar encontrou-o profundamente adormecido. Não pôde ser despertado.
Jazia como num desmaio, sem respiração perceptível; e embora levassem cães
para ladrar debaixo de suas janelas; e tocassem continuamente címbalos,
tambores, crótalos, em seu quarto; e pusessem um ramo de urzes debaixo do
seu travesseiro; e lhe aplicassem nos pés emplastros de mostarda, nem assim
despertou, nem se alimentou, nem deu nenhum sinal de vida durante sete dias
completos. No sétimo dia, despertou à hora do costume (oito menos um
quarto). (WOOLF, p. 40, 1982)

A marcação do tempo de Cronos, ou, como Woolf prefere, o tempo metálico, fazendo
uma alusão ao relógio (imaginemos que este era, na época, muito mais uma corrente pendurada
junto ao bolso do terno), é referido na marcação do dia, sábado, na data 18, na contagem dos
dias dormidos, 7 dias, e, por fim, o horário do despertar; e respeitando o formato inglês de ler
as horas, a tradutora diz “oito menos um quarto” (WOLF, p. 40, 1982). Em seguida, Orlando
colocará para fora todos os servos de seu aposento e continuará seu dia como se nada tivesse
acontecido. O sono poderia ser uma paralisação das horas. Durante o longo sono, Orlando
poderia ter entrado em uma espécie de suspensão do tempo:

Mais aquilo foi sono - é difícil deixar de perguntar - de que natureza são os
sonos assim? São medidas reparadoras - transes em que as mais mortificantes
lembranças, os acontecimentos que parecem capazes de invalidar a vida para
97

sempre são roçados por uma asa sombria que lhe alisa a aspereza e os doura.
(WOOLF, p. 40, 1982)

Para Orlando, seu tempo sempre foi particular, único e pessoal. Toda a exatidão
temporal do narrador, ou narradora, se dilui ao encontrar Orlando. Esses tempos: de quem narra,
de Orlando, da obra e dos demais personagens, coloca em cena o tempo como personagem.

O segundo fragmento que ressaltamos, entre vários outros, não por importância, mas
apenas seguindo o fluxo do tempo na obra, dá-se no segundo longo sono de Orlando: “No
sétimo dia do seu letargo (quinta-feira, 10 de maio), foi disparado o primeiro tiro daquela
terrível e sangrenta insurreição, cujos primeiros sintomas o Tenente Bridgge surpreenderá”
(WOOLF, p. 65, 2013).

Orlando permanece avesso, mais uma vez, aos acontecimentos temporais coletivos,
orientado por seu próprio tempo, como em um espaço paralelo, e recebe a visita cingida, em
um manto de lã, de Nossa Senhora Aparecida, seguida por Nossa Senhora da Castidade, e Nossa
Senhora da Modéstia. Após essa relação de encontro entre os dois espaços de realidades e
tempos – aquele em que Orlando dorme e o outro, quando as três puras Santas chegam, pouco
se mostram, maldizem a humanidade e vão embora, chorando e dançando –, Orlando desperta.

A obra em questão seria, simultaneamente, uma reflexão histórica e uma reflexão sobre
o tempo. E, construindo uma representação de metabibliografia, paralelamente, Virginia faz
críticas ao formato do seu próprio trabalho, fazendo uso de um humor cáustico, com afirmações
que rompiam com a razoabilidade, e acreditava conhecer a “verdade” referente à “vida” e aos
“eus” de Orlando (WOOLF, p. 31, 2014).

Um aspecto relevante, nesse contexto, é a ruptura com o falso puritanismo dos


biógrafos. Eles se acovardariam diante de escândalos dos biografados, logo, são “denunciados”
por este novo modelo biográfico (em verdade, uma obra literária). Enquanto isso, quem narra
Orlando não hesita em descrever certos tempos dele/a, a mudança de sexo, ou o nascimento do
filho, ou até mesmo a persistente construção do poema The Oak Tree47.

47
A Árvore de Carvalho. (Tradução nossa).
98

Outro aspecto que nos remete às mudanças ocorridas na Londres do século XVIII,
(enquanto que para Orlando nada se mostrava claro ao recordar-se das “tortuosas estradas
elisabetanas” (WOOLF, p. 31, 2014)), é a passagem em que o/a narrador/a descreve uma massa
turbulenta de nuvens quando batem as doze badaladas da meia noite, proclamando que agora
“tudo era escuridão; tudo era dúvida; tudo era confusão. O século XVIII terminava, nascia o
século XIX.” (WOOLF, p. 207, 2014).

Inevitavelmente, como um rio, somos levados a Baudelaire e à sua relação com o


nascimento da modernidade francesa. Nas reflexões de Walter Benjamin sobre esse universo
da modernidade, o então poeta das Flores do Mal é percebido como quem compreende as
massas como sendo “de tal forma intrínseca que seria vão procurarmos nelas a sua descrição.”
(BENJAMIN, p. 115, 1989):

Foucault e Benjamin dedicaram grande parte de seus escritos a análises sobre


a Modernidade. Para estes dois pensadores, a época moderna é marcada por
uma nova relação do homem com o curso do tempo. Os sujeitos modernos
ver-se-ão diante do desafio de pensar a íntima articulação entre a tradição e as
transformações sociais recentes. De tal sorte, a figura de Baudelaire impõe-se
para Benjamin e Foucault como o representante privilegiado das questões que
atravessam sua contemporaneidade. (Furtado, p. 83, 1989)

Há diferenças na percepção e apoderação do poeta entre os dois pensadores. Foucault


pouco refletiu a respeito. Todavia, há uma discussão que visa confrontar a temática do governo
dos homens e dos vivos, como um farol para o governo de si, desta maneira, ele centrará a
discussão na estética da existência. Foucault e sua modernidade não abarcam períodos
históricos, mas atitudes. Atitudes do indivíduo questionador deste tempo, “tomando a si mesmo
como objeto de uma detalhada e corajosa elaboração” (KÍNESIS, p. 351, 2012). Um Orlando,
com fluxo de memórias involuntárias e reflexivo, tomado pela alegoria de Diana. No entanto,
sendo a caça e o caçador, de forma que não há uma identidade estanque atribuída a Orlando,
logo, se na primeira linha do primeiro parágrafo não há dúvida que se trata de um homem, logo
abaixo há características que nos remetem ao rosto feminino. Passando por três séculos, em 20
anos, o seu trajeto é particular e marcado por memórias e detalhes. A obra em questão dilatou
e questionou a biografia: quantas biografias podem fazer das nossas memórias? Talvez a própria
Woolf, fina como uma navalha que corta exatamente o que deseja, mostre-nos as armadilhas da
cronologia e a dureza e frieza do tempo metálico, a rigidez nas análises documentais:

Defronta agora o biógrafo com uma dificuldade que é melhor talvez confessar
do que esconder. Até este ponto da narrativa da vida de Orlando, documentos
99

privados e históricos têm tornado possível o cumprimento do primeiro dever


do biógrafo, que é caminhar, sem olhar para a direita nem para a esquerda,
sobre os rastros, indeléveis da verdade; sem se deixar seduzir por flores; sem
fazer caso da sombra; sempre para diante, metodologicamente, até cair em
cheio na sepultura, e escrever finis. (WOOLF, p. 39, 1982)

O percurso traçado até aqui é a ruptura com a linearidade de seguir direto até a sepultura.
Logo se olha para a direita, adentra-se por essas veredas, apreciam-se os cenários, os cheiros,
chegando, por vezes, a se perder. E, assim, talvez possamos fazer uma adaptação da frase de
Walter Benjamin (p. 73, 1995), quando se referia a Moscou:

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se


numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução. Nesse
caso, o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o estalar do
graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as
horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro.

4.5 Androginia e travestilidade

[Proêmio]
É meu propósito falar
das metamorfoses dos seres em novos corpos.
Vós, deuses, que as operastes, sede propícios
aos meus intentos e acompanhai o meu poema,
que vem das origens do mundo até os dias do
mundo até os meus dias

Ovídio

Na segunda metade da obra Orlando: uma biografia, a personagem percebe-se nua,


reconhecendo-se mulher. Nesse momento temos, talvez, uma dos fragmentos que lidam mais
diretamente com a questão da androginia. Os leitores são chamados a voltar uma profunda
atenção para compreender e sentir as reações de Orlando em seu novo corpo. Vamos, aos
poucos, percebendo que ela possui experiências e vivências nos dois sexos e, nesse aspecto,
poderíamos estabelecer certa relação com Tirésias. No entanto, Orlando está longe de ter uma
compreensão do universo feminino, como afirma Garcia sobre o Sábio Oráculo (Garcia, p. 14,
2001). Narra, Virgínia: “Espreguiçou-se. Levantou-se. Ficou de pé, completamente despida na
frente, enquanto as trombetas rugiam: Verdade, Verdade! Verdade E não podemos deixar de
confessar: era Mulher.” (WOOLF, p. 81, 1982).
100

A narração do trecho extraído afirma, somente, que Orlando se torna mulher. Quando
pensamos em Tirésias, somos conduzidos a uma maldição; aqui, a uma dádiva. Afinal, não há
expressão de dor na narrativa acima. Talvez este fosse o motif de Woolf para “mostrar” a cena,
algo que se afirma pelo trecho a seguir:

O som das trombetas esmoreceu e Orlando continuou despido. Nenhuma


criatura humana, desde que o mundo é mundo, foi mais arrebatadora. Sua
forma reunia, ao mesmo tempo, a força do homem e a graça da mulher,
enquanto ali permanecia de pé. As trombetas de pratas prolongavam sua voz,
como relutando em abandonar a deliciosa visão que seu rugido provocara; e
Castidade, Pureza, Modéstia inspiradas pela curiosidade espiavam pela porta.
(WOOLF, p. 81, 1982)

A condição que Orlando alcança neste estágio de androginia é de uma beleza e plenitude
quase divinas. Ao menos, seduz seres castos e puros do panteão cristão, que são tomados pela
curiosidade: as três Santas ficam espiando. Elas não são três santidades, mas Modéstia,
Castidade e Piedade. Esta tríade de arquétipos femininos são representações da condição,
talvez, do anjo da casa, que surgiu em Um Teto Todo Seu (1927), como o reflexo do lugar da
mulher e suas necessidades – situação difícil para quem possuía uma identidade de escritora.
Orlando é agora uma mulher, porém, guarda suas memórias, seus relacionamentos e
experiências de quando viveu como homem. Nada disso parece ser ameaçador, pelo contrário,
“Orlando transformou-se em mulher – não há o que negar. Mas, em tudo mais, continua o que
tinha sido.” (WOOLF, p. 82, 1982).

Orlando, “embora alterado seu futuro, de nada alterava da sua identidade” (WOOLF, p.
82, 1982), ou seja, uma relação em que a personagem aceita o devir, as transformações, e
explicita a transitoriedade da identidade. Afinal, o fato de não ter se alterado em nada pode
referir-se e este encontrar-se em constante mudança, e esta liminaridade em nada mudou
Orlando. Continua como Diana, à caça de identidades múltiplas, instáveis, o que não significa
desequilíbrio ou descompasso, mas o reflexo de uma identidade nômade.

Orlando, “agora uma jovem dama da nobreza” (WOOLF, p. 82, 1982). Talvez o leitor
pudesse esperar de Orlando, nesse novo lugar/sexo/gênero, em que se encontra agora, a
revelação de intensa perturbação emocional, mas não foi exatamente o caso.

A ambiguidade daquele que narra, qualquer que seja o seu gênero, avança na descrição,
ao referir-se aos traços de personalidade, ao tempo de vestir-se, questionando, como, sendo
101

mulher, nunca possuía mais de dez minutos para trocar de roupa. Podemos imaginar uma
referência ao arquétipo masculino: a agilidade, a presteza no vestir – talvez devido à falta de
adereços; por vezes, era representada como tímida, aspecto que nos remete ao feminino, porém,
simultaneamente, detestava assuntos domésticos. Mais uma vez, Orlando mostra a sua
androginia. O narrador parece transitar também pelas suas identidades de gênero.

Ao refletir sobre a androginia de Orlando, devemos atentar para o Período Elisabetano,


período inicial da obra, a começar no primeiro parágrafo. Quando o jovem protagonista brinca
com a cabeça decepada de um mouro, podemos perceber um antagonismo à androginia de
Orlando; seguidamente, ela não se limita ao nível aparente, a cada página adentra a sua forma
de lidar com o que aqui chamaremos de norma social, culminando com as questões do processo
já de decadência do período da Inglaterra Vitoriana.

A representação da condição sexual parece não possuir um sentido para Orlando.


Exemplo disso, após dormir sete noites, acorda despida, olha-se no espelho e não expressa
qualquer sentimento. Não sabemos, neste momento, o porquê disso, se por surpresa, ou por
indiferença. Porém, em seguida, o/a narrador/a nos responde, mostrando como se fora um fato
natural.

O que interessa é refletimos sobre a dimensão da androginia no personagem Orlando


como uma expressão da construção de sua identidade, assim como uma das possibilidades de
existências, e não como um fim em si mesmo. A androginia como algo que difere do masculino
e do feminino. O andrógino não existe sob a lógica da dicotomia macho versus fêmea e, sim,
para além, em novos campos de possibilidades.

As alegorias apresentadas na obra, materializadas nas Santas da Castidade, da Modéstia


e da Pureza, pode ser pensada como uma expressão do contexto social, e extrapola para a cultura
e a política. Estas elaboram o modo operante e discursivo do sexo estável e suas categorias, o
qual, institucionalmente, deseja-se manter inalterado. A retirada em pranto das santas mostra
como a obra, por meio de seu personagem Orlando, é crítica a essas categorias e repressões.

As concepções culturais, que veem na biologia apenas rígidas categorias de macho e


fêmea, mostram-se, tanto na obra quanto na realidade, incapazes de representar um indivíduo.
Parece-nos que, dessa forma, é retirada a possibilidade de nuances e transcendências. É com
102

estas questões que, por vezes, o narrador joga, usando Orlando como ela, mas, logo em seguida,
ao referir-se a ele, muda o gênero “dela”, como quem rejeita categorias rígidas, ou até mesmo
categorias.

As relações amorosas vividas por Orlando trazem detalhes que nos remetem à sua
condição e atração pela androginia. O caso da princesa russa, chamada Marousha Stanislovska
Dagmar Iliana Romanovitch, nome que causa a Orlando certo estranhamento, provoca um
efeito jocoso. Para simplificar, o/a narrador/a modifica o nome da princesa, quando esta se
encontra com Orlando. Passa a chamá-la apenas de Sasha48.

Quando o rapaz, pois, ai, devia ser um rapaz – nenhuma mulher conseguiria
patinar com tanta rapidez e energia – passou voando por ele quase na ponta
dos pés, Orlando estava prestes a arrancar os cabelos, pelo desgosto de ver que
a pessoa era de seu próprio sexo, e quaisquer intimidades estavam, assim, fora
de questão. Mas a pessoa que patinava chegou mais perto. As pernas, as mãos,
a postura eram de rapaz, mas nunca rapaz nenhum teve boca assim; rapaz
nenhum teve esses seios; rapaz nenhum teve olhos que eram como se tivessem
sido pescados do fundo do mar. Por fim, parando e estendendo, com a maior
graça, uma vênia ao rei, que passava, se arrastando, de braços com um
camarista, a criatura sobre patins se deteve. Não estava a mais que um palmo
de distância. Era uma mulher. (WOOLF, p. 26, 2015)

A importância desta passagem está em que Orlando questiona-se por desejar um


possível homem, visto que nas vestes tradicionais da Rússia, usadas pela Princesa russa, havia
características andróginas para a cultura de Orlando. No entanto, a habilidade e força conferidas
a Sasha tiravam a possibilidade de pensá-la como uma mulher, pois, aos olhos de Orlando,
somente um homem poderia ter tais habilidades. Sim, Sasha era mulher, e esse fato, se por um
lado tranquiliza Orlando, por outro, mostra que os limites estabelecidos para uma mulher (na
concepção dele) não são verdadeiros: Sasha pode patinar, possuir força e altivez (e ser homem
e/ou mulher).

48
A partir deste ponto, grafaremos sempre Sasha, embora algumas traduções prefiram grafar “Sacha”.
103

Figura 10: A Princesa Russa quando criança


Fonte: WOOLF, p. 28, 2015.

O romance de Orlando, que possui algumas características peculiares e importantes para


o que nos propomos, dá-se com o navegador do além-mar, Marmaduke Bonthrop Shelmerdine,
que passa a ser chamado Shel. Ele explicita o quanto inusitada e movediça é cada linha desta
obra, desde a forma como se conhecem e noivam, desnaturalizando o ato:

Ela estava adormecendo com penas úmidas no rosto e o ouvido colado ao chão
quando ouviu bem no fundo um martelo batendo numa bigorna, ou seria um
coração batendo? Tic-toc, tic-toc, assim martelava, assim batia, a bigorna ou
o coração, no centro da terra; até que, enquanto ouvia, pensou que se
transformara no trote de um cavalo, contou um, dois, três, quatro; então ouviu
um tropeção; então, à medida que se aproximava mais, podia ouvir o estalar
de um graveto e o chapinhar dos cascos no pântano encharcado. O cavalo
estava quase em cima dela. Sentou-se empertigada. Destacando-se contra o
céu raiado de amarelo da aurora, com lavadeiras que subiam e desciam sobre
ele, ela viu um homem a cavalo. Ele sobressaltou-se. O cavalo parou. —
Senhora — disse o homem pulando para o chão —, está ferida! — Estou
morta, senhor! — respondeu ela. Alguns minutos mais tarde, ficaram noivos.
(WOOLF, p. 148, 1982)

Em seguida, o/a narrador/a fala sobre a capacidade de ambos saberem da vida de seus
amantes: “Na verdade, embora o seu conhecimento datasse de tão pouco tempo, ambos tinham
adivinhado, como sempre ocorre entre os amantes, todas as coisas de alguma importância a
respeito um do outro” (WOOLF, p. 149, 1982). Porém, Shel aguardava o vento sudoeste para
atirar-se em uma empreitada de navegação pelo Cabo Horn. O vento não chega; todavia, o medo
de Orlando, sim: “Orlando olhou apressadamente pela janela da sala de almoço para o leopardo
dourado do cata-vento. Felizmente a cauda apontava para leste e estava firme como uma rocha”
(Id., 1982). Frequentemente, sabedores um do outro, fazem a mesma pergunta:
104

“— És uma mulher, Shel! — gritou ela.


— És um homem, Orlando! — gritou ele.” (Ibid., 1982)

O que desejava Orlando? Uma confirmação? Possuía dúvida? Não havia conseguido
decifrar tal questão? Tratava-se Shel de uma pessoa andrógina, como o nome que Orlando havia
atribuído? Podemos considerar que, assim como navegar, nada é estável nesta relação.

4.6 Travestilidade e androginia

Em Orlando: uma biografia, a travestilidade se propaga para além do personagem


principal. Ela atinge o tempo, como já foi exposto, e os amores, até o/a narrador/a, já que não
podemos definir seu sexo ou gênero. Assim, devemos evitar incorrer no erro de nos fecharmos
e analisarmos a travestilidade apenas em Orlando. Entendemos que a travestilidade deve ser
sentida não somente como algo que veste a pele e, sim, um componente do espírito. Dessa
forma, o corpo, mesmo não sendo uma coisa neutra, não comporta todas as travestilidades. A
autora estabelece sensíveis críticas aos papéis estabelecidos.

Assim, a travestilidade em Orlando ocorre no campo dos costumes, o que nem sempre
se traduz na vestimenta. Em Orlando, há uma compreensão de um self, um elemento interno
que coexiste com o corpo. As fronteiras são borradas, porém, Orlando está metamorfoseado,
fato que nos leva a refletir sobre o corpo e como essa metamorfose transparece na relação entre
corpo e espirito (seria melhor usar espírito). O que nos conduz a imaginar essa relação em outras
culturas, distantes do Ocidente, como entre os Melanésios descritos por Sônia Wainer Maluf
(p. 182, 2002):

Na Melanésia, entre os anos 1920 e 1930, o missionário protestante e


antropólogo Maurice Leenhardt comenta com o chefe do grupo que o longo
convívio com os missionários ocidentais havia ensinado aos canaques que eles
teriam uma alma. O chefe contesta o missionário: "Não, que nós temos uma
alma nós já sabíamos, vocês nos ensinaram que nós temos um corpo". Até a
chegada dos missionários e dos outros ocidentais, os canaques não possuíam
palavra para corpo. Foi aprendendo com os missionários ocidentais a noção
de que eles tinham um corpo, singular, único e delimitado (com fronteiras ¾
ou seja, margens ¾ definidas), que se abre um caminho para o que Leenhardt
chamou processo de individuação. É quando os canaques percebem que têm
um corpo que se abre a possibilidade de individuação, de fixação de um 'eu'
(eu tenho um corpo). É nesse momento, segundo Leenhardt, que eles têm a
105

possibilidade de se liberar da rede de relações da velha sociedade melanésia,


a qual a pessoa se submete e onde ela não é nada além de um lugar relacional,
previamente inscrito no social.

Essa compreensão de um “eu relacional”, coletivo, opõe-se a Orlando, que possui em si


vários “eus”. Essa relação psicológica dos personagens com seus inúmeros “eus” tornam
explícita a travestilidade. Por esta razão, possivelmente não encontraremos aqui uma narrativa
linear e estática de trajes, desconectada do sentir, e, sim, uma profusão de emoções, costumes
e rupturas.

A relação de Orlando com a Princesa Sasha, sobre a qual ele inicialmente se questiona,
por sentir desejo por outro homem, no primeiro capítulo, segue com uma ambiguidade de
papéis, devido à sua personalidade forte. A princesa, que inicialmente chama-se Marousha
Stanislovska Dagmar Natasha Iliana Romanovitch passou a ser: “Sasha, como ele a chamava
para abreviar, e porque esse era o nome de uma raposa branca russa, que tivera em pequeno -
criatura suave como a neve, mas com dentes de aço, e que o mordeu tão ferozmente que seu pai
a mandou matar.” (WOOLF, p. 25, 1982).

O nome atribuído à princesa resgata um elemento masculino: a agressividade. As


narrativas sobre a princesa são marcadas por uma ruptura com o comportamento rígido da
nobreza vitoriana; seja no jantar, quando Sasha fala francês e começa a sorrir mais do que os
padrões vigentes considerariam adequado, ou nas roupas, consideradas masculinas, usadas para
esquiar com obstinação e força, na Londres gélida.

Sasha abandona Orlando, quando este pensa em fugir, idealizando um amor com ela.
Perspectiva feminina essa, a de esperar o grande amor, para, em seguida, ser abandonada. Aos
poucos, Sasha revela um temperamento caracteristicamente masculino, que se mescla com essa
identidade fugidia, que se convencionou atribuir aos homens: agressivos, dominadores e
altivos. No entanto, não há como negar, havia ali uma completude, pois ambos viviam papéis
sociais não desenhados para eles.

Convicto do seu abandono, Orlando permanece no cais, a observar os navios, até dar-se
conta de que ali não haverá nenhum russo:
Atira-se do cavalo, como se, na sua cólera, quisesse acometer a corrente. Com
água até os joelhos, lançou à infiel mulher todos os insultos que tem recebido
seu sexo. Falsa, inconstante, volúvel, chamou-a; demônio, adúltera, traidora;
106

e as águas vertiginosas receberam as suas palavras e atiraram-lhe aos pés uma


vasilha quebrada e uma palhinha. (WOOLF, p. 87, 1982)

Não há dúvida, Sasha era mulher. Orlando, naquela cena, colocou-se como o masculino,
invertendo as posições, fato demonstrado por sua cólera, como criticamente pontuou o/a
narrador/a, dirigindo-lhe “todos os insultos que tem recebido seu sexo”. Não havia dúvida:
naquele momento, Orlando sentia-se homem.

Sasha usava roupas que fizeram Orlando ter dúvidas quanto ao seu sexo. O mesmo não
se pode dizer no que se refere à Arquiduquesa romena Harriet Griselda, que, conforme Imagem
03, abaixo, veste-se de forma impecavelmente feminina. Todavia, possui conhecimento de caça
e armas de fogo: “Dentro de casa, seus modos retomaram a arrogância própria e não tivesse
demonstrado um conhecimento de vinhos, raro numa dama, e feito algumas observações
bastante sensatas sobre armas de fogo e as regras de caça em seu país, a conversa teria carecido
de espontaneidade.” (WOOLF, p. 69, 1982).

Há, portanto, uma dubiedade na duquesa, apesar de ser ela, ao mesmo tempo, ajustada
ao perfil feminino, pois se moveu e “se inclinou para apertar a fivela” (WOOLF, p. 68, 2015).
Essa dubiedade, demostrada ao apertar a fivela, apaixona Orlando, que passa a encontrá-la com
frequência.

Figura 11: Arquiduquesa Harriet Griselda


Fonte: WOOLF, p. 77, 2015.
O/A narrador/a faz uso de uma imagem para demonstrar o desinteresse de Orlando pela
nobre senhora: “Mas a harpia não se expulsa tão facilmente. Não só a arquiduquesa continua a
107

morar na casa do padeiro como Orlando foi assaltado dia e noite pelos mais repelentes
fantasmas” (WOOLF, p. 69, 1982). Assim, para livrar-se dela, Orlando pede ao Rei Carlos que
o envie para Constantinopla, como Embaixador Extraordinário. Um abraço e um beijo, por cima
do ombro, marcam a despedida entre ele e a Arquiduquesa.

O que parecia ser um adeus, e de certa forma o foi, acabou não passando de um intervalo.
Afinal, eles voltam a se encontrar. No entanto, desta vez ele surge como Lady Orlando. Temos
aí não somente a mudança de sexo e todas as experiências, amores e frustrações, mas também
o momento de maturidade que Orlando agora vivia:

Como sua janela dava para a parte mais central dos pátios, como ordenara que
não queria ver ninguém, e ela era mesmo legalmente desconhecida, ficou, a
princípio surpreendida com a sombra, depois indignada, depois cheia de
alegria, pois era uma sombra familiar, uma grotesca sombra, a sombra de nada
menos que a Arquiduquesa Harriet Griselda de Fraster-Aarhorn e Scand-op-
Boom. (WOOLF, p. 105, 1985)

O encontro entre Lady Orlando e a Arquiduquesa fora inevitável. Logo, a visita declara
que se travestira de mulher pela paixão que sentia por Orlando e era, na verdade, o Arquiduque
Harry. Não se tratava, pois, do encontro de duas mulheres e, sim, de uma mulher e um homem:
“Em suma, representaram os papéis de homem e mulher por dez minutos, recaíram nas suas
maneiras habituais. O Arquiduque contou sua história. Havia se travestido, como forma de
aproximar-se de Orlando. Que era homem e sempre havia sido.” (WOOLF, p. 106, 1982).

