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Cotidianos, imagens
e narrativas
Secretaria Ministério da
de Educação a Distância Educação
Sumário
Moacyr Scliar, ao discorrer sobre a função E além disso, as imagens também são for-
educativa da leitura literária, em apresenta- mas narrativas. O que um vídeo ou uma
ção no 8º COLE, o conceituado Congresso fotografia, por exemplo, evocam? Que im-
de Leitura e Escrita, promovido pela Associa- portantes descobertas possibilitam? De que
ção de Leitura do Brasil, desafiou o público forma utilizá-los como fontes, documentos
com a instigante questão: Somos o que le- que permitem um olhar para um determi-
mos ou lemos o que somos?1 nado tempo/espaço, para uma instituição,
para uma pessoa? No caso das escolas, em
Por analogia, propomos a seguinte reflexão especial, essas imagens e narrativas nos
para a imersão nos textos e programas que ajudam a compreender a história e o coti-
compõem a série Cotidianos, imagens e narra- diano dessa instituição em que, como alu-
tivas, do programa Salto para o Futuro: Somos nos, professores, funcionários, familiares, 3
A reflexão sobre as relações interculturais enfrenta uma dificuldade particular: é que todo
mundo, desde sempre, parece de acordo com seu estado ideal. O fato é digno de nota: enquan-
to os comportamentos racistas pululam, ninguém se confere uma ideologia racista. Todos são
pela paz, a coexistência dentro da compreensão mútua, pelas trocas equilibradas e justas,
pelo diálogo eficaz; as conferências internacionais o dizem, os congressos de especialistas
estão de acordo quanto a isto, as emissões de rádio e de televisão o repetem; entretanto,
continua-se a viver na incompreensão e na guerra. Parece que o acordo mesmo sobre o que
são os ‘bons sentimentos’ em relação a isto, a convicção universal de que o bem é preferível
ao mal privam este ideal de toda a eficácia: a banalidade exerce um efeito paralisante. Logo,
é necessário ‘desbanalizar’ nosso ideal. Mas como? (Todorov, 1991, p.139)
5
Em seguida ao parágrafo que transcrevi em que sejamos pesquisadores conscientes da
epígrafe, TODOROV (1991) nos diz que ele dimensão ética dos trabalhos que realiza-
vê a possibilidade de agir em duas direções, mos e que outros desenvolvem sobre o tema
para responder à pergunta que formula: en- e, ao mesmo tempo, homens e mulheres de
quanto trabalhadores – professores, pesqui- ação para mudar o que vemos, com a posse
sadoras, etc. – precisamos nos esforçar para desses conhecimentos que fazemos surgir
que o ideal esteja relacionado ao real, o que com nosso trabalho.
quer dizer, não que o rebaixemos para tor-
ná-lo acessível, mas sim que não o podemos Existe no Brasil, e fora dele, uma corrente
separar do trabalho de conhecê-lo. Ou seja, de pesquisa3 que, há quase trinta anos, vem
coordenado por Marcos Reigota, na UNISO; o grupo Redes de conhecimentos e práticas emancipatórias no cotidiano
escolar, coordenado por Inês Barbosa de Oliveira, na UERJ; o grupo Linguagens desenhadas e educação, coordenado
por Paulo Sgarbi, na UERJ; o grupo Narrativas, memórias e atualização identitária em contextos educativos,
coordenado por Mailsa Passos, na UERJ; e o GRPesq Currículos, redes cotidianas e imagens, coordenado por Nilda
Alves, na UERJ, e do qual Neila Guimarães Alves (da UFF) e Nívea Andrade (UERJ) fazem parte.
aquela que foi representada, inicialmente, Para representá-lo, alguns autores vêm
pela ciência, dentro da ideia/metáfora da usando outras ideias/metáforas: Henri LE-
‘árvore’. Por ela, pensa-se que ‘construí- FEBVRE (1983), Michel de CERTEAU (1994) e
mos’ conhecimentos indo por caminhos Bruno LATOUR (1994) introduzem a noção
obrigatórios, sempre iguais, sequenciais e de conhecimentos em redes; Gilles DELEU-
hierarquizados: existe uma base (as ‘raízes’ ZE e Felix GUATTARI (1995) trabalham com
desses conhecimentos – que muitos dizem o conceito de transversalidade e a ideia de
estar nas ciências); passamos todos por um rizoma; Foucault nos explicou as redes mi-
‘tronco comum’ (em geral, os conteúdos in- crobianas de poder; Boaventura de Sousa
corporados na escola básica); após um lon- SANTOS (1995) vem desenvolvendo a ideia
go percurso de onze ou doze anos, estamos de rede de subjetividades a partir do enten-
‘prontos’ para ‘diversificar’, quando, enfim, dimento das redes de contextos cotidianos;
‘escolhemos’ o ‘ramo’ que vamos seguir, ao nosso Milton SANTOS (1997) trabalhou com
passarmos para um curso universitário. Esse as redes de tecnologias e redes de organi-
modo de pensar a criação do conhecimen- zações sociais, para nos explicar o mundo
to apareceu com a Modernidade, em todas contemporâneo. Estes autores, entre tantos
as formas de instituicionalização da socie- outros, vêm indicando que a criação de co-
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dade: nas ciências; no mundo do trabalho; nhecimentos e significações nos cotidianos
em organizações sociais como os sindicatos, vividos segue caminhos variados e comple-
os partidos políticos ou em igrejas, organi- xos, diferentes daqueles que ‘construímos’
zadas neste período. Esse modo contribuiu, nas ciências ou nas instituições nas quais a
significativamente, para a estruturação hie- sociedade moderna foi se organizando.
rarquizada da sociedade: o líder de grupo de
pesquisa; o presidente da empresa; o presi- Dessa maneira, muitos vêm se dedicando a
dente do sindicato ou dos partidos políticos; estudar e a compreender como os conheci-
os chefes de cada igreja existente – são to- mentos e as significações são tecidos, perce-
dos vistos como ‘sabendo’ mais que todos bendo que isso exige que se admitam as dife-
os que estão colocados em graus inferiores renças culturais sem hierarquias, o que abre
da hierarquia institucional. múltiplas possibilidades ao ato humano de
conhecer. Exige também que se compreenda
Crescentemente, na contemporaneidade, fo- que enfrentar os problemas ecológicos que
mos percebendo que existe um outro modo temos hoje como gerados por um consumo
de criar conhecimentos: aquele que foi visto que levou ao desperdício de riquezas comuns
como sendo tecido em redes de conhecimen- insubstituíveis, o que vai nos demandando
tos e significações, em nosso viver cotidiano. conhecimentos ‘enredados’, para além das
disciplinas. E, por fim, exige que nos dedi- la, responsáveis pelos estudantes, comuni-
quemos a comprender os modos como são dade local, comunidades externas diversas,
criadas tecnologias cotidianas no ‘uso’ de autoridades educacionais, redes mediáticas,
artefatos culturais colocados crescentemen- organizações sociais de múltiplos interes-
te, para consumo de todos, com os significa- ses e reivindicações, etc. Isso significa que
dos políticos e educativos sobre as escolhas o processo não é simples, mas, ao contrário,
que vêm sendo feitas no presente. extremamente complexo e rico.
