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ISSN 1982 - 0283

Cotidianos, imagens
e narrativas

Ano XIX – Nº 8 – Junho/2009

Secretaria Ministério da
de Educação a Distância Educação
Sumário

Cotidianos, imagens e narrativas

Aos professores e professoras ................................................................................... 3


Rosa Helena Mendonça

Apresentação da série Cotidianos, imagens e narrativas .......................................... 5


Nilda Alves

Texto 1 – Identidades em mudança no cotidiano ........................................................ 19


Na vida real e na ficção: processos identitários e suas implicações com as práticas
e com as narrativas
Mailsa Carla Passos

Texto 2 – Questões ecológicas no cotidiano ............................................................. 27


Educação Ambiental: práticas e praticantes
Neila Guimarães Alves

Texto 3 – A criação de tecnologias no cotidiano ...................................................... 33


Trapeiros, poetas e... cineastas – crianças narradoras
Carmen Lúcia Vidal Pérez
Cotidianos, imagens e narrativas

Aos professores e professoras,

Moacyr Scliar, ao discorrer sobre a função E além disso, as imagens também são for-
educativa da leitura literária, em apresenta- mas narrativas. O que um vídeo ou uma
ção no 8º COLE, o conceituado Congresso fotografia, por exemplo, evocam? Que im-
de Leitura e Escrita, promovido pela Associa- portantes descobertas possibilitam? De que
ção de Leitura do Brasil, desafiou o público forma utilizá-los como fontes, documentos
com a instigante questão: Somos o que le- que permitem um olhar para um determi-
mos ou lemos o que somos?1 nado tempo/espaço, para uma instituição,
para uma pessoa? No caso das escolas, em
Por analogia, propomos a seguinte reflexão especial, essas imagens e narrativas nos
para a imersão nos textos e programas que ajudam a compreender a história e o coti-
compõem a série Cotidianos, imagens e narra- diano dessa instituição em que, como alu-
tivas, do programa Salto para o Futuro: Somos nos, professores, funcionários, familiares, 3

o que narramos ou narramos o que somos? convivemos e nos formamos. As represen-


tações de escola que perpassam imagens
Para pensar sobre isso, vamos primeiro con- e narrativas fazem parte do repertório de
siderar que a narrativa é o gênero primordial todos quantos, tendo frequentado cotidia-
dos seres humanos. Desde a infância, são namente as salas de aula, conhecem seus
as histórias que ouvimos e contamos que rituais, para perpetuá-los ou para subvertê-
vão marcando nosso ser e estar no mundo. los em novas práticas.
De lendas e contos a relatos de vida são as
narrativas que nos constituem por meio da A TV Escola e o programa Salto para o Fu-
linguagem que, por sua vez, é por nós cons- turo têm se preocupado em documentar o
tituída. São elas, narrativas orais e também cotidiano das escolas brasileiras em séries
escritas, que vão tecendo a memória do que que se propõem a colocar os professores e
somos, na esfera privada e profissional, nos professoras no centro do debate sobre edu-
tempos e espaços de convivência, nas diver- cação, criando um canal entre professores e
sas redes em que estamos inseridos. pesquisadores.

1 Anais do 8º COLE. Campinas, Editora UNICAMP, 1992.


Assim, para debater aspectos ligados às prá- Currículo, redes cotidianas e imagens, sen-
ticas e representações escolares na perspec- do também autora de diversas obras sobre o
tiva dos estudos dos cotidianos, convida- tema. Afinal, somos o que narramos e nar-
mos para a consultoria da série Cotidianos, ramos o que somos. A troca da conjunção
imagens e narrativas, a professora Nilda Al- recoloca a questão.
ves que, na UERJ, coordena o Laboratório
educação e imagem e o grupo de pesquisa Rosa Helena Mendonça3

2 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro.


Apresentação

Cotidianos, imagens e narrativas1


Nilda Alves2

A reflexão sobre as relações interculturais enfrenta uma dificuldade particular: é que todo
mundo, desde sempre, parece de acordo com seu estado ideal. O fato é digno de nota: enquan-
to os comportamentos racistas pululam, ninguém se confere uma ideologia racista. Todos são
pela paz, a coexistência dentro da compreensão mútua, pelas trocas equilibradas e justas,
pelo diálogo eficaz; as conferências internacionais o dizem, os congressos de especialistas
estão de acordo quanto a isto, as emissões de rádio e de televisão o repetem; entretanto,
continua-se a viver na incompreensão e na guerra. Parece que o acordo mesmo sobre o que
são os ‘bons sentimentos’ em relação a isto, a convicção universal de que o bem é preferível
ao mal privam este ideal de toda a eficácia: a banalidade exerce um efeito paralisante. Logo,
é necessário ‘desbanalizar’ nosso ideal. Mas como? (Todorov, 1991, p.139)

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Em seguida ao parágrafo que transcrevi em que sejamos pesquisadores conscientes da
epígrafe, TODOROV (1991) nos diz que ele dimensão ética dos trabalhos que realiza-
vê a possibilidade de agir em duas direções, mos e que outros desenvolvem sobre o tema
para responder à pergunta que formula: en- e, ao mesmo tempo, homens e mulheres de
quanto trabalhadores – professores, pesqui- ação para mudar o que vemos, com a posse
sadoras, etc. – precisamos nos esforçar para desses conhecimentos que fazemos surgir
que o ideal esteja relacionado ao real, o que com nosso trabalho.
quer dizer, não que o rebaixemos para tor-
ná-lo acessível, mas sim que não o podemos Existe no Brasil, e fora dele, uma corrente
separar do trabalho de conhecê-lo. Ou seja, de pesquisa3 que, há quase trinta anos, vem

1 Texto preparado para a série do ‘Salto para o Futuro’/TV Escola/MEC.


2 Professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório
Educação e Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br) que possui dois jornais de divulgação científica na área da
educação: Educação e Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br/jornal/) e Redes educativas e currículos locais (www.
lab-eduimagem.pro.br/REDES/). Consultora da série.
3 Essa é uma corrente em pesquisa que no Brasil envolve grupos diferentes de diferentes instituições. Como
exemplo poderia citar: o Grupalfa, coordenado por Regina Leite Garcia, na UFF, e do qual Carmen Lúcia Vidal Perez e
Maria Teresa Esteban fazem parte; o GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Continuada), coordenado
até há pouco, por Corinta Geraldi, na Unicamp; o grupo Currículos, cotidianos, culturas e redes de conhecimentos,
coordenado por Carlos Eduardo Ferraço e Janete Magalhães, na UFES; o grupo Conhecimento e cotidiano escolar,
se preocupando em trabalhar com aquilo Para entendê-los e poder combatê-los não
que chamamos de ‘cotidianos escolares’ basta, portanto e somente, bons discursos e,
e outros cotidianos. Nos trabalhos realiza- nem mesmo, formulação de leis que os coí-
dos dentro desta corrente entendemos que, bam, embora tais leis sejam indispensáveis.
nos tantos cotidianos em que vivemos, for- É preciso que possamos compreender como
mamos redes de conhecimentos e signifi- surgem e como se desenvolvem em cada um
cações e é dentro delas que criamos novas de nós, por nossa participação em múltiplas
formas de compreender e agir no mundo. redes de conhecimentos e significações, no
Com isso, entendemos que estudá-las é uma trabalho cotidiano que realizamos e nas re-
necessidade – para conhecer nossos proble- lações que dentro delas estabelecemos.
mas e criar modos de superá-los. Se pen-
sarmos os tantos preconceitos que forma- Nesse sentido, então, como isso se dá em
mos – raciais, sexistas, classistas, etc. – ou muitas e diferentes redes, vamos precisar
certas ideias que podem ser traduzidas por fazer escolhas para que possamos expor es-
perguntas que ouvimos serem formuladas, sas questões nesse texto e nesta série. Por
diariamente – Quem tem direito à boa edu- sua atualidade e por sua ‘urgência’, a esco-
cação? E o que é uma boa educação? Quem lha desta autora recai sobre três aspectos de
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pensa corretamente? Quem pode formular nossa vida cotidiana: a questão das identi-
políticas? Semialfabetizado tem direito a ser dades; a questão da educação ecológica; a
eleito para algum posto eletivo? Negro pode questão do uso de artefatos culturais, na
entrar na Universidade através de cotas? criação de tecnologias novas.
Mulher sabe pensar direito? Homossexual
tem direito à cidadania plena? – vamos po-
der perguntar: como esses preconceitos são Os COTIDIANOs e sua
formados? Como estas ideias são formula- importância para todos nós
das? Como vencê-los e como discuti-las?
Os seres humanos criam conhecimentos
Entendemos que são formulados e adquiri- de duas formas. Uma delas é a dominante
dos nessas tantas redes existentes e injeta- na sociedade em que vivemos e é entendi-
dos em nós, a conta-gotas, cotidianamente. da por muitos como a única forma. Essa é

coordenado por Marcos Reigota, na UNISO; o grupo Redes de conhecimentos e práticas emancipatórias no cotidiano
escolar, coordenado por Inês Barbosa de Oliveira, na UERJ; o grupo Linguagens desenhadas e educação, coordenado
por Paulo Sgarbi, na UERJ; o grupo Narrativas, memórias e atualização identitária em contextos educativos,
coordenado por Mailsa Passos, na UERJ; e o GRPesq Currículos, redes cotidianas e imagens, coordenado por Nilda
Alves, na UERJ, e do qual Neila Guimarães Alves (da UFF) e Nívea Andrade (UERJ) fazem parte.
aquela que foi representada, inicialmente, Para representá-lo, alguns autores vêm
pela ciência, dentro da ideia/metáfora da usando outras ideias/metáforas: Henri LE-
‘árvore’. Por ela, pensa-se que ‘construí- FEBVRE (1983), Michel de CERTEAU (1994) e
mos’ conhecimentos indo por caminhos Bruno LATOUR (1994) introduzem a noção
obrigatórios, sempre iguais, sequenciais e de conhecimentos em redes; Gilles DELEU-
hierarquizados: existe uma base (as ‘raízes’ ZE e Felix GUATTARI (1995) trabalham com
desses conhecimentos – que muitos dizem o conceito de transversalidade e a ideia de
estar nas ciências); passamos todos por um rizoma; Foucault nos explicou as redes mi-
‘tronco comum’ (em geral, os conteúdos in- crobianas de poder; Boaventura de Sousa
corporados na escola básica); após um lon- SANTOS (1995) vem desenvolvendo a ideia
go percurso de onze ou doze anos, estamos de rede de subjetividades a partir do enten-
‘prontos’ para ‘diversificar’, quando, enfim, dimento das redes de contextos cotidianos;
‘escolhemos’ o ‘ramo’ que vamos seguir, ao nosso Milton SANTOS (1997) trabalhou com
passarmos para um curso universitário. Esse as redes de tecnologias e redes de organi-
modo de pensar a criação do conhecimen- zações sociais, para nos explicar o mundo
to apareceu com a Modernidade, em todas contemporâneo. Estes autores, entre tantos
as formas de instituicionalização da socie- outros, vêm indicando que a criação de co-
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dade: nas ciências; no mundo do trabalho; nhecimentos e significações nos cotidianos
em organizações sociais como os sindicatos, vividos segue caminhos variados e comple-
os partidos políticos ou em igrejas, organi- xos, diferentes daqueles que ‘construímos’
zadas neste período. Esse modo contribuiu, nas ciências ou nas instituições nas quais a
significativamente, para a estruturação hie- sociedade moderna foi se organizando.
rarquizada da sociedade: o líder de grupo de
pesquisa; o presidente da empresa; o presi- Dessa maneira, muitos vêm se dedicando a
dente do sindicato ou dos partidos políticos; estudar e a compreender como os conheci-
os chefes de cada igreja existente – são to- mentos e as significações são tecidos, perce-
dos vistos como ‘sabendo’ mais que todos bendo que isso exige que se admitam as dife-
os que estão colocados em graus inferiores renças culturais sem hierarquias, o que abre
da hierarquia institucional. múltiplas possibilidades ao ato humano de
conhecer. Exige também que se compreenda
Crescentemente, na contemporaneidade, fo- que enfrentar os problemas ecológicos que
mos percebendo que existe um outro modo temos hoje como gerados por um consumo
de criar conhecimentos: aquele que foi visto que levou ao desperdício de riquezas comuns
como sendo tecido em redes de conhecimen- insubstituíveis, o que vai nos demandando
tos e significações, em nosso viver cotidiano. conhecimentos ‘enredados’, para além das
disciplinas. E, por fim, exige que nos dedi- la, responsáveis pelos estudantes, comuni-
quemos a comprender os modos como são dade local, comunidades externas diversas,
criadas tecnologias cotidianas no ‘uso’ de autoridades educacionais, redes mediáticas,
artefatos culturais colocados crescentemen- organizações sociais de múltiplos interes-
te, para consumo de todos, com os significa- ses e reivindicações, etc. Isso significa que
dos políticos e educativos sobre as escolhas o processo não é simples, mas, ao contrário,
que vêm sendo feitas no presente. extremamente complexo e rico.