Na fala do Arquiduque, chama-nos a atenção a pouca importância que ele dá ao sexo,


quando o/a narrador/a comenta: “Pois para ele, dizia o Arquiduque Harry, ela era e sempre tinha
sido o primor, a pérola, a perfeição” (WOOLF, p. 107, 1982). Em seguida, declara-se
apaixonado e afirma possuir fortunas. O romance não se realiza e Orlando, após visitas
incisivas, faz um plano trapaceiro e o Arquiduque afasta-se. E Lady Orlando celebra: “o céu
seja louvado” (WOOLF, p. 109, 1985).

Posteriormente, Orlando vai se aproximando mais e mais do universo simbólico


feminino. Afinal, a sua mudança de sexo em nada a havia alterado de imediato: “o que pouco
se disse da ausência de diferença entre Orlando homem e Orlando Mulher começa a deixar de
ser completamente verdadeiro” (WOOLF, p. 110, 1982). Importante a avaliação do/a narrador/a
sobre as roupas, na construção do personagem, quando nos esclarece sobre o papel delas nessa
performatividade:
108

Alguns filósofos diriam que a mudança de vestuário tinha muito a ver com
isso. Embora parecendo simples frivolidades, as roupas, dizem eles,
desempenham mais importante função que a de nos aquecerem, simplesmente.
Elas mudam a nossa opinião a respeito do mundo, e a opinião do mundo a
nosso respeito”. (Id., 1982)

No terceiro capítulo, a questão social começa a ser delineada. Inicialmente Orlando não
se importará com a mudança de sexo. Todavia, sua fuga de Constantinopla com os ciganos,
povos nômades, como nômade também é seu sexo, é um sinal de mudança. Para Farjado (p. 62,
2017), esse momento é o instante mais contundente sobre a igualdade de sexos. Em seguida, as
lembranças da Inglaterra fazem Orlando desejar o retorno à terra natal. Vende uma de suas
pérolas e compra um enxoval que a representa como uma jovem nobre. A roupa aqui é utilizada
como marca social. Lady Orlando sabe manipular seus símbolos muito bem. Assim, chega a
Londres:

“Senhor”, pensou, acelerando-se, espreguiçando, debaixo de seu toldo, “de


certo que isso é um gênero de vida agradável e indolente. Mas, pensou, dando
um pontapé, “estas saias de rodas são uma praga”. No entanto, o estofo
(blocado florido) “é o mais lindo do mundo. Nunca vi a minha pele”, e aqui
pousou a mão no joelho, “tão favorecida como agora. Poderia, contudo, saltar
do navio e nadar com roupas destas? Não, de modo que tinha de confiar na
proteção de um marinheiro. Tenho alguma objeção a fazer?, perguntou a si
mesmo, encontrou o primeiro nó na lisa meada do seu argumento. (WOOLF,
p. 92, 1982)

Lady Orlando, mais uma vez, mostra que a roupa extrapola a proteção da pele, é um
marcador, que a limita ou liberta; como a saia que limita o navegar e mostra a condição da
mulher a partir do que se veste. Desse ponto em diante, há uma performatividade a obedecer,
marcada por limites que desconhecia até então. Afinal, como afirma a Lady, “encontrou seu
primeiro nó”, a condição de mulher traz em si um conjunto de atitudes e subserviências a serem
seguidas. Quando pergunta: “devo então, começar a respeitar a opinião do outro sexo, embora
me pareça monstruosa? Se uso, se não posso nadar, se tenho que ser salva por um marinheiro?
Meu Deus, o que hei de fazer?” (WOOLF, p. 93, 1982).

Ao começar, expressando-se com “devo” ou “não posso”, mostra-se a construção da


mulher que deve seguir certos caminhos e ações; e quando, hipoteticamente, é salva pelo
marinheiro, este também se constrói como homem. Instala-se uma série de cenas, falas e
metáforas questionando esta relação.
109

Como sensivelmente salienta Farjado (p. 67, 2017) sobre as relações amorosas, Lady
Orlando, mesmo negando a união com Shelmerdine, as quais eram simbolizadas pelas alianças,
resignou-se, incomodada com as vestes da época, e todas as suas simbologias. Ela aceitou e
entregou-se ao espírito do século XIX, incorporando a submissão. Busca um par, com a
finalidade de unir-se. Algo que a pesquisadora não salienta, e, no entanto, parece-nos presente,
é a convicção de não haver outras possibilidades para ela. Assim, sua postura é, coerente com
a condição de subalternidade da mulher no reinado da Rainha Vitória, período marcado pela
dubiedade, o início do liberalismo, e do moralismo vitoriano.

Finalmente, dá-se um reencontro com Marmaduke Bonthrop Shelmerdine, descrito


pelo/a narrador/a:

[...] “aqui Shel, aqui “gritou”, desnudando seu peito à lua (que agora brilhava)
de modo que suas pérolas resplandeciam como ovos de uma enorme aranha
lunar. O aeroplano rompeu as nuvens e pairou por sobre a sua cabeça. Revoou
por cima dela. As pérolas arderam como um relâmpago fosforescente na
escuridão.
E quando Shelmerdine, agora garboso capitão, bronzeado, rosado e ativo
saltou em terra, por cima de sua cabeça, voou um pássaro Selvagem.
(WOOLF, p. 195, 1982).

Figura 12: Orlando na época atual


Fonte: WOOLF, p. 196, 2015.

O corpo de Orlando possui a capacidade de metamorfose, mudando de sexo. A


construção das identidades fixas é estabelecida pela cultura.
110

Mas, talvez mais do que tudo, o livro Orlando: uma biografia possa ser pensado como
uma alegoria da afirmação de Simone de Beauvoir: “não se nasce mulher...”
111

5 OS CORPOS QUE DANÇAM E SE ACOTOVELAM À NOITE: ETNOGRAFIA DAS


TRAVESTIS NO BAIRRO DE ATALAIA, ARACAJU

Eu vou te explicar uma coisa: quando você vir uma mulata como essa na rua,
você tem que tomar um certo cuidado. Porque, às vezes... Como vou te
explicar? O mel é fel, a mostarda é ketchup, entendeu?

(A apresentadora Regina Cazé, no programa Esquenta/Rede Globo, na tarde


de domingo em 1º. 01.2012, explicando aos estrangeiros o perigo de confundir
travestis e mulatas.)

Walter Benjamin, influenciado por artistas e intelectuais como Charles Pierre


Baudelaire (1821-1873), refletiu e vislumbrou a condição do homem na modernidade, que
começava a apresentar-se no século XIX, tomando forma e gerando mudanças culturais. Nesse
novo mundo imaginado, onde muitos se sentiam encandeados pelas luzes, as noites eram
iluminadas por lamparinas a gás. Todavia, com seus novos personagens, como o próprio
Benjamin nomeou, o flâneur49, aquele que vaga a esmo, traçando um percurso próprio e
desconhecido, ritmado pela própria cidade, trouxe consigo o anonimato das multidões, como
no conto “O homem da multidão”, do inglês Edgar Allan Poe (1840).

A cidade passa a ser um espaço de tensões, desamores, agonias e “cotoveladas”


(BAUDELAIRE, 1985). Benjamin compara a existência nas cidades modernas, e as colisões
sofridas pelos andantes das multidões, com a relação entre os trabalhadores e as máquinas. É
um tipo de experiência de susto e dor, distante de algo poético.
No poema de Baudelaire, À une passante, a ideia de um amor que se encontra e vai
embora, efêmero, uma experiência rápida e angustiada, explicita como o poeta estava atento ao
momento que se apresentava e tomaria forma no efêmero, sem ao menos saber quem é a bela
mulher:

49
Em Passagens (p. 462-463, 2007), Benjamin salienta alguns aspectos sobre esse personagem da modernidade:
deve-se tentar compreender a constituição moral absolutamente fascinante do Flâneur apaixonado. A Polícia – que
revela aqui, como em tantos assuntos que tratamos, como um verdadeiro perito – fornece a seguinte indicação, no
relatório de um agente secreto parisiense, de outubro de 1798 (?): “É quase impossível lembrar dos bons costumes
e mantê-los numa população amontoada, em que cada indivíduo, de certa forma desconhecido de todos os outros,
esconde-se na multidão e não precisa enrubescer diante dos olhos de ninguém”(In: Adof Schmidt, parires Zustande
wahreand der Revolution, v.2, Iena, 1876).
112

A uma passante

A rua em torno era um frenético


alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem


nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que
assassina.

Que luz… e a noite após! – Efêmera


beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! “nunca”


talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o
viste!50

50
Tradução de Ivan Junqueira (1985).

À une passante (original)

La rueassourdissanteautour de moi hurlait.


Longue, mince, en grand deuil, douleurmajestueuse,
Une femme passa, d’ une main fastueuse
Soulevant, balançantlefeston et l’ourlet;

Agileetnoble, avecsajambe de stautue.


Moi, jebuvais, crispécommeunextravagant,
Danssonoeil, ciellivideoù germe l’ouragan,
La douceurqui fascine etleplaisirquitue.

Unéclair…puis lanuit! – Fugitivebeauté


Dontleregard m’a fait soudainementrenaître,
Ne te verrai-jeplus que dansl’eternité?

Ailleurs, bien loin d’ici! troptard! “jamais” peut-être!


Carj’ignoreoù tu fuis, tu ne sais oùje vais,
Ô toi que j’eusseaimée, ô toiquilesavais!
113

As interpretações de Benjamin e Baudelaire das cidades modernas é desveladora,


revelando que o flâneur vive, antes, sob sopapos, a um ritmo marcado pela lógica da cidade e
dos choques. Assim, era quase uma fatalidade a perda da áurea, do deleite, da experiência
estética e artística, realidade que, no entanto, não se apresenta anacrônica, quando se pensa na
contemporaneidade. Pude refletir a aceleração dos processos sob a perspectiva de uma nova
vestimenta para as relações amorosas. Talvez do choque entre esse homem e a máquina tenha
surgido um terceiro tipo, um cyborg autômato, num mundo entorpecido e blasé.

5.1 O território de prostituição das travestis: Atalaia, Aracaju/Sergipe

O retorno ao campo fez-me, instantaneamente, recordar de um trecho de Grande Sertão:


Veredas: “O senhor... mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam [...]” (GUIMARÃES ROSA, pp. 24-25, 1994). Refere-se não somente às
travestis, mas ao entorno, às ruas. Novas travestis, novos atores e outros relatos. Talvez esse
devir seja o elemento que caracterize o território e o mosaico de relações.

Retorno ao caleidoscópio que intitula o primeiro momento desta pesquisa como quem
busca construir impressões e fazer contato com as memórias da cidade, ajustando-o, por fim,
ao território fluido, frouxo e de identidades tão diversas. Assim como as relações de afetos e
poder, marcadas clara e sinuosamente entre os corpos, propor-me-ei a criar relações entre a
fundação da cidade de Aracaju, primeira capital planejada do Brasil (MATOS, p. 01, 2007), e
suas implicações no território de trabalho das travestis no bairro de Atalaia, em Aracaju.

Para situar alguns aspectos da memória do local de pesquisa, vejamos alguns marcos
simbólicos da cidade de Aracaju. Outrora, o desenho da cidade remetia a um tabuleiro de
xadrez, em seu traçado urbanístico, definido pelo dito popular: “Aracaju, tabuleiro de xadrez,
onde pião não anda, só anda rei”.
114

Figura 13: Cartaz fixado no Campus de São Cristóvão da Universidade Federal de Sergipe, [s.d.]
Fonte: O autor (fotografada em 16.01.2017)

A cidade de Aracaju difere das duas capitais mais próximas: Maceió e, mais
contundentemente, da capital baiana, Salvador. O modelo português do traçado urbanístico de
Salvador em nada se aproxima de Aracaju. Salvador foi um povoado que tornou-se capital do
Império, protegida pela Baía de Todos os Santos. No entanto, foi-lhe atribuído um planejamento
urbano (delineamentos de ruas e definições claramente demarcadas) tão somente após a decisão
da Corte de ser a capital da Colônia (RISÉRIO, p. 65, 2004). Pode-se refletir que, na cidade de
Salvador, fundada em março de 1549, as relações e as lógicas mercantis que a impulsionavam
eram outras, no que diz respeito ao período, objetivo e topografia.

O povoado de Santo Antônio é elevado à capital em 1837, quando passa a ser chamado
de Aracaju, cuja construção é marcada por confrontos com os índios Tupinambás, jogos de
interesses e alto custo social. Como afirma Antônio Carlos Campos (p. 202, 1992):

Aracaju se cria como a primeira cidade livre de Sergipe, porém com os


mesmos dogmas de segregação e exclusão típicas da sociedade capitalista.
Assim, a população livre que migrava para a cidade somente poderia construir
suas casas de palha no alto das dunas e fora da área denominada como
“Quadrado de Pirro”, respeitando as normas contidas no Código de Postura de
1856, uma espécie de plano diretor da época.
115

Mesmo não concordando com a atribuição de uma sociedade capitalista, como afirma o
historiador Campos (1992), já que a realidade e o desenvolvimento da economia açucareira
caracterizam um meio de produção mercantil, a análise do discurso sobre a ideia que se
popularizou entre a elite, que afirmava ser Aracaju “uma primeira cidade livre”, explicita a
segregação, e esse trecho, por sua vez, possui a mesma lógica da segregação expressa no dito
popular. Há o lugar do povo e o lugar da aristocracia açucareira, detentores do poder, ou seja,
homens e mulheres livres.

Nas pesquisas realizadas não encontrei indícios ou documentos sobre a escravidão não
negra na cidade de São Cristóvão. Possuidora, em 1854, de uma população escrava de
aproximadamente 1.305 peças (nomenclatura utilizada na época para se referir a seres humanos
negros escravizados), havia também negros livres, números menores que 1,0% da população
(dado registrado na subdelegacia da então capital de Sergipe). Outro dado que mostra a
representatividade dos negros pode ser constatado pela distribuição dessa população, da qual
80% concentrava-se na zona rural, dedicando-se ao trabalho de produção de açúcar e criação
de gado, este último menos expressivo (DINIZ, pp. 161-183, 1991).

Uma cidade livre, branca, com ruas retas e simétricas, com lugares definidos para
“peões” e “reis”, que impedia a construção de casas de palha em seu território e estabelecia
multas de 5$00 a 10$00 (moeda réis) aos moradores que desobedecessem ao rígido padrão de
conduta e de construção. Isso evidencia o contorno da gênese da capital sergipana (Diniz, p. 08,
1991).

A cidade é um organismo vivo e por isso muito se transformou. No entanto, a criação


excludente e elitista é um traço em que as marcações, os estigmas, o conservadorismo e o
racismo tomaram outras formas.
Portanto, manipulando o caleidoscópio no tempo e espaço da contemporaneidade
aracajuana e no território das travestis, aqui pesquisadas, entendo que as memórias de origem
da cidade contribuem para compreender de maneiras diferentes esse espaço e suas relações com
seus monstros.
116

Aracaju se relaciona com seu passado, sob a perspectiva do mito daquela que foi bela e
amaldiçoada, transformando-se em monstro, e todos os que a olham – a Medusa51 – são
destruídos. Sob essas relações de poder, as travestis graciosamente dançam e seduzem, como
quem encanta, velando e desvelando: ora mostram as curvas, ora exibem quão grande e espesso
é o seu dote, nesse jogo noturno de mostrar-se e esconder-se, confrontando-se com o higienismo
e todos os aparatos, ora públicos, ora privados.

O território de Atalaia é também marcado por essa dubiedade: dor e desejo. Homens
viris durante o dia, à noite, como quem desejam outras experiências marginalizadas, pagam de
30 a 50 reais por um programa, com variações maiores, dependendo da relação estabelecida.
Sem conciliar discurso e atitudes, alguns têm limites dilatados, supondo que podem suportar,
como afirmaria Golffman (2011), as representações do seu “eu” nos seus cotidianos.

“Aqui, pode ver! Quem sai com travesti tem película no carro, agora quando chegam no
quarto são tudo ‘viado’ (risos).” (Informação verbal)52. Esse caminho percorrido sobre o
território pesquisado, ou seja, o remontar do processo de mudança da capital e suas motivações,
passou a ser uma possibilidade de entender sob outros ajustes esse caleidoscópio. Em visita, no
dia 20.12.2017, constatei que a cidade de São Cristóvão possui áreas tombadas pela Unesco
(Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura) e uma população
preponderantemente não branca, de menos de 18,8% em 1830 (MOTT, p. 10, 1973), o que não
se transformou, pois hoje São Cristóvão continua predominantemente habitada por não brancos.

Ao visitar a cidade, no fim da tarde de sábado, observei ruas vazias, casas abandonadas
e moradores alegres com os festejos natalinos. À noite, os pisca-piscas e os presépios reluziam
no interior das casas, distante do que já fora uma pujante capital e importante porto. Quando
indaguei sobre a cidade, no bar, onde só havia homens, o orgulho de ter sido uma capital,
agregado ao fato de possuir belas igrejas antigas em estilo barroco, era evidenciado por alguns.
Ao falarem sobre as igrejas construídas no período em que Portugal havia sido anexado pela
Espanha, podia-se observar neles uma mudança no semblante, mostrando que, hoje, os tempos
são outros. “As drogas tomaram conta de tudo e a cidade está abandonada” (Informação verbal)

51
Personagem da mitologia Grega, destacada pela sua profunda beleza, que, por inveja, foi transformada num
monstro, e todos que a olham, petrificam-se.
52
Entrevista concedida por Ariane, 23 anos, [Maio, 2017]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2017.
117

53
. De fato, a cidade de São Cristóvão não se recuperou da perda da sede do governo e
atualmente é considerada uma das cidades mais violentas do Estado de Sergipe. O sentimento
que perpassa a coletividade são-cristovense é o de que São Cristóvão sempre esteve
abandonada.

Como uma construção centrada na segregação, Aracaju não enxerga São Cristóvão,
mantendo a ideia de que a violência é oriunda das cidades que compõem a Grande Aracaju, a
exemplo da Barra dos Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro e, principalmente, São Cristóvão,
localidades em que era permitida a construção de casebres no período da mudança da capital,
pois os rios as separavam, como afirma Campos (1992) Cif.

A relação dos aracajuanos com seu território pode ser comparada com o momento em
que Narciso54 olha para o lago e apaixona-se pela imagem refletida, ou o lago, da mesma forma,
apaixona-se pela imagem refletida nas retinas de Narciso. Essa relação narcisista e egóica
renega o diferente, portanto, a periferia, excluindo-a dos mapas turísticos da cidade, por
invisibilidade, ou porque já não a entendem como parte há muito tempo.

Sob essa perspectiva e reflexão, nada é mais contemplado do que o Bairro de Atalaia.
Nessa localidade, há um acidente geográfico do encontro do Rio Sergipe com o Oceano
Atlântico, a presença de dois belos lagos e infinitos mobiliários urbanos modernos, que quase
impedem a vista oceânica. Em verdade, pude perceber que o traçado do “Quadrado de Pirro”,
modelo urbanístico de Aracaju, localizado na parte norte, e parte da arquitetura inicial, foram
abandonados, e os olhos e valores voltaram-se para o sul da cidade. Compreendo, destarte, que
a cidade foi inicialmente criada às margens do Rio Sergipe, voltada para ele, e, ao sul, na
Atalaia, predominava uma ideia de modernidade sergipana, localizada na região já banhada
pelo oceano.

Podemos observar que, como em parte das cidades brasileiras, os centros são
abandonados e outras regiões são valorizadas, antes pelo porto, mais recentemente pela
especulação imobiliária, e a violência ou o discurso de segurança, como status social. Aracaju,
além desses fatores, omite seu passado, sendo a Atalaia a modernidade. Com a atual mudança

53
Entrevista concedida por João, 44 anos (Morador do centro de São Cristóvão), [Dezembro, 2017]. Entrevistador:
João Dantas. São Cristóvão, 2017.
54
Personagem da mitologia Grega que se caracteriza pela vaidade e amor à própria beleza.
118

do plano diretor, que permite a verticalização, começa a substituição de casas por edifícios, com
pastilhas, nomes em francês e inglês, vidros verdes, verdadeiros não lugares.

De acordo com dados da prefeitura municipal, a orla de Atalaia possui 6 km de extensão


e ao longo dela há segmentação de comércios variados, áreas de lazer, hotéis, bares e acessos
às ruas internas do bairro. Por questões éticas, não darei a localização exata da região na qual
trabalhei, preservando as travestis que, apesar de toda a força e ímpeto, são um grupo
vulnerável. Assim, demarcarei somente o acesso.

Há uma rua em certo trecho que apresenta um desnível, quando comparada com a
avenida principal. Desse modo, quanto mais o carro ou o transeunte se distancia da avenida
principal, Avenida Santos Dumont, mais invisível se torna. Essa rua encontra-se com a Avenida
Santo Dumont em 90 graus. Ao sair do principal acesso do território de prostituição das
travestis, em Atalaia, o encontro com avenida principal faz com que desapareça do campo de
visão das pessoas, a zona de prostituição. Cria-se, assim, um sentimento de desligamento.

Essas travestis, damas da noite, com seus perfumes que podem ser sentidos a metros de
distância, usados na roupa, a fim de não transmitir as essências aos corpos dos clientes,
reconfiguram a paisagem urbana da localidade no bairro de Atalaia. Afinal, esse espaço é mais
uma rua durante o dia. Quando o sol se põe, a rua fica vazia de andantes e repleta de carros com
suas luzes. Aos poucos, vão chegando as travestis. Surge uma, que se coloca no mesmo lugar
de sempre, retira a chinela e a guarda em um terreno baldio próximo ou na bolsa, trocando-a
por um sapato com salto (habitualmente). Assim, a rua vai sendo tomada por outra, outra e
outra. Comumente, elas se saúdam: “– E aí!”, hiperbolizando a voz, aproximando-se do
feminino. Começa o pistão.

O território não é limitado por barreiras geográficas, mas sim temporais, sempre à noite,
pela penumbra, fácil trânsito dos carros. A colocação de cada travesti em um lugar depende
muito da relação que possui com aquela mais próxima, pois há um sentimento de mutualismo
e competição. Mutualismo porque se protegem em caso de roubo, clientes que se recusam a
pagar, realizam ou dividem algumas substâncias para uso durante a noite, como álcool, fazem
programas conjuntos. A competição está ligada ao fato de que ambas serão avaliadas pelos
possíveis clientes, como dois produtos concorrentes.
119

O território aqui descrito e analisado transformou-se em material etnográfico desde


2012/2013, o que resultou em publicações no periódico Novos Debates, da Associação
Brasileira de Antropologia (ABA), e uma Comunicação no Museu Nacional/Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre outras, anteriormente ao meu ingresso no Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Assim como “as pessoas ainda não foram terminadas” (GUIMARÃES ROSA, p. 25,
1994), o território transforma-se em um devir contínuo. As travestis, impedidas de fazer
programas próximo à orla, foram empurradas, sob resistência, para a região mais interna do
bairro, que posteriormente se mostrou mais rentável. Mesmo que esse fato tenha sido uma ação
higienista e segregacionista, consegue-se entendê-lo com propriedade somente mediante
pesquisa da formação da capital, Aracaju.

No período de 2013 a 2015 houve um aumento quantitativo das travestis no território,


o que ocasionou mais conflitos. Já a famosa “senhora da casa preta” (não é essa a verdadeira
cor da casa) declarou guerra às travestis, e, cansada das piadas e brincadeiras, chamava
repetidas vezes a polícia, que acabou por não mais atender, segundo relato de Delícia (nome
fictício sugerido por ela mesma). A tal senhora mudou-se e alugou o imóvel. Ela jogava água
quente e fezes nas travestis, que também são vítimas da hostilidade do poder público, por meio
da polícia e dos moradores, que tiveram e têm suas residências desvalorizadas.

Nessas novas incursões, os conflitos entre travestis chegaram ao relato mais violento.
Pressuponho que esse fato tem relação com alguns fatores, entre eles, diminuição da clientela
e manutenção do preço dos programas, desde 2013.

[...] Não se sabe ao certo, fato é que esta travesti roubava e ela morava em uma
casa improvisada aqui na rua mesmo. Um dia tocaram fogo na casa dela, e
dizem que foi a polícia ou a população local, ou as próprias travestis, ninguém
sabe, ninguém viu. Ela também sofreu várias ameaças de morte, aí ela sumiu,
dizem que foi embora. (Informação verbal) 55

A economia da capital sergipana na gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva


(2003-2011) apresentou um crescimento razoável, bem como no primeiro mandato da então
Presidenta Dilma Rousseff (2011-2014), quando a Petrobras e órgãos públicos obtiveram

55
Entrevista concedida por Bela, [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
120

grandes investimentos nessas gestões, se comparado aos mandatos do Presidente Fernando


Henrique Cardoso. O Nordeste do Brasil seguia superando dificuldades seculares e esses ventos
chegavam com desenvoltura em Aracaju.

Conforme estudo divulgado pelo IBGE das Contas Nacionais, no ano de 2010
o PIB de Sergipe cresceu, em volume, 9,47% [2011] em relação ao ano de
2010, o Brasil cresceu 2,7% e o Nordeste 9,42%, portanto a economia
sergipana teve um crescimento maior que o Nordeste e que o Brasil. O PIB de
Sergipe na base de 2011 é de R$ 26.199 milhões, o que representa 0,6% do
PIB do Brasil e coloca Sergipe na 22.ª posição entre as unidades federativas,
do ponto de vista de valor do PIB.
[...]
Sergipe também permanece mantendo o maior PIB per capita do Nordeste,
sendo nesta base o PIB per capita de R$ 12.536,45, registre-se que o PIB per
capita do Brasil foi de R$ 21.535,6 e o da Região Nordeste R$ 10.379,75.56

Em dezembro de 2014 havia travestis oriundas da cidade de Salvador fazendo


programas em Atalaia e cobrando R$100,00, a hora, por um programa em hotéis, motéis ou
casa/apartamento. Durante o ano de 2016, distanciei-me em razão da vivência do doutorado
sanduíche. Com a mudança de governo e o retorno de uma política conservadora, o que já era
violento e repressor tornou-se ainda mais letal.

A cidade de Aracaju, que por décadas fora comparada, com discrepância, com a capital
de Alagoas, Maceió – que era e é exemplo de violência –, caracterizava-se por seu povo ordeiro
e suas ruas limpas e seguras, símbolo de qualidade de vida, o que já a levou a ser premiada
como a melhor capital em qualidade de vida do Brasil. Ainda no governo Dilma Rousseff, a
cidade de Aracaju passou a ter índices de violência crescentes, seguidamente, tornou-se palco
de roubos, latrocínios e homicídios em percentuais nunca alcançados. Segundo dados da
Secretaria de Segurança Pública, em dois anos os números quase dobraram, de 2015 a 2017.

