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ISBN 978-989-636-405-2
Depósito Legal
José Ribeiro Dias
Educação
O Caminho da Nova Humanidade:
das Coisas às Pessoas e aos Valores
Papiro Editora
Porto 2009
•
INTRODUÇÃO
da Família Humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis”
como fundamento do Mundo dos Valores, e “o advento” desse
Mundo como objecto da “mais alta aspiração do homem”;
– a “fé” dos “povos das Nações Unidas” no Mundo dos Valores,
como base do seu compromisso em procurarem sobre ele uma
“concepção comum”;
– a proclamação desse Mundo como “ideal comum a atingir por
todos os povos e por todas as nações”, “pelo ensino e educação”
(Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem).
Entretanto, nos anos mais recentes, os novos e graves problemas que
o desenvolvimento tecnológico vem colocando ao ecossistema, no que diz
respeito à própria sobrevivência da Família Humana em termos de “mor-
te súbita” ou de “morte lenta” do Planeta Terra, avivam em todos nós a
consciência de que o tema da educação, ao nível da actividade filosófica,
continua a destilar perguntas acutilantes e excessivas.
– A propósito, somos nós que temos as perguntas ou são as per-
guntas que nos têm a nós e nos afrontam, interpelam, desafiam e
transcendem?
– Isto de ter e ser, de estar e passar, de vir e ir, de nascer e crescer! E
de outros verbos mais!
– E para tantas e tais perguntas e de tanta gente, será demais pro-
curar ouvir muitas respostas e da gente toda: pais e filhos, alunos
e professores, discípulos e mestres, leigos e cientistas, peritos e
experts, sábios e filósofos, poetas e artistas, místicos e profetas?
10
educativo se reduz ao conhecimento, mas pôr em evidência a convicção
de que ele depende do treino sustentado, do percurso moral, do esforço
agónico, do espírito de entrega de todos nós ao serviço do crescimento
e da realização de nós todos. Brota mesmo do convencimento de que a
educação, para além de exigir, em todos os domínios e na medida máxi-
ma o aprofundamento científico, é essencialmente questão de comporta-
mento ético, de crescimento humano, de realização pessoal.
Todas estas considerações ditaram a organização do presente trabalho.
A seguir aos dois primeiros capítulos de carácter introdutório sobre,
respectivamente, mudanças, problemas e questões metodológicas e o lugar
charneira da educação na Declaração Universal dos Direitos do Homem,
vêm os restantes capítulos sobre a educação escolar e a crise que nela se
instalou, as revoluções que afectaram a educação de infância e a educação
de adultos, a sua conjugação no conceito da educação ao longo da vida, a
urgência da educação comunitária nas dimensões intra e inter-cultural,
a necessidade da educação ecossistémica perante os graves problemas de
sobrevivência que hoje se colocam à Família Humana.
Nestas condições, o livro não se dirige apenas a académicos e investi-
gadores ou a professores e alunos, mas a todos os cidadãos implicados em
processos educativos, pais e filhos, responsáveis políticos e verdadeiros ac-
tores nos diversos domínios da economia, da saúde, da gestão, do direito,
da ciência, da arte, da cultura. A todos os que, sentindo-se portadores da
dignidade de membros da Família Humana, se preocupam em criar condi-
ções para que todos cresçamos no reconhecimento e respeito por esse nosso
estatuto. A todos, como contribuição modesta para, através do encontro,
comunicação, pesquisa e debate, podermos acertar no Caminho da Vida.
Dentro deste entendimento, o Autor agradece, desde já, a todos quan-
tos de algum modo contribuíram para a preparação do texto, designada-
mente colegas nos encontros e alunos nas aulas.
E a todos os leitores, com o agradecimento antecipado pela colabora-
ção que eventualmente venham a prestar na sua melhoria, o Autor deixa
uma saudação fraterna com votos de bom trabalho.
Valete, fratres.
11
•
Capítulo I
13
Avancemos uma primeira abordagem das principais etapas deste per-
curso, atentos à sua dimensão planetária e aos vectores socio-económicos,
políticos e culturais que as caracterizam.
14
educação escolar (básica-secundária-superior) é o primeiro a beneficiar desta
atribuição de prioridade ao “ensino e educação”. Com efeito e já a partir
do último ano da guerra, várias nações procedem ao lançamento de gran-
des reformas do sistema educativo, entre as quais ficaram mais conhecidas
o Education Act (Reino Unido, 1944), a Lei Langevin - Wallon (França, a
partir de 1945) e o National Defense Education Act (USA, 1958). Este vasto
movimento de reformas obtém um sucesso extraordinário na generalidade
dos países em que é lançado, quer na dimensão quantitativa, provocando a
emergência da “escola de massas”, quer na dimensão qualitativa, conduzin-
do à situação de que, “pela primeira vez, sem dúvida, na história da huma-
nidade, o desenvolvimento da educação, considerada à escala planetária,
tende a preceder o nível do desenvolvimento económico”2.
Mas o êxito não esconde, no reverso da medalha, o fracasso consubs-
tanciado no desfasamento entre os sistemas económico e educativo, que
dá origem ao fenómeno social do desemprego e sub-emprego, e ainda à
convulsão cultural motivada quer pela desatenção à dignidade e direitos
das pessoas, quer pela erosão do culto dos valores.
Estes percalços, no seu conjunto, levam as reformas a esbarrar na que
ficou conhecida como “contestação universitária” (década 60, Maio de 68
em França)3 e a desembocar na chamada “crise mundial da educação”4 em
que chega a ser pedida a “desescolarização da sociedade”5.
O verdadeiro epicentro do sismo situa-se na tendência para pensar que
a finalidade da educação deve visar o desenvolvimento económico e não
o “pleno desenvolvimento da pessoa humana, o fortalecimento do respei-
to pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais” (Declaração
Universal dos Direitos do Homem, Artº 26º, 2) e vai alimentar, durante as
décadas seguintes, a turbulência de sucessivas contra-culturas e sub-culturas
juvenís e exigir um tempo de profunda reflexão sobre o estatuto e sentido
do subsistema escolar dentro do sistema educativo (Relatório da UNESCO,
1972)6, apontando para a solução de o considerar como fase de transição
entre a educação de infância e a educação de adultos (Relatório da Fundação
Europeia da Cultura, 1975)7 e, finalmente, para a sua completa metamor-
fose no contexto do novo paradigma da educação ao longo da vida.
15
Desenvolvimento da revolução da educação de infância
16
Entramos assim, numa revolução que vai implicar a total reestrutura-
ção do sistema educativo e de cujas consequências e alcance ainda esta-
mos longe de ter tomado consciência.
17
O subsistema de educação de adultos emerge assim, ao lado dos tra-
dicionais subsistemas de educação de infância e de educação escolar ou de
jovens, como a outra parte do mesmo conjunto. O verdadeiro todo que
é o sistema educativo vê, assim, ampliado ao máximo o seu campo de
aplicação: das camadas populacionais das crianças e jovens à totalidade
da família humana.
E aprofunda inesperadamente o seu alcance e eficácia: neste mundo
marcado pela tensão entre opressores e oprimidos, é proposto a estes últi-
mos o recurso não à revolução violenta que operando pela guerra e visan-
do apenas a substituição de uns pelos outros não passa de uma revolução
falsa, mas à revolução pacífica, que avançando pela conscientização e o
diálogo com vista a chegar à eliminação radical da diferença entre opres-
sores e oprimidos, constitui a revolução verdadeira, ou seja, nos termos de
Paulo Freire (1970), a “revolução pedagógica”13.
E, ao apelar para uma revolução que afecta a relação intergeracional,
agita o problema da interdependência entre as gerações antiga e nova e
prepara assim a emergência do novo paradigma da educação.
18
ço através das migrações e do turismo, do desenvolvimento das novas tec-
nologias da Galáxia McLuhan (1967)14, do subsequente processo de globa-
lização nas áreas económica, social, política e militar, da mudança em todas
as dimensões da civilização e da cultura e da aceleração da própria mudança
a provocar o “choque do futuro” (A. Toffler, 1970)15, vieram criar novos pro-
blemas e apelar para soluções radicais e urgentes no processo educativo.
Assim, após lenta gestação durante a década anterior, na III
Conferência Mundial de Educação de Adultos (Tóquio, 1972), apare-
ce à luz do dia e ganha foros de cidade o novo conceito de educação
permanente (tradução do original francês) ou educação ao longo da vida
(tradução do original inglês) que passa a designar o processo de crescimento
global e harmónico de cada ser humano, ao longo das diferentes fases da sua
existência, desde que nasce até que morre16.
Todas as estratégias parcelares de transmitir conhecimentos, numa ou
noutra área científica e/ou de proporcionar a aquisição de competências
num ou noutro campo profissional, passam a ter sentido apenas se e na
medida em que forem conjugadas e transcendidas pela estratégia global
de ajudar o ser humano a crescer, a tornar-se pessoa, a abrir o caminho da
própria realização.
A visão estática, que encarava o sistema educativo como um todo di-
vidido em partes ou subsistemas, cede o lugar à visão dinâmica que o vê
como um processo integrado por fases, inicialmente (década 70) por três
(a educação básica, a educação superior e, situada e entendida como uma
fase de transição a meio, a educação secundária)17 mas, a partir de fins
da década 90, em consequência da já mencionada definição de criança
como “todo o ser humano menor de 18 anos”, por apenas duas, educação
de infância e educação de adultos, passando ainda a primeira a abarcar,
como sub-fases, as antigas etapas de educação de infância, de educação
básica e de educação secundária18.
Só agora vamos começando a compreender quanto esta revolução está
a exigir de nós todos, no que respeita à transformação, sempre difícil e
morosa, das mentalidades, como condição prévia e necessária para nos
encontrarmos e movimentarmos dentro do novo paradigma.
19
O enquadramento: educação comunitária
20
alvorecer do novo milénio, veio somar-se a perspectiva aterradora dos
efeitos do terrorismo global, começámos a compreender melhor a pro-
fundidade do conceito de Família Humana. O que existe, de facto, não
são várias mas apenas uma única humanidade. E passámos a interiorizar
melhor que, assim como acontecia na relação intrageracional dos adul-
tos, também na relação intergeracional de adultos e crianças, nós todos
sentimos a necessidade de que os outros procurem para nós e a responsa-
bilidade de nós procurarmos para os outros as melhores condições de de-
senvolvimento. Também aqui, à escala das comunidades-base e da inteira
comunidade humana, todos nós somos educandos e todos nós somos
educadores.
Em perpétua interacção.
Dentro da qual se impõe dar toda a prioridade aos mais
desfavorecidos.
É neste sentido que, ao longo das últimas décadas e através de múl-
tiplos documentos das organizações internacionais, designadamente a
partir da Conferência Internacional de Jomtien (Tailândia, 1990) sobre a
Educação para Todos20, se desenvolve o conceito de educação comunitária,
a designar o processo de desenvolvimento global e harmónico de cada comu-
nidade, ao longo da sua história, a partir da interacção da educação ao longo
da vida de cada um dos seus membros21.
No limite, o conceito envolve toda a comunidade planetária ou, nos
termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, toda a Família
Humana.
21
É assim que no início da década 70, a partir dos documentos ema-
nados das conferências de Veneza e de Helsínquia (1970) sobre o desen-
volvimento cultural, de Estocolmo (1972) sobre o desenvolvimento eco-
nómico e de Tóquio (1972) sobre a Educação de Adultos, e na sequência
da verificação dos resultados do desenvolvimento industrial e da entrada
na era da civilização do consumo, começámos a tomar consciência da
progressiva degradação das condições de vida do ecossistema (poluição,
desperdícios, resíduos, etc.), a perceber que a destruição do nosso Planeta
tanto pode verificar-se por morte súbita (holocausto nuclear) como por
morte lenta (degradação das condições de vida) e a preocupar-nos com a
qualidade de vida22.
O problema da qualidade de vida tem a ver com o processo educati-
vo no sentido de nos alertar para a conservação dos recursos do mundo
físico mobilizáveis para criar as condições do desenvolvimento humano:
a quantidade e qualidade do ar que respiramos, da água que bebemos,
de todos os meios de que precisamos. As reacções recentes, repetidas e
violentas contra os desequilíbrios, desigualdades e injustiças da chamada
globalização económica vêm pondo em evidência a progressiva comple-
xidade do processo.
Mas não se trata apenas das agressões cometidas contra o meio am-
biente do universo físico, cuja dimensão no espaço e duração no tempo
continuam para nós insondáveis, mas também e mais ainda das cometi-
das contra o mundo moral que tanto se caracteriza pela grandeza, ordem,
beleza, frémito de vida e esplendor da dignidade das pessoas que nele nos
movemos, como pelos abismos de maldade e de ódio, dos gangs, máfias
e associações criminosas, responsáveis pelos tráficos de armas, de droga,
de pessoas e de órgãos humanos. Trata-se, numa palavra, das várias com-
ponentes do mundo do espírito cuja dimensão, espessura, complexidade,
profundeza e mistério nos envolvem e nos ultrapassam. Afinal de contas,
aquilo que mais conta (e se conta e reconta) na primeira e última viagem
do grande Titanic, não são os sentimentos e expectativas, medos e com-
plexos, amores e ódios dos viajantes, não são os decks que ocupavam e
as classes sociais a que pertenciam, mas tudo aquilo em que, no fim, se
encontraram todos irmanados: a grandeza do navio, a imensidão do ho-
22
rizonte, a cumplicidade da noite e do nevoeiro na ocultação dos icebergs,
a profundidade do oceano, a origem de onde partiram e o destino a que
nunca mais chegaram.
De aqui vem emergindo o conceito de educação ecossistémica, se aceitar-
mos este lexema para designar o processo de desenvolvimento da comunidade
humana na medida em que é marcado pela interacção com o mistério do con-
texto em que decorre e pela necessidade de encontrar o rumo a seguir.
23
ao respeito da dignidade humana,
em nós próprios e
em todos os outros e
à plena realização
de cada um de nós (nos planos, pessoal, social e profissional),
da inteira comunidade humana de que fazemos parte e,
em última análise,
do universo em que existimos.
As grandes decepções
24
Conferência Mundial sobre Educação de Adultos (Tóquio, 1972), em
que se verifica a emergência do novo paradigma da educação permanen-
te ou educação ao longo da vida, o Director-Geral da UNESCO, René
Maheu, ao fazer o balanço desta evolução, confessa-se “extremamente
impressionado” por três constatações de fundo:
25
educação comunitária e educação ecossistémica. Por outro lado, não parece
que tenhamos adquirido a consciência das implicações concretas que essas
ideias possam ter nas dimensões profissional, social e pessoal da nossa
própria realização.
Quer dizer que, no mundo de hoje, as ideias nascem, difundem-se e
entram rapidamente na “linguagem comum” dos homens sem no entanto
produzirem as transformações que, à primeira vista, parecem implicar.
Está em causa a força das ideias ou, acaso, a fraqueza dos homens, ou
as duas coisas em conjunto.
A situação é grave mas não é nova. Deve-se à extrema dificuldade que
os seres humanos sentimos em acompanhar a mutação dos paradigmas cul-
turais e teve lugar em todos os tempos, particularmente nas épocas de crise,
como é fácil comprovar, a título de exemplo, nos processos de emergência
dos antigos impérios do Médio Oriente, na Atenas de Péricles ao assumir
a hegemonia da Grécia (séc. V a. C.) e na de Demóstenes ao soçobrar no
horizonte do império helenístico (séc. IV a. C.), na longa e difícil gestação
da Europa medieval sobre as ruínas do império romano (sécs. V-XV), na
dificuldade em retirar efeitos duradouros da alfabetização dos guerreiros de
Gengis Khan após a entrada em Pequim ou da aculturação da Corte do
seu neto Kublai Khan após a conquista de toda a China (séc. XII-XIII), na
precariedade dos resultados do esforço de mestiçagem cultural por parte
da população azteca depois da conquista do México (séc. XVI), na longa
caminhada da razão após o Renascimento e na eclosão da “scienza nuova ”
durante a idade moderna (séc. XVI - XVIII), no percurso difícil da liberda-
de depois da queda do “antigo regime” e através das sucessivas revoluções
que marcaram a idade contemporânea (séc. XIX-XX), no parto acidentado
do processo de globalização que, a partir da emergência das organizações
mundiais ao longo do séc. XX, hoje particularmente nos afecta.
O que marca a diferença da crise actual é que os problemas se vêm
tornando cada vez mais difíceis de resolver, não apenas pela crescente
complexidade dos factores de toda a ordem que neles intervêm, como
ainda pelo facto de hoje qualquer problema só poder encontrar solução
no contexto global em que se encontra inserido, pela acumulação histó-
rica dos efeitos negativos da sua não-resolução ou mesmo não-equacio-
26
namento em épocas passadas e ainda pela resistência e acção de forças
poderosas e contrárias que visam, a todo o custo, o controlo total do
processo.
Particularizemos alguns dos problemas que podemos considerar
cruciais.
27
Com efeito, a área científica da educação que anteriormente aparecia, de
modo extremamente reduzido e empobrecido nas instituições de nível mé-
dio dedicadas à formação de professores e educadores dos escalões etários
mais baixos: a) só foi admitida nas universidades a partir dos anos 60, sob
a forma de departamentos, faculdades ou institutos, com designações que
vão de Educação e Ciências de Educação a Pedagogia e outras mais estra-
nhas e bizarras em que aparece associada às áreas colindantes de Psicologia,
Letras, Ciências Humanas, Ciências Sociais, etc.; b) porque esta inserção
na orgânica da vida universitária aconteceu na época do incremento da
“escola de massas”, o período de estruturação, rodagem e consolidação da
nova área científica foi perturbado pela urgência das tarefas de formação de
professores e educadores às quais inicialmente foi dedicada a maior parte
do esforço realizado; c) entretanto, o processo de desenvolvimento destas
novas unidades orgânicas seguiu o seu curso, a ponto de hoje podermos
constatar que nalguns países, entre os quais Portugal, muitas delas revelam
notável pujança nas tarefas da própria estruturação (faculdades, escolas,
institutos, departamentos, áreas), de docência (cursos de graduação e pós-
-graduação), de investigação (centros, produção científica, publicações peri-
ódicas e não periódicas); d) nesta situação, temos hoje fundadas esperanças
de que estas unidades orgânicas continuarão a prestar à educação o melhor
contributo dos seus especialistas.
Já no que respeita à coordenação geral do processo e porque se trata
de um problema crucial de qualquer comunidade humana, ela cabe cer-
tamente aos governos dos Estados de Direito eleitos democraticamente.
Mas aqui tem surgido uma pergunta referente ao critério de governa-
ção. Na medida em que as constituições ou leis fundamentais dos países
membros da ONU (e aparentemente são todos) se declaram de acordo
com o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e,
portanto, com o objectivo de tudo fazer para o advento de um mundo em
que sejam reconhecidos e respeitados a dignidade e os direitos humanos,
adoptando a estratégia do “ensino e educação”, o critério de governação
poderá continuar a ser de carácter “militar”, “político”, “económico” ou
qualquer outro, ou deverá passar a ser de carácter “educativo”?
Mais concretamente e porque se trata de acertar no verdadeiro ca-
28
minho, o critério de organização do Conselho de Ministros será mesmo
o que aceita um coordenador “político” dos vários pelouros (economia,
finanças, assuntos sociais, negócios estrangeiros, saúde, justiça, educação,
cultura, etc.) ou o que elege um coordenador “educativo” ou “pedagógico”
dos diversos pelouros, substituindo, no seu elenco, o da educação pelo da
política (interna e externa)? Como já se pretendeu fazer, ingloriamente é
certo, na Cidade de Platão, mas com consequências milenárias na China
de Confúcio?
Como esperamos sublinhar mais adiante (cap. II) e alertando desde já
para as terríveis perversões do processo que organizações de carácter mais
ou menos secreto, pelo menos no que diz respeito aos seus objectivos e
estratégias, a partir da aliança dos poderes económico, político, acadé-
mico e da comunicação social, podem pretender impor24, importa não
esquecer esta insistência do esboço de programa de Governo Mundial
que a Organização das Nações Unidas assume ao proclamar, nos termos
da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que o advento do mundo
dos direitos do homem, fulcrado no valor da dignidade humana, é o fim
último a atingir não apenas “por todos os indivíduos e todos os órgãos
da sociedade” mas também “por todos os povos e todas as nações” “pelo
ensino e educação”25.
Mas o problema coloca-se hoje a um nível mais radical e abrangente,
porquanto mais “democrático”.
Na perspectiva actual da educação de adultos, da educação ao longo da
vida e da educação comunitária, em que todos nos reconhecemos não ape-
nas educandos mas também educadores e, nessa medida, corresponsáveis
por todo o processo educativo, acontece que ninguém de nós poderá ho-
nestamente abdicar deste trabalho de pesquisa, reflexão e acção, a partir
dos campos em que se move a própria actividade profissional, ou preten-
der alijar noutrem (grupo, partido, governo, oligarquia ou ditadura) a
própria responsabilidade.
