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PUC-SP
São Paulo
2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
São Paulo
2018
Não se nasce travesti:
a construção dos corpos no cotidiano da prostituição.
Banca examinadora:
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São Paulo
2018
“O meu corpo é um jardim, a minha vontade o seu jardineiro”.
William Shakespeare
DEDICATÓRIA
A tese, ora apresentada, “Não se nasce travesti: a construção dos corpos no cotidiano da
prostituição”, tem como objetivo responder à seguinte questão de partida: como se dá o
processo de construção dos corpos das travestis que trabalham como prostitutas no Bairro de
Atalaia, na capital de Sergipe, Aracaju, no período de 2013 a 2018? Pretendemos, a partir dela,
refletir sobre o cotidiano destas profissionais e a relação com seus imaginários, dentre eles, a
ideia de uma Europa construída pelo viés do olhar e vivência das travestis, a qual lhes serve
como marco referencial estético e possibilidades de coexistência. Nesse sentido, nosso percurso
metodológico orienta-se pela pesquisa qualitativa e interpretativa: a Etnografia.
The thesis herein presented, “One is not born transvestite: bodies construction in daily life
prostitution”, aims to answer the following research question: how does occur the process of
construction of transvestites’ bodies who work as prostitutes in Atalaia neighbourhood in
Aracaju, Brazil, in the period from 2013 to 2018? Our objective is to reflect on the intersection
between such professionals’ everyday lives and their imaginaries, amongst them the perception
of a Europe built under the lens and experiences of those transvestites, which operate both as
aesthetic referential framework as well as possibilities of coexistence. In this sense, our
methodological course is oriented by the qualitative and interpretive research: Ethnography.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sei que as memórias de luta, desde a Ditadura
Militar, pela redemocratização não sucumbirão.
Ao suor e sangue dos brasileiros, por meio da Capes/CNPq. Fiz o melhor possível. Enfrentei
incompreensões e questionamentos como: “o que é isso?”. Hoje respondo: é o meu sangue!
Sujo ou limpo. É a minha vida.
Aos meus ancestrais, que me deram um espaço simbólico de ser o que sou, pelas memórias,
consciente de que devo preservar e lutar pelo o que acredito.
À minha Orientadora Professora Mariza Werneck. Sei que há, sim, neste vasto mundo, pessoas
que tenham capacidades de entender a arte e a nobreza de suas propostas em fazer ciência. Pela
capacidade de, em quatro anos e meio, nunca repetir uma disciplina, sempre inovadora.
À Professora Celeste, pelo acolhimento e respeito, pelo grupo de pesquisa Geprac e estar
sempre ativa na tentativa em recuperar o Programa. Hercúlea tarefa!
À banca de defesa, gratidão por aceitar fazer parte deste rito. Meu contentamento em ter
docentes tão competentes, com experiências diversas. Sei que, mais que o ato de defender-me,
será aprender.
Às minhas amigas e revisoras, Cláudia Guarnieri e Karina Nunes, tão entregues, tão desejantes
pela qualidade do trabalho, que chegávamos a discutir, são pessoas de muitas verdades.
A todas as Travestis e a Kaylane, altiva, forte, oriunda de Alagoas, sempre sorridente e dizendo,
antes de entrar nos carros: “João, não vá embora, já volto”. Linda, tão segura de si e racional
em enfrentar o medo nas madrugadas, e por tudo o que vivemos. Gratidão. Às demais, por
tornarem o mundo mais lindo, diverso e por ter a força de questionar valores tão conservadores
com seus próprios corpos.
1APRESENTAÇÃO .............................................................................................. 14
1.1Metodologia ....................................................................................................... 18
1.2Não se nasce travesti: A tese ............................................................................ 20
1 APRESENTAÇÃO
Este trabalho tem como problema de pesquisa: como ocorrem os ritos da construção dos
corpos das travestis que trabalham como prostitutas no território do Bairro de Atalaia, na
Capital de Sergipe, Aracaju, no período de 2013 a 2018? Pretendemos, como objetivo principal,
refletir sobre o cotidiano das travestis que trabalham como prostitutas no território de Atalaia e
a relação com seus imaginários. Além disso, outro objetivo secundário que tomou corpo a partir
do trabalho de campo foi o cotidiano da prostituição na Europa das travestis, sob a construção
do corpo, visto que é neste que seus ritos se referenciam.
A realização desta pesquisa deu-se de forma processual, marcada, porém, por desejos
de contribuir com um grupo aviltado. Quando aprovado para docente da Universidade Federal
de Sergipe, em junho de 2009, tinha ciência de que a pesquisa seria parte do meu labor diário.
Após efetuar alguns trabalhos sobre a Universidade Federal de Sergipe e sobre as comunidades
que a circundam, foi possível assim expandir o conhecimento sobre a, então, Grande Aracaju
(não tão grande assim). Entendi a negação da cidade pela antiga capital, a cidade de São
Cristóvão, dado que a Universidade oferecia cursos em territórios pertencentes à antiga capital.
No entanto, parte das alunas e alunos sempre se referia à Universidade Federal de Sergipe como
localizada em Aracaju (cidade), por exemplo, escrevendo nos trabalhos monográficos Aracaju,
em vez de São Cristóvão, bem como outros elementos que apresentaremos na etnografia.
A minha escolha deu-se por questões objetivas e outras de cunho pessoal. Aos dezessete
anos, em Salvador, frequentava o Grupo Gay da Bahia (GGB), sobre os quais as narrativas das
travestis sempre me causavam muito incômodo, com suas memórias sobre a noite. Lembro que
o antropólogo Luiz Mott, então fundador e presidente do GGB, fazia uma roda, falávamos e
ouvíamos. Agora, recupero essa memória. Há em mim uma grande empatia pelo universo das
travestis, sinto-me em certa medida nômade e não compactuo que meu corpo siga modelos
sobre a dicotomia masculino e feminino.
Na PUC/SP, após centrar meu trabalho, unicamente, em gênero, por mais de um ano,
passei a problematizar a minha pesquisa, após as disciplinas da Professora e Orientadora Mariza
1
Entendemos ser a denominação LGBTQI a que se aproxima da diversidade do universo tratado:
“Internacionalmente, a sigla mais utilizada é LGBTI, que engloba as pessoas intersex. Órgãos como a ONU e a
Anistia Internacional elegeram esta denominação com um padrão para falar desta parcela da população. Em termos
de movimentos sociais, uma denominação que vem ganhando força é LGBTQ ou LGBTQI – incluindo, além da
orientação sexual e da diversidade de gênero, a perspectiva teórica e política dos Estudos Queer” (Disponível em:
<https://pausadramatica.com.br>. Acesso em: 23 dez. 2017).
17
Werneck, afinal, o gênero está inscrito em um corpo. Assim, a construção dos corpos passou a
ser do universo definido no objetivo, passou a ser central. Todavia, não único. O corpo existe
enquanto interações, memórias, desejos, negações, afirmações, vida e morte. Parecem-me
infinitas as relações que podemos estabelecer do corpo, com o corpo, pelo corpo. Resolvemos
reformular nosso problema e o objetivo de pesquisa, os quais se direcionavam para um
aprofundamento sobre os ritos de consumo, no primeiro momento.
Nesse cenário, talvez sejam as travestis o grupo que rompa com as crenças estabelecidas
e que estrutura a cultura, centrada na religião judaico-cristã, usando o próprio corpo, marcando-
o, metamorfoseando-o de forma mais conflitante para com outros grupos sociais. À medida que
buscam a identidade que desejam, deixam o anonimato e passam a ser um monstro
(FOULCAULT, p. 48, 2014). O anormal que coloca a sociedade em risco, portanto, deve ser
impedido, e assim é retirada sua humanidade, são desumanizadas.
Tornar-se travesti é ser percebido e nomeado pelo outro, esquecer o nome de batismo e
(re)nascer com o nome escolhido pelos mais diversos motivos. Travestis são aquelas que
trabalham, modificam e transformam seus corpos com o objetivo de aproximar-se do corpo
feminino. Além dessas transformações, a indumentária usada cotidianamente é feminina, bem
como a identidade, não havendo o desejo de recorrer ao recurso cirúrgico para a
transgenitalização.
1.1 Metodologia
2000). Para Hine (2008), a aplicação do método etnográfico no estudo de comunidades virtuais
dilata a aplicação da etnografia tradicional.
A pesquisa, de 2013 a julho de 2018, com intervalos, ora pelo Doutorado Sanduíche na
Universidade do Porto, ora pela distância, bem como a necessidade de maturação e
transformação dos dados coletados em informações, mantinha-me em contato com duas
informantes, por meio de redes sociais, mais especificamente, o Messenger, ferramenta do
Facebook. Importante salientar que, por questões éticas, minha rede social não permite que os
outros conectados saibam quem são os componentes da minha teia, preservando a identidade
delas, fato que também seria difícil identificá-las por haver um número maior de travestis do
que de informantes. No entanto, a aproximação mostrou-se menos difícil que o esperado, e
somente o tempo deu-me a capacidade de adentrar nos universos simbólicos das travestis.
Devemos considerar alguns aspectos deste trabalho, como o campo etnográfico, que
possui um caráter limitado, não podendo ser atribuído a outros grupos, mesmo dentro de
Aracaju, sabendo que a maior parte é influenciada pelo nomadismo2. A construção etnográfica
não negligenciou a violência vivida pelas travestis, construiu um caminho sem efetivamente
desejar a totalidade; o aspecto humano ou ético, ao entender como um grupo aviltado, foi
cuidadosamente periciado por revisores. Os nomes foram substituídos por outros (quando
possível, sugerido pelas próprias travestis), objetivando a preservação das identidades. As
localidades não são explícitas, não há nomes de ruas, ou maiores informações. Serão
2
O termo nomadismo é utilizado em contraponto ao conceito de povos sedentários, considerando essa definição
ampla e descartando a definição a seguir pelo valor moral, contudo vale salientar que cada grupo migratório
constitui uma especificidade própria. “Em sentido vulgar, é qualquer forma de vida errante, independente da base
econômica, subestilo de grupo de vida, assim, costuma-se falar do nomadismo dos caçadores paleolíticos, dos
índios das pradarias ou, num plano bem diverso, dos ciganos. Todos os pesquisadores atuais refutam este emprego
excessivamente generalizado, como se pode ver em H. P. Fairchild, R. Sauer, etc.” (DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS, p. 820, 1987).
20
Metamorfose
Súbito pássaro
dentro dos muros
caído,
pálido barco
na onda serena
chegado.
Noite sem braços!
Cálido sangue
corrido.
E imensamente
o navegante
mudado.
Seus olhos densos
apenas sabem
ter sido.
Seu lábio leva
um outro nome
mandado.
Súbito pássaro
por altas nuvens
bebido.
Pálido barco
nas flores quietas
quebrado.
Nunca, jamais
e para sempre
perdido
O eco do corpo
no próprio vento
pregado.
Cecília Meireles
Por tratar-se de uma pesquisa sobre a construção do corpo, e é nesse corpo que se dá a
“performatividade de gênero”5, foi-me enriquecedor o aprofundamento no universo simbólico
dos mitos, uma vez que somos também parte de identidades influenciadas por eles. Entendemos
que a matriz judaico-cristã, em muitos momentos relê e apodera-se dos mitos greco-romanos,
a exemplo da obra Metamorfoses, de Ovídio, que apresenta indícios da primeira destruição do
mundo por água, como descrita na Bíblia, em Gênesis, no Antigo Testamento6.
Com o objetivo de criar uma espécie de “lastreamento móvel”7 para a pesquisa aqui
realizada e responder ao problema apresentado, conceituamos e discutimos identidades, gênero,
refletindo sob a ótica da formação higienista, uma perspectiva possível da chegada da província
3
“O primeiro momento, que chamarei de ‘primeira onda’, corresponde ao surgimento e
expansão desse movimento durante o período de ‘abertura’ política e foi registrado pela maior parte da bibliografia
disponível sobre o tema. Nesse momento, as iniciativas estiveram bastante concentradas no eixo Rio-São Paulo,
eram fortemente marcadas por um caráter antiautoritário e comunitarista, pela relação com propostas de
transformação para o conjunto da sociedade e foram tratadas pela bibliografia sobre movimentos sociais a partir
do enquadramento entre os movimentos então chamados de ‘alternativos’ ou ‘libertários’” (FACCHINI, p. 81-
124, 2003).
4
“No ano de 1978 o Brasil era governado pelo penúltimo general ditador: Ernesto Geisel, governo esse que foi de
1974 a 1979 e tinha como promessa a abertura ‘lenta, gradual e segura’, como assinala Reis (2013, p. 200). Nesta
fase final da ditadura, a censura e a repressão já estavam reduzidas, e a abertura política já havia se iniciado em
1974 e Atos Institucionais como o AI-5 já estavam sendo revogados. É neste contexto que surge o Lampião da
Esquina, um jornal da chamada imprensa alternativa, que tinha como diferencial falar sobre a comunidade gay”
(BROERING, p. 19, 2018).
5
Judith Butler define o conceito de “performatividade de gênero”, afirmando que este “[...] não é um ‘ato’ singular,
porque sempre é a reiteração de uma norma ou um conjunto de normas e, na medida em que adquire a condição
de ato no presente, oculta ou dissimula as convenções de que é uma repetição” (BUTLER, p. 34, 2002).
6
Bíblia Sagrada (1999).
7
Refiro-me a “lastreamento móvel” como aquele que deseja mostrar a abstração da percepção dos conceitos, a
depender da área de conhecimento, como argumenta Deleuze e Guattari, em O que é filosofia?: “Todo conceito é,
ao menos, duplo ou triplo etc. Também não há conceito que tenha todos os componentes, já que seria um puro e
simples caos: mesmo os pretensos universais, com os conceitos últimos devem sair do caos, circunscrevendo um
universo que os explica (contemplação, reflexão, comunicação...). Todo conceito tem um contorno irregular,
definido pelas siglas de suas cifras componentes [...] A ideia de conceito é uma questão de articulação, corte e
superposição” (DELEUZE, GUATTTRI, p. 23, 2010).
22
8
Adolescência, sexo e cultura em Samoa (tradução nossa).
23
se mulher” (p. 11, 2016). De acordo com Butler, Beauvoir faz declarações que “pressupõem e
definem por antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis de
gênero na cultura” (BUTLER, p. 28, 2003), de algo que ocorrerá no universo cultural. Quanto
à afirmação citada, “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que
se torna mulher seja necessariamente fêmea” (BUTLER, p. 27, 2003).
Há, nesse título, uma espécie de questionamento identitário, uma vez que Sergipe é o
menor Estado do Brasil, fato que fragiliza a identidade sergipana, com sua elite oriunda da
aristocracia rural, composta por grandes canaviais e criação de gado, até o início deste século.
E foi nos latifúndios que surgiu a criação de uma espécie de elite segregacionista, higienista,
racista, conforme discutiremos na Etnografia.
9
Não distante da discussão aqui apresentada, a AIDS logo foi fortemente ligada à homossexualidade, nos anos
1980, trazendo abertura para que discursos midiáticos fossem construídos e difundidos com essa ideia. Logo, os
sujeitos de um lado do muro enxergavam os sujeitos do outro lado (LGBTS) como transmissores do vírus, e até
atribuindo à AIDS o título de “peste gay”. Com o tempo, os discursos foram mudando, pois as causas e efeitos do
HIV e da AIDS foram sendo esclarecidos por profissionais da área e descontruídos por veículos de informação.
Seguindo a ideia de Assmann (2011), essa memória cultural sobre portadores de AIDS foi construída com a ajuda
de aparatos midiáticos que propagavam esse discurso imagético e textual sobre o tema (MELO, p. 226, 2013).
10
Título da primeira parte da publicação de Trevisan (2000), utilizado aqui como uma metáfora da nossa
impossibilidade desse tão longínquo distanciamento do fato social (TREVISAN, 2000).
24
A bem da verdade, desejávamos incluir João Guimarães Rosa, com a obra Grande
Sertão Veredas, devido à trama envolvendo o/a personagem Diadorim, que continua a linhagem
das donzelas guerreiras, afinal, nada seria mais oportuno que trabalhar uma obra com a beleza
e o peso de Grande Sertão Veredas. Entretanto, entendemos que Virgínia nos cabia, certos de
que Rosa nos abriria novos campos. No entanto, suas possibilidades linguísticas, seus processos
de pesquisa, a obra, teríamos que fazer muitos recortes. Contudo, há momentos em que temos
25
que fazer escolhas, pois percebemos que na caminhada, por vezes, em Orlando, não são os
gêneros que estão em questão, muito menos sua nomenclatura.
A forma como a tese foi construída possibilita que as divisões capitulares sejam lidas
independentemente. Assim, graças a Moira Láquesis (MEUNIER, p. 227, 1961), há um fio que
perpassa todo o trabalho. Criando pontes diversas entre os vários capítulos, o construto do
trabalho divide-se em seis dimensões, a priori. Uma sobre a qual lançamo-nos a refletir usando
a memória encontrada em dados secundários, uma única entrevista com um pesquisador, dados
da historiografia sobre o movimento feminista e a relação como base para o movimento gay
(nomenclatura utilizada no momento do surgimento) nos EUA e a chegada ao Brasil.
Inicialmente, em São Paulo e Rio de Janeiro, depois, como quem regula um caleidoscópio,
juntando pedaços desse processo, chegamos à Bahia, que muito influenciou um incipiente,
porém importante, grupo em Aracaju. O militante e professor emérito da Universidade Federal
da Bahia, Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), criado na década 1980, grupo
que, posterior ao SOMOS/SP, teve forte atuação e estabeleceu conexões entre os movimentos,
articulando Sudeste e Salvador. O GGB influenciou fortemente a criação do primeiro grupo gay
de Aracaju, Dialogay, que ainda hoje possui vínculos com os grupos sergipanos. Não raro, o
então polêmico Luiz Mott faz apresentações voltadas a políticas públicas, além de outras
atividades referentes ao universo LGBTQI.
27
“Questões”
a)
O
fruto
arquitetado:
como o sermos?
b)
Difícil o real.
O real fruto.
Como, através
da forma, distingui-lo?
c)
Aguda
a
luz
sem forma
do que somos
Como, sem vacilações,
vivê-la?
A presente tese trata da construção dos corpos das travestis que trabalham como
profissionais do sexo no bairro de Atalaia, em Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Para
estabelecermos a reflexão sobre o processo de constituição dos gêneros, enquanto construção
social, bem como seus desdobramentos11, buscamos entender, neste capítulo, o que James
Green (2000) chama de primeira onda, aplicada a este estudo.
O objetivo deste capítulo é discutir brevemente alguns conceitos, por vezes controversos
nas ciências, como o conceito de “gênero”. A delimitação temporal restringe-se ao período
definido como primeira onda, suprarreferido, e recai sobre um período de menor controle da
ditadura, na gestão do general Geisel, focando do final da década de 1970 a meados da década
de 1980. Entendemos não haver uma data precisa de início ou término, mesmo dentro desse
período, uma vez que as ações dos governos Geisel e Figueiredo foram ora mais violentas, ora
mais amenas.
11
Um desses desdobramentos deriva do ativismo gay nos Estados Unidos da América, no protesto conhecido como
Stonewall Inn, considerado por alguns ativistas e pesquisadores a grande influência para os grupos gays brasileiros,
ainda que essa influência encontre um cenário local ditatorial.
28
Foram, aqui, utilizadas fontes primárias e secundárias. Realizamos uma entrevista, por
telefone, com o professor e militante Marcos Ribeiro de Melo, fundador do Grupo Dialogay,
primeiro grupo gay de Sergipe, fundado em 1981. Seu relato foi ainda mais importante pelo
fato de haver poucos trabalhos científicos e fontes confiáveis a respeito do tema. Pretendíamos,
ainda, entrevistar o antropólogo Luiz Mott, que também atua no cenário sergipano. No entanto,
sua agenda de viagens e trabalhos tornou inviável nosso contato. Entre as fontes secundárias,
foram utilizados jornais e revistas, destacando-se o periódico Lampião da Esquina.
Em 1947, Denise Paulme publicou o Manual de Etnografia, de Mauss, que foi muito
bem aceito e esgotou-se rapidamente, de acordo com Marie-Élisabeth Handman (2014). Nessa
publicação, referindo-se às técnicas que constam na obra Técnicas do Corpo, já citada, Mauss
ressaltou diversos problemas, sendo um deles a questão da divisão de trabalho de acordo com
os sexos. Como o próprio subtítulo de Handman pontua: Um programa inacabado, Mauss
continua:
Hijras não são homem nem mulher, mas contêm elementos de ambos, são
pessoas devotas da Deusa Mãe Bahuchara Mata. Os dois espíritos homem-
mulher, mulher-homem possuíam diferentes funções nas sociedades
ameríndias e eram considerados de diferentes maneiras, dependendo do grupo
em que viviam [...] (HANDMAM, p. 89, 2014).
Sendo verdade que Mauss se dedicou a inúmeros estudos e pouco saía da França,
dependendo, assim, da coleta de dados de colegas (HANDMAM, 2014), o mesmo não se pode
afirmar de Margaret Mead, que realizou várias pesquisas de campo, na década de 1930, um
período em que era pouco usual encontrar mulheres dedicando-se a esse tipo de trabalho
(décadas de 1920-1930). O fato é evidenciado na matéria do site Obvious, dedicado à
antropologia:
22 anos, ir viver na Samoa Americana (no Pacífico Sul), para aí realizar vários
estudos de campo. Não foi de admirar que muitos homens se interrogassem
sobre o que fazia uma jovem mulher branca no meio de uma horda de
bárbaros, em vez de estar em casa a cozinhar para o marido.12
Ao regressar dessa viagem, Mead lança a obra Coming of Age in Samoa13 (1928), na
qual demonstra que a passagem pelo que seria a adolescência, que em nossa cultura dá-se de
forma conturbada, faz parte da metamorfose do corpo e do ligar simbólico que esse indivíduo
ocupa na comunidade, e que os problemas decorrentes dessa fase, no Ocidente, estão ligados
às expectativas e exigências da cultural euro-ocidental. No entanto, sua afirmação de que as
mulheres de Samoa optavam por adiar o casamento por anos para desfrutar o sexo ocasional
fez com que fosse hostilizada e sua obra recebida como mero livro de sexo. Vicente (2014), em
seu livro Sexo e Temperamento, publicado em 1935, fruto de pesquisa com aborígenes em Nova
12
Disponível em:
<http://obviousmag.org/archives/2010/11/margaret_mead_das_tribos_primitivas_a_revolucao_sexual_feminina.
html#ixzz4AywrYFXw>. Acesso em: 21 fev. 2018.
13
Adolescência, Sexo e Cultura em Samoa (tradução nossa).
30
Guiné (Arapesh, Mundugumore Tchambuli), Mead observou que os papéis sociais de homens
e mulheres variavam de tribo para tribo, não sendo, portanto, inatos, e sim culturais. Nas tribos
Arapesha as pesquisas mostraram a maternidade como uma imbricada relação entre pai e mãe,
na qual o foco era ajudar o desenvolvimento do filho ou filha.
Nas gramáticas das línguas modernas ocidentais, cada palavra possui um gênero,
excetuando raros casos, como o alemão, em que existem pronomes neutros. Em português não
há elemento que indique neutralidade, seja para referir-se a seres animados ou inanimados,
concretos ou abstratos: todos possuem gênero.
Butler, como ressalta Sara Salih, no livro Judith Butler e a Teoria Queer, questiona não
somente a dimensão da nomenclatura, mas o estilismo literário, a síntese e toda a gramática:
“Butler refuta, contudo, a visão, que é parte do ‘senso comum’ de que um ‘bom’ estilo de escrita
é necessariamente um estilo claro, afirmando que nem o estilo, nem a gramática são
politicamente neutras” (SALIH, p. 25, 2012). Além de responder aos seus críticos, que a
classificam como quase incompreensível, Butler dilata a relação de poder da língua.
Essa generalização de atribuição de gênero a tudo foi questionada pelo movimento
feminista nos anos 1980 do século passado, principalmente levando-se em conta a existência
31
de espécies que não têm sexo definido, e o fato de que nem todas se reproduzem por meio do
ato sexual. Esse grupo afirmava que as diferenças entre homens e mulheres não dependiam do
sexo fisiológico, e sim de questões culturais.
O termo Identidade de Gênero é usado a primeira vez pelo psicanalista Robert Stoller
(1924-1991), em um Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Estocolmo, Suécia,
em 1963 (ABA, 2016), com o objetivo de diferenciar cultura de natureza. No entanto, como
afirma Pedro, foi no interior do universo das mulheres que a categoria de análise “gênero”
passou a ser usada.
Em Gênero: uma categoria útil de análise histórica, texto muito conhecido e aclamado
de Joan Wallach Scott (1987), a autora diferencia a utilização que faz do termo “gênero”
daquela adotada por Stoller. Scott leva em conta a historicidade e o processo social, bem como
desconstrói a utilização inicial feita pelo Dr. Robert, e dialoga com o conceito de poder de
Michel Foucault:
Joan Scott gera, assim, uma categoria útil de análise histórica, ressaltando a questão
cultural. Como outras feministas da época, não se apodera do conceito gênero fundamentado
no determinismo biológico: gênero é utilizado focando na organização social. Para a autora, há
14
Vale ressaltar que Jacques Lacan negava a existência do termo mulher, na linguagem: “Não há mulher senão
excluída da natureza das coisas, que é a natureza das palavras, e temos mesmo que dizer que se há algo que elas
mesmas se lamentam bastante, é mesmo disto [...]” (LACAN, p. 99, 1972-1973).
32
uma paridade em três conceitos que explicariam a desigualdade: classe, raça e gênero.
Entretanto, é na análise crítica do patriarcado, nas teorias marxistas e no pensamento
psicanalítico que ela muito contribui para a discussão.
As feministas marxistas têm uma abordagem mais histórica, já que elas são
guiadas por uma teoria da história. Mas, quaisquer que sejam as variações e
as adaptações, o fato de que elas se impõem a exigência de encontrar uma
explicação “material” para o gênero limitou ou pelo menos atrasou o
desenvolvimento de novas direções de análise (SCOTT, p.78, 1995).
Dessa forma, discorrendo sobre o termo “gênero” num determinado contexto histórico-
social e político, ele pode designar uma categoria de análise. Sendo o gênero a primeira
instância que o sujeito constrói em si, traduz-se também como primeira instância na qual o
33
poder age, uma vez que perpassa toda a organização da vida social, legitimando ou não
construções existentes.
Certamente, em parte do Ocidente, os estudos sobre gênero tenham mudado a partir dos
anos 1990, após a publicação, nos Estados Unidos, de Problema de Gênero, de Judith Butler.
Seu livro, traduzido e publicado no Brasil apenas em 2003, treze anos após seu lançamento,
leva-nos a especular sobre a pouca importância que os estudos de gênero ocupavam em nosso
país, passando a ser mais intensamente discutido. O mesmo se deu com a escritora Beatriz
Preciado, que possuía, até 2018, um único livro publicado em português – lançado no Brasil
em 2014, enquanto na França a mesma obra chegou às livrarias em 2002. Soma-se a esses fatos
a pouca expressividade das nossas publicações sobre o assunto no cenário mundial.
15
Sujeito do Desejo: Reflexões Hegelianas na França do Século XX (tradução nossa).
34
A crítica contundente feita por Judith Butler, ao referir-se à primeira parte do livro O
Segundo Sexo, escrito por Simone de Beauvoir, em 1949, parece-nos passível de ponderações.
Butler desconsidera questões fundamentais colocadas pela filósofa Beauvoir, por exemplo,
“que é uma mulher”? (BEAUVOIR, p. 7, 1980).
Em sua obra, Beauvoir, ao buscar resposta (ou respostas) a essa pergunta inicial, formula uma
afirmação que desconstrói a crítica que lhe foi lançada pela filósofa Butler: “Mas antes de mais nada:
que é uma mulher?”. A delicadeza da formulação da questão em não iniciar a pergunta com um artigo
definido “o” conduz-nos à reflexão criteriosa e não limitante. É relevante salientar que essas reflexões
ocorreram em 1949.