O Governo do Estado de Sergipe, incompetente para enfrentar a violência, recorreu à


Força Nacional, na atual gestão, que age com mais frequência nas localidades menos
favorecidas e/ou locais de trabalho das travestis. A presença da Força Nacional foi um fato
político com visita do então Ministro da Segurança do Governo Temer, Alexandre de Moraes,
o que nos dá pistas sobre duas matérias a respeito da questão política: o poderio quantitativo
repressor e a condição da violência em Aracaju:

56
Disponível em: <http://www.infonet.com.br/noticias/economia//ler.asp?id=151769>. Acesso em: 12 de abril,
2018.
121

Ministro da Justiça virá a Aracaju anunciar o Plano Nacional de Segurança


Pública. Com data prevista para o próximo domingo, 5 de fevereiro, o
Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, está de viagem marcada para
Aracaju com o objetivo de apresentar o Plano Nacional de Segurança Pública.
Alexandre virá à capital sergipana para explicar como será empregada a Força
Nacional de Segurança Pública em Sergipe e revelará qual a previsão da
chegada dos 120 policiais da Força Nacional, além da forma como eles atuarão
ao lado de mais 240 policiais sergipanos. Os policiais de Sergipe, assim como
acontecerá em Porto Alegre e Rio Grande do Norte, primeiras cidades a
receber o projeto, trabalharão conjuntamente com os da Força Nacional,
recebendo como remuneração em sua folga a gratificação paga pelo Governo
Federal. O plano será anunciado pelo Ministro Alexandre de Moraes e pelo
governador de Sergipe, Jackson Barreto.57

Nota-se, na matéria produzida pela Assessoria da Secretaria de Segurança Pública do


Estado de Sergipe, o tom impactante da chamada, em que atribui a violência a um problema de
segurança pública, e não a um fenômeno de dimensões sociais, econômicas e à ausência do
Estado nas comunidades mais desprovidas, por exemplo. Posteriormente, a matéria estabelece
uma proximidade com o Ministro, clamando pelo nome próprio “Alexandre”, seguidamente, à
força bélica, em números de homens: 120 é o elemento exaltado. O release foi publicado em
diversos meios sem a assinatura da Secretaria de Segurança Pública, fato que atribuiria
credibilidade à fonte, excetuando o Jornal Cinform, o qual, entre outros veículos de
comunicação menos expressivos, é o de maior repercussão, que, mesmo publicando na íntegra,
no corpo do jornal, manteve a assinatura. Com essa postura, pude perceber que a mídia
compactua com a Secretaria de Segurança Pública.

Da segunda matéria, reproduzi o último parágrafo:

[...] Segundo boletim divulgado no mês de julho pela Secretaria de Segurança


Pública de Sergipe, SSP/SE, a presença da Força Nacional gerou números
positivos. Aracaju alcançou uma redução de 20,4% no número de homicídios
nos cinco primeiros meses de 2017, em comparação ao mesmo período do ano
passado. Em Sergipe, a queda é de 11%.58

O Jornal Cinform possui uma única edição semanal, às segundas-feiras. Por sua vez, na
internet há notícias diariamente. Nenhuma das matérias encontradas apresenta custos e/ou
investimentos, logo, a ideia de dados positivos de uma redução de 20,4% do número de
homicídios não expõe o custo, bem como os outros crimes que eram muito (ou ainda são)
significativos, quantitativamente, como roubos e furtos.

57
Fonte: SSP/SE.
58
Cinform, 14 set. 2016.
122

A Força Nacional no território de prostituição das travestis, no bairro de Atalaia, atua


continuamente, circulando em baixa velocidade (algo em torno de 20 km/h, ou menos), em
carros de grande porte, cor preta, devidamente identificados, comumente com quatro ou cinco
homens fortemente armados, com metralhadora ou fuzil (não sei identificar de qual se trata),
com os canos se projetando pela janela, observando e intimidando a todos.

Essa estratégia fez com que, rapidamente, os clientes fossem tomados pelo medo da
visibilidade e parassem de frequentar esse território, afinal, a prestação de serviço das travestis
é marcada por fortes estigmas, e a presença de forças repressoras, realmente, cumpre o papel
ao qual se propõem. Na madrugada do dia 23 de dezembro de 2017, Key, Dulce e Boca de Ouro
se encontravam em um ponto utilizado há mais de seis anos, desde que trabalhei nesse território,
onde havia clientes fixos, como funcionários da Petrobras, que trabalham embarcados por
quinze dias e folgam quinze, e outros clientes, como comerciantes e funcionários públicos.

Durante aproximadamente duas horas, a viatura da Força Nacional passou três vezes,
com espaços de tempo entre 15 e 20 minutos, fato que transformou o território das travestis.
Key argumenta que “a culpa também é das travestis, porque agora ficam fazendo roubo e todo
mundo no fórum já sabe” (Informação verbal). O que se percebe é uma crise econômica grave.
Com a crise da Petrobras e da economia brasileira, a escassez de capital no mercado e a perda
da invisibilidade por parte dos clientes tornaram o território inadequado.

Diferentemente do que percebi no início do trabalho, encontrei travestis e mulheres


fazendo programas com menor distanciamento umas das outras. Nesse sentido, a Lapa, no Rio
de Janeiro, talvez tenha sido a pioneira, no Brasil, de um fenômeno extremamente curioso,
quando, no fim da década de 1960, início dos anos 1970, ocorreu uma progressiva e violenta
expulsão das prostitutas pelas travestis, dando cabo a um predomínio de sete décadas, como
afirma Silva (p. 45, 2007). Tal separação de territórios é comumente encontrada em Salvador,
São Paulo e nas cidades pesquisadas na Europa.

Com todos esses novos atores e as questões da perda de renda e turismo, o impacto foi
profundo, afinal, Aracaju passou a fazer parte das dez cidades mais violentas do país. Os
programas, durante o período de seis anos, oscilaram. No entanto, retornaram na mesma faixa
de aporte financeiro: R$ 50,00 completo (sexo oral, anal e masturbação, beijos são evitados);
sexo oral (R$ 30,00). Outras possibilidades são negociadas, como o cliente usar as roupas da
123

travesti, usar dildo, sexo em grupo e sexo sem camisinha (estes são mais raros, porém algumas
sempre afirmam conhecer outras que o fazem).

O sol começa a lançar impetuosamente seus raios. Selena59, em sua linda carruagem de
prata, puxada por cavalos brancos, já atravessou o céu: o dia se precipita. O rito de todo dia
chega ao fim, hora de retornar para casa. As ruas vão ganhando outros atores, estes apressados
como máquinas. Agora, o território afeiçoa-se às ruas, perdeu o cheiro das damas da noite, o
perigo dos ladrões e a Força Nacional já foi dormir. Os semblantes das travestis estão cansados,
alguns alegres, quando a noite fora boa, algumas delas mal-humoradas, querem chegar em casa,
afinal, outra noite não tarda a chegar. Nesse estar-se só, no retorno para casa, mesmo que
algumas voltem em duplas ou trios, enfrentarão os olhares da moral, as piadas.

O que será ser só


Quando outro dia amanhecer?
Será recomeçar?
Será ser livre sem querer?
CHICO BUARQUE

5.2 As damas da noite em Atalaia: do imaginário ao corpo possível

O corpo
O corpo existe e pode ser pego.
É suficientemente opaco para que se possa vê-lo.
Se ficar olhando anos você pode ver crescer o cabelo.
O corpo existe porque foi feito.
Por isso tem um buraco no meio.
O corpo existe, dado que exala cheiro.
E em cada extremidade existe um dedo.
O corpo se cortado espirra um líquido vermelho.
O corpo tem alguém como recheio.
ARNALDO ANTUNES

A quem serve o corpo das travestis? Questiono, enquanto começo a refletir. Talvez sutil,
imediatamente, dizemos que essa interrogação é utilitarista, e tentá-la responder muito
empobreceria a experiência das travestis e seu universo simbólico. Então, passa-se a outros
questionamentos: como posso entender/sentir a vivência das travestis com seus corpos: como

59
Divindade da mitologia grega que representa a lua (deusa da lua).
124

ritos, valores pessoais, estigmas significados e interpretados por elas, que trabalham como
prostitutas no Bairro de Atalaia? Sob uma dimensão estética e simultaneamente existencial?
Compreendo que sim, como no poema da banda Cozinha Mineira e as Baianas (2018): “Olha
só doutor, saca só que genial/ Sabe a minha identidade?/ Nada a ver com genital”.

O corpo das travestis é um devir, e: “É no corpo que a travesti se constrói enquanto


sujeito” (BENEDITTI, p. 74, 2005). Portanto, é também no corpo que esse grupo concentra
parte significativa do seu cotidiano, dos seus desejos e seu poder de consumo. A apoderação de
bens e serviços está, quase sempre, focada ou orbitando na construção de identidades próximas
ao feminino, sendo o corpo o centro. O corpo da travesti não é um suporte de símbolo, é um
símbolo em si. As “bombadas”, as bichichas, as traveconas são categorias nele referenciadas.

Eu me imagino assim… Mais bumbum, também nada de mais, você sabe


quando uma travesti tá bem! Ah! melhorar os quadri [passando a mão na
cintura], fazer lazer para tirar esses benditos pelo da cara, e peito número 44
ou 46, lógico, barriga, 0. (Informação verbal) 60

O (re)nascimento de uma travesti associa-se à metamorfose que a distancia do nome


masculino, atribuído pela família, e a vincula a um ou mais nomes. Afinal, os nomes próprios
das travestis são identitários, na maioria das vezes, todos femininos ou possuidores de glamour,
como sobrenomes de atrizes. Fenômeno comum entre as travestis com maior idade, é, as mais
jovens possuírem nomes femininos usados comumente, por exemplo, Andreia, Ana, Paula,
Carla, referindo-me ao território pesquisado.

Foi possível identificar, pelo menos no modelo percebido em campo, as posses, sejam
de silicone, hormônios, roupas, ou a não posse, por exemplo, de produtos masculinos. A
construção das identidades das travestis está aportada em cultura própria. Universo simbólico
que se aproxima do feminino, referenciando-se. Entretanto, a ideia de mulher, de feminino,
como conhecida na cultura ocidental, é matéria-prima para as travestis de Atalaia. Elas
subvertem produtos, ressignificam fármacos e produtos de alta toxicidade, como o silicone
industrial. Portanto, não nos parece adequado classificar as travestis como mulheres que
nasceram homens, ou homens que desejam ser mulher: “[...] Não queria ter uma buceta, caso
quisesse eu não era travesti, eu era transexual. Vou cortar minha pica e vou trabalhar com o

60
Entrevista concedida por Alice, [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
125

quê? Você sabe, João, que as maricas nojentas da Atalaia só querem tomar no cu!” (Informação
verbal) 61.

Sob minha ótica, as travestis são pessoas que percorrem o caminho inverso defendido
por Aristófanes, n’O Banquete, de Platão. Insatisfeitas com a unicidade, de um único:
masculino ou feminino. Após a vingança de Zeus, que separa os corpos possuidores de dois
sexos, querem que seus corpos voltem a ser inteiros, o que Aristófanes chama de “os filhos de
Selene” (PLATÃO, 1966), destarte, como os hermafroditas (trata-se de uma referência mítica).
Nesse aspecto, as travestis retroagem ao mito e vivem sob certas circunstâncias, e essa
desobediência do maniqueísmo traz a vida outro sexo. Ao interrogar o pesquisador em Filosofia
Antiga, Dr. Rodrigo Pinto de Brito, em entrevista realizada em 19 de janeiro de 2018, sobre
essa leitura d’O Banquete, mais especificamente do discurso de Aristófanes, ele disse que
compactua com esse pensamento e acrescenta: “as travestis violam a linearidade do mito sob
esta perspectiva” (Informação verbal). Podemos também afirmar que desobedecem a Zeus.

As travestis com que trabalhei, na sua maioria, não buscavam um ideal de beleza
essencialmente feminino, mas, acredita-se, uma referência muito forte ao universo feminino. A
voz, por exemplo, é sabido que possui um grave forte, comumente. Portanto, elas produzem
palavras com uma referência sonora no seu próprio grupo.

Ao fazermos alusão às metamorfoses da figura humana, mais especificamente à questão


da identidade, somos conduzidos a reflexões, ou a uma imaginação radical:

Lançada a identidade seu ponto de fuga, o que resta é um princípio de mutação


permanente a comandar a percepção sensível do universo: o sonho funde-se à
vigília, o dia à noite, o homem à mulher o ser humano ao verme. Tudo se
escreve na equivalência dos contrários, anulando qualquer pretensão de
verdade. As formas perdem sua estabilidade [...] As formas do corpo tornam-
se igualmente intercambiáveis: o sexo sobe à cabeça (Magrille: leViol)
igualmente intercambiáveis o olho desce ao ânus (Bataille: Histoire de l'œil).
(MORAES, pp. 77-78, 2002)

Ao serem indiferentes às ciências médicas, talvez em virtude de, ao longo da vida, não
terem acesso, as travestis não compactuam ou sequer prestam atenção nesse universo, somente
quando se referem a cirurgias de intervenção estética. Não se colocam sob a nomenclatura de
Disforia de Personalidade (CID 11) da Organização Mundial de Saúde (OMS), fato que

61
Entrevista concedida por Ana, [Maio, 2013]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2013.
126

desconhecem, e, ademais, são termos estrangeiros, os quais, em campo, desprezaram, como


quem rejeita uma cultura que as vulnerabiliza.

Assim sendo, o corpo das travestis que trabalham em Atalaia mostra-se operando sob
outras referências, as quais discutirei no decorrer da análise. Com um olhar externo, pode
parecer loucura, ignorância ou outra enfermidade. Essa percepção para parte dos demais
públicos, sobre as travestis repercute de forma violenta, ou, como meticulosamente explicita
Amara Moira (2016, p. 29):

Mas tem vezes que a sincronia da minha passagem com esse rio soa estranha
demais, me deixa insegura, agride. E tem vezes que, nessa insegurança, surge
alguém que gosta de mim, e de quem gosto, pra perguntar como é que aguento,
como é que eu deixo e não vou lá cuspir na cara infeliz. Como é que eu aguento
é assim, fazendo a pêssega. Porque se eu percebo o que se passa ao redor, a
forma como me olham, o quanto a minha figura não faz sentido, aí é me trancar
no quarto e chorar. Como ontem.

No entanto, há uma transmissão oral de conhecimentos, e, na contemporaneidade da


internet, com suas redes sociais, que as conectam, mostrando experimentos estéticos assertivos
ou não. Sob esse aspecto, esse grupo possui uma observação e gerência maior do seu corpo,
quando comparado com outros grupos. Mudar a cor do cabelo, por exemplo, requer que o
trabalho seja realizado por elas, em razão do custo. Dessa forma, passam a conhecer os ritos e
os produtos disponíveis. Para o grupo pesquisado, não se costuma delegar a outrem o que é
entendido como cuidar do próprio corpo.

No entanto, não podemos afirmar que a manipulação do corpo em busca de um ideal é


exclusividade das travestis. No Brasil, o número de intervenções cirúrgicas com finalidade
estética tem crescido a cada ano. Corpos ainda adolescentes são cada vez mais frequentes em
clínicas de cirurgias plásticas. Assim, um nariz ganha outro formato, a boca é levantada, a pele
é esticada. O que podemos marcar como diferenças são os imaginários de beleza desse grupo.
Afinal, como afirmou Alice, 22 anos: “Você sabe quando uma travesti tá bem!” (Informação
verbal).
127

5.3 Silicone: a dor da beleza62

Em Atalaia, mais especificamente no território pesquisado, existem as travestis que


gozam de um diferencial social entre o grupo, e elas chegam a cobrar um valor mais alto por
programas, pelo fato de serem possuidoras de seios, em consequência da do processo de
“bombação” (rito descrito como pela aplicação de um polímero oleoso – silicone –, marcado
pela dor e a transformação imediata do corpo, e a importância simbólica para esse grupo). As
que tomam hormônios por medicamentos anticonceptivos, não chegam a produzir seios, sob a
ótica das travestis e clientes.

Em 2013, não localizamos travestis com próteses de silicone, fato que se repetiu agora.
No entanto, segunda Bebel, 26 anos: “Havia, João, algumas… sabe né! As coisas mudaram
muito, tá mais difícil e algumas, as mais montadas, foram para Salvador, Rio ou para a Europa,
ou pelo menos diz que vai!” (Informação verbal).

O primeiro registro conhecido de aplicação de silicone industrial, segundo a antropóloga


Neuza Maria de Oliveira (p. 47, 1994), é de uma travesti, em Curitiba, no final dos anos 1981:

Daniela, travesti brasileira, retorna da França, mais especificamente de Paris,


com um montante de capital financeiro que a distinguia das demais travestis e
junto em sua bagagem diversos litros de silicone que a enriqueceu ainda mais.
A notícia correu rapidamente o país. (ALBUQUERQUE, p. 150, 1995).

Kulik, antropólogo dinamarquês, teve acesso a travestis no Maciel, Pelourinho, em


Salvador, as quais afirmam terem-se “bombado” com Daniela, nos anos 1980. Elas disseram ao
pesquisador que o silicone não era industrial, “era rosa, bonito” (KULIK, p. 92, 2008). Para
Oliveira (pp. 129-130, 1994), responsável pela primeira etnografia sobre travestis em Salvador,
o processo da “bombação” era conhecido, ato de aplicação de silicone industrial com uso de
agulhas e seringas veterinárias, em 1984, na cidade de Salvador.

A “bombação” foi empiricamente se aperfeiçoando e se disseminando. Como afirma


Kulik (p. 65, 2008): “[...] No entanto, algumas travestis chegam a injetar 20 litros de silicone
[industrial]”. Em outra passagem, Kulik afirma que esse é o último recurso das travestis por ele

62
A dor da Beleza é usada na etnografia Damas de Pau, realizada por Neuza Maria de Oliveira, sendo este o
primeiro registro encontrado. Posteriormente, na Etnografia do Dinamarquês Don Kulik, com Travestis no
Pelourinho e depois no filme Bombadeira.
128

pesquisadas. A realidade no território de Atalaia é sinalizada como possibilidade para


transformação do corpo pelas mais velhas desde o início, e é um marcador, um rito de passagem.

O silicone industrial deve ser diferenciado do silicone de próteses mamárias, que é


estéril e puro. O industrial é matéria-prima para, como o próprio nome sugere, a indústria de
material automotivo e produtos de limpeza doméstica, não possuindo as duas qualidades do
silicone de próteses mamárias. Sua utilidade direciona-se, originalmente, para a produção de
um tipo específico de borrachas ou produtos para limpeza doméstica, entre várias outras
aplicações.

A apresentação do produto usado pelas travestis é inodoro, incolor e oleoso,


comercializado clandestinamente. Segundo Dara, 23 anos: “Existe! Ninguém sabe como ela [a
bombadeira, pessoa responsável pela a aplicação] consegue, mais ela tem quanto você quiser”
(Informação verbal).

A compra parece ocorrer no mercado clandestino, pois, de acordo com o Projeto de Lei
n.º 26/1999:

Da COMISSÃO DE ASSUNTOS SOCIAIS, ao Projeto de Lei da Câmara n.º


26, de 1999 (n.º 3.961, de 1997, na origem), que “Estabelece normas para o
uso médico das próteses de silicone e dá outras providências” entre outras
questões seguidamente:
O Projeto de Lei da Câmara n.º 26, de 1999, tem como objetivo vedar o uso
de silicone líquido no organismo humano, conforme determina o caput do art.
1.º da proposição, e definir condições para o emprego de próteses de silicone,
na forma prevista no art. 2.º.

As “bombadeiras”, em Aracaju, não se restringem a um território, fato descrito por


Kulik (2008) e Oliveira (1994) sobre Salvador, ou no Rio de Janeiro, descrito por Soares (2007).
Normalmente, essas “bombadeiras” são travestis com maior idade e, portanto, maior
experiência, o que corrobora a hipótese da tradição da comunicação oral e empírica. Elas, após
longo período de convivência acompanhando processos de “bombação”, sendo “bombadas”,
assistindo ao rito ou participando como ajudantes e cuidadoras após as aplicações de silicone,
passam a exercer a função, uma vez que a prostituição já não se mostra um mercado tão aberto
a elas.
129

Importante ressaltar que as “bombadeiras” ocupam um lugar de destaque entre as


travestis, pois próteses de seios não se mostraram como possibilidade:

Aqui, tem um médico só que faz, mas quem tem R$5000,00 para isso? É muito
programa de R$50,00. A gente tem também que se produzir, cabelo, sapato,
maquiagem e essas coisas, né? Não dá! Agora, se eu for para Madri, aí é outra
coisa. Mas lá eles já querem com peito é essa coisa. (Informação verbal) 63

A aplicação do silicone industrial, por sua vez, é uma opção a um custo possível,
transformação imediata, e todas conhecem os riscos. Todas as entrevistadas mostraram
conhecimento de casos de travestis que, sob a perspectiva delas, ficaram lindas, e outras que
ficaram deformadas. Bela, 26 anos, uma das mais experientes travestis entrevistadas, pontuou
algo que nunca havia lido em relatos etnográficos ou artigos científicos:

Bela: Quando [o silicone industrial] não dá certo… elas fazem um buraco no


meio para sair o sangue com o silicone.
Eu: Resolve mesmo?
Bela: Melhora muito e com as massagens, chega a resolver.
(Informação verbal)

Algumas escolhem fazer aplicações em pequenas quantidades e várias vezes, apesar de


elevar o custo, em razão do serviço. Esse processo diminui o risco, porém, comparando as
travestis descritas por Kulik (2008), que aplicavam até 20 litros de silicone, essa não é a
realidade apresentada no território pesquisado.

Simultaneamente, fora desse grupo, essas “bombadeiras” podem ser enquadradas em


três artigos do Código Penal: lesão corporal; exercício ilegal da medicina; e curandeirismo. Tais
crimes possuem pena de até oito anos de prisão. Talvez este seja um dos aspectos que dificultam
o acesso às “bombadeiras”.

A “bombação” faz parte das conversas percebidas no cotidiano das travestis, tanto em
suas vidas íntimas como na rua, observando os corpos das “bombadas” e comentando, conforme
verificado na pesquisa de campo em 2013. A questão da vida privada e pública, pude observar
na fala de Raquel, 21 anos, sobre a importância da “bombação”:
Uma travesti de verdade tem peito, bunda, quadris e cabelão, né? Então a
“bombação” é uma questão de sorte, você pode ficar linda, maravilhosa,
ganhar até mais dinheiro ou não. Agora, só com hormônio você é uma gayrota,
um viadinho de peruca, é assim que funciona. (Informação verbal)

63
Entrevista concedida por Ariana, 27 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
130

Bela afirma estudar direito em uma instituição privada de Ensino Superior, uma exceção
à regra. Enquanto tomávamos uma cerveja em um bar na Orla de Atalaia, começamos a falar o
quanto, em seis anos, tempo do nosso último encontro, havia se transformado em uma travesti
mais segura, e, sob os padrões estéticos do grupo, afirmava-se bonita, enquanto projetava e
arqueava os ombros para cima e oralizava: “A gente tem que evoluir” (Informação verbal).

Nesse momento, perguntei a respeito do silicone industrial:

Eu: E o silicone?
Bela: Não penso em injetar, sei dos problemas que causam e outra coisa
[movimentando o corpo de forma a mostrar], estou satisfeita. (Informação
verbal)

Conversamos por mais de duas horas, sob o olhar atento dos clientes do bar, e das
conversas, que pareciam se referir a nós. Lentamente, a cada cerveja, o clima no ambiente foi
ganhando uma normalidade, sob a observação contínua do garçom, que ainda hoje não consigo
afirmar se paquerava Bela, a mim ou era, sob sua perspectiva, algo novo, ou se, ainda, obedecia
a ordens. Quando os clientes observavam, ela queria fazer selfs ou fotos comigo, como quem
tentava afirmar que éramos um casal ou amigos, talvez.

No dia seguinte, entro no Facebook de Bela para verificar se havia alguma postagem do
dia anterior, afinal havíamos feito uma dezena de fotografias. Encontro apenas uma foto da
mesa, da perspectiva em que ela a enxergava. Havia somente uma mesa de madeira de dimensão
de 2m², forrada, com uma garrafa de água mineral, uma cerveja e dois copos, um copo de
whisky vazio e sua bolsa preta. A bolsa demarcava que aquela foto era dela e foi então que
entendi. Mesmo não estando na foto, o texto falava sobre mim e me marcava. Assim, havia uma
exposição do bar, considerado de classe média, e em um jogo com o masculino que a
acompanhava, embora não houvesse uma foto, havia um hipertexto, em que, ao clicar, conduzia
à minha página do Facebook, na qual se encontram dados sobre minha vida. Então, resolvi
escrever nos comentários: “Foi tudo especial”. Depois ela responde, marcando-me: “João, você
é uma pessoa especial”.

O silicone líquido, a “bombação”, são partes do rito de passagem definitivo das travestis,
que começou com a mudança do nome. Nunca achei respeitoso perguntar qual o nome anterior,
mas algumas contaram histórias que fatalmente remetiam ao nome masculino.
131

Segundo relatos, o processo de ingestão de silicone industrial é caracterizado por fortes


dores, que são entendidas como parte da transformação para um corpo belo, como se não
houvesse beleza sem dor. E essa experiência, marcada por dores, pode conduzir à morte, que
elas próprias chamam de “Dor da Beleza”, o encontro do silicone (substância química –
polímero) com o tecido orgânico.

A travesti, para ser “bombada”, tem a área perfurada por agulhas veterinárias, em
virtude, segundo elas, da espessura do silicone, pois, trata-se de um tipo de substância com alto
grau de viscosidade e denso quando comparado ao óleo. Comumente, para aplicação de dois
litros para construção dos quadris, aplicam-se de 20 a 30 seringas veterinárias, com maior
espessura. Para reduzir a dor, faz-se uso de xilocaína ou outro anestésico.

Para alcançar a simetria entre os lados, deve-se injetar a mesma quantidade de seringas,
seguida de massagem. Cada “bombadeira” tem seu processo e forma, algumas mais rápidas,
outras lentamente.

Como se faz depende dela [bombadeira]. Cada uma tem seu jeito, aí é você
que tem que escolher qual você confia, porque não é barato. Eu mesmo, antes
de me “bombar” olhava o corpo das outras, as histórias, essas coisas. Mas
comigo, graça a Deus, deu tudo certo e eu gostei. (Informação verbal) 64

A fim de impedir que a substância escorra para a parte mais baixa, as pernas são
amarradas. No caso dos seios, chega-se a colocar uma tábua para impedir o chamado peito de
pombo. Algumas travestis morrem de ataque cardíaco, outras de infecção. No entanto, esse é o
único recurso disponível para um grupo sem maiores escolhas. Esse polímero (silicone)
constrói, assim, um corpo com outras matérias-primas.