Na discussão dessas ideias com os proces- Compreende-se, assim, que os currículos


sos pedagógicos e curriculares nas escolas, das escolas têm origens em práticas diver-
aparecem dois caminhos a serem seguidos. sas – oficiais e não oficiais – que se tecem
O primeiro – aquele normalmente assumido nos cotidianos das escolas, apresentando
pelas chamadas autoridades educacionais características diversas e múltiplas. Com-
quando fazem suas propostas – no qual se preender como isso se apresenta e como se
entende que há os técnicos e os acadêmicos tecem essas redes de práticas é possível e
que sabem melhor o que é bom para a es- necessário, para compreendermos o que se
cola – todas elas vistas em conjunto, como passa em cada escola desse país. Pode pa-
uma só, e que, por isso, aparecem sempre recer algo difícil e é, mas é realizável com 8

nesse singular, o que as torna uma abstra- as tantas possibilidades de trocas e diálogos
ção. Isso tem como consequência a ideia de que temos hoje em dia: um número maior
que aquilo que essas pessoas criam pode e de publicações, um bom número de con-
deve “caber” em todas as escolas, seja qual gressos em que discutimos esses temas, a
for a sua realidade. existência de programas na televisão – em
redes diversas –, a crescente importância da
Assumindo a necessidade de se partir dos internet em nossas vidas, etc.
conhecimentos gerados nas escolas e respei-
tando a dinâmica dos vários processos que Isso é facilitado também porque, no mundo
acontecem nelas e fora delas, incorporando contemporâneo, foram sendo criados novos
os conhecimentos e significações gerados campos científicos, como a ecologia, a infor-
nas redes cotidianas, os ‘praticantes’ de um mática, a telemática, a bioengenharia, en-
segundo caminho – com o qual nos identi- tre tantos outros espaçostempos de criação
ficamos – percebem que todos os interes- de conhecimentos, como as novas formas
sados nos processos escolares apresentam de organização do trabalho, os novos mo-
propostas às escolas, permanentemente: vimentos sociais. O que se pode observar é
docentes, discentes, trabalhadores da esco- que tanto uns como outros vêm sendo cria-
dos e se desenvolvem a partir do rompimen- lhar com essas múltiplas ‘outras’ práticas é,
to das fronteiras disciplinares e da criação assim, possível porque os dispositivos e pro-
de novas redes de relações, de comunicação, cedimentos hegemônicos passam a sê-lo na
de conhecimentos e de significações. medida em que são capazes de realizar uma
análise total da sociedade, de suas institui-
Com isso, pensar os cotidianos e os modos ções e dos movimentos que nela se dão, a
como neles tecemos conhecimentos e sig- partir de sua própria lógica, ou seja, aquela
nificações tornou-se premente e necessário que os transformou em hegemônicos e que,
para um grande contingente de pessoas e portanto, é também hegemônica. Isto signi-
não só para uns poucos. fica que junto, no mesmo processo, perdeu-
se a capacidade de analisar e até mesmo de
Relacionadas com essas tantas contribui- admitir todas as outras lógicas possíveis e
ções, compreendemos com as pesquisas existentes no mesmo espaçotempo, porque
nos/dos/com os cotidianos que as práticas dele se apropriou e o entende como sendo
cotidianas formam uma imensa reserva, seu, totalmente, o que nunca acontece, de
constituindo os esboços ou os traços de ‘de- fato. Os múltiplos processos cotidianos de
senvolvimentos diferentes’ (CERTEAU, 1994) ‘lidar com a vida’, em sua infinita condição
possíveis e que existem sempre. Isto leva a 9
de ‘criar saídas’, não são sequer imaginados
que este autor afirme, ainda, que a coerên- pelo modo hegemônico de criar, que não os
cia da proposta vencedora, a panótica, é consegue ver, já que eles não contam com
um lugar próprio, como o que a maquina-
o efeito de um sucesso particular, e não ria panóptica dominante tem. Ou seja, os
a característica de todas as práticas tec- praticantes dos cotidianos, o tempo todo,
nológicas. Sob o monoteísmo aparente aproveitam a ocasião que esta cegueira dos
a que se poderia comparar o privilégio processos hegemônicos permite, atuando
que garantiriam para si mesmos os dis- nos mesmos lugares nos quais estes se reali-
positivos panópticos, sobreviveria um zam. Dessa maneira, as táticas cotidianas se
‘politeísmo’ de ‘práticas disseminadas’, dão onde ninguém espera, captando no vôo
dominadas, mas não apagadas pela car- as possibilidades oferecidas por um instan-
reira triunfal de uma entre elas (p. 115). te (CERTEAU, 1994), não contando, nunca,
com a segurança daquilo que o já estabe-
Disto, nossas heranças culturais múltiplas lecido fornece às estratégias hegemônicas.
– indígenas, africanas e outras tantas – dão Considerando que a tática é a arte do fra-
mostras profundas e diferentes, quando bus- co e que as artes se colocam para além da
camos compreender esses processos. Traba- racionalidade dominante, jogando com as
emoções, CERTEAU (1994, p.101) indica que memória de escolas, bem como as imagens
são criadas, permanentemente, combinan- – em especial, as icônicas: fotografias, de-
do possibilidades, e fazendo surgir inúme- senhos, caricaturas etc. – sobre os espaços-
ras alternativas, em trajetórias que não po- tempos educativos existentes.
dem ser previamente determinadas porque
serão sempre diferentes e diversificadas. Esses espaçostempos permitem, constante-
Chamando Kant como apoio, em certo mo- mente, o surgimento de histórias – se pen-
mento de seu texto, CERTEAU (1994) lembra sarmos nas escolas vamos lembrar: o portão
que há uma arte de fazer na qual é preciso das escolas como lugar de trocas de ideias
reconhecer uma arte de pensar e que, por entre os responsáveis dos alunos; o pátio
isso mesmo, as táticas formam um campo funciona como possibilidade de troca en-
de operações dentro do qual se desenvolve tre os estudantes; a sala dos professores é
também a produção da teoria. A teoria não espaçotempo de conversas e troca de expe-
fica nem do lado de fora, nem pode ser vista riências, permitindo a formação de conhe-
como dicotomizada, menos ainda entendi- cimentos sobre, por exemplo: que professor
da como posterior ou anterior à prática. É alfabetiza melhor; que figurinha está difícil
por isso que nas pesquisas nos/dos/com os de conseguir em certo álbum que muitos
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cotidianos não se pode escapar da unidade colecionam; como trabalhar certa questão
práticateoriaprática4, tanto quanto de sua necessária em uma 5ª série...
crítica permanente, não podemos esquecer!

Inicialmente entendidas como ‘fontes’, os


processos desenvolvidos para conhecimento
As NARRATIVAS e as IMAGENS
das redes educativas permitiram compreen-
Nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos der que são algo diferente e especial: elas são
desenvolvidas pelos pesquisadores brasilei- “personagem conceitual”, em termo criado
ros interessados nos processos pedagógicos por DELEUZE (1992) e desenvolvido por SOUSA
e curriculares das escolas, adquiriram gran- DIAS (1995). Sobre ele, explica GALLO (2008)
de importância, as narrativas – especialmen-
te, orais, mas também escritas – sobre a a palavra grega filosofia cruza ‘amiza-