Em cada caso, tal pesquisa-reflexão-acção deverá partir da experiência
de natureza profissional, social e pessoal, armazenada por cada um de
nós, sobre o desenvolvimento de todos os seres humanos, no respeito
pelos valores que presidem à sua realização. Por outro lado, as exigências
29
actuais da reflexão, em matéria de tamanha importância como esta, obri-
gam-nos a remontar dos problemas que têm a ver com os procedimentos
correntes, em qualquer dos níveis micro, meso e macro, às questões essen-
ciais que resistem no cerne do processo educativo, têm a ver com a sua
origem e o seu fim, e podemos verter nas fórmulas que, até por serem de
sempre, se mantêm actuais: o quê, o porquê e o para quê da educação.
Abordamos a seguir três grandes questões (escola, ensino, formação),
em relação com os três grandes tópicos da definição provisória de edu-
cação que acima registámos (coisas, pessoas, Valores) e de acordo com a
hierarquia das finalidades: as coisas são para as pessoas e as pessoas são para
os Valores.
Trata-se de problemas fundamentais da existência de cada um de nós,
que só podem encontrar solução dentro da comunidade que constituímos
e no contexto do mundo que habitamos. Pelo que só tem sentido falarmos
no plural. Do aqui e do agora. E sem constrangimentos ou tabus.
30
chamadas “civilizações”, através dos processos violentos de guerras e con-
quistas e da instituição das hierarquias de classes ou castas, opera-se a ci-
são entre dominados e dominadores, escravos e homens livres: os primei-
ros, despojados de tudo até de tempo para si próprios, vão ser forçados ao
trabalho de angariação de recursos para todos; os segundos apropriando-
-se de tudo, inclusive do tempo dos escravos, passam a ser os únicos a go-
zar das condições favoráveis ao próprio desenvolvimento na medida em
que dispõem de “tempo livre”, de paragem, descanso, repouso, lazer, ócio,
divertimento ou, falando em grego de scholé e, falando em latim, de schola
(do *IE Segh- que envolve a ideia geral de “agarrar, manter”).
A possibilidade de dispor de condições e de tempo para o desenvol-
vimento propriamente humano deixa de ser atributo de todos e torna-se
privilégio de alguns. No processo educativo, ficam de fora as massas e
permanecem dentro as elites.
Falemos mais cruamente: pela redução de seres humanos à condição
infra-humana de escravos, aumenta exponencialmente o número de “coi-
sas” e diminui drasticamente o número pessoas.
Entretanto, ao longo da época clássica das civilizações grega e roma-
na, reconhece-se que este “tempo livre” dos privilegiados pode e deve ser
aproveitado para o trabalho, por vezes também esforçado, do desenvolvi-
mento do espírito através do estudo (do *IE Steu-, (S)teud-, que envolve
a ideia geral de “empurrar, bater” e donde nos vêm lexemas como tunda,
contundente, contusão, obtuso, etc.) e o lexema schola torna-se objecto, de
uma expressiva metamorfose semântica:
31
mismo produtivo das comunidades humanas, nos domínios da técnica,
da ciência, da arte, da cultura, da moral e da religião.
Mas este mesmo sentido, ligado às tarefas de quem, por se encontrar
liberto de ocupações materiais, se pode entregar a ocupações do espírito
através do estudo, se por um lado caracteriza o subsistema escolar, através
de toda a panóplia de realizações e êxitos, também marca o seu percurso
ao longo da história como triste rosário de ambiguidades e fracassos, de-
signadamente no sentido de não ser ou não ser igualmente para todos:
32
Norte e Sul) onde, no período posterior aos genocídios perpe-
trados sobre as populações autóctones, deram origem às actuais
populações euro-afro-americanas;
– entretanto começa a formar-se o “subsistema escolar”, pela
ordem dos escalões superior, secundário e primário (séc. XII-
XVII), que estabiliza em forma de pirâmide, com acesso tan-
to mais reduzido quanto mais alto é o escalão, em que se faz
corresponder o nível de cada escalão (primário, secundário, su-
perior) às tarefas sociais atribuídas ao respectivo extracto social
(baixo, médio, superior) e em que apenas o escalão mais alto,
representado pela universidade, fornece à elite preparação para
as profissões liberais;
– a mesma tendência redutora vai marcar até os subsistemas
emergentes da educação de infância (séc. XIX) e da educação
de adultos (séc. XX), na medida em que o subsistema escolar
dominante tende a situá-los à margem, através das designações
de pré-escolar e extra-escolar;
– nos dias de hoje, em tempos de assimilação generalizada do
conceito de educação comunitária, esta herança pesada de atri-
buir os recursos não a todos mas apenas a alguns, revela-se à
escala do mundo, no fosso cavado entre países “desenvolvidos”
e “subdesenvolvidos” também designados eufemisticamente “em
vias de desenvolvimento” ou, dito de forma mais abrangente, en-
tre os hemisférios Norte e Sul, e é espantosa a “tranquilidade de
consciência” com a qual continuamos a falar deste e dos ante-
riores “acidentes” da história.
33
e condições para (sobre)viver;
– a mostrar-nos sensíveis e prontos a socorrer, com ajudas de
todo o género, as vítimas dos grandes cataclismos e acidentes
naturais (inundações, sismos, maremotos), mas a permitir que
todos os dias morram crianças porque as mães não têm leite
para as amamentar ou um pouco de farinha para lhes dar, quan-
do é exactamente pelo gesto de nutrir (o sentido originário do
latim educare) que começa e acaba a educação;
– a acautelar e defender afincadamente o bem-estar intra-muros
dos nossos países “desenvolvidos” e a fechar as portas a todos
aqueles que, através dos ecrãs da geografia, da história, do turis-
mo ou do telejornal, sabemos reduzidos à miséria e que deixa-
mos morrer nos mares e nas praias que nos rodeiam;
– a provocar a degradação das condições de vida do planeta co-
mum (poluição, desperdícios, resíduos) sem cuidar das pertur-
bações do ambiente que nos afectam a todos e mais aos que
menos ou nada têm.
34
mais amplo, continuamos a assistir ao domínio deste mundo pelo clube
da Banca Internacional com o apoio dos empresários, a anuência dos
políticos e o silêncio dos meios de comunicação social.
Afigura-se que esta disfunção educacional milenar apenas poderá en-
contrar solução se aderirmos ao paradigma educativo emergente que ul-
trapassa, em todos os sentidos, a escola:
35
Ensino: as pessoas e a relação entre educação e comunidade
36
“Toda a educação consiste num esforço contínuo por impor, à criança, mo-
dos de ver, de pensar e de agir aos quais ela não teria chegado espontaneamente
e que lhe são exigidos pela sociedade no seu conjunto e pelo meio social a que é
particularmente destinada”27.
37
mentos, ensinar é bom mas é insuficiente em termos de educação; se, para
além e através da transmissão de conhecimentos, visar o desenvolvimento
da capacidade intelectual do aluno, ensinar é melhor porquanto passa a
constituir uma parte, aliás muito importante, do verbo educar; se, para
além de tudo isso, tiver em conta a preocupação pelo “desenvolvimento
da pessoa humana” (Art.º 26º 2, da Declaração Universal dos Direitos do
Homem) em todas as suas dimensões, ensinar será óptimo, na medida em
que a conjugação do verbo ensinar se encontrará perfeitamente integrada
na conjugação do verbo educar.
Só integrado na educação, o ensino adquire sentido, justificação e
eficácia.
Da raiz *IE Sek- que envolve a ideia geral de “cortar”, recebemos:
– através do grego sēma, “sinal, marca”, os lexemas semântica, se-
miótica, etc.;
– através do lat. secare, “cortar”, lexemas como segar e segmento,
secção e sector, secante e insecto, etc.;
– através do latim signum, “signo, sinal”, lexemas como sino e sina,
selo e sigla, sinal e senha, significado e insígnia, sigilo e assinatura,
desenho e desígnio, ensino e ensinar, etc.
Nesta última derivação, o sentido original tende a ficar reduzido a um
“corte” superficial como o que fazemos na casca de uma árvore jovem, a
deixar “marca” que até pode crescer com ela, mas que não altera substan-
cialmente a sua natureza e a sua capacidade de crescer, florir e frutificar.
38
brotem naturalmente todas as realidades nelas contidas;
– através do verbo duco, is, ěre, “conduzir”, no sentido de que se-
jam ajudadas pela condução dos mais experientes na abertura do
próprio caminho de existência.
39
to e respeito pelos Valores. E sensibilidade e empatia e delicadeza com as
pessoas e as próprias coisas.
À maneira do que se conta de certo Principezinho, chegado de outro
Planeta, que docemente entrava em comunicação com tudo e com todos,
aprendia com a raposa a aproximar-se dela por pequeninos passos e a
“prendê-la a si” e a saber que “somente se vê bem com o coração” e que
“o essencial é invisível aos olhos”, e falava em “amar uma flor de que só
existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas”29.
40
Mais concretamente no ser humano, dotado de consciência e liber-
dade, o processo de desenvolvimento não poderá decorrer sem rumo,
sem norte, sem regra, sem lei (anomia), mas de acordo com a direcção, a
linha recta, directa ou direita ou ética, que implica a aquisição das com-
petências para explorar os recursos do universo e os pôr ao serviço das
pessoas, no sentido de lhes proporcionar as melhores condições para elas
acederem aos Valores em que se completam e realizam.
Consideramos correntemente que a formação humana é integrada por
três dimensões fundamentais: profissional, social, pessoal.
No que respeita à formação profissional, não será aceitável que, pela
pressão dos interesses imediatos de ganhos, lucros ou proveitos na vida
concreta, privilegiemos apenas a obtenção do conjunto de competências
e atitudes que permitam e legitimem o exercício de determinada acti-
vidade (agricultor, comerciante, engenheiro, médico, jurista). Qual será
o maior crime, alguém roubar ou matar uma ou várias pessoas ou, aca-
parando os recursos que a natureza e a sociedade põem ao seu dispor
durante o tempo do percurso escolar, os aproveitar para adquirir um tipo
de formação meramente profissional, procurar atingir um elevado nível de
especialização e depois passar a vida, no exercício da profissão, a explorar
tudo e todos sem qualquer escrúpulo de ordem social e/ou moral, causan-
do a desestabilização das vítimas, da própria família humana e/ou até de
todo o ecossistema?
No que se refere à formação social, não poderemos, nos dias de hoje,
deixar-nos reduzir a dimensões limitadas do passado, como cidadãos de
Esparta ou de Atenas e, a seguir, do Império Romano, fiéis das igrejas
medievais ou modernas, súbditos de Sua Majestade no antigo regime, pa-
triotas das Pátrias ou filhos das Nações nos tempos modernos, mas, no
horizonte da abertura da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
importa assumirmos o pleno estatuto de cidadãos do Mundo ou, melhor e
nos próprios termos desse texto, de membros da Família Humana.
Finalmente e no que diz respeito à formação pessoal, impõe-se ter pre-
sente que interessa ainda e sobretudo aspirarmos ao desempenho cons-
ciente, livre e responsável do mister de Homem.
A formação assim entendida, na sua tríplice dimensão, e obtida ao
41
longo de todo o processo da educação ao longo da vida, na modalidade de
formação inicial durante a fase de educação de adolescentes e na modali-
dade de formação contínua durante todo o tempo de educação de adultos,
representa, nos dias de hoje, o cerne do sistema educativo, na medida
em que prepara o ser humano para participar na angariação de recursos
através das diferentes áreas de especialização profissional, para a criação
de condições propícias ao exercício da cidadania dentro das comunidades
de que faz parte, em ordem a atingir a sua plena realização como pessoa
consciente, autónoma e responsável, no universo em que existimos.
Os seres humanos que verdadeiramente acertaram no caminho da sua
tríplice formação foram sempre aqueles que, para além de se tornarem com-
petentes no domínio das coisas e no serviço das pessoas, se projectaram no
horizonte dos Valores e deste modo descobriram rumos, perseguiram ideais,
atingiram metas, e assim se aproximaram da realização em plenitude.
Fez-se assim, ao longo da História, a epopeia da técnica, da ciência, da
civilização, da arte, da cultura.
Que tudo isto implica ir além do normal, do real e acaso do possível,
pelo trabalho aturado, a pesquisa insatisfeita, a investigação permanente,
a coragem de servir e de abrir caminhos novos a projectar-se nos hori-
zontes da imaginação, do sonho, da utopia? Com certeza. O processo
educativo é feito da ambição, da coragem, do esforço, da persistência, do
entusiasmo e da alegria de todos aqueles que um dia exclamaram, com
Luther King, “I have a dream”, “eu tenho um sonho” e decidiram, com
Sebastião da Gama, “pelo sonho é que vamos!”.
Que, afinal, somos todos. Pois se alguns ficam de fora será porque,
estranhamente,
42
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança”30.
3. Questões metodológicas
43
tema educativo, recorrer a um método integrado que, atento às exigências
do pensamento actual no que diz respeito a rigor, amplitude, aprofunda-
mento, vibração e disponibilidade, tenha na devida conta o vasto leque
de métodos provados, antigos e novos, e que, provavelmente, de acordo
com a descrição feita por H. Simon do espírito humano como um GPS,
general problems setting and solving, e na peugada de E. Morin, poderí-
amos resumir deste modo: a experiência que através do círculo curiosi-
dade-dúvida-reflexão alimenta o espírito crítico, o pensamento complexo, a
atitude questionadora, a mêtis, a serendipidade31.
Passamos a recordar cada um deles, de forma mais sintética ou mais
desenvolvida de acordo com a respectiva novidade, e pondo em relevo o
seu impacto na área da educação.
44
do novo ser humano através da adolescência, até atingir o paroxismo do
idealismo puro, da contestação e da rebeldia.
Finalmente, importa abrir todo o campo á experiência da reflexão pes-
soal do jovem adulto sobre os mil acidentes e incidentes da vida, da dor
e do amor.
Pensamento complexo
“os nossos problemas são, cada vez mais, do foro global e admitem
apenas soluções globais”, “os homens ergueram muros altos que sepa-
45
ram os ramos do conhecimento essencial a esta demanda – as várias
ciências, políticas, religiões, éticas”32
46
complexidade é um problema, é um desafio, não é uma resposta”, recor-
da que o “paradigma da simplificação” que dominou o ocidente nos últi-
mos séculos, conduz a uma visão mutiladora do real na medida em que se
limita a operar pelos princípios: a) de disjunção entre a reflexão filosófica
e o conhecimento científico e, dentro deste, entre os campos da Física,
da Biologia e das Ciências do Homem e ainda, no interior de cada um
destes campos, num sempre crescente número de disciplinas, matando a
possibilidade de compreensão da unidade do real; b) de redução do todo
complexo (cada realidade) ao simples (as suas partes ou elementos); c)
de abstracção, na medida em que procura compreender a(s) realidade(s)
através da quantificação, medida, matematização e cálculo das relações
entre os seus elementos.
Nesta situação, desenvolve a ideia de complexidade, pondo em relevo:
a) o princípio dialógico entre contrários, por exemplo entre a ordem que
se degrada em desordem (terceiro princípio da termodinâmica) e a de-
sordem que se repõe em ordem (processo de auto-eco-organização); b) o
princípio de recursão organizacional entre causa e efeito (redemoinho); c)
o princípio hologramático (“não apenas a parte está no todo, mas o todo
está na parte”)38.
Nos últimos tempos e nos últimos livros em que, para além de tudo
o mais, encontramos este exemplo de mais um pensador que no decorrer
ou no termo do seu percurso, descobre a educação como tema central,
vem atribuindo à educação importância decisiva, pondo em relevo que “as
cinco finalidades educativas” estão ligadas entre si e devem alimentar-se
umas às outras: “a cabeça bem feita que nos dá aptidão para organizar o
conhecimento, o ensino da condição humana, a aprendizagem do viver,
a aprendizagem da incerteza, a educação cidadã”39.
E, respondendo a um convite da UNESCO, apresenta os Sete Saberes
para a Educação do Futuro: as cegueiras do conhecimento (o erro e a ilu-
são); os princípios de um conhecimento pertinente; ensinar a condição
humana; ensinar a identidade terrestre; enfrentar as incertezas; ensinar a
compreensão; a ética do género humano40.
47
Atitude questionadora
48
te, mal se distinguem as fronteiras entre filosofia e educação, apesar das
derivas platónica e aristotélica, ficou sempre reservado à filosofia um pa-
pel fundamental na pesquisa sobre o processo educativo. Neste contex-
to, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), desde o Acto Constitutivo (1945) e o Projecto para
a Filosofia (1946), adoptou como programa atender a dois princípios:
colocar instrumentos internacionais adequados ao serviço do avanço dos
estudos filosóficos e colocar a filosofia ao serviço da educação internacional
dos povos. E hoje continua a assumir-se como “instituição filosófica” e a
considerar a “filosofia como instrumento” para a “formação do espírito
público” em todas as idades (Declaração de Paris para a Filosofia, 1995)42.
Nesta linha de pensamento, a Filosofia vem sendo apresentada como
disciplina instrumental central do curriculum no processo da Educação
ao longo da vida43, e a abrir para o horizonte de tudo o que possa haver
ainda mais além:
“Há homens que vêem as coisas que são e perguntam porquê? Eu sonho coi-
sas que nunca foram e pergunto porque não? (Robert Kennedy).
A “mêtis”
49
meiro, semelhante aos discursos dos outros convivas, analisa e explica o
tema racionalmente; o segundo ultrapassa tudo e todos, os conceitos, as
categorias, a própria filosofia, na medida em que o orador transmite a
revelação de Diótima de Mantineia sobre o enlace entre Mêtis (a Pobreza,
a Invenção) e Porus (o Expediente, o Recurso) de que nasceu o Amor44. No
contexto em que o discurso é proferido, o Amor aparece à maneira de be-
bida fermentada, que tem a ver com a mesa, com o pão e sobretudo com
o vinho, e faz levitar os convivas na esfera da musa poética, da inspiração,
do inebriamento, da comunhão, do êxtase, da plenitude, da alegria.
Nesta passagem do milénio e já a partir da reacção crescente, ao longo
dos séculos XIX - XX, contra a cultura herdada do iluminismo ocidental,
desde Blondel a Nietzsche e a Levinas no espaço continental, e desde os
pragmatistas a R. Rorty no mundo anglo-saxónico, o árbitro epistémico
vem-se deslocando da instância da mera racionalidade, da inteligência,
do conhecimento, da ciência, do saber, da verdade, para algures na ins-
tância da além-razão, do coração, da liberdade, do querer, do desejo, dos
valores, do bem.
Mais recentemente, na linha da ruptura pragmatista de Sellars e
Quine que rejeitam a postura epistemológica de aceitação da verdade
como correspondência linguagem-mundo, e da teoria não representacio-
nista de Davidson para quem a linguagem constitui apenas meio mate-
rial, instrumento ou ferramenta que se utiliza para tecer descrições acerca
da realidade, R. Rorty chama a atenção para a exigência da superação
dos discursos literais por discursos metafóricos e para o facto de o leque
de vocabulários não abarcar apenas os de tipo científico, mas também e
sobretudo, os de tipo artístico, ético e religioso.
Nesta ordem de ideias, acrescenta ainda que: a) a mudança e acelera-
ção da mudança a que os indivíduos, povos, culturas e civilizações se en-
contram sujeitos, introduzem permanentemente novas prioridades, pers-
pectivas e metamorfoses que dão origem a novos vocabulários, linguagens
e discursos, de tal modo que a arte do pensamento não é outra coisa que
a arte de reinterpretar, redescrever e recontextualizar o mundo e, através
dela, de encontrar os caminhos da libertação, emancipação, crescimento,
auto-criação e realização de cada um (foro da vida privada) inseridos no
50
processo de desenvolvimento da(s) comunidade(s) em que participamos
(foro da vida pública); b) neste processo, os agentes com maior êxito se-
rão precisamente aqueles que, por força do seu talento ou do seu génio,
no mundo em mutação acelerada em que vivemos, serão mais capazes
de descobrir prioridades, forjar metáforas, utilizar vocabulários e discur-
sos e proceder a novas reinterpretações, redescrições e recontextualizações do
mundo e da vida, para poderem definir melhores estratégias de emancipa-
ção, libertação, crescimento e realização das pessoas e dos grupos.
A estes agentes capazes de alimentar um tal processo dinâmico,
po(i)ético, criativo, sem fim à vista, R. Rorty dá o nome de os poetas
fortes45.
Por sua vez, o crítico literário H. Bloom sublinha que os critérios para
distinguir os grandes escritores da Grande Literatura não podem situar-se
ao nível de qualquer ideologia, mas ao nível da dignidade da estética e
da capacidade de os autores (re)viverem e deixarem testemunho das mais
profundas experiências da realidade como profetas, filósofos, ensaístas,
dramaturgos, poetas, romancistas. Aos que reconhece como tais chama
ele os autores fortes. E constata que existiram em todos os tempos, desde
os autores da epopeia de Gilgamesh e do Mahabharata, até aos da Bíblia
e do Corão. E procura fixar o cânon dos maiores do Ocidente, de Dante
e Shakespeare a Kafka e Brecht46.
O mesmo têm procurado fazer outros críticos, nas áreas da arquitec-
tura, escultura, pintura, música, cinema, em ordem a detectar os artistas
que melhor captaram as diversas dimensões da existência.