O corpo possível das travestis, carregado de silicone líquido faz-me refletir a partir de
dois artigos publicados em 1929, e discutidos pela pesquisadora Elaine Noberto Moraes, em O
corpo impossível (p. 125, 2012):

[...] O Dr. Charles Henry Maye empenhou-se em estabelecer de forma exata


de que é feito um homem e qual é seu valor químico. Eis de suas sábias
pesquisas. A gordura de um ser humano normal seria suficiente para fabricar
uma porção de sabonetes. Encontra-se no seu organismo quantidade de ferro
suficiente para produzir um prego de espessura média e de açúcar para adoçar
uma xícara de café. O fósforo deixaria para 220 palitos de fósforo. O magnésio
forneceria material para tirar uma foto, ainda um pouco de enxofre e potássio

64
Entrevista concedida por Beleza, 37 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
132

em quantidade inutilizável. Esta seria a matéria avaliada na moeda corrente,


representando uma soma no valor de 25 Francos.

As possibilidades de racionalizar o corpo são tão diversas, como a capacidade de


mudança do próprio. Imaginemos como a contemporaneidade interfere na química dos corpos,
e as pequenas porções seriam ainda menores se comparadas ao corpo de uma travesti, que
injetou até 20 litros de um polímero chamado silicone, os hormônios, apliques de cabelo, entre
outras substâncias. No entanto, a identidade e o corpo passam a não existir nessa reflexão
química. São pós-dissecação, decompostos. Certamente, podemos também inferir sobre o
fetiche do cálculo. Assim como pessoas com os corpos tatuados vendem, em vida, a pele, que
terá um proprietário após a morte, os preços das substâncias seriam elevados, a depender do
valor percebido dos corpos/produtos. Entretanto, não há mais indivíduo, somente um sóbrio
cálculo, que reduz o corpo humano à revelação de uma fotografia, a pregos e sabonetes.

5.4 Hormônios: até a morte do corpo

“Toda travesti toma hormônio. Todo mundo sabe disso” (Informação verbal) 65
.
Enquanto o silicone sintético transforma os corpos de imediato, afinal, após a aplicação, o corpo
é moldado com delicadeza ou movimentos brutos, tomando forma instantaneamente, os
hormônios são processos lentos e agem por toda a vida.

Para Oliveira (pp. 103-118, 1994), os hormônios femininos são algumas das substâncias
disponíveis mais antigas usadas nos métodos clínicos para a transformação do corpo, sendo, a
meu ver, o rito de passagem das travestis. As doses podem ser ingeridas diariamente, injetáveis
ou em forma de aditivos. Essas substâncias são responsáveis pelas transformações do corpo
para as travestis, como o desenvolvimento dos seios, arredondamento da face, criar de silhuetas
femininas, diminuir e tornar menos espessos os fios da barba, melhorar a textura do cabelo e
pele, e deixá-la mais feminina. A ingestão de hormônio acompanha a vida de uma travesti, pois,
caso resolva parar, ocorrerá o que Ana chamou de “murchar os seios e a cara, e ficar machuda”
(Informação verbal), perdendo o contorno feminino. Assim, diferente de outros grupos, em que
os ritos de passagens são momentos específicos, para as travestis, é um processo permanente.
Algumas travestis atribuem aos hormônios reações e dores comuns à mulher. Como pontua Bia:

65
Entrevista concedida por Bela, 26 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
133

“Eu, quando comecei a tomar algestona, nos primeiros dias sentia uma dor no pé da barriga e
falei com uma mapô, amiga minha, e ela disse ‘viada, isso é cólica menstrual’. Mas claro que
não vai descer” (Informação verbal). Assim, os hormônios são produtos estruturantes na
construção do feminino para as travestis.

Como afirma Bela, a automedicação ocorre por não ter tratamento hormonal gratuito.
O uso de anticoncepcionais e pílulas do dia seguinte são a principal opção, pois contêm o
hormônio estrogênio na condição semipura.

As marcas mais consumidas são Perlutan®, Algestona® e uma infinidade de genéricos


desses medicamentos que possuem como princípio ativo hormônios sintéticos, acetofenida de
algestona e 17-enantato de estradiol. De acordo com os informantes, essas drogas ajudam a
metamorfosear o corpo de forma global. No entanto, há outros medicamentos, como o Ciclo
21, Nociclin e Microvilar (levanorgestreletinilestradiol), que são indicados para o
desenvolvimento dos seios. Como somente uma travesti utilizou serviços médicos antes de
tomar hormônios, as outras têm orientação das mais velhas. As fontes de informações, como
farmacêuticos, vendedores, são desconsideradas. Assim, a posologia parece ter sido
desenvolvida pela prática diária e antiga desse grupo. Há, portanto, as prescrições: o injetável
Perlutan, por exemplo, é aplicado comumente a cada quinze dias, nos glúteos, no braço ou no
bico do peito. Esse último local, acreditam as usuárias, deixa o corpo mais feminino.

Não há referência ao uso desses medicamentos por travestis nas suas respectivas bulas.
São indicados comumente como anticoncepcionais de uso menstrual ou para o controle de
irregularidade menstrual, explicitando o uso claro em mulheres.

Não sei da existência de medicações segmentadas na transformação do corpo das


travestis. Portanto, as substâncias que tomarão, por quase toda a vida, não são prescritas para
as travestis, não as considerando usuárias, nem mesmo contraindicam o uso, o que revela a
invisibilidade desse grupo perante o Estado, bem como a capacidade de empoderamento e
ressignificação das travestis. A aquisição dos hormônios é simples; algumas farmácias já
conhecidas vendem sem problemas e não discriminam ou, como pontua Fernanda, “cada uma
aqui tem sua farmácia, eles querem vender e nós comprar, assim, peço e pago” (Informação
verbal). Houve também relato de sonolência, mudança de humor, em consequência do uso de
hormônio. A política de preço desses medicamentos é considerada acessível pelo grupo
134

pesquisado. Há um grande número de marcas e apresentações, variando de R$ 14,30 a R$ 17,50


(Perlutan, solução injetável com 1 ampola de 1 ml). Já a marca Ciclo 21 circula em torno de R$
6,10 a R$ 8,50 (cartela com 21 comprimidos). Esses preços são praticados em farmácias do
Bairro Industrial e Corroa do Meio, em Aracaju.

Ao analisar as bulas dos produtos disponíveis no site66, pude concluir que a indústria
farmacêutica, bem como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outros órgãos
do Governo Federal, não consideram o uso de tais substâncias pelas travestis. Portanto, não há
em suas respectivas bulas recomendações para esse público, fato de conhecimento do universo
dos farmacêuticos que encontrei em duas das cinco farmácias em que fiz levantamento de preço.

Ciclo 21:
Efeitos Colaterais
Quais os males que pode me causar?

Alguns dos efeitos colaterais de Ciclo 21 podem incluir náusea, problemas


gastrintestinais, como náusea ou diarreia, alterações no fluxo menstrual, dores
e sangramento agravados durante a menstruação, manchas escuras na pele,
alterações mamárias, como aumento ou secreção, aumento ou perda de peso,
reações de alergia na pele como urticária, coceira ou vermelhidão na pele,
candidíase vaginal, alterações de curvatura da córnea, intolerância a lentes de
contato, aumento do colesterol, depressão e sangramento genital.

Contraindicações
Quando não devo usar?
Ciclo 21 está contraindicada para mulheres grávidas ou com suspeita de
gravidez, pacientes com tromboflebite ou distúrbios tromboembólicos,
alguma doença vascular cerebral ou coronariana, historial de câncer, que pode
se desenvolver sob a influência de hormônios sexuais, como câncer de mama
ou dos órgãos genitais, sangramento genital anormal sem causa aparente,
historial de tumor no fígado, pacientes com distúrbios do metabolismo
lipídico, historial de herpes gestacional, historial de enxaqueca, pressão alta
não controlada, diabetes, alterações vasculares, otosclerose agravada durante
a gravidez, pacientes com anemia falciforme e para pacientes com alergia a
algum dos componentes da fórmula.

A mesma lógica se repete com as demais medicações anticonceptivas, não há


referências para uso em seres humanos do sexo masculino. A venda ocorreu livremente, mesmo
com uma tarja vermelha com as indicações: “venda sob prescrição médica”. Interroguei um
farmacêutico em uma farmácia de Atalaia, próxima ao Terminal Zona Sul, a respeito da relação
de usuários e a farmácia, bem como sobre o livre comércio do medicamento em questão. Obtive

66
Disponível em: <https://www.minhavida.com.br/saude/bulas>. Acesso em: 12 de abril, 2018.
135

uma rápida afirmação: “Para este tipo de medicação não é necessário receituário”. O
farmacêutico foi imperativo em sua resposta. Quando perguntei se um homem poderia comprar,
ele se sentiu desconfortável. Talvez essa farmácia, por se localizar na área de circulação e ponto
de passagem das travestis, seja um ponto de venda para o público aqui referido.

Em verdade, há uma prática de venda de medicações, como anti-inflamatórios,


analgésicos e outros, sem, necessariamente, serem prescritos, mesmo com a informação de que
somente devem ser vendidos se prescritos pelo profissional adequado. No entanto, isso não
implica que diariamente se tome os anticoncepcionais, mesmo nos dias em que não são
ingeridos, injetados ou aplicados como adesivos sobre a pele, o que faz parte de uma posologia
desenvolvida pela transmissão oral. Essa forma de uso considera a transformação do corpo e a
diminuição da capacidade de ejacular: “Os hormônio dificulta que a gente goze e o cliente quer
que a gente goze… É assim, aqui!” (Informação verbal) 67. O encontro desse corpo, que deseja
se transformar, com a funcionalidade para o mercado do sexo é uma busca incessante entre as
medicações para obter ereção, os hormônios, e, para algumas, também o silicone e outros
recursos.

Essa é a relação entre esses diversos procedimentos amados ou rejeitados pelas travestis
do território de Atalaia, porém necessários por força do labor. Há uma relação de negação com
os estimulantes para obtenção de ereção. Afinal, esses fármacos são direcionados à afirmação
da virilidade, substância que simbolicamente possui uma função contrária, ou na direção
contrária aos hormônios femininos. Portanto, consideramos necessário expor, aqui, por ordem
de familiaridade entre elas: Viagra, “citrato de sildenafila, equivalente a 25 mg, 50 mg ou 100
mg de sildenafila base”68, produzido pelo laboratório farmacêutico Pfizer, importante
representante da indústria farmacêutica. Segundo a revista Forbes69, o segundo maior
conglomerado farmacêutico do mundo, há inúmeros genéricos e os preços mudarão sob duas
variáveis: quantidade por caixa e concentração. Assim, uma caixa com quatro unidades de
Viagra com a maior concentração, 100 mg, na Farmácia Pague Menos, situada na Av. Antônio
Alves, 674 – Atalaia, custa R$112,50, e uma embalagem com uma unidade de 25 mg custa R$
18,05. Esta pesquisa foi realizada no período de grande procura, segundo o balconista Luis

67
Entrevista concedida por Boca de Ouro, 34 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
68
Disponível em: <http://www.medicinanet.com.br/bula/5394/viagra.htm>. Acesso em: 12 de abril, 2018.
69
Disponível em: <http://forbes.uol.com.br/listas/2015/07/15-maiores-empresas-farmaceuticas-do-
mundo/#foto2>. Acesso em: 12 de abril, 2018.
136

(nome ficcional), domingo, 12.02.2018, sobre a qual afirmou, espontaneamente: “E você não
imagina como vende” (Informação verbal).

Todo esse universo de medicação é chamado de azulzinho, referindo-se à cor do Viagra,


e, certamente, a cor é uma representação social da virilidade. Entretanto, encontramos uma
travesti que afirma que compra, em uma feira, o Pramil, que foi proibido por ser considerado
um produto contrabandeado. Não citarei o nome do local onde vende por motivo de sigilo, onde
vende-se também, segundo Ana, 22 anos, “remédio para racha” [referência aos abortivos]. Há
uma grande variedade de medicação para essa finalidade. Inicialmente, com a quebra das
patentes, pode-se comprar o princípio ativo do Viagra por menos da metade do preço.

Essa relação inconciliável, desenvolvida por um saber do próprio grupo e, do outro lado,
a clínica, indústria farmacêutica e legislação criminal, conforme se percebe na fala de uma
informante: “Quando tomo [anticonceptivo injetável], melhor que seja injetado no bico do
peito”, cria uma dinâmica de tensão. Acredito que as travestis não buscam a conciliação com a
clínica, que representaria a perda da sua autonomia de manipulação dos próprios corpos. Assim,
isso nos leva à outras reflexões, a exemplo da pesquisadora Moraes (p. 198, 2002):

Daí a violência com que Bataille opõe uma teoria do informe à exigência dos
acadêmicos de que todas as coisas tenham forma: “na verdade, o universo não
se perece com nada e equivale a qualquer coisa como uma aranha ou um
escarro”, posto que toda forma vive e morre sem cessar de seus próprios
acidentes, precipitando o incessante jogo de deformação.
Daí também sua recusa às imagens genéricas e ideias, que responderam às
necessidades humanas de fundir as contradições num termo comum, buscando
conciliar o inconciliável. No limite da concepção batailliana, segundo a justa
observação de Didi-Huberman, “a forma só é possível como acidente perpétuo
da forma”.

O corpo das travestis do grupo estudado entende essa precariedade da condição de tornar
estáticas as transformações de seus corpos, e elas fazem uso desta como potência de construção
de um corpo identitário. Referindo-se a Didi-Huberman, Morais confronta-nos com o devir,
que aqui ajusto para a observação dos corpos. A ideia do incessante “jogo de deformação”
(MORAES, p. 198, 2002) deve ser entendido como a perda de uma forma anterior e, assim,
continuamente, não havendo uma dimensão moral nesse jogo de deformação. Talvez possamos
entender que não pode haver conciliação ou fundir as contradições, que são parte desse
movimento, já que a fusão ou conciliação seria a estagnação, a perda do movimento, a
aceitação, por parte das travestis, das travestis que são patológicas.
137

5.5 A pele é a parte mais profunda: pele, pelos e cabelos

Apesar da importância atribuída aos pelos, à pele e aos cabelos, nos relatos etnográficos,
pouco se discutem essas relações. Refiro-me às etnografias de Neuza (1994), Beneditti (2005),
Silva (2007), Don Kulick (2008) e Veras (2017). As travestis, profissionais do sexo no território
de Atalaia dedicam parte do dia na construção dos seus corpos por meio da relação com os
pelos, cabelos e pele.

O cabelo possui uma representação simbólica que povoa a linguagem, ora do corpo, ora
das expressões, como “bater cabelo” ou “jogando os cabelos”, referências a ações entre as
travestis, e no mundo gay. Como explica Dany, 23 anos: “É um show! As drag fazem um
movimento com o cabelo. Elas fazem com o pescoço, fazendo um giro total, girando pra um
lado e o outro, só que isso é muito rápido” (Informação verbal).

Essa parte da performance é comumente acompanhada de uma batida que define o


ritmo. Usualmente, uma reprodução sonora oriunda da música eletrônica ou um remix, utilizada
em apresentações das travestis e transformistas. Por ser o momento do apogeu, a cabeça
rodando, o cabelo e a luz criam uma ambiência, como algo que leva o público, por vezes, a
gritos e aplausos.

Quanto ao uso da expressão “bater cabelo”, no cotidiano das travestis pesquisadas,


refere-se, como Dany afirma, a “um tipo de desaforo”. Também os termos “jogar o cabelo”
terão significados diferentes a depender da cena da qual se faz uso, podendo expressar exibição
ou afrontamento.

Para Bela, “O cabelo [longo] deixa a gente mais mulher” (Informação verbal). Assim,
as travestis, como identificado em 2013, quando começam a fazer programas ou como forma
de manipular a percepção dos seus corpos, usam uma série de recursos ligados aos cabelos,
entre os mais comuns: peruca, apliques, megahair.

No ato da prostituição, os cabelos são um tipo de véu, associado à iluminação noturna.


Eles ressaltam a face ou a escondem ou, ainda, ao jogar o cabelo todo para um lado e inclinando
o seu corpo lateralmente, procura-se ser sensual e conquistar o cliente.
138

Durante o primeiro período de vivência, em 2013, duas cores prevaleceram: castanhos


e loiros. Já na última fase da coexistência com as travestis, castanhos escuros, quase pretos, e
loiros, passando a mesclar-se com grande variedade de pigmentos. Quanto ao tamanho, os
cabelos passaram a ser um pouco mais curtos, porém ainda nos ombros ou abaixo. Suponho
que, quanto maior, mais custos, além de serem uma fragilidade em caso de conflitos.

Os cabelos são predominantemente lisos, seguindo uma referência estética. Utilizando


a mesma nomenclatura de Nilma Lino Gomes (p. 41, 2012), denominarei de crespos os cabelos
das travestis oriundas de populações com ancestralidade africana. As travestis entrevistadas não
se definiram como negras e não houve incidência de travestis com penteados afros, dreadlocks
ou algo que remetesse ao universo étnico afro. Tal fato parece-nos ser remanescente do
preconceito racial existente, no caso, em Aracaju. Afinal, como mencionamos, a capital é
idealizada como uma cidade livre, construída, assim, em oposição a São Cristóvão. A ideia de
“livre” remete à sua oposição, que é a escravidão do povo negro.

Os cuidados com os cabelos é algo permanente. As travestis atribuem aos hormônios a


melhora da textura, impedindo a queda, segundo Ana, 22 anos: “Eles [hormônios] deixam os
nossos cabelos mais femininos, sabe, né?” (Informação verbal).

A importância do cabelo é tamanha e o cuidado é permanente: hidratação; dias


específicos para lavar; cor cuidadosamente escolhida. Algumas usam castanho escuro com
“luzes”, um tipo de clareamento distribuído em uma pequena parte dos fios. O resultado é um
grande universo de cabelos escuros e alguns fios claros.

Os cabelos compõem a identidade das travestis. Não se imagina uma travesti sem
cabelo, e o uso de perucas não é bem visto por elas. Quando se referem a uma delas que ainda
não possui os atributos do corpo, como seios, chamam-na de “gay de peruca”.

Por vezes, ao chegar ao território das travestis, em Atalaia, movimentando-se de um


lado a outro, seus cabelos faziam parte de uma dança, no jogo de sedução. É parte da identidade
também desejada pelos clientes. Como afirma Ana: “Os clientes querem a gente arrumada, com
um carão e cabelão, mas não querem pagar mais de 50,00 reais [...]” (Informação verbal).
139

As travestis costumam cuidar de seus cabelos, pelos e pele em casa. Fazem selagem
(tipo de tratamento no fio do cabelo), hidratação e uma série de procedimentos. Algumas, a
exemplo de Bela, trabalham em salões. Na verdade, foi o único caso catalogado. Há uma troca
de informações durante os encontros, fofocas, briga por namorados, cabelo, hormônios
presentes nos anticonceptivos. As redes sociais são usadas para escolher cortes de cabelo, ver
outras travestis que passaram pelo território e estão na Europa ou em outras capitais,
representando um tipo de referência estética bem-sucedida, criando, assim, uma grande teia de
comunicação e influência virtual.

A preocupação com os cabelos não se restringe ao universo das travestis. As mulheres,


parte desse outro universo, também buscam um ideal de beleza por meio dos cabelos. No
entanto, acredito que a diferença seja os ritos, o que relaciono ao poder aquisitivo, tanto no
universo feminino como no universo das travestis pesquisadas.

Enquanto os cabelos são bem-vindos e cuidados, os pelos são rejeitados. Durante a


entrevista com Nina, 19 anos, ela pegou minha mão e passou em sua face e seguidamente falou:
“Eu não tenho cara de chuchu, não tenho pelos e não faço nada, graças aos hormônios”
(Informação verbal). Os pelos do corpo são retirados, principalmente os da face. Estes são os
mais incômodos, pois remetem facialmente ao masculino.

O uso de pinças mostrou-se como o método mais utilizado. Também são empregados
cera quente ou fria e um creme que, segundo as pesquisadas, também serve para a depilação.
Muitas delas comumente não fazem uso do aparelho de barbear e creme para barba. No entanto,
utilizam-no para a depilação das pernas, braços e outras partes do corpo, mas sem cremes
espumantes, algumas salientaram usar hidratante. Especulamos essa informação por habitar o
imaginário desse grupo um objeto masculino, como um rito viril.

Existe um pequeno grupo que opta por descolorir os pelos com água oxigenada pura ou
associada a outros descolorantes em exposição ao sol. Esse processo causa a descoloração dos
pelos e um bronzeamento, valorizando-se as marcas do biquíni, através das roupas, nos pontos
de programas.

A maquiagem é um grande adereço para melhorar a textura da pele, no caso, o rosto. É


comum o uso de base e corretivos, deixando uma face lisa e com uma textura mais próxima de
140

um ideal feminino. “Gosto muito de usar base, porque às vezes fica um pouco inflamada a pele,
quando eu retiro [pelos da face] com pinça ou dou um beliscão sem querer” (Informação verbal)
70
.

Os pelos que cobrem os dedos na parte inferior, ou chamada pela ortopedia de


articulação proximal, também são retirados com atenção e preocupações, e mesmo as que
utilizam despigmentação nas pernas e braços não possuíam pelos nessa região. Quando
questionado o porquê, Bela, 22 anos, diz: “Nascem pouco e acho que é mais feminina a mão
assim (aproximando a mão do meu rosto delicadamente)” (Informação verbal).

As sobrancelhas são desenhadas delicadamente, comumente com pinças, não havendo


um padrão, grossas ou mais finas, pontuadas, curtas ou arqueadas. Há uma busca por compor
um padrão de face que dependerá do tipo de rosto e da autoimagem das travestis. No entanto,
o instrumento é o mesmo; houve relatos de uma travesti que fez com cera. Enquanto algumas
detêm a tecnologia de fazer as sobrancelhas, outras fazem nas amigas gratuitamente ou por um
montante menor que o cobrado em salões. Associa-se a esse fato o conforto da não exposição
em salões femininos.

A etnografia realizada por Marcos Renato Benedetti (2005), em Porto Alegre, também
foi marcante a presença da relação entre a depilação e o uso de pinça. No entanto, parte das
travestis de Aracaju não consideram a existência da barba como um estorvo; mesmo chamando
de chuchu, pareceu-me um processo aceito nessa dialética do corpo, sendo, claro, incômodo.
Assim, durante parte do dia, mais especificamente, às tardes, uma pinta as unhas, outra com
uma pinça puxa os fios da face, que na noite será coberto com corretivo, se possível, e base.
Após longa observação do cotidiano, pude notar que as travestis são tomadas por uma
consciência de que seus corpos dialogam prioritariamente com o universo feminino. No entanto,
não desejam sê-lo. Desta forma, há elementos que o campo da biologia atribui ao masculino,
como os pelos na face. Estes fios estarão lá, assim, reflito, adiar, criar repulsa ou nojo seria mais
sofrimento que estratégia de solução. Todavia, é possível encontrar travestis que mostram
profundo incômodo. Não sei se todas que expressaram esse sentimento, mesmo sendo minoria,
realizavam uma performance ou era um sentimento verdadeiro, nunca saberei. Neste aspecto,

70
Entrevista concedida por Paula, 23 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
141

entendo os pelos da face diferentemente das análises feitas por outras etnografias, como as de
Kulick (1997), Beneditti (2000), Denizart (1997), Silva (2007). Para Beneditti (p. 8, 2005):

Várias técnicas são desenvolvidas e acionadas para dar conta do problema e


diminuir o ciclo natural de produção de pelos pelo organismo. A pinça é um
instrumento básico de qualquer travesti e é muito difícil encontrar alguma que
não carregue consigo esse instrumento na bolsa. Ela pode desempenhar duas
funções básicas: acabar com a barba e modelar a sobrancelha. A barba é
arrancada fio a fio com o auxílio da pinça (às vezes sem o uso de um espelho),
num trabalho minucioso e paciencioso.

O desejo de tirar os pelos que cobrem a face com técnicas definitivas, como laser ou
eletrólise71, não se mostrou uma prioridade, visto que a ingestão de substâncias com hormônio
feminino diminui a espessura e quantidade desses pelos. A compra de hormônios, a colocação
de seios, cabelo, tratamento de pele, sapatos, bolsas e roupas sempre estiveram presentes entre
as aspirações, na construção dos corpos das travestis, quando comparados com a eliminação de
tais pelos, mediante técnicas definitivas e onerosas ao universo investigado.

Não utilizamos o nome barba, não obstante seja de mais fácil compreensão para o leitor,
pois as travestis não se referem assim aos pelos da face. Afinal, barba é um marcador masculino.
Pelos da face, chuchu ou estes/esses pelos (apontando para eles) foram os termos usados para
tal. Portanto, a preocupação em nomear seus corpos ou partes deles sob a perspectiva delas é,
para mim, a construção da identidade, seja por aquilo que foi expresso, omitido ou esquecido.

É na pele que pelos e cabelos nascem e crescem. Também a pele possui suas memórias
e experiências. Para Luiz Mott e Aroldo Assunção (pp. 43-44, 1987), a automutilação é uma
forma de autodefesa e manifestação, uma prática muito comum. Eles apresentam relatos
colhidos em várias fontes documentais, entre elas, uma do jornal Última Hora, do Rio de
Janeiro, em 17.08.1982, em que a travesti chamada Vera Fischer, também do Rio de Janeiro,
afirma: “Quase todos os travestis da Galeria Alaska têm o corpo marcado por gilete ou navalha”.
Pela vasta pesquisa realizada em diversas fontes e regiões, não parece ficção que, nos anos
1980, tal fato fosse uma realidade, e que possivelmente ainda permaneça.

71
Esta técnica é pouco conhecida e por isso temos poucos estudos quanto a real eficácia do mesmo, segundo o
pesquisador Wilkinson e Moore (1990), a eletrólise é o método mais eficaz de depilação podendo-se até chamar
depilação permanente, das áreas do rosto e pescoço. Disponível em:
https://esteticacomesteticista.blogspot.com/2016/09/depilacao-por-eletrolise-depilacao-lase.html. Acesso em 12
de dezembro, 2017.
142

As travestis, em Aracaju, não se mostraram adeptas a essa prática. Pude observar


algumas marcas nos braços, orelhas e relatos de que se tratava de algum tipo de violência
sofrida. No entanto, a autoflagelação não foi registrada. Segundo Boca de Ouro, suas marcas
eram fruto de brigas com outra travesti em Maceió, assim como a dilaceração da parte inferior
da orelha direita, causada por um golpe abrupto, o qual arrancou o brinco.