4 O surgimento desses termos assim escritos – juntos em uma só palavra – tem o sentido de mostrar que as
dicotomias herdadas da ciência, criada na Modernidade, além de possibilidade de ajudar a ‘pensar cientificamente’,
têm significado limites aos processos que precisamos desenvolver para melhor conhecer os cotidianos, com suas
lógicas. Outros termos podem aparecer assim grafados nos textos que escrevemos: espaçostempos; dentrofora;
localuniversal; particulargeral; imagensnarrativas etc. Estarão sempre em itálico, acentuando sua estranheza.
de’ que nos remete a proximidade, a en- Sobre isso, KOSSOY (1999), um dos mais pre-
contro, com ‘saber’ (deleuzianamente, sentes autores sobre o ‘uso’ de fotografias
‘conceito’). O amigo é um “personagem em pesquisas sociais, lembra que
conceitual”, que contribui para a defini-
ção dos conceitos, e é assim que Deleuze quando apreciamos determinadas foto-
e Guattari lêem o personagem do filó- grafias nos vemos, quase sem perceber,
sofo que nasce com os gregos: alguém mergulhando no seu conteúdo e imagi-
que, na busca da sabedoria – que nun- nando a trama dos fatos e as circuns-
ca é de antemão, mas sempre procura, tâncias que envolveram o assunto ou
produção – inventa e pensa os conceitos, a própria representação (o documento
diferentemente dos sábios antigos, que fotográfico) no contexto em que foi pro-
pensavam, por figuras, por imagens. Ao duzido: trata-se de um exercício men-
definir o filósofo como “amigo do concei- tal de reconstituição quase intuitivo
to”, admite-se que a tarefa da filosofia é (p.132).
necessariamente criativa.
Em múltiplas experiências que tivemos, em
Buscando apoio, pois, nesta ideia de per- pesquisas ou na vida cotidiana, ver uma foto-
grafia significou/significa, sempre, contar his- 11
sonagem conceitual, pensando, criando
conhecimentos, mas não necessariamente tórias, em narrativas sobre a situação retrata-
buscando ser filósofo (“criador de concei- da ou sobre outra que aquela imagem lembra,
tos”), temos como necessidade, para traba- ou, ainda, sobre pessoas que nela estão ou que,
lhar os cotidianos vividos, que assumir as ‘justamente’ não estão, mas ‘que dela lembrei
imagensnarrativas como personagem con- porque...’ E, também, o sentido inverso se dá
ceitual. Algo sem o que não se poderia pen- quando, narrando um fato acontecido, alguém
sar como são produzidos, por todos nós, os diz: “espera que tenho uma fotografia ótima
conhecimentos e as significações, em nos- deste dia...” E, esquecendo o relato, se levanta
sas redes cotidianas. para buscar, em outro cômodo, a tal fotografia
que, chegando, lembra uma história diferente
Além disso, nessa articulação imagensnarra- da que estava sendo lembrada.
tivas é necessário considerar que umas re-
metem às outras, como nos indicou MAN- Por isso mesmo, KOSSOY (1999) afirma que
GUEL (2001) e precisam ser compreendidas fotografia é memória e com ela se confunde,
no conjunto que formam ao serem chama- acrescentando:
das às ‘conversas’ sobre os cotidianos das
escolas e de outras redes educativas. o estatuto de recorte espacial/interrup-
ção temporal da fotografia se vê rompi- Assim é que precisamos compreender que o
do na mente do receptor em função da momento fotografado não retorna jamais,
visibilidade e do “verismo” dos conteú- nem com um possível cruzamento de depoi-
dos fotográficos. A reconstituição histó- mentos, de memórias. O trabalho de com-
rica do indivíduo rememorando, através preender os cotidianos das redes educativas,
dos álbuns, suas próprias histórias de através de imagensnarrativas só se dá pela
vida, constitui-se num fascinante exer- intervenção de quem está envolvido nos
cício intelectual onde podemos detectar processos dessa compreensão. Ou, em ou-
em que medida a realidade anda próxi- tras palavras, as imagensnarrativas não nos
ma da ficção. (p. 132) permitem – como aliás qualquer outro tipo
de recurso que usarmos – obter “a verdade”.
Dessa maneira, é preciso assumir que o tra- Imagens e narrativas nos permitem a com-
balho com/através de fotografias – e com preensão de processos relacionados à tessi-
as narrativas que vêm junto – não se esgota tura de conhecimentos e significações, den-
na análise iconográfica (seus elementos de tro das múltiplas redes cotidianas em que
composição, modo como foi feito, conheci- estamos atuando e criando, ‘praticando’.
mento ou reconhecimento do espaçotempo,
12
situação social e mesmo nomes dos presen- Além disso, precisamos nos abrir a certas
tes, etc.). Esse trabalho requer, ainda, uma questões ligadas ao que Machado (2003;
sucessão de construções imaginárias (KOS- 2001) lembra: uma grande quantidade de
SOY, 1999, p.133), pois nós tem horror às imagens – isso é chamado
de iconoclasmo – em qualquer dos artefatos
o contexto particular que resultou na culturais em que apareçam, especialmente
materialização da fotografia, a história na televisão, porque uma série de pessoas,
do momento daquelas personagens que intelectuais, religiosos, etc. vêm que essas
vemos representadas, o pensamento são para pessoas inferiores. No entanto,
embutido em cada um dos fragmentos esse autor lembra que
fotográficos, a vida enfim do modelo
referente – sua ‘realidade interior’ – é, essa querela milenar, contudo, se baseia
todavia, invisível ao sistema ótico da em dicotomias falsas [já que] a escrita
câmara. Não deixa marcas na chapa fo- não pode se opor às imagens porque nas-
tossensível, não pode ser revelada pela ceu dentro das próprias artes visuais,
química fotográfica, nem tampouco di- como um desenvolvimento intelectual
gitalizada pelo ‘scanner’. Apenas imagi- da iconografia. Em algum momento do
nada (p.133). segundo milênio a.C., alguma civilização
teve a ideia de ‘rasgar’ as imagens, a fim Ou seja, em toda a história das ciências, as
de abrir a visão para os processos invisí- imagens tiveram uma grande importância
veis que se passam no seu interior, bem para ‘criar’ ciências e desenvolvê-las.
como de desmembrar cada uma de suas
partes em unidades separadas, para Assim sendo, os processos metodológicos
reutilizá-las como signo em outros con- devem indagar, respeitosamente, as situa-
textos e num sentido mais geral (Flusser ções que aparecerão nas imagensnarrativas
1985, p.15). O rasgamento das imagens de que vamos tomando conhecimento. A
permitiu desfiá-las em ‘linhas’ sequen- favor dessa possibilidade, lembro uma fala,
ciais’ (nascia assim o processo de linea- que já repeti muitas vezes e o faço mais uma
rização da escrita), enquanto o desmem- vez, de Eduardo COUTINHO, o ‘cineasta dos
bramento de suas partes compreendeu documentários’, em um encontro sobre his-
cada elemento da imagem (pictograma) tória oral, em São Paulo, transcrita em uma
como um conceito (…). Portanto, a pri- revista da PUC/SP. COUTINHO (1997) diz que
meira forma de escrita que se conhece em qualquer situação de filmagem, conside-
é ‘iconográfica’ e deriva diretamente rando que em pesquisa deve ser igual, o im-
de uma técnica de ‘recorte’ de imagem portante é respeitar cada um daqueles com
13
(Machado, 2001, p. 22). que ‘conversamos’. Sobre isto ele pergunta
e responde: “O que quer dizer respeitar essa
Com esse mesmo autor percebemos, ainda, pessoa? É respeitar sua integridade, seja ela
em especial nos estudos que faz sobre os um escravo que ama a servidão, seja ela um
escritos de DAGOGNET (1986; 1973), que há, escravo que odeia a servidão” (p.169).
sempre, algo iconográfico em grande parte
dos trabalhos dos cientistas, pois neles o Por outro lado, é preciso indicar um aspecto
registro gráfico desempenha papel heurís- no qual, falando de história oral, THOMSON
tico e metodológico (quando não ontológi- (1997) lembra que é o da responsabilidade
co). Dessa maneira, é preciso que aceitemos social que cada um de nós precisa ter frente
que, mesmo neles e na origem e desenvol- ao outro:
vimento de todas as ciências, a imagem é
uma forma de construção do pensamento os profissionais de história oral talvez
tão sofisticada que sem ela provavelmente achem que não têm o direito de usar as
não teria sido possível o desenvolvimento de reminiscências das pessoas para criar
ciências como a biologia, a geografia, a geo- histórias polêmicas ou que envolvam
metria, a astronomia e a medicina. aspectos delicados para os narradores
(...) [pois] isso significa uma violação da
confiança. Por outro lado, talvez achem conforto latente, da comparação ou da
que têm um outro dever – para com a avaliação. [No entanto], os relatos cole-
sociedade e a história – a responsabilida- tivos que usamos para narrar e relem-
de de contestar os mitos históricos que brar experiências não necessariamente,
dão poder a algumas pessoas às custas apagam experiências que não fazem
de outras (p.69). sentido para a coletividade. Incoerentes,
desestruturadas e, na verdade, ‘não-
No mesmo sentido, propondo uma saí- relembradas’, essas experiências podem
da para este dilema, citado por THOMSON permanecer na memória e se manifestar
(1997), FRISCH (1999) cria a ideia de autori- em outras épocas e lugares – sustenta-
dade compartilhada e propõe seu uso, mos- das talvez por relatos alternativos – ou
trando a necessidade de pessoas no processo através de imagens menos conscientes.
de analisar o que significa recordar, e o que Experiências novas ampliam, constan-
fazer com as memórias para torná-las vívi- temente, as imagens antigas e no final
das e produtivas, e não meros objetos para exigem e geram novas formas de com-
acervo e classificação (p. 70). Essa é uma preensão. A memória ‘gira em torno da
importante missão para os ‘praticantes’ das relação passado-presente, e envolve um
redes educativas nesse país, sem dúvida. processo contínuo de reconstrução e 14

transformação de experiências relem-


Essa necessidade aparece, é preciso ter cla- bradas’ , em função das mudanças nos
ro, porque, em processos de memória nos/ relatos públicos sobre o passado. Que
dos/com os cotidianos, lidamos com pessoas memórias escolhemos para recordar e
– em sua moradia, em seu trabalho, em es- relatar (e portanto, relembrar) e como
paçostempos de diversão, em espaçostempos damos sentido a elas são coisas que mu-
religiosos etc., nos quais processos de hierar- dam com o passar do tempo (p. 56-57).
quia e poder existem. Com isso, precisamos
saber que vamos lidar com desconfianças, Por isso, lembramos, com PORTELLI (1997),
dúvidas e com verdades subjetivas, e que, que
como nos lembra, ainda, THOMSON (1997)
a memória é um processo individual,
as imagens e linguagens disponíveis que ocorre em um meio social dinâmi-
usadas [no relato] público nunca se en- co, valendo-se de instrumentos social-
caixam perfeitamente às experiências mente criados e compartilhados. Em
pessoais e há sempre uma tensão que vista disso, as recordações podem ser
pode ser manifestada através de um des- semelhantes, contraditórias ou sobre-
postas. Porém, em hipótese alguma, as colcha de retalhos, em que os pedaços são
lembranças de duas pessoas são – assim diferentes, porém, formam um todo coe-
como as impressões digitais, ou, a bem rente depois de reunidos. Concluindo esta
da verdade, como as vozes – exatamente aproximação, o autor nos lembra, então,
iguais (p.16). que: em última análise, essa também é
uma representação muito mais realista da
Assim, ao trabalhar com cotidianos e ima- sociedade, conforme a experimentamos
gensnarrativas, não nos interessa ‘con- (p. 17).
frontar verdades’ dos praticantes que,
presentes nas fotografias ou nos contan- Neste sentido, a composição, termo am-
do histórias, aceitem conversar conosco, bíguo que serve para designar os proces-
com o objetivo de melhor compreender sos de tessitura das lembranças, permite
nossas redes educativas cotidianas de compreender que só é possível organizar
conhecimentos e significações. Mas é a memória utilizando as linguagens e os
preciso lembrar que, se as lembranças e sentidos que foram formando em cada um
as narrativas que contam são diferentes de nós, dentro da cultura vivida, em cada
umas das outras, elas se dão em contex- trajetória pessoal e profissional, o tecido
tos institucionais – históricos e culturais memorialista. 15

– que permitem compreender um pouco


melhor aquele entorno e as relações entre Veremos como esses processos de relações
praticantes que neles estão ou estiveram, múltiplas de imagensnarrativas se dão, em
permitindo compreender uma história de nossas redes cotidianas, em três aspectos di-
movimentos cotidianos dos processos pe- ferenciados: aquele dos estudos sobre iden-
dagógicos e curriculares que não compre- tidades, na compreensão do outro como
enderíamos de outro modo. legítimo outro; aquele da educação ambien-
tal, buscando perceber nossas responsabili-
Com essa compreensão, PORTELLI (1997) dades cidadãs cotidianas; e o dos ‘usos’ dos
vai dizer que, nesta forma de fazer história, artefatos culturais produzindo tecnologias,
a vida vai ser compreendida, não como um permitindo compreender a rica criação coti-
tabuleiro de xadrez que tem todos os qua- diana de processos tecnológicos pelos ‘pra-
drados iguais, mas muito mais como uma ticantes’.
Textos da série Cotidiano, imagens e narrativas5
A série Cotidiano, imagens e narrativas bus- de escolas bem como as imagens (desenhos,
ca debater os chamados ‘cotidianos esco- charges, obras de arte, fotografias, imagens
lares’ nos quais redes de conhecimentos e de propagandas, vídeos, filmes) sobre os espa-
significações são formadas, possibilitando a çostempos educativos. A série tem como foco
criação de novas formas de compreender/agir três aspectos da vida cotidiana: a questão das
no mundo. Nesse contexto, adquirem grande identidades, a educação ecológica e o uso dos
importância as narrativas sobre as memórias artefatos culturais na criação de tecnologias.