Como intérpretes dos mais profundos abismos da experiência do ser
humano, todos eles, autores e artistas, se transformaram nas testemunhas
credenciadas para falar dos mistérios que envolvem a condição humana
e, por isso, os mais capazes de despertar em todos nós os mais elevados
níveis de consciencialização e promover as melhores condições de desen-
volvimento, tendo em conta o facto de que
51
gens quiméricas, uma poli-existência no real e no imaginário, no sono
e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensível e no secre-
to, efervescências larvares nas suas cavernas e grutas insondáveis. Cada
um tem em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos insaciados
de desejos e de amores, de abismos de infelicidade, imensidades de in-
diferença gelada, abrasamentos de astros em fogo, explosões de ódio,
desvarios débeis, clarões de lucidez, tempestades dementes”47.
É por isso que muitos daqueles autores têm sido agraciados, nas respec-
tivas áreas culturais, com o título de Educadores: os Autores dos velhos livros
religiosos, dos Avestas à Bíblia e ao Corão, Homero Educador da Grécia,
Virgílio Educador de Roma e, desde Dante e Shakespeare, tantos Educadores
de áreas culturais do Ocidente e de outras regiões do nosso mundo!
Donde lhes vem esta capacidade, força e energia? Não apenas da in-
teligência que espicaça a procura da verdade e a amizade do saber, mas
do sentimento que explode na experiência da vida e na urgência do agir.
Nestas condições, podemos verificar que a educação é obra, não apenas
nem acaso sobretudo da inteligência mas do “coração”, não do eu ce-
rebral mas do eu profundo, e que procede não só e provavelmente não
tanto pela investigação e a descoberta da verdade, como pela intuição e a
com-paixão do amor.
É por isso que entre os Autores Fortes catalogados por críticos literários
como H. Bloom, outros vêm sendo escolhidos pela intuição da comu-
nidade mundial, como o Autor de O Principezinho (o livro, desde o seu
aparecimento em 1943 foi traduzido em mais de 160 línguas) que hoje
tem lugar cativo na lista dos escritores intemporais.
O coração tem razões que a razão desconhece!
A serendipidade
52
fadas Os três Príncipes de Serendip (ou Serendib, do árabe Sarandib, anti-
go nome do Sri Lanka) cujos heróis faziam sempre descobertas, aciden-
talmente ou por sagacidade, de coisas que não procuravam”48. E. Morin,
depois de mencionar a arte do paleontólogo e do pré-historiador, define-
-a como “arte de transformar detalhes aparentemente insignificantes em
indícios permitindo reconstituir toda uma história”49.
Neste sentido e tendo em conta a consonância com a etimologia de
investigação, a partir do substantivo latino vestigĭum, “planta ou sola dos
pés (das pessoas e dos animais), pegada, pista, rasto, rastro, passo, pisada,
traço, vestígio, sinal, marca”, e do verbo latino vestīgo, as, āvi, ātum, āre,
“seguir o rasto, ir na pista; procurar, buscar com cuidado…”, podere-
mos entender a serendipidade como a forma mais sofisticada e elegante
de pesquisa.
Não é maravilhoso, com efeito, particularmente nos últimos sé-
culos, que a partir de inesperadas descobertas de simples indícios, te-
nhamos obtido acesso a imensos horizontes em novas áreas do Micro
e do Macrocosmos, da Biologia e da Genética, da Paleontologia e da
Pré-História?
Nas dimensões do método anteriormente invocadas, a iniciativa per-
tence, feitas as contas, a cada um de nós. Mas porque na realidade eu me
encontro num universo cuja arquitectura não domino e que considero
“meu” por qualquer tipo de condescendência mas não por registo de pro-
priedade, reconheço que é possível e mesmo natural que existam aborda-
gens alternativas ao tema da educação, no que diz respeito às linguagens,
aos conceitos e às práticas educativas, apresentadas por seres pensantes que
ou ficam longe no espaço, ou me precederam no tempo ou, acaso, me
ultrapassam na capacidade.
Relativamente às linguagens, nas formas recebidas dos nossos antepas-
sados, reveste-se de extrema importância a possibilidade de, a partir da
palavra que utilizamos e através dos elos intermédios, remontarmos ao
seu étimo que, em grego (étimon, ou), significa “o verdadeiro sentido da
palavra segundo a sua origem”. Enquanto se mantém a impossibilidade de
chegar à matriz última da linguagem humana e a dificuldade em determi-
nar o tempo e o território original do proto-indo-europeu e o facto de que
53
“a questão da origem exacta da maior família linguística do mundo per-
manece por isso em aberto”50, é conhecido o esforço realizado, no que res-
peita às matrizes desta família linguística, por autores como Grandsaignes
d’ Hauterive e Heckler, A. G. da Cunha, Alain Rey, Bailly, Chantraine,
Corominas y Pascual, Ernout-Meillet, Giacomo Devoto, etc..
Mais perto de nós e no que respeita ao campo da educação, é co-
nhecido o valiosíssimo trabalho que Álvaro Gomes vem realizando, em
grande número de publicações, particularmente em Heuresis. Por uma
Genealogia/ Arqueologia das Ciências da Educação (2000), no sentido de
abrir caminhos de compreensão aprofundada dos processos educativos.
Procedendo ao jeito do aproveitamento de “indícios”, utilizado por cien-
tistas, paleontólogos e pré-historiadores, porque “também as palavras têm
os seus curricula vitae” que permitem, estando “atento a esses curricula
acompanhá-las desde a fonte até à foz”, o Autor, estudando “as marcas
linguísticas, os rastos e os restos dessas cristalografias semânticas, como
se duma espécie de Isótopo 16 ou de Carbono 14 linguístico se tratasse”,
remonta a “mais de sessenta” “das principais raízes” de interesse para a
educação e procede a amplas e profundas análises no âmbito da pedago-
gia e da metadidáctica51.
Assim, para além do recurso a novas metáforas que proporcionem
o acesso a novas reinterpretações, redescrições e reconstextualizações de que
nos falava R. Rorty, passamos a dispor de um método precioso e mais
radical, susceptível de ser utilizado, com as devidas adaptações e cautelas,
na nossa reflexão.
Por um caminho paralelo à aventura da linguagem, outros indícios e
indicações poderão permitir-nos avançar também na procura da génese
dos conceitos, remontando até à sua origem histórica, ao momento em
que aparecem, ao húmus cultural em que germinam e aos autores que os
descobrem e utilizam.
À pergunta sobre quem conduz ou, pelo menos, aponta o dedo a
mostrar o caminho do desenvolvimento humano até à plena realização
pessoal e, por extensão, comunitária e cósmica, a História da Educação
tende sempre a responder: o que mais longe chegou ou mais alto subiu,
o mais (lat. magis), o Mestre (lat. Magister)52. E menciona, por exemplo,
54
Confúcio e Lao Tseo, Buda e Mahawira, Zoroastro e Sócrates. Porque, no
exigente percurso humano de ser consciente, livre e responsável, parece
terem trilhado o caminho do esforço estritamente pessoal, até atingirem a
acmé da consciência, da lucidez, da audição, da iluminação.
A partir do Mestre Interior que parece ter existido neles e acaso existe
em cada um de nós53.
Pelo que se impõe urgentemente deixar em nós falar o Outro.
Entre os 26 Autores Fortes incluídos no seu Cânon Ocidental, ante-
riormente citado, H. Bloom coloca em destaque Walt Whitman como
“o grande poeta da América” (Laurence dirá “ o maior dos poetas mo-
dernos”) que conta, na estrada larga (open road) da sua influência, os
anglo-saxões T. S. Eliot, Wallace Stevens, Hart Crane, D. H. Lawrence
e John Ashbery e os Prémios Nobel hispano-americanos Luis Borges
(Argentina), Pablo Neruda (Chile), Alejo Carpentier (Cuba) e Octávio
Paz (México).
Walt Whitman tornou-se conhecido por distinguir três instâncias no
seu eu: a Alma (soul) mais ligada à realidade natural, o Eu (self) que tra-
duz a personalidade própria de um americano agressivo, um dos duros
do Oeste, e o Eu Verdadeiro ou Eu, Eu mesmo (real me or me myself) que
exprime o Eu na sua relação com o Mistério. É na obediência a esta ins-
tância superior do seu Eu que lhe é reconhecida a categoria de Mestre.
Fernando Pessoa, outro dos 26 Autores Fortes do Cânon Bloomiano, pa-
rece ter chegado mais longe na mesma linha54. Depois de criar a escola inte-
rior dos seus heterónimos em que o Mestre é Alberto Caeiro55, de ser aceite
como Mestre pelos seus contemporâneos56, de ter entrado na “divina consci-
ência da minha missão”57, de saber que “ter uma acção sobre a humanidade,
contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me
tornando os graves e pesados fins da minha vida”58 e de confessar a Ofélia
que o “meu destino pertence a uma Lei [… ] e está subordinado cada vez
mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam”59, mostra
seguir sempre o seu Eu Superior, Profundo, Verdadeiro, o Eu, Eu mesmo, de
acordo com a palavra de um Mestre do Oriente que falava num livro da sua
biblioteca pessoal, em texto por ele anotado: “Sê o teu melhor eu e não caias
no erro fatal de te tornares outro além de ti mesmo”60.
55
No que se refere às práticas desta ascese, o mesmo Fernando Pessoa
aponta-nos ainda o caminho, ao afirmar que “as formas de educação do
mal para o bem (não há educação de outra forma)”61 têm lugar através
do “misticismo que é ter o sentimento nítido de uma coisa que se não
sabe o que é”62 e pela iniciação, o processo que, através da submissão à
condução hierárquica (neófito-adepto-mestre), reconduz o homem a si
próprio, tendo em conta que “por não ser a iniciação um conhecimento
mas uma vida”, os homens “não apenas apreenderão as palavras em que
se exprimem, mas viverão por si próprios as suas vidas”63.
Neste sentido, acontece historicamente que os Mestres Maiores (lat.
Majōres) não tiveram por hábito falar da meta que pretendem atingir
mas apenas do caminho para lá chegar: Tao ou simplesmente Caminho,
na China; Xintó ou Caminho dos Deuses, no Japão; Caminho do Meio na
audição hindu e na iluminação budista.
Finalmente, para além das palavras, das concepções e das práticas e
de todos aqueles que as protagonizam, remontando mais ainda, consta
na História o nome daqueles que afirmaram terem estado, no Sinai, na
Galileia ou no Deserto, em contacto com o Mais ou o Máximo e terem
regressado com as mensagens d’Ele, ou seja, os Profetas, entre os quais
emergem Moisés, Jesus, Maomé.
Ninguém de nós poderá negar que os três são considerados, por mi-
lhares de milhões de membros da Família Humana, os maiores educado-
res da Humanidade. E também eles continuam a falar-nos do Caminho
do Êxodo, da Diáspora e do Retorno na tradição judaica, simplesmente do
Caminho, primeiro nome histórico do Cristianismo, do Caminho Certo
na oração (“salat”) islâmica.
As tremendas dificuldades que se avolumam hoje na compreensão
dos problemas do nosso mundo, desde o ambiente à economia, à polí-
tica e à cultura, passando pela educação, não são de molde a permitir a
economia do recurso a estas fontes. Pelo menos é o que vêm sugerindo
autores como Atlan, Goblot, Hannoun, Fullat, entre outros, tendo mes-
mo o primeiro começado a falar da eventualidade de o nosso tempo se
encontrar maduro para “o retorno dos profetas”64.
56
Por tudo o que acabamos de recordar, a serendipidade revela o espíri-
to de abertura e de aventura, no qual o que mais conta não é o trabalho
que faço mas a energia acumulada em mim para o poder fazer, não é a
minha produtividade mas o meu enriquecimento interior, não é centrar-
-me em mim próprio mas inserir-me no Todo que me abarca e transcen-
de, não é pretender conduzir-me por caminhos que além da próxima
curva eu ignoro mas deixar-me conduzir no Caminho pelo Saber que
tudo abarca, eventualmente não é alegrar-me com o êxito da descoberta
mas extasiar-me com a surpresa da aparição, não é deixar-me inebriar pelo
elã da conquista, mas deixar-me pacificar na aceitação do dom.
57
dade, “passaram inda além da Taprobana”65.
Que nos seja permitido seguir na peugada do caminho trilhado pelos
educadores-educandos dos tempos mais remotos e mais recentes. E sem
perdermos o optimismo ingénuo, sagaz e pertinaz da nossa infância, pois
ao deambularmos por terras de Serendip ou de qualquer outra ilha em
mar distante, há sempre uma voz que ecoa, um mestre que passa, um pro-
feta que anuncia, um caminho que seduz.
Para isso, impõe-se começar pelo momento histórico de meados do séc.
XX em que, pela primeira vez e pela voz dos seus máximos representantes
e a respeito dos problemas cruciais da humanidade, incluindo a educação,
todos os povos do mundo ensaiaram falar a mesma linguagem.
58
•
Capítulo II
59
como “Família Humana” nos próprios termos do seu primeiro grande
documento.
Subordinado ao título Declaração Universal dos Direitos do Homem,
esse texto situa-se na linha de progressiva compreensão da dignidade e dos
direitos da pessoa humana em claros precedentes históricos, desde a Magna
Carta em forma de outorga unilateral de privilégios feita pelo rei à nobre-
za (1215), do Habeas Corpus (1679) e do Bill of Rights como pacto entre
o rei e o povo representado pelo Parlamento (1689), até às Constituições
Americana (1776) e Francesa (1791) em termos de Proclamação feita pe-
los Representantes do Povo constituídos em Assembleia Nacional.
Mas a Declaração Universal dos Direitos do Homem, avança muito
mais na medida em que, elaborada e aprovada pelos Representantes dos
Estados Membros, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas
em 1948 e, a partir dessa data, aceite por todos os novos Estados que a
ela foram aderindo, representa hoje a totalidade da população do planeta
percepcionada através do conceito de “Família Humana”66.
O seu conteúdo arranca de poderosas matrizes culturais de diferentes
povos da Terra e exprime as perplexidades e decepções e também as pers-
pectivas e esperanças daquele momento histórico. O essencial resume-se
à profissão de fé das Nações Unidas no advento de um mundo em que a
dignidade e os direitos de cada um dos membros da “Família Humana”
sejam reconhecidos e respeitados, à convicção da necessidade de procurar
o caminho para a concretização desse advento e à descoberta de que esse
caminho é a educação.
60
ção ao propósito de procurar atingir sobre eles uma concepção comum; c)
proclamam que esta concepção comum, vertida na presente Declaração,
exprime o “ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”,
“todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade”, através do “ensino
e educação”.
A importância de que se reveste para o aprofundamento do conceito
de educação nos dias de hoje, obriga-nos a explorar o texto original nes-
sas três partes correspondentes ao que todos nós sentimos, pensamos e
queremos.
“Considerando
que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis
constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo;
[…] que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem con
duziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da humanida
de e que o advento de um mundo em que os seres humanos tenham
a liberdade de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi procla
mado como a mais alta aspiração do homem […] ”
61
cias ditas humanas, abre caminho para a mais profunda reflexão no âmbito
da antropologia, da axiologia e da ética; d) que este mundo novo em que os
seres humanos, “libertos do terror e da miséria”, possam gozar da “liberda-
de de falar e de crer” e beneficiar “da justiça e da paz” é, afinal, o mundo
de todos os Valores; e) que a dignidade da pessoa, enquanto “fundamento”
deste mundo dos Valores, emerge como o conceito de que tudo irradia e
ao qual tudo conflui no horizonte do existir humano: a natureza, a vida, a
economia, a sociedade, a política, a arte, a religião.
As dimensões da dignidade humana aparecem invocadas logo no iní-
cio do texto:
62
essa dimensão e muito para além dela, se manifesta ao nível do uso da
liberdade e das atitudes e comportamentos de ordem moral.
Nesta ordem de ideias e ao longo da Declaração, os direitos decorren-
tes da dignidade da pessoa humana são mesmo frequentemente interpre-
tados em termos de liberdades fundamentais. E os próprios direitos, na
linha da inteligência, são descritos em termos de liberdade:
63
trariamente preso, detido ou exilado” (Art.º 9º), “a que a sua
causa seja julgada equitativamente e publicamente” (Art. 10), a
ser presumido como “inocente até que a sua culpabilidade seja
legalmente estabelecida” (Art.º 11º), “a não ser objecto de inter-
venções arbitrárias na sua vida privada” (Art.º 12º), a “circular
livremente” (Art.º 13º), a “procurar asilo” (Art.º 14º), “a uma
nacionalidade” (Art.º 15º), “a se casar e fundar família” (Art.º
16), “à propriedade” (Art.º 17º);
– “à liberdade de pensamento, de consciência e de religião” (Art.
º 18º), “de opinião e expressão” (Art.º 19º), “de reunião e de
associação pacífica” (Art.º20º), de “tomar parte na direcção dos
assuntos públicos do seu país” (Art.º 21º);
– “à segurança social” (Art.º 22º), “ao trabalho” (Art.º 23º), “ao
repouso e às distracções” (Art.º24º), “a um nível de vida sufi-
ciente” (Art.º 25º), “à educação” (Art.º 26º), “a tomar livremen-
te parte na vida cultural” (Art.º 27º).
64
É obvio que esse mundo da dignidade humana, em que pretendemos
habitar, não existe perante os nossos olhos terrenos nem, apesar do anún-
cio delirante de todas as utopias, consta que tenha existido historicamen-
te em algum tempo e/ou em algum lugar. Pelo contrário, o que nos é
dado ver e constatar ainda hoje, a cada passo e em cada momento, é a
existência dos horrores da miséria, da fome, do medo, do terror, da ex-
ploração, da violência, da guerra, da morte, do genocídio, do terrorismo.
Consequentemente, esse mundo não pode ser objecto de observação, análi-
se e pesquisa próprias da investigação científica e/ou da reflexão filosófica.
Certamente por essa razão, o Preâmbulo avança um dado novo.
“Considerando
que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamaram de novo a
sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da
pessoa humana, […]
se comprometeram a assegurar, em cooperação com a Organização das
Nações Unidas, o respeito universal e efectivo dos direitos do homem e
das liberdades fundamentais; […] que uma concepção comum destes di-
reitos e liberdades é da mais alta importância para que seja plenamente
cumprido este compromisso […]”
65
sim, por muito estranho que isto soe aos nossos ouvidos nos dias de hoje,
a fé e o compromisso, a fé-compromisso que, na sua raiz indo-europeia * IE
Bheid-, envolve exactamente esse significado.
Neste sentido e medida, o mundo novo em que seja reconhecida a
dignidade e sejam respeitados os direitos de todos os homens, porque não
é um dado abordável pelas ciências exactas e da natureza, nem é um facto
constatável pelas ciências humanas, da geografia à história, à sociologia e
ao direito, apresenta-se como alternativa apenas possível, desejável, rea-
lizável, a partir da base da fé e do compromisso de todos nós, e ainda do
esforço em obtermos, sobre eles, uma “concepção comum”.
A verificação da necessidade de, a partir da fé originária de todos os
povos na dignidade e direitos da pessoa humana, se avançar na procura
de uma concepção comum dessas realidades, vai no entanto constituir uma
dolorosa experiência nos anos seguintes à proclamação da Declaração.
Se por um lado a elaboração do seu texto, em 1948, resulta basica-
mente do consenso entre as grandes nações vencedoras, Estados Unidos,
Inglaterra, França, Rússia e China (as mesmas que irão deter o direito de
veto no Conselho de Segurança e que, de algum modo, atendendo aos
impérios coloniais da maior parte deles, representavam todas as regiões
do Planeta), a etapa histórica já então emergente, marcada pela cisão nos
dois blocos da Guerra Fria, assiste ao eclodir das mais graves dissensões
na interpretação do texto a partir das respectivas ideologias políticas, de-
signadamente no que se refere ao sentido, alcance e aplicação dos direi-
tos humanos. Esta guerra conceptual vai caracterizar a lenta e aciden-
tada gestação (seis anos, de 1948 a 1954, na preparação pela Comissão
dos Direitos Humanos, e 12 anos, de 1954 a 1966, na discussão pela
Assembleia Geral) dos dois grandes documentos que vêm complemen-
tar a Declaração Universal dos Direitos do Homem: o Pacto Internacional
Relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, exigido pelo Bloco
Oriental, e o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, pro-
posto pelo Bloco Ocidental, ambos adoptados em 196667.
Mas o problema agrava-se a partir de outro processo histórico de al-
cance mais abrangente e universal, porquanto de natureza também cultu-
ral, que lentamente começa a interferir com a situação: o movimento de
66
independência dos povos colonizados (desde 1947 na Índia e Paquistão
Ocidental e Oriental e, com maior incidência nas décadas de 60 e 70,
na generalidade dos povos de África e de alguns da Ásia e Oceânia) que
passam a fazer parte das Nações Unidas e, muitos deles, a pretender cons-
tituir um terceiro bloco político (Conferência de Bandung, 1955)68.
Este processo histórico afecta profundamente a evolução humana dos
últimos 60 anos, ao refazer, em sentido contrário, o movimento milenar
de separação dos povos.
A primeira colonização do Planeta (desde a África até à Polinésia) pro-
tagonizada pelo Homo Sapiens, ficou marcada pelo fenómeno da pulveri-
zação dos grupos humanos, separados entre si por diversíssimos habitats
no espaço e níveis de desenvolvimento no tempo, pela emergência de pe-
culiares tipos de experiências, ocupações e práticas a partir da influência
dos respectivos ecossistemas, e ainda pelas constelações de sentimentos de
pertença, mitos e ritos, crenças e tabus, religiões e místicas, a que global-
mente atribuímos a designação de culturas.