As marcas dessa automutilação podem ter sido substituídas por outras, como as
expressões de cansaço por horas de trabalho à espera de um cliente, pois, como relatado, no
período último etnografado, de 17 de novembro a 17 de fevereiro, pela presença ostensiva da
Força Nacional, ao repetir rondas sistematicamente, os clientes praticamente desapareceram,
certamente com receio da visibilidade.

O mercado de prostituição privilegia as travestis mais jovens, que possuem uma cútis
conservada, o que é um desejo desse universo, pois, apresentando-se como mais jovens, o
faturamento é maior. Esse universo de pessoas atribui aos hormônios um poder rejuvenescedor,
uma capacidade de alisamento da pele. O uso de hidratantes e óleos durante o programa também
foi constatado como forma de atração, principalmente os óleos:

O óleo Seve [um óleo da marca Natura, com custo em catálogo de R$ 74,90;
na internet, pode chegar na faixa de R$50,00 em promoções] deixa a pele
maravilhosa, agora é aquela coisa, eles não gostam. Porque tem cheiro e aí é
bafon quando chega em casa, né? (Informação verbal) 72

Em 2013, no primeiro momento da pesquisa, em visita às casas das travestis,


identificou-se a presença de cosméticos para pele, cabelo, unhas.

É também na pele que podemos perceber uma diferença quando se compara com o
primeiro momento da pesquisa. As travestis possuíam tatuagens, no entanto, em lugares
discretos e menores. Nessa última imersão, as tatuagens continuam com as mesmas temáticas:
pássaros, borboletas, nomes, tribais, entre outras figuras menos presentes. Todavia, os corpos
passaram a possuir uma maior quantidade delas, em tamanho e em lugares mais expostos, no
entanto não podemos afirmar ser unanimidade, e sim em maior frequência. As tatuagens
migraram para as panturrilhas, antebraços, e nas costas ganharam maiores proporções,
principalmente nas mais jovens ou quase exclusivamente nelas. Talvez esse fato sinalize uma

72
Entrevista concedida por Alice, 17 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
143

troca cultural entre o universo das travestis e a tendência urbana de “riscar o corpo”, como tem
sido chamado. As figuras ou representações imagéticas, por sua vez, circundam o que foi
estabelecido como feminino: pássaros com ramo no bico (1 tatuagem), flores (3 tatuagens),
borboletas (2 tatuagens), nomes (2 tatuagens). Salientamos que, no primeiro momento do
trabalho de campo, em 2013, não estava tão atento a esse aspecto. Todavia, continuarei com os
sentidos mais aguçados.

As unhas são pintadas com cores variadas, desde as mais sóbrias até uma coloração de
nome “Vermelho 40 graus”. Aqui notamos uma diminuição de unhas grandes, como ícones de
beleza, para unhas medianas. Em ambos os casos, são muito bem cuidadas. Há unhas com
estrelas, corações, carinhas e até uma combinação psicodélica entre o esmalte e o verniz.

Batons são, sem a menor dúvida, o bem de adorno do corpo mais utilizado, assim como
rímel e blush, os quais, nesse território, não possuem a mesma importância que o batom. As
bases e os corretivos mostram-se sempre presentes em suas casas, fazendo parte do rito de se
preparar para a “batalha” (termo comum usado pelas travestis, ao se referirem ao trabalho de
prostituição). O corretivo tem menor importância do que a base. Assim, por vezes, somente a
base, o batom e o lápis.

Tudo dependerá, em parte, do dia da semana e o período do ano. Finais de semana e às


quartas-feiras, havendo jogos do Brasileirão, há uma preocupação maior com a apresentação
do corpo. Portanto, há um investimento maior em maquiagem. O mesmo investimento em
tempo, capital e expectativa ocorre no período das festas juninas, data em que Aracaju recebe
mais turistas, se comparado com outros períodos do ano.

As travestis mostraram que, quanto maior a idade, maior a preocupação com a


apresentação. Certamente, dois fatores são influenciadores: (i) a geração; e (ii) a perda da
jovialidade, elemento valorizado pelos clientes.

A geração das pesquisadas que possuem 30 anos ou mais é oriunda de um grupo social
com menos informação no início dos seus processos de metamorfose, e de quando as
medicações eram menos variadas. Com a presença da internet, mais especificamente, a internet
2.0, gerou-se a possibilidade de criação de redes sociais descentralizadas. Assim, a
transformação do corpo, nos últimos 15 anos, tornou-se um pouco menos difícil, com a entrada
144

dos genéricos, que significa menor custo. Quanto aos hormônios, houve uma melhora dos
processos em virtude da comunicação, alcançando resultados mais satisfatórios. Todavia, com
a perda da jovialidade, requer-se mais cuidado para manter-se sob o padrão de beleza
demandado pelo cliente, ser atraente e competitiva.

Parte dos clientes que frequentam o território aqui vivenciado e estudado mostrou-se
inclinada a preferir as travestis jovens, em uma atitude que podemos considerar que beira, sob
a ótica jurídica, a pedofilia. “Tenho que me cuidar, porque, você bem sabe, quanto mais velha,
mais difícil; tem travesti que diz ter 16, agora, eu não sei, mas ninguém tá nem aí.” (Informação
verbal) 73

A questão que se delineou a partir desses anos de observação diz respeito à mudança
dos corpos, à diminuição da quantidade de silicone (método quase irreversível), e à redução de
medidas dos corpos, como os quadris, glúteos e busto.

As mudanças observadas entre novembro/2017 e fevereiro/2018 revelam um novo


universo de questões. A construção do corpo é um processo social, sendo, alguns grupos, mais
permeáveis. Quando comparamos com o ano de 2013, aproximadamente cinco anos atrás,
considero pouco tempo para uma mudança tão significativa, pois o corpo é o grande patrimônio
material e simbólico. Essa mudança já poderia estar ocorrendo em outros pontos do País ou na
Europa, incentivada pelo acesso fácil à internet, estabelecendo mais relações e, portanto,
maiores influências.

O Facebook é a rede social mais utilizada para marcação de programas. No entanto,


navegando pelo perfil de Bia, 18 anos (com consentimento dela), que nasceu em Arapiraca
(Cidade com um dos maiores números de homicídios e que ocupa no imaginário dos
aracajuanos o lugar de destaque de uma das cidades violentas de Alagoas), pude facilmente
observar as postagens e fotos, estabelecer conversas pelo Messenger, traçando certo
mapeamento das cidades. Encontramo-nos, no território de Atalaia, Aracaju, no dia 23.12.2017.
Em seguida, ela foi para Arapiraca, onde nos falamos pelo Facebook, e afirmou que estava
atendendo somente por esse aplicativo. Depois ela foi para Maceió. No dia 04.04.2018, em

73
Entrevista concedida por Bela, 22 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
145

conversa pelo aplicativo Messenger, fui informado de que Bia se encontra novamente em
Arapiraca, onde ficará até junho e, depois, São Paulo, capital, será seu próximo destino.

O comportamento nômade é comum por parte das travestis no território pesquisado,


associado ao uso da rede mundial de computadores como principal ferramenta de comunicação,
mais especificamente as redes sociais. Certamente, as trocas realizadas influenciam os padrões
estéticos. Quando uma travesti morre em Cuiabá, por exemplo, por “bombação” ou por
violência, a notícia rapidamente corre pelas linhas do tempo do Facebook das travestis.
Também são fornecidas informações sobre cidades onde há espaço ou contatos com cafetinas.
Assim como Orlando (WOOLF, 2014) busca sua identidade nesse movimento nômade de
tempo, gênero e espaço, as travestis também o fazem. Afinal, como possuir um corpo todo feito
sem recursos financeiros? Assim, a procura por outros espaços para prostituição é constante.
Esse fato não se restringe apenas às trabalhadoras em Atalaia.

Portanto, mesmo não analisando o perfil dos usuários dos serviços de prostituição, pois
não é esse o objetivo da presente pesquisa, entendo como válido visibilizá-los, considerando o
que afirma Kulick (pp. 171-173, 2008) sobre os clientes em Salvador: são os mais diversos,
desde idade, poder aquisitivo e desejos, o que se aplica aos clientes no moderno bairro de
Atalaia.
Nesse universo de identidades, é relevante a etnografia realizada por Duque (2011) com
as travestis adolescentes em Campinas/SP, as quais possuem trânsito entre os gêneros, podendo
montar-se e desmontar-se, e têm na prostituição, assim como as de Atalaia/Aracaju, o meio
principal ou único de trabalho. No entanto, esse tipo de construção de identidade não foi
identificado no território de Atalaia, bem como em outros territórios de prostituição, em
Aracaju.

Ao refletir sobre a cultura das travestis, eram esperadas mudanças, pois sabemos que a
cultura não é um elemento estático, e, sim, uma profusão de dinâmicas e movimentos. Novos
atores e novos valores. Assim como o fragmento do poema de Ovídio, Metamorfose, que
intitula o livro de Leite Jr., Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias
“travesti” e “Transxexual no discurso cientifico” (2011).

5.6 Do gestual à indumentária: a metamorfose


146

Mas tem vezes que a sincronia da minha passagem com esse rio soa estranha
demais, me deixa insegura, agride. E tem vezes que, nessa insegurança, surge
alguém que gosta de mim, e de quem gosto, pra perguntar como é que aguento,
como é que eu deixo e não vou lá cuspir na cara infeliz. Como é que eu aguento
é assim, fazendo a pêssega. Porque se eu percebo o que se passa ao redor, a
forma como me olham, o quanto a minha figura não faz sentido, aí é me trancar
no quarto e chorar. Como ontem. (MOIRA, p. 29, 2016)

Nas narrativas, observações e diálogos, é expressivo o número de travestis, que afirmam


que encontram no gestual, e depois nas roupas, o desejo de se tornarem travestis. Não se nasce
travesti, torna-se. Para tanto, ouviam CDs e assistiam a clipes e DVDs de cantoras como Mariah
Carey, Sher, Madona, Lady Gaga; houve também referência a Maria Bethânia, novelas e suas
atrizes, bem como filmes. Revistas como Caras, Contigo e outras revistas de fofocas também
são consumidas. A internet quase sempre é reduzida a redes sociais, com a finalidade de se
apoderar do jeito dos famosos, o glamour, saber o que eles usam e como se portam, como se
sentam e o que comem, construindo, assim, um ideal de feminino a partir do consumo de
produtos de massa.

A roupa e o gestual, os movimentos de corpo, são quase indissociáveis. Pareceu-me,


durante o convívio, na primeira imersão, que, dependendo da roupa, alguns movimentos eram
privilegiados. A exibição da bunda na pista, por exemplo, para as travestis, é um bom atributo,
e, para isso, usam shorts customizados que exibem de forma marcante dessa parte do corpo. O
mesmo se aplica aos seios, à mostra ou com grandes decotes sustentados e projetados por sutiã
com estrutura e partes metálicas na área inferior, também chamada de bojo.

As roupas são associadas ao gestual; as calças, ou bermudas, quase sempre


customizadas, fazem com que algumas travestis escondam o pênis entre os testículos,
projetando para baixo. Algumas chegam a colocar calcinhas apertadas. As calcinhas string são
as mais usadas, por possuírem a parte inferior mais larga, algo que facilita a acomodação dos
órgãos genitais, e “alças” finas, podendo ser expostas como elemento de sedução. Esse ato é
comumente chamado de aquendar74, enquanto outras escolhem camisetas ou outras vestes um
pouco mais longas, que deixam o falo imperceptível. Salienta-se que, diferentemente dos
transgêneros, as travestis não negam o falo, trata-se de uma forma de lidar com ele.

74
Palavra pertencente ao dialeto Pajubá, que é constituído pela relação entre a língua portuguesa e termos e
expressões das línguas africanas ocidentais, comumente usadas por religiões de matrizes africanas, como o
candomblé. Também usadas pela comunidade LGBTQI+.
147

Em campo, por diversas vezes, pude observar as travestis expondo seus “paus” aos
clientes, os quais, na maioria das vezes, preferem aquelas que possuem pênis considerados
grandes, ou os maiores.

O uso de saias ou minissaias ajuda as profissionais do sexo no momento de expor seus


dotes, antes de acordar o programa. Como afirma Bela: “De 100 homens que saio, 80 são
casados e 60 são passivos” (Informação verbal).

Os seios terão maiores ou menores decotes, a depender da importância dada pela


prostituta. Assim, as mais velhas, que possuem seios maiores, quase sempre chegaram a usar
grandes decotes no território de prostituição, em 2013. Em 2017/2018 observei uma atitude
mais discreta, em razão da presença repressiva da Força Nacional, conforme afirmou Bela:

Um policial da Força [Nacional] parou e falou; – “ela tá se prostituindo,


agora veja a diferença da roupa, você tá quase nua! Aí agride as pessoas
que passam”. (Informação verbal)

As cores e os desenhos das roupas e sandálias são também muito pessoais, não existindo
um padrão, um universo de cores, imagens ou tecidos. Posso afirmar que nunca encontrei
alguém com fantasias sadomasoquistas ou outro tipo exposto de fetiche. No entanto, estabelecer
um padrão cromático parece-me um equívoco. No máximo, o que há é o uso mais constante de
cores fortes, comumente preto. Seria para se tornar mais visível?

Acessórios, sapatos, cosméticos e bolsas são responsáveis pelos gastos de parte


considerada dos recursos financeiros das travestis pesquisadas. Quanto maior o pé, maior a
dificuldade e custo para adaptação dos calçados. No entanto, há, quase sempre, uma imposição
da identidade da travesti sobre as roupas e acessórios. Elas customizam, cortam, diminuem,
pintam, reorganizam. Algumas marcas conseguem impor sua identidade, pois são referência de
poder e distinção. Marcas como Carmin e Levis são exemplos dessa distinção. Há, também,
produtos utilizados sem alterações, pelo valor associado à marca e ao país. Por exemplo, as
roupas e bolsas compradas por travestis na Itália ou outro país europeu, presenteadas ou
revendidas.
148

Como pontuado por Benedetti (p. 84 2005), os calçados são produtos de alto custo para
as travestis, pois, comumente, possuem pés de maior numeração, quando comparado às
mulheres, fato que dificulta encontrar variedade no mercado. Trabalham geralmente de cinco a
seis horas em pé, por dia, normalmente sobre plataformas e saltos altos. Associa-se a esses
dados o fato de que os saltos são importantes na afirmação da feminidade, a ponto de Bia
argumentar: “Só repito os saltos porque é o jeito, queria ter um para cada dia na pista”
(Informação verbal).

O uso de chinelos foi observado durante o trabalho, no entanto algumas afirmam que só
calçam chinelos ou sandálias baixas quando estão com os pés e pernas doloridos ou inchados,
devido às doses de hormônios ou outros problemas de saúde. O tênis e outros tipos associados
ao esporte não foram vistos, bem como havia poucos deles nas habitações as quais tive acesso
durante o período do primeiro trabalho de campo, em 2013. Não possuo depoimentos ou outras
informações para saber o porquê. Todavia, a aceitação absoluta do salto dá-me pista de que os
tênis são fortes referências à masculinidade, à virilidade. Assim, entre escolher saltos,
plataformas ou amortecedores, o público pesquisado centrava suas escolhas nas duas primeiras.

As travestis pesquisadas evitam usar grandes argolas durante o trabalho, em razão da


violência física e assaltos. No entanto, observei, mesmo na vida privada, uma sobreposição de
brincos a argola, bem como pequenos pingentes e gargantilhas, que são usadas tanto em casa
como no trabalho. São comumente bijuterias discretas e de baixo valor monetário. As travestis
afirmam ser “Micheline” (Não identificamos a origem desse nome). Especulamos que talvez
seja uma marca que se impôs ao produto. É relevante refletir que um público com
vulnerabilidade financeira, entre diversas outras, sem linhas de créditos formais, devem
racionalizar a compra de seus bens, a fim de que possam ser usados em diversas ocasiões.
Assim, a sobreposição de brinco não nega a existência de adornos como piercings ou argolas.
No entanto, não encontramos estas últimas no limite do campo.

A construção dos corpos não se limita ao corpo em si, obviamente. O andar com as
bolsas pequenas, em um lento desfile até o ponto, ou usado como arma para afrontar outra
travesti, brincar ou paquerar homem que tenha despertado desejo, gesticulando-a, batendo com
a mão, gritando “e aê?”, tudo isso faz parte da construção identitária.
149

Quanto ao tamanho das bolsas: “É melhor essas pequenas [apontando para a bolsa que
portava, de couro marrom], de repente essas mariconas não querem parar [o veículo] porque
acha que estou com uma arma aqui dentro.

Quando indagada o que há na bolsa, Daniela diz: “Batom básico, celular,


identidade, o dinheiro da noite e camisinha.”(Informação verbal) 75

No entanto, há sempre outras bolsas de tamanhos variados e cores para outras ocasiões,
e para combinar um ou dois calçados. Experienciando essa relação no rito de compra, para cada
bolsa deve haver um ou mais calçados, ou para cada calçado deve haver uma ou mais bolsas.
Essa associação pode ser percebida acompanhando Érica a uma loja feminina localizada no
bairro da Coroa do Meio, próxima à residência dela, no primeiro momento da etnografia, em
2013. Após olhar e experimentar a bolsa, demonstra a todos que adorou, afirmando: “não tenho
um salto que combine.” (Informação verbal). Não comprou.

75
Entrevista concedida por Daniela (Não informou a idade). [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju,
2018.
150

5.7 Do silicone à indumentária: a construção dos corpos

Demorei um longo período construindo e refletindo sobre a estrutura de apresentação


da etnografia, buscando o não cartesianismo ao definir as transformações dos corpos. Talvez
este seja o momento de afirmar que nada acontece em tópicos nem separadamente. Há uma
relação entre os processos de transformação dos corpos. Entretanto, cada ser, pelas mais
diversas causas, possui seus processos, seu metamorfosear-se. Não poderia olhar, sentir os
corpos das travestis pesquisadas, em parte, como aquele que os disseca, a exemplo da clínica
com seus métodos cartesianos, pois tal tentativa de aproximação seria, em verdade, um
distanciamento sob a perspectiva do grupo pesquisado.

Os aspectos e ritos dos corpos metamórficos descritos até aqui estão culturalmente
imbricados. Não somente porque uma das pesquisadas injeta 300 mililitros de silicone
industrial, o que mudará os decotes e números do sutiã, mas porque muda sua autoimagem, seu
lugar no grupo e o preço do programa, que pode aumentar dependendo do resultado.

A construção do corpo é um ato de distinção no grupo, o que não posso afirmar para os
aracajuanos, porém, para parte dessa população, quanto maior a metamorfose na estética que
as travestis constroem, maiores serão as expressões dos estigmas. Refletindo sobre o conceito
de monstro, de Foucault (2001), essas transformações são entendidas sob o olhar da
monstruosidade. No entanto, elas são apoiadas pelas colegas, amigas e namorados nas
discussões sobre “bombação”, e quanto de polímero deverá injetar, como ficarão, tudo isso,
como afirmado anteriormente, está sempre presente.

Não há uma homogeneidade sobre o corpo perfeito, são ideias de corpos perfeitos, em
que cada qual possui sua relação de verdade sobre a perfeição de si. Há, contudo, elementos
que, logicamente, as constroem como grupo. Referindo-me ao grupo pesquisado e abstraindo a
ordem apresentada, posso supor que: o território, a prostituição, um ideal de beleza centrado no
universo feminino, o desejo de não amputar o pênis e a concentração do capital financeiro
investido na construção do próprio corpo são elementos que as regem.

Nessa perspectiva, Georges Bataille, ao construir o verbete sobre metamorfose, torna


perceptível, no processo de construção dos corpos das pesquisadas, o que ele chama de
desburocratização. “Não seria necessário ir ao jardim zoológico: por exemplo, quando os
151

animais vêem [sic] surgir a multidão de criancinhas seguidas por papais-homens e por mamães-
mulheres”.76 Para Bataille, a metamorfose é uma necessidade humana que chega a ser
confundida com nossas necessidades como animais:

Podemos definir a obsessão da metamorfose como uma violenta necessidade,


confundida, aliás, com cada uma das nossas necessidades animais,
estimulando um homem a se afastar de repente dos gestos e das atitudes
exigidas pela sua própria natureza humana: por exemplo, um homem no meio
dos outros, num apartamento, atira-se de bruços e vai comer a comida do
cachorro. Há assim, em cada homem, um animal fechado numa prisão, como
um prisioneiro, e há uma porta que, se entreaberta, permite que o animal saia
rua afora, como o prisioneiro ao encontrar a saída; então, provisoriamente, o
homem cai morto e a besta se comporta como uma besta, sem nenhuma
preocupação em provocar a admiração poética do morto. É neste sentido que
observamos um homem como uma prisão de aparência burocrática.77

Utilizando Bataille, criamos novas perspectivas sobre a construção dos corpos do grupo
pesquisado ou, ao menos, sentimos sob outras bases, certamente menos rígidas e viscerais, a
metamorfose. Podemos, como a porta que se abre e sem o interesse ou desejo da aprovação do
percebido morto, transformar seu corpo com a “violência necessária”. Dessa forma, distante de
uma “aparência burocrática”, restando a aproximação de um ser animal, uma besta.

Desse sentir e vivenciar o excesso, em campo, sob a perspectiva de Bataille, ou como


os dispositivos transgressores são acionados pela proibição, constroem-se relações entre forças
oponentes, que “excedem o pensamento e o discurso” (BORGES, p. 7, 2011).

5.8 Os relacionamentos afetivos com os “homens da casa”

76
Disponível em:
<https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/33140404/Poiesis_13_verbete.pdf?AWSAccessKeyId=A
KIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1523580089&Signature=dRrFSZgnDKpA4IL8%2Bc3aCy6tBo0%3D
&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DO_verbete_o_dicionario_e_o_documento_Uma.pdf>. Acesso em: 12
de abril, 2018.
77
Disponível em:
<https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/33140404/Poiesis_13_verbete.pdf?AWSAccessKeyId=A
KIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1523580089&Signature=dRrFSZgnDKpA4IL8%2Bc3aCy6tBo0%3D
&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DO_verbete_o_dicionario_e_o_documento_Uma.pdf>. Acesso em: 12
de abril, 2018.
152

Há uma larga pesquisa sobre prostitutas, não somente no Brasil como em todo o
Ocidente. No entanto, pode-se facilmente mensurar que essas investigações estão focadas no
trabalho, questões de saúde, gênero, segundo pesquisa realizada por Kulick (p. 113, 2008).
Talvez, este fato se justifique pela etnografia de Magnor Ido Müller, intitulada “Lá em casa a
gente conversa!”: conjugalidade e masculinidade dos maridos das travestis, ao coletar a fala
de Caetano, por meio de entrevista, referindo-se à conjugalidade com as travestis, na qual
desvela o universo de dificuldades, também sofridos por eles: ‘Caetano afirma: “coragem
mesmo é poder dizer sim!”. A referência da música se propõe a sinalizar para situações nas
quais “Uns Dizem Sim”, ou seja, para os homens que decidem formar aliança com uma
travesti.’ (MÜLLER, p. 69, 2015)

As travestis que trabalham como profissionais do sexo em Aracaju são vistas como
prostitutas, mesmo no momento em que não estão na batalha, o que poucos estudos
constataram, conforme levantamento realizado por Kulick (2008). Portanto, carregam o duplo
estigma: travestis e prostitutas. O ideal de homem para as travestis reafirma um
corpo/identidade, como na etnografia realizada por Pelúcio (p. 534, 2006). Silvia (Não declarou
a idade) fala sobre o que entende por homens:
Um homem que quiser se virar pra mim... ah, já não é homem. Mulher é essa
coisa delicada. E eu sou a mulher. Uma vez, por exemplo, eu fui assim, passar
a mão na bunda do meu marido, só passar a mão, um carinho. Ele se virou
feito bicho: “tá pensando que eu sou que nem os homens que você pega na
rua, é? Eu sou é homem, não vem com essas coisas pro meu lado não”. Ele
era assim, um homem de verdade, não admitia viadagem.

Para as travestis com quem Kulick conviveu em Salvador, segundo o pesquisador, os


homens, com os quais elas mantêm conjugalidade, afirmam gostar mesmo das mulheres. Então
atribuem à saudade, à vontade ou a outro elemento que, sob a ótica do instinto, pulsa mais forte.
Assim, por fim, eles retornam ou vão em busca delas – das cis-mulheres. Podemos refletir como
esse ideal de homem afirma o distanciamento entre o corpo masculino/corpo das travestis.
Todavia, também demarca diferenças entre mulheres/travestis. No entanto, é a elas (mulheres)
que eles (homens) preferem. Essa construção talvez explique as relações conjugais efêmeras
entre travestis e seus cônjuges, no território e período pesquisados.

Ao refletir sobre a fala de Carlinhos, ao prevenir Keila para não se iludir, pois a relação
entre ambos não será para sempre, Keila afirma, conforme Kulick (2008, p. 125):
153

Eu sei que não vai, eu sei que não vai, eu sei que nada é definitivo. Justamente
quando são homens e mulheres, o que nasce um pro outro, o que Deus
determinou feito homens para mulheres, eles se separam mais dia menos dia.
Imagina dois homens com cabeças iguais que pensam diferentes. Eu sei que
não vai durar, claro.

Esse ideal de virilidade permanece no território pesquisado em Aracaju. No entanto, as


travestis não explicitaram claramente a ideia dessa finitude. Suponho que não esperam que seja
algo para sempre ou por um longo tempo. Assim, a troca de parceiros é constante. Apresenta-
se como o padrão a instabilidade, e não houve narrativas em que pudéssemos afirmar ou negar
a relação de retorno para as mulheres. Parece-me que não é parte das reflexões.

Mesmo existindo essa transitoriedade da relação, as travestis vivem paixões e amores e,


para mantê-los, buscam presentear o seu homem, dar-lhe o possível, desde moradia, quando
possível, até dinheiro. Portanto, o homem que a travesti possui é um elemento de diferenciação
dentro do grupo, sendo o centro das conversas, bem como das disputas.

Isa (Não declarou a idade), uma das travestis com que mais tive contato desde 2013, há
mais de um ano estava namorando um rapaz. Resolveram, então, se casar. Seguindo o rito, antes
do noivado já marcado, Isa descobriu que ele havia traído sua confiança e se relacionado
sexualmente com uma mulher: “Essa era minha amiga, vivia em casa. Agora, quando teve a
oportunidade deu o bote. Mas se ela acha que vou terminar, ela tá enganada, não vou desmarcar
meu noivado!” (Informação verbal).

O noivado ocorreu, e na linha do tempo do Facebook de Isa há fotos do rito, mais de


120 curtidas e mais de trinta mensagens de felicitações. Na fala de Isa não há referência ao
homem. A mulher que, como uma serpente deu o bote, a grande responsável pela traição é a
amiga, cabendo ao homem um lugar viril.