Em seguida, continua Beauvoir, “‘Tota mulier in utero16: é uma matriz’, diz alguém. Entretanto,
falando de certas mulheres, os conhecedores declaram que não são mulheres, embora tenham útero como
as outras [...]” (BEAUVOIR, p. 7, 2000), ao contrapor a relação de causa e efeito ao longo do volume
1, desconstrói a ideia do ser biológico mulher/fêmea, o que impactou a compreensão sobre “que é
mulher?”. A força dessa teoria sobre o paradigma vigente positivista fez com que a Academia
necessitasse de anos para digerir a obra, o que parece ter ocorrido somente depois de o livro O Segundo
Sexo ter sido traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, onde consegue, finalmente,
visibilidade (REIS, p. 50, 1998).
Outra dimensão da parcialidade da crítica atribuída ao trabalho de Beauvoir dá-se pelo fato de
o livro sustentar-se em duas teses: “Não se nasce mulher: torna-se mulher”; e sobre a relação com “O
homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”. Parece-nos que, por não se ater a discutir longamente
sobre O Segundo Sexo, Butler recorta a reflexão para, assim, construir sua crítica.
Butler (2003) também introduz a noção de gênero sob a ótica da performatividade. Para
a autora, no território da cultura, repetem-se palavras, movimentos, signos, atos, ritos e
comportamentos. Essa continuidade dá significado ao que entendemos como masculino e
feminino, uma estrutura binária. O “gênero” é um efeito performativo de atos repetidos, sem
um original ou uma essência, que não revelam nem expressam uma identidade preexistente
(AMBRA; SILVA JR., p. 40, 2014). As Travestis, Dragqueens, Drag kings e Trans são um
confronto com o que a pensadora intitula gênero inteligível, ou seja, aqueles nos quais há
coerência entre sexo, gênero e desejo normatizado. Caso outros indivíduos não sejam
reconhecidos como inteligíveis, podem sofrer reações violentas, que vão desde as agressões
16
Toda mulher tem útero (tradução nossa).
36
psicológicas e simbólicas até à física, em muitos casos, levando à morte. Assim, a construção
da alteridade das travestis, por exemplo, serve para explicitar o quanto o gênero é intencional e
performático.
Butler é comumente chamada “a pensadora da Teoria Queer”17, ainda que não tenha
sido a primeira a fazer uso da expressão, que foi definida por Eve Kosofsky Sedgwick como
“um momento, um movimento, um motivo contínuo-recorrente, vertiginoso troublant
[perturbador]” (SEDGWICK, p. 12, 1994). Na ideia de queer não está a preocupação com
cristalização e rigidez; é, antes, transitiva e nega a assimilação. Para a Teoria Queer, não há um
sujeito gay, nem a fêmea ou o macho; tais estabilidades devem ser desconstruídas, sendo a
indeterminação, as instabilidades sexuadas e de gênero substituídas (SALIH, p. 19, 2012).
Paul Preciado, pesquisadora da Universidade Paris IV, em seu livro Testo Yonqui
(2008), traduzido em 2018 para a língua portuguesa, relata que realizou um protocolo de
autointoxicação com testosterona, em que o hormônio foi absorvido por meio da pele,
utilizando doses de 50 miligramas diárias; por conta disso, o experimento foi chamado de
mutação de uma época. Segundo Lessa, o objetivo do livro centrou-se em:
Os dois livros de Paul Preciado foram traduzidos para o português, com o título de
Manifesto Contrassexual. Publicado em 2014 e considerado o mais importante sobre o tema, já
na segunda edição, a autora muda de nome, todavia continuando a ser tratada no feminino. Paul
Preciado, a intelectual espanhola, conhecida também pela militância no universo das lutas
17
Uma característica da Teoria Queer é a utilização de seus termos no original, sempre, ainda que a falta de
tradução dificulte a compreensão dos jogos de palavras, ou do sentido pretendido.
37
queer, foi orientanda de Jacques Derrida (LESSA, p. 288, 2011). Para Paul Preciado, o contrato
sexual define-se como:
A versão brasileira desse manifesto de Paul Preciado tem projeto gráfico da cartunista
trans Laerte. Desde o formato, com uma circunferência na base direita penetrando todas as
folhas (algo que remete a um ânus) ou na apoderação da linguagem de manual, até os títulos
dos capítulos, o contrato intitulado um Contrato Contrassexual18 possui alguns aspectos que
chamam a atenção, como o uso da palavra voluntária, unicamente no feminino, ou, ainda, a
ruptura com o incesto, “[...] renuncio a todos os laços de filiação (maritais e parentais)”
(PRECIADO, p. 45, 2014). O corpo é entendido como um produtor de dildo (figura 1), e o
“corpo falante” (derivação do termo falo), que é uma designação comum para pessoa, adotada
por Preciado, é “como um trabalhador do cu” (PRECIADO, p. 45, 2014). A linguagem crua é,
pois, parte da militância e produção intelectual, e não podemos nos esquecer que, por não ser
neutra, é, portanto, também um recurso político.
18
Ver anexo 1.
38
A obra traz, nessa primeira parte, treze artigos no formato de dogmas, pois visam
estabelecer aquilo que deve ser observado e obedecido. No primeiro artigo “A sociedade
contrassexual demanda que se apaguem as denominações masculino e feminino correspondente
às características biológicas (homem/mulher, macho/fêmea) da carteira de identidade”. Os
demais artigos seguem a lógica da implantação de uma sociedade contrassexual.
Concordamos que a produção intelectual e a militância política devam ser algo uno,
indissociável, inseparável, pois há muito rompemos com a postura supostamente imparcial, que
se mostra como uma contribuição de parte da própria construção de Preciado. A criação de uma
“sociedade contrassexual” não incorre no risco de uma instituição total, tal como o conceito de
Goffman (2015)19? A Teoria Queer trabalha com a ideia de devir. Como o queer lidaria com o
vir a ser, dado que na obra Contrato Contrasssexual há um contrato, orientado mais pelo pela
flexibilidade, à parmenidiana, que defendia um mundo estático? Resta-nos encontrar um arranjo
a esse mosaico que, por uma vertente influenciada por Butler (2016), se propõe a não amarras
ou limitação a gêneros, o contrato defendido por Paul Preciado (2014) propõe o estático, afinal,
o modelo sugerido abdica da condição de gênero, lidando com a condição de corpos, porém,
como todo contrato, é uma relação estabelecida no tempo e no espaço. Devemos impor uma
identidade institucionalizada? E quanto à exclusão dos que não desejam compor esse universo?
Entre outros aspectos que também julgamos importantes, devemos lembrar a Preciado que
tornar as práticas contrassexuais um trabalho social é também uma institucionalização.
19
“Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em
resumo, toda instituição tem tendências de ‘fechamento’” (GOFFMAN, p. 16, 2015).
39
Podemos questionar se esse caminho não estabelece novas performatividades como centrais, e
até normativas.
Tamsim Spargo (2006), em seu livro Foucault e a Teoria Queer, chama a atenção para
alguns aspectos já superados dessa teoria, por exemplo, o gosto pela transgressão, que se
transformou em produto à venda em qualquer sex shop. Usar uma camisa com a estampa “Queer
as Fuck”20 continua a levantar questões. O queer tornou-se mais uma categoria de identificação,
mais uma que fragmenta? “Na sociedade de capitalismo tardio, seriam as pessoas queer
realmente apenas gay e lésbicas, e alguns outros cujo relacionamento mais íntimo é com seus
cartões de créditos?” (SPARGO, p. 78, 2006).
20
“Bicha é foda” – em tradução livre, apenas para dar ideia da crueza do significado queer seria bicha?
Homossexual masculino?
40
Após essa discussão pontual sobre questões conceituais de gênero, adotaremos o mesmo
posicionamento teórico de Ambra e Silva Jr. (2014), que traduz a percepção de Butler: “Gênero
um efeito performativo de atos repetidos, sem um original ou uma essência, que não revelam
nem expressam uma identidade preexistente” (KNUDSEN, p. 78, 2007). Assim, travestilidade
e androginia são entendidas aqui como gêneros. As definições são aprofundamentos das
representações e serão tema de um subtópico neste capítulo.
Em Arqueologia do Saber, Michel Foucault (2009) reflete que o objeto não está presente
na formação discursiva referida a este, no entanto relações de diversas ordens, como uma rede,
são formadas e exteriorizadas. Assim, o processo de formação do saber é constituído no campo
21
Outros autores possuem larga reflexão sobre essa relação, como em Nós, ciborgues, o corpo elétrico e a
dissolução do humano, de Tomaz Tadeu (1997) e Genealogia do ciborgue, de Hari Kunzru (1997).
41
discursivo. Nesse aspecto, faltam-nos mais categorias? Ou serão essas expressões de poder
exibidas e colocadas por discursos?
O Lampião, logo em seguida chamado Lampião da Esquina, foi lançado em 1978, com
tiragem de dez mil unidades, bastante significativa para a época. A publicação do periódico só
foi possível porque começava a abertura política e, portanto, a repressão já não era tão violenta.
No entanto, não podemos afirmar que a discriminação tenha acabado ou diminuído
drasticamente, uma vez que existimos em uma sociedade com fortes traços homofóbicos
(MOTT, 2009). O número zero foi entregue nas residências com duas chamadas: Um ensaio de
Darcy Penteado e Celso Curi: processado. Mas qual é o crime deste rapaz?
somente por homens e autodenominava-se Mattachine Society. Era radical, realizava reuniões
secretas, constituído de adeptos da visão médica que, na época, tratava a homossexualidade
como patologia. Os membros desse grupo usavam roupas e padrões estéticos da classe média
norte-americana, e sua frase de ordem era: “reforme sua própria imagem e, então, comporte-se
de acordo com a sensibilidade da classe média”. Posteriormente, em 1953, foi criada a revista
One, com foco no público homossexual e, em 1955, o ativo grupo de lésbicas Daughtersof
Bilitis (DOB), ambos críticos das posições patologizantes e conservadoras do grupo Mattachine
Society (CAMARGO, 2007).
Esse cenário, com tão poucas organizações civis, foi se fortalecendo, a exemplo de
outros grupos, e realizando mudanças sociais importantes nas décadas de 1960 e 1970, nos
Estados Unidos. A revolta de Stonewall foi um ponto importante na luta pelos direitos de gays,
travestis e lésbicas.
22
Disponível em: <http://www.esquerda.net/dossier/batalha-de-stonewall-marco-do-movimento-lgbt>. Acesso
em: 23 jan. 2016.
43
Havia segregação e obscurantismo nos bares, alguns sob o domínio da máfia, com
frequentes batidas policiais. Raros eram aqueles locais em que se podia dançar, de acordo com
jornais da época, como o New York Times, que escreveu matérias referentes à invasão. Enquanto
isso, o Sunday News, em 6 de julho do mesmo ano, estampou na capa homo nestraided, queer
bees are stingingmad23, o que pode ser traduzido como “o ninho homo foi desbaratado. As
abelhas queer (esquisitas, bichas) estão picando furiosas”. Já o Sunday News optou por uma
cobertura em defesa dos direitos humanos, afirmando que os agressores deveriam ser
enquadrados em um duplo crime: biológico e jurídico, como pudemos perceber, desde a
nomenclatura que lhe deram, quando são classificadas como Queer Bees, possuidoras de um
comportamento perverso, pois, ao passo que usam queer (termo usado pejorativamente) e bees
(abelhas), atribuindo-lhes agressividade.
23
Disponível em: <http://www.nydailynews.com/new-york/manhattan/stonewall-raid-enrages-homosexual-
community-1969-article-1.2627685>. Acesso em: 24 jan. 2016.
44
Stonewall é uma palavra com forte significado para a comunidade LGBT. Foi
em um bar gay chamado Stonewall, em Nova York, há pouco mais de 40 anos
que gays, lésbicas, travestis e dragqueens se uniram pela primeira vez para
lutar contra a intolerância. Pela primeira vez todos eles se sentiram iguais –
por serem diferentes (RIBEIRO, p. 153, 2011).
Em maio de 1968, o movimento iniciado por estudantes, com adesão de dois terços dos
trabalhadores franceses, enfraqueceu o governo do então Presidente General Charles De Gaulle.
Diante dos protestos, De Gaulle antecipou eleições e prometeu melhores salários,
desmobilizando, assim, os trabalhadores, que retornaram aos seus postos. Nesse momento, os
aliados de De Gaulle saíram fortalecidos. No entanto, a resistência e união dos mais diversos
grupos sociais transformaram-se em enorme força popular.
Essa nova forma de viver os desejos sexuais, reivindicada pós Stonewall, que muda a
forma como os gays se veem e os fortalece para a luta, seria diferente se não tivessem ocorrido,
também, as discussões sobre questões de gênero levantadas pelas feministas, caso as mulheres
não tivessem queimado seus sutiãs e questionado a opressão dos seus desejos. Se maio de 1968
foi o responsável por ação e argumentos, foi o movimento feminista que pautou ambos,
Stonewall e Maio de 68, como expressões de levantes que se alimentam nos discursos e ações
de diferentes grupos ditos “minoritários”.
Importa, então, repetir o que Vivaldo Lima Trindade (2007) ressalta: Stonewall tornar-
se-ia uma revolta de tamanha escala, caso não fosse precedido por maio de 1968 em Paris? O
pesquisador entende como pouco provável.
a ser seguido deveria concentrar-se nas liberdades civis, ou promover a aceitação da cultura
gay24.
Após a notícia de Stonewall ter atingido a Cornell SHL, decidiu-se tomar uma
medida radical e alinhar-se com o campus de Estudantes para uma Sociedade
Democrática (SDS). [...] Cornell juntou forças com organizações
homossexuais em mais de 175 faculdades e universidades em todo o país para
formar uma coalizão nacional para fazer o movimento gay mais visível25.
As questões gays, seja a aceitação de uma cultura gay, defendida por alguns grupos, ou
os direitos políticos, por outros, criam um ambiente que os norte-americanos, conservadores ou
não, não podem simplesmente desprezar. Na Costa Leste, New York mostrava-se como ponto
de debate principal; na Costa Oeste, em Los Angeles, uma grande migração de gays para o
bairro de Castro levaria ao poder, em 1977, o primeiro político assumidamente gay, Harvey
Bernard Milk.
Não diferente do resto do país, San Francisco era conservadora. No entanto, o grande
contingente de gays e lésbicas criava um ambiente de maior enfrentamento, no qual
destacavam-se grupos como o Society for Individual Rights (SIR) ou o Daughters of Bilitis
24
Disponível em: <http://outhistory.org/exhibits/show/queer-youth-campus-media/on-college-campuses/glf>.
Acesso em: 24 de janeiro, 2016.
25
Disponível em: <http://outhistory.org>. Acesso em: 24 jan. 2016.
26
“Coming out stories” ou “estórias fora do armário”, em tradução livre.
46
(DOB). Este último travava confrontos contra a perseguição sofrida por gays, travestis e
lésbicas, principalmente nos bares, e à criminalização do sexo oral. Entretanto, as camadas mais
conservadoras e detentoras de poder e capital simbólico mantinham-se rígidas.27
Milk, após três tentativas, foi eleito supervisor municipal (equivalente a vereador, no
Brasil) da Cidade de San Francisco, mas foi morto onze meses depois, por um opositor
conservador, Dan White. Mesmo nesse curto período conseguiu aprovação de um projeto de lei
que tratava da não discriminação por orientação sexual. Sua morte, como era de esperar, foi de
grande comoção para parte da população. Milk tornou-se símbolo da luta gay, sendo tema de
documentários e de várias outras homenagens. O reflexo disso foi uma politização dos grupos
LGBTQI+28.
Mesmo sendo os Estados Unidos da América, segundo Trevisan, o país mais influente
nas lutas sociais pelos direitos LGBTQI+, este ainda tem um fosso que separa claramente
grupos como travestis, gays e lésbicas de heterossexuais. No Texas, por exemplo, o casamento
gay voltou a ser proibido pela Suprema Corte, em 17.02.2015, após apenas dois dias de
legalização. Ainda, mesmo com decisão da Suprema Corte norte-americana de que não se pode
negar a união estável a um casal do mesmo gênero, essa lei possui ressalvas no Texas, onde um
juiz declarou ser católico e, portanto, não realizou a união, por ser contrária à sua fé29.
A questão dos direitos LGBTQI+ nos Estados Unidos é variável de Estado para Estado.
Enquanto em New York pode-se andar de mãos dadas, no sul do país tal ação pode resultar em
agressões. O site huffingtonpost.com salienta o crescimento recorde de assassinatos de
transexuais e do número de suicídios, possivelmente resultante da transfobia.
27
Disponível em: <http://www.biography.com/people/harvey-milk-9408170#new-life-in-san-francisco>. Acesso
em: 31 jan. 2016.
28
Disponível em: <http://www.biography.com/people/harvey-milk-9408170#new-life-in-san-francisco>. Acesso
em: 26 jan. 2016.
29
Disponível em: <http://www.wfaa.com/news/local/dallas-co-justice-of-the-peace-refuses-same-sex-
marriages/32754407>. Acesso em: 26 jan. 2016.
47
Assim, podemos observar que as políticas de direitos LGBTQI+ nos Estados Unidos
são tardias e sofrem fortes resistências. Isso é perceptível pela própria história dos EUA, do seu
traço conservador e seus grupos de extrema direita. No entanto, perguntamos: por que foi esse
o modelo de luta adotado pela militância LGBTQI+ brasileira? Outra questão que nos ocorre é:
os grupos norte-americanos poderiam ser mais efetivos, caso tivessem adotado outras
estratégias e ações?
São perguntas que prescindem de respostas; importa saber se essas questões, que
precisam ser discutidas, foram formuladas à proporção que nos aprofundávamos nas ações, ora
de embate aos corpos dóceis do Estado – a polícia –, ora de confronto intelectual como jornais
e pesquisas, ou, ainda, de alinhamento com outros grupos, como os Pantera Negra e,
principalmente, com o Movimento Feminista e a contracultura.
30
Disponível em: <http://ilga.org/downloads/03_ILGA_WorldMap_ENGLISH_Overview_May2016.pdf>.
Acesso em: 24 jan. 2016.
48
Nos anos 1950, o Brasil passava por um período de pouca efervescência política e
cultural, e Carmem Miranda era entendida por certos segmentos como manipulada para a
construção de um “Brazil”, no singular, estereotipado, alegre, e lascivo. No entanto, esse
processo vai lentamente se transformando e a Era Vargas se distanciando. Enquanto os anos
1960 foram uma década de grandes levantes e transformações em países como França e Estados
Unidos, aqui no Brasil, para os “anormais”, a postura de autopreservação do corpo era “manter-
se no armário”, expressão adaptada do Coming out of the closet, só que no sentido inverso.
Para Rodrigues (2014), em seu artigo “Um Lampião Iluminando Esquinas Escuras da
Ditadura”, o público homossexual só passaria a possuir um jornal com arcabouço político,
referindo-se ao conteúdo, com a publicação do periódico Lampião da Esquina, já citado. Esse
sentimento repete-se no artigo “Imprensa Homossexual: surge o Lampião da Esquina”, que
afirma, após pesquisa realizada em mais de uma dezena de jornais, folhetins e similares,
existirem outras publicações, porém sem alcance ou qualidade editorial e gráfica. Não podemos
considerar que o aspecto político esteja apenas nos textos; a própria ação que resulta na criação
desses outros veículos são construções da história da identidade. Fato importante é que esses
outros veículos não se restringiram às classes médias de São Paulo e Rio de Janeiro: Snob, La
Femme, Subúrbio à Noite, Gente Gay, Aliança Ativista Homossexual, Ethus, La Saison, O
Centauro, O VIC, O Grupo, Darling, Gay Press Magazine; em Campos: Le Sofistique; na
31
Título da primeira parte da publicação de João Silveira Trevisan (2000). Utilizado aqui como uma metáfora da
impossibilidade deste tão longínquo distanciamento do fato social.
49
Bahia: O Gay, O Gay Society, O Tiraninho, Fatos e Fofocas. Para os editores de O Lampião,
essas publicações estavam focadas em amenidades e entretenimento.
Analisemos o quanto essas publicações, algumas com dez ou mais anos de antecedência
ao número zero do periódico O Lampião, pavimentaram uma trilha para a chegada deste. No
caso da Snob, foram produzidas 99 edições entre 1963 e 1969. Como salienta Perét (2011), a
revista possuía um grupo de leitores seletos, com material datilografado e mimeografado, em
que o próprio nome a mantinha distante do texto político, porém não podemos discordar que
uma revista em circulação por seis anos torna-se uma ferramenta política, até mesmo pelo ato
de negá-la.
A imprensa de caráter editorial político gay, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos,
surgiu do desejo de sair do anonimato e de construir identidades. Lisa Bem32, pseudônimo de
Edy the Eyde, surpreende até hoje pela forma como criou, durante o trabalho como secretária,
um jornal, que variava de nove a vinte páginas, e não possuía nomes, endereços ou desenhos.
Lisa Bem, em entrevista posterior sobre o periódico, afirma ser “um meio através do qual
podemos expressar nossos pensamentos, nossas emoções, nossas opiniões – enquanto o
material fosse ‘dentro dos limites do bom gosto’” (KATZ, p. 618, 1983).
32
Segundo o site americano. Disponível em: <http://queermusicheritage.com/viceversa.html>. Acesso em: 24 jan.
2016.
50
Grande do Sul. Foi um dos jornais que melhor se confrontou, com o recém-criado grupo
SOMOS, com a questão de gênero, e o que viria ser a identidade gay no Brasil. Foi lançado em
abril de 1978, ano de eleições realizadas pelo governo do General Geisel, que prometia uma
abertura “lenta, gradual e segura”. Em verdade, esse gesto de Geisel já revelava um
enfraquecimento do governo militar, que teve seu ponto mais alto em 1968, com o AI-5 (Ato
Institucional número 5) (FERREIRA, 2010). Nesse momento, começa visivelmente a distensão
política: o Lampião da Esquina posiciona-se contrário, de um lado, à moral conservadora da
esquerda e, de outro, ao pragmatismo da direita. A oposição à direita passava – como, aliás, até
hoje – pela não aceitação de que existem outros gêneros além do masculino e feminino. Já à
esquerda o foco de luta era a união de cunho marxista, desconsiderando as diversas minorias de
gênero, raça, religiosa e tinham como slogan o lema: “É necessário unir-se pela luta maior”.
33
Disponível em: <http://www.leylandpublications.com/>. Acesso em: 24 jan. 2016.
51
como afirmaria Butler (2003), que sofreu punições e foi patologizado (PERES, 2005). Sobre a
construção da identidade e seus sentidos, o autor afirma que:
Na edição zero, duas chamadas de capa atraem a atenção: na parte superior, ponto de
maior visibilidade, Homo eroticus – um ensaio de Darcy Penteado, e no centro da página Celso
Curi processado. Mas qual é o crime deste rapaz? As letras garrafais e o padrão estético eram
inovadores para a época. Nesse mesmo número havia um ensaio chamado Lontras, piranhas,
ratos, veados, e gorilas, atenção: vocês têm direitos. A ONU decidiu, vocês têm direitos, que,
servindo-se da Declaração dos Direitos dos Animais, utilizava a ironia com as lutas das
minorias como analogia. Parece-nos que a tentativa era a indignação. A leitura era ilustrada por
vários animais sustentando uma faixa na qual se lia COLEGAS: UNI-VOS!!!
O periódico, mesmo com toda a sua importância, possuía suas limitações. O jornal,
vendido para um público gay, na sua maioria formada por pessoas de baixa renda, tinha sua
circulação nos principais centros urbanos do País: São Paulo e Rio de Janeiro. A linguagem,
como podemos observar na figura 2, não era de fácil assimilação. Por exemplo, o ensaio sobre
o homo eroticus, termo que, segundo o site inglês Urban Dictionnary34, era uma espécie que se
acreditava extinta, de gênero homo. Muitos queriam crer que sua extinção teria se dado pela
ineficiência em se reproduzir. Assim, os conceitos do periódico nem sempre eram passíveis de
compreensão pelo público mediano.
34
Cf. Disponível em: <http://pt.urbandictionary.com/define.php?term=homo%20eroticus>. Acesso em: 28 jan.
2016.
35
Disponível em: https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/281755/artista-idealizou-1-jornal-para-
homossexuais
53
Após inquérito policial que, segundo Trevisan (2002), afirmava serem os editores
“pessoas que sofrem de graves problemas comportamentais”, foi pedido que estes fossem
enquadrados na lei de impressa e do crime contra a moral e os bons costumes. Rodrigues (2014)
diz que o Pasquim, na edição de número 08, fez uma nota de apoio ao Lampião da Esquina.
Renitente, o mesmo se tornou assunto reiteradas vezes. No entanto, houve uma onda
conservadora, que explodia bancas de revistas que comercializassem revistas pornográficas,
descritas em listas deixadas nos locais – entre elas estava o Lampião da Esquina. Várias bancas
passam a não vender mais o periódico. As edições começam a chegar atrasadas às bancas. O
editor desculpa-se no editorial.
Neste cenário, é criado o primeiro Grupo Homossexual do país, o grupo SOMOS, com
sede em São Paulo e, posteriormente, outra no Rio de Janeiro, que logo despertou conflitos
quanto ao posicionamento político. O posicionamento do Lampião da Esquina se fragilizou
ainda mais, pois alguns grupos o boicotaram. Em verdade, nesse momento, havia uma relação
simbiótica entre os grupos e os jornais homossexuais. Em junho de 1981, chega às bancas a
última edição do periódico, com uma linha editorial mais agressiva, tratando de temas ainda
mais polêmicos, como sadomasoquismo e transexualismo, com uma linguagem típica dos
guetos gays. Acabou o gás, porém, o incêndio estava só no início.
Não podemos ser levados a acreditar que o período de 1964 a 1985 reprimiu a todos de
igual forma. Haveria, por parte do Estado, alguma ação em reconhecer essas atrocidades e
buscar políticas sociais que pudessem orientar-se pela reparação? Questões que envolvem o
exército e as manifestações que fortalecem o que foi dito pela Comissão da Verdade foram
encontradas em grande quantidade, desde as matérias do Lampião da Esquina e as publicações
do antropólogo Luiz Mott a livros e artigos de iniciação científica. Todavia, não localizamos
55
O caráter homofóbico parece-nos ainda estar presente nas Forças Armadas brasileiras,
pois não aceitam lésbicas ou homossexuais, diferente, por exemplo, da França, Canadá e
Espanha que, desde a década de 1970, permitem que esses grupos façam parte dos seus quadros.
O grupo SOMOS abriu uma sede no Rio de Janeiro, onde participou de várias
manifestações, no entanto foi em São Paulo que alcançou maior destaque, como resposta à ação
da polícia que comumente realizava conhecidas rondas, tendo à frente o delegado Richetti. Em
13 de junho de 1980, segundo Isadora Lins França (2006), uma grande operação encarcerou
arbitrariamente travestis, prostitutas e homossexuais. Uma manifestação de porte foi
organizada, envolvendo grupos negros, feministas e gays, como o SOMOS, além de outros que
começavam a se constituir. A repressão a esses grupos chegara, afinal; e, entre 14 de dezembro
de 1976 e 21 de julho de 1977, foram detidas 460 travestis, segundo Green (2014). Para
Rodrigues (2014), trata-se do caso Stonewall inn brasileiro. Entendemos que devem ser levadas
em conta as diversidades culturais, ao atribuirmos essa comparação, mesmo que a luta tenha
como princípio o direito pelo comming out closet (saída do armário), trata-se de décadas
diferentes, em países com contextos repressores e aparatos diversos. No entanto, ao nos
depararmos com fenômenos sociais do tipo do “Caso Richetti”, é impossível não estabelecer
similitude.