O mundo antigo foi, durante milénios, um mosaico de culturas que
se desconheciam.
O lento e progressivo reencontro, proporcionado pelos choques de
civilizações com fronteiras comuns e, mais recentemente, pelos desco-
brimentos geográficos (século XV-XVIII), não proporcionou uma des-
coberta recíproca dos povos em pé de igualdade, mas a oportunidade de
os “descobridores”, portadores de um grau de “civilização” mais avançado
em termos de força e poder, se imporem aos outros, chegando a extremos
de lhes destruírem a cultura e a própria existência. O texto da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, em 1948, considera ainda de algum
modo normal esta situação, ao preconizar, na parte final do Preâmbulo,
que o reconhecimento e a aplicação universais e efectivos dos direitos
humanos sejam promovidos “tanto entre as populações dos próprios
Estados Membros como entre os territórios sob a sua jurisdição”, e ainda
ao acautelar, relativamente à igualdade de direitos, que
67
território seja independente, sob tutela, não autónomo ou submetido a qualquer
limitação de soberania” (Artº 2º).
68
É esta “concepção comum” que irá constituir a base da elaboração de
documentos de âmbito regional como o da Comissão Europeia para a
Protecção dos Direitos Humanos, a Convenção Americana dos Direitos
Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e outros
documentos fundamentais da ONU ou das organizações associadas,
tais como a Convenção sobre os Direitos da Mulher, a Convenção sobre os
Direitos da Criança, a Declaração do Milénio, etc., a que teremos ocasião
de nos referir mais adiante.
É ainda a fé nesta “concepção comum” que irá impregnar o trabalho
dos 450 historiadores do mundo inteiro empenhados na elaboração de
uma verdadeira História da Humanidade em que se procura dar o sal-
to do mero registo dos factos para o estudo dos factores relevantes da
Antropologia em ordem a atingir a “inteligência das culturas”69.
Confirma-se deste modo que a dignidade humana, fonte dos direitos
e deveres do homem, constitui o eixo da roda em que gira o mundo dos
valores mundialmente aceites como objecto da fé-compromisso de todos
os Povos da Terra. E afirma-se energicamente que este mundo assume,
por isso mesmo, as dimensões do que é universal e ecuménico, tem pro-
vavelmente a ver com aquilo que, em cada uma delas, se relaciona com o
espaço do valor e do sagrado, e contém a força capaz de mobilizar todos
os seres humanos para sobre ele alcançarem uma concepção comum e pro-
gredirem unidos numa longa marcha.
“A ASSEMBLEIA GERAL
Proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem
69
como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, afim
de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a
constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e educação,
por desenvolver o respeito destes direitos e liberdades e por promover,
por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu
reconhecimento e a sua aplicação universais e efectivos […]”
70
tegidos por um regime de direito para que não seja constrangido, em
último recurso, à revolta contra a tirania e a opressão […]”
71
“tendo as guerras nascido do espírito humano é no espírito humano que
deve gerar-se a paz”.
E se admitirmos que um tal advento implica necessariamente uma
revolução, ela irá ser definida mais tarde, nos termos de Paulo Freire, não
como revolução violenta e pretensamente instantânea, provocada pelas
armas materiais, que ao visar apenas a inversão da situação entre opres-
sores e oprimidos para deixar tudo na mesma acaba sempre por se tor-
nar superficial e falsa, mas como “revolução pedagógica”, conduzida pelos
processos da “conscientização” e do “diálogo”, revolução humana, acaso
lenta, mas, no final, a única profunda e verdadeira.
Em síntese: a) a partir da consciência de ser possível um mundo de
liberdade, justiça e paz, cujo fundamento é o reconhecimento e o respei-
to pela dignidade e os direitos de todos os membros da família humana
e de que o advento desse mundo constitui a mais alta aspiração de todo
o homem, b) e de que os povos das Nações Unidas, na Carta, procla-
maram de novo a sua fé na dignidade e valor da pessoa humana e o seu
comprometimento no esforço de encontrar uma concepção comum desses
direitos e liberdades, c) a Assembleia Geral das Nações Unidas propõe a
Declaração Universal dos Direitos do Homem como ideal comum a atingir
por nós todos, indivíduos e organizações da sociedade, povos e nações,
pelo caminho do ensino e educação.
Nestes precisos termos, a educação aparece verdadeiramente como o
Caminho da Nova Humanidade.
72
terminados objectivos e valores, decide o rumo da própria existência.
Nesta situação, podemos avançar desde já três anotações, correspon-
dentes à nossa vivência, ao nosso conhecimento, ao nosso agir.
Bem vistas as coisas, o que realmente existe não é um mundo mas
dois: o mundo da miséria, da ignorância, da injustiça, da exploração, do
ódio, do terror, da guerra, do genocídio e do terrorismo em que de facto
nos movemos, e o mundo do reconhecimento e respeito pela dignidade
e os direitos de todos os membros da Família Humana a que aspiramos.
Entre eles existe uma distância incomensurável mas que implica sempre,
uma vez que a nossa “mais alta aspiração” consiste em passarmos de um
para o outro, um caminho a percorrer, com uma direcção ou um sentido:
do mundo em que vivemos para o mundo em que pretendemos habitar.
Também não existe apenas um tipo de conhecimento, mas dois: o
conhecimento da inteligência que incide sobre o mundo físico e moral
em que nos movemos e procede, a partir da experiência dos sentidos e/ou
das deambulações da razão, pelos caminhos da ciência e/ou da filosofia,
e o conhecimento da fé-compromisso que brota do mais fundo de nós
mesmos e recai sobre o mundo da dignidade humana e dos valores que
dela decorrem, e corresponde ao tipo de aposta numa realidade a que os
sentidos e a razão não têm acesso, porque, de facto, ainda não se expõe
à nossa observação e análise, mas apenas se constitui projecto da nossa
vida e meta da nossa mais “alta aspiração”. Entre estes dois tipos de co-
nhecimento existe uma hierarquia, na medida em que, ao contrário do
que normalmente pensamos, é a fé na dignidade e nos direitos da pessoa
humana que monitoriza os movimentos da razão no trabalho de procura
e obtenção de consensos sobre uma “concepção comum” acerca deles.
Finalmente não existe só um tipo de comportamento mas dois: ou
pela utilização das forças exteriores ao ser humano e postas ao seu serviço
pela sociedade para conter e dominar as raízes do mal (agentes e instru-
mentos da lei, do direito e da justiça), ou pelo recurso à fonte das energias
e dos dinamismos interiores que estão na base do próprio crescimento da
pessoa, em ordem a tornar-se ela mesma agente da construção do novo
mundo a que aspira. Só este caminho do ensino e educação pode preser-
var radicalmente o horizonte da liberdade, estimular o advento da justiça,
73
conduzir à solução do entendimento recíproco e da paz.
A assimilação em profundidade destas constatações leva-nos a sentir
que mais do que perante uma simples reforma ou uma revolução, nos
encontramos a braços com os primeiros indícios de uma mudança de pa-
radigma na maneira como encaramos a existência, susceptível de induzir
consequências e impactos imprevisíveis na atitude perante a vida em que
nos posicionamos, na armadura conceptual e vocabular com que nos ex-
primimos, na orientação moral e ética que adoptamos. Vejamos melhor.
Estar e Passar
Não podemos dizer verdadeiramente que somos (do lat. sedēre, estar
sentado, donde nos vêm, por exemplo, os lexemas de sé e de sede ou centro
de funcionamento de uma qualquer estrutura, associação ou organização),
mas acaso apenas podemos afirmar, de acordo com a delicada e ao mesmo
tempo enérgica fórmula de Plotino, tantas vezes glosada pelos místicos de
todos os tempos e lugares, que brotamos, manamos, fluímos de uma origem
e somos atraídos e sugados por um fim71. Neste sentido e à luz desta realida-
de, também não podemos fazer a economia de uma revisão crítica de ou-
tras tantas filosofias do passado, desde a oposição oriental entre yin e yang
e a dialéctica pré-socrática entre a permanência (“o que é, é, e o que não
é, não é”, de Parménides) e a transitoriedade (“panta rei”, de Heraclito),
passando pelas concretizações que nos chegam desde os Gregos, de ser
isto ou aquilo (números de Pitágoras, conceitos de Sócrates, ideias de Platão,
formas de Aristóteles, essências da Escolástica, formas à priori de Kant) até
aos dilemas da filosofia medieval (“ser ou não ser” de Tomás de Aquino) e
74
da literatura moderna (“to be or not to be” de Shakespeare).
Nem podemos dizer que estamos no mundo (do lat. stare, estar de pé,
donde nos vêm, por exemplo, os lexemas de estância, estado, estatuto e,
de um modo geral, de tudo o que é parado ou estático). Não o podemos
dizer, mesmo que o nicho que ocupamos no planeta se nos imponha pela
sua delimitação num Entre-os-Rios (Mesopotâmia), pela sólida antiguida-
de e configuração na “Terra Mãe da Índia”, pela extensão amuralhada no
Império do Meio (China), pela altura sagrada em Manchu Pichu (Perú),
pela superfície monótona e cinzenta dos esquimós nos gelos do Pólo ou
pela areia movediça e tórrida dos Tuaregues no Deserto do Sara. Menos
ainda podemos pretender encontrar, a partir dessa ideia, a definição de
ser humano, como fizeram os representantes das “filosofias da existência”
de meados do século XX (“o homem como estar-no-mundo”). Só vendo
as coisas muito à superfície, poderemos dizer que estamos, pois mesmo
sob a aparência de estarmos, aqui ou além neste mundo, de facto nós só
estamos a passar por ele, depois de entrarmos e antes de sairmos.
Nem somos de, nem estamos em. Passamos por.
Não temos uma Terra. Vivemos uma Páscoa.
Saber e Crer
Por outro lado, acerca desse mundo novo, para o qual nos sentimos ar-
rastados pela nossa maior aspiração enraizada no mais fundo do nosso ser,
não podemos afirmar que o “conhecemos” nem mesmo, falando com rigor,
que “indagamos, pesquisamos, investigamos” acerca dele, mas apenas que
aspiramos a ele o que já implica alguma esperança de o poder encontrar,
que acreditamos na dignidade da pessoa humana e nos seus direitos, e que
nos comprometemos a procurar chegar, sobre eles, a uma concepção comum.
Torna-se assim claro que, acerca do que para nós é essencial e constitui
a nossa maior aspiração, não tem qualquer fundamento o optimismo inte-
lectual de correntes que atravessam toda a história do pensamento, desig-
nadamente ocidental, desde a afirmação ingénua dos sofistas (“sabemos”)
até ao posicionamento não menos infantil do positivismo e cientismo
do séc. XIX (“sabemos” ou, pelo menos, “vamos saber”) já em queda no
75
neo-positivismo e positivismo lógico do último século (“perante o que
não sabemos só vale calar”, Wittgenstein).
Falham também os esforços para superar toda a gama de cepticismos,
desde os espontâneos de certa filosofia grega, até aos reflectidos de algum
pensamento moderno, como o esforço cartesiano de, através da dúvida
metódica, chegar à certeza do “eu sou”, ou o trabalho de Kant tendo em
vista a fundamentação “crítica” de todo o conhecimento. Resta a atitude,
não isenta de fragilidade e angústia, dos que reconhecem que conhecemos
a verdade não apenas através da razão mas também através do coração, que
no Ocidente acabam por fazer uma “aposta” (Pascal) e no Oriente procu-
ram chegar à “audição” (Hinduísmo) ou à “iluminação” (Budismo).
Sentimos e proclamamos assim, em consonância com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, que acerca do essencial, objectivo da
nossa “maior aspiração”, o conhecimento radical desse mundo não pode
ser obtido pela experiência, pesquisa ou reflexão, mas apenas pela Fé-com-
promisso, como base do esforço de diálogo entre todos nós para atingir-
mos uma concepção comum.
Nem sabemos, nem propriamente investigamos. Cremos.
Não possuímos certezas. Fazemos uma aposta.
Agir e Seguir
76
Não se trata portanto de acertar com um sítio, um lugar (topos) ou
uma casa (oikos) onde possamos estar, morar ou habitar, de acordo com
as formas de pensamento estáticas e ancestrais que nos dominam (desde
o covil e a gruta nos tempos mais remotos, às tendas e cabanas da seden-
tarização no neolítico, às casas e palácios das cidades e aos arranha-céus
das megalópoles actuais), mas trata-se de percorrer o caminho de desen-
volvimento pessoal ao longo da nossa existência, de acordo com o sentido
convergente das grandes mundividências do Oriente e do Ocidente.
E porque sabemos pela experiência universal que o tempo de que pes-
soalmente dispomos para caminhar é limitado e, mais grave ainda, que
ignoramos totalmente a sua duração, não parece que se justifique exaurir
a nossa capacidade na elaboração de projectos de longo prazo, cuja inani-
dade o futuro acaba por revelar, desde as grandes utopias sonhadas pelos
modernos a partir de Tomas Moro (séc. XVI-XVIII) ou programadas
pelos “socialistas utópicos” (séc. XIX) ou repensadas pelos “mestres da
suspeita”, Marx, Nietzsche, Freud (séc. XIX-XX), até às “realizadas” nos
“campos de extermínio” do Terceiro Reich, nos “goulags” da URSS, nos
“saltos em frente” da China de Mao, nos “barcos em fuga a afundar-se
no mar” do Cambodja de Pol Pot (séc. XX) ou, mais recentemente, nos
projectos em curso do terrorismo internacional.
E porque “el camino se hace caminando” (A. Machado) e é cada vez
maior a incerteza que neste nosso tempo envolve até o horizonte do pró-
ximo futuro (E. Morin)72, a dificultar-nos a elaboração e concretização
de programas globais, resta-nos a alternativa de, no seguimento da aposta,
adoptarmos uma estratégia, apta a lançar mão, em cada momento, de todos
os recursos disponíveis para enfrentar cada situação emergente: a educação.
Nem nos gerámos nem nos conduzimos. Crescemos.
Não dispomos de projectos ou programas. Desenvolvemos uma
estratégia.
77
3. Coordenadas essenciais do Caminho da Educação
78
Acontece que o teatro (do gr. théa “espectáculo, visão”, mais o sufixo
-tron, “instrumento”, ou seja “máquina de espectáculo”) é o lugar onde
podemos também observar (do verbo grego theōréō, composto de théa “es-
petáculo” e horáō “ver”, donde nos vem teorema e teoria) todo o drama
como espectador (do radical *IE Spek- “olhar com atenção, contemplar,
observar”, donde nos vem ainda aspecto e circunspecto, espécie e especialis-
ta, espelho (lat. speculum) e especulativo, inspecção e perspectiva, respeito e
suspeito, etc.).
O drama é também espectáculo. Para além de actores, somos também
espectadores. E como espectadores, na atitude de quem observa, examina,
testemunha, sofremos também de expectativa, na ânsia de quem aguarda
e espera sem saber o quê, a despertar em nós sentimentos que desabro-
cham em questões que explodem em perguntas e aguardam respostas.
Mas as respostas, se as houver, apelam para decisões (do *IE Skei-,
“cortar, fender, rachar”, donde nos vêm cisão e decisão, cédula e cisma,
césar e czar, ciência e consciência, esquife, esquina, esquizofrenia, etc.) sobre
os comportamentos a adoptar perante as coisas do palco, as pessoas do
elenco e os valores que estão em causa na acção.
E ao agirmos de acordo com essas decisões pessoais, tornámo-nos co-
-autores (do * IE Aug- “(a)crescer, aumentar”, donde nos vem ainda au-
gurar, autoridade e auxílio, Agosto e Outono) do drama, e corresponsáveis
pelo seu desenvolvimento e desenlace74.
79
medida, como co-autor do drama da Família Humana.
A riqueza acumulada de todos estes sentidos, ampliável ainda através
de termos como personagem, personalidade, etc., põe em relevo a natureza
dramática da condição e da existência humana.
Nas suas diversas facetas – máscara, papel, actor, espectador, co-autor
– o conceito de pessoa encontra-se difuso em todas as culturas antigas,
emerge na palavra grega prosopon, clarifica-se nas discussões teológicas
dos concílios ecuménicos da Igreja cristã recém-reconhecida pelo poder
político constantiniano (séc. IV), ingressa na tradição filosófica medie-
val com a definição de Boécio, rationalis naturœ individua substantia (De
duabus naturis, III) e chega até nós como expressão do estatuto do ser
humano na prenhez e complexidade das suas múltiplas dimensões que
podemos reduzir a três: como centro de relações com as outras pesso-
as do universo inter-subjectivo em que todos nos encontramos; como
princípio, consciente e livre, de todos os seus comportamentos e, por isso
mesmo, responsável por todos eles; como fim de todos os meios e nunca
meio para qualquer fim.
Por outras palavras, o ser humano apresenta-se, sempre e simultanea-
mente, como centro e não periferia, sujeito e não objecto, fim e não meio.
Enquanto centro, desde sempre e de uma forma ou de outra em todas
as culturas, no contexto de todas as coisas que se movem à face da terra,
entre os astros que circulam na abóbada celeste, os mares e as ilhas, as
montanhas e os vales, as pedras mesmo as mais preciosas, as árvores, as
plantas e as flores, os animais da terra, os peixes do mar e as aves do céu,
nós, os seres humanos temos consciência de que nada encontramos de
mais grande, elevado e nobre e valioso do que nós próprios. Como já o
reconhecia o coro na tragédia grega Antígona:
80
É o ser dos recursos infindáveis:
até contra o futuro se faz forte;
e cura-se de males incuráveis…
Aquilo que o detém? Somente a Morte”75.
81
tem dignidade. Só as pessoas têm dignidade ou valor, as coisas só têm
preço”77.
82
da Família Humana que passou a constituir a base dos conceitos que se
abordam a seguir.
83
A referência inicial ao ser humano e depois a todos os seres vivos que
nascem de outros seres vivos alarga-se, assim, posteriormente, a todos os
seres criados, na medida em que também eles recebem a existência e, por
extensão, ao conjunto das leis que os regem.
Remontando à raiz indo-europeia *IE Gen-, Gne- (I) que envolve as
ideias de gerar e nascer (donde provêm galáxias de lexemas como, por um
lado, gene, génese, genealogia, genital, gente, gentílico, gerar, geral, germe,
indígena, irmão (lat. germanus), etc. e, por outro lado, prenhe, cogna-
to, nado, nascer, nação, natal, natureza, etc.), verificamos que natureza
designa tudo o que recebemos por geração e por nascimento e que, por
isso mesmo, constitui o património originário que sustenta a permanência
do ser que somos e representa a lei que rege todo o processo do nosso
desenvolvimento.
Nesta ordem de ideias, natureza exprime a realidade que não depende
de nós mas de que nós dependemos, que nós não constituímos mas nos
constitui, que sendo-nos contemporânea nos é anterior, que sendo-nos
imanente nos é também transcendente, pelo que o nosso crescimento
verdadeiro só obtém sentido quando se processa de acordo com ela, nos
termos do grande princípio que o estoicismo nos legou.
Ao conceito antigo de natureza corresponde o conceito moderno de
dignidade, como se compreende remontando também do uso corrente ao
seu étimo.
A montante de outras acepções concretas e derivadas, no singular ou
no plural, como título, honraria, prerrogativa, cargo de elevado nível na
hierarquia social ou consciência do próprio valor, a dignidade aparece
definida como “qualidade do que é grande, nobre, elevado” (Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa).
Derivada do lat. dignus, exprime a ideia de “o que convém”, está em
conformidade, é apropriado, adequado, certo, e designa, no sentido abs-
tracto, o “carácter ou qualidade daquele que é (e por analogia daquilo
que é) digno, ou seja, como convém, e que, por isso, merece aprovação ou
mesmo respeito” (Foulquié, Dictionaire de La Langue Philosophique)79.
Por sua vez, dignus encontra-se relacionado com o latim decet que en-
volve o sentido de “é conveniente, está conforme” e, por isso, em sentido
84
abstracto, “dignidade tem a ver com decoro, decência, compostura, gravi-
dade […] que infunde respeito” (Dicionário da Academia)80.
Remontando mais, encontramos que decet deriva da raiz indo-euro-
peia *IE Dek-, Dak,- que envolve a ideia geral de receber e está na origem
de, para além de dignidade, uma galáxia de lexemas, muitos dos quais
constituem parte essencial do vocabulário educativo como, através do
grego, dogma, doxa, paradoxo, didáctica, didascália e, através do latim,
decência, decoro, dignidade, discente, disciplina, discípulo, docente, doutor,
doutrina, documento, etc. (Álvaro Gomes)81.
Limitando-nos por agora ao lexema dignidade, constatamos, de acor-
do com o sentido geral do étimo, que para aquém de todas as acepções
concretas, no sentido profundo e originário da especial nobreza reconhe-
cida ao ser humano, ele exprime uma realidade que é, não adquirida ou
conquistada pelo nosso próprio esforço, mas originária e gratuitamente
recebida por cada um de nós.
Não entrando, ao menos por agora, na indagação da fonte ou origem
que possa constituir o património comum de onde advém a todos os
seres humanos esta dignidade, até para não nos determos em eventual
discussão entre heranças culturais e/ou religiosas, assentemos na concep-
ção comum que a este respeito nos é transmitida pela Declaração Universal
dos Direitos do Homem: o dom recebido da dignidade humana é “inerente
a todos os membros da Família Humana”.