“Não há coisa alguma que persista em todo o universo. Tudo flui e tudo só apresenta
uma imagem passageira” (OVÍDIO, p. 34, 1983). A transitoriedade marca a construção dos
corpos, é parte deles, nômades e também presentes no amor. Embora Isa tenha lutado pela
permanência nesse relacionamento, há um histórico de vários outros vividos por ela, conforme
nos mostra um trecho de Ovídio, “passageiros”.
154

5.9 Do Natal ao Carnaval: considerações sobre as últimas visitas a campo

Era uma noite quente em Aracaju, um sábado. Eu, nervoso, pois o sempre inesperado
nos aguarda. Todavia, por conhecer bem o campo, ou ser tomado por essa fé, acreditava que as
mudanças não seriam tão marcantes. Diferente das demais vezes, por sentir-me mais seguro,
uso uma calça jeans, uma camisa preta e uma bota, celular, um bloco e caneta devidamente
guardados. De carro, em cinco minutos chego ao local, ao qual prefiro descer e ir andando.
Mais três minutos, uma rua à direita, estou no território das travestis em Atalaia.

Sou tomado por uma surpresa: não há quase profissionais fazendo pista. Onde antes
havia de dez a quinze travestis, agora enxergava em regiões mais escuras, duas e um grupo de
três. Depois descubro que, nesse grupo, uma era mulher e que sua mercadoria não era o corpo.

Algo havia mudado. Uma travesti, que chamaremos de Boca de Ouro, tentava
convencer-me a fazer um programa, exaltando o quanto era competente no sexo oral. Expliquei
o motivo de estar ali, que se tratava de uma pesquisa. Aos poucos, vamos acertando os passos,
tipo assim: “são dois pra lá, dois pra cá”78.

Passa a primeira viatura da Força Nacional, e Andreia, 19 anos, olha furiosa e diz: “Aí,
como podemos tá na batalha, toda hora passa um camburão desse, as bichas tão indo embora,
mas vamos ver quem tem mais paciência. Eu pelo menos não gasto gasolina” (Informação
verbal).

A pouca presença de travestis no território tornou a área perigosa para as trabalhadoras


do sexo. A relação entre elas é marcada por disputas, conflitos e também mutualismo. Havendo
poucas, os furtos e assaltos aumentaram. Então pergunto:

78
Referência à letra da música “Dois pra lá, dois pra cá”, de Aldir Blanc.
155

Cadê a antiga cafetina que morava na [no bairro] Coroa do Meio?


Boca de Ouro: Sumiu! Ela andou aprontando umas aí com o namorado e saiu
corrida. Agora a gente mesmo que cuida do nosso ponto. (Informação verbal)

As ações de repressão dos agentes públicos vulnerabiliza a condição de trabalho, ainda


mais desse universo de trabalhadoras. Enquanto conversávamos, algumas motos, carros,
pessoas a pé, paravam a mulher presente no local, trocavam algumas palavras e tudo seguia.

No decorrer dos dias, fui penetrando e conhecendo novas pessoas, com um interesse em
particular: qual a relação que esse universo pesquisado estabelece com o Natal? Para uma
grande parte de excluídos e/ou estigmatizados pelos familiares é uma data de trabalho com
maior movimento depois da zero hora. No entanto, é perceptível uma melancolia nas narrativas.
Para outro grupo, aproveita-se a data para viajar, retornando após o carnaval ou após o ano-
novo. Uma afirmou: “Vou para casa de minha mãe. Ela me aceita como eu sou” (Informação
verbal).

À medida que penetrava no território, as poucas travestis que conheci eram novas, com
exceção de duas ou três, o que me fez lembrar de Orlando (WOOLF, 2006) e seu nomadismo.
Em certo momento, fui tomado por uma angústia, ao observar aquele espaço que um dia se
expandia e agora se retraía.

Na véspera de Natal, durante a madrugada, resolvi retornar para casa. Já havia


observado que, de fato, o movimento de clientes era fraco, e depois da meia-noite, quando os
cristãos acreditam que o Menino Jesus já nasceu, alguns homens saem em busca de sexo com
as travestis. Ando, dobro a rua e estou na orla de Atalaia. Então ouço alguém gritando: “– João!
João!”. Era Anna, um pouco nervosa, dizendo haver um carro com quatro homens armados
roubando as travestis e que ela já havia perdido para esse grupo outro celular. Então, seguimos
juntos. Anna afirmou que viajaria na manhã seguinte e queria levar um pouco mais de dinheiro,
mas não havia muito trabalho.

Marcamos um encontro após o ano-novo e assim aconteceu. Em um bar de Atalaia,


alguns fatos ocorridos contribuíram para essa nova realidade. A história da queima da casa da
travesti, por exemplo, foi um elemento simbólico do grau de violência que chegou ao território.
Segundo Anna, havia uma travesti que aprontava. Às vezes, as próprias travestis estavam
fazendo programa no carro dos clientes e ela se dirigia até o veículo para roubar, inclusive de
156

seus próprios clientes, e vivia dessa forma. Certa madrugada, essa travesti, que morava em um
terreno abandonado em uma casa improvisada, teve sua residência incendiada. Não se sabe
quem foi, se os moradores, a polícia, algum cliente ou as próprias travestis. Sabe-se que ela não
morreu queimada, acordou, saiu e sumiu no mundo. Quando questionei se a polícia havia sido
chamada, ela olhou e exclamou: “pra quê, eles acham é bom, querem que a gente morra mesmo
e ela também mereceu” (Informação verbal). Essa era a segunda narrativa do caso. Acredito
que tenha sido algo marcante para as demais, também.

A tentativa cruel de homicídio como punição, realizado por alguém ou grupo que não
se revela ou não se sabe porquê, explicita a relação com o Estado ausente nesse grupo, e quando
presente, opressor. Efetivamente, não há nada novo. Esse modelo da retirada do Poder Público
e, por conseguinte, a criação de certos códigos de conduta, em que impera a lei do mais forte,
repetem-se entre as favelas, como bem contextualizado por Teresa Pires do Rio Caldeira (2000).
Podemos constatar o quanto cristalizada está a ausência – ou uma presença higienista – do
Estado, por meio da fala de Anna, ao atribuir desejo da morte ou desagregação do grupo por
parte das forças repressoras da polícia.

Aracaju não possui a tradição do carnaval. Desse modo, as poucas travestis que se
encontravam no território da prostituição dividiam-se entre dias de trabalho e dias de folia. A
festa é pequena e concentra-se em uma região mais central, Rua Barão de Maruim, estendendo-
se em direção ao Rio Sergipe, na edição de 2018. Nas edições anteriores, ocorria do Bairro
Suíça ao Bairro Cirurgia. “Ninguém fica aqui, fazendo ponto. Todo mundo vai tentar alguma coisa
na festa também ou viaja para Salvador, né? (Informação verbal) 79

A região de prostituição, em 2017, tornou-se mais perigosa, por haver menos pessoas e
pela presença de veículos ocupados por homens, aparentando alcoolizados, que gritavam
ofensas. No entanto, com a dispersão da Força Nacional e o contingente da Policia Militar para
segurança da festa e entorno, com blitz, o território criou condições mais apropriadas aos
clientes, uma vez que o carnaval é uma permissividade coletiva.

Hoje, uma hora ou outra passa uns engraçadinhos gritando e teve um carro
que parou e mandou que mostrasse as minhas partes íntimas, eu não sou daqui,
estou só no carnaval, fiquei nervosa e a rua quase vazia. (Informação verbal)80

79
Entrevista concedida por Rita, 25 anos. [Fevereiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
80
Ibidem.
157

O Rasgadinho (nome dado ao espaço da festa) é emblemático. É como se fosse um


espaço que se abre, não fazendo parte do tecido cultural da cidade. Algo rasgado encontra-se
fora da norma. Há, nesse local, uma variedade de apresentações e blocos. Contudo, diferente
de Salvador, os blocos de travestidos não ocupam espaço significativo.

As travestis presentes na festa andam comumente em grupos, como no Rio de Janeiro e


em Salvador, e algumas saem fantasiadas. Desfilam, e os homens, em tom de deboche e desejo,
paqueram-nas ou falam: “O carnaval aqui é bom, não falta homem”81

5.10 A Europa: a terra sonhada

Assim como Zeus seduz Europa, ao transformar-se em um belo Touro e raptá-la


(BRUNEL, p. 329, 1988), as travestis do bairro de Atalaia são seduzidas pelo que entendem ser
o continente europeu. As redes sociais ajudam as travestis brasileiras a mostrarem a beleza da
Europa, e as postagens delas no Youtube, em sua maioria, são otimistas:

Tenho que me “bombar” e ir para Madrid. Lá, sim, a gente ganha dinheiro!
Conheço travestis daqui ou do centro que estão bem, tem uma ou outra que é
deportada. Acho que não tiveram sorte ou não souberam fazer direito.
(Informação verbal) 82

Para as travestis pesquisadas, a Europa, ou mais especificamente Barcelona, Madrid,


Milão, Lisboa, Paris, no seu imaginário, são os territórios de produção de capitais financeiros,
simbólicos, bem como um lugar de glamour, e uma vida com mais possibilidades de outras
relações pessoais. Aquelas que já foram e retornaram com dinheiro são exemplos. Mesmo quem
não as conhece pessoalmente diz que, ao retornar, comprou um carro ou um apartamento em
um dos bairros de classe média e leva uma vida confortável. Aquelas que foram e retornaram
sem dinheiro são esquecidas, consideradas culpadas ou sem sorte por não serem bem-sucedidas.

Quanto aos cinco destinos das travestis apontados como os principais, no continente
europeu, não se demonstrou uma consciência das várias outras culturas e países, ora porque é
demasiadamente difícil sua permanência, ora porque a transmissão de informação passa pela

81
Entrevista concedida por Andreia, 24 anos. [Fevereiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
82
Entrevista concedida por Cintia, 21 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
158

oralidade e redes sociais, suponho. Investiguei três destes: Lisboa, por três vezes; Madrid, por
uma vez; e Paris, por uma vez. Sempre com tempo de permanência variado, dedicado a fazer
contato com as travestis brasileiras.

Utilizando a rede mundial de computadores, descobria, quase sempre pelas páginas


policiais dos periódicos, quais as localizações onde as travestis faziam prostituição. Foi assim
que cheguei a uma delas, em um bairro em Lisboa, conhecido como Conde de Redondo.

Por encontrar-me residindo na cidade de Porto, por oportunidade, incluí essa cidade na
pesquisa. Pelo fato de as travestis, em sua maioria, serem nômades, buscamos identificar nas
travestis de Porto, Lisboa, Madrid e Paris suas impressões, sentimentos, sob a ótica das
entrevistadas, considerando as experiências de viver e trabalhar no Brasil e na Europa, com um
único propósito metodológico, responder à questão: Por que parte das travestis, que trabalham
como prostitutas no bairro de Atalaia em Aracaju, Sergipe, nutre um sentimento de esperança
pela Europa como o destino de possibilidades? Talvez responder essa questão possa parecer
simples. Todavia, mostrou-se enriquecedora, a vivência, e novas questões foram construídas.
Afinal, esse foi um aspecto presente durante os seis anos de vivência com as travestis, com
intervalos de tempo, em razão da distância entre São Paulo e Aracaju.

Eu ainda vou para Europa. Lá dá para ganhar mais e dizem que eles adoram a
gente. Aqui, só querem pagar uma mixaria, além do perigo. O problema é ter
como ir agora, lá faço minha vida e até caso, se brincar [risos]. (Informação
verbal) 83

A questão de migração das travestis, não só de Aracaju, apresenta certa complexidade.


Assim, ao tratar desse assunto, partiremos do conceito de Sayad (p. 14, 1988) para emigrante e
imigrante:

[...] o que chamamos de imigração, e que tratamos como tal em um lugar e em


uma sociedade, é chamado, em outra sociedade ou para outra sociedade, de
emigrante; como duas faces da mesma realidade, emigração como a outra
vertente da imigração, na qual se prolonga e sobrevive, e que continuará
acompanhando enquanto o imigrante, como duplo do emigrante, não
desaparecer ou não tiver sido definitivamente esquecido como tal.

A condição das travestis é essa duplicidade, que encontra inúmeras barreiras para
romper com esse lugar de não pertencimento, como aquelas que saem de uma realidade e
aportam em outras culturas, na sua maioria, desprovida de informação e dinheiro como

83
Entrevista concedida por Andreia, 24 anos. [Fevereiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
159

emigrante. Essa questão social as vulnerabiliza, colocam-nas submetidas a acordos financeiros,


como o relatado pela etnografia de Maria Cecilia Patricio (2008).

A pesquisadora apresenta dados sobre as travestis de Recife, que se endividam em até


14 mil euros. Após serem selecionadas, considerando as que são mais atrativas e possuem um
pênis maior, são levadas, comumente no período do carnaval, época, segundo relata, de maior
facilidade de entrada na Espanha. Posteriormente, passam uma longa jornada nas zonas de
prostituição ou Trottoir84, como se chama na Espanha. Embora essa palavra seja de origem
francesa, o uso do termo deve ser originário de “fairele trottoir”, expressão utilizada pelas
prostitutas em Paris, talvez em toda a França, que significa, “andar na calçada procurando
clientes”.

Trabalha-se uma semana para a chula ou cafetão/cafetina e outra para si mesma. A


dívida é paga pelo trabalho da semana, em que os recursos são destinados às travestis, e que é
resultado do transporte, dinheiro para entrada no país, recepção, alojamento, alimentação,
proteção e um ponto para trabalhar.

Flávia Teixeira (2008), em seu estudo, publicado com o título L’Italia dei Divieti: entre
o sonho de ser européia e o babado da prostituição, centra-se em duas questões que estão no
cerne da prostituição das travestis brasileiras no mercado internacional, no caso, o europeu. Um
deles, a relação antagônica entre as ONG’s que atuam, em tese, para a proteção e direito das
travestis exploradas; e, do outro lado, o não reconhecimento dessas instituições por parte deste
universo de trabalhadoras. Reflito que, ao aceitarem a condição institucionalizada das ONG’s
– traficadas, trabalhadoras em condição de escravidão, exploradas, prostitutas –, elas não são
envolvidas numa rede de proteção, mas, são estigmatizadas. Um caminho a ser pensado é que,
ao negar essas estruturas que as marcam, podem criar outras linhas de fuga (DELEUZE;
GUATTARI, p. 32, 1995).

O modelo criado pelas chulas ou cafetão/cafetina não é tipificado como tráfico de


pessoas, ou pelo menos não encontra espaço na legislação vigente. Afinal, o Protocolo de
Palermo – promulgado pelo Decreto n.º 5.017, de 12.03.2000, e em vigor em 2003 – afirma ser
tráfico de humanos no seu artigo 3A – Definições:

84
De origem francesa, Trottoir significa o caminhar que as prostitutas fazem quando ficam à espera de seus
clientes.
160

A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a


transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça
ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano,
ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma
pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração
incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas
de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.85

Como argumenta Patrício (p. 120, 2008), as travestis brasileiras, desde muito cedo,
ouvem informações sobre a Europa, que passa a habitar seus imaginários, quão sedutor é esse
continente. Suas grifes de alta-costura, os homens belos, a liberdade e o resultado lucrativo de
seu trabalho. Assim, mesmo não estando de acordo com o Tratado de Palermo sobre tráfico de
humanos, a atividade dos/das chulos/cafetões/cafetinas é ilegal, sob a perspectiva de outras
legislações nos três países visitados: Espanha, Portugal e França.

A prostituição, em vários países, como Espanha, Portugal e França, é permitida,


havendo variações na legislação. Em Portugal e na Espanha, são vetados o aliciamento, a
cafetinagem e os espaços como prostíbulos. A França, recentemente, aderiu ao modelo sueco,
no país escandinavo, onde os clientes são tratados como delinquentes, e a legislação prevê multa
de até 3.750 euros para os usuários da prostituição, não havendo proibição para aquelas/aqueles
que se prostituem.

Durante o período de maio/2016 a janeiro/2017 estive vinculado à Universidade do


Porto, realizando pesquisa referente ao Doutorado Sanduíche. Na ocasião, apliquei o método
etnográfico aos garotos de programa, usuários de anabolizantes, e aos profissionais do sexo,
usuários de heroína. Tal experiência resultou em um relatório etnográfico e outro foto-
etnográfico, o que enriqueceu meu conhecimento do método, bem como as estratégias de
aproximação e vinculação a outro tipo de grupo, sendo este, a meu ver, de maior risco para o/a
pesquisador/a.

Assim, após o período da pesquisa, passei a me dedicar às travestis brasileiras que


trabalham com prostituição no Porto, conjuntamente. Em uma sexta-feira, descobri a existência
de um clube onde as travestis faziam show e fui até a casa. Simples, pequena, dentro de uma

85
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em
23 de abril, 2018.
161

galeria, localizada na zona turística, na Rua da Madeira. Lá conheci duas informantes brasileiras
e uma peruana.

Patrícia, 38 anos, há 12 anos na Europa, afirma ter trabalhado com prostituição em


Milão, Madrid e Lisboa. Débora, 32 anos, há quase oito anos na Europa, e a peruana Andras,
42 anos, há 15 anos na Europa, também diz ter morado e trabalhado em várias outras cidades.
As três são de Floriano, uma cidade do Piauí, de onde seguiram para São Paulo e depois, por
meio de umas amigas travestis, conseguiram entrar na Espanha. Débora, a mais falante,
apresentava-se como da Grande São Paulo, da cidade de Caieiras, e a peruana informou que sua
cidade ficava próximo da capital peruana, La Paz, e sua entrada na Europa deu-se por sua
descendência, fato que não aconteceu com Débora: “Eu trabalhei muito no jóquei, no centro,
em São Paulo, e paguei para entrar.” (Informação verbal) 86.

As três são prostitutas, cobram em média de 40 a 100 euros por programa.

Olha, aqui (Porto) é igual, mas não pior que no Brasil, o povo é conservador
e só quer as novatas, ou assim, como nós, toda no modelo. Graças a Deus, aqui
não é tão violento. Agora, para ganhar mais, só em Lisboa e não sei não, viu.
Porque aqui a vida é mais barata e a gente se acostuma. (Informação verbal)
87

Enquanto conversamos e bebemos, as brasileiras querem saber sobre a política, onde eu


vivo, sobre São Paulo, se sou bissexual ou gay, se já tive relações sexuais com travestis, etc.
Ao observar que era noite de sexta-feira, as três em uma boate, e conversando com certa
dificuldade, devido o som, pergunto:

Eu: E hoje? Não vão para a pista?


– Já viemos e você?
Eu: Estou aqui estudando, como expliquei pra vocês.
Débora: Não é disso que tô falando, quero saber da noite!
Eu:[sorrisos]
Débora: Você vai quando para o Brasil?
Eu: Próximo ano. Acho que janeiro.
Debora: Eu nem penso em voltar para aquele inferno, imagine agora? [atribuo
este “agora” à condição política e econômica pela qual o Brasil está
passando]88

86
Entrevista concedida por Débora, 32 anos. [Maio, 2016]. Entrevistador: João Dantas. Porto/Portugal, 2016.
87
Ibidem.
88
Entrevista concedida por Débora, 32 anos. [Maio, 2016]. Entrevistador: João Dantas. Porto/Portugal, 2016.
162

Eu me aproximo mais das outras duas e explico a falta de desejo de Débora de voltar, e
as duas sinalizam com a mão, um pouco embriagadas, negando a possibilidade de retornar.

Então, pergunto onde são os sítios de prostituição das travestis no Porto: “Nas
redondezas e na Antero de Quental ferve de travesti e trans. No baixo Porto também”
(Informação verbal). Não me lembro qual das brasileiras respondeu, ao fazer as anotações.

Passo então a frequentar os territórios de prostituição. No entanto, a aproximação não


ocorreu tão facilmente. Embora o fato de possuir a mesma nacionalidade ajude na construção
da empatia, acredito que a ilegalidade no país, de muitas, e a questão do trabalho, dificultaram
tal aproximação. Parar para falar significa perder potenciais clientes.

Após algumas visitas, conheço outra paulista, Rose, 28 anos, há 8 anos na Europa. Não
morava no Porto, estava passando uma temporada, vindo de Lisboa. “Aqui, temos que cobrar
um pouco menos. Mas não falta trabalho. Um boquete no carro mesmo ou um programa
completo nas pensões.” (Informação verbal).

Começo a falar do Brasil e aos poucos preparo terreno para questionar sobre sua vida
na Europa. Rose fala:

Eu gosto muito de viver assim: hoje aqui, amanhã ali. Pena que só posso viajar
de ônibus, por causa dos documentos [visto]. Mas gosto muito. Acho que sou
tratada melhor aqui, mesmo com todo o preconceito, porque há e muito.
Mando dinheiro para o Brasil, ajudo minha família e quero voltar, agora, não
com uma mão na frente e outra atrás, quero voltar bem, melhor que saí.
(Informação verbal)

Rose marcou um dia de quinta-feira. Afinal, o movimento é mais fraco; ela me


apresentaria outras travestis brasileiras. Quando retornei, não a encontrei. Na sexta-feira
seguinte Rose estava no ponto. Falamo-nos rapidamente e ela disse que eram as últimas noites
naquele local. “Não vou ficar aqui, neste lugar. Porque as travestis que já fazem programa aqui
criaram problema e eu não vou pagar.” (Informação verbal) 89

Então, despedimo-nos depois de uma rápida conversa, e passei a especular sobre as lutas
pelos pontos, assim como acontece no Brasil. Os espaços pareceram-me loteados, como se

89
Entrevista concedida por Rose, 28 anos. [Maio, 2016]. Entrevistador: João Dantas. Porto/Portugal, 2016.
163

fossem obrigadas a pagar para alguém. No entanto, devido à instabilidade do encontro, entendi
que deveria partir.

O Bar Mirandas, localizado na Rua Antero de Quental, quase esquina com a Rua da
Constituição, tornou-se um ponto não somente de prostituição das travestis de várias
nacionalidades, como também um ponto de descanso e de entretenimento. Trata-se de um
espaço com uma aparência comum e serviços um pouco mais baratos. Contudo, o grande valor
é por ser dentro do território de prostituição do Porto.

No Bar Mirandas há uma profusão de pessoas, os undergrounds, gays, travestis, homens


à procura de sexo e, por vezes, um fado tocando. As conversas são altas e algumas travestis
narram casos da noite: um cliente bonito, um que era uma marica ou algo sobre a polícia. À
primeira vista, parecia ser um lugar que poderia oferecer alguns riscos. No entanto, a minha
expectativa, certamente construída pela experiência no Brasil, foi frustrada.

Assim, semanalmente passei a frequentar os bairros ou sítios de Paranhos e Ildelfonso,


e depois, já na madrugada, o Bar Mirandas. Aos poucos, fui estabelecendo contatos com os
garçons do Esplanada Bar e passei a entender um pouco dos diferentes tipos de fados existentes
em Portugal, e buscar no comportamento cotidiano das travestis respostas ou novas questões
para essa Europa que elas mesmas vivem.

As regiões de prostituição apresentam pouco perigo, conforme minha impressão ao


caminhar. A polícia difere por não ser militarizada. Havia alguma cordialidade, e outras
questões sugiram quando questionava: Quem mantém esse clima de segurança? As travestis?
Seus cafetões? Há corrupção entre a polícia e essas pessoas? Afinal, o clima era ameno e
demonstrava segurança.

Para algumas dessas questões não obtive respostas. Todavia, conheci Brenda, 25 anos,
a mais jovem travesti brasileira no Porto a que tive acesso. Ela não perdia oportunidade de se
referir às outras travestis como “as senhoras”, desdenhando-as. Essa foi a principal informante;
aproximamo-nos e nos encontramos em outros espaços, como na Rua Madeira, durante o dia,
uma das ruas na localidade da Estação São Bento.
164

Brenda não apresentava apreensão ou desconforto por andarmos pela cidade. Quando
falei que na cidade de Aracaju as travestis são quase confinadas à noite e a determinadas regiões,
ela, altivamente, falou:

Aqui ainda é muito conservador, em Lisboa, Milão e nas outras grandes


cidades é mais normal. Aqui há muito preconceito contra todo tipo de
brasileiros, imagine trans. Agora, como no Brasil, nunca vi. (Informação
verbal)

Em outra oportunidade com Brenda, no Bar Mirandas, havia algumas travestis


brasileiras com roupas e cabelos bem cuidados. Então perguntei: “– Brenda, são silicone ou
próteses nos seios? – A maior parte é silicone mesmo, porque vem do Brasil assim. Agora, aqui
a gente coloca prótese” (Informação verbal), enquanto projetava seus seios para frente e falava
que os dela, por exemplo, eram próteses, que havia juntado dinheiro e feito a cirurgia em
Madrid, por 3.500 euros: “Aproveitei e fiz uma lipo também” (Informação verbal).

Brenda espera retornar ao Brasil somente quando tiver dinheiro suficiente para viver
bem. Essa era a segunda informante com o mesmo objetivo. Órfã de mãe e distante dos irmãos,
dois no total, e pai que, segundo ela, nunca a aceitou, saiu de casa aos 14 anos, da cidade mineira
de Uberaba e foi para Belo Horizonte, depois São Paulo, onde juntou dinheiro e conseguiu
entrar em Portugal, vestida de homem. Para isso, suspendeu os hormônios e cortou o cabelo.
Embarcou em um vôo com destino a Lisboa.

Foi o momento mais emocionante da minha vida. Quando cheguei na cidade


sem conhecer, só com uns contatos de outras amigas. Não vou esquecer nunca.
(Informação verbal)

Brenda, como as demais travestis com que tive contato em Porto, foi receptiva,
excetuando poucas tentativas frustradas e algumas vezes em que, no momento na zona de
prostituição, percebi no comportamento dela, nas suas falas e observação dos espaços, marcas
muito profundas decorrentes da estigmatização, assim como ocorre no território de Atalaia, em
Aracaju. Refletindo sobre essa percepção, podem-se identificar três formas de estigmas
atribuídos às travestis, conforme descritas por Erving Goffman (pp. 119-134, 2008): as
deformações físicas (a condição de travestis); as características e alguns desvios de
comportamento (a condição do trabalho como prostitutas, a questão da ilegalidade e atribuição
da orientação sexual); e estigmas tribais (o fato de serem brasileiras).
165

Lisboa:
Alguém diz com lentidão:
“Lisboa, sabes…”
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus e degraus até ao rio. Eu sei. E tu, sabias?

(Eugénio de Andrade, Até Amanhã, 1956.)

Mesmo com uma população menor do que a de Aracaju, com aproximadamente 547.733
habitantes, Lisboa possui um ambiente cosmopolita e uma diversidade de imigrantes
considerável, dos quais 20% são brasileiros. Comparando-se com o Norte, região onde se
localiza a cidade do Porto, Lisboa apresenta menos conservadorismo e maior abertura a
migrantes. Esse aspecto pode ser percebido pela menor resistência aos estrangeiros, em razão
da diversidade populacional.