Texto 1 – Identidades em mudança no cotidiano

O primeiro texto comenta sobre pesquisas plexidade e são muito mais da ordem do
voltadas para a compreensão dos processos subjetivo que do objetivo. O texto destaca,
identitários, considerando que os mesmos ainda, que a alteridade é constituinte do ter-
não são fenômenos fixados e estáveis, já que mo identidade. Percebemo-nos como iguais
as identidades se estabelecem na constante a uns e diferentes de outros – às vezes não 16

negociação do sujeito com seu meio, com a somente por meio de palavras, mas por ges-
história, com as produções discursivas que tos, práticas, olhares, e todo um conjunto de
circulam socialmente. Esses processos – de formas extraverbais, inclusive pelo silêncio.
dizer-se, sentir-se, pertencente a um grupo Estes e outros temas são analisados e dis-
ou uma origem – estão carregados de com- cutidos no primeiro texto desta publicação.

Texto 2 – Questões ecológicas no cotidiano

O segundo texto discute a crise ambiental, contribui para encontrar soluções possíveis
causada, entre outros fatores, pela organiza- e que é preciso buscar alternativas, saídas.
ção socioeconômica globalizada e pelo cres- Comenta, ainda, que as questões ambientais
cimento populacional desordenado, desta- com as quais a humanidade vem se deparan-
cando que apenas apontar as causas não do têm natureza complexa, assim como são

5 Estes textos são complementares à série Cotidiano, imagens e narrativas, com veiculação de 22 a 26 de
junho de 2009 no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC).
interligadas e interdependentes. Por isso, que reveja e forneça alternativas à atual
elas não podem ser compreendidas isolada- concepção hegemônica de organização so-
mente, sem deixar de incluir as suas inter- cial, política e econômica, apontando para
relações e as tentativas de soluções que vão a urgência de que estas alternativas sejam
surgindo no cotidiano. Apresenta a neces- discutidas nas escolas de Ensino Fundamen-
sidade de um outro enfoque da realidade, tal, Médio ou Superior.

Texto 3 – A criação de tecnologias no cotidiano

O terceiro texto da série apresenta o proje- no texto e mostrados em vídeo no programa


to desenvolvido por uma professora da rede 3 desta série.
municipal de educação de Duque de Caxias,
na Escola Municipal Ana Nery:“Injustiças Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais
Cognitivas: ressignificando os conceitos de para o quarto programa, com entrevistas
cognição, aprendizagem e saberes no coti- que refletem sobre esta temática (Outros
diano escolar”, com a coordenação da auto- olhares sobre Cotidiano, imagens e narrati-
ra do texto. A proposta do projeto foi fazer vas ) e para as discussões do quinto e últi-
17
um filme coletivamente. Os desafios e as mo programa da série (Cotidiano, imagens e
descobertas das crianças são comentados narrativas em debate).

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Paulo: PUC/SP, abr./97, (15): 51-84.
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender
um pouquinho – algumas reflexões sobre a TODOROV, Tzevtan. Nós e os outros - a refle-
ética na História Oral. In: ANTONACCI, Ma- xão francesa sobre a diversidade. Rio de Janei-
ria Antonieta e PERELMUTTER, Daisy (orgs.). ro: Jorge Zahar, 1993.
Texto 1

Identidades em mudança no cotidiano


Na vida real e na ficção: processos identitários e suas
implicações com as práticas e com as narrativas.

Mailsa Carla Passos1

“E como vamos juntar as histórias se estão todas por aí na cabeça do povo?”


(Deodora, personagem do filme narradores de Javé, de Eliane Caffé).

De narradores, histórias em dar um caráter “científico” às histórias

e práticas contadas pelos habitantes.

No filme Narradores de Javé, de Eliane Caffé, No desfecho, deparamo-nos, nós e o povo de


19
lançado no ano de 2004, as pessoas de um po- Javé, com a total impossibilidade de trans-
voado que está em vias de ser inundado por formar as muitas versões dos sujeitos em
uma represa decidem pedir ao único sujeito al- uma só versão – “a história oficial” – o que
fabetizado que escreva um livro com a história consistiria no apagamento de identidades,
mítica do povo de Javé2, o lugar em questão. memórias e práticas.
Precisam disso para que sua história seja va-
lorizada e acreditam que, na medida em que Há nove anos trabalhamos com as práticas
esta narrativa tenha o status de “científica”, culturais de sujeitos afrobrasileiros e os pro-
eles consigam livrar as terras da inundação. cessos identitários que se articulam a essas
práticas. Ao longo deste percurso, temos
Imbuído dessa tarefa, o complexo persona- compreendido que práticas e narrativas são
gem, Antonio Biá, passa a tentar sintetizar fenômenos sociais tão implicados e imbrica-
as memórias do povo de Javé, preocupado dos que se torna impossível vê-los de manei-

1 Professora adjunto da Faculdade de Educação da UERJ, membro do Laboratório Educação e Imagem da


UERJ.
2 Não à toa, o nome escolhido para o povoado é este. Javé é sinônimo de Jeová, ou o nome de Deus no Antigo
Testamento. Toda a história do filme consiste na busca de um mito original que preencha de significação as muitas
histórias que circulam no lugar.
ra não articulada. As práticas são narrativas mesmo tempo, essas são experiências cole-
das experiências de um grupo social em for- tivas já que são recorrentes nos cotidianos
ma de modos de fazer, rituais, música, dan- de uma parcela específica3 da população,
ças, rezas, comidas, trabalho, divertimento. embora muitas vezes sejam silenciadas.
Elas produzem narrativas bem como são
produzidas/transformadas através das nar- Neste sentido, contar essas histórias tem
rativas. uma função pedagógica, emancipatória e de
atualização de identidades (Agier, 2001). Não
Realizar uma pesquisa que pretende com- é somente romancear biografias. É dessas
preender as práticas de sujeitos afrobrasilei- narrativas que a pesquisa se alimenta e é a
ros em contextos educativos e como estes partir delas que se estabelece o necessário
sujeitos se apropriam das práticas, ou seja, diálogo com o quadro teórico escolhido. No
um estudo que tem como foco as memórias romance biográfico, como sinaliza Bakhtin
e as histórias de uma população historica- (2004, p. 215) “os acontecimentos não formam
mente silenciada – mais do que isso, histo- o homem, mas o seu destino”. No caso dessa
ricamente negada, como demonstraremos nossa opção teórico-metodológica, as nar-
mais à frente neste texto –, nos faz sentir às rativas desses acontecimentos revertem na
20
vezes a sensação de ter a tarefa impossível formação desses sujeitos, a partir da reflexão
do personagem Antonio Biá, do filme Narra- sobre sua própria história, sendo que esta
dores de Javé. reflexão, no nosso ponto de vista, é caminho
e condição para mudar os destinos: os seus
Sabemos que as narrativas com as quais dia- próprios e os de outros sujeitos. Como nos
logamos diariamente nas muitas conversas lembra Santos (1996), todo conhecimento é
com os sujeitos no trabalho de campo e com obrigatoriamente autoconhecimento.
nosso grupo de pesquisa são, a um mesmo
tempo, únicas e coletivas. Únicas porque o Pressupomos que seja através dessas narra-
sujeito que as vive, assim as sente – a dor tivas e das memórias que emerjam as experi-
da exclusão ou os sentimentos de pertenci- ências identitárias. E que são elas, articuladas/
mento a um grupo são experiências sentidas implicadas/imbricadas às práticas, que nos in-
por cada um como suas e, neste sentido, são dicam os caminhos a serem perseguidos para
intransferíveis, particulares. Entretanto, ao a compreensão desses sujeitos e de suas reali-

3 Específica aqui não significa absolutamente minoritária em termos quantitativos. Os últimos dados do
IBGE, datados de 2002 – é bom que se lembre – apontam para a população brasileira auto-declarada como brancos
e pardos sendo de aproximadamente 46% da população. Suspeitamos que, alavancados pelas políticas de ação
afirmativa, estes números hoje já tenham felizmente aumentado substancialmente.
dades, o que na verdade consiste na compre- juízos morais, estéticos e políticos. “a pa-
ensão da sociedade brasileira, de nós mesmos. lavra está sempre carregada de um conte-
údo ou de sentido ideológico ou vivencial”
A história de Javé ajuda-nos, então, a pensar (Bakhtin, op. cit. p.95). Por isso toda e qual-
nos objetivos que traçamos para nossa pesqui- quer palavra só pode ser lida, ouvida, com-
sa ao iniciá-la e os rumos que vem tomando, preendida a partir de um contexto histórico
a cada dia, com novos dados e mudanças que preciso.
vão re-inventando a pesquisa no cotidiano da
mesma – no processo – nos sugerindo algumas
Das identidades diaspóricas e
novas questões, tentando contar esta história
sua dinâmica
“a contrapelo”, como nos sugere Benjamin
(1994), sabendo As identidades são com-
que não ocupa- plexas e múltiplas, e
mos o lugar de brotam de uma história
Processos identitários não
“contadores ofi- de respostas mutáveis
ciais” dessas me-
são fenômenos fixados
às forças econômicas,
mórias e expli- e estáveis, já que as políticas e cul­turais,
21
cadores dessas identidades se estabelecem quase sempre em opo-
realidades. Ao na constante negociação do sição a outras identida-
invés disso, prio-
sujeito com seu meio, com a des (...). Elas florescem
rizamos deixar a despeito do nosso
história, com as produções
que falem os su- “desconhecimento” de
jeitos, ouvimos
discursivas que circulam
suas origens, isto é, a
os protagonistas socialmente. despeito de terem suas
sem nos colocar- raízes em mitos e men-
mos no lugar de tiras. (...) Não há, por
Antonio Biá, de tradutor dessas histórias, mas conseguinte, muito espaço para a razão
entendo-as em sua pluralidade e seu vínculo na construção das identidades (Kwame
com aquilo que é produzido na sociedade. Appiah, 1997, p. 248).