57
Ao realizar pesquisas em mídias impressas sobre a AIDS (sigla em inglês para Síndrome
da Inumo Deficiência Adquirida) no universo gay dos anos 1980, havia uma forte vinculação
entre AIDS e os termos peste gay ou epidemia gay, apresentados como designação das doenças
abrangidas pela síndrome, tomados como verdade incontestável. Cabe, então, ao biopoder,
adentrando nos espaços sociais, alcançando um grande percentual da população de modo a
constituir “a assunção da vida pelo poder”, “uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser
vivo, uma espécie de estatização do biológico” (FOUCAULT, p. 285, 2006).
Mesmo com outras formas de transmissão, a AIDS teve e tem o foco da mídia e do
Estado no ato sexual. De início, ela possibilitou uma abordagem do corpo por parte da ciência,
que criou um saber médico estigmatizante. Esse saber valeu-se de uma comunicação
58
compulsória associada ao sexo degenerado, doente, perceptível até no primeiro nome científico
dado à síndrome: GRID – Gay-Related Immune Deficiency (ou seja, Imuno Deficiência Gay
Relatada). A AIDS faz mapeamentos da vida sexual dos gays e a moral médica da vida que
precisa ser preservada se apresenta como uma obrigação. O medo de perder a vida atravessa as
relações dos movimentos, tão afetadas por essa doença mortal. A sexualidade é a ponte dessa
sociedade que define os anormais, mas que detém o direito do cidadão, do homem:
A peste gay, como seria conhecida no imaginário popular, era reafirmada pelos veículos
de comunicação. Em Salvador, por exemplo, o jornal A Tarde, de 14 de janeiro de 1985,
publicou várias frases discriminatórias, tais como “A solução para acabar com a AIDS é a
erradicação dos transmissores da peste gay”, ou sugerir “matar um veado por dia”. Em razão
dessa postura, o jornal foi processado pelo Grupo Gay da Bahia.
A mídia impressa não era uma voz solitária: a violência contra o universo LGBTT foi
adensada. Travestis evitavam ficar em grupos, pois temiam ser assassinadas, dado que havia o
risco real de carros pararem e dispararem contra elas. Casos de linchamento e humilhação
pública eram relatados. Como pontua Carlos Alberto Messeder Pereira (2004):
[...] ela [a AIDS] foi, pouco a pouco, sendo reconhecida como capaz de atingir
os mais diferentes grupos sociais sem que, entretanto, essa sua proximidade
simbólica com o mundo homossexual, esta sua “marca de origem” tenha
jamais se apagado inteiramente (PEREIRA, p. 54, 2004).
A presença da AIDS vai, aos poucos, substituindo conquistas que pareciam sólidas e
grupos de direita começam a patologizar o universo gay. A alegria, que foi tomando forma nos
últimos anos da década de 1970, vai sendo substituída por um presente nebuloso e um futuro
incerto e depressivo, tanto no campo pessoal como no espaço coletivo (PEREIRA, 2004). A
revolução sexual parecia ter ficado para trás.
“O meu prazer agora é risco de vida” é um trecho de uma canção do compositor Cazuza
e serve para ilustrar como, na prática, o que houve, em parte, foi o controle do desejo
homoafetivo. A partir da autodeclaração do poeta e cantor Cazuza ser portador do vírus da
AIDS, tornou-se cada vez mais frequente, nas “manchetes de jornais” (Letra de Cazuza)
59
especulações sobre os tratamentos da doença, e o lançamento de seu último disco “O tempo não
para” provocou uma associação entre sua morte e a dificuldade de acesso ao AZT (medicamento
ainda não disponível no mercado, na época). Mesmo não estabelecendo uma relação direta entre
a AIDS e a produção artística de Cazuza, parece-nos haver uma relação dialética entre sua
pulsão de vida e o tratamento. Assim, eram expostas fotografias esqueléticas, imagens doentias
de Cazuza usando óculos escuros, bandanas na cabeça, sob o estigma da peste gay, que foi,
também, reafirmado pelo belo ator Lauro Corona e o cantor e compositor Freddie Mercury, que
morreram em decorrência da doença, criando, assim, uma disciplina sexual do corpo. A criação
dos termos grupo de risco ou comunidade de risco mostrava um discurso muito anterior a
Stonewall. Para que o desejo seja controlado, é necessário que se estabeleça um padrão. Os
corpos gays devem transmitir, portanto, que não são portadores da AIDS.
36
<ggb.org.br> (Não mais disponível).
60
tornando a Bahia o primeiro estado a ter esse tipo de acompanhamento por uma organização
não governamental.
No primeiro encontro de organizações gays, ou grupos gays, que ocorreu em São Paulo,
em 1980, já se demonstrava uma busca por identidade. Alguns aspectos tratados foram: a
autonomia das posições políticas (FRY, 1985), o apoio aos grupos feministas, a negação ao
machismo, entendendo que a dicotomia bofe/bicha era uma expressão deste, substituição do
termo gay por entendido. No entanto, o GGB retornaria a essa última questão e adotaria o uso
do epíteto bicha, considerando importante requalificar a palavra (FERRARI, 2006).
O Grupo Gay da Bahia criou certo deslocamento ou expansão das questões gays, antes
restritas ao eixo Rio/São Paulo, agora com representação atuante também no Nordeste. E, talvez
pelo fato de o seu criador ser oriundo do periódico anarquista Inimigo do Rei, podemos entender
a recusa em usar o termo entendido por bicha!!!, e a proximidade com Foucault, que visitou
Salvador em 1976. A identidade do grupo e a do seu fundador, Luiz Mott, são indissociáveis
desde a sua fundação, uma vez que ele sempre esteve à frente, refletindo e elaborando
programas e/ou projetos.
A leitura de Mott (2009) sobre a relação da população do Brasil com o universo LGBTT,
chamada por ele de tribo gay, assemelha-se a Kulick (2009):
vermelho sangue: aqui são assassinadas 50% das travestis do mundo, a cada
28 horas é registrado um “homicídio” e segundo recente pesquisa do Disk 100,
da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a cada hora um LGBT é vítima
de alguma violência homofóbica: insultado, expulso de casa, agredido em
bullying escolar, espancado. 605% a mais do que no ano passado! A Bahia,
que no imaginário nacional é a terra da alegria, na verdade, é território da
homofobia: 24 assassinatos só nesse ano, 519 desde que o GGB começou esse
banco de dados em 1980 [...] (MOTT, p. 1, 2009).
Esse seria o período que Green definiu como primeira onda do movimento LGBTQI+
brasileiro. Se o movimento foi oprimido pela ditadura quando ainda embrionário, segundo
afirmam inúmeros dos pesquisadores citados, ao mesmo tempo mostrou-se com capacidade de
articulação e inovação, demonstrada pelo jornal Lampião da Esquina ou a militância do
SOMOS; se os estudos feministas, focados em “gênero”, possibilitaram o entendimento do
“gênero” como uma construção cultural, por outro lado, as estratégias dos movimentos gays
norte-americanos muito influenciaram nas ações, sendo ambos indissociáveis, como afirmou
Trevisan, que se autoexilou naquele país.
5H, Peste Gay, Câncer Gay e todos os vocábulos que colocavam a homossexualidade
como patológica, os movimentos higienistas que pregavam (e, até certo ponto, ainda pregam)
abertamente morte aos gays, criaram dores e levaram muitas vidas. No entanto, os grupos gays
souberam se posicionar e discutir com as esferas públicas seus projetos e programas, ações de
promoção da saúde, atingindo, dessa maneira, uma parcela cada vez maior da população, sendo
os grupos gays responsáveis pela criação da primeira rede de organizações não governamentais
no País.
Segundo Marcos Ribeiro de Melo (2013), José Silva conheceu o jornal Lampião da
Esquina, o qual passa a divulgar. De Silva não se sabe a idade, mas somente que era jovem e
trabalhava como operador de fotocópia e atendente de cartório, em Aracaju. Melo afirma que o
contato ocorreu no final de 1979, em um congresso estudantil, não se sabe o local. José Silva
passa a representar o jornal na capital sergipana, realizando o lançamento do periódico, em
1980, no Diretório Acadêmico dos Estudantes da Universidade Federal de Sergipe (UFS). O
evento contou com apresentações e “a presença da transformista baiana Suzana Vermont
[Figura 5], personagem da noite soteropolitana naquele período” (MELO, 2013).
Enquanto no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador a formação dos grupos e ações são
predominantemente feitas pela classe média intelectualizada, em Aracaju ocorre o inverso. As
pessoas que formam os grupos são de origem mais simples. A primeira organização gay do
Estado surgiu em 1981, como é relatado pelo próprio grupo: “José [Silva] se reuniu a uma rede
de amigos em sua residência, localizada em uma vila no centro da cidade, e fundou no dia
14.03.1981 o Grupo Dialogay de Sergipe” (GRUPO DIALOGAY DE SERGIPE, 1981). O
evento contou, também, com a presença do presidente do GGB, Luiz Mott. O conceito de vila,
em Aracaju, é o de pequenas casas geminadas com um único acesso e, enquanto algumas
63
utilizam um banheiro coletivo, outras são mais espaçosas. Indubitavelmente, porém, a vila é
um tipo de unidade habitacional direcionada para a população de baixa renda.
O Dialogay, como era mais conhecido, desde seu início focou na visibilidade política
do público gay, o que é, também, uma das principais bandeiras do GGB. Nos informativos
produzidos pelo grupo, era comum a utilização de frases que buscavam demarcar esse território,
como “Procuramos nossa liberdade” ou “Ser ou não ser homossexual, eis a questão”. Outra
característica era não haver pontuação final nas frases, como interrogação, exclamação ou ponto
final, deixando-se a proposição em aberto.
Ações como distribuição de camisinhas, realizadas pelo grupo desde 1983, eram vistas
como algo imoral, uma vez que não houve casos de AIDS em Sergipe até 1987. Assim, a
hostilidade era comum contra a população gay, afinal, a doença era entendida como
exclusivamente homossexual (TREVISAN, 2000).
Na manhã do dia 6 de junho de 2016, realizamos, por telefone, entrevista com Marcos
Ribeiro de Melo, professor, ativista, um dos fundadores do grupo Dialogay e doutor em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de Sergipe. Sua pesquisa para o doutorado produziu
uma relevante obra intitulada Itinerários e “lutas”: o engajamento de lideranças dos
movimentos homossexual e LGBTTs em Sergipe (1981-2012), uma das raras bases para
pesquisa bibliográfica sobre o assunto. Assim, pudemos esclarecer algumas questões e discutir
64
aspectos sobre o envolvimento das travestis nessa primeira onda no, já citado, conceito de
Green.
O Grupo Dialogay de Sergipe fechou suas portas em janeiro de 2003, devido a batalhas
judiciais referentes a questões trabalhistas e acusação de desvio de verbas. No entanto, de
acordo com o entrevistado, que foi inocentado após investigação do Ministério Público, “porém
havia perdido o time”, as críticas da população e a justiça sergipana, que o consideraram
culpado antes mesmo das investigações, trouxeram desgastes emocionais e para fins
representativos de imagem. O Professor Marcos Melo ressalta que o Ministério Público chega
a indicar o fechamento de uma organização que tanto contribuiu para a causa LGBTQI+ sem a
devida condenação.
A presença da Igreja Católica também foi relatada; consta que o Bispo Dom Lúcio José
Cabral Duarte, apesar de estar com sérios problemas de saúde, fazia rondas na cidade como
ação coercitiva, além de suas homilias homofóbicas. O bispo, assim como no jogo de xadrez,
possuía forte aproximação com os outros poderes e era bastante temido.
FEMININA
Mário de Sá-Carneiro
3.1 Corpo
O corpo deixou de ser, em nossa cultura ocidental, um fim em si. Ao passar a ser o mais
profundo, ele é agora um elemento passível de transformações, hipertrofias, implantes,
pigmentação, cirurgias corretivas, cirurgias para aproximações estéticas, tatuagens. O design
do corpo mostra-se insaciável.
Para além do corpo-relógio de Descartes, esse corpo máquina, que Michel Foucault
definiu como objeto com avarias, apresenta-se como uma presença ambígua: algo nosso, ou
melhor, o que somos, a experiência dos nossos corpos nos transforma diferentemente de outros
corpos; somos ligados aos nossos corpos e deixamos de existir quando os mesmos falecem,
pelo menos em nossa cultura ocidental.
Berenice Bento, na apresentação do livro de Jorge Leite Junior (2011), entre várias
reflexões sobre as quais poderíamos discorrer, inclui uma questão sobre o discurso de gênero
que nos salta aos sentidos. Inicialmente, ela recorre a um fragmento do livro: “Uma nova ciência
para uma nova sociedade, uma nova psique para um novo corpo, novos limites e novas
transgressões para novas normas” (BENTO apud LEITE JR., p. 17, 2011), e, em seguida,
argumenta: “Tudo que se fala de sexo e de gênero já traz em si uma demanda moral, portanto,
reguladora” (Id., 2011).
A apresentadora do livro pontua também o afã por nomenclaturas, como podemos notar,
ao ter na atualidade quase meia centena de gêneros. Todavia, o aumento das possibilidades não
significa uma não classificação, mas somente um maior número, sendo, da mesma forma, uma
ferramenta de controle. Tais mudanças históricas, possivelmente, não representam liberdade,
mas este aspecto não é menos importante e foi salientado por Leite Jr. (2011). A cada mudança
social cria-se uma nova forma de conhecer, que gera novas normas, limites e transgressões.
Foucault (Ibid., 2014), no conceito de “corpo dócil”, afirma que no século XVII houve
uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Para tanto, é facilmente perceptível a
atenção focada no corpo, assim, este se torna obediente, modelado, responde às forças que o
manipulam. Quando o autor recorre ao discurso da representação de um corpo mais idôneo,
utiliza como ilustração o corpo de um Oficial, e relata: “a cabeça direita, o estômago levantado,
os ombros largos, as pernas finas e os pés secos”, afinal, um homem deste tipo não deixaria de
ser ágil e forte. A identidade do soldado, em nada é particular, é um corpo a serviço de outrem,
transformado pela relação com uma instituição, e sua identidade é “oficial”.
Para além dos conceitos de base, devemos compreender que é no corpo que o gênero se
figura, logo, a “performatividade” atua como elemento entre dois polos, masculino e feminino.
Judith Butler (2003) traz à cena o conceito de “identidade de gênero” sob a perspectiva da
performatividade:
3.2 Mito
O (res)sentir – ou buscar sentir de outras formas para ser tocado(a) por uma obra de
importante envergadura, que transpassa a filosofia, as artes e as ciências – conduz-nos a refletir
sobre as fronteiras, cria-se em nós o desejo de aproximar-se do mundo de forma diferente das
já estabelecidas e ancoradas em certo status quo.
Começaremos apresentando alguns conceitos de mito, algo que se justifica pelo próprio
caráter da obra O Banquete, de Platão, escrita por volta de 380 a.C. Seguidamente, as formas
de transmissão do mito na Grécia, e somente depois analisaremos fragmentos, como o discurso
de Aristófanes e outros, não exatamente nesta ordem, porém, que construam uma espécie de
cenário de percepções da representação mítica, estética e literária. O primeiro aspecto que
suscita este imperativo é o próprio recorte metodológico: não queremos discutir as várias ou
inúmeras possibilidades que a obra de Platão nos apresenta, dentre eles, um discurso de
contemplação sobre as várias invocações de Eros ou a reflexão de como os Deuses agem e
pensam sobre nós, humanos. Objetivamos, como aqueles que refletem sobre o corpo andrógino
e a travestilidade, pistas, afirmações que possam traçar esboços, isto é, a força e importância da
presneça e da ausência dos andróginos e/ou travestidos na obra, de forma que possamos senti-
las e interpretá-las.
Partimos do presuposto ancorado em Vernant (p. 229, 1996) para nossas reflexões sobre
mito, mais especificamente a mitologia grega, uma vez que trabalharemos com O Banquete, de
Platão. Ressaltando a aproximação com a religião, Vernant inicialmente apresenta de forma
simples o conceito de mito: “Grosso modo e essencialmente, trata-se de um conjunto de
narrativas que falam de deuses e heróis, ou seja, de dois tipos de personagens que as cidades
antigas cultivam”. Este politeísmo confere uma complexidade à política e à sociedade grega,
ao tempo que uma certa ordem.
Os mitos não eram impostos sobre o peso da culpa, obedecendo dogmas, bem como não
eram escritos em livros sagrados. Assim, o mesmo mito alterava-se entre regiões. Afinal, não
se aterrava o fiel pela culpa ou outra doutrinação. Vernant (p. 2 1996) explica que o texto não
é absoluto, “ao pé da letra”, e exemplifica com um fragmento da Ilíada:
71
Quanto às narrativas dos mitos gregos, não havia diferenciação entre a literatura e a
religião, entre a narrativa fictícia e a verdade que é narrada, entre a fabulação do mito e a
“veracidade” do divino, imbricada. Logo, tentar sentir os mitos gregos requer entender um
sistema religioso sem igrejas, em que a tradição oral ocupava o centro.
37
O trecho citado refere-se à armadilha construída por Hefesto (deus grego do fogo). Ares, chamado na tradição
romana de Marte, tinha uma relação com a deusa do amor, Afrodite. Com uma teia invisível sobre o leito e com a
ajuda do Sol, a armadilha funcionará e todos os deuses foram avisados. Ares e Afrodite ficaram presos por longo
período, como castigo designado por Zeus, que era também pai de Ares (BRUNEL, p. 20, 1997).
72
Láquesis é dado o trabalho de quem deve padecer, e por fim, Átrapos, adjetivada como
inflexível por Bradão (p. 433, 2014), sua missão é cortar o fio da vida, a morte. O mito das
Moiras aplica-se à humanidade, porém, de forma individual, conjecturamos que seja essa a
intenção do pesquisador: entender o mito do uno ao coletivo, pois “os mesmos fios tecem os
mesmos desenhos”.
Outro aspecto percebido por Lévi-Strauss: “os mitos não têm autor: do momento em
que são apreendidos como mitos e independentemente de sua origem real, eles só existem
encarnados numa tradição” (apud BRUNEL, p. XVII, 2005). A etimologia da palavra “mito” é
“narrativa transmitida” (id., ibid), de modo que o texto, as peças, os poemas, as novelas são
como territórios de transmissão destas narrativas com uma temporalidade própria e que não
comporta a historiografia.
ULISSES
elipse, rosácea, pura geometria. Mas é também matéria informe que se retorce, se
metamorfoseia: anamorfose” (WERNECK, p. 12, 2002).
O Banquete apresenta um dos mais belos diálogos platônicos, pois ele nos traz um
confronto entre a filosofia e a arte. Segundo Souza (p. 190, 2016), há uma necessidade dialética
que faz a marcação do ritmo: “arranjos lentos, sinuosos, das discussões, através da repetição,
abandonos, acrescimos e recapitulação de argumentos”.
38
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75
Eros. Sócrates sugere, então, que antes se faça uma definição do que seria o amor. No entanto,
a discussão pretende estabelecer a superioridade da racionalidade sobre a religião, presente na
poesia de Homero e Hesíodo.
Nesse ínterim, há várias dimensões analíticas sobre Eros. Assim, a relação entre amor
e política estabeleceriam, a partir daí, fortes vínculos, presentes nas teorias políticas de Sócartes,
Platão e Aristóteles.
Fedro argumenta, a partir dos mitos, que morrer pelo amado é a verdadeira prova de
amor puro. Pausânias afirma que Eros é mais de um, concentrando-se na dicotomia bem e mal,
real e divino. Erixímaco defende que o amor harmoniza corpo e alma. Sócrates, último a
discursar, afirma que o amor é sempre o amor de algo, concentrando-se no desejo, sendo a
satisfação deste, a sua morte. Antes de Sócrates, Aristófanes se pronuncia.
O desprezo dos humanos por Eros, que Aristófanes salienta, é elemento necessário para
conhecer a transformação, que se deu num passado primordial, ao introduzir pela primeira vez
o conceito de andrógino:
Com efeito, a nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas
diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois
como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro,
comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa;
andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum
aos dois: (PLATÃO, p. 75, 2016).
Referindo-se ao universo da crítica literária (MIGUE apud LEITE JR., p. 34, 2011), o
verbete “andrógino”, presente no Dicionário de Mitos Literários, sustenta a hipótese de que
havia no período antigo (tradição, entre outras origens, babilônica) o elemento fundador,
presente no mito da androginia de Platão, além de influenciar outros autores, como Ovídio e a
cultura cristã ocidental.
Havia, portanto, três “espécies particulares”. Acreditamos que o uso de “espécie” deva
permanecer, não somente por ter encontrado o termo em várias versões textuais de O Banquete,
pesquisadas, mas porque acreditamos que seria anacrônico o uso do termo “gênero”. No
entanto, na respeitada tradução de José Cavalcante de Souza, a pedido da Editora 34, utiliza-se
“gênero”: “Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade” (PLATÃO, p. 125, 1995).
O aspecto físico do andrógino (por mais que haja dessemelhança relacionada à ideia do
corpo humano) não é a monstruosidade, mas o diferente que precisa ser conhecido, como
salienta no início do discurso:
77
Este ser é descrito de forma grandiosa, com quatro pernas, duas faces, quatro ouvidos,
o que o coloca na condição de existência de organismo mais adaptado que os humanos bípedes
(limitaremos a discussão a este ponto, por enquanto). Entretanto, tanta força será motivo de
conflito com os deuses e não tardará a extinção dos andróginos.
Esses seres eram esféricos, tanto na forma quanto no movimento. Assemelhavam-se aos
seus progenitores. No discurso, Aristófanes considera o andrógino um descendente de Selene
(Lua):
Três sexos havia, como disse, e isto porque o masculino era descendente de
Hélios (Sol), o feminino (Geia, Terra) e [o andrógino] participa dos dois, de
Selene (Lua), a qual, como se sabe, participa tanto de um quanto de outro
(PLATÃO, p. 75, 2016).
Filhos dos titãs Teia e Heperíon, Selene, Hélios e Eros. Ela causou grande inveja devido
à beleza e Hélios foi lançado nas águas negras do Rio Eridano. Quando Selene mergulhou à
procura do irmão, despertou, e no céu foi absorvida pelas águas. Quando informada, Teia os
procurou até adormecer.
Despertou, e, ao olhar o céu, este estava iluminado, colocando luz sobre o sofrimento e
as alegrias dos mortais. Eros preparava-se para a chegada de Hélios – o Sol, companheiro do
dia, e Selene, a Deusa da Lua, jovem de pele branca e delicada, acompanhava a noite sempre
em uma carruagem de prata, puxada por dois cavalos e seu lindo manto prateado.
78
O mito de Selene encontra oposições com Hélios: a relação dia/noite, homem/ mulher,
quente/frio. Ademais, ressaltamos que o sacrificado é Hélios e a possuidora de ação é Selene.
A representação figurativa é adequada, pois possui elementos dos opostos.
39
Segundo o trad. Wilson A. Ribeiro Jr.: “Mene é um antigo nome da lua. Este verso é o único lugar em que asas
são atribuídas à deusa; segundo Daremberg, trata-se de uma alusão à rapidez de sua evolução no céu, mas pode-
se tratar, igualmente, de influências asiáticas ou egípcias. No III milênio a.C., os egípcios representavam às vezes
o sol com asas; esse símbolo foi associado a Hórus e, mais tarde, ao deus solar Ra.”
(https://acropolepoetica.wordpress.com/2012/05/11/a-selene/).
79
trovão, eles seriam dizimados, continua Aristófanes, seria algo similar aos gigantes. Os deuses,
por assim afirmar, dependem do culto, da veneração humana.
Assim, Zeus encontra um caminho valioso: dividi-los ao meio. Por um lado, eles se
tornariam mais fracos, por outro, acabaria com a insolência e dobraria a população, ou seja,
aumentaria a veneração. Afirma Zeus: “Ficarão mais fracos e mais úteis” (PLATÃO, p. 46,
1945). Dessa forma, passarão a ter duas pernas, dois braços – e continua o deus dos deuses –,
caso continuem em suas revoltas, cortará mais uma vez, e eles andarão sobre uma só perna.
O corte dos corpos andróginos, segundo o discurso de Aristófanes, foi realizado. Zeus
ordenou a Apolo que curasse os ferimentos, mas não somente: deveria inclinar a face e o
pescoço dos seres amputados para a direção da separação, com o objetivo de tornar o homem
mais humilde (humildade é entendida no discurso como cura do orgulho). Seguidamente, o
Deus Apolo deu a volta em toda a pele, de modo que retornasse para a região chamada hoje de
ventre, e após as costuras deixou um pequeno orifício, que chamamos, em português, de
umbigo.
FOR ***
Vita Sackville West
40
Para/ Nenhum olho deve ver os poemas que escrevo/ Para você; nem mesmo os seus; mas após/ Longos anos
esquecidos terem passado sobre nosso deleite /Alguma mão pode ter chance sobre uma canção
empoeirada//Daqueles dias carinhosos quando cada palavra falada/ Era doce, e todas as coisas fugazes não faladas
/ Eram ainda mais doces, e a música entreouvida/ Murmurada através de florestas com um encanto ininterrupto.//
É a página simples e despretensiosa/ De dois que se amaram, único espírito e transparente./ Não irá você, ó,
estranho de outra época,/ Conceder uma lágrima humana e compassiva/ Para nós, que apoiamos um ao outro tão
amorosamente?/ Uma única lágrima fraternal, tristemente derramada/ Uma vez que aquilo que era tão vívido está
tão morto. (Tradução nossa)
81
Virginia Woolf, autora que ocupa parte significativa da cultura ocidental europeia, talvez possa
nos conduzir na elaboração de nossas reflexões, na discussão das metáforas, alegorias ou
metamorfoses que perpassam este corpo indócil, que é o corpo da travesti.
Sentir e caminhar com Orlando, nesta trama, tem como objetivo, entender as
representações da androginia e da travestilidade que permeiam a existência do/a personagem
de Orlando. Para começar, voltemo-nos para Orlando, nome e título, de forma cuidadosa,
afinal: “Mas preste atenção: suponho que se descubra que Orlando também é Vita” (WOOLF,
p. 07, 2014).
O conceito de “rizoma” pode ser útil para ilustrar essa biografia sem começo ou fim,
que requer não o respeito a uma cronologia na análise, mas acuidade para sentir os personagens,
os espaços, e o tempo:
Não tem começo nem fim, mas sempre um meio [Platôs] pelo qual ele cresce e
transborda... é feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de
estratificação... mas também linha de fuga ou de desterritorialização como
dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se
metamorfoseia, mudando de natureza... [Princípio da multiplicidade]
(DELEUZE; GUATTARI, p. 32, 1995).
82
Para o linguista Bakhtin (p. 211, 2014), que discute a interligação fundamental das
relações temporais e espaciais, “artisticamente assimiladas em literatura, [...] o tempo
condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se,
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história” (BAKHTIN, 2014, p. 211). Bakhtin,
em seu ensaio, se atém a três tipos de “cronotropos”41 a que chama de “fundamentais”. São
eles, tanto os cronotopos do romance sofista (referindo-se, do século II ao IV a.C.), quanto os
cronotopos do romance moderno, até chegar, por fim, aos romances biográficos. Para ele, tanto
os cronotropos quanto os personagens do cotidiano passavam a constituir a obra.
41
Cronotopo refere-se à relação tempo/espaço (cronos: deus grego do tempo; topo: espaço).
83
da produção literária. Neste pequeno fragmento, Profissão para Mulheres (WOOLF, pp.43-44,
1997), cria uma expressão, “The Angel in The House” (“O Anjo da Casa”), na qual mostra uma
capacidade de explicitar o cotidiano das mulheres, fazendo uso de muita ironia:
O que poderia ser mais fácil do que escrever artigos e comprar gatos persas
com os ganhos? Mas esperem um momento. Artigos devem falar sobre algo.