Somos assim levados a pensar e a dizer que a dignidade, à qual tan-
tas vezes apelamos instintivamente quando a sentimos afrontada em nós
próprios e/ou nos outros, pertence a cada homem, não por qualquer mé-
rito ou nível de grandeza conquistado, mas pelo estatuto recebido de ser
humano, e por isso constitui um valor que nos pré-existe, e que existe e
persiste em nós independentemente do nosso comportamento, huma-
namente sensato ou insensato, legalmente legítimo ou ilegítimo, moral-
mente bom ou mau.
A dignidade humana está lá, desde o início e até ao termo do nosso cur-
riculum vitœ, como dom recebido, anterior e transcendente a todo e qual-
quer nível ou estatuto por nós conquistado, de natureza económica, social,
política, cultural, legal, moral, religiosa ou outra. Por isso, porque pertence
85
ao foro do recebido e não do adquirido, a dignidade humana mantém-se ín-
tegra e inalterada, ao longo da vida inteira, em todos e cada um de nós: na
criança e no velho, no são e no doente, no rico e no pobre, no cidadão e no
estrangeiro, no suspeito e no acusado, no absolvido e até no condenado.
E a mesma origem e estatuto devem ser atribuídos aos direitos hu-
manos, na medida em que a Declaração Universal dos Direitos do Homem
implicitamente e os dois Pactos Internacionais complementares explici-
tamente reconhecem que “estes direitos provêm da dignidade da pessoa
humana”, e ainda aos deveres correspondentes.
86
”concepção comum” a alcançar e o “ideal comum” a atingir.
E de acordo com a separação dos três poderes clássicos, legislativo,
executivo e judicial.
Ao poder legislativo, onde quer que ele se encontre, compete pro-
clamar que o reconhecimento e o respeito pela dignidade humana é a lei
fundamental do funcionamento da Polis ou, nos termos da mencionada
raiz *IE Dek-, Dak-, e dos lexemas derivados que integram grande parte
do vocabulário do processo educativo, constitui o documento-base a ter
em conta, a linha ortodoxa que transcende todas as heterodoxias e todos os
paradoxos, o dogma que preside a toda a didáctica, a doutrina essencial a
transmitir na tarefa docente por todos os doutos e doutores e a aceitar dócil
e disciplinadamente em todas as disciplinas que fazem parte do curriculum
por todos os discentes e discípulos, a fim de que, mesmo que comecem
por apenas decorar, evitem qualquer situação indecorosa merecedora de
desdém e acedam a um nível de decência humana e decoro social à margem
do qual nenhuma decoração ou condecoração pode ter qualquer sentido.
Ao poder executivo e recorrendo agora à matriz *IE Reg- que envolve
a ideia geral de “movimento em linha recta” e aos lexemas que dela deri-
vam, cumpre sempre e tão somente agir e tudo pôr a funcionar de acordo
com tudo o que estabelece a Lei fundamental do respeito pela Dignidade
Humana entendida como régua ou regra de todo o comportamento, à
maneira do que faz a relha do arado ou a correia de transmissão, seguindo
a linha recta e a rectidão, o caminho recto, directo, direito nessa direcção,
de tal modo que todos os reis e regentes, reitores e regedores, directores e
dirigentes, de qualquer nível e em qualquer lugar, exerçam a sua função
de reinarem e de tudo erigirem e regerem, dirigirem e corrigirem, exigirem
e endereçarem, endireitarem e rectificarem, de acordo com os regimes, regi-
mentos e regulamentos ajustados, no respectivo reino ou região.
Ao poder judicial e agora no sentido da raiz *IE Deik- Dik-, que en-
volve a ideia geral de “mostrar”, e dos lexemas dela derivados, pertence
agir de tal modo que todos os juízes (lat. judices) mantenham permanente
sindicância ao cumprimento da sua missão jurídica de apontar aquele “ca-
minho recto” como o verdadeiro e único paradigma, de, sem condições ou
abdicações ou outras quaisquer contradições e sem, por outro lado, ceder a
87
qualquer tipo de desditosa ditadura, com o dedo (lat. digitus) o indigitar,
indiciar e indicar, de, com a linguagem, o dizer (lat. dicere) através de
todas as palavras do dicionário sem nunca o desdizer, de o ditar (lat. dic-
tare), de o pregar (lat. praedicare) e apregoar, de abençoar (lat. benedicěre)
a quem o segue e amaldiçoar (lat. maledicěre) a quem o ofende e, neste
caso, o interdizer (lat. interdicěre), o julgar (lat. judicare) e assim vingar
(lat. vindicare) o “caminho recto” da Família Humana e a ordem geral do
Universo.
Mas, como vimos acima, A Declaração Universal dos Direitos do
Homem, depois de afastar o caminho da guerra e defender a via do
Direito, aponta, como solução radical para provocar o advento do mundo
em que seja reconhecida a dignidade, respeitados os direitos e cumpridos
os deveres do homem, o caminho do ensino e educação.
88
lat. adolescĕre, “crescer” e através das formas dos particípios activo e pas-
sivo, vêm os lexemas adolescente (que cresce) e adulto (crescido). Importa
acrescentar que, no latim antigo, (e)ducare apresenta o sentido originário
de alimentar, nutrir.
Temos ainda que estas raízes estão na origem de realidades expressas
quer em forma de verbos transitivos quer em formas de verbos intransiti-
vos ou reflexos. Pertence aos pais-educadores conjugar os verbos transiti-
vos (gerar, alimentar, educar), pertence aos filhos-educandos conjugar os
verbos intransitivos e reflexos (nascer, crescer, desenvolver-se).
Esta relação revela ainda uma ordem funcional entre estes verbos, na
medida em que os primeiros estão ao serviço dos segundos: somos gera-
dos para nascer, alimentados para crescer, educados para nos desenvolvermos.
Os educadores, por mais adultos, fortes, sábios que sejam não têm por
missão essencial mandar, gerir, decidir, mas sim colocar-se ao serviço dos
educandos. Educar não é dominar mas servir.
Começa deste modo a configurar-se o estatuto da educação exercida
pelos pais como estratégia para alcançar o objectivo de proporcionar aos
filhos as melhores condições de crescimento.
Finalmente a educação deverá promover o crescimento dos educan-
dos em todas as suas dimensões, aptidões, faculdades ou capacidades sob
pena de ficar em desequilíbrio, e visar todos os valores que podem pro-
porcionar a sua plena realização sob pena de permanecer truncado.
Podemos assim compreender melhor que a tarefa de educação vai
consistir em mobilizar os recursos que são as coisas da natureza para criar
as melhores condições às pessoas da comunidade para que elas cresçam até
atingirem a própria realização na esfera dos valores.
Existe uma diferença subtil mas profunda entre os dois primeiros mo-
mentos deste processo – mobilizar os recursos que são as coisas e criar as
melhores condições às pessoas – que nós correntemente confundimos
mas que as raízes lexicais ajudam a distinguir.
No primeiro momento vamos encontrar a raiz *IE Ag- (que envolve a
ideia geral de empurrar, impelir, levar tudo, ou seja, as coisas, pela frente),
donde nos vêm, de entre uma galáxia de lexemas, ágil, agir, agitar, coagir,
exigir e ainda exame e estratégia.
89
No segundo, deparamos com a raiz *IE Deuk-, Duk-, (que envolve a
ideia geral de conduzir, guiar, liderar, ir à frente de todos, ou seja dos seres
humanos), donde nos vêm, de entre outra galáxia de lexemas, abduzir,
deduzir, induzir, conduzir, produzir, reduzir, seduzir e ainda condutor e
duque (em ital. condottiere, doge, duca, duce) e também educar, lexema
que vai seguir um caminho próprio.
Em rigor, importa distinguir entre “levar tudo pela frente” e “andar à
frente de todos”, entre empurrar e conduzir, entre estratégia e liderança. A
estratégia refere-se directamente à mobilização das coisas (meios, recursos,
instrumentos) enquanto a liderança tem a ver com a condução das pessoas.
Por outro lado, em sentido englobante não destituído de alguma proble-
maticidade e isento de riscos, tradicionalmente consideram-se as duas
partes como complementares.
Com efeito, a etimologia de estratégia mais próxima de nós (a partir do
grego stratós, oû, “exército” e do grego ágō, “conduzir”), evoca a ideia de
que o estratego ou chefe militar da antiga Atenas empurra o exército, como
máquina monstruosa integrada por todos os meios de que dispõe contra
o inimigo, caminhando à frente dos seus homens. Por outras palavras, o
mesmo general mobiliza (empurra) todos os meios logísticos e anda (vai à
frente) das suas tropas, arrasta as coisas e dá exemplo aos homens.
Assim, em educação, trata-se de pôr em movimento tudo e todos, as
coisas e as pessoas, as coisas para servirem as pessoas e as pessoas para cres-
cerem dentro do reconhecimento e respeito pelos valores que constituem
a meta da sua realização e, em primeiro lugar, pela fonte desses valores
que é a dignidade humana.
É neste sentido de todos crescermos no sentido de nos tornarmos ca-
pazes de contribuir para mobilizarmos as coisas, como meios ao serviço
da criação das melhores condições para que as pessoas, como fins, possam
crescer até atingir a sua plena realização nos valores, que adoptámos a
palavra caminho no título deste livro e damos importância à noção de
estratégia no seu desenvolvimento.
Nos capítulos que seguem e na perspectiva abrangente da dignida-
de e direitos de todas as pessoas dentro da Família Humana, passamos a
abordar as diversas dimensões e fases da educação, respeitando o proces-
90
so histórico da génese dos conceitos e da sua metamorfose e integração
em perspectivas cada vez mais amplas: as reformas da educação escolar, as
revoluções da educação de infância e da educação de adultos e o novo para-
digma da educação ao longo da vida de cada um de nós, na comunidade de
que fazermos parte, dentro do universo em que nos movimentamos.
91
•
Capítulo III
93
As três fases do processo vêm descritas no Relatório que a Comissão
Internacional da UNESCO, criada em 1970, constituída por sete repre-
sentantes das diversas regiões do Mundo e presidida por Edgar Faure,
apresentou em 1972 sob o título Aprender a ser82.
Na linha das tradições iluministas do Ocidente e do Oriente cuja
cultura dominante atribuía à educação o estatuto de primeira priorida-
de na “preparação para a vida”, e de modo particular na perspectiva do
Ocidente que a partir da revolução industrial privilegiava a sua dimensão
económica, as principais nações beligerantes mais ou menos afectadas
pela guerra, apostam na reconstrução nacional, dando prioridade má-
xima à preparação do que denominam “recursos humanos”, através do
lançamento de grandes reformas do “sistema educativo” que, tendencial-
mente, se confunde com o subsistema escolar.
Passados alguns anos e a condizer exactamente com aquela redução
de perspectiva, o resultado geral pode sintetizar-se no progresso da trans-
formação da “escola de elites” em “escola de massas” e é registado pelo
mencionado Relatório da seguinte forma:
94
-se e a organizar-se em movimentos de contra-culturas, de subculturas,
de tribos e de redes que se articulam, ao longo do tempo, num movimen-
to de contestação global da escola, da sociedade e da cultura vigentes, nos
termos de outro registo do mesmo Relatório:
95
mente em preparar os homens para tipos de sociedade que não exis-
tem ainda”85.
96
”repouso, paragem, divertimento” e, mais tarde, já na época do impé-
rio romano, de centro de estudo, a escola, estruturada ao redor do texto
escrito e da relação professor e grupo de alunos, num tempo e espaço
demarcados86, desenvolve-se, “avant la lettre”, nas civilizações do Médio
Oriente (escolas de escribas), da China (mandarinato), da Índia (primei-
ras “universidades” bramânicas), da Pérsia (estruturas de educação per-
manente) e, já mais de acordo com o sentido etimológico, na Grécia
(Sofistas e Sócrates, Isócrates, Platão e Aristóteles), no mundo helenista
e no império romano, nos centros da catequese cristã e, mais tarde, nos
modelos de educação permanente muçulmana87.
Nos tempos mais recentes, e mantendo a perspectiva classista, dentro
de cada época e em cada espaço cultural, o tipo de escola passa a ficar
determinado pelo tipo de homem que se pretende formar.
Assim, na Idade Média Ocidental, a partir das iniciativas de instituições
monásticas e das intervenções de Carlos Magno (800), desenvolve-se uma
extrema variedade de instituições que vai das escolas monacais, episcopais e
palatinas, visando respectivamente a formação de monges, clérigos e prínci-
pes e, mais tarde, das universidades orientadas para a formação dos letrados
da época, às escolas de cavalaria para a nobreza, “scholae latinae” para a alta
burguesia, “escolas dos ofícios” para os homens dos misteres88.
Já nos tempos da modernidade quando, durante o século XVI nos
países reformados e um século mais tarde nos países católicos, germi-
nam as estruturas de educação de nível primário e, a seguir, entre elas
e as universidades, se posicionam os colégios abertos às classes médias,
é sabido que o objectivo final de todas essas instituições consistia na
preparação das crianças e jovens para a vida, como fiéis das diversas
igrejas nos séculos XVI e XVII, súbditos de Sua Majestade no século
XVIII, patriotas das nações no século XIX, cidadãos dos diversos es-
tados no século XX89.
Entretanto, se o período do Antigo Regime (sécs. XVI-XVIII) ain-
da corresponde à progressiva organização do subsistema escolar a par-
tir do modelo de instituição educativa marcada por um espaço, um
tempo, um conteúdo e um método, em que os antigos processos de
aprendizagem por impregnação vão cedendo lugar aos processos de
97
instrução e estudo rigoroso, mas ainda sob a orientação das correntes
culturais dominantes na tradição de cada sociedade, poderemos dizer
que o advento da idade contemporânea (sécs. XIX-XX), com a afir-
mação do estado-nação, a adopção plena da vernaculidade e a subs-
tituição dos colégios pelos liceus e as escolas técnicas e profissionais,
representa a consolidação da escola como estrutura tendencialmente
estatal, única, verticalizante, fechada e obrigatória90.
A progressiva complexificação do sistema de produção e de consu-
mo através das diversas fases da revolução industrial, da taylorização do
trabalho, da difusão das teorias económicas, da periodicidade de crises
tais como a “grande depressão” dos anos 30 e do progressivo acesso das
massas trabalhadoras ao subsistema escolar, conduz a que, no período
histórico mais recente, toda a vida humana incluindo a educação seja
polarizada pelas estruturas de ordem económica.
A “preparação para a vida” tende a privilegiar a função de fornecer aos
jovens a capacidade de resolver os desafios da existência adulta no que
respeita aos problemas da produção e do consumo, de os equipar com
os recursos da ciência e da técnica para desempenharem uma profissão,
obterem um emprego, ocuparem um lugar no mundo do trabalho.
É este tipo de instituição escolar que prevalece em meados do século
XX e vai tornar-se objecto das grandes reformas.
98
po, nas motivações, no próprio desenvolvimento (os promotores da Lei
Langevin-Wallon mostrar-se-ão mais tarde extremamente decepcionados
com a sua frágil aplicação)91, todas elas convergem em três objectivos fun-
damentais, de carácter económico, social e cultural.
O primeiro, que nas condições daquele momento histórico prevalece,
tem a ver com a recuperação urgente da economia. Para além das destrui-
ções materiais sofridas e da morte de milhões dos seus filhos, todas estas
nações se defrontam com um grave problema comum: os seus quadros
profissionais encontram-se não apenas desfalcados mas também ultrapassa-
dos pelo avanço que entretanto se verificara nas ciências e nas tecnologias.
Pelo que a todos se impõe recomeçar pela superação do atraso na prepara-
ção científica, técnica e profissional dos chamados “recursos humanos”.
O segundo objectivo, de carácter eminentemente social, visa criar
condições para proporcionar a “igualdade de oportunidades” a todos os
cidadãos. Passando sobre a ambiguidade inicial de que esta fórmula se
reveste e que mais adiante abordaremos, pretende-se essencialmente, de
acordo com os ideais democratizantes das sociedades da época, criar con-
dições que permitam superar e substituir a estrutura de “pirâmide” que a
sociedade classista e elitista vinha impondo desde sempre ao subsistema
escolar. Procura-se que um número cada vez maior de crianças e jovens
entre no subsistema escolar e avance nele o mais possível (no limite até
ao escalão mais alto). Trata-se de educar mais cidadãos e durante mais
tempo, abrindo a todos a porta de acesso e de sucesso.
Finalmente, no que se refere à dimensão cultural, recria-se um certo
ambiente iluminista, apela-se para os valores tradicionais da modernidade
designadamente a ideia, tantas vezes reevocada ao longo da história, de que
a educação é o valor supremo, e adoptam-se princípios como o que vai conti-
do no slogan utilizado por John Kennedy durante a campanha presidencial
(1959): «a maior riqueza da América é o espírito dos seus filhos”.
Os resultados das reformas tornam-se visíveis, nos países que as puse-
ram em prática, à volta do início da década 60 e, à primeira vista, pare-
cem saldar-se num êxito espectacular: o investimento elevado e persisten-
te no sistema educativo cujo montante de “despesas públicas mundiais”
se posiciona “em segundo lugar, imediatamente a seguir às despesas mi-
99
litares” desencadeia a transformação progressiva e acelerada da “escola de
elites” na “escola de massas”, até ao ponto de o nível do desenvolvimento
educativo, “pela primeira vez na história”, ultrapassar o nível do desen-
volvimento económico92.
Entretanto e um pouco inesperadamente, começámos a tomar consci-
ência de que havia também o reverso da medalha. Se antes, quem tivesse
progredido significativamente nos diversos escalões do percurso escolar
encontrava certamente um emprego, porque havia mais lugares de traba-
lho disponíveis do que pessoas preparadas para os ocupar, agora a situa-
ção inverte-se: começa a haver cada vez mais pessoas preparadas do que
lugares disponíveis e abre-se a crise das grandes convulsões sociais oca-
sionadas pelo aumento do sub-emprego e do desemprego. Começamos
assim a compreender que a aplicação generalizada das reformas, mesmo
atendendo apenas ao ponto de vista económico conduzia também, a par
do êxito, ao insucesso espectacular.
Mas esta disfunção no plano económico sobrevém acompanhada e
potenciada por outras, mais virulentas ainda, nos planos social e cultural.
E tudo, em conjunto, vai contribuir para a contestação generalizada que,
a partir de agora, a juventude protagoniza.
100
existe a preocupação pelo meio ambiente que inesperadamente se irá im-
por a seguir, guiando-se ainda pelo velho ditado do empresário do séc.
XIX “onde há lixo [poluição] há massa [dinheiro]” e com a ajuda do
Plano Marshal, as nações europeias que tinham saído semi-destruídas da
II Guerra Mundial conseguem, ao longo da década 60, atingir e superar
largamente o nível de desenvolvimento económico de antes do conflito.
A década 60 é mesmo proclamada pela ONU a “Década do
Desenvolvimento”.
A partir dos anos 50, nascem, proliferam e desenvolvem-se novas ciên-
cias, técnicas, processos de pesquisa, de inovação e de invenção. Os pro-
dutos industriais de aí resultantes (electrodomésticos, circuitos integrados,
lasers, transístores, subprodutos da era espacial, rádios portáteis, fitas de
gravação, compact discs, televisões, equipamentos de foto e vídeo, calcula-
doras, etc.), aliados ao embaratecimento da produção, incremento da pu-
blicidade e aumento do número de consumidores, desencadeiam o ciclo da
“economia de excedentes” com repercussões na sociedade e na cultura.
Entretanto, apesar de ela própria ser uma das primeiras e principais
beneficiárias de todo este progresso, levada pelo seu instinto profundo
e certeiro, a juventude da década 60 envereda pelos caminhos da con-
testação. E do acervo de reivindicações de toda a ordem faz emergir um
conjunto mais ou menos consciente de críticas.
No sistema económico, os jovens sentem que se encontra posto em
causa o objectivo essencial da escola: fornecer-lhes uma preparação para o
mundo do trabalho que lhes garanta, no fim do curso, a obtenção de um
emprego. E quando se verifica que a causa reside no facto de a educação
ter progredido a um ritmo mais veloz que o da economia, perguntam se
há coordenação entre os dois sistemas e se é possível uma autêntica re-
forma do sistema educativo que não seja acompanhada de uma reforma
compatível do sistema económico.
Detectam um problema semelhante no sistema social. É certo que
a escola, libertada em parte do tradicional estatuto de “escola de elites”
com tendência a isolar-se da vida real e a fechar-se na sua torre de marfim,
franqueara as suas portas à sociedade e era hoje uma “escola de massas”.
Mas também aqui, por falta de reformas semelhantes no sistema social,
101
a escola, sendo já para muitos, ainda não é para todos, deixando que os
fossos sociais continuem a cavar-se, e ainda mais fundo, entre maiorias e
minorias. Como jovens, sensíveis aos ideais e apelos de justiça, são leva-
dos a contestar este divórcio entre os dois sistemas.
No plano cultural, os problemas tornam-se ainda mais complexos.
Particularmente ao nível universitário, a escola, arrastada pelo peso da
própria instituição que a torna estruturalmente conservadora, sente difi-
culdade em acompanhar a evolução acelerada para o futuro, mantendo-
-se apenas atenta ao presente quando não ancorada no passado!