Verdadeiramente, não passei longos períodos, realizei apenas três viagens de Porto a
Lisboa. Na primeira, cheguei em uma quinta-feira e retornei na quarta-feira seguinte, no mês
de novembro de 2017. Seguidamente, realizei mais duas viagens, quatro dias na segunda e dez
dias na terceira. O objetivo era continuar a busca para entender por que as travestis do bairro de
Atalaia possuem, em parte, o desejo de ir à Europa ou ter nesse território um horizonte de
sonhos e afetos.

Em Lisboa, as travestis e trans, das mais diversas nacionalidades, concentram-se na Rua


do Conde Redondo, em direção ao Hospital Santo Antônio dos Capuchos. Há uma
predominância de origem latina. Não é possível indicar aqui quais as nacionalidades mais
frequentes, porém, havia colombianas, chilenas, mas a predominância era de brasileiras.

No Conde Redondo e imediações há uma forte tensão com a polícia, em virtude da


ilegalidade da estadia. No entanto, pude perceber, segundo uma informante, que existe algum
tipo de acordo com a polícia local. Rita, 24 anos, há cinco anos na Europa e dois meses em
Portugal:
166

Rita: Aqui tem seus perigos, por isso ano a ano você percebe uma diminuição
das trans trabalhando. Muitas só querem anunciar no jornal e site. Porque, se
a polícia pegar, ou leva todo seu dinheiro, como no Brasil, ou lhe deporta.
Agora, quem trabalha com proteção tá mais protegido.
Eu: Como, com proteção?
Rita: Hum, você sabe, rapaz, como é esse mundo. Agora vou trabalhar, já falei
demais. Beijos.
Eu: Beijos, esse é meu telefone. (Informação verbal)

Ela pegou o papel, dobrou e colocou na bolsa, porém, não fez contato. Nessa primeira
noite, depois da conversa com Rita, resolvi que apenas observaria, com a finalidade de entender
melhor os perigos e as características do território, pois estava claro que não era como na cidade
de Porto.

Então, cheguei no fim da tarde, no dia seguinte, e contatei uma travesti portuguesa.
Nesse momento, houve um grande conflito quanto à nomenclatura. Afinal, a definição para
trans circunda a órbita da sexualidade (BENTO, p. 20, 2008). No entanto, Lena, 21 anos,
nascida em Lisboa, não demonstrou, durante os nossos encontros (dois no total), negação ao
pênis.

Eu: Como é trabalhar dividindo espaço com as travestis brasileiras?


Lena: Aqui, no Conde, as brasileiras são as mais procuradas. Algumas trans
legais [refere-se ao visto] não gostam e chegam a denunciar as brasileiras. Eu
acho que devemos nos unir, estabelecer um tipo de preço por serviço. Assim,
haverá trabalho para todas as trans neste sítio.
Eu: Qual a diferença entre transexuais e travestis? No Brasil, as trans são
consideradas diferentes das travestis, rejeitam o pênis e não aceitam o corpo
desta forma.
Lena: Eu uso o termo trans. No entanto, refiro a trans ou transgênero para
todas nós, algumas chamam de travestis ou travéstis, outras, as brasileiras, de
travestis. Eu não tenho problema com os meus órgãos genitais, acho que tenho
um pênis satisfatório para os clientes. (Informação verbal)

A noite foi chegando e com ela mais travestis. Havia travestis produzidas, outras nem
tanto. Contudo, algo chamava atenção: poucas passavam sozinhas. Estavam acompanhadas de
outras travestis ou com pessoas que deduzo serem cis-homens. Eu observava de um bar
chamado “O Banquete”, onde, no primeiro andar, havia uma placa “cabeleireiros”, situado em
uma esquina da Rua Conde Redondo com a Rua Gonçalves Crespo, 33C.

Em seguida, resolvi percorrer a Rua Conde Redondo em direção ao Hospital Santo


Antônio dos Capuchos e fazer contato com as travestis que notadamente eram brasileiras. Era
fácil perceber a nacionalidade brasileira pelo português falado, oralidade, altura da voz, um
comportamento mais expressivo nas abordagens dos carros e pelas exposições do corpo.
167

Logicamente que, ao usar esses critérios, fiz uma seleção entre as brasileiras, porém era
necessário criar vínculos com alguém.

Fiz algumas abordagens, sem aceitação. Essa não aceitação me apresentou duas
possibilidades: a perda de tempo ou o medo. Não possuía muitas informações sobre os riscos,
mas algumas fumavam um mesclado de maconha, ou haxixe, ou uma mistura dos dois, pelo
cheiro que pairava no ar. Após a abordagem, a travesti brasileira (não se identificou) ofereceu-
me MD para comprar (o principal princípio ativo do ecstasy) e cocaína.

Travesti: Tá procurando MD ou Coca? Eu sei onde tem!


Eu: Como te expliquei, estou fazendo uma pesquisa para meu doutorado.
Travesti: Mas não quer se divertir um pouco?
Eu: Hoje não, obrigado.
Travesti: Tá! Tá! (Informação verbal)

Parei em outro bar, avaliei os riscos e já passava das 2 horas da manhã. Resolvi sair do
território e retornar depois. Dedicaria os outros dias que permaneceria em Lisboa a observações,
estudar o mapa da região e procurar matérias nos jornais sobre o Conde Redondo e seu entorno.
Assim, munido de informações, poderia minimizar os riscos.

Na segunda visita, descobri que a área do Conde Redondo abriga sex shops, muitas
prostitutas mulheres e trans, além de travestis. A área em questão também é conhecida pela
comercialização de substâncias ilícitas, desde maconha a drogas sintéticas e alcaloides, como
cocaína, crack e heroína. Mesmo não se aproximando dos riscos, como em Aracaju, deveria
estar imerso e não aparentar ser um cliente das travestis, ou consumidor de sex shop, ou, ainda,
cliente de algum traficante.

Assim, ao retornar a Lisboa e à região, estava eu com mais desenvoltura e segurança,


conseguindo estabelecer uma relação de confiança com uma travesti brasileira de 22 anos,
oriunda do Estado de Santa Catarina. Seu nome era Paula. Ela estava encantada pela Europa;
havia chegado ao continente através de Barcelona há três anos. Desde os 15 anos trabalha na
prostituição, tendo começado a tomar hormônios bem cedo. Dessa forma, as pessoas não
percebiam que se tratava de uma travesti, afirmou Paula. Altiva e com longos cabelos castanhos
claros, olhou para mim e disse:
168

Paula: Você não é da Polícia não?!


Eu: Como, se sou brasileiro?
Paula: Sei lá!
Eu: Aceita um cigarro?
Ela: Aceito. (Informação verbal)

Então, começamos a conversar. Paula que escolheu sair de casa, pois a família aceitava
sua orientação sexual. No entanto, ela queria ser travesti. “Paula: Hoje o movimento tá bom.
Eu vou trabalhar até fazer mais uns quatro programas, depois podemos tomar algum drink ou
cerveja. Eu: Legal!” (Informação verbal)

Então, ela indicou um bar nas proximidades e eu a aguardei. Depois de três horas,
acredito, ela chegou eufórica: “Eu não disse que vinha? Eu: Eu sabia que você viria, sim.”
(Informação verbal). Convidei para sentar e aos poucos pude saber como funcionam a rua, os
melhores pontos, as transversais, a relação com os hotéis.

Paula: Aqui tudo tem um dono, a rua não é pública não, viu. Tem o dono dos
pontos, que você paga por dia ou por semana, um dealer, vendedor de
substâncias ilícitas, e os hotéis que vamos, porque não precisa do papel
[passaporte].
Eu: Acho que seu nariz tá um pouco sujo! Pode ser a maquiagem.
Paula: [risos... pegou delicadamente um guardanapo e limpou] E agora?
Eu: Tá bom. (Informação verbal)

Rimos juntos e ali estabelecemos uma cumplicidade. Ela falou da noite, dos homens
que só querem ser passivos, da alegria quando encontra um que a trata como mulher – narrativa
comum. Afirmou também que eu iria adorar conhecer as travestis em Milão. Então perguntei:

Eu: Onde é melhor para se viver, Europa ou Brasil?


Paula: Aqui, se eu fosse legalizada.
Eu: Mas achei tudo de boa.
Paula: De boa um “pila” [caralho], a polícia deporta na hora. Mas aqui é
seguro, todas sabem que a polícia recebe propina e faz que não vê.
Eu: Você vai ficar por aqui?
Paula: Em Portugal?
Eu: Não, na Europa. Tipo, morar aqui mesmo?
Paula: Não! Estou juntando dinheiro, não tenho mais, porque paguei cinco mil
euros para entrar pela Itália. Vou voltar quando tiver um bem. Já tem muitas
travestis no Brasil e lá só dá para comer. (Informação verbal)

Assim foi nosso primeiro encontro. Marcamos de nos rever na próxima viagem e
conhecer duas colegas que moram com ela, a um custo de 40 euros por dia, um quarto para
cada. “É caro a moradia, porque tem que ser no lugar certo. A gente já vem com tudo certo,
porque para ser deportada é fácil.”
169

Fiz a terceira incursão pelo território do Conde Redondo, entre pequenas lojas de
proprietários orientais, sex shop, bares, traficantes, trans, travestis, prostitutas, quando me veio
o sentimento de que tudo ali estava à venda. Tudo era uma espécie de produto. A construção
dos estigmas estava presente. No entanto, não como presenciei em Atalaia, havia uma
dubiedade. Nunca a presenciei violência física, pelo menos não era a predominante. Ela dividia
espaço com a vigilância da ilegalidade, os olhares recriminatórios e outros tipos de violência.

Aqui [Lisboa] é até mais fácil de trabalhar que em outros países, eu só


trabalhei aqui, Barcelona e Milão. A França é muito arriscada, a gente tem que
ficar mudando de endereço toda semana. (Informação verbal) 90

Paula havia combinado que apresentaria outras travestis brasileiras. Mais precisamente
duas, com as quais dividia moradia. Eu nutria a esperança de conhecer a casa delas. No entanto,
já estava há seis dias e não a encontrava. Claramente, as outras travestis não informariam sobre
ela, mesmo que a conhecessem.

Resolvo então estender minha permanência e, no oitavo dia, vejo-a no ponto em que a
encontrei pela primeira vez. Estava lá, no ponto em que nos conhecemos, vestindo uma calça
legging, um sapato plataforma baixo e brilhoso, também preto, com uma blusa de manga curta,
de gola canoa, que caía sobre os ombros, projetando os seios.

Paula deve ter me visto antes. No entanto, fui eu que estabeleci contato, e ela, alegre e
altiva, deu-me um afetuoso abraço, beijos, e, rindo, disse:

Paula: Sumido, você, hem?!


Eu: Eu? [risos] Há mais de uma semana que te procuro.
Paula: Já soube. Já me falaram [risos].
Eu: Como tá a noite?
Paula: Cheguei e estou começando, ainda não sei. Mas você vai fazer o que,
mais tarde?
Eu: Não sei.
Paula: Vamos tomar uma cerveja? Em outro bar porque dia de semana aquele
fecha mais cedo.
Eu: Claro. Como você sabe, estou te procurando há muitos dias, quero muito
conhecer suas amigas e dar continuidade ao trabalho.
Paula: Certo [risos]. (Informação verbal)

Então, Paula falou de um bar chamado “Timeout”, um pouco distante do ponto de


trabalho dela, acredito que na Rua Cecília de Souza, cerca de 30 a 40 minutos caminhando.

90
Entrevista concedida por Paula, 22 anos. [Novembro, 2017]. Entrevistador: João Dantas. Lisboa/Portugal, 2017.
170

Depois nos despedimos e segui o caminho sugerido por ela. Após perdê-la de vista, achei
melhor pegar um transporte, pois sabia que adentraria em outras ruas e “era uma noite
apressada/ depois de um dia tão lento [...] era afinal quase nada/ e tudo parecia imenso!”91. Para
Paula, era uma caminhada, somente. No entanto, eu sabia que era um estranho entre dildos,
peitos e “paus” expostos, mesmo que discretamente.

O local era um bar frequentado pelo público LGBT+, e realmente ficaria aberto até às 3
horas da manhã. Música alta, casa quase cheia e um sotaque agradável, um lugar aprazível.
Quando Paula chegou, já era quase 1 hora da manhã. Pediu uma dose de Baileys, um tipo de
licor de whisky islandês, que eu havia conhecido há pouco tempo e tinha adorado. Então a
acompanhei. Depois da terceira dose, Paula começou a falar sobre o que realmente tinha
acontecido:

A coisa ficou quente aqui, teve travesti agredida e a polícia começou a


circular. Tem horas que acho que é até melhor no Brasil, sabe? (Informação
verbal)

Então, após várias narrativas e lamentações sobre a condição e dores, ela disse: “Olha,
vamos beber, porque não é todos os dias que posso. Tenho que trabalhar, beber é caro, droga é
caro, hormônio é o mais barato. A vida de travesti é assim.” (Informação verbal). Fizemos um
brinde e a noite seguiu. Quando estávamos andando de volta ela me disse: “Mudei de casa, não
estou mais com aquelas travestis. Mas venha amanhã que te apresento uma amiga.” (Informação
verbal).

Retornei no dia seguinte, apreensivo, afinal já estava há nove dias e era a terceira
viagem a Lisboa, mesmo sabendo que era um tempo restrito para uma etnografia. Todavia,
considerando a subjetividade do problema que buscava responder, era um tempo razoável, sob
a perspectiva da Escola de Chicago, a qual discutiu e relativizou o tempo de permanência do
pesquisador em campo (ROCHA, p. 39, 2006).

No entanto, os acontecimentos eram intensos. Afinal, uma nova cidade, um novo


traçado urbanístico e outras relações de alteridade e violências. Posteriormente, entendi que a
estratégia de criar espaço-tempo entre as idas ao território me proporcionou a possibilidade de
sentir os encontros, o espaço, a cidade. Assim, mesmo com as visitas espaçadas, o tempo foi

91
Poema: Noite Apressada; David Mourão-Ferreira, in "À Guitarra e à Viola".
171

valioso para refletir e achar respostas para a questão da etnografia: Por que a Europa, das
travestis de Atalaia, é um território desejoso? Sobre essa reflexão do tempo, assim diz Bachelard
(pp. 48-49, 1988):

É preciso que a reflexão construa tempo ao redor de um acontecimento, no


próprio instante em que o acontecimento se produz, para que reencontremos
esse acontecimento na recordação do tempo desaparecido. Sem a razão, a
memória é incompleta e ineficaz.

Cheguei cedo nesse penúltimo dia. Já havia abortado a ideia de conhecer a casa de Paula
e resolvi concentrar-me em outras relações com as travestis brasileiras. Então, conheço Paloma,
com idade maior aparente, até o momento. Imediatamente, após saber que estava há mais de
uma década na Europa e que já havia trabalhado com prostituição em várias cidades brasileiras,
senti que poderia obter algumas respostas. Instintivamente, ofereci um cigarro, expliquei o meu
trabalho, perguntei se ela poderia contribuir. Como a resposta foi positiva, sabia que deveria
ser objetivo e não indutivo, tarefa difícil.

Eu: Você mora aqui próximo?


Paloma: Querido, nós não temos casa, hoje estou aqui, amanhã em Madrid,
Itália. Eu, graça a Deus, tenho muitas amigas e não preciso ficar pagando uma
fortuna para as travestis me receber, ajudo. Tem que ser assim: recebo em uma
mão e dou pela outra.
Eu: Ah, Paloma! Você já é vivida, a Europa não é novidade para você, então?
Paloma: Nada! Estou aqui desde fevereiro de 2007, já passei por tanta coisa.
Eu: Você é de onde?
Paloma: Não quero nem lembrar.
Eu: E aí! Pensa em voltar?
Paloma: Já ganhei muito dinheiro fácil e foi embora fácil. Tenho uma reserva
e uma hora desta volto. Mas, para São Paulo ou Rio. Acho que para o Rio.
Aqui as bichas têm que saber viver, eles [os clientes] pagam bem, mas você
tem que saber fazer gostoso também. Sabe, às vezes coloco na cabeça que vou
voltar, vou voltar, e depois, fico.
Eu: Os clientes aqui são muito diferentes do Brasil?
Paloma: Muito! Aqui, eu sou uma quase trabalhadora, porque estou ilegal. No
Brasil, você não é nem gente. Aqui eles não têm vergonha, mais na Espanha
e Itália. Portugal é mais ou menos.
Eu: E na França?
Paloma: Na França é difícil porque, eles [o país] têm mais controle de tudo e
para ser deportada é perigoso. Eu conheço amigas que vivem lá! Eu fico entre
Portugal, Espanha e Itália. Também não falo francês. (Informação verbal)

Paloma foi um achado intuitivo, por assim dizer, apesar da idade, que não achei
oportuno perguntar. Afinal, não quis dar informações sobre a cidade ou Estado brasileiro que
vivera ou nascera. Era elegante e ao falar usava um espelho e avaliava sua face. Com uma
estatura alta e um salto não tão fino, segurava uma bolsa de tamanho médio, que colocava na
frente do pênis e retirava quando passava um carro em baixa velocidade, como quem mostra o
172

tamanho dos seus dotes. Entendi que a disponibilidade de Paloma também atrapalhava seu
trabalho. Então dei um abraço, dois beijos e disse: “Um não, dois, como na Bahia”. Ofereci um
cigarro, ela não aceitou, porém agradeceu e continuei tomado de gratidão, contentamento e
admiração por aquela travesti, desejando uma jornada de êxitos.

Paula não estava, mais uma vez, no seu lugar de sempre. Imaginei que estivesse em um
programa. Resolvi aguardá-la. Depois de alguns minutos parado, percebo que estava sendo
visto como um trabalhador do sexo. Lembrei que Paula havia dito: “[...] aqui tudo tem dono
[...]”, referindo-se aos pontos de prostituição. Me senti incomodado pela diminuição da
velocidade dos carros, que me observavam como um produto, mas achei até enriquecedor.
Imagino que sejam esses os olhares para as travestis. Entretanto, se há dono nos territórios de
prostituição, a condição em que me havia colocado representava riscos. Assim, resolvi andar e
retornar. Mais uma vez, não a encontro. Perguntar por ela seria em vão. Assim, depois de mais
de uma hora, resolvo ir. Não há mais tempo e estou convencido de que ela não veio trabalhar.
Afinal, no dia seguinte, devo chegar cedo na Estação Oriental. No entanto, gostaria de me
despedir de Paula, com toda a sua altivez.

Retornei à cidade do Porto, fiz a revisão final do relatório etnográfico e foto-etnográfico


e apresentei na Universidade do Porto. Concluía assim meu Estágio do Doutoramento
Sanduíche. Investigação aplicada a outro grupo de trabalhadores do sexo, a prostituição viril.
Refletindo sobre dois grupos: os usuários de anabolizantes e os usuários de heroína. Algo como
“Sob o sol de Apolo e a sombra de Dionísio”92. A prostituição na Estação São Bento e nas
ruínas localizadas na lateral, separada pela Rua Loureiro (remeteu-me a Apolo e à relação linda
da ninfa Dafne), ruína oriunda da demolição do antigo Convento de São Bento da Ave-Maria.
Agora, poderia fazer outras viagens para pontos mais distantes, na busca de respostas à minha
questão: Madrid e Paris.

5.11 Madrid e Paris: a complexidades dos cenários

Foi em Madrid que encontrei o maior universo de prostituição em uma cidade, desde a
região do Real Jardin Botánico, de Madrid, parque Del Retiro e outras áreas verdes nas
proximidades de Calle Gran Vía. Durante o dia havia explicitamente pessoas oferecendo seus

92
Referência a mitologia grega.
173

serviços sexuais. Esses espaços verdes estão localizados nas proximidades do interessante
Museu Nacional de Arte Reina Sofia, no centro da cidade. Destoava-se da prostituição de
Portugal, em que as práticas, majoritariamente, ocorriam discretas, às escuras.

Havia reservado uma semana, e estava ciente, depois da experiência em Lisboa, de que
o tempo seria exíguo. Assim, desde o primeiro momento, orientei-me pelos espaços de
prostituição das travestis em Madrid, realizei visitas e fiz alguns contatos para interagir e
coexistir. Todavia, a complexidade dos cenários, a dificuldade em decodificar as expressões e
gírias não permitiram que eu pudesse fazer análises; elas seriam preconcebidas e/ou
estereotipadas. Apesar de possuir o domínio da língua espanhola, em Madrid há outras
expressões, gestuais e padrões de corpos e beleza, mesmo que sutis. Como em qualquer cidade
pesquisada, há mudanças. Alguns momentos suaves, outros agudos.

Nas regiões de prostituições que conheço, há sempre um aguçamento na construção de


gírias e expressões, nas idades das travestis e na região de trabalho e sua proximidade de regiões
de classe média ou alta e territórios periféricos, há sempre significados. Caso estivesse
trabalhando com etnografia documental ou com outros públicos, talvez tivesse segurança em
discutir. Talvez encontrasse esses cenários menos mutantes que o universo do sexo em Madrid.

Certa ocasião, em campo, com as travestis no Bairro de Atalaia, Aracaju, capital do


Estado de Sergipe, defrontei-me com uma abordagem policial. Os policiais revistaram as
travestis e a mim, pois há o consumo e venda de substâncias ilícitas na região. Nesse momento,
implantou-se um silêncio entre olhares, e aos poucos fui decodificando que era uma forma de
comunicação e de resistência. O silêncio falava.

Ao longo de Calle Gran Vía, avenida larga, com lojas caras e movimentadas de Madrid,
há ruas com casas noturnas e travestis brasileiras nas esquinas. No entanto, há um universo
multicultural, em que se encontram pessoas de várias nacionalidades. Travestis de países
colonizados pela Espanha, a exemplo de Argentina, Peru, Equador. Há também as travestis
africanas. Era meu primeiro contato com esse universo, e definir como africanas é algo
genérico, tendo em vista a dimensão do continente. Entretanto, não adentrei nas origens, pois
não era esse o objetivo. Em campo, temos que fazer escolhas e estar conscientes de que algumas
possibilidades se perderão.
174

Mesmo não se aplicando o conceito de travestis para outras nacionalidades/ culturas, é,


afinal, uma construção brasileira e, ciente do meu pleonasmo, ao dizer “travestis brasileiras”,
usarei a mesma terminologia para outras nacionalidades, visto que em Madrid o termo trans se
aplica usualmente a um universo maior do que esse aqui pesquisado.

Quando cheguei à região de Calle de Fuencarral, fui surpreendido pela grande


proximidade entre as trabalhadoras do sexo. Era verão, dezembro. Inicialmente, não conseguia
entender a forma de ocupação do espaço, pois, no Brasil (Aracaju, Rio de Janeiro, Salvador,
São Paulo), em Porto e Lisboa não estava atento à prostituição feminina, mulheres de
nacionalidades diferentes organizadas por espaços. Muito raro, encontrei travestis e homens,
que, sob meu julgamento, eram garotos de programas, ocupando espaços diferentes. No entanto,
aquele espaço era reservado às prostitutas cis-mulher.

Percebo, então, que a Calle de Fuencarral é um território que possui algumas


particularidades. Uma rua de belos e antigos prédios. Pela Gran Vía, chega-se a uma rua em
que se encontra oferta de cocaína, 1,0 g a 100 euros; ecstasy, 50 euros a unidade. Mulheres e
vendedores de drogas, ao passar pela rua, me ofereciam seus serviços e falavam seu preço.
Quanto mais um novo dia se aproximava, mais eram as propostas.

Uma jovem cis-mulher, em inglês: “100 euros por uma hora”. Como no Brasil, as
prostitutas evitam beijar seus clientes. Então, sou tomado pela curiosidade. Paro e pergunto:
“Você beija?” Rapidamente, como quem se dá conta da grande oferta de corpos. Ela responde:
“Sim, eu posso beijar”. Entendo que o uso do verbo “posso” implica mais dinheiro. Agradeço
e explico o que estou fazendo no seu espaço de trabalho.

Ao continuar andando, saí da região de prostituição feminina. Sentia como se estivesse


em um tipo de “feira de corpos”. Passaram por mim duas travestis conversando entre si. Então,
peço licença, paramos e conversamos.

O contato foi áspero. Imediatamente, também, fui reconhecido como brasileiro, acredito
que como um possível cliente a recusar a proposta de escolher uma ou as duas por 50 euros
meia hora, ou 100 euros ambas, além de que deveria arcar com os custos do hotel. Passei a ser
um empecilho.
175

Expliquei rapidamente a motivação da pesquisa e uma delas disse: “Travesti 1: Não


tenho nada a ver com isso [ou algo do tipo em espanhol]” (Informação verbal). A outra se movia
de um lado a outro, em um claro desconforto.

Realmente, eu era naquele momento uma “persona non grata”. Elas estavam
trabalhando ou a caminho do local de trabalho. Então, outra travesti agressivamente falou:

Travesti 2: Você não quer saber? Então pague! Aqui é assim, a gente ganha
por tempo e sem fotos.
Eu: Acho justo! O que você quer ou quanto?
Travesti 2: O valor de um programa que faria com você.
Eu: Tudo bem! (Informação verbal)

Mudou rapidamente a posição do corpo, de um gestual mais aguerrido para uma


expressão mais sensual. Ofereci um cigarro, como sempre, e havia, nessa caminhada, passado
por bares. Retornamos e sentamos. “Travesti 1: Os euros! [estendendo a mão]. Eu: Calma, sei
como funciona. O dinheiro primeiro, vamos antes escolher algo para beber!” (Informação
verbal).

Falei com segurança e tentando ser educado. Em seguida, o garçom trouxe duas doses
de bebidas. Ela escolheu uma dose de licor, desconhecido para meus restritos conhecimentos,
e eu bebi uma taça de vinho. Estava sentado com alguém agressivo, objetivo e, por isso, eu
deveria estabelecer uma relação segura, pois, do contrário, o que poderia acontecer ao sairmos
dali? A amiga dela permaneceu. Eu sabia que o maior perigo ocorre quando não tenho dados
sobre o local. Na rua, em Madrid, as informações devem ter passado por mim, como ondas,
imperceptíveis. Tentava ser rápido na observação, decodificar o corpo e a forma de falar.
Todavia, somente o tempo poderia me ensinar sobre seus símbolos e códigos.

Travesti 1: Então?
Eu: Aí seu dinheiro!
Travesti1: Nossa, eu nem vi.
Eu: [tentando quebrar a tensão] E se fosse uma cobra?
Travesti: [risos, seguidamente bebeu] (Informação verbal)
Ela havia escolhido sentar em uma posição em que tivesse visão de todo o entorno do
bar, eu de frente pra ela, e no fundo o cenário era a rua.