O meu, pelo que lembro, era sobre o romance de um homem famoso. E
enquanto eu estava escrevendo essa resenha, descobri que se fosse resenhar
livros precisaria travar batalha com um certo fantasma. E o fantasma era uma
mulher, e quando vim a conhecê-la melhor eu comecei a chamá-la como a
heroína de um famoso poema, The Angel in the House (O Anjo da Casa). Era
ela que costumava aparecer entre mim e o papel quando eu estava escrevendo
resenhas. Era ela que me incomodava e roubava meu tempo e assim me
atormentava até que afinal eu a matei. Vocês, que vêm de uma geração mais
jovem e mais feliz não devem ter ouvido falar dela – vocês não devem saber
o que eu quero dizer com o Anjo da Casa. Eu vou descrevê-la da forma mais
sucinta possível. Ela era intensamente compassiva. Era imensamente
encantadora. Era profundamente abnegada. Ela dominava todas as difíceis
artes da vida familiar. Sacrificava-se diariamente. Se havia galinha, ela ficava
com o pé; se havia uma corrente de ar, tomava seu lugar nela – resumindo, ela
era tão condescendente que nunca tinha uma ideia ou desejo próprio – em vez
disso preferia concordar sempre com as ideias e desejos dos outros. Acima de
tudo – nem preciso dizer – era pura. A pureza era considerada sua maior beleza
– o rubor de suas faces, sua graça maior. Naqueles dias – os últimos da Rainha
Vitória – cada casa tinha o seu anjo.
O Anjo da Casa pode ser percebido como a ‘mulher do lar’, que cuida das crianças, a
passiva, sem voz, submissa, “a pureza era considerada sua maior beleza” (Id., 1997). Todos
os valores definidos pelos homens. Assim, as mulheres que desejassem adentrar no mundo da
literatura deviam, em primeiro lugar, matar este anjo maldito.
42
As Mulheres Romancistas (Tradução nossa).
84
Utilizamos uma edição original e quatro traduções diferentes na leitura que fizemos de
Orlando: uma biografia. Na primeira delas, da editora Penguin, com tradução do Diplomata
Jorio Dauster, ficou-nos um sentimento de sensibilidade e beleza; na segunda e terceira, da
editora Lord Mark, uma edição bilíngue com tradução Doris Goettems, ligado a Universidade
Federal do Rio de Janeiro, talvez pelo fato de já termos feito outras leituras sobre a decadência
do período vitoriano, entendemos o livro de outra forma. Por fim, após longa busca pela
tradução da grande escritora Raquel de Queiroz, nossa percepção havia, como o próprio
Orlando, se transformado. Por fim, deparamo-nos com o volume da Editora Autêntica, o qual,
além da qualidade da tradução de Tomaz Tadeu, é a única edição disponível no Brasil e em
Portugal com as gravuras originais. Não necessariamente, temos que conhecer a autora para
conhecer a obra, como dissemos anteriormente; salientamos apenas que informações históricas
e pessoais, sobre o processo de produção, mudam a percepção.
Um aspecto relevante e singular sobre muitos dos “Bloomsberries” é que alguns deles
somente atingiriam a fama muito mais tarde, pois, eram todos ainda estudantes do King's
College e do Trinity College, da Universidade de Cambridge. Discutiam ideias sobre cultura e
sexualidade, entre outras, o que, certamente, em muitos estudantes de hoje causaria certa
estranheza: a avaliação amoral das relações homossexuais, a prática e o discurso contrário à
monogamia, etc. A prática destas ações na Inglaterra de 1910 era considerada uma “aberração”.
Importante para os Bloomsberries, importante para a vida financeira do casal Woolf foi,
após comprar uma impressora de segunda mão, fundar a editora The Hogarth Press, que foi a
primeira a publicar Freud na Inglaterra, e também Elliot, entre muitos outros.
Afirmar – como diz o clichê – que Woolf estaria à frente do seu tempo seria equivocado.
Woolf mergulhou e, por isso mesmo, sentiu aguçadamente com os sentidos do seu tempo. Em
Um Teto Todo Seu, publicado na Inglaterra, em 1929, Virginia realiza uma análise de várias
autoras, mulheres e personagens femininas da história, chegando a criar uma irmã para
Shakespeare, Judith. Ela, Judith, não foi à escola, não teria “tido” oportunidades, porém, era
genial. Há, no texto de Virginia, uma constante ironia, como recurso de explicitação, um jogo.
Afinal, ao analisar a presença, ou não, da mulher na literatura desde o século XVIII, Virginia
Woolf estava, em verdade, expondo a dominação exercida pelos homens, e considerando quão
subalternas eram as mulheres:
Por que exemplo, não houve uma produção contínua de escrita feita por
mulheres antes do século XVIII? Por que elas nessa época escreveram quase
tão habitualmente quanto os homens e no desenvolvimento dessa escrita
criaram, um após outro, alguns dos clássicos da ficção inglesa? Por que então
87
sua arte assumiu a forma de ficção e por que isso, até certo ponto, ainda
prevalece. (WOOLF, p. 270, 2014)
Após essa pequena reflexão sobre o que parece conduzir a vida de Woolf, sua relação e
imbricamento entre papéis, ora de escritora, ora de mulher, outras questões se abrem, entre elas:
existiria uma literatura feminina? E, se sim, quais são seus limites?
Não seria o gênero uma segmentação de corpos marcados a ferro e fogo, e com espaços
definidos? Todavia, culturalmente não há como desconhecermos o que seja o corpo do homem,
suas experiências, sua linguagem e subjetividade, e todas suas grandes variações na cultura
ocidental. Ou, mais especificamente, na cultura europeia do período aqui estudado, trata-se de
um corpo possuidor de valores, apropriações simbólicas e territórios próprios, agressivamente
defendidos. Apenas para darmos um exemplo na literatura brasileira, parece ser infindável a
discussão se a obra de Clarice Lispector ou a de Rachel de Queiroz constituem o que poderia
ser chamado de literatura feminina.
O texto é uma relação de poder, segundo Butler (1988). A cada frente de luta Virginia
Woolf abria os peitos para os tiros, pois possuía corpo para suportá-los, já que esta relação de
poder requeria armas e estrutura. A própria autora, como afirma Curtis (p.17, 2005), começou
a assinar suas “primeiras escrituras anonimamente, e embora ela tenha disfarçado seu sexo sob
uma primeira pessoa assexuada no plural [Mr. Courtney]” (CURTIS, p. 17, 2005), com a ideia
88
de um nome dúbio. Virginia Woolf mostrava-se reflexiva desde o início da sua carreira, de
acordo com Curtis (Id., 2005).
Um encontro entre Simone de Beauvoir e Woolf teria sido rico e vivo, no sentido de
refletirmos sobre a literatura feita por mulheres para além da demarcação do campo de poder,
afinal, como afirma Beauvoir:
A vida e morte de Woolf foram marcadas por fatos fortes. Entre todos eles, o mais forte
de todos: a morte, ou melhor, a escolha por morrer. Assim, Virginia, no cotidiano, e em suas
escolhas, viveu e escolheu a liberdade. Campos (p. 292, 2014) questiona: “Chegou a ser a
mulher mais livre da Inglaterra?”. Devemos entender que liberdade estava associada à liberdade
do lar, da condição que hoje ainda chamamos de “livrar-se do poder heteronormativo”. Campos
(p. 292, 2014) responde que “pelo menos viveu e se matou para isso”.
O trabalho de pesquisa sobre Virginia e Vita foi realizado de forma intensa e tornou-se
uma referência para o movimento feminista, na segunda metade do século XX. A construção
de referenciais era importante, como para qualquer movimento. Afinal, tratava-se de construir
personagens, memórias, ícones. Certamente, a busca incessante por estas memórias deu-se mais
intensamente na França, país onde o movimento feminista deu grandes contribuições,
inicialmente. Não por acaso, a filha de Vita utiliza-se de uma expressão em francês para
expressar esse eterno garimpo.
Look here Vita — throw over your man, and we’ll go to Hampton Court and
dine on the river together and walk in the garden in the moonlight and come
home late and have a bottle of wine and get tipsy, and I’ll tell you all the things
I have in my head, millions, myriads — They won’t stir by day, only by dark
on the river. Think of that. Throw over your man, I say, and come. 44 (S/D)
43
A alegria do inédito. (Tradução nossa)
44
Olhe aqui Vita - abandone o seu homem, e iremos ao Hampton Court e jantaremos no rio juntas e caminharemos
no jardim ao luar e voltaremos tarde para casa e tomaremos uma garrafa de vinho e ficaremos tontas, e eu direi a
você todas as coisas que tenho em minha cabeça, milhões, miríades - Eles não se agitam de dia, apenas pelo escuro
no rio. Pense nisso. Abandone seu homem, eu digo, e venha. (Tradução nossa)
90
Já Vita atribui-se, na relação, o lugar da protetora para com Virginia. Em seu diário,
referindo-se a uma cena passada em Tavistock Square, afirma que se sentou e acariciou os
cabelos de Virginia de forma maternal. Reconhecendo isso, Woolf escreve à Vita, referindo-se
à cena, e coloca-se em um lugar frágil, “Como uma criança, acho que se você estivesse aqui,
eu seria feliz” (Id., ibid.). Para Curtis (p. 184 2005), Virginia atribui à Vita o papel de mãe
substituta. Ao analisar este aspecto da relação, o escritor de The interrupted Moment – A Viewof
Virginia Woolf Novel’s45, Lucio Ruotolo, salienta que Orlando foi uma tentativa de resgate da
relação. Para ele, Vita experimentava um certo prazer nesta carência materna de Woolf.
Quando Virginia nos atenta para o fato de que devemos tomar cuidado ao olharmos para
Orlando, pois estamos vendo Vita, nele também estamos vendo Virginia, assim como o próprio
Orlando, da infância aos 36 anos, vividos em três séculos. O livro desafia-nos a olhar para
nossas capacidades e intuições, e nos faz penetrar em uma nebulosa onírica, que foi escrita em
uma tormenta, como afirma Campos (p. 293, 2014). Talvez o mais importante seja refletirmos
sobre os lugares que ocupamos, nossos papéis e máscaras. Ao terminar a leitura da última
tradução, realizada por Rachel de Queiroz, perguntávamo-nos: seríamos nós, Orlando, ou a
cabeça com a qual ele brincava, aquela que seu pai havia decepado, certamente de um mouro?
Qual o nosso lugar, nesta identidade móvel?
45
O Momento Interrompido – Vista do Romance de Virginia Woolf. (Tradução nossa).
91
Virginia já havia tentado envenenar-se, amargurada. Por fim, como quem se refere à
própria morte, segundo Curtis (p.193, 2005), através de sua amiga Julia Stephen, mas sob nossa
ótica, fazendo referência à morte da própria mãe, Julia Prinsep Duckworth Stephen, Woolf
escreveu em 1895:
Obsessão de Diana
(Cecília Meireles)
A Raquel Bastos
46
Quando às vezes eu passeio em silêncio, com você/ Através de grandes prados florais em campo aberto/ Eu
escuto sua conversa, e agradeço aos deuses/ Pela amizade sincera, que fez de você minha companheira/ Mas na
fragrância pesada da noite inebriante/ Eu busco no seu lábio por uma carícia mais louca/ Rasgo os segredos de sua
carne que se rende/ Dando graças ao destino que te fez minha amante. (Tradução nossa).
92
Bastaria querer-te
pelas estrelas nadas
de teu vestígio inerte.
A deusa Diana estava destinada a permanecer virgem, e a não conhecer o amor. Nesta
relação de Diana com o amor, já que ela não deveria envolver-se, a deusa chegava ao ponto de
negar o desejo do outro, punindo-o por vezes de forma cruel, como quando transformou um
caçador em cervo, pois ele a desejou, enquanto se banhava. Assim como Diana, Orlando
começa sua biografia, desconhecendo Eros.
Mas, que paralelos podemos estabelecer entre Diana e Orlando? O primeiro deles:
Woolf chama o livro de selvagem, de alguma forma, algo não domesticado. Alguns
comentadores de Orlando criaram forte relação entre Orlando e Diana.
Já no Brasil, a pesquisadora Carla Cristina Garcia (p. 14, 2001) preferiu estabelecer
uma similitude entre o poderoso Oráculo Tirésias e Orlando. Tirésias está presente em muitos
dos mitos gregos revisitados no presente pelo ocidente, como Édipo, Narciso, ou, como aquele
que ajuda Ulisses. Para Garcia, Tirésias é “o vidente da Odisseia, que se tornou cego depois de
ver duas serpentes copularem” (GARCIA, p. 45, 2001). Mais do que isso, Tirésias torna-se
mulher ao observar duas serpentes venenosas praticarem sexo e, ao matar a fêmea, permanece
neste sexo por sete anos.
93
Poderíamos nos apoderar da análise da obra para explicitar o pouco cuidado com as
representações mitológicas greco-romanas. Porém, distante deste objetivo, outro aspecto que
nos conduz a distanciar Orlando de Tirésias é o argumento cedido pela própria pesquisadora,
que, mesmo não citando a fonte, mais uma vez, afirma: “Tirésias, cujo nome significa ‘o que
se deleita com os signos’, está em condições de julgar, tem memória e consciência, foi homem
e mulher. Não tem mais necessidade ver: já sabe.” (id., ibid.). Após extensa pesquisa,
encontramos em espanhol: “lo que se deleita com los signos” (ORSI, p. 288, 2007), trecho não
constando na lista bibliográfica. Quando comparado com a obra, o sentimento em Orlando é da
incerteza, enquanto que Tirésias, sendo o importante Oráculo, é a certeza, construindo uma
estrutura de oposição e completude, sendo pouco possíveis as similitudes. Vejamos o quanto
são instáveis os “eus” de Orlando:
Diana possui um séquito de ninfas que devem permanecer virgens e castas. Quando
lemos, vemos Orlando enredar-se no desejo pelos senhores Pope, Addison e Swift, cabendo-
lhe ficar no posto de quem se prepara para a sedução. No entanto, isso poderá sair por demasiado
caro, como o seria para Diana e suas ninfas. Um Oráculo, que possui a razão, sobretudo, não
viveria essa realidade.
94
Orlando é um romance repleto de figuras moldadas pelo tempo, este que torna-se, por
isso mesmo, elemento constitutivo da obra. Poderíamos, talvez, até dizer que ocupa o lugar de
um personagem nas diferentes etapas vividas por Orlando. Discutir o seu papel no romance
torna-se, então, elemento importante na análise.
conotação simbólica ainda se baseia na realidade extravagante, significa que ela/ele herdou não
só um lugar no tempo.” (Gilbert (p. 86, 2014), mas o próprio tempo:
O trecho acima atraiu a nossa atenção para o que Woolf chama de “tempo metal”.
Referência fria, dura e despersonalizada, fato que nos conduz a refletir sobre algo que cria um
tempo particular, com memórias involuntárias, e que coexiste com o anterior. Assim, o relógio,
servo de Cronos, torna-se mais um adorno cultural ou tecnológico para o tempo particular de
Orlando. Durante várias passagens, Orlando desconsidera o relógio, logo, age, vive e sente com
seu tempo próprio.
Woolf não nega o tempo metálico, manipula-o, em uma inversão, sendo ele – o tempo
– um “personagem” possuidor de um ritmo próprio e o tempo rítmico da obra. Assim, em
Orlando, há duas passagens que entendemos valiosas, considerando-se o objetivo final desta
reflexão, a saber, a androginia e a travestilidade. Elas não são as únicas. No entanto, é apenas
essa relação com o tempo que possibilita as inúmeras experiências e metamorfoses de Orlando:
por isso Cronos é chamado à cena.
A primeira passagem está no primeiro grande sono de Orlando, após entrar em reclusão
em sua casa de campo, por estar arruinado, como afirma a bela tradução de Raquel de Queiroz,
naquele “verão calamitoso inverno” (WOOLF, p. 39, 1982). O exílio da Corte e o fato de ter
caído em desgraça com os nobres do seu tempo, como os Desmonds da Irlanda, deixaram
Orlando encolerizado. Por esta razão, Orlando se recolhe em sua casa de campo, onde viveu
em profunda solidão:
A marcação do tempo de Cronos, ou, como Woolf prefere, o tempo metálico, fazendo
uma alusão ao relógio (imaginemos que este era, na época, muito mais uma corrente pendurada
junto ao bolso do terno), é referido na marcação do dia, sábado, na data 18, na contagem dos
dias dormidos, 7 dias, e, por fim, o horário do despertar; e respeitando o formato inglês de ler
as horas, a tradutora diz “oito menos um quarto” (WOLF, p. 40, 1982). Em seguida, Orlando
colocará para fora todos os servos de seu aposento e continuará seu dia como se nada tivesse
acontecido. O sono poderia ser uma paralisação das horas. Durante o longo sono, Orlando
poderia ter entrado em uma espécie de suspensão do tempo:
Mais aquilo foi sono - é difícil deixar de perguntar - de que natureza são os
sonos assim? São medidas reparadoras - transes em que as mais mortificantes
lembranças, os acontecimentos que parecem capazes de invalidar a vida para
97
sempre são roçados por uma asa sombria que lhe alisa a aspereza e os doura.
(WOOLF, p. 40, 1982)
Para Orlando, seu tempo sempre foi particular, único e pessoal. Toda a exatidão
temporal do narrador, ou narradora, se dilui ao encontrar Orlando. Esses tempos: de quem narra,
de Orlando, da obra e dos demais personagens, coloca em cena o tempo como personagem.
O segundo fragmento que ressaltamos, entre vários outros, não por importância, mas
apenas seguindo o fluxo do tempo na obra, dá-se no segundo longo sono de Orlando: “No
sétimo dia do seu letargo (quinta-feira, 10 de maio), foi disparado o primeiro tiro daquela
terrível e sangrenta insurreição, cujos primeiros sintomas o Tenente Bridgge surpreenderá”
(WOOLF, p. 65, 2013).
Orlando permanece avesso, mais uma vez, aos acontecimentos temporais coletivos,
orientado por seu próprio tempo, como em um espaço paralelo, e recebe a visita cingida, em
um manto de lã, de Nossa Senhora Aparecida, seguida por Nossa Senhora da Castidade, e Nossa
Senhora da Modéstia. Após essa relação de encontro entre os dois espaços de realidades e
tempos – aquele em que Orlando dorme e o outro, quando as três puras Santas chegam, pouco
se mostram, maldizem a humanidade e vão embora, chorando e dançando –, Orlando desperta.
A obra em questão seria, simultaneamente, uma reflexão histórica e uma reflexão sobre
o tempo. E, construindo uma representação de metabibliografia, paralelamente, Virginia faz
críticas ao formato do seu próprio trabalho, fazendo uso de um humor cáustico, com afirmações
que rompiam com a razoabilidade, e acreditava conhecer a “verdade” referente à “vida” e aos
“eus” de Orlando (WOOLF, p. 31, 2014).
47
A Árvore de Carvalho. (Tradução nossa).
98
Outro aspecto que nos remete às mudanças ocorridas na Londres do século XVIII,
(enquanto que para Orlando nada se mostrava claro ao recordar-se das “tortuosas estradas
elisabetanas” (WOOLF, p. 31, 2014)), é a passagem em que o/a narrador/a descreve uma massa
turbulenta de nuvens quando batem as doze badaladas da meia noite, proclamando que agora
“tudo era escuridão; tudo era dúvida; tudo era confusão. O século XVIII terminava, nascia o
século XIX.” (WOOLF, p. 207, 2014).
Defronta agora o biógrafo com uma dificuldade que é melhor talvez confessar
do que esconder. Até este ponto da narrativa da vida de Orlando, documentos
99
O percurso traçado até aqui é a ruptura com a linearidade de seguir direto até a sepultura.
Logo se olha para a direita, adentra-se por essas veredas, apreciam-se os cenários, os cheiros,
chegando, por vezes, a se perder. E, assim, talvez possamos fazer uma adaptação da frase de
Walter Benjamin (p. 73, 1995), quando se referia a Moscou:
[Proêmio]
É meu propósito falar
das metamorfoses dos seres em novos corpos.
Vós, deuses, que as operastes, sede propícios
aos meus intentos e acompanhai o meu poema,
que vem das origens do mundo até os dias do
mundo até os meus dias
Ovídio
A narração do trecho extraído afirma, somente, que Orlando se torna mulher. Quando
pensamos em Tirésias, somos conduzidos a uma maldição; aqui, a uma dádiva. Afinal, não há
expressão de dor na narrativa acima. Talvez este fosse o motif de Woolf para “mostrar” a cena,
algo que se afirma pelo trecho a seguir:
A condição que Orlando alcança neste estágio de androginia é de uma beleza e plenitude
quase divinas. Ao menos, seduz seres castos e puros do panteão cristão, que são tomados pela
curiosidade: as três Santas ficam espiando. Elas não são três santidades, mas Modéstia,
Castidade e Piedade. Esta tríade de arquétipos femininos são representações da condição,
talvez, do anjo da casa, que surgiu em Um Teto Todo Seu (1927), como o reflexo do lugar da
mulher e suas necessidades – situação difícil para quem possuía uma identidade de escritora.
Orlando é agora uma mulher, porém, guarda suas memórias, seus relacionamentos e
experiências de quando viveu como homem. Nada disso parece ser ameaçador, pelo contrário,
“Orlando transformou-se em mulher – não há o que negar. Mas, em tudo mais, continua o que
tinha sido.” (WOOLF, p. 82, 1982).
Orlando, “embora alterado seu futuro, de nada alterava da sua identidade” (WOOLF, p.
82, 1982), ou seja, uma relação em que a personagem aceita o devir, as transformações, e
explicita a transitoriedade da identidade. Afinal, o fato de não ter se alterado em nada pode
referir-se e este encontrar-se em constante mudança, e esta liminaridade em nada mudou
Orlando. Continua como Diana, à caça de identidades múltiplas, instáveis, o que não significa
desequilíbrio ou descompasso, mas o reflexo de uma identidade nômade.
Orlando, “agora uma jovem dama da nobreza” (WOOLF, p. 82, 1982). Talvez o leitor
pudesse esperar de Orlando, nesse novo lugar/sexo/gênero, em que se encontra agora, a
revelação de intensa perturbação emocional, mas não foi exatamente o caso.
A ambiguidade daquele que narra, qualquer que seja o seu gênero, avança na descrição,
ao referir-se aos traços de personalidade, ao tempo de vestir-se, questionando, como, sendo
101
mulher, nunca possuía mais de dez minutos para trocar de roupa. Podemos imaginar uma
referência ao arquétipo masculino: a agilidade, a presteza no vestir – talvez devido à falta de
adereços; por vezes, era representada como tímida, aspecto que nos remete ao feminino, porém,
simultaneamente, detestava assuntos domésticos. Mais uma vez, Orlando mostra a sua
androginia. O narrador parece transitar também pelas suas identidades de gênero.
estas questões que, por vezes, o narrador joga, usando Orlando como ela, mas, logo em seguida,
ao referir-se a ele, muda o gênero “dela”, como quem rejeita categorias rígidas, ou até mesmo
categorias.
As relações amorosas vividas por Orlando trazem detalhes que nos remetem à sua
condição e atração pela androginia. O caso da princesa russa, chamada Marousha Stanislovska
Dagmar Iliana Romanovitch, nome que causa a Orlando certo estranhamento, provoca um
efeito jocoso. Para simplificar, o/a narrador/a modifica o nome da princesa, quando esta se
encontra com Orlando. Passa a chamá-la apenas de Sasha48.
Quando o rapaz, pois, ai, devia ser um rapaz – nenhuma mulher conseguiria
patinar com tanta rapidez e energia – passou voando por ele quase na ponta
dos pés, Orlando estava prestes a arrancar os cabelos, pelo desgosto de ver que
a pessoa era de seu próprio sexo, e quaisquer intimidades estavam, assim, fora
de questão. Mas a pessoa que patinava chegou mais perto. As pernas, as mãos,
a postura eram de rapaz, mas nunca rapaz nenhum teve boca assim; rapaz
nenhum teve esses seios; rapaz nenhum teve olhos que eram como se tivessem
sido pescados do fundo do mar. Por fim, parando e estendendo, com a maior
graça, uma vênia ao rei, que passava, se arrastando, de braços com um
camarista, a criatura sobre patins se deteve. Não estava a mais que um palmo
de distância. Era uma mulher. (WOOLF, p. 26, 2015)
48
A partir deste ponto, grafaremos sempre Sasha, embora algumas traduções prefiram grafar “Sacha”.
103
Ela estava adormecendo com penas úmidas no rosto e o ouvido colado ao chão
quando ouviu bem no fundo um martelo batendo numa bigorna, ou seria um
coração batendo? Tic-toc, tic-toc, assim martelava, assim batia, a bigorna ou
o coração, no centro da terra; até que, enquanto ouvia, pensou que se
transformara no trote de um cavalo, contou um, dois, três, quatro; então ouviu
um tropeção; então, à medida que se aproximava mais, podia ouvir o estalar
de um graveto e o chapinhar dos cascos no pântano encharcado. O cavalo
estava quase em cima dela. Sentou-se empertigada. Destacando-se contra o
céu raiado de amarelo da aurora, com lavadeiras que subiam e desciam sobre
ele, ela viu um homem a cavalo. Ele sobressaltou-se. O cavalo parou. —
Senhora — disse o homem pulando para o chão —, está ferida! — Estou
morta, senhor! — respondeu ela. Alguns minutos mais tarde, ficaram noivos.
(WOOLF, p. 148, 1982)
Em seguida, o/a narrador/a fala sobre a capacidade de ambos saberem da vida de seus
amantes: “Na verdade, embora o seu conhecimento datasse de tão pouco tempo, ambos tinham
adivinhado, como sempre ocorre entre os amantes, todas as coisas de alguma importância a
respeito um do outro” (WOOLF, p. 149, 1982). Porém, Shel aguardava o vento sudoeste para
atirar-se em uma empreitada de navegação pelo Cabo Horn. O vento não chega; todavia, o medo
de Orlando, sim: “Orlando olhou apressadamente pela janela da sala de almoço para o leopardo
dourado do cata-vento. Felizmente a cauda apontava para leste e estava firme como uma rocha”
(Id., 1982). Frequentemente, sabedores um do outro, fazem a mesma pergunta:
104
O que desejava Orlando? Uma confirmação? Possuía dúvida? Não havia conseguido
decifrar tal questão? Tratava-se Shel de uma pessoa andrógina, como o nome que Orlando havia
atribuído? Podemos considerar que, assim como navegar, nada é estável nesta relação.
Assim, a travestilidade em Orlando ocorre no campo dos costumes, o que nem sempre
se traduz na vestimenta. Em Orlando, há uma compreensão de um self, um elemento interno
que coexiste com o corpo. As fronteiras são borradas, porém, Orlando está metamorfoseado,
fato que nos leva a refletir sobre o corpo e como essa metamorfose transparece na relação entre
corpo e espirito (seria melhor usar espírito). O que nos conduz a imaginar essa relação em outras
culturas, distantes do Ocidente, como entre os Melanésios descritos por Sônia Wainer Maluf
(p. 182, 2002):
A relação de Orlando com a Princesa Sasha, sobre a qual ele inicialmente se questiona,
por sentir desejo por outro homem, no primeiro capítulo, segue com uma ambiguidade de
papéis, devido à sua personalidade forte. A princesa, que inicialmente chama-se Marousha
Stanislovska Dagmar Natasha Iliana Romanovitch passou a ser: “Sasha, como ele a chamava
para abreviar, e porque esse era o nome de uma raposa branca russa, que tivera em pequeno -
criatura suave como a neve, mas com dentes de aço, e que o mordeu tão ferozmente que seu pai
a mandou matar.” (WOOLF, p. 25, 1982).
Sasha abandona Orlando, quando este pensa em fugir, idealizando um amor com ela.
Perspectiva feminina essa, a de esperar o grande amor, para, em seguida, ser abandonada. Aos
poucos, Sasha revela um temperamento caracteristicamente masculino, que se mescla com essa
identidade fugidia, que se convencionou atribuir aos homens: agressivos, dominadores e
altivos. No entanto, não há como negar, havia ali uma completude, pois ambos viviam papéis
sociais não desenhados para eles.