Trabalhamos, então, como nos orienta Processos identitários não são fenômenos
Bakhtin (2004). Segundo o autor, as palavras, fixados e estáveis, já que as identidades se
não são apenas sinais com os quais procura- estabelecem na constante negociação do su-
mos enunciar os fatos, mas signos com os jeito com seu meio, com a história, com as
quais pronunciamos verdades ou mentiras; produções discursivas que circulam social-
mente. Esses processos – de dizer-se, sentir- em uma dessas papelarias que faz serviços
se, pertencente a um grupo ou uma origem de fotocópia, viu um cartaz divulgando um
– estão carregados de complexidade e são curso pré-vestibular para negros e carentes.
muito mais da ordem do subjetivo que do A moça era negra e pobre, o que significava
objetivo. que não tinha condições de pagar um cursi-
nho para entrar na universidade, embora de-
A palavra identidade carrega logo no seu iní- sejasse se preparar para ingressar no ensino
cio outra palavra: idem, ou seja, “a mesma superior. Tal acontecimento a tornaria a pri-
coisa”. Somos sempre idênticos a alguém, meira pessoa em sua família a ter diploma
identificados com alguém (ou com um gru- de nível universitário. Entretanto, mesmo o
po). A alteridade é, portanto, constituinte do desejo de continuar os estudos não tornou
termo identidade. Passamos a vida perceben- simples a opção que a estudante teria que
do-nos como iguais a uns e diferentes de ou- fazer ao decidir-se pelo curso pré-vestibular
tros – às vezes não somente por meio de pala- para negros e carentes. Ela conta que
vras, mas por gestos, práticas, olhares, e todo
um conjunto de formas extraverbais, inclusi- Tratava-se de um projeto social voltado
ve pelo silêncio. Identidades são atualizáveis para negros e carentes – Pré-vestibular
22
e atualizadas, no encontro entre sujeitos, a para Negros e Carentes/PVNC4. A idéia das
partir do jogo social vigente (Agier, 2001). aulas gratuitas me parecia interessante,
pois não poderia pagar um cursinho e re-
Há pouco tempo tivemos a oportunidade de conhecia a dificuldade de passar para uma
ler no memorial de uma estudante – uma universidade pública sem “treinamento”,
educadora, pós-graduanda – sua narrativa a no entanto o que me maltratava era fazer
respeito de um processo de identificação – ou parte de algo para negros. Essa denomina-
de negação de uma identificação – pelo qual ção – negro – era pior aos meus olhos, na-
ela passou e que penso ser de grande utilida- quela época, do que me reconhecer pobre5.
de para ilustrar o que está sendo dito aqui.
A jovem levou ainda algum tempo para ava-
A moça havia terminado o Ensino Médio em liar se era mais problemático para ela assu-
uma escola pública e certo dia, ao entrar mir-se como negra e matricular-se no curso

4 O Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) é um movimento de educação popular, laico e apartidário,
que atua no campo da educação através da capacitação para o vestibular, de estudantes economicamente
desfavorecidos em geral e negros(as) em particular.
5 SILVA, Renata Aquino da. In: Identidades e práticas culturais afro-brasileiras: outros olhares dos movimentos
negros a partir de negros em movimento (projeto de dissertação de Mestrado, março de 2009, ProPEd/UERJ.)
em questão, ou ficar sem cursar a faculdade ficos, articulados aos discursos jurídicos e aos
e procurar outros meios para custear seus religiosos. Não é nossa intenção neste texto es-
estudos. Depois de passar algum tempo miuçar esta questão – nem espaço temos aqui
analisando o que ganharia e o que perderia para tal. Nosso interesse é partir da idéia des-
nessa escolha, optou por ingressar no curso sa produção discursiva, que desde o século XIX
e o que se seguiu foi a trajetória de uma es- ensinava que éramos/somos uma nação ma-
tudante negra em um curso pré-vestibular e culada pelos processos de mestiçagem, preju-
mais tarde na universidade pública. dicada em seu desenvolvimento pela presença
dos negros descendentes dos africanos, escra-
Esta passagem não deixa dúvidas de como não vizados nas Américas, que aqui se mantiveram
existe a assunção de identidade sem alterida- mesmo depois de não mais existir sua função
de. Assumimos de mercadoria. Segun-
um pa­pel, um do essas produções dis-
lugar social, na Assumimos um papel, um cursivas às quais nos
nossa relação lugar social, na nossa relação referimos, essas pesso-
com o Outro, sig- com o Outro, significando as não tinham muito
nificando o “jogo talento para a socie-
o “jogo social” vigente. É o
23
social” vigente. dade que se industria-
Outro quem nos diz e é ele
É o Outro quem lizava e para as suas
nos diz e é ele
quem interfere na forma tecnologias, além de
quem interfere como nos percebemos no não se afinarem nem
na forma como mundo. com o padrão estético
nos percebemos nem com o padrão éti-
no mundo. co europeu. Toda essa
produção discursiva, gestada no século XIX,
Existem muitos estudos importantes sobre os que atravessou o século XX, foi fazendo as pes-
processos de silenciamento e invisibilidade que soas negras e mestiças – a diáspora africana no
têm vitimado historicamente as populações Brasil – quererem ser outra coisa e nunca o
negras no Brasil. Práticas racistas que confir- que as identificasse com esses “grupos subal-
mam e são confirmadas pelos discursos cientí- ternizados”6.

6 Um dos textos que nos chama a atenção para os processos de assunção de uma “segunda pele” e as
relações deste processo identitário com a indústria cultural contemporânea é o de José Jorge de Carvalho “Racismo
fenotípico e estéticas da segunda pele”. Ali o autor expõe algumas ideias que, segundo ele mesmo, são desdobradas
em CARVALHO, José Jorge. “Transformações da Sensibilidade Musical Contemporânea”, Horizontes Antropológicos,
Ano 5, n.° 11, 59-118, 1999 e CARVALHO, José Jorge. “A Morte Nike: Consumir, o Sujeito”, Universa, Vol. 8, n.° 2, 381-
396. Universidade Católica de Brasília, junho 2000.
De ficções e de delicadeza extrema que se ajuntava ao

representações meu orgulho de inteligente e estudioso,


para me dar não sei que exaltada repre-
Memórias do Escrivão Isaías Caminha é um sentação de mim mesmo, espécie de ho-
texto no qual Lima Barreto retrata, dentre mem diferente do que era na realidade,
outras coisas, o racismo da sociedade bra- ente superior e digno a quem um epíte-
sileira ao final do século XIX. Ali o escritor to daqueles feria como uma bofetada.
ilustra também, em vários momentos, como Hoje, agora, depois não sei de quantos
é através dos olhos do “Outro” que forma- pontapés destes e outros mais brutais,
mos nossa identidade. O trecho em que o sou outro, insensível e cínico, mais for-
jovem Isaías Caminha, recém-chegado de te talvez; aos meus olhos, porém, mui-
sua cidade natal ao Rio de Janeiro para estu- to diminuído de mim próprio, do meu
dar, é chamado de “mulatinho” por um es- primitivo ideal, caído dos meus sonhos,
crivão de polícia, é lapidar. Enquanto o rapaz sujo, imperfeito, deformado, mutilado e
presta depoimento a respeito de um caso de lodoso.
furto, supondo ser uma testemunha, vai-se
desenrolando a trama na qual, em verdade, Não sei a que me compare, não sei mes-
o estudante é o principal suspeito do roubo, 24
mo se poderia ter sido inteiriço até ao
principalmente por ser negro. Na delegacia, fim da vida; mas choro agora, choro hoje
prestes a depor, Isaías Caminha ouve o es- quando me lembro que uma palavra
crivão Viveiros, que pergunta: — E o caso do desprezível dessas não me torna a fa-
Jenikalé? [nome do hotel] Já apareceu o tal zer chorar. Entretanto, isso tudo é uma
“mulatinho”? questão de semântica: amanhã, dentro
de um século, não terá mais significação
O narrador-personagem segue contando ao injuriosa.
leitor o impacto que lhe causou a pergunta,
principalmente pela expressão utilizada: O texto literário nos oferece pistas a respeito
da sociedade e do tempo histórico em que
Não tenho pejo em confessar hoje que foi escrito. O discurso da arte dialoga com
quando me ouvi tratado assim, as lágri- o discurso extra-artístico e consiste em uma
mas me vieram aos olhos. Eu saíra do formação social afetada por outra forma-
colégio, vivera sempre num ambiente ar- ção, o discurso da vida (Bakhtin, 1976). A
tificial de consideração, de respeito, de ficção pode ser tratada, assim, como uma
atenções comigo; a minha sensibilidade, forma de teoria social, não porque fazer te-
portanto, estava cultivada e tinha uma oria tenha sido a intenção do escritor, mas
porque os autores são sujeitos sociais, o que tricular-se no curso pré-vestibular. A mesma
vincula inexoravelmente a sua produção a representação, que fez o jovem Caminha
um tempo e a um espaço e a um meio. Não chorar, fez a moça pensar duas vezes antes
há como escapar desse pertencimento, que de procurar o curso para se matricular.
se reflete de uma maneira ou de outra na
obra literária. Tanto a história de Isaías Caminha quanto a
da jovem educadora remetem à desqualifi-
A narrativa de Lima Barreto data de uma épo- cação de um grupo social: são exemplos da
ca e de uma sociedade em que ser chamado construção histórica de apagamento/silen-
de mulato poderia ferir como uma bofetada ciamento das populações negras e mestiças
um jovem estudante negro. Rapaz de sensi- neste país.
bilidade cultivada, Isaías Caminha sentiu-se
ferido em sua delicadeza extrema e em seu São exemplos, por fim, da falta de escuta da
orgulho de inteligente e estudioso ao ser tra- sociedade para essas histórias e memórias
tado de mulato pelo escrivão. O que vem a e da desqualificação das suas práticas e dos
confirmar, primeiramente, o que vínhamos seus saberes – a invisibilização dos conheci-
falando sobre os processos identitários se- mentos, lógicas, tecnologias desenvolvidas
25
rem da ordem do subjetivo e dizerem respei- por estas populações. Discursos nos quais a
to em muito às formas como o Outro nos vê. negação vem acompanhada de desqualifica-
E, depois, confirma ainda como têm sido re- ção, impedindo processos de pertencimento
presentados os sujeitos afrodescendentes na das novas gerações. Esses discursos vão ser-
sociedade brasileira, historicamente; e, por vir ainda para a criação de um estereótipo
último, denuncia uma utopia do narrador- que fixa esses grupos em um passado distan-
personagem: a esperança de que as coisas te e uma origem.
mudassem e um dia não houvesse mais sig-
nificação pejorativa em ser chamado de mu- O estereótipo representa a principal estra-
lato. Como ele mesmo diz: isso tudo é uma tégia para identificar esses sujeitos como
questão de semântica: amanhã, dentro de um aqueles que estão sempre no lugar, já conheci-
século, não terá mais significação injuriosa. do, e sempre ansiosamente repetido (Bhabha,
1998, p.105). As populações afrodescenden-
Entretanto, suspeitamos que as mudanças tes, apesar de constituírem mais que 45%
às quais se referia Lima Barreto não chega- da população brasileira, segundo os últimos
ram a tanto em pouco mais de um século. Se dados do IBGE, infelizmente ainda são trata-
assim o fosse, a jovem educadora não teria das como o Outro, aquele de quem “falamos
tido dificuldade em assumir-se negra ao ma- sobre”.
Como nos lembra Todorov (2003) não é so- ________ Marxismo e Filosofia da Linguagem.
mente com armas que os conquistadores São Paulo: Hucitec, 2004. (10a Edição).
conquistam e dominam o mundo, mas, an-
tes, com e pelas palavras. Segundo o autor, ________ VOLOSHINOV, V. N. Discourse in
a conquista do “Novo Mundo” de modo al- life and discourse in art (concerning socio-
gum teria se efetivado sem a conquista das logical poetics). In: _____. Freudianism. A
almas, sem a tentativa de apagamento da marxist critique. New York Academic Press,
história dos milhares de ameríndios e negros 1976. (Tradução de Cristóvão Tezza para fins
africanos. Acrescentaríamos que é pela pa- didáticos)
lavra e pela tomada da mesma que se pode
pensar em reparar – ou pelo menos minimi- BARRETO, Lima. Memórias do Escrivão Isaías
zar os danos causados por este apagamento. Caminha. In: http://vbookstore.uol.com.br/
Se a palavra é/tem sido usada para apagar nacional/limabarreto/isa%EDas.PDF, acessa-
a história de muitos e negar-lhes pertenci- do em dezembro de 2008.
mento, é possível usá-la também para nar-
rar as muitas histórias de processos identi- BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e po-
tários, de alianças, de práticas. Em resposta lítica. São Paulo: Brasiliense, 1994.
26
à palavra silenciadora uma contra-palavra
que rememora, ou as tantas outras possíveis BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Ho-
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Texto 2