Eu: Acho que falei, mas você deve ter esquecido: meu nome é João, sou da
Bahia, agora tô em Porto, mas moro em São Paulo, na capital. Você é de onde?
Travesti 1: De São Paulo também. (Informação verbal)
176

Senti que não era verdade, porém, nunca saberei. Ela era rápida e não se entregaria. Não
havia construído uma relação de cumplicidade. Notei que manipulava o que falava com muita
desenvoltura. Mesmo na sentença que pergunto de onde ela é, antecedia com dados meus:
nome, minha origem e onde estou morando no momento. No entanto, como por intuição, ela
havia decodificado, colocava-se como uma difícil informante. Como entender esse “lugar” se
ela se mostra resistente?

Eu: Já sabemos de onde somos e eu não lembro do seu nome! [risos]


Travesti 1: Pode chamar como você quiser.
Eu: [risos] Cheguei há pouco em Madrid, tenho gostado, é uma cidade não
somente bonita, com uma vida noturna animada.
Travesti 1:Tem várias ruas, que têm de tudo. Rua San Cesareo, Marconi, La
Calle Montera e La Casa de Campo.
Eu: Há muito aqui em Madrid?
Travesti 1: Já nem lembro mais o tempo que cheguei, acho que uns 12 anos.
Eu: Hum! Deve conhecer e ter trabalhado em vários países.
Travesti: Ah! Conheço muitos, os que quis! Portugal, lógico, Espanha, Paris
e França, Suíça.
Eu: Sempre passou muito tempo nos lugares, nesses países?
Travesti1: Mais aqui, porque aqui os homens gostam e valorizam a travesti
brasileira.
Eu: Aqui na Espanha ou você diz aqui em Madrid?
Travesti1: Mais em Madrid, Barcelona tem muitas [travestis].
Eu: Acho que vou a Paris. Você gosta de lá?
Travesti1: A cidade sim, mais sem papel [documentação de legalidade no país]
é difícil.
Travesti1: Eles são Guapo ou, como diz lá, Mec, pagam melhor, agora: e o
perigo, gato? Não, adoro Madrid.
Eu: Poxa, muita coisa entender, tudo isso, as travestis que tenho falado querem
voltar, outras não, e você?
Travesti1: [risos] Para quê, fazer uma chupada por 15 real e morre sem poder
usar o que quero ou ser espancada. Não, obrigada!
Eu: Entendo. (Informação verbal)

Continuamos a conversar, sugeri mais uma dose. Então, ela perguntou se eu queria algo
mais, pois já estávamos quase meia hora juntos. Respondi que acompanharia até aonde a
encontrei. Ao chegar ao ponto de prostituição, percebi que estava vazio, e a amiga com quem
tentaria estabelecer contato não estava, possivelmente tenha encontrado um cliente. Por fim,
dei um beijo e saí sem saber o nome, e ciente de que possuía uma desenvoltura muito racional
e vivenciava naquele instante, sem fantasias, o mundo da prostituição.

Na Gran Avenida, dois dias depois, encontrei um grupo comendo, conversando no


McDonald. Ao passar pela porta, incomodado com o cheiro de fritura e certa rejeição no espaço,
olhei e observei que havia um grupo de cinco travestis. Entrei e passei lentamente próximo da
mesa, uma estava falando em espanhol. Comprei um café e sentei na mesa próxima, com o
177

objetivo de prospectar alguma informação e observar discretamente. Imaginei como fazer a


abordagem. Assim, levantei e disse:

Eu: Olá. Alguém respondeu sorridente:


– Olá.
Eu: Posso sentar com vocês?
– Sim! Porque não? Sim! (Informação verbal)

Fui sucinto e objetivo, não indutivo, não ocupei muito tempo, ouvi, construí uma relação
de empatia, falei olhando para todas, expliquei o meu objetivo ao me aproximar da mesa.
Assim, ofereci o café, algumas agradeceram e eu mencionei sobre meu trabalho e perguntei se
poderiam me ajudar. Elas riram e em um jogo de sedução e aceitação conversamos sobre o
Brasil, o carnaval, os homens brasileiros, o preço dos programas. Mesmo com o grande universo
de informação coletada, seria um desvio. Todavia, mostraram certo conflito com as travestis
brasileiras. A seguir, transcrevo o trecho que trata da aceitação das travestis brasileiras em
Madrid. Afinal, a relação com outros grupos de travestis influencia a existência ou a
sobrevivência de qualquer coletividade que vive sob essas condições.

Assim: Gabi (Não revelou a idade); Kari, 22 anos; Tiffani, 23 anos; Quendra, 25 anos,
Ericka, 21 anos (ao escrever não coloquei a consoante “K”, e Erika exclamou: “Tú no sabes
escribir. Tiene un ‘K’!”

Gabi: As trans brasileiras são muito agressivas e não têm problema em mostrar
as partes íntimas na rua. Você sabe porque você é brasileiro, que elas fazem
sexo em qualquer lugar, até botar para chupar pelo vidro. Acho que não
precisa isso. A polícia sabe que quando é problema com trans são as
brasileiras. (Informação verbal)

Várias reflexões sobre essa fala surgiram: A realidade das travestis do Brasil é
construída sobre uma cultura de violência. Possuímos grandes metrópoles, grandes cidades,
onde há espaços para diversos perfis de comportamento e segmentação de mercado. As
travestis, em São Paulo, que trabalham na proximidade do Jóquei Clube de São Paulo, na cidade
de São Paulo, no Bairro do Butantã, têm trajes diferentes das que trabalham na região dos motéis
na Barra Funda. Algumas expõem seus seios e “paus”. Quando fui a essa região, na primeira
vez, lembrei-me do título do filme, inspirado na peça do dramaturgo Nelson Rodrigues, com a
atriz Darlene Glória, “Toda nudez será castigada”.
178

No Brasil, somente o ato de matar mulheres, como sujeitos passivos especiais do crime,
é tipificado como feminicídio pelo art. 1.º da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 199093, para incluir
o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Portanto, não há legislação específica para o
universo de pessoas LGBTQI+. A violência praticada contra o grupo LGBTQI+ coloca-nos em
primeira posição, considerando o número de assassinatos das pessoas desse universo, 44% de
trans e travestis. Suponho que esses dados não representam a realidade. Afinal, o corpo pertence
ao Estado, e a memória de um nome que não consta no registro de nascimento é esquecido,
prevalecendo na documentação da falecida o nome masculino. Dessa forma, o trabalho como o
do Grupo Gay da Bahia, o mais antigo Grupo Gay do Brasil, realizou essa contagem de
mortandade no País.

Outras variáveis devem implicar a fala construída por Gabi, como o mercado do sexo.
Afinal, há um estereótipo sobre as brasileiras, que vincula beleza e um estereótipo sensual
(FREYER, p. 100, 2009), fato que afeta não somente as travestis. Assim, especulo, há nesse
discurso uma luta por espaço, mercado e identidades. Como havia mencionado Paula: “aqui
tudo tem dono”.

Seguindo a Gran Vía, em direção ao sul, chego ao conhecido Bairro Chueca. A


arquitetura e a quantidade de Bandeira do Arco-íris, obra do designer Gilbert Baker, misturam-
se, criando um ambiente colorido pela movimentação das bandeiras e ao fundo uma arquitetura
que remete ao passado, com suas sacadas e andares simétricos. Chuela é conhecida também por
ser o local onde se realiza a parada gay de Madrid.

Previamente, resolvi conhecer uma casa noturna onde havia shows de transformistas e
travestis. “El Black and White” é conhecida por seus públicos localizados no Calle de La
Libertad 34, Chueca.

Apesar de estabelecer contato com as travestis brasileiras, duas amigas, o ambiente não
propiciou condições de aprofundamento na conversa. Poderia estabelecer outro momento. No
entanto, era véspera da minha viagem a Paris. Corriqueiramente, falei: “Eu: Vou para o Brasil
em janeiro, vamos? (A resposta mesmo não possuindo algo que pudesse construir uma
afirmação, sinaliza satisfação de estar em Madrid). Travesti: Nem pensar!” (Informação verbal).

93
Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/topicos/11270190/artigo-1-da-lei-n-8072-de-25-de-julho-de-
1990>. Acesso em 23 de abril, 2018.
179

5.12 Paris

Paris, De Santos Dumont aos Travestis


Paris,
Uma loura envolta em negligée
Ton-sur-ton e degradé
O meu francês é meio assim
Jabaculê [...]
Rosa Passos

Era 16 de dezembro, luzes, veadinhos e todos esses elementos comuns no Natal, nas
vitrines das lojas. Após pesquisar sobre o mundo da prostituição de travestis, alguns fatos
chamaram-me a atenção: a denúncia sobre o trabalho escravo de travestis, a grande repercussão
do fato envolvendo uma empresa de transportes aéreos de mulheres e travestis para a França.

A criminalização do usuário dos serviços de prostituição, como já apresentado, fez com


que eu entendesse que não seriam fáceis as abordagens, bem como os locais, a exemplo do
Parque Bois de Boulogne, 846 hectares94 (1 hectare equivale a 100mx100m ou 10.000 metros
quadrados).

A falta do domínio da língua francesa mostrou-se como grande dificultador. Kulik,


quando foi a Salvador, também não falava português. No entanto, sua longa vivência com o
universo das travestis fê-lo aprender e entender. Todavia, terminaria meu trabalho no dia 23 de
dezembro.

Após andar por uma longa avenida repleta de luzes neon, algumas desenhando corpos
femininos, passando pelo museu do sexo, que, por acaso, se encontrava em reforma, próximo
ao Moulin Rouge, o Folies Pigalle foi minha primeira investida. Tal escolha se deu pela
representação de um corpo feminino em neon, usado como marca e informações de que
encontraria travestis, inclusive brasileiras.

Havia grande diversidade de pessoas e etnias (nada novo para uma cidade multicultural);
tento falar com uma travesti. Nada! Sem sucesso, ela não falava inglês, espanhol ou português,

94
Disponível em: <https://www.tudosobreparis.com/bois-boulogne>. Acesso em 23 de abril, 2018.
180

ou simplesmente não desejava. Mais uma vez, nunca saberei. Retorno para a mesa, e depois de
observar os corpos, as roupas e seus gestuais, vejo que a prostituição não estaria ali explícita;
uma ou outra travesti falava com um homem e saíam. Sento-me, frustrado e cansado, além de
todo o investimento financeiro realizado. Então, decido que não estou em um bom dia e retorno
ao Hostel de nome Peace and Love, algo bem decadente, com instalações precárias, porém
próximo ao que demandava: linha de metrô e das regiões que havia pesquisado, bem como das
informações obtidas pelas as informantes.

Retorno a Pigalle e, com um cartógrafo, entro nas ruas, chego à praça, bares, esquinas
e realmente a prostituição das travestis ali não ocorre na rua. Nesse momento, sou interpelado
por um homem falando em francês, que me entrega uma porção de cartas, como um baralho.
São fotos de mulheres nuas e em posições sexuais, eram muitas. Todavia, não havia travestis.
Então gesticulo, tentando explicar que queria seios e pau. Irritado, toma as cartas das minhas
mãos e sai. Pela tensão da cena, ficou evidente que possuía consciência da ilicitude do que
estava fazendo.

O bar/boate da noite anterior estava com pouco movimento; aguardei na porta, mas sem
sucesso. Então, resolvi entrar. Lembrei-me do McDonald na Gran Vía, em Madrid, então fiquei
próximo ao local onde havia algumas travestis. Finalmente, conheço uma travesti brasileira.
Após observar, achei que fosse brasileira ou da América do Sul, não sei ao certo se pela roupa,
pelo gestual ou por intuição. Mesmo sendo uma brasileira encontrando outro brasileiro, não
tivemos muito tempo juntos, pois logo percebeu que não teria os 100 Euros do programa. Então
perguntei:

Eu: Estou tentando encontrar as travestis brasileiras, onde as encontro?


Travesti: Aqui, como eu, em Pigalle, no Parque Bois de Boulogne, nas
redondezas do Marais com Chatelet, é mais bicha rica e o que funciona bem
aqui são os sites.
Eu: Você tá há muito tempo aqui?
Travesti: Há um bom tempo.
Eu: Você mora aqui?
Travesti: Estou passando uma temporada;
Eu: Eu pedi uma cerveja, você aceita?
Travesti: Posso pedi um drink?
Eu: Claro! Como estão as coisas aqui?
Travesti: Ótimas. Agora, Paris não é como Milão. (Informação verbal)

O drink chegou e ela simplesmente o pegou, me deu um beijo de despedida e saiu.


181

Resolvi ficar mais tempo, um som eletrônico tornava as conversas curtas pela
dificuldade de ouvir o interlocutor. Entretanto, já havia avançado. Sabia de outras localidades,
talvez esses lugares sejam menos visados! Poderia estabelecer outras conversas. Não me sentia
seguro em andar por Pigalle, Paris, na madrugada, não conheço os códigos, bem como em
Madrid, sei que a prostituição não é crime. Todavia, eu poderia ser confundido como um cliente,
diferente de Madrid. Outro fato relevante: eu não portava documentação que pudesse confirmar
que eu estava realizando uma pesquisa, o que devo corrigir nas seguintes incursões. Passei a
andar com um documento da Universidade do Porto, que afirmava que, durante o doutorado,
havia realizado viagens para realizar a pesquisa.

Resolvi, pela manhã, ir mais cedo, dessa vez ao Parque Bois de Boulogne. Em verdade,
trata-se de um projeto paisagístico e com variedade de atividades, pouco comum, o que
desconheço nos parques brasileiros. Há dois jardins, Serres d’Auteuil, e ao norte, Jardin
d’Acclimatatio, dois lagos, com abundância de água, que perpassa por uma parte do parque e
pelos dois jardins citados. Há um restaurante com mesas externas e internas, na ilha existente
no lago. Um clima afetuoso entre os casais e expressivo para os padrões de Paris.

Aquele lindo parque é símbolo de uma Paris contemplativa e bucólica, com campos
verdejantes, tomando outra configuração. À noite, deixa de ser o território tão seguro e no
horizonte não se veem mais os cedros, atléticos homens remando no lago e famílias brincando
com seus filhos. Muda a relação com os sentidos de quem vai após o pôr do sol. A segurança é
substituída por uma tensão, a visão limita-se à luz do farol ou à iluminação artificial, as pessoas
já não estão ali com tanto carinho, e sim para o sexo, em sua maioria. Há registros de roubos e
estupros. A noite é conhecida pelo perigo, conforme fui avisado por Yoran, no Hostel Peace
and Love. As notícias encontradas nos jornais atribuem esse quadro, na sua maior parte, a
ladrões e prostitutas (cis, trans e travestis), imigrantes, como a matéria do site do jornal
Lexpress.fr:95

Paris – “Commeiln’y a plus de clients, les rares qui viennen tabusent.” Six
mois après le vote de la loisur la prostitution, qui instaure la pénalisation du
client, les travailleuses du sexedécrivent un quotidienpaupérisé et teinté de
violence au bois de Boulogne.

95
Disponível em: <https://www.lexpress.fr/actualites/1/societe/prostitution-au-bois-de-boulogne-la-desertion-du-
chaland-l-avenement-des-violents_1837470.html>. Acesso em 23 de abril, 2018.
182

A l’arrière de sapetitecamionnetteclaire, deuxmatelasrecouverts


d’undrapnoirfont office de couche. Roberta, prostituée franco-péruvienne de
41 ans, activedepuissamajorité, nemâchepassesmots.
“Cetteloiestunemerde! On ne peut plus travailler. Certaines de mescollègues
n'ontmêmeplusassezpourmanger”, s’insurgecettejolietransblonde,
aunezchaussé de fines lunettes, quiditavoirperdu “lamoitié” de
sesclientsdepuisavril.
Garéessurlesallées passantes etcontre-alléesapaisantesdu “bois”
situéenbordure de Paris, de multiplesfourgonnettes, commelasienne,
attendentlechaland. Des femmes plus oumoinsvêtuesoffrentleurscharmes au
tout-venant. Mais rares, trèsrares, sontceuxquisuccombent, a constatél’AFP.
Depuisle vote de laloi, unclient est passible d’une amende de 1.500 euros,
pouvantmonter à 3.750 encas de récidive.96

Depois de algumas tentativas, após descer na estação Porte Maillot e aguardar um


taxista que aceitasse entrar na Route de Suresnesn, acesso ao Bois de Boulogne, e ir até as
regiões de prostituição, finalmente, um rapaz jovem, com aparência de emigrante de 30 anos,
apreensivo, aceitou essa aventura. Para isso, mostrei a ele documentação, a carteira de estudante
da universidade, e disse que se tratava de uma pesquisa. Pedi ao taxista, que falava inglês, que
andasse lentamente, mas ele tentava me convencer de que aquele horário era perigoso. Então,
olhei o celular e percebi que já passava das 23 horas.

Pouco minutos depois, um grande universo de prostitutas, desde Cis-mulheres, travestis,


trans e outros gêneros, como crossdress, foi aos poucos se evidenciando pelo farol do carro.
Estava frio, mesmo no Natal. A área verde também contribui para o declínio da temperatura,
uma vez que o ar se torna mais úmido. Ao passar por algumas travestis, uma abriu um longo
casaco e bem iluminada pelo farol alto do táxi, fazia um jogo sedutor com o corpo, enquanto
mostrava os peitos e o pau. Então, meio que rapidamente, pedi que parasse, porém, ele se
recusou, passou por outras pessoas que já não sei se se tratavam de homens procurando sexo
ou ladrões. Afinal, estávamos no meio de um parque de grandes dimensões. O taxista reforçou

96
Como não há mais clientes, os poucos que vêm o abuso. "Seis meses após a votação da lei sobre a prostituição,
que introduz a criminalização do cliente, profissionais do sexo descrevem uma madeira de violência” empobrecida
e manchada diariamente. de Boulogne. No fundo de sua pequena van leve, dois colchões cobertos com um pano
preto agem como uma fralda. Roberta, uma prostituta franco-peruana de 41 anos, está ativa desde que atingiu a
maioridade e não mede as palavras. "Esta lei é uma merda! Nós não podemos mais trabalhar. Alguns de meus
colegas nem têm o suficiente para comer", rebela essa linda loira trans, com o nariz usando óculos finos, que dizem
ter perdido" metade "de seus clientes desde abril. Estacionados nos becos e becos tranquilos do "bosque" à beira
de Paris, várias vans, como a dele, aguardam a barcaça. Mulheres mais ou menos vestidas oferecem seus encantos
a todos os que chegam. Mas raros, muito raros, são aqueles que sucumbem, descobriu a AFP. Desde a votação da
lei, um cliente é obrigado a uma multa de 1.500 euros, subindo para 3.750 em caso de reincidência. (Tradução
própria, 2018).
183

o quanto era perigoso descer para conversar naquele local. Na volta, por outras avenidas,
chegamos ao ponto de partida. Com satisfação, ele disse: “chegamos, brasileiro”.

Posso descrever esse local como um espaço segregado, onde estão todos expostos à
violência, intempéries climáticas, polícia, ladrões e abusadores. No entanto, agradava-me a
resistência de permanecer no Bois de Boulogne, mesmo sabendo que há poucas possibilidades
de uma travesti se ajustar à capital, mesmo na França, e que aquela era a única possibilidade,
talvez.
184

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma pesquisa pressupõe a busca em solucionar um problema levantado. Todavia, como


afirma Woolf (2006), é importante olhar para os lados. A questão é: como seguir procurando
certo equilíbrio dinâmico entre observar outras questões e possuir foco. A meu ver, foco não é
desconhecer o entorno, o que empobreceria as reflexões. Assim, a mitologia e a literatura foram
grandes caleidoscópios nesta jornada de formar e deformar, para sentir/entender de outras
maneiras os corpos e as identidades.

A relação com os diversos territórios foi marcada por encantamentos, confrontos, ora
com minha forma de entender, ora como fui entendido, dores, amizades e outros afetos
estiveram e estão presentes. As travestis ensinaram-me que há realidades e mundos. Como em
uma tessitura, constroem Aracaju, o nosso cotidiano. No território da prostituição de Atalaia,
Aracaju, quase sempre observadas e consideradas como monstros, como já citada à aula de
Michel Foucault, compilada na obra Os anormais, ou refletindo sobre o olhar de Georges
Bataille (p. 160, 2013):

A prostituição de baixo nível está no último grau de rebaixamento. Ela poderia


não ser menos indiferente aos interditos que o animal, mas importante para
chegar à perfeita indiferença, sabe dos interditos que outros os observam: e
não apenas está descaída, mas é-lhe dada a possibilidade de conhecer sua
decadência. Ela se sabe humana. Mesmo sem vergonha, ela pode ter
consciência de viver como os porcos.

Assim, a construção dos corpos das travestis de Atalaia, a mudança de seu gênero,
também significam mais resistência e negação por parte da cidade. Esse conflito entre o corpo
construído e os valores heteronormativos deflagra em cena de rejeição e violência contra elas
mesmas.

A obra Orlando: uma biografia (WOOLF, p. 09, 2006) inicia-se com o personagem
Orlando brincando com uma cabeça, no período Elisabetano. Após uma fase da vida como
nômade, tanto com relação ao espaço, tempo, quanto ao gênero, o livro chega ao fim, na
modernidade. Eis um dos últimos fragmentos da obra: “[...] a duodécima pancada da meia-noite
de quinta-feira, onze de outubro de mil novecentos e vinte oito” (WOOLF, 2006, p. 214). Não
me parece absurdo estabelecer relações entre alguns aspectos da obra citada e o percurso de
busca de identidade por meio da criação de uma cidade, referenciado nas diversas trocas da
capital sergipana, que seguiria São Cristóvão e, posteriormente, Aracaju.
185

Nesse jogo de mudança de nomes, locais e identidades, a capital abandona o velho,


mira-se mais uma vez para o novo. Deixa no esquecimento seu primeiro desenho e volta-se
para a região mais moderna. Difere de Orlando, que mantém em si as memórias. No entanto, o
movimento, com motivações diversas e valoração, é presente na cidade, em Orlando e nas
travestis.

O tempo de pesquisa, iniciado em 2012/2013 e finalizado, para o término do


doutoramento, em 17 de fevereiro de 2018, mostrou-se suficiente para o levantamento de
questões e respostas e novas problemáticas. O distanciamento geográfico entre a capital
paulista, onde se localiza a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e Aracaju aumentou
as lacunas de tempo entre os diversos retornos, o que ocorreu também durante o Doutorado
Sanduíche. No entanto, foi viável e possível manter contatos com as novas profissionais e as
que residem em Aracaju, principalmente por meio de uma informante, chamada Bela (nome
que escolhemos juntos).

Por sua vez, a pesquisa realizada na Europa, principalmente em Madrid e Paris,


demandou mais tempo e domínio da língua francesa, uma vez que as questões eram pontuais,
cujo objetivo era saber a relação entre a Europa e Aracaju, das travestis que trabalham com sexo
no bairro de Atalaia e a vida sob a ótica das travestis prostitutas no mercado europeu.

A construção dos corpos mediante a negação dos procedimentos clínicos mostrou-se,


ora como resistência à patologização, ora à falta de acesso aos serviços de saúde. Entendo que
ambos os elementos estão imbricados. Portanto, a cultura oral dos procedimentos prevalece
como possibilidade acessível. Aqui, explicito um limite do meu trabalho: o estudo da linguagem
oral e seus processos de transmissão. Todavia, entendo não poder abarcar um fato social na sua
totalidade. Deixemos para novos estudos, outras pesquisas. Afinal, nada está acabado,
reconstruindo a fala de Guimarães Rosa (GUIMARÃES ROSA, pp. 24-25, 1994).

Como os andrógenos, desejosos de chegar ao céu, presentes na mitologia grega,


refletidos no discurso de Aristófanes, em O Banquete, de Platão (1966), transformam-se em
monstruosidades no presente? Entender a lacuna que a presente pesquisa abre também poderá
gerar outros trabalhos. Entretanto, Leite Jr. conduz-nos a refletir por meio de sua obra Nossos
corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti e transexual no discurso
186

científico”, valiosa pesquisa a respeito do discurso das ciências sobre esses corpos, que está
vinculado a mudanças.

O período das pesquisas ocorreu, em maior parte, à noite. Certamente, esse fato
influencia o sentir. Sentir medo, sentir perigos possíveis de serem contornados, encontro com
as diversas forças repressoras, representadas por seus exércitos de “corpos dóceis”
(FOUCAULT, 1977), que a tudo olha e cataloga. A intensidade das vivências talvez seja
percebida. Afinal, nossos ancestrais temiam a noite e a escuridão. Embora, hoje, os faróis altos
nos pontos das travestis cheguem a ser ameaçadores, como aqueles que, por medo, receio e/ou
desejo, querem a tudo deflorar. A noite prevalecia...

As travestis, ou parte das pesquisadas, trazem em seus corpos questões valiosas, sob
minha ótica. Não só a negação da clínica, mas também a subjugação e customização das marcas,
a capacidade de confronto e encontros, mostrando-se nômades, que migram de cidade em
cidade.

A Europa das travestis de Atalaia desvelou-se com menor precariedade e outros


enfrentamentos e violências. Assim, o desejo de ir a esse continente é uma pulsão de vida, fato
que podemos perceber pelos preços e quantidade de programas. No entanto, outros riscos estão
sempre presentes.

As profissionais do sexo na Europa apresentaram-se com o aspecto do nomadismo mais


acentuado, quando comparadas com as travestis de Atalaia. Excetuando Porto, a constante
migração apresentou-se comum e com curto tempo de permanência, o que podemos atribuir à
situação de clandestinidade e oportunidade de mercado.

A condição de vulnerabilidade das travestis em Atalaia foi evidenciada em vários


momentos. Desde a luta por um território à vigilância da Força Nacional, ou pela tentativa de
homicídio, quando atearam fogo à casa de uma delas, com ela dentro.

Aspecto que me chamou a atenção foi a ausência das ONGs nas falas das travestis. Essas
organizações se mostraram ausentes nesse universo ou são negadas pelas travestis. Assim, sem
apoio, sob ataques, ora de fezes, ora de fogo, seguem na construção dos seus corpos, que tanto
significam em suas vidas, a ponto de, pareceu-me, colocar os aracajuanos em grande
187

desconforto, ao confrontarem-se com a possibilidade de que elas possam transformar seus


corpos, distante do que os demais habitantes esperam.

Pontes, talvez esse seja um sentido fundador desta pesquisa. Assim, lancei-me na
tentativa de construí-las e espero contribuir para que em um horizonte, não muito distante, elas
possam escrever sobre suas vidas e ocupar espaços, seja na academia, durante o dia, nas ruas
aracajuanas, sem serem tratadas com violências e/ou em outros espaços.
188

REFERÊNCIAS

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