Convicto do seu abandono, Orlando permanece no cais, a observar os navios, até dar-se
conta de que ali não haverá nenhum russo:
Atira-se do cavalo, como se, na sua cólera, quisesse acometer a corrente. Com
água até os joelhos, lançou à infiel mulher todos os insultos que tem recebido
seu sexo. Falsa, inconstante, volúvel, chamou-a; demônio, adúltera, traidora;
106
Não há dúvida, Sasha era mulher. Orlando, naquela cena, colocou-se como o masculino,
invertendo as posições, fato demonstrado por sua cólera, como criticamente pontuou o/a
narrador/a, dirigindo-lhe “todos os insultos que tem recebido seu sexo”. Não havia dúvida:
naquele momento, Orlando sentia-se homem.
Sasha usava roupas que fizeram Orlando ter dúvidas quanto ao seu sexo. O mesmo não
se pode dizer no que se refere à Arquiduquesa romena Harriet Griselda, que, conforme Imagem
03, abaixo, veste-se de forma impecavelmente feminina. Todavia, possui conhecimento de caça
e armas de fogo: “Dentro de casa, seus modos retomaram a arrogância própria e não tivesse
demonstrado um conhecimento de vinhos, raro numa dama, e feito algumas observações
bastante sensatas sobre armas de fogo e as regras de caça em seu país, a conversa teria carecido
de espontaneidade.” (WOOLF, p. 69, 1982).
Há, portanto, uma dubiedade na duquesa, apesar de ser ela, ao mesmo tempo, ajustada
ao perfil feminino, pois se moveu e “se inclinou para apertar a fivela” (WOOLF, p. 68, 2015).
Essa dubiedade, demostrada ao apertar a fivela, apaixona Orlando, que passa a encontrá-la com
frequência.
morar na casa do padeiro como Orlando foi assaltado dia e noite pelos mais repelentes
fantasmas” (WOOLF, p. 69, 1982). Assim, para livrar-se dela, Orlando pede ao Rei Carlos que
o envie para Constantinopla, como Embaixador Extraordinário. Um abraço e um beijo, por cima
do ombro, marcam a despedida entre ele e a Arquiduquesa.
O que parecia ser um adeus, e de certa forma o foi, acabou não passando de um intervalo.
Afinal, eles voltam a se encontrar. No entanto, desta vez ele surge como Lady Orlando. Temos
aí não somente a mudança de sexo e todas as experiências, amores e frustrações, mas também
o momento de maturidade que Orlando agora vivia:
Como sua janela dava para a parte mais central dos pátios, como ordenara que
não queria ver ninguém, e ela era mesmo legalmente desconhecida, ficou, a
princípio surpreendida com a sombra, depois indignada, depois cheia de
alegria, pois era uma sombra familiar, uma grotesca sombra, a sombra de nada
menos que a Arquiduquesa Harriet Griselda de Fraster-Aarhorn e Scand-op-
Boom. (WOOLF, p. 105, 1985)
O encontro entre Lady Orlando e a Arquiduquesa fora inevitável. Logo, a visita declara
que se travestira de mulher pela paixão que sentia por Orlando e era, na verdade, o Arquiduque
Harry. Não se tratava, pois, do encontro de duas mulheres e, sim, de uma mulher e um homem:
“Em suma, representaram os papéis de homem e mulher por dez minutos, recaíram nas suas
maneiras habituais. O Arquiduque contou sua história. Havia se travestido, como forma de
aproximar-se de Orlando. Que era homem e sempre havia sido.” (WOOLF, p. 106, 1982).
Alguns filósofos diriam que a mudança de vestuário tinha muito a ver com
isso. Embora parecendo simples frivolidades, as roupas, dizem eles,
desempenham mais importante função que a de nos aquecerem, simplesmente.
Elas mudam a nossa opinião a respeito do mundo, e a opinião do mundo a
nosso respeito”. (Id., 1982)
No terceiro capítulo, a questão social começa a ser delineada. Inicialmente Orlando não
se importará com a mudança de sexo. Todavia, sua fuga de Constantinopla com os ciganos,
povos nômades, como nômade também é seu sexo, é um sinal de mudança. Para Farjado (p. 62,
2017), esse momento é o instante mais contundente sobre a igualdade de sexos. Em seguida, as
lembranças da Inglaterra fazem Orlando desejar o retorno à terra natal. Vende uma de suas
pérolas e compra um enxoval que a representa como uma jovem nobre. A roupa aqui é utilizada
como marca social. Lady Orlando sabe manipular seus símbolos muito bem. Assim, chega a
Londres:
Lady Orlando, mais uma vez, mostra que a roupa extrapola a proteção da pele, é um
marcador, que a limita ou liberta; como a saia que limita o navegar e mostra a condição da
mulher a partir do que se veste. Desse ponto em diante, há uma performatividade a obedecer,
marcada por limites que desconhecia até então. Afinal, como afirma a Lady, “encontrou seu
primeiro nó”, a condição de mulher traz em si um conjunto de atitudes e subserviências a serem
seguidas. Quando pergunta: “devo então, começar a respeitar a opinião do outro sexo, embora
me pareça monstruosa? Se uso, se não posso nadar, se tenho que ser salva por um marinheiro?
Meu Deus, o que hei de fazer?” (WOOLF, p. 93, 1982).
Como sensivelmente salienta Farjado (p. 67, 2017) sobre as relações amorosas, Lady
Orlando, mesmo negando a união com Shelmerdine, as quais eram simbolizadas pelas alianças,
resignou-se, incomodada com as vestes da época, e todas as suas simbologias. Ela aceitou e
entregou-se ao espírito do século XIX, incorporando a submissão. Busca um par, com a
finalidade de unir-se. Algo que a pesquisadora não salienta, e, no entanto, parece-nos presente,
é a convicção de não haver outras possibilidades para ela. Assim, sua postura é, coerente com
a condição de subalternidade da mulher no reinado da Rainha Vitória, período marcado pela
dubiedade, o início do liberalismo, e do moralismo vitoriano.
[...] “aqui Shel, aqui “gritou”, desnudando seu peito à lua (que agora brilhava)
de modo que suas pérolas resplandeciam como ovos de uma enorme aranha
lunar. O aeroplano rompeu as nuvens e pairou por sobre a sua cabeça. Revoou
por cima dela. As pérolas arderam como um relâmpago fosforescente na
escuridão.
E quando Shelmerdine, agora garboso capitão, bronzeado, rosado e ativo
saltou em terra, por cima de sua cabeça, voou um pássaro Selvagem.
(WOOLF, p. 195, 1982).
Mas, talvez mais do que tudo, o livro Orlando: uma biografia possa ser pensado como
uma alegoria da afirmação de Simone de Beauvoir: “não se nasce mulher...”
111
Eu vou te explicar uma coisa: quando você vir uma mulata como essa na rua,
você tem que tomar um certo cuidado. Porque, às vezes... Como vou te
explicar? O mel é fel, a mostarda é ketchup, entendeu?
49
Em Passagens (p. 462-463, 2007), Benjamin salienta alguns aspectos sobre esse personagem da modernidade:
deve-se tentar compreender a constituição moral absolutamente fascinante do Flâneur apaixonado. A Polícia – que
revela aqui, como em tantos assuntos que tratamos, como um verdadeiro perito – fornece a seguinte indicação, no
relatório de um agente secreto parisiense, de outubro de 1798 (?): “É quase impossível lembrar dos bons costumes
e mantê-los numa população amontoada, em que cada indivíduo, de certa forma desconhecido de todos os outros,
esconde-se na multidão e não precisa enrubescer diante dos olhos de ninguém”(In: Adof Schmidt, parires Zustande
wahreand der Revolution, v.2, Iena, 1876).
112
A uma passante
50
Tradução de Ivan Junqueira (1985).
Retorno ao caleidoscópio que intitula o primeiro momento desta pesquisa como quem
busca construir impressões e fazer contato com as memórias da cidade, ajustando-o, por fim,
ao território fluido, frouxo e de identidades tão diversas. Assim como as relações de afetos e
poder, marcadas clara e sinuosamente entre os corpos, propor-me-ei a criar relações entre a
fundação da cidade de Aracaju, primeira capital planejada do Brasil (MATOS, p. 01, 2007), e
suas implicações no território de trabalho das travestis no bairro de Atalaia, em Aracaju.
Para situar alguns aspectos da memória do local de pesquisa, vejamos alguns marcos
simbólicos da cidade de Aracaju. Outrora, o desenho da cidade remetia a um tabuleiro de
xadrez, em seu traçado urbanístico, definido pelo dito popular: “Aracaju, tabuleiro de xadrez,
onde pião não anda, só anda rei”.
114
Figura 13: Cartaz fixado no Campus de São Cristóvão da Universidade Federal de Sergipe, [s.d.]
Fonte: O autor (fotografada em 16.01.2017)
A cidade de Aracaju difere das duas capitais mais próximas: Maceió e, mais
contundentemente, da capital baiana, Salvador. O modelo português do traçado urbanístico de
Salvador em nada se aproxima de Aracaju. Salvador foi um povoado que tornou-se capital do
Império, protegida pela Baía de Todos os Santos. No entanto, foi-lhe atribuído um planejamento
urbano (delineamentos de ruas e definições claramente demarcadas) tão somente após a decisão
da Corte de ser a capital da Colônia (RISÉRIO, p. 65, 2004). Pode-se refletir que, na cidade de
Salvador, fundada em março de 1549, as relações e as lógicas mercantis que a impulsionavam
eram outras, no que diz respeito ao período, objetivo e topografia.
O povoado de Santo Antônio é elevado à capital em 1837, quando passa a ser chamado
de Aracaju, cuja construção é marcada por confrontos com os índios Tupinambás, jogos de
interesses e alto custo social. Como afirma Antônio Carlos Campos (p. 202, 1992):
Mesmo não concordando com a atribuição de uma sociedade capitalista, como afirma o
historiador Campos (1992), já que a realidade e o desenvolvimento da economia açucareira
caracterizam um meio de produção mercantil, a análise do discurso sobre a ideia que se
popularizou entre a elite, que afirmava ser Aracaju “uma primeira cidade livre”, explicita a
segregação, e esse trecho, por sua vez, possui a mesma lógica da segregação expressa no dito
popular. Há o lugar do povo e o lugar da aristocracia açucareira, detentores do poder, ou seja,
homens e mulheres livres.
Nas pesquisas realizadas não encontrei indícios ou documentos sobre a escravidão não
negra na cidade de São Cristóvão. Possuidora, em 1854, de uma população escrava de
aproximadamente 1.305 peças (nomenclatura utilizada na época para se referir a seres humanos
negros escravizados), havia também negros livres, números menores que 1,0% da população
(dado registrado na subdelegacia da então capital de Sergipe). Outro dado que mostra a
representatividade dos negros pode ser constatado pela distribuição dessa população, da qual
80% concentrava-se na zona rural, dedicando-se ao trabalho de produção de açúcar e criação
de gado, este último menos expressivo (DINIZ, pp. 161-183, 1991).
Uma cidade livre, branca, com ruas retas e simétricas, com lugares definidos para
“peões” e “reis”, que impedia a construção de casas de palha em seu território e estabelecia
multas de 5$00 a 10$00 (moeda réis) aos moradores que desobedecessem ao rígido padrão de
conduta e de construção. Isso evidencia o contorno da gênese da capital sergipana (Diniz, p. 08,
1991).
Aracaju se relaciona com seu passado, sob a perspectiva do mito daquela que foi bela e
amaldiçoada, transformando-se em monstro, e todos os que a olham – a Medusa51 – são
destruídos. Sob essas relações de poder, as travestis graciosamente dançam e seduzem, como
quem encanta, velando e desvelando: ora mostram as curvas, ora exibem quão grande e espesso
é o seu dote, nesse jogo noturno de mostrar-se e esconder-se, confrontando-se com o higienismo
e todos os aparatos, ora públicos, ora privados.
O território de Atalaia é também marcado por essa dubiedade: dor e desejo. Homens
viris durante o dia, à noite, como quem desejam outras experiências marginalizadas, pagam de
30 a 50 reais por um programa, com variações maiores, dependendo da relação estabelecida.
Sem conciliar discurso e atitudes, alguns têm limites dilatados, supondo que podem suportar,
como afirmaria Golffman (2011), as representações do seu “eu” nos seus cotidianos.
“Aqui, pode ver! Quem sai com travesti tem película no carro, agora quando chegam no
quarto são tudo ‘viado’ (risos).” (Informação verbal)52. Esse caminho percorrido sobre o
território pesquisado, ou seja, o remontar do processo de mudança da capital e suas motivações,
passou a ser uma possibilidade de entender sob outros ajustes esse caleidoscópio. Em visita, no
dia 20.12.2017, constatei que a cidade de São Cristóvão possui áreas tombadas pela Unesco
(Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura) e uma população
preponderantemente não branca, de menos de 18,8% em 1830 (MOTT, p. 10, 1973), o que não
se transformou, pois hoje São Cristóvão continua predominantemente habitada por não brancos.
Ao visitar a cidade, no fim da tarde de sábado, observei ruas vazias, casas abandonadas
e moradores alegres com os festejos natalinos. À noite, os pisca-piscas e os presépios reluziam
no interior das casas, distante do que já fora uma pujante capital e importante porto. Quando
indaguei sobre a cidade, no bar, onde só havia homens, o orgulho de ter sido uma capital,
agregado ao fato de possuir belas igrejas antigas em estilo barroco, era evidenciado por alguns.
Ao falarem sobre as igrejas construídas no período em que Portugal havia sido anexado pela
Espanha, podia-se observar neles uma mudança no semblante, mostrando que, hoje, os tempos
são outros. “As drogas tomaram conta de tudo e a cidade está abandonada” (Informação verbal)
51
Personagem da mitologia Grega, destacada pela sua profunda beleza, que, por inveja, foi transformada num
monstro, e todos que a olham, petrificam-se.
52
Entrevista concedida por Ariane, 23 anos, [Maio, 2017]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2017.
117
53
. De fato, a cidade de São Cristóvão não se recuperou da perda da sede do governo e
atualmente é considerada uma das cidades mais violentas do Estado de Sergipe. O sentimento
que perpassa a coletividade são-cristovense é o de que São Cristóvão sempre esteve
abandonada.
Como uma construção centrada na segregação, Aracaju não enxerga São Cristóvão,
mantendo a ideia de que a violência é oriunda das cidades que compõem a Grande Aracaju, a
exemplo da Barra dos Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro e, principalmente, São Cristóvão,
localidades em que era permitida a construção de casebres no período da mudança da capital,
pois os rios as separavam, como afirma Campos (1992) Cif.
A relação dos aracajuanos com seu território pode ser comparada com o momento em
que Narciso54 olha para o lago e apaixona-se pela imagem refletida, ou o lago, da mesma forma,
apaixona-se pela imagem refletida nas retinas de Narciso. Essa relação narcisista e egóica
renega o diferente, portanto, a periferia, excluindo-a dos mapas turísticos da cidade, por
invisibilidade, ou porque já não a entendem como parte há muito tempo.
Sob essa perspectiva e reflexão, nada é mais contemplado do que o Bairro de Atalaia.
Nessa localidade, há um acidente geográfico do encontro do Rio Sergipe com o Oceano
Atlântico, a presença de dois belos lagos e infinitos mobiliários urbanos modernos, que quase
impedem a vista oceânica. Em verdade, pude perceber que o traçado do “Quadrado de Pirro”,
modelo urbanístico de Aracaju, localizado na parte norte, e parte da arquitetura inicial, foram
abandonados, e os olhos e valores voltaram-se para o sul da cidade. Compreendo, destarte, que
a cidade foi inicialmente criada às margens do Rio Sergipe, voltada para ele, e, ao sul, na
Atalaia, predominava uma ideia de modernidade sergipana, localizada na região já banhada
pelo oceano.
Podemos observar que, como em parte das cidades brasileiras, os centros são
abandonados e outras regiões são valorizadas, antes pelo porto, mais recentemente pela
especulação imobiliária, e a violência ou o discurso de segurança, como status social. Aracaju,
além desses fatores, omite seu passado, sendo a Atalaia a modernidade. Com a atual mudança
53
Entrevista concedida por João, 44 anos (Morador do centro de São Cristóvão), [Dezembro, 2017]. Entrevistador:
João Dantas. São Cristóvão, 2017.
54
Personagem da mitologia Grega que se caracteriza pela vaidade e amor à própria beleza.
118
do plano diretor, que permite a verticalização, começa a substituição de casas por edifícios, com
pastilhas, nomes em francês e inglês, vidros verdes, verdadeiros não lugares.
Há uma rua em certo trecho que apresenta um desnível, quando comparada com a
avenida principal. Desse modo, quanto mais o carro ou o transeunte se distancia da avenida
principal, Avenida Santos Dumont, mais invisível se torna. Essa rua encontra-se com a Avenida
Santo Dumont em 90 graus. Ao sair do principal acesso do território de prostituição das
travestis, em Atalaia, o encontro com avenida principal faz com que desapareça do campo de
visão das pessoas, a zona de prostituição. Cria-se, assim, um sentimento de desligamento.
Essas travestis, damas da noite, com seus perfumes que podem ser sentidos a metros de
distância, usados na roupa, a fim de não transmitir as essências aos corpos dos clientes,
reconfiguram a paisagem urbana da localidade no bairro de Atalaia. Afinal, esse espaço é mais
uma rua durante o dia. Quando o sol se põe, a rua fica vazia de andantes e repleta de carros com
suas luzes. Aos poucos, vão chegando as travestis. Surge uma, que se coloca no mesmo lugar
de sempre, retira a chinela e a guarda em um terreno baldio próximo ou na bolsa, trocando-a
por um sapato com salto (habitualmente). Assim, a rua vai sendo tomada por outra, outra e
outra. Comumente, elas se saúdam: “– E aí!”, hiperbolizando a voz, aproximando-se do
feminino. Começa o pistão.
O território não é limitado por barreiras geográficas, mas sim temporais, sempre à noite,
pela penumbra, fácil trânsito dos carros. A colocação de cada travesti em um lugar depende
muito da relação que possui com aquela mais próxima, pois há um sentimento de mutualismo
e competição. Mutualismo porque se protegem em caso de roubo, clientes que se recusam a
pagar, realizam ou dividem algumas substâncias para uso durante a noite, como álcool, fazem
programas conjuntos. A competição está ligada ao fato de que ambas serão avaliadas pelos
possíveis clientes, como dois produtos concorrentes.
119
Assim como “as pessoas ainda não foram terminadas” (GUIMARÃES ROSA, p. 25,
1994), o território transforma-se em um devir contínuo. As travestis, impedidas de fazer
programas próximo à orla, foram empurradas, sob resistência, para a região mais interna do
bairro, que posteriormente se mostrou mais rentável. Mesmo que esse fato tenha sido uma ação
higienista e segregacionista, consegue-se entendê-lo com propriedade somente mediante
pesquisa da formação da capital, Aracaju.
Nessas novas incursões, os conflitos entre travestis chegaram ao relato mais violento.
Pressuponho que esse fato tem relação com alguns fatores, entre eles, diminuição da clientela
e manutenção do preço dos programas, desde 2013.
[...] Não se sabe ao certo, fato é que esta travesti roubava e ela morava em uma
casa improvisada aqui na rua mesmo. Um dia tocaram fogo na casa dela, e
dizem que foi a polícia ou a população local, ou as próprias travestis, ninguém
sabe, ninguém viu. Ela também sofreu várias ameaças de morte, aí ela sumiu,
dizem que foi embora. (Informação verbal) 55
55
Entrevista concedida por Bela, [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
120
Conforme estudo divulgado pelo IBGE das Contas Nacionais, no ano de 2010
o PIB de Sergipe cresceu, em volume, 9,47% [2011] em relação ao ano de
2010, o Brasil cresceu 2,7% e o Nordeste 9,42%, portanto a economia
sergipana teve um crescimento maior que o Nordeste e que o Brasil. O PIB de
Sergipe na base de 2011 é de R$ 26.199 milhões, o que representa 0,6% do
PIB do Brasil e coloca Sergipe na 22.ª posição entre as unidades federativas,
do ponto de vista de valor do PIB.
[...]
Sergipe também permanece mantendo o maior PIB per capita do Nordeste,
sendo nesta base o PIB per capita de R$ 12.536,45, registre-se que o PIB per
capita do Brasil foi de R$ 21.535,6 e o da Região Nordeste R$ 10.379,75.56
A cidade de Aracaju, que por décadas fora comparada, com discrepância, com a capital
de Alagoas, Maceió – que era e é exemplo de violência –, caracterizava-se por seu povo ordeiro
e suas ruas limpas e seguras, símbolo de qualidade de vida, o que já a levou a ser premiada
como a melhor capital em qualidade de vida do Brasil. Ainda no governo Dilma Rousseff, a
cidade de Aracaju passou a ter índices de violência crescentes, seguidamente, tornou-se palco
de roubos, latrocínios e homicídios em percentuais nunca alcançados. Segundo dados da
Secretaria de Segurança Pública, em dois anos os números quase dobraram, de 2015 a 2017.
56
Disponível em: <http://www.infonet.com.br/noticias/economia//ler.asp?id=151769>. Acesso em: 12 de abril,
2018.
121
O Jornal Cinform possui uma única edição semanal, às segundas-feiras. Por sua vez, na
internet há notícias diariamente. Nenhuma das matérias encontradas apresenta custos e/ou
investimentos, logo, a ideia de dados positivos de uma redução de 20,4% do número de
homicídios não expõe o custo, bem como os outros crimes que eram muito (ou ainda são)
significativos, quantitativamente, como roubos e furtos.
57
Fonte: SSP/SE.
58
Cinform, 14 set. 2016.
122
Essa estratégia fez com que, rapidamente, os clientes fossem tomados pelo medo da
visibilidade e parassem de frequentar esse território, afinal, a prestação de serviço das travestis
é marcada por fortes estigmas, e a presença de forças repressoras, realmente, cumpre o papel
ao qual se propõem. Na madrugada do dia 23 de dezembro de 2017, Key, Dulce e Boca de Ouro
se encontravam em um ponto utilizado há mais de seis anos, desde que trabalhei nesse território,
onde havia clientes fixos, como funcionários da Petrobras, que trabalham embarcados por
quinze dias e folgam quinze, e outros clientes, como comerciantes e funcionários públicos.
Durante aproximadamente duas horas, a viatura da Força Nacional passou três vezes,
com espaços de tempo entre 15 e 20 minutos, fato que transformou o território das travestis.
Key argumenta que “a culpa também é das travestis, porque agora ficam fazendo roubo e todo
mundo no fórum já sabe” (Informação verbal). O que se percebe é uma crise econômica grave.
Com a crise da Petrobras e da economia brasileira, a escassez de capital no mercado e a perda
da invisibilidade por parte dos clientes tornaram o território inadequado.
Com todos esses novos atores e as questões da perda de renda e turismo, o impacto foi
profundo, afinal, Aracaju passou a fazer parte das dez cidades mais violentas do país. Os
programas, durante o período de seis anos, oscilaram. No entanto, retornaram na mesma faixa
de aporte financeiro: R$ 50,00 completo (sexo oral, anal e masturbação, beijos são evitados);
sexo oral (R$ 30,00). Outras possibilidades são negociadas, como o cliente usar as roupas da
123
travesti, usar dildo, sexo em grupo e sexo sem camisinha (estes são mais raros, porém algumas
sempre afirmam conhecer outras que o fazem).
O sol começa a lançar impetuosamente seus raios. Selena59, em sua linda carruagem de
prata, puxada por cavalos brancos, já atravessou o céu: o dia se precipita. O rito de todo dia
chega ao fim, hora de retornar para casa. As ruas vão ganhando outros atores, estes apressados
como máquinas. Agora, o território afeiçoa-se às ruas, perdeu o cheiro das damas da noite, o
perigo dos ladrões e a Força Nacional já foi dormir. Os semblantes das travestis estão cansados,
alguns alegres, quando a noite fora boa, algumas delas mal-humoradas, querem chegar em casa,
afinal, outra noite não tarda a chegar. Nesse estar-se só, no retorno para casa, mesmo que
algumas voltem em duplas ou trios, enfrentarão os olhares da moral, as piadas.
O corpo
O corpo existe e pode ser pego.
É suficientemente opaco para que se possa vê-lo.
Se ficar olhando anos você pode ver crescer o cabelo.
O corpo existe porque foi feito.
Por isso tem um buraco no meio.
O corpo existe, dado que exala cheiro.
E em cada extremidade existe um dedo.
O corpo se cortado espirra um líquido vermelho.
O corpo tem alguém como recheio.
ARNALDO ANTUNES
A quem serve o corpo das travestis? Questiono, enquanto começo a refletir. Talvez sutil,
imediatamente, dizemos que essa interrogação é utilitarista, e tentá-la responder muito
empobreceria a experiência das travestis e seu universo simbólico. Então, passa-se a outros
questionamentos: como posso entender/sentir a vivência das travestis com seus corpos: como
59
Divindade da mitologia grega que representa a lua (deusa da lua).
124
ritos, valores pessoais, estigmas significados e interpretados por elas, que trabalham como
prostitutas no Bairro de Atalaia? Sob uma dimensão estética e simultaneamente existencial?
Compreendo que sim, como no poema da banda Cozinha Mineira e as Baianas (2018): “Olha
só doutor, saca só que genial/ Sabe a minha identidade?/ Nada a ver com genital”.
Foi possível identificar, pelo menos no modelo percebido em campo, as posses, sejam
de silicone, hormônios, roupas, ou a não posse, por exemplo, de produtos masculinos. A
construção das identidades das travestis está aportada em cultura própria. Universo simbólico
que se aproxima do feminino, referenciando-se. Entretanto, a ideia de mulher, de feminino,
como conhecida na cultura ocidental, é matéria-prima para as travestis de Atalaia. Elas
subvertem produtos, ressignificam fármacos e produtos de alta toxicidade, como o silicone
industrial. Portanto, não nos parece adequado classificar as travestis como mulheres que
nasceram homens, ou homens que desejam ser mulher: “[...] Não queria ter uma buceta, caso
quisesse eu não era travesti, eu era transexual. Vou cortar minha pica e vou trabalhar com o
60
Entrevista concedida por Alice, [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
125
quê? Você sabe, João, que as maricas nojentas da Atalaia só querem tomar no cu!” (Informação
verbal) 61.
Sob minha ótica, as travestis são pessoas que percorrem o caminho inverso defendido
por Aristófanes, n’O Banquete, de Platão. Insatisfeitas com a unicidade, de um único:
masculino ou feminino. Após a vingança de Zeus, que separa os corpos possuidores de dois
sexos, querem que seus corpos voltem a ser inteiros, o que Aristófanes chama de “os filhos de
Selene” (PLATÃO, 1966), destarte, como os hermafroditas (trata-se de uma referência mítica).
Nesse aspecto, as travestis retroagem ao mito e vivem sob certas circunstâncias, e essa
desobediência do maniqueísmo traz a vida outro sexo. Ao interrogar o pesquisador em Filosofia
Antiga, Dr. Rodrigo Pinto de Brito, em entrevista realizada em 19 de janeiro de 2018, sobre
essa leitura d’O Banquete, mais especificamente do discurso de Aristófanes, ele disse que
compactua com esse pensamento e acrescenta: “as travestis violam a linearidade do mito sob
esta perspectiva” (Informação verbal). Podemos também afirmar que desobedecem a Zeus.
As travestis com que trabalhei, na sua maioria, não buscavam um ideal de beleza
essencialmente feminino, mas, acredita-se, uma referência muito forte ao universo feminino. A
voz, por exemplo, é sabido que possui um grave forte, comumente. Portanto, elas produzem
palavras com uma referência sonora no seu próprio grupo.