Em resumo, a escola aparece aos jovens como demasiadamente orien-
tada para o útil, a profissionalização e o trabalho, negligenciando a aqui-
sição da cultura como exigência humanística fundamental que é a ne-
cessidade de uma vida que tenha um sentido para a pessoa. A cultura
dominante no mundo dos adultos aparece mesmo aos jovens nas roupa-
gens de algo que é contra a verdadeira cultura.
É neste sentido que a “contestação universitária” à “(contra)cultura”
dominante se vai prolongar na “revolta dos jovens” em termos de “con-
traculturas” e “subculturas” opostas a ela.
102
Já na dimensão social, a conjugação de factores tais como a abertura
da economia, o incentivo social da reforma escolar que leva ao progres-
sivo enchimento das salas dos ensinos básico, secundário e superior e à
transformação da “escola de elites” em “escola de massas”, e ainda à subs-
tituição, embora parcial e lenta, da cultura oral e escrita pela visual e
multimédia através da passagem da Galáxia Gutemberg para a Galáxia
McLuhan (1962)95, abrem caminho à emergência da “aldeia global” e à
nova sensação de vivermos “num mundo único”.
Mas é no plano da cultura que, bem vistas as coisas, aquela beneficia-
ção adquire maior relevo. A transformação da escola de elites em escola
de massas acaba por envolver os alunos, os próprios professores e ainda os
mentores intelectuais e autores da “bibliografia” relevante da época, desde
Sartre, Wilhelm Reich, Gerard Mendel e dissidentes de Praga na Europa,
até Herbert Marcuse, Paul Goodman, Escuela de Cuernavaca e J. e M.
Rowntree nas Américas.
Por outro lado, a deslocação em termos da catalogação vigente, da
direita para a esquerda, desencadeia uma autêntica revolução cultural de
carácter “demótico” (baseado no “povo”) e “anómico” (em fuga às “nor-
mas”), transmitido em cartazes das manifestações de Maio de 68 que
ficaram famosos – “é proibido proibir”, “tomo os meus desejos como
realidade, pois acredito na realidade dos meus desejos”, “quando penso
em revolução quero fazer amor” – e a atingir as bases da sociedade tradi-
cional: “a família e a casa através da estrutura de relação entre sexos e ge-
rações” e o Estado e a sociedade a partir do ataque aos valores tradicionais
que os regem (Hobsbawm).
Esta mudança implica,
103
“híbridas”, de culturas presenciais (baseadas em relações cara a cara) para
culturas virtuais (mediatizadas por intercâmbios electrónicos), etc.”96.
104
jovens que brilharam em todas as dimensões da grandeza, da glória, da
virtude, da arte, do amor.
De facto, jovem e juventude derivam da raiz *IE Dei- que envolve a
ideia de “brilhar” e deu origem, através do grego e do latim, a lexemas tão
nossos familiares como deus, diva, divino, endeusar, entusiasmo, teísmo, teodi-
ceia, teologia, teoria e teosofia; dia, Diana, diário, diurno, diuturno; e também
Júpiter, jorna, jornada, (ver os cognatos francês jour e italiano giorno), jornal,
jornalismo; e ainda jovem, jovial, juvenil, juventude, rejuvenescer, etc.98.
105
a juventude acaba por entender que a sua missão vai consistir em criar
uma contracultura alternativa, de maneira assumida (Ocidente) ou anun-
ciada (Oriente, China).
De facto, é a partir desta década que se observam as explosões da revo-
lução cultural, inicialmente em universidades norte-americanas, a seguir
nas europeias, com o pico em Maio de 1968 em França e o epicentro nas
ruas da Rive grauche, próximas da Sorbone, em Paris, e depois, por razões
e em situações muito diversas, um pouco por toda a parte, da Europa ao
Japão, passando por Repúblicas do Leste (“Primavera de Praga”, “por um
socialismo de rosto humano” promovido pela vanguarda artística juvenil
– literatura de Kundera, teatro de Havel, cinema de Formam – vencida
em 1968 mas a anunciar a “Revolução de Veludo” de fins da década 80),
varrendo a China (“Revolução Cultural” do “Salto em Frente”), atingin-
do as Américas (ligação dos meios universitários ao Zapatismo no México
e ao Sendero Luminoso na Nicarágua) e chegando à África do Sul (activi-
dades dos “jovens leões”).
É certo que as duas maiores explosões desta revolução, a de Maio de
68 em França e a da “revolução cultural” da China, se revestiram de na-
tureza sísmica mas transitória. A primeira esgotou-se nos desafios contra
o curriculum e a (re)estruturação do ensino superior, contra a democracia
formal tecnocrática e militarizada da França, contra grande parte do có-
digo de valores ainda vigente na geração adulta da sociedade ocidental. A
segunda e apesar do entusiasmo que também gerou em grupos “maoistas”
do Ocidente, definhou no pais de origem devido às contradições internas
do “Grande Salto em Frente” para afugentar a “contra-revolução”, do
envio de milhões de estudantes das escolas para os campos afim de serem
“reeducados”, da quebra de entusiasmo dos jovens «guardas vermelhos»
guiados pelos que mais tarde vieram a ser apresentados como o “bando
dos quatro”101.
Mas as ideias motoras, de um lado proclamadas pela juventude,
106
favor abandonem o novo rumo, se não são capazes de ajudar, pois os
tempos estão a mudar”102,
107
A crise económica e as subculturas, tribos e redes
108
Europa, depois do pop-rock e do punk, vai sobreviver no acid house e (já na
década 90) no techno dos clubers e dos ravers do Reino Unido e, a seguir, irá
gerar na Alemanha o “Love Parade” anual de Berlim.
Na mesma linha, embora num contexto sócio-cultural muito dife-
rente, encontramos o “baile funk” que, a partir dos fins desta década 80,
assaltou as grandes cidades brasileiras, caracterizado quer pela música hi-
persexual nas favelas do Rio de Janeiro quer pelo conteúdo dos textos dos
muitos hinos de “funk” e “rap” da música secreta dos gangs cuja venda é
proibida e, por isso, passou a ser designada “funk proibidão”:
Toda esta situação pode ser vista como a crise do desencanto do indi-
víduo que, ao sentir-se isolado e/ou excluído da sociedade de massas, vai
juntar-se a outros, dando origem às tribos108, como em Espanha (tribos
urbanas), na Rússia (neformalniye grupirovki ou “grupos informais” dos
tempos da perestroika) e, noutros diferentes lugares, com percurso de si-
nal contrário: jovens leões contra o apartheid na África do Sul, “comandos”
nas revoluções da América Latina, grupos de pressão na queda do Xá do
Irão, triunfadores da “revolução de veludo” em Praga, grupos de acção
por altura da queda do Muro de Berlim, contestatários massacrados em
Tianamen (China).
Na década 90, entramos na “era das redes”. A utilização dos “web mo-
vements”, sobretudo a partir de 1989, vai fazer prevalecer a força da infor-
mação sobre a força das próprias armas, quer no fim da luta entre Este
e Oeste (Queda do Muro de Berlim), quer no início do confronto entre
o Norte e o Sul (Seatle, 1999) que em 2001 promove o I Fórum Social
Mundial de Porto Alegre, Brasil, contra o Fórum Económico Mundial
de Davos, Suiça, e faz emergir com a nova geração, já não da Galáxia
109
McLuhan mas da Galáxia Gates109, a “sociedade da rede”110.
É neste contexto (ver o filme A rede, de I. Winkler, 1995) que se
verifica a emergência dos hackers (de hack, cortar, dar uma patada), jo-
vens inicialmente ligados às contraculturas e defensores da substituição
das famílias pelas comunas que, marcando bem a sua diferença com os
crackers (jovens difusores de vírus), adoptam um novo tipo de ética a que
chamam nética, caracterizada por uma concepção lúdica da vida, liberta
do tempo, do espaço e da organização social111.
110
significado antropológico, centram o debate sobre o caminho a seguir em
termos de Info-ética.
Deste modo, espera-se também atenuar o afastamento entre gerações
que vem de tão longe e, tendo ainda em conta a longevidade crescente da
geração mais antiga, continua a acentuar-se112 e representa, provavelmen-
te, o principal responsável pela crise mundial da educação.
111
lugar de trabalho compatível;
– nestas condições e no limite, os contestadores não pedem uma
“reforma educativa” que aliás se encontra em vigor, nem preten-
dem fazer uma “revolução” que, a pesar do apoio entusiástico
oferecido a quente pelos revolucionários profissionais da épo-
ca113, lhes parece insuficiente mas, porque a escola lhes aparece
como um órgão atrofiado e inoperante do corpo social, passam
(como veremos melhor adiante) a exigir de algum modo, pura
e simplesmente, a “desescolarização” da sociedade ou até a apre-
sentar a “declaração de óbito” da escola;
– finalmente e pelas mesmas razões, os contestadores põem em cau-
sa, para além da universidade e do subsistema escolar, o próprio
sistema educativo e todos os outros sistemas, social, político, cul-
tural, na medida em que eles se revelam incapazes de responder às
necessidades e aspirações da geração emergente dos jovens.
112
to das áreas científicas contempladas ao longo do curriculum
escolar, a formação humana à formação profissional, deixando na
sombra a formação social e pessoal;
– pretendiam realizar a reforma do sistema educativo isolada-
mente, sem preocupação de verificar se eram realizadas reformas
paralelas nos outros sistemas (económico, social, político, cultu-
ral, etc.) em que se desenvolve a actividade humana;
– não tinham em conta o facto de a problemática da relação
pedagógica, professor-aluno dentro da sala de aula, ter de co-
meçar a ser inserida no contexto da relação mais ampla entre a
escola no seu conjunto e a sociedade dentro da qual se encontra
inserida;
– também não consideravam o facto de, pela aceleração da mu-
dança a que o mundo ia ficando cada vez mais submetido, a
educação escolar já não preparar o jovem para a vida toda, mas
constituir apenas a formação inicial a ter de ser prosseguida, na
fase de educação de adultos, pela formação contínua;
– sobretudo não atendiam ao facto de que os estudantes uni-
versitários, enquanto jovens adultos, já têm voz no mundo dos
adultos com direito a falarem e serem escutados.
113
(1972), a que acima fizemos referência, procede-se a uma profunda refle-
xão à escala individual, institucional universitária, nacional e mundial.
Cada um dos autores mencionados acima contribuiu para o esclareci-
mento da crise com as suas descobertas pessoais.
Ph. H. Coombs põe em relevo os sintomas da existência e aprofunda-
mento da crise115.
M. Mead analisa o processo de transmissão cultural entre gerações e
distingue as “culturas pos-figurativas” das sociedades primitivas em que
“as crianças aprendem primordialmente com os mais velhos” e se assiste a
uma mudança social lenta, as “culturas co-figurativas”, das grandes civili-
zações em que “tanto as crianças como os adultos aprendem com os seus
contemporâneos” e desencadeiam a mudança social acelerada, e as “cul-
turas pré-figurativas” a emergir agora, em que “os adultos também apren-
dem com as crianças” e os jovens imprimem uma aceleração ainda maior
à mudança social, na medida em que “assumem uma nova autoridade
através da sua captação pré-figurativa do futuro ainda desconhecido”116.
Illich menciona as “forças ocultas” que tudo mandam na instituição
escolar, hidden curriculum, hidden hand, hidden foundations e, em termos
chocantes para a época, fala de “desescolarização”, enquanto Reimer, cin-
co anos depois, falará mesmo de “morte da escola”117.
Estas últimas análises abrem já para a compreensão da crise que, nas
últimas três décadas do século XX, através da sequência de contracultu-
ras, subculturas, tribos e redes, se reveste de características cada vez mais
alarmantes no que diz respeito à educação e à própria existência da co-
munidade humana, a exigir uma reflexão aprofundada
A palavra crise parece ter nascido no campo da medicina onde signi-
ficava, “segundo antigas concepções, o 7º, 14º, 21º ou 28º dia que, na
evolução de uma doença, constituía o momento decisivo, para a cura
ou para a morte”118 e emprega-se hoje em todos os sectores da existência
humana para significar o “momento decisivo”, a “mudança súbita” entre
duas alternativas e a situação difícil, problemática, desgastante e angus-
tiante para as pessoas implicadas nessa transição.
Trata-se de um corte na realidade e do correspondente desajuste emo-
cional provocado nas pessoas.
114
De facto crise vem de uma dimensão da raiz *IE Ker-, Sker- que en-
volve a ideia geral de “cortar”119. Podemos portanto dizer, lançando mão
de lexemas derivados, que corresponde a corte, a espaço ou tempo curto
entre duas partes ou alternativas, que implica dificuldade em acertar sem
desacertar entre o certo e o incerto para chegar à certeza, em tudo concertar
para poder certificar, o que exige sempre, no que concerne ao cerne da
questão, o máximo discernimento, a capacidade discricionária para distin-
guir entre o discreto e o indiscreto, a disposição para guardar segredo sobre
o que é secreto e fazer passar tudo pelo crivo da razão para não cair no sin-
cretismo, enfim, não permanecer acrítico mas exercer a crítica e a diacrítica
em tudo o que é criticável, sempre à luz do respectivo critério, de modo a
quem estiver revestido de autoridade poder publicar o respectivo decreto,
sobretudo quando, em termos de endocrinologia social, houver lugar a
secreção ou excreção ou excremento com tendência para o ocultar por mera
hipocrisia ou se, no extremo limite, houver crime ou, pior ainda, uma
situação de criminalidade parcial ou generalizada.
Sintetizando, diríamos que toda a crise, porque sempre comporta in-
certeza e pode levar à hipocrisia ou degenerar em crime, exige discernimen-
to feito à base da crítica e à luz de um critério.
No caso pendente, importa reconhecer que a crise que se abateu sobre
a educação não é uma crise isolada de qualquer outra que afecte o ser
humano. É parte, porventura importante, da crise que na última metade
do século ou, falando com mais rigor, ao longo de toda a história da
Humanidade, afecta permanentemente o homem todo.
Nesta situação, compreende-se que analistas e historiadores como
F. Fukuyama (1992), Eric Hobsbaum (1994) e Samuel P. Huntington
(1996), perante a presente crise e a “revolução cultural” e os “conflitos de
gerações” e os “conflitos de civilizações” que ela comporta, confessem, de
um ou de outro modo, a sua dificuldade em compreender o presente e
prever o futuro120.
A provável razão de ser desta dificuldade reside no facto de a resolução
de uma crise histórica tão ampla e profunda exigir o recurso a um critério
com as mesmas dimensões. Que nunca poderá corresponder a critérios
de alcance parcial ou temporal correspondentes a ideologias ou doutri-
115
nas utilizadas por grupos económicos, classes sociais, Estados nacionais,
Blocos de Leste ou de Oeste que, durante grande parte do período de
tempo que analisamos, dominaram o palco do mundo e mobilizaram
milhões de seres humanos de um e outro lado do campo de batalha da
longa Guerra Fria, cuja inanidade é hoje bem patente e, a seguir, deram
lugar a uma pretensa liderança mundial e à guerra ainda mais feroz e des-
trutiva do terrorismo actual, cuja inanidade começa também a vir à tona
da consciência da humana.
O critério válido que anda esquecido e até por vezes desprezado como
utópico e ineficaz, só pode ser, importa reconhecê-lo uma vez mais,
aquele que desde 1948 foi acertado por consenso mundial como cor-
respondendo à “mais alta aspiração”, à “concepção comum” e ao “ideal
comum” de “todos os povos e todas as nações”: trabalhar pelo advento de
um mundo em que prevaleça o “reconhecimento da dignidade inerente a
todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalie-
náveis” como objectivo a atingir, e pelo “ensino e educação” como estratégia
para lá chegar.
E porque a educação “deve visar o pleno desenvolvimento da pessoa
humana” (Declaração Universal dos Direitos do Homem, Art. 26º, 2), o
que se impõe de imediato, como já descobrimos anteriormente, é utilizar
todos os meios (coisas) para criar as melhores condições para que todos
os seres humanos (pessoas) se desenvolvam até à sua plena realização nos
valores.
Na situação deste mundo em que a geração jovem procura ávidamen-
te crescer para ocupar o seu lugar dentro da Família Humana, importa
compreender até que ponto a geração adulta: a) entende ou não, real-
mente, que as coisas não passam de meios ao serviço de pessoas; b) cria ou
não as melhores condições para o desenvolvimento de todos os seres hu-
manos e, particularmente, dos jovens; c) ajuda ou não a que o desenvol-
vimento dos jovens vise a sua plena realização de acordo com a dignidade
da pessoa humana fulcro dos seus direitos e deveres.
Cada um destes pontos põe em causa, em cada um dos sectores ou
subsistemas fundamentais da vida do adulto, os valores que parecem pre-
valecer no mundo de hoje: no sub-sistema sócio-económico, o valor do ter,
116
no sub-sistema sócio-político, o valor do poder, no sub-sistema sócio-cul-
tural, o valor do conhecer e do agir.
Trata-se de saber se e até que ponto o mundo dos adultos conhece e
respeita a hierarquia vigente entre coisas, pessoas e valores.
E, na hipótese negativa, se encontra a possibilidade de reorientar a
educação no sentido de se empenhar “conscientemente em preparar os
homens para tipos de sociedades que ainda não existem”.
117
A origem do sistema de consumo encontra a sua razão de ser no facto de
o homem ser pobre de recursos e rico em necessidades. Estas necessidades
apelam para a procura da respectiva satisfação. O sistema de produção pro-
põe-se, através das instituições produtoras de bens e de serviços, proporcio-
nar os meios de satisfazer essa procura. Os produtos (objectos, ferramentas,
instrumentos, serviços, etc.) constituem portanto meios para os fins que os
homens, a título individual ou colectivo, se propõem atingir.
Pois bem, o Autor sente-se obrigado a reconhecer que “há característi-
cas técnicas nos meios de produção que inviabilizam o seu controlo num
processo político”, na medida em que verifica:
118
– a tendência para fomentar a alienação dos consumidores através
da aceitação, por parte deles, do princípio de que quanto mais
se desenvolverem em quantidade os sistemas de produção (ex.:
produção de serviços de saúde, de educação, de transportes, de
segurança, de defesa, etc.), mais se atingirão os fins e valores
que eles, em princípio, prometem proporcionar (ex.: mais saú-
de, mais saber, mais velocidade, mais segurança, melhor defesa,
etc.), confundindo, lamentavelmente, processos e resultados129;
– finalmente, a tendência dos consumidores, que somos todos
nós, para aceitarmos, na prática e mesmo na teoria, a inversão
consumada dos fins e dos meios, na medida em que:
– os meios (produtos, ferramentas, instrumentos, equipamentos,
bens essenciais e supérfluos, serviços comuns e de luxo, dinhei-
ro, etc.), passam a ser aceites por nós como fins,
– de tal modo que em vez de utilizarmos os meios para viver me-
lhor, passamos a viver pior para os adquirirmos (desgaste físico,
psíquico e moral para pagar as prestações dos bens adquiridos,
ganhar dinheiro, acumular riquezas),
– até acabarmos por aceitar que estes pseudo-fins (o dinheiro, o
lucro, a carreira, a promoção social ou política) passem a justifi-
car todos os meios130.
119
plexificação que os tornem incontroláveis)131;
– adoptarmos a atitude de austeridade (palavra hoje vilipendiada
porquanto expulsa pelos empresários, degradada pelos políticos,
esquecida pelos meios de comunicação social) ou, por outras
palavras, assumirmos o espírito de pobreza (epimetaico e não
prometaico) no sentido de nos mantermos ao nível das necessi-
dades humanas sem pretendermos ultrapassá-las132;
– sobretudo não permitirmos, jamais, a subversão dos fins pelos
meios, porquanto ela nos conduz inexoravelmente à exploração
de uns pelos outros e à guerra generalizada entre todos133;
– participarmos na construção de um mundo diferente em que
nos sintamos, para além de profissionais em sã competitividade,
seres humanos conscientes e livres, ligados por estruturas de so-
lidariedade e cooperação134;
– propormos aos jovens a adopção de um projecto educativo de
“investigação radical” que atenda à sua formação não apenas como
profissionais, mas também e sobretudo como cidadãos da Polis
planetária e como pessoas membros da Família Humana135.
120
afectam o mundo em que vivemos é de natureza social e tem a ver com
o “desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem” que “conduzi-
ram a actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade”
O texto extraído do Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, que recorda episódios traumáticos da II Guerra Mundial,
pode aplicar-se a todas as violências que envergonham a História da
Humanidade, desde a redução à escravatura de populações inteiras e da
transplantação forçada, por vezes entre continentes como a praticada
durante séculos pela actividade negreira entre a África e a América, às
guerras sangrentas de todos os tempos provocadas por cobiça, ânsia de
poder, ódio, vingança, e/ou fanatismo das populações e normalmente
conduzida pelos chefes, imperadores, reis, generais e “conquistadores”, a
provocar destruições e carnificinas e genocídios pelos quais quase nunca
foram julgados e muitas vezes foram glorificados e endeusados.
O maior contingente de vítimas dos conflitos e guerras foi sempre
constituído pelos jovens, tantas vezes recrutados à força, por vezes ainda
na idade de crianças como continua a acontecer nos dias de hoje em
conhecidas regiões do mundo, treinados brutalmente nos exércitos e, de-
pois, mortos ou ainda feridos, abandonados no campo de batalha.