nesse singular, o que as torna uma abstra- as tantas possibilidades de trocas e diálogos
ção. Isso tem como consequência a ideia de que temos hoje em dia: um número maior
que aquilo que essas pessoas criam pode e de publicações, um bom número de con-
deve “caber” em todas as escolas, seja qual gressos em que discutimos esses temas, a
for a sua realidade. existência de programas na televisão – em
redes diversas –, a crescente importância da
Assumindo a necessidade de se partir dos internet em nossas vidas, etc.
conhecimentos gerados nas escolas e respei-
tando a dinâmica dos vários processos que Isso é facilitado também porque, no mundo
acontecem nelas e fora delas, incorporando contemporâneo, foram sendo criados novos
os conhecimentos e significações gerados campos científicos, como a ecologia, a infor-
nas redes cotidianas, os ‘praticantes’ de um mática, a telemática, a bioengenharia, en-
segundo caminho – com o qual nos identi- tre tantos outros espaçostempos de criação
ficamos – percebem que todos os interes- de conhecimentos, como as novas formas
sados nos processos escolares apresentam de organização do trabalho, os novos mo-
propostas às escolas, permanentemente: vimentos sociais. O que se pode observar é
docentes, discentes, trabalhadores da esco- que tanto uns como outros vêm sendo cria-
dos e se desenvolvem a partir do rompimen- lhar com essas múltiplas ‘outras’ práticas é,
to das fronteiras disciplinares e da criação assim, possível porque os dispositivos e pro-
de novas redes de relações, de comunicação, cedimentos hegemônicos passam a sê-lo na
de conhecimentos e de significações. medida em que são capazes de realizar uma
análise total da sociedade, de suas institui-
Com isso, pensar os cotidianos e os modos ções e dos movimentos que nela se dão, a
como neles tecemos conhecimentos e sig- partir de sua própria lógica, ou seja, aquela
nificações tornou-se premente e necessário que os transformou em hegemônicos e que,
para um grande contingente de pessoas e portanto, é também hegemônica. Isto signi-
não só para uns poucos. fica que junto, no mesmo processo, perdeu-
se a capacidade de analisar e até mesmo de
Relacionadas com essas tantas contribui- admitir todas as outras lógicas possíveis e
ções, compreendemos com as pesquisas existentes no mesmo espaçotempo, porque
nos/dos/com os cotidianos que as práticas dele se apropriou e o entende como sendo
cotidianas formam uma imensa reserva, seu, totalmente, o que nunca acontece, de
constituindo os esboços ou os traços de ‘de- fato. Os múltiplos processos cotidianos de
senvolvimentos diferentes’ (CERTEAU, 1994) ‘lidar com a vida’, em sua infinita condição
possíveis e que existem sempre. Isto leva a 9
de ‘criar saídas’, não são sequer imaginados
que este autor afirme, ainda, que a coerên- pelo modo hegemônico de criar, que não os
cia da proposta vencedora, a panótica, é consegue ver, já que eles não contam com
um lugar próprio, como o que a maquina-
o efeito de um sucesso particular, e não ria panóptica dominante tem. Ou seja, os
a característica de todas as práticas tec- praticantes dos cotidianos, o tempo todo,
nológicas. Sob o monoteísmo aparente aproveitam a ocasião que esta cegueira dos
a que se poderia comparar o privilégio processos hegemônicos permite, atuando
que garantiriam para si mesmos os dis- nos mesmos lugares nos quais estes se reali-
positivos panópticos, sobreviveria um zam. Dessa maneira, as táticas cotidianas se
‘politeísmo’ de ‘práticas disseminadas’, dão onde ninguém espera, captando no vôo
dominadas, mas não apagadas pela car- as possibilidades oferecidas por um instan-
reira triunfal de uma entre elas (p. 115). te (CERTEAU, 1994), não contando, nunca,
com a segurança daquilo que o já estabe-
Disto, nossas heranças culturais múltiplas lecido fornece às estratégias hegemônicas.
– indígenas, africanas e outras tantas – dão Considerando que a tática é a arte do fra-
mostras profundas e diferentes, quando bus- co e que as artes se colocam para além da
camos compreender esses processos. Traba- racionalidade dominante, jogando com as
emoções, CERTEAU (1994, p.101) indica que memória de escolas, bem como as imagens
são criadas, permanentemente, combinan- – em especial, as icônicas: fotografias, de-
do possibilidades, e fazendo surgir inúme- senhos, caricaturas etc. – sobre os espaços-
ras alternativas, em trajetórias que não po- tempos educativos existentes.
dem ser previamente determinadas porque
serão sempre diferentes e diversificadas. Esses espaçostempos permitem, constante-
Chamando Kant como apoio, em certo mo- mente, o surgimento de histórias – se pen-
mento de seu texto, CERTEAU (1994) lembra sarmos nas escolas vamos lembrar: o portão
que há uma arte de fazer na qual é preciso das escolas como lugar de trocas de ideias
reconhecer uma arte de pensar e que, por entre os responsáveis dos alunos; o pátio
isso mesmo, as táticas formam um campo funciona como possibilidade de troca en-
de operações dentro do qual se desenvolve tre os estudantes; a sala dos professores é
também a produção da teoria. A teoria não espaçotempo de conversas e troca de expe-
fica nem do lado de fora, nem pode ser vista riências, permitindo a formação de conhe-
como dicotomizada, menos ainda entendi- cimentos sobre, por exemplo: que professor
da como posterior ou anterior à prática. É alfabetiza melhor; que figurinha está difícil
por isso que nas pesquisas nos/dos/com os de conseguir em certo álbum que muitos
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cotidianos não se pode escapar da unidade colecionam; como trabalhar certa questão
práticateoriaprática4, tanto quanto de sua necessária em uma 5ª série...
crítica permanente, não podemos esquecer!