Questões ecológicas no cotidiano


Educação Ambiental: práticas e praticantes1

Neila Guimarães Alves2

Falar que o mundo vive uma profunda crise inventando mil maneiras de fazer (Certeau).
ambiental e que suas causas são a organiza- As soluções não são únicas, portanto.
ção socioeconômica globalizada e o cresci-
mento populacional desordenado, além de Por isso, também é necessário outro enfoque
não ser uma afirmação nem um pouco expli- da realidade, que reveja e forneça alternati-
cativa, não contribui para encontrar soluções vas à atual concepção hegemônica de orga-
possíveis. Já não basta constatar a existência nização social, política e econômica. Estas
dos problemas, é preciso buscar alternativas, alternativas já existem, mas são pouco dis- 27
saídas. Do mesmo modo que é insuficiente cutidas nas escolas de qualquer nível - Ensi-
falar de pequenos e grandes problemas locais no Fundamental, Médio ou Superior. Dentre
ou globais isoladamente, buscando linear- elas, aquela com a qual mais me identifico
mente suas causas e conseqüências. está sintetizada em livro escrito por Manfred
Max-Neef, com a colaboração de Antonio Eli-
As questões ambientais, com as quais a hu- zalde e Martín Hopenhayn, sob o título de
manidade vem se deparando, têm natureza Desenvolvimento em escala humana: concei-
complexa, assim como são interligadas e tos, aplicações e algumas reflexões3.
interdependentes. Por isso, elas não podem
ser compreendidas cada qual de per si, nem Esta proposta, no meu entender, tem a vir-
deixar de incluir as suas inter-relações e as tude de inverter a lógica até agora vigente
tentativas de soluções que vão surgindo no e apontar para a possibilidade de uma nova
cotidiano, a partir dos praticantes que vão visão de mundo, na qual o desenvolvimento

1 Texto escrito para o programa Salto para o Futuro da TV Escola (MEC).


2 Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
3 O livro está originalmente em espanhol, sob o título de Desarrollo a escala humana: conceptos, aplicaciones
y algunas reflexiones. As traduções aqui presentes foram feitas pela autora deste texto.
se refere às pessoas e não aos objetos (Max- vir a seu propósito básico devem, por sua
Neef et al., 1998, p. 40). Ela propõe, portan- vez, apoiar-se sobre uma base sólida. Essa
to, que passemos a pensar o desenvolvimen- base se constrói a partir do protagonismo
to do ser humano, em todas as suas muitas real das pessoas, como consequência de
dimensões, o que entendo ser um dos ob- privilegiar tanto a diversidade como a au-
jetivos da Educação Ambiental. Assim, Max- tonomia de espaços em que o protagonis-
Neef e seus colaboradores nos ensinam que: mo seja realmente possível (Max-Neef et
al., 1993, p. 30).
(…) tal desenvolvimento se concentra e
sustenta É, portanto, a partir
na satisfa- das discussões que
ção das ne- Em nossa sociedade, nos são trazidas por esse
cessidades é ensinado que sempre livro, que afirmo que
humanas ‘surgem’ novas necessidades, o ser humano necessi-
fundamen- ta de uma nova visão
com base na crença de que
tais, na de mundo, que tenha
elas são infinitas; quando,
geração de como base as nossas
níveis cres-
na realidade, estas são necessidades funda- 28

centes de quase sempre necessidades mentais, novas rela-


autodepen- materiais artificialmente ções com a natureza,
dência e na criadas para aumentar o que considere seus
articulação espaçostempos de re-
consumo e o lucro de quem
orgânica cuperação e também
as produz.
dos seres outras relações hu-
humanos manas mais solidárias
com a natureza e a tecnologia, dos proces- e justas, que se expressem em novas formas
sos globais com os comportamentos locais, de organização social, política e econômica.
do pessoal com o social, da planificação
com a autonomia e da sociedade civil com Mas considero que este livro dá vários pas-
o Estado. sos à frente quando propõe que, inicial-
mente, precisamos reconhecer quais são
Necessidades humanas, autodependên- as nossas verdadeiras necessidades funda-
cia e articulações orgânicas são os pilares mentais, já que estas são finitas, poucas e
fundamentais que sustentam o Desenvol- classificáveis (id., p. 42). O que há de impor-
vimento em Escala Humana. Mas para ser- tante nesta afirmativa é a inversão de valo-
res em relação ao ideário hegemônico. Em que pode satisfazer às nossas necessidades
nossa sociedade, nos é ensinado que sempre de subsistência, segurança, participação,
‘surgem’ novas necessidades, com base na criação, identidade e liberdade. Enquanto
crença de que elas são infinitas; quando, na que a necessidade de subsistência pode ser
realidade, estas são quase sempre necessi- satisfeita por vários satisfatores como ali-
dades materiais artificialmente criadas para mentação, abrigo, saúde, adaptabilidade,
aumentar o consumo e o lucro de quem as além do trabalho.
produz. Então, os autores nos surpreendem,
afirmando que: Os autores acrescentam ainda que

(…) as necessidades humanas fundamen- (…) cada necessidade pode ser satisfei-
tais são as mesmas em todas as culturas ta em níveis diferentes e com distintas
e em todos os períodos históricos. O que intensidades. Mais ainda, se satisfazem
muda, através do tempo e das culturas, em três contextos: a) em relação a nós
é a maneira ou os meios utilizados para mesmos (...); b) em relação ao grupo so-
a satisfação das necessidades (id., ib.). cial(...); e c) em relação ao meio ambien-
te(...). A qualidade e intensidade tanto
Mas quais são estas necessidades funda- dos níveis como dos contextos depende- 29

mentais? Para os autores, elas são apenas rá de tempo, lugar e circunstância (id.,
nove: subsistência, proteção, afeto, enten- p. 43).
dimento, participação, ócio, criação, identi-
dade e liberdade (id., p. 41) e que podem ser Outra questão apresentada por Max-Neef
satisfeitas (ou não) por diferentes ‘satisfato- e seus colaboradores é de que não existe
res’. Para eles pobreza, mas sim, pobrezas. Com isso eles
querem dizer que, para cada necessidade
(…) o que está culturalmente determi- fundamental não satisfeita, é gerado/gera
nado não são as necessidades humanas um tipo de pobreza. Portanto, as pobrezas
fundamentais, mas os satisfatores des- existem quando carecemos de formas de
sas necessidades. A mudança cultural subsistência, mas também quando vive-
é – entre outras coisas – consequência mos sem afeto, nem proteção; quando fal-
de abandonar satisfatores tradicionais ta entendimento das coisas que nos cer-
para substituí-los por outros novos e di- cam; quando não há participação na vida
ferentes (p.42). que palpita em torno de nós, ou quando
carecemos de ócio e da capacidade/pos-
Assim, por exemplo, trabalho é um satisfator sibilidade de criação; quando desconhe-
cemos ou perdemos nossa identidade, ou com enfoques tradicionais e ortodoxos.
nossa liberdade. Não tem sentido curar um indivíduo para
em seguida devolvê-lo a um ambiente en-
Resumindo as questões que os autores co- fermo. Cada disciplina, na medida em
locam: que foi se tornando mais reducionista e
tecnocrática, criou seu próprio âmbito
(…) qualquer necessidade humana fun- de desumanização. Voltar a nos huma-
damental nizar dentro de cada
não satis- disciplina é o grande
feita de
... as pobrezas existem
desafio final. Em outras
ma­neira quando carecemos de palavras, só a vontade
adequa- formas de subsistência, de abertura intelectu-
da pro- mas também quando al pode ser o cimento
duz uma fecundo para qualquer
vivemos sem afeto, nem
pato­logia; diálogo ou esforço
proteção; quando falta
até agora, transdisciplinar que te-
se desen-
entendimento das coisas
nha sentido e que apon-
volveram que nos cercam; quando te para solução das pro-
30