Ao serem indiferentes às ciências médicas, talvez em virtude de, ao longo da vida, não
terem acesso, as travestis não compactuam ou sequer prestam atenção nesse universo, somente
quando se referem a cirurgias de intervenção estética. Não se colocam sob a nomenclatura de
Disforia de Personalidade (CID 11) da Organização Mundial de Saúde (OMS), fato que
61
Entrevista concedida por Ana, [Maio, 2013]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2013.
126
Assim sendo, o corpo das travestis que trabalham em Atalaia mostra-se operando sob
outras referências, as quais discutirei no decorrer da análise. Com um olhar externo, pode
parecer loucura, ignorância ou outra enfermidade. Essa percepção para parte dos demais
públicos, sobre as travestis repercute de forma violenta, ou, como meticulosamente explicita
Amara Moira (2016, p. 29):
Mas tem vezes que a sincronia da minha passagem com esse rio soa estranha
demais, me deixa insegura, agride. E tem vezes que, nessa insegurança, surge
alguém que gosta de mim, e de quem gosto, pra perguntar como é que aguento,
como é que eu deixo e não vou lá cuspir na cara infeliz. Como é que eu aguento
é assim, fazendo a pêssega. Porque se eu percebo o que se passa ao redor, a
forma como me olham, o quanto a minha figura não faz sentido, aí é me trancar
no quarto e chorar. Como ontem.
Em 2013, não localizamos travestis com próteses de silicone, fato que se repetiu agora.
No entanto, segunda Bebel, 26 anos: “Havia, João, algumas… sabe né! As coisas mudaram
muito, tá mais difícil e algumas, as mais montadas, foram para Salvador, Rio ou para a Europa,
ou pelo menos diz que vai!” (Informação verbal).
62
A dor da Beleza é usada na etnografia Damas de Pau, realizada por Neuza Maria de Oliveira, sendo este o
primeiro registro encontrado. Posteriormente, na Etnografia do Dinamarquês Don Kulik, com Travestis no
Pelourinho e depois no filme Bombadeira.
128
A compra parece ocorrer no mercado clandestino, pois, de acordo com o Projeto de Lei
n.º 26/1999:
Aqui, tem um médico só que faz, mas quem tem R$5000,00 para isso? É muito
programa de R$50,00. A gente tem também que se produzir, cabelo, sapato,
maquiagem e essas coisas, né? Não dá! Agora, se eu for para Madri, aí é outra
coisa. Mas lá eles já querem com peito é essa coisa. (Informação verbal) 63
A aplicação do silicone industrial, por sua vez, é uma opção a um custo possível,
transformação imediata, e todas conhecem os riscos. Todas as entrevistadas mostraram
conhecimento de casos de travestis que, sob a perspectiva delas, ficaram lindas, e outras que
ficaram deformadas. Bela, 26 anos, uma das mais experientes travestis entrevistadas, pontuou
algo que nunca havia lido em relatos etnográficos ou artigos científicos:
A “bombação” faz parte das conversas percebidas no cotidiano das travestis, tanto em
suas vidas íntimas como na rua, observando os corpos das “bombadas” e comentando, conforme
verificado na pesquisa de campo em 2013. A questão da vida privada e pública, pude observar
na fala de Raquel, 21 anos, sobre a importância da “bombação”:
Uma travesti de verdade tem peito, bunda, quadris e cabelão, né? Então a
“bombação” é uma questão de sorte, você pode ficar linda, maravilhosa,
ganhar até mais dinheiro ou não. Agora, só com hormônio você é uma gayrota,
um viadinho de peruca, é assim que funciona. (Informação verbal)
63
Entrevista concedida por Ariana, 27 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
130
Bela afirma estudar direito em uma instituição privada de Ensino Superior, uma exceção
à regra. Enquanto tomávamos uma cerveja em um bar na Orla de Atalaia, começamos a falar o
quanto, em seis anos, tempo do nosso último encontro, havia se transformado em uma travesti
mais segura, e, sob os padrões estéticos do grupo, afirmava-se bonita, enquanto projetava e
arqueava os ombros para cima e oralizava: “A gente tem que evoluir” (Informação verbal).
Eu: E o silicone?
Bela: Não penso em injetar, sei dos problemas que causam e outra coisa
[movimentando o corpo de forma a mostrar], estou satisfeita. (Informação
verbal)
Conversamos por mais de duas horas, sob o olhar atento dos clientes do bar, e das
conversas, que pareciam se referir a nós. Lentamente, a cada cerveja, o clima no ambiente foi
ganhando uma normalidade, sob a observação contínua do garçom, que ainda hoje não consigo
afirmar se paquerava Bela, a mim ou era, sob sua perspectiva, algo novo, ou se, ainda, obedecia
a ordens. Quando os clientes observavam, ela queria fazer selfs ou fotos comigo, como quem
tentava afirmar que éramos um casal ou amigos, talvez.
No dia seguinte, entro no Facebook de Bela para verificar se havia alguma postagem do
dia anterior, afinal havíamos feito uma dezena de fotografias. Encontro apenas uma foto da
mesa, da perspectiva em que ela a enxergava. Havia somente uma mesa de madeira de dimensão
de 2m², forrada, com uma garrafa de água mineral, uma cerveja e dois copos, um copo de
whisky vazio e sua bolsa preta. A bolsa demarcava que aquela foto era dela e foi então que
entendi. Mesmo não estando na foto, o texto falava sobre mim e me marcava. Assim, havia uma
exposição do bar, considerado de classe média, e em um jogo com o masculino que a
acompanhava, embora não houvesse uma foto, havia um hipertexto, em que, ao clicar, conduzia
à minha página do Facebook, na qual se encontram dados sobre minha vida. Então, resolvi
escrever nos comentários: “Foi tudo especial”. Depois ela responde, marcando-me: “João, você
é uma pessoa especial”.
O silicone líquido, a “bombação”, são partes do rito de passagem definitivo das travestis,
que começou com a mudança do nome. Nunca achei respeitoso perguntar qual o nome anterior,
mas algumas contaram histórias que fatalmente remetiam ao nome masculino.
131
A travesti, para ser “bombada”, tem a área perfurada por agulhas veterinárias, em
virtude, segundo elas, da espessura do silicone, pois, trata-se de um tipo de substância com alto
grau de viscosidade e denso quando comparado ao óleo. Comumente, para aplicação de dois
litros para construção dos quadris, aplicam-se de 20 a 30 seringas veterinárias, com maior
espessura. Para reduzir a dor, faz-se uso de xilocaína ou outro anestésico.
Para alcançar a simetria entre os lados, deve-se injetar a mesma quantidade de seringas,
seguida de massagem. Cada “bombadeira” tem seu processo e forma, algumas mais rápidas,
outras lentamente.
Como se faz depende dela [bombadeira]. Cada uma tem seu jeito, aí é você
que tem que escolher qual você confia, porque não é barato. Eu mesmo, antes
de me “bombar” olhava o corpo das outras, as histórias, essas coisas. Mas
comigo, graça a Deus, deu tudo certo e eu gostei. (Informação verbal) 64
A fim de impedir que a substância escorra para a parte mais baixa, as pernas são
amarradas. No caso dos seios, chega-se a colocar uma tábua para impedir o chamado peito de
pombo. Algumas travestis morrem de ataque cardíaco, outras de infecção. No entanto, esse é o
único recurso disponível para um grupo sem maiores escolhas. Esse polímero (silicone)
constrói, assim, um corpo com outras matérias-primas.
O corpo possível das travestis, carregado de silicone líquido faz-me refletir a partir de
dois artigos publicados em 1929, e discutidos pela pesquisadora Elaine Noberto Moraes, em O
corpo impossível (p. 125, 2012):
64
Entrevista concedida por Beleza, 37 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
132
“Toda travesti toma hormônio. Todo mundo sabe disso” (Informação verbal) 65
.
Enquanto o silicone sintético transforma os corpos de imediato, afinal, após a aplicação, o corpo
é moldado com delicadeza ou movimentos brutos, tomando forma instantaneamente, os
hormônios são processos lentos e agem por toda a vida.
Para Oliveira (pp. 103-118, 1994), os hormônios femininos são algumas das substâncias
disponíveis mais antigas usadas nos métodos clínicos para a transformação do corpo, sendo, a
meu ver, o rito de passagem das travestis. As doses podem ser ingeridas diariamente, injetáveis
ou em forma de aditivos. Essas substâncias são responsáveis pelas transformações do corpo
para as travestis, como o desenvolvimento dos seios, arredondamento da face, criar de silhuetas
femininas, diminuir e tornar menos espessos os fios da barba, melhorar a textura do cabelo e
pele, e deixá-la mais feminina. A ingestão de hormônio acompanha a vida de uma travesti, pois,
caso resolva parar, ocorrerá o que Ana chamou de “murchar os seios e a cara, e ficar machuda”
(Informação verbal), perdendo o contorno feminino. Assim, diferente de outros grupos, em que
os ritos de passagens são momentos específicos, para as travestis, é um processo permanente.
Algumas travestis atribuem aos hormônios reações e dores comuns à mulher. Como pontua Bia:
65
Entrevista concedida por Bela, 26 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
133
“Eu, quando comecei a tomar algestona, nos primeiros dias sentia uma dor no pé da barriga e
falei com uma mapô, amiga minha, e ela disse ‘viada, isso é cólica menstrual’. Mas claro que
não vai descer” (Informação verbal). Assim, os hormônios são produtos estruturantes na
construção do feminino para as travestis.
Como afirma Bela, a automedicação ocorre por não ter tratamento hormonal gratuito.
O uso de anticoncepcionais e pílulas do dia seguinte são a principal opção, pois contêm o
hormônio estrogênio na condição semipura.
Não há referência ao uso desses medicamentos por travestis nas suas respectivas bulas.
São indicados comumente como anticoncepcionais de uso menstrual ou para o controle de
irregularidade menstrual, explicitando o uso claro em mulheres.
Ao analisar as bulas dos produtos disponíveis no site66, pude concluir que a indústria
farmacêutica, bem como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outros órgãos
do Governo Federal, não consideram o uso de tais substâncias pelas travestis. Portanto, não há
em suas respectivas bulas recomendações para esse público, fato de conhecimento do universo
dos farmacêuticos que encontrei em duas das cinco farmácias em que fiz levantamento de preço.
Ciclo 21:
Efeitos Colaterais
Quais os males que pode me causar?
Contraindicações
Quando não devo usar?
Ciclo 21 está contraindicada para mulheres grávidas ou com suspeita de
gravidez, pacientes com tromboflebite ou distúrbios tromboembólicos,
alguma doença vascular cerebral ou coronariana, historial de câncer, que pode
se desenvolver sob a influência de hormônios sexuais, como câncer de mama
ou dos órgãos genitais, sangramento genital anormal sem causa aparente,
historial de tumor no fígado, pacientes com distúrbios do metabolismo
lipídico, historial de herpes gestacional, historial de enxaqueca, pressão alta
não controlada, diabetes, alterações vasculares, otosclerose agravada durante
a gravidez, pacientes com anemia falciforme e para pacientes com alergia a
algum dos componentes da fórmula.
66
Disponível em: <https://www.minhavida.com.br/saude/bulas>. Acesso em: 12 de abril, 2018.
135
uma rápida afirmação: “Para este tipo de medicação não é necessário receituário”. O
farmacêutico foi imperativo em sua resposta. Quando perguntei se um homem poderia comprar,
ele se sentiu desconfortável. Talvez essa farmácia, por se localizar na área de circulação e ponto
de passagem das travestis, seja um ponto de venda para o público aqui referido.
Essa é a relação entre esses diversos procedimentos amados ou rejeitados pelas travestis
do território de Atalaia, porém necessários por força do labor. Há uma relação de negação com
os estimulantes para obtenção de ereção. Afinal, esses fármacos são direcionados à afirmação
da virilidade, substância que simbolicamente possui uma função contrária, ou na direção
contrária aos hormônios femininos. Portanto, consideramos necessário expor, aqui, por ordem
de familiaridade entre elas: Viagra, “citrato de sildenafila, equivalente a 25 mg, 50 mg ou 100
mg de sildenafila base”68, produzido pelo laboratório farmacêutico Pfizer, importante
representante da indústria farmacêutica. Segundo a revista Forbes69, o segundo maior
conglomerado farmacêutico do mundo, há inúmeros genéricos e os preços mudarão sob duas
variáveis: quantidade por caixa e concentração. Assim, uma caixa com quatro unidades de
Viagra com a maior concentração, 100 mg, na Farmácia Pague Menos, situada na Av. Antônio
Alves, 674 – Atalaia, custa R$112,50, e uma embalagem com uma unidade de 25 mg custa R$
18,05. Esta pesquisa foi realizada no período de grande procura, segundo o balconista Luis
67
Entrevista concedida por Boca de Ouro, 34 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
68
Disponível em: <http://www.medicinanet.com.br/bula/5394/viagra.htm>. Acesso em: 12 de abril, 2018.
69
Disponível em: <http://forbes.uol.com.br/listas/2015/07/15-maiores-empresas-farmaceuticas-do-
mundo/#foto2>. Acesso em: 12 de abril, 2018.
136
(nome ficcional), domingo, 12.02.2018, sobre a qual afirmou, espontaneamente: “E você não
imagina como vende” (Informação verbal).
Essa relação inconciliável, desenvolvida por um saber do próprio grupo e, do outro lado,
a clínica, indústria farmacêutica e legislação criminal, conforme se percebe na fala de uma
informante: “Quando tomo [anticonceptivo injetável], melhor que seja injetado no bico do
peito”, cria uma dinâmica de tensão. Acredito que as travestis não buscam a conciliação com a
clínica, que representaria a perda da sua autonomia de manipulação dos próprios corpos. Assim,
isso nos leva à outras reflexões, a exemplo da pesquisadora Moraes (p. 198, 2002):
Daí a violência com que Bataille opõe uma teoria do informe à exigência dos
acadêmicos de que todas as coisas tenham forma: “na verdade, o universo não
se perece com nada e equivale a qualquer coisa como uma aranha ou um
escarro”, posto que toda forma vive e morre sem cessar de seus próprios
acidentes, precipitando o incessante jogo de deformação.
Daí também sua recusa às imagens genéricas e ideias, que responderam às
necessidades humanas de fundir as contradições num termo comum, buscando
conciliar o inconciliável. No limite da concepção batailliana, segundo a justa
observação de Didi-Huberman, “a forma só é possível como acidente perpétuo
da forma”.
O corpo das travestis do grupo estudado entende essa precariedade da condição de tornar
estáticas as transformações de seus corpos, e elas fazem uso desta como potência de construção
de um corpo identitário. Referindo-se a Didi-Huberman, Morais confronta-nos com o devir,
que aqui ajusto para a observação dos corpos. A ideia do incessante “jogo de deformação”
(MORAES, p. 198, 2002) deve ser entendido como a perda de uma forma anterior e, assim,
continuamente, não havendo uma dimensão moral nesse jogo de deformação. Talvez possamos
entender que não pode haver conciliação ou fundir as contradições, que são parte desse
movimento, já que a fusão ou conciliação seria a estagnação, a perda do movimento, a
aceitação, por parte das travestis, das travestis que são patológicas.
137
Apesar da importância atribuída aos pelos, à pele e aos cabelos, nos relatos etnográficos,
pouco se discutem essas relações. Refiro-me às etnografias de Neuza (1994), Beneditti (2005),
Silva (2007), Don Kulick (2008) e Veras (2017). As travestis, profissionais do sexo no território
de Atalaia dedicam parte do dia na construção dos seus corpos por meio da relação com os
pelos, cabelos e pele.
O cabelo possui uma representação simbólica que povoa a linguagem, ora do corpo, ora
das expressões, como “bater cabelo” ou “jogando os cabelos”, referências a ações entre as
travestis, e no mundo gay. Como explica Dany, 23 anos: “É um show! As drag fazem um
movimento com o cabelo. Elas fazem com o pescoço, fazendo um giro total, girando pra um
lado e o outro, só que isso é muito rápido” (Informação verbal).
Para Bela, “O cabelo [longo] deixa a gente mais mulher” (Informação verbal). Assim,
as travestis, como identificado em 2013, quando começam a fazer programas ou como forma
de manipular a percepção dos seus corpos, usam uma série de recursos ligados aos cabelos,
entre os mais comuns: peruca, apliques, megahair.
Os cabelos compõem a identidade das travestis. Não se imagina uma travesti sem
cabelo, e o uso de perucas não é bem visto por elas. Quando se referem a uma delas que ainda
não possui os atributos do corpo, como seios, chamam-na de “gay de peruca”.
As travestis costumam cuidar de seus cabelos, pelos e pele em casa. Fazem selagem
(tipo de tratamento no fio do cabelo), hidratação e uma série de procedimentos. Algumas, a
exemplo de Bela, trabalham em salões. Na verdade, foi o único caso catalogado. Há uma troca
de informações durante os encontros, fofocas, briga por namorados, cabelo, hormônios
presentes nos anticonceptivos. As redes sociais são usadas para escolher cortes de cabelo, ver
outras travestis que passaram pelo território e estão na Europa ou em outras capitais,
representando um tipo de referência estética bem-sucedida, criando, assim, uma grande teia de
comunicação e influência virtual.
O uso de pinças mostrou-se como o método mais utilizado. Também são empregados
cera quente ou fria e um creme que, segundo as pesquisadas, também serve para a depilação.
Muitas delas comumente não fazem uso do aparelho de barbear e creme para barba. No entanto,
utilizam-no para a depilação das pernas, braços e outras partes do corpo, mas sem cremes
espumantes, algumas salientaram usar hidratante. Especulamos essa informação por habitar o
imaginário desse grupo um objeto masculino, como um rito viril.
Existe um pequeno grupo que opta por descolorir os pelos com água oxigenada pura ou
associada a outros descolorantes em exposição ao sol. Esse processo causa a descoloração dos
pelos e um bronzeamento, valorizando-se as marcas do biquíni, através das roupas, nos pontos
de programas.
um ideal feminino. “Gosto muito de usar base, porque às vezes fica um pouco inflamada a pele,
quando eu retiro [pelos da face] com pinça ou dou um beliscão sem querer” (Informação verbal)
70
.
A etnografia realizada por Marcos Renato Benedetti (2005), em Porto Alegre, também
foi marcante a presença da relação entre a depilação e o uso de pinça. No entanto, parte das
travestis de Aracaju não consideram a existência da barba como um estorvo; mesmo chamando
de chuchu, pareceu-me um processo aceito nessa dialética do corpo, sendo, claro, incômodo.
Assim, durante parte do dia, mais especificamente, às tardes, uma pinta as unhas, outra com
uma pinça puxa os fios da face, que na noite será coberto com corretivo, se possível, e base.
Após longa observação do cotidiano, pude notar que as travestis são tomadas por uma
consciência de que seus corpos dialogam prioritariamente com o universo feminino. No entanto,
não desejam sê-lo. Desta forma, há elementos que o campo da biologia atribui ao masculino,
como os pelos na face. Estes fios estarão lá, assim, reflito, adiar, criar repulsa ou nojo seria mais
sofrimento que estratégia de solução. Todavia, é possível encontrar travestis que mostram
profundo incômodo. Não sei se todas que expressaram esse sentimento, mesmo sendo minoria,
realizavam uma performance ou era um sentimento verdadeiro, nunca saberei. Neste aspecto,
70
Entrevista concedida por Paula, 23 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
141
entendo os pelos da face diferentemente das análises feitas por outras etnografias, como as de
Kulick (1997), Beneditti (2000), Denizart (1997), Silva (2007). Para Beneditti (p. 8, 2005):
O desejo de tirar os pelos que cobrem a face com técnicas definitivas, como laser ou
eletrólise71, não se mostrou uma prioridade, visto que a ingestão de substâncias com hormônio
feminino diminui a espessura e quantidade desses pelos. A compra de hormônios, a colocação
de seios, cabelo, tratamento de pele, sapatos, bolsas e roupas sempre estiveram presentes entre
as aspirações, na construção dos corpos das travestis, quando comparados com a eliminação de
tais pelos, mediante técnicas definitivas e onerosas ao universo investigado.
Não utilizamos o nome barba, não obstante seja de mais fácil compreensão para o leitor,
pois as travestis não se referem assim aos pelos da face. Afinal, barba é um marcador masculino.
Pelos da face, chuchu ou estes/esses pelos (apontando para eles) foram os termos usados para
tal. Portanto, a preocupação em nomear seus corpos ou partes deles sob a perspectiva delas é,
para mim, a construção da identidade, seja por aquilo que foi expresso, omitido ou esquecido.
É na pele que pelos e cabelos nascem e crescem. Também a pele possui suas memórias
e experiências. Para Luiz Mott e Aroldo Assunção (pp. 43-44, 1987), a automutilação é uma
forma de autodefesa e manifestação, uma prática muito comum. Eles apresentam relatos
colhidos em várias fontes documentais, entre elas, uma do jornal Última Hora, do Rio de
Janeiro, em 17.08.1982, em que a travesti chamada Vera Fischer, também do Rio de Janeiro,
afirma: “Quase todos os travestis da Galeria Alaska têm o corpo marcado por gilete ou navalha”.
Pela vasta pesquisa realizada em diversas fontes e regiões, não parece ficção que, nos anos
1980, tal fato fosse uma realidade, e que possivelmente ainda permaneça.
71
Esta técnica é pouco conhecida e por isso temos poucos estudos quanto a real eficácia do mesmo, segundo o
pesquisador Wilkinson e Moore (1990), a eletrólise é o método mais eficaz de depilação podendo-se até chamar
depilação permanente, das áreas do rosto e pescoço. Disponível em:
https://esteticacomesteticista.blogspot.com/2016/09/depilacao-por-eletrolise-depilacao-lase.html. Acesso em 12
de dezembro, 2017.
142
As marcas dessa automutilação podem ter sido substituídas por outras, como as
expressões de cansaço por horas de trabalho à espera de um cliente, pois, como relatado, no
período último etnografado, de 17 de novembro a 17 de fevereiro, pela presença ostensiva da
Força Nacional, ao repetir rondas sistematicamente, os clientes praticamente desapareceram,
certamente com receio da visibilidade.
O mercado de prostituição privilegia as travestis mais jovens, que possuem uma cútis
conservada, o que é um desejo desse universo, pois, apresentando-se como mais jovens, o
faturamento é maior. Esse universo de pessoas atribui aos hormônios um poder rejuvenescedor,
uma capacidade de alisamento da pele. O uso de hidratantes e óleos durante o programa também
foi constatado como forma de atração, principalmente os óleos:
O óleo Seve [um óleo da marca Natura, com custo em catálogo de R$ 74,90;
na internet, pode chegar na faixa de R$50,00 em promoções] deixa a pele
maravilhosa, agora é aquela coisa, eles não gostam. Porque tem cheiro e aí é
bafon quando chega em casa, né? (Informação verbal) 72
É também na pele que podemos perceber uma diferença quando se compara com o
primeiro momento da pesquisa. As travestis possuíam tatuagens, no entanto, em lugares
discretos e menores. Nessa última imersão, as tatuagens continuam com as mesmas temáticas:
pássaros, borboletas, nomes, tribais, entre outras figuras menos presentes. Todavia, os corpos
passaram a possuir uma maior quantidade delas, em tamanho e em lugares mais expostos, no
entanto não podemos afirmar ser unanimidade, e sim em maior frequência. As tatuagens
migraram para as panturrilhas, antebraços, e nas costas ganharam maiores proporções,
principalmente nas mais jovens ou quase exclusivamente nelas. Talvez esse fato sinalize uma
72
Entrevista concedida por Alice, 17 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
143
troca cultural entre o universo das travestis e a tendência urbana de “riscar o corpo”, como tem
sido chamado. As figuras ou representações imagéticas, por sua vez, circundam o que foi
estabelecido como feminino: pássaros com ramo no bico (1 tatuagem), flores (3 tatuagens),
borboletas (2 tatuagens), nomes (2 tatuagens). Salientamos que, no primeiro momento do
trabalho de campo, em 2013, não estava tão atento a esse aspecto. Todavia, continuarei com os
sentidos mais aguçados.
As unhas são pintadas com cores variadas, desde as mais sóbrias até uma coloração de
nome “Vermelho 40 graus”. Aqui notamos uma diminuição de unhas grandes, como ícones de
beleza, para unhas medianas. Em ambos os casos, são muito bem cuidadas. Há unhas com
estrelas, corações, carinhas e até uma combinação psicodélica entre o esmalte e o verniz.
Batons são, sem a menor dúvida, o bem de adorno do corpo mais utilizado, assim como
rímel e blush, os quais, nesse território, não possuem a mesma importância que o batom. As
bases e os corretivos mostram-se sempre presentes em suas casas, fazendo parte do rito de se
preparar para a “batalha” (termo comum usado pelas travestis, ao se referirem ao trabalho de
prostituição). O corretivo tem menor importância do que a base. Assim, por vezes, somente a
base, o batom e o lápis.
A geração das pesquisadas que possuem 30 anos ou mais é oriunda de um grupo social
com menos informação no início dos seus processos de metamorfose, e de quando as
medicações eram menos variadas. Com a presença da internet, mais especificamente, a internet
2.0, gerou-se a possibilidade de criação de redes sociais descentralizadas. Assim, a
transformação do corpo, nos últimos 15 anos, tornou-se um pouco menos difícil, com a entrada
144
dos genéricos, que significa menor custo. Quanto aos hormônios, houve uma melhora dos
processos em virtude da comunicação, alcançando resultados mais satisfatórios. Todavia, com
a perda da jovialidade, requer-se mais cuidado para manter-se sob o padrão de beleza
demandado pelo cliente, ser atraente e competitiva.
Parte dos clientes que frequentam o território aqui vivenciado e estudado mostrou-se
inclinada a preferir as travestis jovens, em uma atitude que podemos considerar que beira, sob
a ótica jurídica, a pedofilia. “Tenho que me cuidar, porque, você bem sabe, quanto mais velha,
mais difícil; tem travesti que diz ter 16, agora, eu não sei, mas ninguém tá nem aí.” (Informação
verbal) 73
A questão que se delineou a partir desses anos de observação diz respeito à mudança
dos corpos, à diminuição da quantidade de silicone (método quase irreversível), e à redução de
medidas dos corpos, como os quadris, glúteos e busto.
73
Entrevista concedida por Bela, 22 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
145
conversa pelo aplicativo Messenger, fui informado de que Bia se encontra novamente em
Arapiraca, onde ficará até junho e, depois, São Paulo, capital, será seu próximo destino.
Portanto, mesmo não analisando o perfil dos usuários dos serviços de prostituição, pois
não é esse o objetivo da presente pesquisa, entendo como válido visibilizá-los, considerando o
que afirma Kulick (pp. 171-173, 2008) sobre os clientes em Salvador: são os mais diversos,
desde idade, poder aquisitivo e desejos, o que se aplica aos clientes no moderno bairro de
Atalaia.
Nesse universo de identidades, é relevante a etnografia realizada por Duque (2011) com
as travestis adolescentes em Campinas/SP, as quais possuem trânsito entre os gêneros, podendo
montar-se e desmontar-se, e têm na prostituição, assim como as de Atalaia/Aracaju, o meio
principal ou único de trabalho. No entanto, esse tipo de construção de identidade não foi
identificado no território de Atalaia, bem como em outros territórios de prostituição, em
Aracaju.
Ao refletir sobre a cultura das travestis, eram esperadas mudanças, pois sabemos que a
cultura não é um elemento estático, e, sim, uma profusão de dinâmicas e movimentos. Novos
atores e novos valores. Assim como o fragmento do poema de Ovídio, Metamorfose, que
intitula o livro de Leite Jr., Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias
“travesti” e “Transxexual no discurso cientifico” (2011).