4 O surgimento desses termos assim escritos – juntos em uma só palavra – tem o sentido de mostrar que as
dicotomias herdadas da ciência, criada na Modernidade, além de possibilidade de ajudar a ‘pensar cientificamente’,
têm significado limites aos processos que precisamos desenvolver para melhor conhecer os cotidianos, com suas
lógicas. Outros termos podem aparecer assim grafados nos textos que escrevemos: espaçostempos; dentrofora;
localuniversal; particulargeral; imagensnarrativas etc. Estarão sempre em itálico, acentuando sua estranheza.
de’ que nos remete a proximidade, a en- Sobre isso, KOSSOY (1999), um dos mais pre-
contro, com ‘saber’ (deleuzianamente, sentes autores sobre o ‘uso’ de fotografias
‘conceito’). O amigo é um “personagem em pesquisas sociais, lembra que
conceitual”, que contribui para a defini-
ção dos conceitos, e é assim que Deleuze quando apreciamos determinadas foto-
e Guattari lêem o personagem do filó- grafias nos vemos, quase sem perceber,
sofo que nasce com os gregos: alguém mergulhando no seu conteúdo e imagi-
que, na busca da sabedoria – que nun- nando a trama dos fatos e as circuns-
ca é de antemão, mas sempre procura, tâncias que envolveram o assunto ou
produção – inventa e pensa os conceitos, a própria representação (o documento
diferentemente dos sábios antigos, que fotográfico) no contexto em que foi pro-
pensavam, por figuras, por imagens. Ao duzido: trata-se de um exercício men-
definir o filósofo como “amigo do concei- tal de reconstituição quase intuitivo
to”, admite-se que a tarefa da filosofia é (p.132).
necessariamente criativa.
Em múltiplas experiências que tivemos, em
Buscando apoio, pois, nesta ideia de per- pesquisas ou na vida cotidiana, ver uma foto-
grafia significou/significa, sempre, contar his- 11
sonagem conceitual, pensando, criando
conhecimentos, mas não necessariamente tórias, em narrativas sobre a situação retrata-
buscando ser filósofo (“criador de concei- da ou sobre outra que aquela imagem lembra,
tos”), temos como necessidade, para traba- ou, ainda, sobre pessoas que nela estão ou que,
lhar os cotidianos vividos, que assumir as ‘justamente’ não estão, mas ‘que dela lembrei
imagensnarrativas como personagem con- porque...’ E, também, o sentido inverso se dá
ceitual. Algo sem o que não se poderia pen- quando, narrando um fato acontecido, alguém
sar como são produzidos, por todos nós, os diz: “espera que tenho uma fotografia ótima
conhecimentos e as significações, em nos- deste dia...” E, esquecendo o relato, se levanta
sas redes cotidianas. para buscar, em outro cômodo, a tal fotografia
que, chegando, lembra uma história diferente
Além disso, nessa articulação imagensnarra- da que estava sendo lembrada.
tivas é necessário considerar que umas re-
metem às outras, como nos indicou MAN- Por isso mesmo, KOSSOY (1999) afirma que
GUEL (2001) e precisam ser compreendidas fotografia é memória e com ela se confunde,
no conjunto que formam ao serem chama- acrescentando:
das às ‘conversas’ sobre os cotidianos das
escolas e de outras redes educativas. o estatuto de recorte espacial/interrup-
ção temporal da fotografia se vê rompi- Assim é que precisamos compreender que o
do na mente do receptor em função da momento fotografado não retorna jamais,
visibilidade e do “verismo” dos conteú- nem com um possível cruzamento de depoi-
dos fotográficos. A reconstituição histó- mentos, de memórias. O trabalho de com-
rica do indivíduo rememorando, através preender os cotidianos das redes educativas,
dos álbuns, suas próprias histórias de através de imagensnarrativas só se dá pela
vida, constitui-se num fascinante exer- intervenção de quem está envolvido nos
cício intelectual onde podemos detectar processos dessa compreensão. Ou, em ou-
em que medida a realidade anda próxi- tras palavras, as imagensnarrativas não nos
ma da ficção. (p. 132) permitem – como aliás qualquer outro tipo
de recurso que usarmos – obter “a verdade”.
Dessa maneira, é preciso assumir que o tra- Imagens e narrativas nos permitem a com-
balho com/através de fotografias – e com preensão de processos relacionados à tessi-
as narrativas que vêm junto – não se esgota tura de conhecimentos e significações, den-
na análise iconográfica (seus elementos de tro das múltiplas redes cotidianas em que
composição, modo como foi feito, conheci- estamos atuando e criando, ‘praticando’.
mento ou reconhecimento do espaçotempo,
12
situação social e mesmo nomes dos presen- Além disso, precisamos nos abrir a certas
tes, etc.). Esse trabalho requer, ainda, uma questões ligadas ao que Machado (2003;
sucessão de construções imaginárias (KOS- 2001) lembra: uma grande quantidade de
SOY, 1999, p.133), pois nós tem horror às imagens – isso é chamado
de iconoclasmo – em qualquer dos artefatos
o contexto particular que resultou na culturais em que apareçam, especialmente
materialização da fotografia, a história na televisão, porque uma série de pessoas,
do momento daquelas personagens que intelectuais, religiosos, etc. vêm que essas
vemos representadas, o pensamento são para pessoas inferiores. No entanto,
embutido em cada um dos fragmentos esse autor lembra que
fotográficos, a vida enfim do modelo
referente – sua ‘realidade interior’ – é, essa querela milenar, contudo, se baseia
todavia, invisível ao sistema ótico da em dicotomias falsas [já que] a escrita
câmara. Não deixa marcas na chapa fo- não pode se opor às imagens porque nas-
tossensível, não pode ser revelada pela ceu dentro das próprias artes visuais,
química fotográfica, nem tampouco di- como um desenvolvimento intelectual
gitalizada pelo ‘scanner’. Apenas imagi- da iconografia. Em algum momento do
nada (p.133). segundo milênio a.C., alguma civilização
teve a ideia de ‘rasgar’ as imagens, a fim Ou seja, em toda a história das ciências, as
de abrir a visão para os processos invisí- imagens tiveram uma grande importância
veis que se passam no seu interior, bem para ‘criar’ ciências e desenvolvê-las.