Já desde os tempos medievais pensadores isolados lançavam a ideia de
“converter as espadas em arados”, Hugo Crócio afirmava que ”o inimigo
desarmado e vencido não deve ser maltratado, pois já não é um comba-
tente, mas um simples ser humano” (sec. XVII), Kant publicava o seu
“Projecto sobre a paz universal” (1785), etc. Mas só em meados do séc.
XIX, alastra a consciência desta desumanidade a partir de iniciativas pes-
soais como a de Florence Nightingale, a Lady with the lamp que de noite
com as suas companheiras procurava e assistia os feridos das batalhas na
guerra da Crimeia (1855) e Henri Dunant que, perante o espectáculo de
30.000 mortos e feridos, totalmente abandonados no campo da batalha
de Solferino (1859), em dias de muito calor e chuva, mobilizou e coorde-
nou os esforços dos camponeses para recolherem os feridos nos estábulos
das quintas circunjacentes136.
A intensa acção desenvolvida a partir de aqui por Henri Dunant vai
despertar “a consciência das nações” no que respeita a “melhorar a sorte
121
dos militares feridos dos exércitos em campanha” (Convenção de Genéve,
1864, em que são aprovados os estatutos da Cruz Vermelha Internacional),
a proclamar “que não são apenas os feridos que exigem o cuidado do ini-
migo mas também os cadáveres dos que tombaram” (Convenção de Genéve
rectificada, 1906), a insistir em que os barcos-hospitais, as enfermarias
nos barcos de guerra e os profissionais de saúde devem ser protegidos e
que “os prisioneiros de guerra […] devem ser tratados com humanidade”
(Convenção de Haia, 1907 e Convenção de Genéve, 1927) e que as nações
devem renunciar às armas químicas e biológicas, que ficam proibidos os
bombardeamentos de cidades indefesas, os maus tratos a idosos e crian-
ças, a ofensa à “honra das mulheres” (Protocolo Internacional, estabelecido
entre a maioria das nações europeias, 1925).
Estas várias medidas vão sendo reforçadas pela condenação liminar das
guerras (Bertha von Sutnner, Abaixo as armas, Áustria, 1889; J.S. Bloch,
A guerra futura, Rússia, 1888; intervenção de escritores como Lev Tolstoi,
Victor Hugo, Björnstjere, Ernest Renan, etc.), pela acção dos movimen-
tos pacifistas que se geram na transição entre o séc. XIX e XX, pelo peso
da Convenção sobre a Arbitragem (1899), pela intervenção da Fundação
Carnegie para a Paz Internacional cujo fundador afirmava “a guerra é a
mais infame mancha da nossa civilização” (1910) e a subsequente criação
do Tribunal Internacional da Haia, e ainda pela influência da Fundação
Nobel cujo fundador lembrava que “a guerra divide um país em vítimas e
assassinos” (1895). A partir do início do séc. XX, passam a ser atribuídos
os Prémios Nobel da Paz e, entre os primeiros, a Henri Dunant (1901) e
a Bertha Von Sutner (1905).
Entretanto, e apesar de tudo isso, o último século vai ficar conhe-
cido como o mais violento da história, com a I Guerra Mundial (das
trincheiras), a II Guerra Mundial (dos campos de extermínio e goulags,
dos bombardeamentos indiscriminados, de Hieroshima e Nagasaki), a
Guerra Fria como palco de fundo de todas as guerras da segunda metade
do século XX, a guerra global do terrorismo, já no século XXI.
Acresce que a Guerra não apenas se manteve mas ainda se ampliou
em todas as dimensões: deixou de utilizar apenas armas convencionais
para lançar mão de todo o tipo de armas, químicas, biológicas, nucleares;
122
deixou de ser apenas de natureza militar e passou também a ser de natu-
reza económica, política, social, científica, cultural, moral, religiosa.
A sociedade dos adultos de quem se esperava a criação das melhores
condições para que os jovens cresçam acaba por apenas gerar condições
para que se sacrifiquem e morram.
Nesta situação, tornam-se evidentes duas coisas: que o “mundo onde os
seres humanos tenham a liberdade de falar e de crer, libertos do terror e da
miséria” ainda não existe; que realmente a função da educação consiste em
“preparar os homens para tipos de sociedade que não existem ainda”.
123
determinados períodos da história e, se chegam a dominar no período
seguinte, acabam frequentemente por perder a força e se dissolver.
As ideologias passam, enquanto as culturas permanecem.
Por isso, as gerações dos jovens contestatários da 2ª metade do séc.
XX não perdem tempo com as ideologias, mas pretendem enfrentar as
culturas, mencionadas como “sistemas” num expressivo texto da época:
“juventude decepcionada e irritada, que cada vez mais foge dos seus
padrões naturais, recusa sistemas que considera esclerosados, sejam
estes sistemas de ordem social ou capitalista, e que também não
acredita nas antigas fronteiras entre nações, descobrindo uma nova
solidariedade”138.
124
Por outro lado, o desenvolvimento espectacular e acelerado dos novos
meios de comunicação social, da televisão à Internet e aos telemóveis,
vem hoje proporcionando aos jovens de todos os países, na proporção em
que gozam da democracia ou vão obtendo acesso a ela, a possibilidade
crescente de também se fazerem ouvir e de intervir activamente no curso
dos acontecimentos, como vai ficando claro em grandes transformações
do fim do século, desde a queda do muro de Berlim e da cortina de ferro
à intervenção em massa, cada vez maior, nos movimentos e decisões de
natureza sócio-política e ambiental.
Agarrando com ambas as mãos este progresso da técnica e tendo pre-
sente na memória a deplorável sorte de tantos dos seus companheiros que,
em tempos remotos ou recentes, nos seus próprios habitats ou noutros
para que tinham sido deportados (campos de concentração, Goulags, zo-
nas rurais de reeducação etc.), tiveram que ouvir e obedecer calados à voz
do “Fürer”, do “Duce”, do “Grande Líder” ou do “Grande Timoneiro”,
ou, no extremo oposto, continuam silenciados na situação de abandono
e esquecimento a que são votadas populações inteiras do terceiro mundo,
os jovens de hoje exigem, é certo que por vezes de forma desajeitada e
exagerada, que também os deixem falar de tudo aquilo em que crêem e
dizer da sua justiça.
E exigem mais. Exigem aos adultos que abram espaço para que acon-
teça aquilo que constitui “a mais alta aspiração do homem,” ou seja “o
advento de um mundo em que os seres humanos tenham a liberdade de
falar e de crer “ e para isso, que comecem por libertar o mundo da men-
tira, do “terror e da miséria”, e lhes criem condições para crescerem de
acordo com as exigências da dignidade humana pelo trabalho, a verdade,
a honestidade, a justiça, a tolerância, a compreensão e a solidariedade e,
para isso, utilizem sempre a linguagem do exemplo.
Esperam dos adultos, em última análise que lhes falem verdade sobre
se crêem ou não nestes valores.
Falar, através dos verbos latinos for, “falar”e fābŭlo, “conversar”, pro-
cede da raiz *IE Bha- que envolve as ideias de “luz” e de “falar” e da
qual deriva um grande numero de outros lexemas ligados, a esses dois
conceitos139.
125
Movendo-nos nesse campo lexemático, poderemos dizer que o que os
jovens pedem e esperam dos adultos é que em vez de se deixarem cair em
situações nefandas ou infamantes e difamantes, ou pactuarem com silêncios
afásicos ou infantis, próprios de infantes recolhidos em infantários ou de
infanções integrados em infantarias de exércitos que acabam por fazerem
e serem feitos vítimas de infanticídios culturais, ou de se entreterem com
fábulas ou feitos fabulosos ou outros géneros de confabulações próprias de
fantoches, ou de se limitarem a mencionar o que tem fama, é famoso ou me-
ramente famigerado, ou de recorrerem a fadas que apenas marcam fadários,
se afoitem a falar, de maneira afável e se possível inefável mas também, se
necessário, com facúndia e, não se limitando a simples prefácios, se tornem
capazes de confessar e professar, como verdadeiros profissionais, professores e
profetas, tudo o que diz respeito ao verdadeiro fado ou destino da Família
Humana ou, por outras palavras, sem se deixarem ficar nos meros fenóme-
nos e epifenómenos e, para além dos fantasmas e dos trabalhos de fantasia
e através das fases de fenótipos e fenotextos, darem ênfase ao que é enfático e
diáfano, para que apareça nas fotografias e floresça em epifanias a verdade
da realidade autêntica que é a dignidade de todos os membros da Família
Humana e o dever de todos a reconhecermos e respeitarmos.
126
Afinal do que estamos a precisar e com a máxima urgência, não é das re-
formas do ensino que se vêm processando, ao longo das últimas décadas, no
espaço reduzido do subsistema escolar, com as insuficiências que acabámos
descrever, mas de uma revolução da educação que alastre a todos os sectores
e escalões do processo educativo “e vise o pleno desenvolvimento da pessoa
humana”, não, portanto, apenas na dimensão cognitiva que deverá manter-
se, aprofundar-se e integrar-se no processo global, mas também nas dimen-
sões física, afectiva, artística, ética e, sobretudo, nesta última.
O processo educativo não é apenas, nem sobretudo de natureza gnose-
ológica para formar expertos, peritos, técnicos, eruditos, especialistas, ou
mesmo sábios, mas é de carácter ético destinado a proporcionar condições
para o pleno desenvolvimento de seres humanos, como pessoas conscien-
tes, livres e responsáveis140.
Mas para isso, não teremos de ir mais longe (observar a evolução da
vida toda), mais ao concreto (identificar as fases dessa evolução) e mais
fundo (descobrir os valores que presidem a cada uma dessas fases)?
Para além de todos os pormenores abordados ao longo deste capítulo,
importa sublinhar que o problema fundamental da educação escolar se
mantém e só irá ser cabalmente esclarecido ao longo dos capítulos se-
guintes, ao discutir e pôr uma causa o vocabulário e o tipo de armadura
conceptual adoptados pela tradição escolar.
Os seres humanos beneficiários da reforma escolar, autores das contes-
tações e desencadeadores da crise de educação foram os jovens.
Para além da sua ligação ao étimo *IE Dei-, “brilhar”, acima referen-
ciado, o termo jovem, num sentido amplo, “diz-se do animal ou vegetal
que ainda não alcançou o seu pleno desenvolvimento ou, no caso exclu-
sivo do vegetal, um desenvolvimento que permita a sua exploração” e, no
sentido humano, designa “aquele que se encontra na juventude, no perío-
do de vida compreendido entre a infância e a idade adulta; adolescente”.
Nesta situação e em ordem a progredirmos na clarificação deste voca-
bulário herdado do passado, torna-se necessário ir muito além do subsis-
tema escolar e repensar todo o sistema educativo, a começar pela análise do
funcionamento dos subsistemas de educação de infância e de educação de
adultos. É o que nos propomos fazer nas páginas que seguem.
127
•
Capítulo IV
129
Duk-, que envolve a ideia de “conduzir, guiar, liderar, andar à
frente de”, vem educar e educação;
– finalmente, da ligação próxima entre os lexemas gregos pais,
dos, “criança” e agein, “impelir”, e da ligação longínqua entre
*IE Pu-, “pequeno rebento de planta” ou “pequena cria de ani-
mal” e *IE Ag- “empurrar, fazer andar à sua frente”, vem a pala-
vra Pedagogia141.
130
propriedade, para usar, abusar, vender, abandonar, matar.
Não obstante excepções honrosas como as mencionadas pelo histo-
riador latino Tácito ao elogiar as tribos germânicas que não praticavam
o infanticídio, “lá os bons costumes são mais fortes do que as boas leis
noutros lugares”142, o que faz lembrar os sentimentos de espanto mani-
festados, em tempos recentes, por chefes de reservas de índios perante a
violência das sociedades modernas, parece ser verdade que “quanto mais
se retrocede na história mais numerosas são as manifestações de impulsos
filicidas por parte dos pais” e que “o infanticídio de filhos legítimos e
ilegítimos praticava-se normalmente na Antiguidade, que o dos filhos le-
gítimos apenas diminuiu ligeiramente na Idade Média, e que se continua
a matar os ilegítimos até bem dentro do séc. XIX”143.
As formas de infanticídio “eram diversas: asfixia (no leito dos pais, por
exemplo), estrangulamento, afogamento (atirando as crianças aos rios),
encerramento em recipientes, enterramento (os árabes pré-islâmicos
enterravam vivas, por vezes, as filhas recém nascidas), sacrifícios rituais
(Bruto sacrificou os seus filhos à salvação da República Romana nascen-
te), etc.”144. Segundo DeMause, “emparedar a criança em muros ou en-
terrá-la nas argamassas de edifícios ou pontes, para reforçar a estrutura,
era também frequente desde que se construiu as muralhas de Jericó até ao
ano 1843 na Alemanha”145.
O mesmo DeMause regista que “até ao século IV, na Grécia ou
em Roma, nem a lei nem a opinião pública viam nada de mal no
infanticídio”146.
Referindo-se à Grécia, Marrou fala de “uma civilização que ignora de-
liberadamente a criança”147. Em Esparta, “só são conservadas as crianças
bem constituídas”148; em Atenas, Platão escreve que, na cidade ideal, há
médicos e juízes “para cuidar dos cidadãos bem constituídos de corpo e
alma, e quanto aos outros, deixa-se morrer os que têm um corpo enfermiço
e matam-se os que têm a alma perversa por natureza e incorrigível”149; na
Política, Aristóteles recorda que “é necessário pôr um limite numérico à
procriação e, se há casos que concebem ultrapassando esse limite, é preciso
praticar o aborto”150; no teatro, Eurípedes evoca o menino abandonado nos
caminhos, “presa para as aves, alimento para os animais selvagens”151.
131
Em Roma, uma lei atribuída a Rómulo, o Fundador, que de criança
também tinha sido abandonado, determinava que os “recém-nascidos
disformes ou monstruosos […] deviam ser mortos depois de terem sido
examinados por cinco vizinhos”152. “A Lei das XII Tábuas (450 a. C.),
fonte do Direito Romano, reconhecia ao pai (pater famílias) o direito
de decidir da vida ou morte dos filhos recém-nascidos. Podia também
dá-los, vendê-los, flagelá-los, prendê-los153. Por isso, perante o pai todo-
poderoso, os filhos ou proles eram também designados nepotes, ou seja,
privados de poder.
132
Outra forma de abandono, na aparência menos dura mas não menos
trágica, consistia na entrega das crianças a amas. Trata-se de “uma figura
antiga de que falam a Bíblia, o Código de Hamurabi, papiros egípcios e a
literatura grega e romana. Em Roma, as amas estavam organizadas e ven-
diam os seus serviços na Coluna Lactária”158. As condições deficientes e as
consequências físicas, sociais e morais da “aleitação mercenária” foram, já
no mundo antigo, objecto de acirradas polémicas.
Mas o fenómeno reapareceu nas famílias aristocráticas da Europa en-
tre os séc. XIII e XVI, chegando a generalizar-se nas famílias burguesas
dos séculos XVII e XVIII, porque as mães não queriam ser “vacas lei-
teiras”, “era chique ter uma ama em casa e não era chique ‘parecer amar
demasiado os filhos’ ”159.
As amas que moravam longe e recebiam as crianças, frequentemente
acabadas de nascer, e “sobretudo quando tinham demasiadas crianças a
seu cargo”, recorriam ao processo de enfaixamento que consistia em “en-
rolar a criança numa espécie de longa ligadura dos pés até ao pescoço”
e “este estado de imobilização durava de três a seis meses”. Esta prática
durou, no centro da Europa, até fins do séc. XIX160. Pior sorte tinham
muitas destas crianças ao serem transportadas para casa das amas: per-
diam-se de 5 a 15%, ao caírem dos cestos e serem mortas por animais,
pelo que entregar as crianças a tais amas era “objectivamente um infanti-
cídio disfarçado”161.
As práticas de discriminação dos filhos, como a preferência pelos pri-
mogénitos, constituídos únicos herdeiros do património familiar, têm
permanecido ao longo da história. Mas as mais graves são as que de-
correm de velhos preconceitos culturais que ainda perduram em muitas
regiões do globo, tais como a discriminação negativa das crianças do sexo
feminino: indesejadas, abortadas, diminuídas (Mohamed Ali, ex-cam-
peão mundial de pugilismo, respondia a quem lhe perguntava quantos
filhos tinha: “um rapaz e sete enganos”), são engordadas e embelezadas
em função do maior dote que poderá render o seu matrimónio, ou tão
rebaixadas que, “em certas regiões do sul da Ásia […] são os pais da me-
nina que têm de pagar um dote ao marido. Caso extremo, sob todos os
pontos de vista, aconteceu em 10 de Julho de 2000, no Leste da Índia,
133
quando um sacerdote hindu ‘casou’ uma menina de quatro anos com um
cão cujo dono pagou um dote ao pai da ‘noiva’ ”162.
“o romance onde Dickens vai mais fundo, talvez, na sua reflexão sobre
a infância. Nele se lê: geradas em grandes quantidades apenas para a
sua própria destruição […] crianças solenemente julgadas na barra do
tribunal […], habitualmente metidas nas prisões, chicoteadas, aban-
donadas, banidas, deportadas, preparadas de todas as maneiras para o
carrasco e só crescendo para serem enforcadas”163.
134
Os Relatórios periódicos da UNICEF e da OIT revelam que muitos
destes males continuam a verificar-se nas actuais sociedades avançadas da
idade dos serviços:
135
2. O reconhecimento da dignidade e dos direitos da criança
136
consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem, essa consciência não
existia”. E é essa inconsciência que se encontra na base de acontecimen-
tos históricos hoje tão incompreensíveis como a organização, pelo Papa
Inocêncio III, da Cruzada com um exército de 20.000 crianças para con-
quistar Jerusalém (séc. XIII) e da persistência desta “mentalidade muito
antiga que ainda prevalece no teatro de Molière (séc. XVII)”.
Já no Renascimento, se por um lado a autoridade absoluta do pater fa-
mílias é aproveitada como justificação para implantar a monarquia abso-
luta (“o que vale para a família, célula da sociedade, vale para a sociedade
inteira”), por outro lado melhora sensivelmente o clima cultural favorável
à formação do “sentido de infância”, pela adopção de vestuário próprio
da infância e pela atribuição que lhe é feita de um lugar destacado na
produção artística, desde colocar as crianças no centro dos retratos de
família (Rubens e Van Dyck) ou separadamente (em Velazquez os filhos
da nobreza, em Murillo os filhos do povo) até, recuperando de algum
modo uma velha tradição da arte nas cenas dos sarcófagos romanos dos
séculos III e IV, ao uso e abuso, em pintura e escultura, da apresentação
da criança nua (putto) e ainda à propagação, em todas as modalidades da
arte religiosa cristã, do culto do Menino Jesus164.
Não se trata ainda do reconhecimento dos direitos da criança mas da
melhoria do clima social que irá permitir a sua emergência.
Entretanto e só na transição para a Idade Moderna, a autoridade abso-
luta do pater famílias começa a ser posta em causa, de algum modo, pela
“lógica política do contrato” de Rousseau (“o poder paternal era apenas
em função da debilidade da criança”) e, em geral, pela Enciclopédia no
séc. XVIII (não só o pai mas também a mãe têm os mesmos “direitos de
superioridade e de correcção sobre os filhos” e “tais direitos são limitados
pelas necessidades da criança”)165.
Estas últimas ideias vão abrir um caminho conturbado através da
Revolução Francesa (“convinha, depois da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, fazer a declaração dos direitos dos esposos, dos
pais e dos filhos, etc.”)166, da República (que procede à abolição da patria
potestas, em 1792) e do Império (o Código Penal de 1810 considera que
137
a família é “ uma pequena pátria e o governo político de um país uma
réplica ampliada do “governo da família”)167. O pater famílias dá lugar ao
“bom pai de família” e a potestas passa a ser contrabalançada pela pietas.
A partir da interiorização da ideia de que a criança carenciada é vítima
da família e do Estado, na segunda metade do séc. XIX desenvolve-se o
conhecimento da criança, a medicina infantil (Pediatria, 1872), apare-
cem, curiosa e significativamente depois das Sociedades Protectoras dos
Animais, as Sociedades Protectoras da Infância (1895) e desenvolve-se o
movimento da Educação Nova e respectiva pedagogia.
Já no séc. XX, designado no título do livro de Ellen Key, “O século da
criança” (1900), a Sociedade das Nações, deixando para trás o monopólio
antigo das famílias e o mais recente dos Estados sobre as crianças, cria
um Comité de Protecção da Infância (1919), acompanha a constituição
da Associação Internacional para a Protecção da Infância (Bruxelas, 1921)
e adopta a Declaração de Genebra (1924) que abre o caminho à primeira
definição da atenção especial e da prioridade a atribuir às crianças: “1.
A criança deve ser posta em condições de se desenvolver de um modo
normal, materialmente e espiritualmente [...]. 3. A criança deve ser a pri-
meira a ser socorrida em momentos de perigo”.