tratamen- não há participação na vida blemáticas reais que


tos para que palpita em torno de afetam o nosso mundo
com­bater
nós, ou quando carecemos atual (id., p. 48).
patologias
de ócio e da capacidade/
individu- Com tudo isso, o que
ais ou de
possibilidade de criação;
está sendo propos-
pequenos quando desconhecemos ou to pelos autores é o
grupos, perdemos nossa identidade, estabelecimento de
(...) para ou nossa liberdade. um novo paradigma
as quais os de política de desen­
tratamen- volvimento, esta ago­
tos aplicados têm sido ineficazes. Para ra orientada para a satisfação das necessi-
uma melhor compreensão destas pato- dades humanas fundamentais, superando a
logias coletivas é preciso estabelecer as racionalidade econômica convencional que
necessárias transdisciplinaridades. (...) prega a satisfação das leis do mercado e a
Novas patologias coletivas se originarão necessidade de realização de lucros crescen-
a curto ou longo prazo, se continuarmos tes e sempre privatizados por muito poucos.
É, portanto, possível criar uma filosofia e que nos falam Max-Neef, Antonio Elizalde e
uma política de desenvolvimento autentica- Martín Hopenhayn, praticando a educação
mente humanista a partir do estabelecimen- ambiental da qual nos fala Marcos Reigota
to de relações satisfatórias entre as necessi- (2001):
dades e seus satisfatores.
(…) a educação ambiental é uma pro-
O livro segue apresentando uma série de posta que altera profundamente a edu-
quadros que estabelecem essas relações e cação como a conhecemos, não sendo
que classificam os satisfatores para, a se- necessariamente uma prática pedagó-
guir, desenvolver, de forma bastante clara, a gica voltada para a transmissão de co-
oposição entre a lógica econômica e a ética nhecimentos sobre ecologia. Trata-se de
do bem-estar. Diz o autor: uma educação que visa não só a utiliza-
ção racional dos recursos naturais (...),
(…) a uma lógica econômica, herdada da mas basicamente a participação dos ci-
razão instrumental que impregna a cul- dadãos nas discussões sobre a questão
tura moderna, é preciso opor uma ética ambiental. Considero que a educação
do bem-estar. Ao fetiche das cifras deve ambiental deve procurar estabelecer
opor-se o desenvolvimento das pessoas. 31
uma “nova aliança” entre a humanida-
Ao manejo vertical por parte do Estado de e a natureza, uma “nova razão” que
e à exploração de uns grupos por outros não seja sinônimo de autodestruição e
há que se opor a gestação de vontades estimular a ética nas relações econômi-
sociais que aspiram à participação, à au- cas, políticas e sociais. Ela deve se ba-
tonomia e a uma utilização mais equita- sear no diálogo entre gerações e cultu-
tiva dos recursos disponíveis. (id., p.92). ras em busca da tripla cidadania: local,
continental e planetária, e da liberdade
Enfim, a proposta apresenta alternativas políti- na sua mais completa tradução, tendo
cas, econômicas e de organização social para a implícita a perspectiva de uma socieda-
superação da ordem injusta vigente, mostran- de mais justa tanto em nível nacional
do que, para a crise em que nos encontramos, quanto internacional (p. 10-11).
existem saídas capazes de estabelecer uma
vida mais justa e fraterna para todos. Foi na prática dessa educação que encon-
trei algumas alunas praticantes ecológicas
Considero que a nós, educadores, cabe o que - sendo pessoas comuns - buscam em
papel de difundir esses conhecimentos, bus- seus cotidianos uma postura ética na crítica
cando novos aliados no ‘protagonismo’ de à organização (política, social e econômi-
ca) vigente na nossa sociedade. Em outras Com elas e outros praticantes de tantos coti-
palavras, com suas práticas criticam a ex- dianos podemos entender como uma pessoa
ploração sem limites aos bens ambientais, vai-se formando um ‘praticante ecológico’.
a manutenção das desigualdades e de ex- Para isso, é preciso escutar suas histórias,
clusão social e ambiental, o consumismo, buscando compreender por que processos
a mentalidade e prática que priorizam o ter se faz possível tecer, cotidianamente, novos
e desvalorizam o ser, o ideal de desenvolvi- conhecimentos e novas significações sobre
mento a qualquer preço, etc. E, sobretudo, o mundo, com os seres que nele vivem, e,
possuem a postura de, mesmo de formas di- com isso, ressignificando suas ‘artes de fa-
ferenciadas, buscar fazer mais pelos outros zer’ (Certeau, 1994), em ‘artes de fazeres eco-
e por seus entornos. lógicos’.

32
Texto 3

A criação de tecnologias no cotidiano


Trapeiros, poetas e... cineastas – crianças narradoras1

Carmen Lúcia Vidal Pérez2

Assumir outros referenciais para pensar a brar e ([se possível] compreender o que está
aprendizagem [escolar] incorporada ou in- por “dentro”, envolvido e obliterado em
corporadora requer compreender que lida- nosso ponto de vista.
mos nas relações humanas com processos e
com múltiplas possibilidades de variação e Na discussão do visível e do invisível fica
de inflexão, que se ligam e/ou se im-plicam negligenciada a condição do sujeito e sua
com outras possibilidades de compreensão variação. Quais experiências constitutivas
e de captura do vivido. (bildung) se dão na instalação de um ponto
de vista? Que temporalidades lhes são pró-
33
Assim, entendo a sala de aula como um prias? Que ethos as rege? Que hipóteses de
“ponto de dobra”, em que a aprendizagem vida foram formuladas? Tais questões nos
se configura como uma variação de possibi- inspiraram a pensarpraticar a sala de aula
lidades. Explico (outra dobra): no movimen- como produção-variação-emergência de di-
to de dobra há a variação do ponto de vista, ferentes pontos de vista; como um espaço
uma variação contínua de lugares de foco de produção de experiências; como uma
– ponto de inflexão de linhas perceptivas di- comunidade narrativa. As crianças com as
versas. Assim, a mudança de ponto de vista quais pesquisamos e suas famílias traba-
não é apenas a variação de uma posição, um lham no lixão ou nos centros informais de
lugar geográfico ou social, é o ponto sobre reciclagem, sujeitas a duras jornadas, com
uma variação: um ponto dobra – elástico ganhos entre R$ 1,00 [um] ou R$ 2,00 [dois]
ou plástico, no dizer de Deleuze (1991). No reais por turno trabalhado, além da exposi-
trabalho com as crianças, buscamos vislum- ção de sua saúde a toda sorte de dejetos.

1 O texto tem como coautora Luciana Pires Alves, professora da rede municipal de educação de Duque de
Caxias e regente da turma do 3º ano de escolaridade da Escola Municipal Ana Nery, na qual realizamos a pesquisa.
Bolsista da Faperj no projeto “Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e
saberes no cotidiano escolar”, coordenado por Carmen Lúcia Vidal Pérez.
2 Professora da Universidade Federal Fluminense.
Trabalho com o lixo é atualmente a única alter- vive do lixo, ou seja, 170.000 brasileiros são ca-
nativa para as pessoas que não se encaixam nos tadores.
padrões de formação exigidos para empregabi-
lidade: capacidade de se manterem aptas para Crianças que catam lixo para sobreviver e
o mercado de trabalho, segundo as tais sete que na escola são tratadas como lixo, tra-
competências: preparo técnico, capacidade de peiros-poetas, no dizer de Benjamim4. Crian-
liderar pessoas, habilidade política, habilidade ças-narradoras e sucateiras que fraturam o
de comunicação oral e escrita em pelo menos discurso da hospitalidade [hostil] da escola
dois idiomas, habilidade em marketing e em e tecem suas narrativas nas franjas da nar-
vendas, capacidade de utilização dos recursos rativa [e da história] oficial – restos de fios
tecnológicos, aparência agradável e adequada3. deixados de lado como algo que não tem
Competências sustentadas por uma política significação, importância ou sentido: suas
cognitiva ancorada em princípios universais e experiências, suas hipóteses de vida, seus
invariantes, que desejos, sonhos, afe-
recusa o caráter tos e saberes.
Uma câmera de filmar e
inventivo, limi-
uma turma de 26 crianças:
tada a um con- Câmera, Ação! Corta!
o que pode acontecer? As 34
junto de desem- Apaga!...Apaga! O cine-
crianças da escola pública na
penhos possíveis ma como experiência.
Baixada Fluminense podem
e previsíveis que A aula como aconte-
fazer um filme?
engendra tanto cimento. A aprendiza-
a formação de gem como invenção
peritos e a residualização de boa parte da po-
pulação brasileira: um em cada mil brasileiros Uma câmera de filmar e uma turma de 26

3 EMPREGABILIDADE é um conceito amplo que não significa apenas ter um emprego e sim a capacidade
de ter trabalho e renda sempre. Quem sabe usar sua empregabilidade consegue tomar conta de sua carreira e cria
condições para ter trabalho sempre, não importando a sua idade, seu modo de pensar nem a sua área de atuação.
As empresas hoje esperam de seus empregados: liderança; facilidade de comunicação; flexibilidade e capacidade
de adaptação a mudanças; entusiasmo para aprender; conhecimento de idiomas e informática; engajamento nos
resultados da equipe; ambição de carreira; escrever com clareza e de acordo com cada situação; capacidade de
organizar e transmitir suas ideias; ser criativo ao resolver problemas e tomar decisões; saber lidar com diferentes
situações.
4 Para Benjamim, o narrador também seria a figura do trapeiro, do Lumpenproletário, do catador de sucata
e de lixo, personagem das grandes cidades, que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza,
certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder, de não deixar nada ser esquecido. Figura-
estandarte da miséria humana, recolhendo tudo aquilo que a sociedade rejeita. Do nosso ponto de vista, a criança
narradora se identifica com o trapeiro e o poeta, que colecionam sobras, cacos, fragmentos ou destroços e os
renovam, ressignificam e (re)inventam a experiência do mundo.
crianças: o que pode acontecer? As crianças a paixão de conhecer, as experiências vivi-
da escola pública na Baixada Fluminense po- das e os estudos realizados com as crianças,
dem fazer um filme? Logo com essas crian- vivemos cotidianamente um processo de
ças! Uma loucura! As crianças vão quebrar a emergência, em que conceitos científicos e
câmera! O grupo é muito grande!? É impos- conceitos cotidianos se integram para ali-
sível fazer um filme.... mentar a curiosidade e a busca do grupo. A
aventura humana de fixar imagens [desde a
Apresentamos para as crianças a ideia: fazer câmera escura à imagem em movimento]
um filme coletivamente. Um filme feito na nos possibilita a experiência com a técni-
altura dos olhos das crianças – o outro. A ca e com o instrumento – a câmera de filmar
câmera e as filmagens despertaram diferen- faz parte do estudo da fotografia, da ótica,
tes sentimentos: assombro, dúvida, desejo do cinema e da memória.
de participar, proximidade, conflito e curio-
sidade. A câmera como um instrumento nos condu-
ziu aos estudos de ótica. O instrumento não
Uma curiosidade que nos coloca diante do só de filmagem, mas em seu sentido históri-
aparelho de filmar, diante da relação entre co e cultural – em seu conceito de aparelho
magia e técnica, crianças ao redor da câ- 35
óptico. A curiosidade como princípio auto-
mera vendo umas as outras e se pergun- organizador nos possibilitou ampliar a bus-
tando: Como paramos aí dentro? Dominar o ca e, ao mesmo tempo em que encontráva-
aparelho: liga/desliga, conecta e desconec- mos algumas respostas às nossas questões,
ta a bateria, aperta o botão – a aprendiza- íamos, paulatinamente, nos apropriando [e
gem acontece rápida e naturalmente. Ah! A reconstruindo] a história do instrumento e
curiosidade da criança! Aquela companheira de suas técnicas.
tantas vezes esquecida e/ou relegada ao se-
gundo plano na sala de aula. Mentes curio- A câmera escura nos levou, em muitas tar-
sas e inquietas fuçam daqui, perguntam dali des de sol, para o pátio em busca do melhor
e muito rapidamente põem tudo para fun- ponto de observação e da luz que inundasse
cionar. Dominar o instrumento é o desafio as caixinhas, para que a imagem invertida se
que a curiosidade suscita. Vencido o desafio, fizesse em nossas pequenas telas de papel
vem o assombro: como as imagens entram fino. Diante da última tecnologia, lá estáva-
na câmera? mos nós, mergulhados no passado de um
olhar que não tem a rapidez e a nitidez do
Entrelaçando a aula com a experiência de hoje, mas é borrado e esperado como peri-
fazer o filme, com a inteligência prática e pécia.
A câmera escura, o eletroscópio, a decom- em que a única possibilidade de saber é pela
posição da luz, o campo visual, os jogos de letra: primeiro aprender a ler e a escrever,
espelho e ilusões de ótica, assim como as má- depois aprender o conhecimento.
quinas de ver, o olho biônico, a lupa, o ócu-
los, as sombras..., vamos elaborando nosso A presença da câmera e a proposição do re-
currículo praticado e a aula vai acontecendo. gistro permite o estudo das relações entre
cognição e aprendizagem de uma perspecti-
A câmera detona diferentes processos, o va diversa da lógica elementarista e da lógi-
inusitado: podemos fazer um filme? A in- ca associacionista6, subjacentes às práticas
vestigação: um de ensino. Voltar-se
filme sobre o para a câmera e para
quê? O reconhe- A câmera na sala de aula as possibilidades da
cimento: um não significa uma estratégia filmagem é voltar-
filme sobre nós se para as imagens
pedagógica, mas uma
mesmos? Pro- cristalizadas de si
tática de enfrentamento
cessos que vio- [pessoas – Luciana,
lentam nossas – uma forma de violentar a Alexandre, Gleice,
esquivas sensó- ordenação lógica da cidade etc.; personagens – a 36