como de desmembrar cada uma de suas
partes em unidades separadas, para Assim sendo, os processos metodológicos
reutilizá-las como signo em outros con- devem indagar, respeitosamente, as situa-
textos e num sentido mais geral (Flusser ções que aparecerão nas imagensnarrativas
1985, p.15). O rasgamento das imagens de que vamos tomando conhecimento. A
permitiu desfiá-las em ‘linhas’ sequen- favor dessa possibilidade, lembro uma fala,
ciais’ (nascia assim o processo de linea- que já repeti muitas vezes e o faço mais uma
rização da escrita), enquanto o desmem- vez, de Eduardo COUTINHO, o ‘cineasta dos
bramento de suas partes compreendeu documentários’, em um encontro sobre his-
cada elemento da imagem (pictograma) tória oral, em São Paulo, transcrita em uma
como um conceito (…). Portanto, a pri- revista da PUC/SP. COUTINHO (1997) diz que
meira forma de escrita que se conhece em qualquer situação de filmagem, conside-
é ‘iconográfica’ e deriva diretamente rando que em pesquisa deve ser igual, o im-
de uma técnica de ‘recorte’ de imagem portante é respeitar cada um daqueles com
13
(Machado, 2001, p. 22). que ‘conversamos’. Sobre isto ele pergunta
e responde: “O que quer dizer respeitar essa
Com esse mesmo autor percebemos, ainda, pessoa? É respeitar sua integridade, seja ela
em especial nos estudos que faz sobre os um escravo que ama a servidão, seja ela um
escritos de DAGOGNET (1986; 1973), que há, escravo que odeia a servidão” (p.169).
sempre, algo iconográfico em grande parte
dos trabalhos dos cientistas, pois neles o Por outro lado, é preciso indicar um aspecto
registro gráfico desempenha papel heurís- no qual, falando de história oral, THOMSON
tico e metodológico (quando não ontológi- (1997) lembra que é o da responsabilidade
co). Dessa maneira, é preciso que aceitemos social que cada um de nós precisa ter frente
que, mesmo neles e na origem e desenvol- ao outro:
vimento de todas as ciências, a imagem é
uma forma de construção do pensamento os profissionais de história oral talvez
tão sofisticada que sem ela provavelmente achem que não têm o direito de usar as
não teria sido possível o desenvolvimento de reminiscências das pessoas para criar
ciências como a biologia, a geografia, a geo- histórias polêmicas ou que envolvam
metria, a astronomia e a medicina. aspectos delicados para os narradores
(...) [pois] isso significa uma violação da
confiança. Por outro lado, talvez achem conforto latente, da comparação ou da
que têm um outro dever – para com a avaliação. [No entanto], os relatos cole-
sociedade e a história – a responsabilida- tivos que usamos para narrar e relem-
de de contestar os mitos históricos que brar experiências não necessariamente,
dão poder a algumas pessoas às custas apagam experiências que não fazem
de outras (p.69). sentido para a coletividade. Incoerentes,
desestruturadas e, na verdade, ‘não-
No mesmo sentido, propondo uma saí- relembradas’, essas experiências podem
da para este dilema, citado por THOMSON permanecer na memória e se manifestar
(1997), FRISCH (1999) cria a ideia de autori- em outras épocas e lugares – sustenta-
dade compartilhada e propõe seu uso, mos- das talvez por relatos alternativos – ou
trando a necessidade de pessoas no processo através de imagens menos conscientes.
de analisar o que significa recordar, e o que Experiências novas ampliam, constan-
fazer com as memórias para torná-las vívi- temente, as imagens antigas e no final
das e produtivas, e não meros objetos para exigem e geram novas formas de com-
acervo e classificação (p. 70). Essa é uma preensão. A memória ‘gira em torno da
importante missão para os ‘praticantes’ das relação passado-presente, e envolve um
redes educativas nesse país, sem dúvida. processo contínuo de reconstrução e 14
O primeiro texto comenta sobre pesquisas plexidade e são muito mais da ordem do
voltadas para a compreensão dos processos subjetivo que do objetivo. O texto destaca,
identitários, considerando que os mesmos ainda, que a alteridade é constituinte do ter-
não são fenômenos fixados e estáveis, já que mo identidade. Percebemo-nos como iguais
as identidades se estabelecem na constante a uns e diferentes de outros – às vezes não 16
negociação do sujeito com seu meio, com a somente por meio de palavras, mas por ges-
história, com as produções discursivas que tos, práticas, olhares, e todo um conjunto de
circulam socialmente. Esses processos – de formas extraverbais, inclusive pelo silêncio.
dizer-se, sentir-se, pertencente a um grupo Estes e outros temas são analisados e dis-
ou uma origem – estão carregados de com- cutidos no primeiro texto desta publicação.
O segundo texto discute a crise ambiental, contribui para encontrar soluções possíveis
causada, entre outros fatores, pela organiza- e que é preciso buscar alternativas, saídas.
ção socioeconômica globalizada e pelo cres- Comenta, ainda, que as questões ambientais
cimento populacional desordenado, desta- com as quais a humanidade vem se deparan-
cando que apenas apontar as causas não do têm natureza complexa, assim como são
5 Estes textos são complementares à série Cotidiano, imagens e narrativas, com veiculação de 22 a 26 de
junho de 2009 no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC).
interligadas e interdependentes. Por isso, que reveja e forneça alternativas à atual
elas não podem ser compreendidas isolada- concepção hegemônica de organização so-
mente, sem deixar de incluir as suas inter- cial, política e econômica, apontando para
relações e as tentativas de soluções que vão a urgência de que estas alternativas sejam
surgindo no cotidiano. Apresenta a neces- discutidas nas escolas de Ensino Fundamen-
sidade de um outro enfoque da realidade, tal, Médio ou Superior.
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MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e
outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios THOMSON, Alistair. Recompondo a memó- 18
3 Específica aqui não significa absolutamente minoritária em termos quantitativos. Os últimos dados do
IBGE, datados de 2002 – é bom que se lembre – apontam para a população brasileira auto-declarada como brancos
e pardos sendo de aproximadamente 46% da população. Suspeitamos que, alavancados pelas políticas de ação
afirmativa, estes números hoje já tenham felizmente aumentado substancialmente.
dades, o que na verdade consiste na compre- juízos morais, estéticos e políticos. “a pa-
ensão da sociedade brasileira, de nós mesmos. lavra está sempre carregada de um conte-
údo ou de sentido ideológico ou vivencial”
A história de Javé ajuda-nos, então, a pensar (Bakhtin, op. cit. p.95). Por isso toda e qual-
nos objetivos que traçamos para nossa pesqui- quer palavra só pode ser lida, ouvida, com-
sa ao iniciá-la e os rumos que vem tomando, preendida a partir de um contexto histórico
a cada dia, com novos dados e mudanças que preciso.
vão re-inventando a pesquisa no cotidiano da
mesma – no processo – nos sugerindo algumas
Das identidades diaspóricas e
novas questões, tentando contar esta história
sua dinâmica
“a contrapelo”, como nos sugere Benjamin
(1994), sabendo As identidades são com-
que não ocupa- plexas e múltiplas, e
mos o lugar de brotam de uma história
Processos identitários não
“contadores ofi- de respostas mutáveis
ciais” dessas me-
são fenômenos fixados
às forças econômicas,
mórias e expli- e estáveis, já que as políticas e culturais,
21
cadores dessas identidades se estabelecem quase sempre em opo-
realidades. Ao na constante negociação do sição a outras identida-
invés disso, prio-
sujeito com seu meio, com a des (...). Elas florescem
rizamos deixar a despeito do nosso
história, com as produções
que falem os su- “desconhecimento” de
jeitos, ouvimos
discursivas que circulam
suas origens, isto é, a
os protagonistas socialmente. despeito de terem suas
sem nos colocar- raízes em mitos e men-
mos no lugar de tiras. (...) Não há, por
Antonio Biá, de tradutor dessas histórias, mas conseguinte, muito espaço para a razão
entendo-as em sua pluralidade e seu vínculo na construção das identidades (Kwame
com aquilo que é produzido na sociedade. Appiah, 1997, p. 248).