Mas tem vezes que a sincronia da minha passagem com esse rio soa estranha
demais, me deixa insegura, agride. E tem vezes que, nessa insegurança, surge
alguém que gosta de mim, e de quem gosto, pra perguntar como é que aguento,
como é que eu deixo e não vou lá cuspir na cara infeliz. Como é que eu aguento
é assim, fazendo a pêssega. Porque se eu percebo o que se passa ao redor, a
forma como me olham, o quanto a minha figura não faz sentido, aí é me trancar
no quarto e chorar. Como ontem. (MOIRA, p. 29, 2016)
74
Palavra pertencente ao dialeto Pajubá, que é constituído pela relação entre a língua portuguesa e termos e
expressões das línguas africanas ocidentais, comumente usadas por religiões de matrizes africanas, como o
candomblé. Também usadas pela comunidade LGBTQI+.
147
Em campo, por diversas vezes, pude observar as travestis expondo seus “paus” aos
clientes, os quais, na maioria das vezes, preferem aquelas que possuem pênis considerados
grandes, ou os maiores.
As cores e os desenhos das roupas e sandálias são também muito pessoais, não existindo
um padrão, um universo de cores, imagens ou tecidos. Posso afirmar que nunca encontrei
alguém com fantasias sadomasoquistas ou outro tipo exposto de fetiche. No entanto, estabelecer
um padrão cromático parece-me um equívoco. No máximo, o que há é o uso mais constante de
cores fortes, comumente preto. Seria para se tornar mais visível?
Como pontuado por Benedetti (p. 84 2005), os calçados são produtos de alto custo para
as travestis, pois, comumente, possuem pés de maior numeração, quando comparado às
mulheres, fato que dificulta encontrar variedade no mercado. Trabalham geralmente de cinco a
seis horas em pé, por dia, normalmente sobre plataformas e saltos altos. Associa-se a esses
dados o fato de que os saltos são importantes na afirmação da feminidade, a ponto de Bia
argumentar: “Só repito os saltos porque é o jeito, queria ter um para cada dia na pista”
(Informação verbal).
O uso de chinelos foi observado durante o trabalho, no entanto algumas afirmam que só
calçam chinelos ou sandálias baixas quando estão com os pés e pernas doloridos ou inchados,
devido às doses de hormônios ou outros problemas de saúde. O tênis e outros tipos associados
ao esporte não foram vistos, bem como havia poucos deles nas habitações as quais tive acesso
durante o período do primeiro trabalho de campo, em 2013. Não possuo depoimentos ou outras
informações para saber o porquê. Todavia, a aceitação absoluta do salto dá-me pista de que os
tênis são fortes referências à masculinidade, à virilidade. Assim, entre escolher saltos,
plataformas ou amortecedores, o público pesquisado centrava suas escolhas nas duas primeiras.
A construção dos corpos não se limita ao corpo em si, obviamente. O andar com as
bolsas pequenas, em um lento desfile até o ponto, ou usado como arma para afrontar outra
travesti, brincar ou paquerar homem que tenha despertado desejo, gesticulando-a, batendo com
a mão, gritando “e aê?”, tudo isso faz parte da construção identitária.
149
Quanto ao tamanho das bolsas: “É melhor essas pequenas [apontando para a bolsa que
portava, de couro marrom], de repente essas mariconas não querem parar [o veículo] porque
acha que estou com uma arma aqui dentro.
No entanto, há sempre outras bolsas de tamanhos variados e cores para outras ocasiões,
e para combinar um ou dois calçados. Experienciando essa relação no rito de compra, para cada
bolsa deve haver um ou mais calçados, ou para cada calçado deve haver uma ou mais bolsas.
Essa associação pode ser percebida acompanhando Érica a uma loja feminina localizada no
bairro da Coroa do Meio, próxima à residência dela, no primeiro momento da etnografia, em
2013. Após olhar e experimentar a bolsa, demonstra a todos que adorou, afirmando: “não tenho
um salto que combine.” (Informação verbal). Não comprou.
75
Entrevista concedida por Daniela (Não informou a idade). [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju,
2018.
150
Os aspectos e ritos dos corpos metamórficos descritos até aqui estão culturalmente
imbricados. Não somente porque uma das pesquisadas injeta 300 mililitros de silicone
industrial, o que mudará os decotes e números do sutiã, mas porque muda sua autoimagem, seu
lugar no grupo e o preço do programa, que pode aumentar dependendo do resultado.
A construção do corpo é um ato de distinção no grupo, o que não posso afirmar para os
aracajuanos, porém, para parte dessa população, quanto maior a metamorfose na estética que
as travestis constroem, maiores serão as expressões dos estigmas. Refletindo sobre o conceito
de monstro, de Foucault (2001), essas transformações são entendidas sob o olhar da
monstruosidade. No entanto, elas são apoiadas pelas colegas, amigas e namorados nas
discussões sobre “bombação”, e quanto de polímero deverá injetar, como ficarão, tudo isso,
como afirmado anteriormente, está sempre presente.
Não há uma homogeneidade sobre o corpo perfeito, são ideias de corpos perfeitos, em
que cada qual possui sua relação de verdade sobre a perfeição de si. Há, contudo, elementos
que, logicamente, as constroem como grupo. Referindo-me ao grupo pesquisado e abstraindo a
ordem apresentada, posso supor que: o território, a prostituição, um ideal de beleza centrado no
universo feminino, o desejo de não amputar o pênis e a concentração do capital financeiro
investido na construção do próprio corpo são elementos que as regem.
animais vêem [sic] surgir a multidão de criancinhas seguidas por papais-homens e por mamães-
mulheres”.76 Para Bataille, a metamorfose é uma necessidade humana que chega a ser
confundida com nossas necessidades como animais:
Utilizando Bataille, criamos novas perspectivas sobre a construção dos corpos do grupo
pesquisado ou, ao menos, sentimos sob outras bases, certamente menos rígidas e viscerais, a
metamorfose. Podemos, como a porta que se abre e sem o interesse ou desejo da aprovação do
percebido morto, transformar seu corpo com a “violência necessária”. Dessa forma, distante de
uma “aparência burocrática”, restando a aproximação de um ser animal, uma besta.
76
Disponível em:
<https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/33140404/Poiesis_13_verbete.pdf?AWSAccessKeyId=A
KIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1523580089&Signature=dRrFSZgnDKpA4IL8%2Bc3aCy6tBo0%3D
&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DO_verbete_o_dicionario_e_o_documento_Uma.pdf>. Acesso em: 12
de abril, 2018.
77
Disponível em:
<https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/33140404/Poiesis_13_verbete.pdf?AWSAccessKeyId=A
KIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1523580089&Signature=dRrFSZgnDKpA4IL8%2Bc3aCy6tBo0%3D
&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DO_verbete_o_dicionario_e_o_documento_Uma.pdf>. Acesso em: 12
de abril, 2018.
152
Há uma larga pesquisa sobre prostitutas, não somente no Brasil como em todo o
Ocidente. No entanto, pode-se facilmente mensurar que essas investigações estão focadas no
trabalho, questões de saúde, gênero, segundo pesquisa realizada por Kulick (p. 113, 2008).
Talvez, este fato se justifique pela etnografia de Magnor Ido Müller, intitulada “Lá em casa a
gente conversa!”: conjugalidade e masculinidade dos maridos das travestis, ao coletar a fala
de Caetano, por meio de entrevista, referindo-se à conjugalidade com as travestis, na qual
desvela o universo de dificuldades, também sofridos por eles: ‘Caetano afirma: “coragem
mesmo é poder dizer sim!”. A referência da música se propõe a sinalizar para situações nas
quais “Uns Dizem Sim”, ou seja, para os homens que decidem formar aliança com uma
travesti.’ (MÜLLER, p. 69, 2015)
As travestis que trabalham como profissionais do sexo em Aracaju são vistas como
prostitutas, mesmo no momento em que não estão na batalha, o que poucos estudos
constataram, conforme levantamento realizado por Kulick (2008). Portanto, carregam o duplo
estigma: travestis e prostitutas. O ideal de homem para as travestis reafirma um
corpo/identidade, como na etnografia realizada por Pelúcio (p. 534, 2006). Silvia (Não declarou
a idade) fala sobre o que entende por homens:
Um homem que quiser se virar pra mim... ah, já não é homem. Mulher é essa
coisa delicada. E eu sou a mulher. Uma vez, por exemplo, eu fui assim, passar
a mão na bunda do meu marido, só passar a mão, um carinho. Ele se virou
feito bicho: “tá pensando que eu sou que nem os homens que você pega na
rua, é? Eu sou é homem, não vem com essas coisas pro meu lado não”. Ele
era assim, um homem de verdade, não admitia viadagem.
Ao refletir sobre a fala de Carlinhos, ao prevenir Keila para não se iludir, pois a relação
entre ambos não será para sempre, Keila afirma, conforme Kulick (2008, p. 125):
153
Eu sei que não vai, eu sei que não vai, eu sei que nada é definitivo. Justamente
quando são homens e mulheres, o que nasce um pro outro, o que Deus
determinou feito homens para mulheres, eles se separam mais dia menos dia.
Imagina dois homens com cabeças iguais que pensam diferentes. Eu sei que
não vai durar, claro.
Isa (Não declarou a idade), uma das travestis com que mais tive contato desde 2013, há
mais de um ano estava namorando um rapaz. Resolveram, então, se casar. Seguindo o rito, antes
do noivado já marcado, Isa descobriu que ele havia traído sua confiança e se relacionado
sexualmente com uma mulher: “Essa era minha amiga, vivia em casa. Agora, quando teve a
oportunidade deu o bote. Mas se ela acha que vou terminar, ela tá enganada, não vou desmarcar
meu noivado!” (Informação verbal).
“Não há coisa alguma que persista em todo o universo. Tudo flui e tudo só apresenta
uma imagem passageira” (OVÍDIO, p. 34, 1983). A transitoriedade marca a construção dos
corpos, é parte deles, nômades e também presentes no amor. Embora Isa tenha lutado pela
permanência nesse relacionamento, há um histórico de vários outros vividos por ela, conforme
nos mostra um trecho de Ovídio, “passageiros”.
154
Era uma noite quente em Aracaju, um sábado. Eu, nervoso, pois o sempre inesperado
nos aguarda. Todavia, por conhecer bem o campo, ou ser tomado por essa fé, acreditava que as
mudanças não seriam tão marcantes. Diferente das demais vezes, por sentir-me mais seguro,
uso uma calça jeans, uma camisa preta e uma bota, celular, um bloco e caneta devidamente
guardados. De carro, em cinco minutos chego ao local, ao qual prefiro descer e ir andando.
Mais três minutos, uma rua à direita, estou no território das travestis em Atalaia.
Sou tomado por uma surpresa: não há quase profissionais fazendo pista. Onde antes
havia de dez a quinze travestis, agora enxergava em regiões mais escuras, duas e um grupo de
três. Depois descubro que, nesse grupo, uma era mulher e que sua mercadoria não era o corpo.
Algo havia mudado. Uma travesti, que chamaremos de Boca de Ouro, tentava
convencer-me a fazer um programa, exaltando o quanto era competente no sexo oral. Expliquei
o motivo de estar ali, que se tratava de uma pesquisa. Aos poucos, vamos acertando os passos,
tipo assim: “são dois pra lá, dois pra cá”78.
Passa a primeira viatura da Força Nacional, e Andreia, 19 anos, olha furiosa e diz: “Aí,
como podemos tá na batalha, toda hora passa um camburão desse, as bichas tão indo embora,
mas vamos ver quem tem mais paciência. Eu pelo menos não gasto gasolina” (Informação
verbal).
78
Referência à letra da música “Dois pra lá, dois pra cá”, de Aldir Blanc.
155
No decorrer dos dias, fui penetrando e conhecendo novas pessoas, com um interesse em
particular: qual a relação que esse universo pesquisado estabelece com o Natal? Para uma
grande parte de excluídos e/ou estigmatizados pelos familiares é uma data de trabalho com
maior movimento depois da zero hora. No entanto, é perceptível uma melancolia nas narrativas.
Para outro grupo, aproveita-se a data para viajar, retornando após o carnaval ou após o ano-
novo. Uma afirmou: “Vou para casa de minha mãe. Ela me aceita como eu sou” (Informação
verbal).
À medida que penetrava no território, as poucas travestis que conheci eram novas, com
exceção de duas ou três, o que me fez lembrar de Orlando (WOOLF, 2006) e seu nomadismo.
Em certo momento, fui tomado por uma angústia, ao observar aquele espaço que um dia se
expandia e agora se retraía.
seus próprios clientes, e vivia dessa forma. Certa madrugada, essa travesti, que morava em um
terreno abandonado em uma casa improvisada, teve sua residência incendiada. Não se sabe
quem foi, se os moradores, a polícia, algum cliente ou as próprias travestis. Sabe-se que ela não
morreu queimada, acordou, saiu e sumiu no mundo. Quando questionei se a polícia havia sido
chamada, ela olhou e exclamou: “pra quê, eles acham é bom, querem que a gente morra mesmo
e ela também mereceu” (Informação verbal). Essa era a segunda narrativa do caso. Acredito
que tenha sido algo marcante para as demais, também.
A tentativa cruel de homicídio como punição, realizado por alguém ou grupo que não
se revela ou não se sabe porquê, explicita a relação com o Estado ausente nesse grupo, e quando
presente, opressor. Efetivamente, não há nada novo. Esse modelo da retirada do Poder Público
e, por conseguinte, a criação de certos códigos de conduta, em que impera a lei do mais forte,
repetem-se entre as favelas, como bem contextualizado por Teresa Pires do Rio Caldeira (2000).
Podemos constatar o quanto cristalizada está a ausência – ou uma presença higienista – do
Estado, por meio da fala de Anna, ao atribuir desejo da morte ou desagregação do grupo por
parte das forças repressoras da polícia.
Aracaju não possui a tradição do carnaval. Desse modo, as poucas travestis que se
encontravam no território da prostituição dividiam-se entre dias de trabalho e dias de folia. A
festa é pequena e concentra-se em uma região mais central, Rua Barão de Maruim, estendendo-
se em direção ao Rio Sergipe, na edição de 2018. Nas edições anteriores, ocorria do Bairro
Suíça ao Bairro Cirurgia. “Ninguém fica aqui, fazendo ponto. Todo mundo vai tentar alguma coisa
na festa também ou viaja para Salvador, né? (Informação verbal) 79
A região de prostituição, em 2017, tornou-se mais perigosa, por haver menos pessoas e
pela presença de veículos ocupados por homens, aparentando alcoolizados, que gritavam
ofensas. No entanto, com a dispersão da Força Nacional e o contingente da Policia Militar para
segurança da festa e entorno, com blitz, o território criou condições mais apropriadas aos
clientes, uma vez que o carnaval é uma permissividade coletiva.
Hoje, uma hora ou outra passa uns engraçadinhos gritando e teve um carro
que parou e mandou que mostrasse as minhas partes íntimas, eu não sou daqui,
estou só no carnaval, fiquei nervosa e a rua quase vazia. (Informação verbal)80
79
Entrevista concedida por Rita, 25 anos. [Fevereiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
80
Ibidem.
157
Tenho que me “bombar” e ir para Madrid. Lá, sim, a gente ganha dinheiro!
Conheço travestis daqui ou do centro que estão bem, tem uma ou outra que é
deportada. Acho que não tiveram sorte ou não souberam fazer direito.
(Informação verbal) 82
Quanto aos cinco destinos das travestis apontados como os principais, no continente
europeu, não se demonstrou uma consciência das várias outras culturas e países, ora porque é
demasiadamente difícil sua permanência, ora porque a transmissão de informação passa pela
81
Entrevista concedida por Andreia, 24 anos. [Fevereiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
82
Entrevista concedida por Cintia, 21 anos. [Janeiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
158
oralidade e redes sociais, suponho. Investiguei três destes: Lisboa, por três vezes; Madrid, por
uma vez; e Paris, por uma vez. Sempre com tempo de permanência variado, dedicado a fazer
contato com as travestis brasileiras.
Por encontrar-me residindo na cidade de Porto, por oportunidade, incluí essa cidade na
pesquisa. Pelo fato de as travestis, em sua maioria, serem nômades, buscamos identificar nas
travestis de Porto, Lisboa, Madrid e Paris suas impressões, sentimentos, sob a ótica das
entrevistadas, considerando as experiências de viver e trabalhar no Brasil e na Europa, com um
único propósito metodológico, responder à questão: Por que parte das travestis, que trabalham
como prostitutas no bairro de Atalaia em Aracaju, Sergipe, nutre um sentimento de esperança
pela Europa como o destino de possibilidades? Talvez responder essa questão possa parecer
simples. Todavia, mostrou-se enriquecedora, a vivência, e novas questões foram construídas.
Afinal, esse foi um aspecto presente durante os seis anos de vivência com as travestis, com
intervalos de tempo, em razão da distância entre São Paulo e Aracaju.
Eu ainda vou para Europa. Lá dá para ganhar mais e dizem que eles adoram a
gente. Aqui, só querem pagar uma mixaria, além do perigo. O problema é ter
como ir agora, lá faço minha vida e até caso, se brincar [risos]. (Informação
verbal) 83
A condição das travestis é essa duplicidade, que encontra inúmeras barreiras para
romper com esse lugar de não pertencimento, como aquelas que saem de uma realidade e
aportam em outras culturas, na sua maioria, desprovida de informação e dinheiro como
83
Entrevista concedida por Andreia, 24 anos. [Fevereiro, 2018]. Entrevistador: João Dantas. Aracaju, 2018.
159
Flávia Teixeira (2008), em seu estudo, publicado com o título L’Italia dei Divieti: entre
o sonho de ser européia e o babado da prostituição, centra-se em duas questões que estão no
cerne da prostituição das travestis brasileiras no mercado internacional, no caso, o europeu. Um
deles, a relação antagônica entre as ONG’s que atuam, em tese, para a proteção e direito das
travestis exploradas; e, do outro lado, o não reconhecimento dessas instituições por parte deste
universo de trabalhadoras. Reflito que, ao aceitarem a condição institucionalizada das ONG’s
– traficadas, trabalhadoras em condição de escravidão, exploradas, prostitutas –, elas não são
envolvidas numa rede de proteção, mas, são estigmatizadas. Um caminho a ser pensado é que,
ao negar essas estruturas que as marcam, podem criar outras linhas de fuga (DELEUZE;
GUATTARI, p. 32, 1995).
84
De origem francesa, Trottoir significa o caminhar que as prostitutas fazem quando ficam à espera de seus
clientes.
160
Como argumenta Patrício (p. 120, 2008), as travestis brasileiras, desde muito cedo,
ouvem informações sobre a Europa, que passa a habitar seus imaginários, quão sedutor é esse
continente. Suas grifes de alta-costura, os homens belos, a liberdade e o resultado lucrativo de
seu trabalho. Assim, mesmo não estando de acordo com o Tratado de Palermo sobre tráfico de
humanos, a atividade dos/das chulos/cafetões/cafetinas é ilegal, sob a perspectiva de outras
legislações nos três países visitados: Espanha, Portugal e França.
85
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>. Acesso em
23 de abril, 2018.
161
galeria, localizada na zona turística, na Rua da Madeira. Lá conheci duas informantes brasileiras
e uma peruana.
Olha, aqui (Porto) é igual, mas não pior que no Brasil, o povo é conservador
e só quer as novatas, ou assim, como nós, toda no modelo. Graças a Deus, aqui
não é tão violento. Agora, para ganhar mais, só em Lisboa e não sei não, viu.
Porque aqui a vida é mais barata e a gente se acostuma. (Informação verbal)
87
86
Entrevista concedida por Débora, 32 anos. [Maio, 2016]. Entrevistador: João Dantas. Porto/Portugal, 2016.
87
Ibidem.
88
Entrevista concedida por Débora, 32 anos. [Maio, 2016]. Entrevistador: João Dantas. Porto/Portugal, 2016.
162
Eu me aproximo mais das outras duas e explico a falta de desejo de Débora de voltar, e
as duas sinalizam com a mão, um pouco embriagadas, negando a possibilidade de retornar.
Então, pergunto onde são os sítios de prostituição das travestis no Porto: “Nas
redondezas e na Antero de Quental ferve de travesti e trans. No baixo Porto também”
(Informação verbal). Não me lembro qual das brasileiras respondeu, ao fazer as anotações.
Após algumas visitas, conheço outra paulista, Rose, 28 anos, há 8 anos na Europa. Não
morava no Porto, estava passando uma temporada, vindo de Lisboa. “Aqui, temos que cobrar
um pouco menos. Mas não falta trabalho. Um boquete no carro mesmo ou um programa
completo nas pensões.” (Informação verbal).
Começo a falar do Brasil e aos poucos preparo terreno para questionar sobre sua vida
na Europa. Rose fala:
Eu gosto muito de viver assim: hoje aqui, amanhã ali. Pena que só posso viajar
de ônibus, por causa dos documentos [visto]. Mas gosto muito. Acho que sou
tratada melhor aqui, mesmo com todo o preconceito, porque há e muito.
Mando dinheiro para o Brasil, ajudo minha família e quero voltar, agora, não
com uma mão na frente e outra atrás, quero voltar bem, melhor que saí.
(Informação verbal)
Então, despedimo-nos depois de uma rápida conversa, e passei a especular sobre as lutas
pelos pontos, assim como acontece no Brasil. Os espaços pareceram-me loteados, como se
89
Entrevista concedida por Rose, 28 anos. [Maio, 2016]. Entrevistador: João Dantas. Porto/Portugal, 2016.
163
fossem obrigadas a pagar para alguém. No entanto, devido à instabilidade do encontro, entendi
que deveria partir.
O Bar Mirandas, localizado na Rua Antero de Quental, quase esquina com a Rua da
Constituição, tornou-se um ponto não somente de prostituição das travestis de várias
nacionalidades, como também um ponto de descanso e de entretenimento. Trata-se de um
espaço com uma aparência comum e serviços um pouco mais baratos. Contudo, o grande valor
é por ser dentro do território de prostituição do Porto.
Para algumas dessas questões não obtive respostas. Todavia, conheci Brenda, 25 anos,
a mais jovem travesti brasileira no Porto a que tive acesso. Ela não perdia oportunidade de se
referir às outras travestis como “as senhoras”, desdenhando-as. Essa foi a principal informante;
aproximamo-nos e nos encontramos em outros espaços, como na Rua Madeira, durante o dia,
uma das ruas na localidade da Estação São Bento.
164
Brenda não apresentava apreensão ou desconforto por andarmos pela cidade. Quando
falei que na cidade de Aracaju as travestis são quase confinadas à noite e a determinadas regiões,
ela, altivamente, falou:
Brenda espera retornar ao Brasil somente quando tiver dinheiro suficiente para viver
bem. Essa era a segunda informante com o mesmo objetivo. Órfã de mãe e distante dos irmãos,
dois no total, e pai que, segundo ela, nunca a aceitou, saiu de casa aos 14 anos, da cidade mineira
de Uberaba e foi para Belo Horizonte, depois São Paulo, onde juntou dinheiro e conseguiu
entrar em Portugal, vestida de homem. Para isso, suspendeu os hormônios e cortou o cabelo.
Embarcou em um vôo com destino a Lisboa.
Brenda, como as demais travestis com que tive contato em Porto, foi receptiva,
excetuando poucas tentativas frustradas e algumas vezes em que, no momento na zona de
prostituição, percebi no comportamento dela, nas suas falas e observação dos espaços, marcas
muito profundas decorrentes da estigmatização, assim como ocorre no território de Atalaia, em
Aracaju. Refletindo sobre essa percepção, podem-se identificar três formas de estigmas
atribuídos às travestis, conforme descritas por Erving Goffman (pp. 119-134, 2008): as
deformações físicas (a condição de travestis); as características e alguns desvios de
comportamento (a condição do trabalho como prostitutas, a questão da ilegalidade e atribuição
da orientação sexual); e estigmas tribais (o fato de serem brasileiras).
165
Lisboa:
Alguém diz com lentidão:
“Lisboa, sabes…”
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus e degraus até ao rio. Eu sei. E tu, sabias?
Mesmo com uma população menor do que a de Aracaju, com aproximadamente 547.733
habitantes, Lisboa possui um ambiente cosmopolita e uma diversidade de imigrantes
considerável, dos quais 20% são brasileiros. Comparando-se com o Norte, região onde se
localiza a cidade do Porto, Lisboa apresenta menos conservadorismo e maior abertura a
migrantes. Esse aspecto pode ser percebido pela menor resistência aos estrangeiros, em razão
da diversidade populacional.
Verdadeiramente, não passei longos períodos, realizei apenas três viagens de Porto a
Lisboa. Na primeira, cheguei em uma quinta-feira e retornei na quarta-feira seguinte, no mês
de novembro de 2017. Seguidamente, realizei mais duas viagens, quatro dias na segunda e dez
dias na terceira. O objetivo era continuar a busca para entender por que as travestis do bairro de
Atalaia possuem, em parte, o desejo de ir à Europa ou ter nesse território um horizonte de
sonhos e afetos.
Rita: Aqui tem seus perigos, por isso ano a ano você percebe uma diminuição
das trans trabalhando. Muitas só querem anunciar no jornal e site. Porque, se
a polícia pegar, ou leva todo seu dinheiro, como no Brasil, ou lhe deporta.
Agora, quem trabalha com proteção tá mais protegido.
Eu: Como, com proteção?
Rita: Hum, você sabe, rapaz, como é esse mundo. Agora vou trabalhar, já falei
demais. Beijos.
Eu: Beijos, esse é meu telefone. (Informação verbal)
Ela pegou o papel, dobrou e colocou na bolsa, porém, não fez contato. Nessa primeira
noite, depois da conversa com Rita, resolvi que apenas observaria, com a finalidade de entender
melhor os perigos e as características do território, pois estava claro que não era como na cidade
de Porto.
Então, cheguei no fim da tarde, no dia seguinte, e contatei uma travesti portuguesa.
Nesse momento, houve um grande conflito quanto à nomenclatura. Afinal, a definição para
trans circunda a órbita da sexualidade (BENTO, p. 20, 2008). No entanto, Lena, 21 anos,
nascida em Lisboa, não demonstrou, durante os nossos encontros (dois no total), negação ao
pênis.
A noite foi chegando e com ela mais travestis. Havia travestis produzidas, outras nem
tanto. Contudo, algo chamava atenção: poucas passavam sozinhas. Estavam acompanhadas de
outras travestis ou com pessoas que deduzo serem cis-homens. Eu observava de um bar
chamado “O Banquete”, onde, no primeiro andar, havia uma placa “cabeleireiros”, situado em
uma esquina da Rua Conde Redondo com a Rua Gonçalves Crespo, 33C.
Logicamente que, ao usar esses critérios, fiz uma seleção entre as brasileiras, porém era
necessário criar vínculos com alguém.
Fiz algumas abordagens, sem aceitação. Essa não aceitação me apresentou duas
possibilidades: a perda de tempo ou o medo. Não possuía muitas informações sobre os riscos,
mas algumas fumavam um mesclado de maconha, ou haxixe, ou uma mistura dos dois, pelo
cheiro que pairava no ar. Após a abordagem, a travesti brasileira (não se identificou) ofereceu-
me MD para comprar (o principal princípio ativo do ecstasy) e cocaína.
Parei em outro bar, avaliei os riscos e já passava das 2 horas da manhã. Resolvi sair do
território e retornar depois. Dedicaria os outros dias que permaneceria em Lisboa a observações,
estudar o mapa da região e procurar matérias nos jornais sobre o Conde Redondo e seu entorno.
Assim, munido de informações, poderia minimizar os riscos.
Na segunda visita, descobri que a área do Conde Redondo abriga sex shops, muitas
prostitutas mulheres e trans, além de travestis. A área em questão também é conhecida pela
comercialização de substâncias ilícitas, desde maconha a drogas sintéticas e alcaloides, como
cocaína, crack e heroína. Mesmo não se aproximando dos riscos, como em Aracaju, deveria
estar imerso e não aparentar ser um cliente das travestis, ou consumidor de sex shop, ou, ainda,
cliente de algum traficante.