rio-motoras5. A dos letrados, em que a única professora, o aluno;


câmera tem nos possibilidade de saber é pela entidades – o conhe-
possibilitado re- cimento, a aprendiza-
letra: primeiro aprender a ler
encontrar um gem; instituição – a
e a escrever, depois aprender
lugar para além escola, etc.].
da condição de
o conhecimento.
descarte. A produção do regis-
tro fílmico na escola
A câmera na sala de aula não significa uma pelas crianças captura a percepção do ou-
estratégia pedagógica, mas uma tática de tro e nos permite reconhecer [a partir da ex-
enfrentamento – uma forma de violentar periência inusitada, para nós] as diferentes
a ordenação lógica da cidade dos letrados, formas do processo de aprendizagem – que

5 Esquivas sensório-motoras – mecanismos que permitem nossa organização perceptiva, pois captamos o
que estamos interessados em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas
experiências psicológicas (Deleuze, 2006, p. 31).
6 Lógica elementarista - o comportamento pode ser descrito, o processo cognitivo objetivado e a
aprendizagem predita, modelada e modulada. Lógica associacionista - associação entre estímulo e resposta, reforço
e comportamento, ensino e aprendizagem, etc.
deveria ser ordinário na escola – da leitura são lidos como vazio na escola? O trabalho
e da escrita. Como num jogo de espelhos, com os signos presentes na vida cotidiana
o extra-ordinário potencializa o ordinário: nos possibilita fugir desta inteligibilidade
alfabetizar-se. decifradora predominante na escola? A epis-
temologia escolar se organiza [e é organiza-
As crianças, ao criarem seus caminhos com da por] um excesso de significação? Além da
a câmera, vivenciam um aprender em li- função ou do jogo simbólico, o modelo cog-
berdade que se transporta para escrita. Da nitivo escolar “empurra goela abaixo” das
“confusão” de símbolos surgem possibilida- crianças um sentido único de civilização?
des de criar um outro espaçotempo na/da/
para a escola. Outras Ecologias Cognitivas7 A câmera que possibilita a gravação das au-
vão se fazendo presentes, o verbal e a ima- las, dos passeios, das brincadeiras é, para
gem; a história do bairro e as histórias de nós, um poderoso artefato de pesquisa, pois
vida; o afetivo e o cognitivo, etc. nos permite (re)ver a diversidade de ele-
mentos e detalhes – pequenos, quase nada
As relações das crianças com a câmera (ins- presentes nas histórias da vida das crianças
trumento), com a linguagem (imagem), com – com os quais vamos tecendo nossas leitu-
o texto (o filme) nos possibilitaram perceber 37
rasinterrogações sobre “vazios” e “ausên-
o exagero da decifração na função simbólica cias” e sua relação com os processos cogni-
que o modelo cognitivo escolar preconiza, tivos em geral e a aprendizagem escolar, em
prescreve e pratica. Na epistemologia esco- particular.
lar não há lugar para o vazio, o que parado-
xalmente engendra o próprio o vazio episte- No desenrolar das filmagens, pudemos ob-
mológico da escola. Por que temer o vazio? servar como as crianças vão configurando
seus centros de atenção [pela fixação das
A reflexão sobre o vazio epistemológico da imagens e de seus focos] e produzindo suas
escola nos coloca diante de questões que narrativas visuais e escritas.
podem nos conduzir à formulação de polí-
ticas cognitivas mais justas para as crianças O filme se faz no agenciamento coletivo de
das classes populares: os signos cotidianos enunciações8 pelo contágio de ações cria-

7 Ecologias Cognitivas- remete à idéia de multiplicidade lógica, percepções e linguagens superando o


modelo único de racionalidade moderna, o que inclui, na discussão da cognição, questões sociais, temporais e
subjetivas.
8 O agenciamento coletivo de enunciações implica a desconstrução do sujeito como um mesmo: sua voz dilui-
se e incorpora a multiplicidade de vozes nas quais ecoam substituições, interferências, variâncias, singularidades
doras que engendram uma proximidade em produzir um filme com as crianças confir-
que a especificidade dá lugar à multiplici- ma as palavras de Certeau quando afirma
dade e à conversa entre funções criadoras e que “(...) a história das andanças do homem
funções mudas9. O filme reinventa a escrita através de seus próprios textos está ainda
– as crianças filmam o que escrevem e escre- em boa parte por descobrir” (1998, p. 265).
vem o que filmam, reinventando a escrita e
o cinema. A produção do filme obedece à lógica da des-
coberta – que estrutura tanto o pensamen-
O filme é tecido pelas leituras de mundo das to infantil, quanto suas ações cotidianas e
crianças, é produzido por leitores – que não exige o exercício de uma razão ampliada
tomam nem o lugar do autor, nem o lugar que possibilite resgatar aqueles saberes não-
de escritores. No filme, as crianças (re)in- oficiais, não institucionalizados, [que (in)
ventam os textos cotidianos de suas vidas, formam as lógicas operatórias presentes na
combinam fragmentos e preenchem o va- vida cotidiana e (de)formam a lógica formal
zio do “não-sabido”. As imagensescrituras se da escola], saberes que emergem da memó-
fundam na pluralidade indefinida de signi- ria cultural adquirida de ouvido por tradi-
ficações. O filme é o efeito, tanto da leitura ção oral e subvertem as estratégias de inter-
38
que as crianças realizam de um complexo rogação semântica da [e na] escola.
sistema de signos verbais-icônicos, quanto
de suas errâncias e inventividades, que jo- As filmagens possibilitam que as crianças
gam com as expectativas, as astúcias e as vejam “em ação”, as falas, os olhares, as pos-
normatividades da obra lida – o mundo e a turas, essa difícil tarefa de habilitar a si diante
escrita. dos seus olhos10. Após cada filmagem, assisti-
mos imediatamente ao material gravado e
As imagensescrituras possibilitaram a cons- discutimos coletivamente. Esse é o momen-
trução de significações – a palavra escrita to de críticas e sugestões de ajustes e/ou
flui do textofilme carregada de significação correções. A análise e a avaliação do resul-
existencial traduzindo as percepções das tado são rigorosas e como todas as crianças
crianças em linguagem. A experiência de fazem e recebem críticas [quem está criti-

- já não contam apenas a presença física do outro [sua eleição de objetos e sua dinâmica de percepção do mundo],
as linhas de desenvolvimento e a prova de conhecimentos.
9 No presente texto referimo-nos às funções criadoras como os usos não estabelecidos de linguagens e
instrumentos e as funções mudas como o uso escolar da escrita – o autor como sujeito da enunciação que reproduz
os significados dominantes e os enunciados autorizados pela rede de saberpoder da escola.
10 A esse respeito ver Fanon, Franz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.
cando hoje, pode estar filmando amanhã] tro emocionar surge quando aquele coletivo
consideramos esse o ponto alto da “aula”, aceita, não o outro, mas a si na legitimidade
momento privilegiado de práticas de inte- da convivência. A negação social de si é um
ração, de reflexão sobre o vivido, aprendiza- forte mecanismo de subalternização ligada
gem compartilhada e tomada de decisões, a uma política cognitiva em que a diferen-
bem como de fortalecimento das relações ça está além da desigualdade social, corres-
de pertencimento e de produção de um ou- pondendo à condição de descarte ou obso-
tro emocionar: lescência: “O refugo é o segredo sombrio e
vergonhoso de toda produção” (BAUMAN,
“(...) não é para filmar só pés e pernas”, 2005, p.21). A interdição de sua forma de ser,
“tem que filmar a cara das pessoas”, “a de seu falar e agir, de seus corpos, histórias
cara só não, a pessoa inteira”, “a Milena e espaços produz espelhos da falta, da cen-
só filma pé”, “filmar tremido também sura ou ausência e, talvez um Narciso (às
não pode”, “mas quem não fica quieto avessas) que ame apenas o reflexo do outro.
não sai na câmera”, “claro que sai, e um
filme”, “filme a gente grava todo mun-
do andando e se mexendo”, “não é igual
Referências Bibliográficas
39
a tirar retrato”, “eu não estou ouvin- BAUMANN, Zygmunt. Modernidade liquida.
do nada!”, “tem muito barulho”, “todo Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
mundo fala ao mesmo tempo”, “o Cilas
não cala a boca”, “não pode falar e filmar BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas I - magia
ao mesmo tempo”, “esse filme não pres- e técnica, arte e política. São Paulo: Brasilien-
ta”, “apaga, apaga...”, “Vamos gravar de se, 1994.
novo”, “outra vez a tia Genilda...”, “coita-
da, ela não agüenta mais”, “já sabe até CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidia-
o que o Mateus vai perguntar”, “também no 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994,
ele demora para ler”, “dessa vez vai dar 3ª ed.
certo”, “ninguém pode falar”,....
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. São Pau-
A câmera, através do registro fílmico, é um lo: Editora Forense Universitária, 2006.
instrumento de multiplicar tempos e de de-
bruçar sobre si: - “Olha como você filmou?”, _____________. A Dobra. Campinas: Editora
“A barraca, a barraca... Tá escrito coca- Papirus, 1991.
da?” “Cachorro-quente?”” Coca-cola é Um
real...”. Um limiar se torna presente, um ou- FANON, Franz. Os Condenados da Terra. Juiz
Presidência da República

Ministério da Educação

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TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO

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Junho de 2009

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