Trabalhamos, então, como nos orienta Processos identitários não são fenômenos
Bakhtin (2004). Segundo o autor, as palavras, fixados e estáveis, já que as identidades se
não são apenas sinais com os quais procura- estabelecem na constante negociação do su-
mos enunciar os fatos, mas signos com os jeito com seu meio, com a história, com as
quais pronunciamos verdades ou mentiras; produções discursivas que circulam social-
mente. Esses processos – de dizer-se, sentir- em uma dessas papelarias que faz serviços
se, pertencente a um grupo ou uma origem de fotocópia, viu um cartaz divulgando um
– estão carregados de complexidade e são curso pré-vestibular para negros e carentes.
muito mais da ordem do subjetivo que do A moça era negra e pobre, o que significava
objetivo. que não tinha condições de pagar um cursi-
nho para entrar na universidade, embora de-
A palavra identidade carrega logo no seu iní- sejasse se preparar para ingressar no ensino
cio outra palavra: idem, ou seja, “a mesma superior. Tal acontecimento a tornaria a pri-
coisa”. Somos sempre idênticos a alguém, meira pessoa em sua família a ter diploma
identificados com alguém (ou com um gru- de nível universitário. Entretanto, mesmo o
po). A alteridade é, portanto, constituinte do desejo de continuar os estudos não tornou
termo identidade. Passamos a vida perceben- simples a opção que a estudante teria que
do-nos como iguais a uns e diferentes de ou- fazer ao decidir-se pelo curso pré-vestibular
tros – às vezes não somente por meio de pala- para negros e carentes. Ela conta que
vras, mas por gestos, práticas, olhares, e todo
um conjunto de formas extraverbais, inclusi- Tratava-se de um projeto social voltado
ve pelo silêncio. Identidades são atualizáveis para negros e carentes – Pré-vestibular
22
e atualizadas, no encontro entre sujeitos, a para Negros e Carentes/PVNC4. A idéia das
partir do jogo social vigente (Agier, 2001). aulas gratuitas me parecia interessante,
pois não poderia pagar um cursinho e re-
Há pouco tempo tivemos a oportunidade de conhecia a dificuldade de passar para uma
ler no memorial de uma estudante – uma universidade pública sem “treinamento”,
educadora, pós-graduanda – sua narrativa a no entanto o que me maltratava era fazer
respeito de um processo de identificação – ou parte de algo para negros. Essa denomina-
de negação de uma identificação – pelo qual ção – negro – era pior aos meus olhos, na-
ela passou e que penso ser de grande utilida- quela época, do que me reconhecer pobre5.
de para ilustrar o que está sendo dito aqui.
A jovem levou ainda algum tempo para ava-
A moça havia terminado o Ensino Médio em liar se era mais problemático para ela assu-
uma escola pública e certo dia, ao entrar mir-se como negra e matricular-se no curso
4 O Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) é um movimento de educação popular, laico e apartidário,
que atua no campo da educação através da capacitação para o vestibular, de estudantes economicamente
desfavorecidos em geral e negros(as) em particular.
5 SILVA, Renata Aquino da. In: Identidades e práticas culturais afro-brasileiras: outros olhares dos movimentos
negros a partir de negros em movimento (projeto de dissertação de Mestrado, março de 2009, ProPEd/UERJ.)
em questão, ou ficar sem cursar a faculdade ficos, articulados aos discursos jurídicos e aos
e procurar outros meios para custear seus religiosos. Não é nossa intenção neste texto es-
estudos. Depois de passar algum tempo miuçar esta questão – nem espaço temos aqui
analisando o que ganharia e o que perderia para tal. Nosso interesse é partir da idéia des-
nessa escolha, optou por ingressar no curso sa produção discursiva, que desde o século XIX
e o que se seguiu foi a trajetória de uma es- ensinava que éramos/somos uma nação ma-
tudante negra em um curso pré-vestibular e culada pelos processos de mestiçagem, preju-
mais tarde na universidade pública. dicada em seu desenvolvimento pela presença
dos negros descendentes dos africanos, escra-
Esta passagem não deixa dúvidas de como não vizados nas Américas, que aqui se mantiveram
existe a assunção de identidade sem alterida- mesmo depois de não mais existir sua função
de. Assumimos de mercadoria. Segun-
um papel, um do essas produções dis-
lugar social, na Assumimos um papel, um cursivas às quais nos
nossa relação lugar social, na nossa relação referimos, essas pesso-
com o Outro, sig- com o Outro, significando as não tinham muito
nificando o “jogo talento para a socie-
o “jogo social” vigente. É o
23
social” vigente. dade que se industria-
Outro quem nos diz e é ele
É o Outro quem lizava e para as suas
nos diz e é ele
quem interfere na forma tecnologias, além de
quem interfere como nos percebemos no não se afinarem nem
na forma como mundo. com o padrão estético
nos percebemos nem com o padrão éti-
no mundo. co europeu. Toda essa
produção discursiva, gestada no século XIX,
Existem muitos estudos importantes sobre os que atravessou o século XX, foi fazendo as pes-
processos de silenciamento e invisibilidade que soas negras e mestiças – a diáspora africana no
têm vitimado historicamente as populações Brasil – quererem ser outra coisa e nunca o
negras no Brasil. Práticas racistas que confir- que as identificasse com esses “grupos subal-
mam e são confirmadas pelos discursos cientí- ternizados”6.
6 Um dos textos que nos chama a atenção para os processos de assunção de uma “segunda pele” e as
relações deste processo identitário com a indústria cultural contemporânea é o de José Jorge de Carvalho “Racismo
fenotípico e estéticas da segunda pele”. Ali o autor expõe algumas ideias que, segundo ele mesmo, são desdobradas
em CARVALHO, José Jorge. “Transformações da Sensibilidade Musical Contemporânea”, Horizontes Antropológicos,
Ano 5, n.° 11, 59-118, 1999 e CARVALHO, José Jorge. “A Morte Nike: Consumir, o Sujeito”, Universa, Vol. 8, n.° 2, 381-
396. Universidade Católica de Brasília, junho 2000.
De ficções e de delicadeza extrema que se ajuntava ao
antropologia social. Volume 7 – nº 2. Rio de Ja- de e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34. ; Rio
Falar que o mundo vive uma profunda crise inventando mil maneiras de fazer (Certeau).
ambiental e que suas causas são a organiza- As soluções não são únicas, portanto.