Então, começamos a conversar. Paula que escolheu sair de casa, pois a família aceitava
sua orientação sexual. No entanto, ela queria ser travesti. “Paula: Hoje o movimento tá bom.
Eu vou trabalhar até fazer mais uns quatro programas, depois podemos tomar algum drink ou
cerveja. Eu: Legal!” (Informação verbal)
Então, ela indicou um bar nas proximidades e eu a aguardei. Depois de três horas,
acredito, ela chegou eufórica: “Eu não disse que vinha? Eu: Eu sabia que você viria, sim.”
(Informação verbal). Convidei para sentar e aos poucos pude saber como funcionam a rua, os
melhores pontos, as transversais, a relação com os hotéis.
Paula: Aqui tudo tem um dono, a rua não é pública não, viu. Tem o dono dos
pontos, que você paga por dia ou por semana, um dealer, vendedor de
substâncias ilícitas, e os hotéis que vamos, porque não precisa do papel
[passaporte].
Eu: Acho que seu nariz tá um pouco sujo! Pode ser a maquiagem.
Paula: [risos... pegou delicadamente um guardanapo e limpou] E agora?
Eu: Tá bom. (Informação verbal)
Rimos juntos e ali estabelecemos uma cumplicidade. Ela falou da noite, dos homens
que só querem ser passivos, da alegria quando encontra um que a trata como mulher – narrativa
comum. Afirmou também que eu iria adorar conhecer as travestis em Milão. Então perguntei:
Assim foi nosso primeiro encontro. Marcamos de nos rever na próxima viagem e
conhecer duas colegas que moram com ela, a um custo de 40 euros por dia, um quarto para
cada. “É caro a moradia, porque tem que ser no lugar certo. A gente já vem com tudo certo,
porque para ser deportada é fácil.”
169
Fiz a terceira incursão pelo território do Conde Redondo, entre pequenas lojas de
proprietários orientais, sex shop, bares, traficantes, trans, travestis, prostitutas, quando me veio
o sentimento de que tudo ali estava à venda. Tudo era uma espécie de produto. A construção
dos estigmas estava presente. No entanto, não como presenciei em Atalaia, havia uma
dubiedade. Nunca a presenciei violência física, pelo menos não era a predominante. Ela dividia
espaço com a vigilância da ilegalidade, os olhares recriminatórios e outros tipos de violência.
Paula havia combinado que apresentaria outras travestis brasileiras. Mais precisamente
duas, com as quais dividia moradia. Eu nutria a esperança de conhecer a casa delas. No entanto,
já estava há seis dias e não a encontrava. Claramente, as outras travestis não informariam sobre
ela, mesmo que a conhecessem.
Resolvo então estender minha permanência e, no oitavo dia, vejo-a no ponto em que a
encontrei pela primeira vez. Estava lá, no ponto em que nos conhecemos, vestindo uma calça
legging, um sapato plataforma baixo e brilhoso, também preto, com uma blusa de manga curta,
de gola canoa, que caía sobre os ombros, projetando os seios.
Paula deve ter me visto antes. No entanto, fui eu que estabeleci contato, e ela, alegre e
altiva, deu-me um afetuoso abraço, beijos, e, rindo, disse:
90
Entrevista concedida por Paula, 22 anos. [Novembro, 2017]. Entrevistador: João Dantas. Lisboa/Portugal, 2017.
170
Depois nos despedimos e segui o caminho sugerido por ela. Após perdê-la de vista, achei
melhor pegar um transporte, pois sabia que adentraria em outras ruas e “era uma noite
apressada/ depois de um dia tão lento [...] era afinal quase nada/ e tudo parecia imenso!”91. Para
Paula, era uma caminhada, somente. No entanto, eu sabia que era um estranho entre dildos,
peitos e “paus” expostos, mesmo que discretamente.
O local era um bar frequentado pelo público LGBT+, e realmente ficaria aberto até às 3
horas da manhã. Música alta, casa quase cheia e um sotaque agradável, um lugar aprazível.
Quando Paula chegou, já era quase 1 hora da manhã. Pediu uma dose de Baileys, um tipo de
licor de whisky islandês, que eu havia conhecido há pouco tempo e tinha adorado. Então a
acompanhei. Depois da terceira dose, Paula começou a falar sobre o que realmente tinha
acontecido:
Então, após várias narrativas e lamentações sobre a condição e dores, ela disse: “Olha,
vamos beber, porque não é todos os dias que posso. Tenho que trabalhar, beber é caro, droga é
caro, hormônio é o mais barato. A vida de travesti é assim.” (Informação verbal). Fizemos um
brinde e a noite seguiu. Quando estávamos andando de volta ela me disse: “Mudei de casa, não
estou mais com aquelas travestis. Mas venha amanhã que te apresento uma amiga.” (Informação
verbal).
Retornei no dia seguinte, apreensivo, afinal já estava há nove dias e era a terceira
viagem a Lisboa, mesmo sabendo que era um tempo restrito para uma etnografia. Todavia,
considerando a subjetividade do problema que buscava responder, era um tempo razoável, sob
a perspectiva da Escola de Chicago, a qual discutiu e relativizou o tempo de permanência do
pesquisador em campo (ROCHA, p. 39, 2006).
91
Poema: Noite Apressada; David Mourão-Ferreira, in "À Guitarra e à Viola".
171
valioso para refletir e achar respostas para a questão da etnografia: Por que a Europa, das
travestis de Atalaia, é um território desejoso? Sobre essa reflexão do tempo, assim diz Bachelard
(pp. 48-49, 1988):
Cheguei cedo nesse penúltimo dia. Já havia abortado a ideia de conhecer a casa de Paula
e resolvi concentrar-me em outras relações com as travestis brasileiras. Então, conheço Paloma,
com idade maior aparente, até o momento. Imediatamente, após saber que estava há mais de
uma década na Europa e que já havia trabalhado com prostituição em várias cidades brasileiras,
senti que poderia obter algumas respostas. Instintivamente, ofereci um cigarro, expliquei o meu
trabalho, perguntei se ela poderia contribuir. Como a resposta foi positiva, sabia que deveria
ser objetivo e não indutivo, tarefa difícil.
Paloma foi um achado intuitivo, por assim dizer, apesar da idade, que não achei
oportuno perguntar. Afinal, não quis dar informações sobre a cidade ou Estado brasileiro que
vivera ou nascera. Era elegante e ao falar usava um espelho e avaliava sua face. Com uma
estatura alta e um salto não tão fino, segurava uma bolsa de tamanho médio, que colocava na
frente do pênis e retirava quando passava um carro em baixa velocidade, como quem mostra o
172
tamanho dos seus dotes. Entendi que a disponibilidade de Paloma também atrapalhava seu
trabalho. Então dei um abraço, dois beijos e disse: “Um não, dois, como na Bahia”. Ofereci um
cigarro, ela não aceitou, porém agradeceu e continuei tomado de gratidão, contentamento e
admiração por aquela travesti, desejando uma jornada de êxitos.
Paula não estava, mais uma vez, no seu lugar de sempre. Imaginei que estivesse em um
programa. Resolvi aguardá-la. Depois de alguns minutos parado, percebo que estava sendo
visto como um trabalhador do sexo. Lembrei que Paula havia dito: “[...] aqui tudo tem dono
[...]”, referindo-se aos pontos de prostituição. Me senti incomodado pela diminuição da
velocidade dos carros, que me observavam como um produto, mas achei até enriquecedor.
Imagino que sejam esses os olhares para as travestis. Entretanto, se há dono nos territórios de
prostituição, a condição em que me havia colocado representava riscos. Assim, resolvi andar e
retornar. Mais uma vez, não a encontro. Perguntar por ela seria em vão. Assim, depois de mais
de uma hora, resolvo ir. Não há mais tempo e estou convencido de que ela não veio trabalhar.
Afinal, no dia seguinte, devo chegar cedo na Estação Oriental. No entanto, gostaria de me
despedir de Paula, com toda a sua altivez.
Foi em Madrid que encontrei o maior universo de prostituição em uma cidade, desde a
região do Real Jardin Botánico, de Madrid, parque Del Retiro e outras áreas verdes nas
proximidades de Calle Gran Vía. Durante o dia havia explicitamente pessoas oferecendo seus
92
Referência a mitologia grega.
173
serviços sexuais. Esses espaços verdes estão localizados nas proximidades do interessante
Museu Nacional de Arte Reina Sofia, no centro da cidade. Destoava-se da prostituição de
Portugal, em que as práticas, majoritariamente, ocorriam discretas, às escuras.
Havia reservado uma semana, e estava ciente, depois da experiência em Lisboa, de que
o tempo seria exíguo. Assim, desde o primeiro momento, orientei-me pelos espaços de
prostituição das travestis em Madrid, realizei visitas e fiz alguns contatos para interagir e
coexistir. Todavia, a complexidade dos cenários, a dificuldade em decodificar as expressões e
gírias não permitiram que eu pudesse fazer análises; elas seriam preconcebidas e/ou
estereotipadas. Apesar de possuir o domínio da língua espanhola, em Madrid há outras
expressões, gestuais e padrões de corpos e beleza, mesmo que sutis. Como em qualquer cidade
pesquisada, há mudanças. Alguns momentos suaves, outros agudos.
Ao longo de Calle Gran Vía, avenida larga, com lojas caras e movimentadas de Madrid,
há ruas com casas noturnas e travestis brasileiras nas esquinas. No entanto, há um universo
multicultural, em que se encontram pessoas de várias nacionalidades. Travestis de países
colonizados pela Espanha, a exemplo de Argentina, Peru, Equador. Há também as travestis
africanas. Era meu primeiro contato com esse universo, e definir como africanas é algo
genérico, tendo em vista a dimensão do continente. Entretanto, não adentrei nas origens, pois
não era esse o objetivo. Em campo, temos que fazer escolhas e estar conscientes de que algumas
possibilidades se perderão.
174
Uma jovem cis-mulher, em inglês: “100 euros por uma hora”. Como no Brasil, as
prostitutas evitam beijar seus clientes. Então, sou tomado pela curiosidade. Paro e pergunto:
“Você beija?” Rapidamente, como quem se dá conta da grande oferta de corpos. Ela responde:
“Sim, eu posso beijar”. Entendo que o uso do verbo “posso” implica mais dinheiro. Agradeço
e explico o que estou fazendo no seu espaço de trabalho.
O contato foi áspero. Imediatamente, também, fui reconhecido como brasileiro, acredito
que como um possível cliente a recusar a proposta de escolher uma ou as duas por 50 euros
meia hora, ou 100 euros ambas, além de que deveria arcar com os custos do hotel. Passei a ser
um empecilho.
175
Realmente, eu era naquele momento uma “persona non grata”. Elas estavam
trabalhando ou a caminho do local de trabalho. Então, outra travesti agressivamente falou:
Travesti 2: Você não quer saber? Então pague! Aqui é assim, a gente ganha
por tempo e sem fotos.
Eu: Acho justo! O que você quer ou quanto?
Travesti 2: O valor de um programa que faria com você.
Eu: Tudo bem! (Informação verbal)
Falei com segurança e tentando ser educado. Em seguida, o garçom trouxe duas doses
de bebidas. Ela escolheu uma dose de licor, desconhecido para meus restritos conhecimentos,
e eu bebi uma taça de vinho. Estava sentado com alguém agressivo, objetivo e, por isso, eu
deveria estabelecer uma relação segura, pois, do contrário, o que poderia acontecer ao sairmos
dali? A amiga dela permaneceu. Eu sabia que o maior perigo ocorre quando não tenho dados
sobre o local. Na rua, em Madrid, as informações devem ter passado por mim, como ondas,
imperceptíveis. Tentava ser rápido na observação, decodificar o corpo e a forma de falar.
Todavia, somente o tempo poderia me ensinar sobre seus símbolos e códigos.
Travesti 1: Então?
Eu: Aí seu dinheiro!
Travesti1: Nossa, eu nem vi.
Eu: [tentando quebrar a tensão] E se fosse uma cobra?
Travesti: [risos, seguidamente bebeu] (Informação verbal)
Ela havia escolhido sentar em uma posição em que tivesse visão de todo o entorno do
bar, eu de frente pra ela, e no fundo o cenário era a rua.
Eu: Acho que falei, mas você deve ter esquecido: meu nome é João, sou da
Bahia, agora tô em Porto, mas moro em São Paulo, na capital. Você é de onde?
Travesti 1: De São Paulo também. (Informação verbal)
176
Senti que não era verdade, porém, nunca saberei. Ela era rápida e não se entregaria. Não
havia construído uma relação de cumplicidade. Notei que manipulava o que falava com muita
desenvoltura. Mesmo na sentença que pergunto de onde ela é, antecedia com dados meus:
nome, minha origem e onde estou morando no momento. No entanto, como por intuição, ela
havia decodificado, colocava-se como uma difícil informante. Como entender esse “lugar” se
ela se mostra resistente?
Continuamos a conversar, sugeri mais uma dose. Então, ela perguntou se eu queria algo
mais, pois já estávamos quase meia hora juntos. Respondi que acompanharia até aonde a
encontrei. Ao chegar ao ponto de prostituição, percebi que estava vazio, e a amiga com quem
tentaria estabelecer contato não estava, possivelmente tenha encontrado um cliente. Por fim,
dei um beijo e saí sem saber o nome, e ciente de que possuía uma desenvoltura muito racional
e vivenciava naquele instante, sem fantasias, o mundo da prostituição.
Fui sucinto e objetivo, não indutivo, não ocupei muito tempo, ouvi, construí uma relação
de empatia, falei olhando para todas, expliquei o meu objetivo ao me aproximar da mesa.
Assim, ofereci o café, algumas agradeceram e eu mencionei sobre meu trabalho e perguntei se
poderiam me ajudar. Elas riram e em um jogo de sedução e aceitação conversamos sobre o
Brasil, o carnaval, os homens brasileiros, o preço dos programas. Mesmo com o grande universo
de informação coletada, seria um desvio. Todavia, mostraram certo conflito com as travestis
brasileiras. A seguir, transcrevo o trecho que trata da aceitação das travestis brasileiras em
Madrid. Afinal, a relação com outros grupos de travestis influencia a existência ou a
sobrevivência de qualquer coletividade que vive sob essas condições.
Assim: Gabi (Não revelou a idade); Kari, 22 anos; Tiffani, 23 anos; Quendra, 25 anos,
Ericka, 21 anos (ao escrever não coloquei a consoante “K”, e Erika exclamou: “Tú no sabes
escribir. Tiene un ‘K’!”
Gabi: As trans brasileiras são muito agressivas e não têm problema em mostrar
as partes íntimas na rua. Você sabe porque você é brasileiro, que elas fazem
sexo em qualquer lugar, até botar para chupar pelo vidro. Acho que não
precisa isso. A polícia sabe que quando é problema com trans são as
brasileiras. (Informação verbal)
Várias reflexões sobre essa fala surgiram: A realidade das travestis do Brasil é
construída sobre uma cultura de violência. Possuímos grandes metrópoles, grandes cidades,
onde há espaços para diversos perfis de comportamento e segmentação de mercado. As
travestis, em São Paulo, que trabalham na proximidade do Jóquei Clube de São Paulo, na cidade
de São Paulo, no Bairro do Butantã, têm trajes diferentes das que trabalham na região dos motéis
na Barra Funda. Algumas expõem seus seios e “paus”. Quando fui a essa região, na primeira
vez, lembrei-me do título do filme, inspirado na peça do dramaturgo Nelson Rodrigues, com a
atriz Darlene Glória, “Toda nudez será castigada”.
178
No Brasil, somente o ato de matar mulheres, como sujeitos passivos especiais do crime,
é tipificado como feminicídio pelo art. 1.º da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 199093, para incluir
o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Portanto, não há legislação específica para o
universo de pessoas LGBTQI+. A violência praticada contra o grupo LGBTQI+ coloca-nos em
primeira posição, considerando o número de assassinatos das pessoas desse universo, 44% de
trans e travestis. Suponho que esses dados não representam a realidade. Afinal, o corpo pertence
ao Estado, e a memória de um nome que não consta no registro de nascimento é esquecido,
prevalecendo na documentação da falecida o nome masculino. Dessa forma, o trabalho como o
do Grupo Gay da Bahia, o mais antigo Grupo Gay do Brasil, realizou essa contagem de
mortandade no País.
Outras variáveis devem implicar a fala construída por Gabi, como o mercado do sexo.
Afinal, há um estereótipo sobre as brasileiras, que vincula beleza e um estereótipo sensual
(FREYER, p. 100, 2009), fato que afeta não somente as travestis. Assim, especulo, há nesse
discurso uma luta por espaço, mercado e identidades. Como havia mencionado Paula: “aqui
tudo tem dono”.
Previamente, resolvi conhecer uma casa noturna onde havia shows de transformistas e
travestis. “El Black and White” é conhecida por seus públicos localizados no Calle de La
Libertad 34, Chueca.
Apesar de estabelecer contato com as travestis brasileiras, duas amigas, o ambiente não
propiciou condições de aprofundamento na conversa. Poderia estabelecer outro momento. No
entanto, era véspera da minha viagem a Paris. Corriqueiramente, falei: “Eu: Vou para o Brasil
em janeiro, vamos? (A resposta mesmo não possuindo algo que pudesse construir uma
afirmação, sinaliza satisfação de estar em Madrid). Travesti: Nem pensar!” (Informação verbal).
93
Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/topicos/11270190/artigo-1-da-lei-n-8072-de-25-de-julho-de-
1990>. Acesso em 23 de abril, 2018.
179
5.12 Paris
Era 16 de dezembro, luzes, veadinhos e todos esses elementos comuns no Natal, nas
vitrines das lojas. Após pesquisar sobre o mundo da prostituição de travestis, alguns fatos
chamaram-me a atenção: a denúncia sobre o trabalho escravo de travestis, a grande repercussão
do fato envolvendo uma empresa de transportes aéreos de mulheres e travestis para a França.
Após andar por uma longa avenida repleta de luzes neon, algumas desenhando corpos
femininos, passando pelo museu do sexo, que, por acaso, se encontrava em reforma, próximo
ao Moulin Rouge, o Folies Pigalle foi minha primeira investida. Tal escolha se deu pela
representação de um corpo feminino em neon, usado como marca e informações de que
encontraria travestis, inclusive brasileiras.
Havia grande diversidade de pessoas e etnias (nada novo para uma cidade multicultural);
tento falar com uma travesti. Nada! Sem sucesso, ela não falava inglês, espanhol ou português,
94
Disponível em: <https://www.tudosobreparis.com/bois-boulogne>. Acesso em 23 de abril, 2018.
180
ou simplesmente não desejava. Mais uma vez, nunca saberei. Retorno para a mesa, e depois de
observar os corpos, as roupas e seus gestuais, vejo que a prostituição não estaria ali explícita;
uma ou outra travesti falava com um homem e saíam. Sento-me, frustrado e cansado, além de
todo o investimento financeiro realizado. Então, decido que não estou em um bom dia e retorno
ao Hostel de nome Peace and Love, algo bem decadente, com instalações precárias, porém
próximo ao que demandava: linha de metrô e das regiões que havia pesquisado, bem como das
informações obtidas pelas as informantes.
Retorno a Pigalle e, com um cartógrafo, entro nas ruas, chego à praça, bares, esquinas
e realmente a prostituição das travestis ali não ocorre na rua. Nesse momento, sou interpelado
por um homem falando em francês, que me entrega uma porção de cartas, como um baralho.
São fotos de mulheres nuas e em posições sexuais, eram muitas. Todavia, não havia travestis.
Então gesticulo, tentando explicar que queria seios e pau. Irritado, toma as cartas das minhas
mãos e sai. Pela tensão da cena, ficou evidente que possuía consciência da ilicitude do que
estava fazendo.
O bar/boate da noite anterior estava com pouco movimento; aguardei na porta, mas sem
sucesso. Então, resolvi entrar. Lembrei-me do McDonald na Gran Vía, em Madrid, então fiquei
próximo ao local onde havia algumas travestis. Finalmente, conheço uma travesti brasileira.
Após observar, achei que fosse brasileira ou da América do Sul, não sei ao certo se pela roupa,
pelo gestual ou por intuição. Mesmo sendo uma brasileira encontrando outro brasileiro, não
tivemos muito tempo juntos, pois logo percebeu que não teria os 100 Euros do programa. Então
perguntei:
Resolvi ficar mais tempo, um som eletrônico tornava as conversas curtas pela
dificuldade de ouvir o interlocutor. Entretanto, já havia avançado. Sabia de outras localidades,
talvez esses lugares sejam menos visados! Poderia estabelecer outras conversas. Não me sentia
seguro em andar por Pigalle, Paris, na madrugada, não conheço os códigos, bem como em
Madrid, sei que a prostituição não é crime. Todavia, eu poderia ser confundido como um cliente,
diferente de Madrid. Outro fato relevante: eu não portava documentação que pudesse confirmar
que eu estava realizando uma pesquisa, o que devo corrigir nas seguintes incursões. Passei a
andar com um documento da Universidade do Porto, que afirmava que, durante o doutorado,
havia realizado viagens para realizar a pesquisa.
Resolvi, pela manhã, ir mais cedo, dessa vez ao Parque Bois de Boulogne. Em verdade,
trata-se de um projeto paisagístico e com variedade de atividades, pouco comum, o que
desconheço nos parques brasileiros. Há dois jardins, Serres d’Auteuil, e ao norte, Jardin
d’Acclimatatio, dois lagos, com abundância de água, que perpassa por uma parte do parque e
pelos dois jardins citados. Há um restaurante com mesas externas e internas, na ilha existente
no lago. Um clima afetuoso entre os casais e expressivo para os padrões de Paris.
Aquele lindo parque é símbolo de uma Paris contemplativa e bucólica, com campos
verdejantes, tomando outra configuração. À noite, deixa de ser o território tão seguro e no
horizonte não se veem mais os cedros, atléticos homens remando no lago e famílias brincando
com seus filhos. Muda a relação com os sentidos de quem vai após o pôr do sol. A segurança é
substituída por uma tensão, a visão limita-se à luz do farol ou à iluminação artificial, as pessoas
já não estão ali com tanto carinho, e sim para o sexo, em sua maioria. Há registros de roubos e
estupros. A noite é conhecida pelo perigo, conforme fui avisado por Yoran, no Hostel Peace
and Love. As notícias encontradas nos jornais atribuem esse quadro, na sua maior parte, a
ladrões e prostitutas (cis, trans e travestis), imigrantes, como a matéria do site do jornal
Lexpress.fr:95
Paris – “Commeiln’y a plus de clients, les rares qui viennen tabusent.” Six
mois après le vote de la loisur la prostitution, qui instaure la pénalisation du
client, les travailleuses du sexedécrivent un quotidienpaupérisé et teinté de
violence au bois de Boulogne.
95
Disponível em: <https://www.lexpress.fr/actualites/1/societe/prostitution-au-bois-de-boulogne-la-desertion-du-
chaland-l-avenement-des-violents_1837470.html>. Acesso em 23 de abril, 2018.
182
96
Como não há mais clientes, os poucos que vêm o abuso. "Seis meses após a votação da lei sobre a prostituição,
que introduz a criminalização do cliente, profissionais do sexo descrevem uma madeira de violência” empobrecida
e manchada diariamente. de Boulogne. No fundo de sua pequena van leve, dois colchões cobertos com um pano
preto agem como uma fralda. Roberta, uma prostituta franco-peruana de 41 anos, está ativa desde que atingiu a
maioridade e não mede as palavras. "Esta lei é uma merda! Nós não podemos mais trabalhar. Alguns de meus
colegas nem têm o suficiente para comer", rebela essa linda loira trans, com o nariz usando óculos finos, que dizem
ter perdido" metade "de seus clientes desde abril. Estacionados nos becos e becos tranquilos do "bosque" à beira
de Paris, várias vans, como a dele, aguardam a barcaça. Mulheres mais ou menos vestidas oferecem seus encantos
a todos os que chegam. Mas raros, muito raros, são aqueles que sucumbem, descobriu a AFP. Desde a votação da
lei, um cliente é obrigado a uma multa de 1.500 euros, subindo para 3.750 em caso de reincidência. (Tradução
própria, 2018).
183
o quanto era perigoso descer para conversar naquele local. Na volta, por outras avenidas,
chegamos ao ponto de partida. Com satisfação, ele disse: “chegamos, brasileiro”.
Posso descrever esse local como um espaço segregado, onde estão todos expostos à
violência, intempéries climáticas, polícia, ladrões e abusadores. No entanto, agradava-me a
resistência de permanecer no Bois de Boulogne, mesmo sabendo que há poucas possibilidades
de uma travesti se ajustar à capital, mesmo na França, e que aquela era a única possibilidade,
talvez.
184
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação com os diversos territórios foi marcada por encantamentos, confrontos, ora
com minha forma de entender, ora como fui entendido, dores, amizades e outros afetos
estiveram e estão presentes. As travestis ensinaram-me que há realidades e mundos. Como em
uma tessitura, constroem Aracaju, o nosso cotidiano. No território da prostituição de Atalaia,
Aracaju, quase sempre observadas e consideradas como monstros, como já citada à aula de
Michel Foucault, compilada na obra Os anormais, ou refletindo sobre o olhar de Georges
Bataille (p. 160, 2013):
Assim, a construção dos corpos das travestis de Atalaia, a mudança de seu gênero,
também significam mais resistência e negação por parte da cidade. Esse conflito entre o corpo
construído e os valores heteronormativos deflagra em cena de rejeição e violência contra elas
mesmas.
A obra Orlando: uma biografia (WOOLF, p. 09, 2006) inicia-se com o personagem
Orlando brincando com uma cabeça, no período Elisabetano. Após uma fase da vida como
nômade, tanto com relação ao espaço, tempo, quanto ao gênero, o livro chega ao fim, na
modernidade. Eis um dos últimos fragmentos da obra: “[...] a duodécima pancada da meia-noite
de quinta-feira, onze de outubro de mil novecentos e vinte oito” (WOOLF, 2006, p. 214). Não
me parece absurdo estabelecer relações entre alguns aspectos da obra citada e o percurso de
busca de identidade por meio da criação de uma cidade, referenciado nas diversas trocas da
capital sergipana, que seguiria São Cristóvão e, posteriormente, Aracaju.
185
científico”, valiosa pesquisa a respeito do discurso das ciências sobre esses corpos, que está
vinculado a mudanças.
O período das pesquisas ocorreu, em maior parte, à noite. Certamente, esse fato
influencia o sentir. Sentir medo, sentir perigos possíveis de serem contornados, encontro com
as diversas forças repressoras, representadas por seus exércitos de “corpos dóceis”
(FOUCAULT, 1977), que a tudo olha e cataloga. A intensidade das vivências talvez seja
percebida. Afinal, nossos ancestrais temiam a noite e a escuridão. Embora, hoje, os faróis altos
nos pontos das travestis cheguem a ser ameaçadores, como aqueles que, por medo, receio e/ou
desejo, querem a tudo deflorar. A noite prevalecia...
As travestis, ou parte das pesquisadas, trazem em seus corpos questões valiosas, sob
minha ótica. Não só a negação da clínica, mas também a subjugação e customização das marcas,
a capacidade de confronto e encontros, mostrando-se nômades, que migram de cidade em
cidade.
Aspecto que me chamou a atenção foi a ausência das ONGs nas falas das travestis. Essas
organizações se mostraram ausentes nesse universo ou são negadas pelas travestis. Assim, sem
apoio, sob ataques, ora de fezes, ora de fogo, seguem na construção dos seus corpos, que tanto
significam em suas vidas, a ponto de, pareceu-me, colocar os aracajuanos em grande
187
Pontes, talvez esse seja um sentido fundador desta pesquisa. Assim, lancei-me na
tentativa de construí-las e espero contribuir para que em um horizonte, não muito distante, elas
possam escrever sobre suas vidas e ocupar espaços, seja na academia, durante o dia, nas ruas
aracajuanas, sem serem tratadas com violências e/ou em outros espaços.
188
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