ção socioeconômica globalizada e o cresci-
mento populacional desordenado, além de Por isso, também é necessário outro enfoque
não ser uma afirmação nem um pouco expli- da realidade, que reveja e forneça alternati-
cativa, não contribui para encontrar soluções vas à atual concepção hegemônica de orga-
possíveis. Já não basta constatar a existência nização social, política e econômica. Estas
dos problemas, é preciso buscar alternativas, alternativas já existem, mas são pouco dis- 27
saídas. Do mesmo modo que é insuficiente cutidas nas escolas de qualquer nível - Ensi-
falar de pequenos e grandes problemas locais no Fundamental, Médio ou Superior. Dentre
ou globais isoladamente, buscando linear- elas, aquela com a qual mais me identifico
mente suas causas e conseqüências. está sintetizada em livro escrito por Manfred
Max-Neef, com a colaboração de Antonio Eli-
As questões ambientais, com as quais a hu- zalde e Martín Hopenhayn, sob o título de
manidade vem se deparando, têm natureza Desenvolvimento em escala humana: concei-
complexa, assim como são interligadas e tos, aplicações e algumas reflexões3.
interdependentes. Por isso, elas não podem
ser compreendidas cada qual de per si, nem Esta proposta, no meu entender, tem a vir-
deixar de incluir as suas inter-relações e as tude de inverter a lógica até agora vigente
tentativas de soluções que vão surgindo no e apontar para a possibilidade de uma nova
cotidiano, a partir dos praticantes que vão visão de mundo, na qual o desenvolvimento
(…) as necessidades humanas fundamen- (…) cada necessidade pode ser satisfei-
tais são as mesmas em todas as culturas ta em níveis diferentes e com distintas
e em todos os períodos históricos. O que intensidades. Mais ainda, se satisfazem
muda, através do tempo e das culturas, em três contextos: a) em relação a nós
é a maneira ou os meios utilizados para mesmos (...); b) em relação ao grupo so-
a satisfação das necessidades (id., ib.). cial(...); e c) em relação ao meio ambien-
te(...). A qualidade e intensidade tanto
Mas quais são estas necessidades funda- dos níveis como dos contextos depende- 29
mentais? Para os autores, elas são apenas rá de tempo, lugar e circunstância (id.,
nove: subsistência, proteção, afeto, enten- p. 43).
dimento, participação, ócio, criação, identi-
dade e liberdade (id., p. 41) e que podem ser Outra questão apresentada por Max-Neef
satisfeitas (ou não) por diferentes ‘satisfato- e seus colaboradores é de que não existe
res’. Para eles pobreza, mas sim, pobrezas. Com isso eles
querem dizer que, para cada necessidade
(…) o que está culturalmente determi- fundamental não satisfeita, é gerado/gera
nado não são as necessidades humanas um tipo de pobreza. Portanto, as pobrezas
fundamentais, mas os satisfatores des- existem quando carecemos de formas de
sas necessidades. A mudança cultural subsistência, mas também quando vive-
é – entre outras coisas – consequência mos sem afeto, nem proteção; quando fal-
de abandonar satisfatores tradicionais ta entendimento das coisas que nos cer-
para substituí-los por outros novos e di- cam; quando não há participação na vida
ferentes (p.42). que palpita em torno de nós, ou quando
carecemos de ócio e da capacidade/pos-
Assim, por exemplo, trabalho é um satisfator sibilidade de criação; quando desconhe-
cemos ou perdemos nossa identidade, ou com enfoques tradicionais e ortodoxos.
nossa liberdade. Não tem sentido curar um indivíduo para
em seguida devolvê-lo a um ambiente en-
Resumindo as questões que os autores co- fermo. Cada disciplina, na medida em
locam: que foi se tornando mais reducionista e
tecnocrática, criou seu próprio âmbito
(…) qualquer necessidade humana fun- de desumanização. Voltar a nos huma-
damental nizar dentro de cada
não satis- disciplina é o grande
feita de
... as pobrezas existem
desafio final. Em outras
maneira quando carecemos de palavras, só a vontade
adequa- formas de subsistência, de abertura intelectu-
da pro- mas também quando al pode ser o cimento
duz uma fecundo para qualquer
vivemos sem afeto, nem
patologia; diálogo ou esforço
proteção; quando falta
até agora, transdisciplinar que te-
se desen-
entendimento das coisas
nha sentido e que apon-
volveram que nos cercam; quando te para solução das pro-
30
32
Texto 3
Assumir outros referenciais para pensar a brar e ([se possível] compreender o que está
aprendizagem [escolar] incorporada ou in- por “dentro”, envolvido e obliterado em
corporadora requer compreender que lida- nosso ponto de vista.
mos nas relações humanas com processos e
com múltiplas possibilidades de variação e Na discussão do visível e do invisível fica
de inflexão, que se ligam e/ou se im-plicam negligenciada a condição do sujeito e sua
com outras possibilidades de compreensão variação. Quais experiências constitutivas
e de captura do vivido. (bildung) se dão na instalação de um ponto
de vista? Que temporalidades lhes são pró-
33
Assim, entendo a sala de aula como um prias? Que ethos as rege? Que hipóteses de
“ponto de dobra”, em que a aprendizagem vida foram formuladas? Tais questões nos
se configura como uma variação de possibi- inspiraram a pensarpraticar a sala de aula
lidades. Explico (outra dobra): no movimen- como produção-variação-emergência de di-
to de dobra há a variação do ponto de vista, ferentes pontos de vista; como um espaço
uma variação contínua de lugares de foco de produção de experiências; como uma
– ponto de inflexão de linhas perceptivas di- comunidade narrativa. As crianças com as
versas. Assim, a mudança de ponto de vista quais pesquisamos e suas famílias traba-
não é apenas a variação de uma posição, um lham no lixão ou nos centros informais de
lugar geográfico ou social, é o ponto sobre reciclagem, sujeitas a duras jornadas, com
uma variação: um ponto dobra – elástico ganhos entre R$ 1,00 [um] ou R$ 2,00 [dois]
ou plástico, no dizer de Deleuze (1991). No reais por turno trabalhado, além da exposi-
trabalho com as crianças, buscamos vislum- ção de sua saúde a toda sorte de dejetos.
1 O texto tem como coautora Luciana Pires Alves, professora da rede municipal de educação de Duque de
Caxias e regente da turma do 3º ano de escolaridade da Escola Municipal Ana Nery, na qual realizamos a pesquisa.
Bolsista da Faperj no projeto “Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e
saberes no cotidiano escolar”, coordenado por Carmen Lúcia Vidal Pérez.
2 Professora da Universidade Federal Fluminense.
Trabalho com o lixo é atualmente a única alter- vive do lixo, ou seja, 170.000 brasileiros são ca-
nativa para as pessoas que não se encaixam nos tadores.
padrões de formação exigidos para empregabi-
lidade: capacidade de se manterem aptas para Crianças que catam lixo para sobreviver e
o mercado de trabalho, segundo as tais sete que na escola são tratadas como lixo, tra-
competências: preparo técnico, capacidade de peiros-poetas, no dizer de Benjamim4. Crian-
liderar pessoas, habilidade política, habilidade ças-narradoras e sucateiras que fraturam o
de comunicação oral e escrita em pelo menos discurso da hospitalidade [hostil] da escola
dois idiomas, habilidade em marketing e em e tecem suas narrativas nas franjas da nar-
vendas, capacidade de utilização dos recursos rativa [e da história] oficial – restos de fios
tecnológicos, aparência agradável e adequada3. deixados de lado como algo que não tem
Competências sustentadas por uma política significação, importância ou sentido: suas
cognitiva ancorada em princípios universais e experiências, suas hipóteses de vida, seus
invariantes, que desejos, sonhos, afe-
recusa o caráter tos e saberes.
Uma câmera de filmar e
inventivo, limi-
uma turma de 26 crianças:
tada a um con- Câmera, Ação! Corta!
o que pode acontecer? As 34
junto de desem- Apaga!...Apaga! O cine-
crianças da escola pública na
penhos possíveis ma como experiência.
Baixada Fluminense podem
e previsíveis que A aula como aconte-
fazer um filme?
engendra tanto cimento. A aprendiza-
a formação de gem como invenção
peritos e a residualização de boa parte da po-
pulação brasileira: um em cada mil brasileiros Uma câmera de filmar e uma turma de 26
3 EMPREGABILIDADE é um conceito amplo que não significa apenas ter um emprego e sim a capacidade
de ter trabalho e renda sempre. Quem sabe usar sua empregabilidade consegue tomar conta de sua carreira e cria
condições para ter trabalho sempre, não importando a sua idade, seu modo de pensar nem a sua área de atuação.
As empresas hoje esperam de seus empregados: liderança; facilidade de comunicação; flexibilidade e capacidade
de adaptação a mudanças; entusiasmo para aprender; conhecimento de idiomas e informática; engajamento nos
resultados da equipe; ambição de carreira; escrever com clareza e de acordo com cada situação; capacidade de
organizar e transmitir suas ideias; ser criativo ao resolver problemas e tomar decisões; saber lidar com diferentes
situações.
4 Para Benjamim, o narrador também seria a figura do trapeiro, do Lumpenproletário, do catador de sucata
e de lixo, personagem das grandes cidades, que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza,
certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder, de não deixar nada ser esquecido. Figura-
estandarte da miséria humana, recolhendo tudo aquilo que a sociedade rejeita. Do nosso ponto de vista, a criança
narradora se identifica com o trapeiro e o poeta, que colecionam sobras, cacos, fragmentos ou destroços e os
renovam, ressignificam e (re)inventam a experiência do mundo.
crianças: o que pode acontecer? As crianças a paixão de conhecer, as experiências vivi-
da escola pública na Baixada Fluminense po- das e os estudos realizados com as crianças,
dem fazer um filme? Logo com essas crian- vivemos cotidianamente um processo de
ças! Uma loucura! As crianças vão quebrar a emergência, em que conceitos científicos e
câmera! O grupo é muito grande!? É impos- conceitos cotidianos se integram para ali-
sível fazer um filme.... mentar a curiosidade e a busca do grupo. A
aventura humana de fixar imagens [desde a
Apresentamos para as crianças a ideia: fazer câmera escura à imagem em movimento]
um filme coletivamente. Um filme feito na nos possibilita a experiência com a técni-
altura dos olhos das crianças – o outro. A ca e com o instrumento – a câmera de filmar
câmera e as filmagens despertaram diferen- faz parte do estudo da fotografia, da ótica,
tes sentimentos: assombro, dúvida, desejo do cinema e da memória.
de participar, proximidade, conflito e curio-
sidade. A câmera como um instrumento nos condu-
ziu aos estudos de ótica. O instrumento não
Uma curiosidade que nos coloca diante do só de filmagem, mas em seu sentido históri-
aparelho de filmar, diante da relação entre co e cultural – em seu conceito de aparelho
magia e técnica, crianças ao redor da câ- 35
óptico. A curiosidade como princípio auto-
mera vendo umas as outras e se pergun- organizador nos possibilitou ampliar a bus-
tando: Como paramos aí dentro? Dominar o ca e, ao mesmo tempo em que encontráva-
aparelho: liga/desliga, conecta e desconec- mos algumas respostas às nossas questões,
ta a bateria, aperta o botão – a aprendiza- íamos, paulatinamente, nos apropriando [e
gem acontece rápida e naturalmente. Ah! A reconstruindo] a história do instrumento e
curiosidade da criança! Aquela companheira de suas técnicas.
tantas vezes esquecida e/ou relegada ao se-
gundo plano na sala de aula. Mentes curio- A câmera escura nos levou, em muitas tar-
sas e inquietas fuçam daqui, perguntam dali des de sol, para o pátio em busca do melhor
e muito rapidamente põem tudo para fun- ponto de observação e da luz que inundasse
cionar. Dominar o instrumento é o desafio as caixinhas, para que a imagem invertida se
que a curiosidade suscita. Vencido o desafio, fizesse em nossas pequenas telas de papel
vem o assombro: como as imagens entram fino. Diante da última tecnologia, lá estáva-
na câmera? mos nós, mergulhados no passado de um
olhar que não tem a rapidez e a nitidez do
Entrelaçando a aula com a experiência de hoje, mas é borrado e esperado como peri-
fazer o filme, com a inteligência prática e pécia.
A câmera escura, o eletroscópio, a decom- em que a única possibilidade de saber é pela
posição da luz, o campo visual, os jogos de letra: primeiro aprender a ler e a escrever,
espelho e ilusões de ótica, assim como as má- depois aprender o conhecimento.
quinas de ver, o olho biônico, a lupa, o ócu-
los, as sombras..., vamos elaborando nosso A presença da câmera e a proposição do re-
currículo praticado e a aula vai acontecendo. gistro permite o estudo das relações entre
cognição e aprendizagem de uma perspecti-
A câmera detona diferentes processos, o va diversa da lógica elementarista e da lógi-
inusitado: podemos fazer um filme? A in- ca associacionista6, subjacentes às práticas
vestigação: um de ensino. Voltar-se
filme sobre o para a câmera e para
quê? O reconhe- A câmera na sala de aula as possibilidades da
cimento: um não significa uma estratégia filmagem é voltar-
filme sobre nós se para as imagens
pedagógica, mas uma
mesmos? Pro- cristalizadas de si
tática de enfrentamento
cessos que vio- [pessoas – Luciana,
lentam nossas – uma forma de violentar a Alexandre, Gleice,
esquivas sensó- ordenação lógica da cidade etc.; personagens – a 36
5 Esquivas sensório-motoras – mecanismos que permitem nossa organização perceptiva, pois captamos o
que estamos interessados em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas
experiências psicológicas (Deleuze, 2006, p. 31).
6 Lógica elementarista - o comportamento pode ser descrito, o processo cognitivo objetivado e a
aprendizagem predita, modelada e modulada. Lógica associacionista - associação entre estímulo e resposta, reforço
e comportamento, ensino e aprendizagem, etc.
deveria ser ordinário na escola – da leitura são lidos como vazio na escola? O trabalho
e da escrita. Como num jogo de espelhos, com os signos presentes na vida cotidiana
o extra-ordinário potencializa o ordinário: nos possibilita fugir desta inteligibilidade
alfabetizar-se. decifradora predominante na escola? A epis-
temologia escolar se organiza [e é organiza-
As crianças, ao criarem seus caminhos com da por] um excesso de significação? Além da
a câmera, vivenciam um aprender em li- função ou do jogo simbólico, o modelo cog-
berdade que se transporta para escrita. Da nitivo escolar “empurra goela abaixo” das
“confusão” de símbolos surgem possibilida- crianças um sentido único de civilização?
des de criar um outro espaçotempo na/da/
para a escola. Outras Ecologias Cognitivas7 A câmera que possibilita a gravação das au-
vão se fazendo presentes, o verbal e a ima- las, dos passeios, das brincadeiras é, para
gem; a história do bairro e as histórias de nós, um poderoso artefato de pesquisa, pois
vida; o afetivo e o cognitivo, etc. nos permite (re)ver a diversidade de ele-
mentos e detalhes – pequenos, quase nada
As relações das crianças com a câmera (ins- presentes nas histórias da vida das crianças
trumento), com a linguagem (imagem), com – com os quais vamos tecendo nossas leitu-
o texto (o filme) nos possibilitaram perceber 37
rasinterrogações sobre “vazios” e “ausên-
o exagero da decifração na função simbólica cias” e sua relação com os processos cogni-
que o modelo cognitivo escolar preconiza, tivos em geral e a aprendizagem escolar, em
prescreve e pratica. Na epistemologia esco- particular.
lar não há lugar para o vazio, o que parado-
xalmente engendra o próprio o vazio episte- No desenrolar das filmagens, pudemos ob-
mológico da escola. Por que temer o vazio? servar como as crianças vão configurando
seus centros de atenção [pela fixação das
A reflexão sobre o vazio epistemológico da imagens e de seus focos] e produzindo suas
escola nos coloca diante de questões que narrativas visuais e escritas.
podem nos conduzir à formulação de polí-
ticas cognitivas mais justas para as crianças O filme se faz no agenciamento coletivo de
das classes populares: os signos cotidianos enunciações8 pelo contágio de ações cria-
- já não contam apenas a presença física do outro [sua eleição de objetos e sua dinâmica de percepção do mundo],
as linhas de desenvolvimento e a prova de conhecimentos.
9 No presente texto referimo-nos às funções criadoras como os usos não estabelecidos de linguagens e
instrumentos e as funções mudas como o uso escolar da escrita – o autor como sujeito da enunciação que reproduz
os significados dominantes e os enunciados autorizados pela rede de saberpoder da escola.
10 A esse respeito ver Fanon, Franz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.
cando hoje, pode estar filmando amanhã] tro emocionar surge quando aquele coletivo
consideramos esse o ponto alto da “aula”, aceita, não o outro, mas a si na legitimidade
momento privilegiado de práticas de inte- da convivência. A negação social de si é um
ração, de reflexão sobre o vivido, aprendiza- forte mecanismo de subalternização ligada
gem compartilhada e tomada de decisões, a uma política cognitiva em que a diferen-
bem como de fortalecimento das relações ça está além da desigualdade social, corres-
de pertencimento e de produção de um ou- pondendo à condição de descarte ou obso-
tro emocionar: lescência: “O refugo é o segredo sombrio e
vergonhoso de toda produção” (BAUMAN,
“(...) não é para filmar só pés e pernas”, 2005, p.21). A interdição de sua forma de ser,
“tem que filmar a cara das pessoas”, “a de seu falar e agir, de seus corpos, histórias
cara só não, a pessoa inteira”, “a Milena e espaços produz espelhos da falta, da cen-
só filma pé”, “filmar tremido também sura ou ausência e, talvez um Narciso (às
não pode”, “mas quem não fica quieto avessas) que ame apenas o reflexo do outro.
não sai na câmera”, “claro que sai, e um
filme”, “filme a gente grava todo mun-
do andando e se mexendo”, “não é igual
Referências Bibliográficas
39
a tirar retrato”, “eu não estou ouvin- BAUMANN, Zygmunt. Modernidade liquida.
do nada!”, “tem muito barulho”, “todo Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
mundo fala ao mesmo tempo”, “o Cilas
não cala a boca”, “não pode falar e filmar BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas I - magia
ao mesmo tempo”, “esse filme não pres- e técnica, arte e política. São Paulo: Brasilien-
ta”, “apaga, apaga...”, “Vamos gravar de se, 1994.
novo”, “outra vez a tia Genilda...”, “coita-
da, ela não agüenta mais”, “já sabe até CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidia-
o que o Mateus vai perguntar”, “também no 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994,
ele demora para ler”, “dessa vez vai dar 3ª ed.
certo”, “ninguém pode falar”,....
DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. São Pau-
A câmera, através do registro fílmico, é um lo: Editora Forense Universitária, 2006.
instrumento de multiplicar tempos e de de-
bruçar sobre si: - “Olha como você filmou?”, _____________. A Dobra. Campinas: Editora
“A barraca, a barraca... Tá escrito coca- Papirus, 1991.
da?” “Cachorro-quente?”” Coca-cola é Um
real...”. Um limiar se torna presente, um ou- FANON, Franz. Os Condenados da Terra. Juiz
Presidência da República
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Supervisão Pedagógica
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Junho de 2009