Um pormenor inesperado porquanto negativo e hoje, para nós, mes-
mo chocante, consiste no facto histórico de a Declaração Universal dos
Direitos do Homem não incluir referência às crianças, mas apenas ter em
conta os adultos: na abolição das diferenças discriminatórias dos cidadãos
“tanto de raça como de cor, de sexo, de língua”, etc., não se menciona
a de “idade” (Art.º 2º); na afirmação inicial de que “todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. São dotados de razão e
consciência...” (Art.º 1º), percebe-se que se fala de adultos mas não de
crianças; e quando menciona “crianças” (Art.º 25º, 2) e “filhos” (Art.º
26º, 3) é apenas no sentido da referência, respectivamente, à “protecção
social” que recebem e ao direito dos pais escolherem para eles o “género
de educação”. Nada há portanto, que tenha a ver com a sua própria per-
sonalidade, com os seus próprios direitos ou com o sentido da revolução
que já anteriormente se vinha verificando na educação de infância.
No entanto a ONU, que já em 1946 tinha criado o International
138
Children’s Emergency Found (ICEF) e mais tarde (1956) o perfilha (United
Nations + ICEF = UNICEF), prepara, a partir de 1951, e aprova por una-
nimidade a Declaração sobre os Direitos da Criança (1959) em que, pela
primeira vez, a criança aparece já não apenas como objecto mas como
sujeito do Direito Internacional.
Finalmente, a partir do ano 1979, proclamado Ano Internacional da
Criança para celebrar o 20º aniversário daquela Declaração, o Secretariado
Geral promove os trabalhos de preparação da Convenção sobre os Direitos
da Criança que decorre, através de um processo estimulante de parti-
cipação activa da generalidade das delegações nacionais, instituições es-
pecializadas e ONGs do mundo inteiro, durante dez anos, e vem a ser
adoptada, por consenso, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em
1989, ano do 30º Aniversário da Declaração sobre os Direitos da Criança e
Bicentenário da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
139
Direitos da Criança, 1959), a Convenção assenta em três princípios básicos
que se referem à situação da criança, à função da família e à responsabilida-
de do Estado, ou seja (sublinhados nossos):
a) que “a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e inte-
lectual, tem necessidade de uma protecção e cuidados especiais, nome-
adamente de protecção jurídica adequada, tanto antes como depois do
nascimento” e que “em todos os países do mundo há crianças que vivem
em condições particularmente difíceis e que importa assegurar uma aten-
ção especial a essas crianças” (Preâmbulo);
b) que “a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua perso-
nalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade,
amor e compreensão” e, portanto, a “família, elemento natural e fun-
damental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem estar
de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a
protecção e assistência necessárias para desempenhar plenamente o seu
papel na comunidade” (Preâmbulo);
c) que “os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir os
direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças” (Art.º 2º, 1),
a tomar “todas as medidas adequadas” (Art.º 2º, 2), “a garantir à criança a
protecção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os
direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a
tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medi-
das legislativas e administrativas adequadas” (Art.º 3º, 2 e Art.º 5º), “no
limite máximo dos seus recursos disponíveis e, se necessário, no quadro
da cooperação internacional (Art.º 4º)
Sobre estes três princípios, os cinco primeiros artigos estabelecem o
enquadramento geral do documento para a compreensão dos restantes e
fazem emergir cinco tópicos essenciais que dizem respeito a: definição de
criança, reconhecimento da criança como sujeito de direitos, direito da
criança à educação, tipo de pedagogia a adoptar pelos pais, princípio nor-
mativo do interesse superior da criança (sublinhados nossos).
Definição de criança
“Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser humano
140
menor de 18 anos de idade, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável,
atingir a maioridade mais cedo” (Art.º 1º).
O direito à educação
“Os Estados Partes respeitam as responsabilidades, direitos e deveres
dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada ou da co-
munidade nos termos dos costumes locais, dos representantes legais ou
de outras pessoas que tenham a criança legalmente a seu cargo, de asse-
gurar à criança […] a orientação e os conselhos adequados ao exercício dos
direitos que lhe são reconhecidos pela presente Convenção”(Art.º 5º).
A pedagogia a adoptar
O acompanhamento e orientação das crianças, em todas as dimensões
da existência, pelos pais ou seus substitutos, deverão ser sempre exercidos
“de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades” (Art.º 5º).
141
(9-11), a exprimir livremente a sua opinião em todos os assuntos que
lhe digam respeito (12), “à liberdade de expressão” (13), ”de pensa-
mento, de consciência e de religião” (14), “à liberdade de associação e
à liberdade de reunião pacífica” (15), a não ser “sujeita a intromissões
arbitrárias ou ilegais na sua vida privada”(16), a ter acesso à informação
(17), ao “reconhecimento do princípio segundo o qual ambos os pais
têm uma responsabilidade comum na educação e desenvolvimento
da criança” (18), à protecção “contra todas as formas de violência físi-
ca ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente,
maus tratos ou exploração” (19), quando “temporária ou definitiva-
mente privada do seu ambiente familiar [...], à protecção e assistência
especiais do Estado” (20), à adopção quando o sistema exista (21), ao
estatuto de refugiado (22), quando mental ou fisicamente afectada,
a uma vida plena, decente e digna (23), à saúde e serviços de saúde
(24), a exames periódicos em caso de internamento (25), à seguran-
ça social (26), a “um nível de vida suficiente, de forma a permitir o
seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social” (27),
à educação em todos os escalões do subsistema escolar (28), a que
a educação seja incrementada para “promover o desenvolvimento da
personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas,
na medida das suas potencialidades” (29), à vida cultural, religião e
idioma próprio da minoria a que eventualmente pertença (30), ao
descanso, lazer, jogo e vida cultural e artística (31), a “estar protegida
contra a exploração económica”, ou trabalho perigoso que dificulte a
sua educação, ou nocivo para a sua saúde ou desenvolvimento (32),
a estar defendida contra o uso ilícito de estupefacientes e substâncias
psicotrópicas (33), contra todas as formas de exploração e abusos se-
xuais (34), contra o sequestro, venda ou tráfico de crianças (35) ou
qualquer outra forma de exploração (36), direito a não ser ”submetida
à tortura ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradan-
tes”, à pena de morte ou prisão perpétua (37), a não ser recrutada e
a não ser obrigada a participar “directamente nas hostilidades” com
menos de 15 anos (38), à “recuperação física e psicológica e à reinser-
ção social da criança vítima” dos abusos mencionados anteriormente
142
(39), direito da “criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter
infringido a lei penal” a ser tratada de modo conducente a fomentar
o sentido da sua própria dignidade e do respeito devido aos outros e à
sociedade (40), a que nenhuma destas disposições seja utilizada contra
a própria criança (41).
143
Na medida em que o nomadismo foi dando lugar à sedentarização e
à emergência de sociedades cada vez mais estratificadas e portadoras de
civilizações complexas, fulcradas em cidades, reinos e impérios, também
a formação humana se foi modificando e especializando em função das
tarefas exigidas pela nova estrutura social.
Os modelos de educação tornam-se subsidiários dos modelos políti-
cos, sofrem a pressão das exigências de classe e acabam por se transformar
em “modelos impostos” pelos pais aos filhos e ainda, tendo em conta
a sua natureza irrequieta, incoerente e indisciplinada, com o recurso à
força, à violência e ao castigo. Um texto sumério-babilónico, relata que
o aprendiz de escriba era castigado várias vezes por dia171. Outro texto
egípcio recorda que ”as orelhas do adolescente chegam até às costelas” de
tanto serem puxadas172.
Na própria Grécia em que o pensamento educativo, no período antigo
se pautava pelo ideal da Kalokagatia (“do belo e do bom”), no período clás-
sico constituía o húmus em que se desenvolveu a filosofia e no período hele-
nista alimentava a paideia, acontece que, no tempo de Platão e Aristóteles,
a educação permanecia refém do pensamento político e, ao nível das esco-
las comuns, imperava simplesmente uma “pedagogia sumária e brutal”173.
Também em Roma, se na classe cultivada e ao cabo de grandes resis-
tências, a paideia grega se tinha metamorfoseado na humanitas, ao nível
da educação corrente dominava o mos maiorum (costume dos antepassa-
dos), imposto pelo todo poderoso pater famílias, através do exercício da
memória e da imitação, como Néraudau faz notar a respeito da família
do próprio Imperador Augusto174, e nas escolas comuns, o verbo “estu-
dar” andava associado ao manum ferulœ subducěre (estender a mão à pal-
matória)175 ou a sofrer os açoites nos glúteos desnudados, como mostra
um fresco da cidade de Pompeia. O castigo na educação foi mesmo erigi-
do em doutrina pelo orbilianismo, rótulo derivado de Orbilius Pupillus,
professor que segundo o testemunho de discípulos (entre eles o do poeta
Horácio que lhe atribuiu o cognome de “Orbílio o Espancador”), usava a
palmatória, a vara e o chicote e, no tratado que escreveu, com o título O
Bode espiatório, chega a relatar que, por vezes, ele próprio sofria as conse-
quências, pois também recebia o troco de alguns alunos176.
144
A “educação cristã”, designação introduzida por S. Clemente de Roma
(fins do séc. I) e utilizada por S. Clemente de Alexandria (séc. II), con-
segue suavizar mas não extirpar e, com o rodar dos séculos, até exacerbar
esta linha de conduta, tendo em conta a herança deixada pelos tradutores
alexandrinos da Bíblia, ao traduzirem o termo hebraico müsar, que signi-
ficava “educação e castigo”, por paideia, e ainda a importância crescente
atribuída, sobretudo desde a crise do maniqueísmo, ao problema do bem
e do mal e ao pecado original em que, segundo a tradição que já vinha do
judaísmo (David, Salmo 51, 7), a criança é concebida.
Ficou célebre e a pesar no decurso da história o testemunho de Santo
Agostinho, quer sobre o sentimento pessoal acerca dessa tradição (“na
culpa nasci e em pecado me concebeu a minha mãe”), quer sobre o sofri-
mento de quando
145
com moderação e aqueles que os defendiam, entre os quais se mencio-
na Savonarola, Lutero e Robert Estienne que, “no seu Thesaurus Linguæ
Latinæ definia a criança como um ser em que é preciso bater… Nos colé-
gios de Jesuítas, havia um ‘Padre castigador’”180.
A dimensão quer do enraizamento da mentalidade quer da extensão
da prática, no período anterior ao séc.XVIII, revela-se no facto de o mes-
mo processo ser aplicado em todas as camadas sociais, desde os súbditos
até aos próprios reis. Jean Héroard, médico (1601-1628) do futuro rei de
França, Luís XIII, no seu Diário, publicado em 1668, conta que o pai do
futuro rei “tinha junto de si, à mesa, um látego, e já aos 17 meses o delfim
sabia que não devia chorar quando o ameaçava com o látego. Aos 25
meses, começaram a açoitá-lo sistematicamente, muitas vezes despindo-o
[...]. No dia da sua coroação, com 8 anos, foi açoitado”.
146
Um caso concreto: a partir do livro de Katharina Rutschky, Schvarze
Paedagogik (Pedagogia negra, 1977), a psicanalista Alice Miller, escreveu
o seu livro Am anfang war erziehung (No princípio era a educação, na
tradução francesa, C’est pour ton bien, É por teu bem) no sentido de se
esclarecer a si própria sobre se “a convicção – adquirida na minha prática
psicanalítica – da origem reaccional (e não inata) do carácter destruidor
do homem, poderia ser confirmada pelo caso de Adolfo Hitler”, chegou
a conclusões tais como “entre os grandes personagens do Terceiro Reich,
não encontrei um único que não tenha sofrido uma educação dura e se-
vera”, o que “pode ajudar-nos a compreender o fenómeno do holocausto”
e que “aqueles que sofreram um assassínio psíquico perpetuam o mesmo
assassínio [...], todo o carrasco, foi vítima um dia”183.
Neste sentido, alguns “anti-psiquiatras” tinham chegado a conclusões
semelhantes apresentadas em fórmulas paradoxais: “educar uma criança
é, praticamente, destruir uma pessoa”184, “destruímo-nos a nós próprios
[...] através de uma violência disfarçada de amor”185.
147
va, no Emílio: “ama a infância, favorece os seus jogos, os seus prazeres, o
seu amável instinto”186.
É nesta linha que se desenvolve desde a segunda metade do séc. XIX,
como passo decisivo da revolução da educação, a chamada “Escola Nova”,
em que o centro da relação pedagógica começa a deslocar-se, do professor
e do programa escolar como saber global definido pelas exigências sociais,
para o aluno enquanto suporte de uma personalidade, estrutura, interes-
ses, motivações e ritmos de maturação próprios.
Extraordinariamente complexa, a Escola Nova: aparece na linha das
ideias de Rousseau (a criança não é miniatura mas germe de homem, não
é má mas naturalmente boa a exigir apenas um meio adequado para se
desenvolver), de L. Tolstoi (liberdade e experiência), de Ellen Key (“que
as crianças vivam à sua maneira”), de L. Gurlit (respeito pela personali-
dade da criança); beneficia das investigações da medicina (as anomalias
dos deficientes psíquicos devem-se a perturbações do ritmo de desenvol-
vimento - Itard, Segun, Janet, Adler, etc.); cresce com as descobertas da
psicologia do desenvolvimento (ao contrário do que se pensava, em todas
as fases do processo biopsíquico da criança, as estruturas são diferentes
das do adulto e o funcionamento é igual, sempre à base do interesse -
Binet, Claparède, Wallon, Piaget).
As experiências da Escola Nova nascem um pouco por toda a parte:
A. Manjón (Espanha, 1888), C. Reddie (New School, Inglaterra, 1889),
Lietz (Alemanha, 1889), Kerschenteiner (Alemanha, 1896), Dewey
(Chicago, 1896), Demolins (França, 1899), Montessori (Roma, 1907),
Faria de Vasconcelos (Bruxelas, 1908).
As práticas são (re)pensadas pelos grandes teóricos da escola nova: J.
Dewey (a escola e a sociedade), G. Kerschenteiner (a escola e o trabalho),
E. Claparède (escola activa e educação funcional), A. Ferrière (educa-
ção individualizada, história da “Escola Nova” e sua coordenação através
do Bureau Internacional des Écoles Nouvelles, 1898, mais tarde da Liga
Internacional da Educação Nova e da revista Pour l’ere nouvelle, correspon-
dente a The New Era, de Ensor, 1921).
A simbiose de todas estas novas experiências, teorias e movimentos,
marcam a evolução da Escola Nova em três parâmetros essenciais:
148
– do magistrocentrismo ao puerocentrismo: a criança é uma pes-
soa, digna de atenção e de respeito, fim e centro da escola
(Montessori), dotada de um ritmo próprio de evolução, sobre-
tudo no caso dos deficientes psíquicos (individualização da edu-
cação: sistemas Mannheim e Oakland, Trinidad e Dalton Plan,
Sistemas Winnetka), exigindo processos de inserção social (tra-
balhos de grupo: Sistemas de Gari e Detroit, Jena Plan, Método
Cousinet, Técnicas de Freinet);
– do ensino à aprendizagem e espírito inventivo: mais que ensi-
nar, o educador deverá criar o ambiente propício para o emergir
da auto-actividade e auto-educação (Montessori), privilegiar a
globalização e o realismo (“Pour la vie par la vie”: Demolins,
Decroly, Método de Projectos), a espontaneidade, a originali-
dade, a criatividade;
– do dever ao interesse: a pedagogia pessimista do puro dever (ex-
pressão familiar “fazer os deveres”), do esforço vazio, anómalo
e amoral, cede o lugar à pedagogia optimista dos centros de
interesse (Decroly, etc.), activa e funcional, que leva o aluno a
crescer livremente e a procurar realizar-se em plenitude.
149
cias”, de carácter político-militar188.
Mais recentemente, o desenvolvimento da tradição de remitologiza-
ção do mundo e da vida, na linha do “Círculo de Eranos”, Ascona-Suiça
(de C.G Iung e M. Eliade a G. Durand) e, ao jeito de clonagem do
Novo Espírito Científico de Bachelard, do Novo Espírito Pedagógico (da
Bildung alemã a Georges Jean e Bruno Duborgel) vem fornecendo am-
plo espaço de reflexão a uma Filosofia do Imaginário Educacional189.
Entretanto, a partir do meio do século XX, por força das profundas
transformações que o caracterizam, na economia, na sociedade, na ci-
ência e na tecnologia e, mais directamente, das reformas, contestações
e crises que afectaram o subsistema escolar, a Escola Nova vai sofrer um
abalo sísmico cujo epicentro já não se encontra na relação educador-edu-
cando dentro da escola, mas na relação entre a própria escola e o mundo
que a rodeia.
150
base de igualdade de oportunidades” e “ de forma compatível
com a dignidade humana”, ao longo de todo o tradicional per-
curso escolar;
– o Artº 29º apresenta o elenco das finalidades gerais do pro-
cesso: “promover o desenvolvimento da personalidade da criança,
dos seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas
potencialidades”, “inculcar na criança o respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais”, o respeito pelos
pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores
nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civili-
zações diferentes da sua”, “assumir as responsabilidades da vida
numa sociedade livre” e o respeito “pelo meio ambiente”.
“Art.º 1º. Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser hu-
mano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicá-
vel, atingir a maioridade mais cedo”.
151
dificuldades inerentes às contingências da guerra fria;
– o número foi aumentando e o trabalho foi sendo reforçado com
a participação de um grupo de ONGs liderado pela UNICEF,
até à adopção do documento, por consenso, na Assembleia Geral
das Nações Unidas, em 20 de Novembro de 1989;
– na Cimeira Mundial para as Crianças, reunida na sede da
ONU, Nova York, em 29-30 de Setembro de 1990, conside-
rada “a maior reunião de dirigentes da história até então”, os
dois documentos dela emanados, Declaração Mundial a favor
da sobrevivência, da protecção e do desenvolvimento da criança e
o Plano de Acção para a sua aplicação nos anos 90, foram apro-
vados por unanimidade e “posteriormente subscritos por 181
Estados, 155 dos quais puseram em prática programas nacionais
de acção”190.
152
fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem estar
de todos os seus membros e em particular das crianças”; que “a criança,
para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer
num ambiente familiar, em clima de felicidade amor e compreensão”
(Preâmbulo); que
153
ser frequentemente vítimas de crimes de abandono e incúria quando não
de terrível abuso, violência e crueldade até por parte dos próprios pais
e tutores, os Estados Partes rompem com o conceito de “educação de
infância” no sentido tradicional reduzido ao período etário dos 3 aos 6
anos, ou alargado ao período de 0 a 6 anos, e proclamam que
154
mentos, mas deverá integrar-se no processo de educação que o engloba e
consiste em criar e estimular condições para que a criança se desenvolva e
cresça, não apenas na dimensão cognitiva mas em todas as suas dimensões.
Mais, esta “pedagogia da educação de infância”, exige ter em conta as
duas dimensões essenciais de modulação ou monitorização mencionadas
no articulado.
A primeira diz que os pais e todos os educadores associados devem
dosear sempre a sua intervenção “de forma compatível com o desenvolvi-
mento” das capacidades da criança. Trata-se de compreender que a in-
tervenção dos adultos, pais e professores, apenas se justifica em função
do nível de carência de cada fase de desenvolvimento da criança e que,
nesse sentido, ela é chamada a diminuir na exacta medida em que se vai
tornando supérflua ou desnecessária. O que importa é que, ao longo do
processo, a criança cresça e a acção do adulto diminua.
Mas quer dizer também, por outro lado, que a acção dos pais e de to-
dos os educadores complementares não pode limitar-se a proporcionar os
meios e criar as condições, deixando as crianças crescerem ao acaso, mas
deve assumir também a difícil e, por vezes, dura tarefa de impartir-lhes a
“orientação e os conselhos adequados”. Esta afirmação peremptória leva-nos
necessariamente a pôr em causa, discutir e aprofundar todas as teorias
da “não-directividade” e, sobretudo, a reprovar enérgicamente as práticas
de abdicação e demissão, por parte dos pais e de outros educadores, das
exigentes responsabilidades de orientação e acompanhamento que lhes
incumbem.
155
especiais a que se torna credora “por motivo da sua falta de maturidade
física e intelectual” (Preâmbulo), e mais especiais ainda no caso de crian-
ças que vivam “em condições particularmente difíceis” (Preâmbulo) para
abrirem o seu próprio caminho e irem ocupando o espaço do futuro que
lhes é devido.
Mas, porque estas condições indispensáveis não podem reduzir-se
apenas às de natureza física e material ou de estimulação intelectual e
cultural, mas também às de orientação moral e ética, o “interesse superior
da criança” é o de crescer, não apenas nalgumas das suas dimensões, com
o risco de se transformar num monstro, mas em todas, de modo a atingir
a sua realização plena, global e harmónica.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, situa-se assim na
perfeita continuidade da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
de 1948, e abre um horizonte novo à consciência humana que, apesar
das tomadas de posição consequentes e concordantes de documentos
posteriores, nas várias regiões do mundo, nós ainda não assimilámos
suficientemente.
Nestas condições, a Convenção representa não apenas uma reforma,
mas uma nova revolução. Não se fica na mudança da forma ou da aparência
exterior, mas vai direita ao fundo do problema e actua no seu interior. Não
visa acrescentar apenas qualquer coisa, em quantidade, para dar mais do
mesmo, mas pretende melhorar a qualidade e acrescenta algo de novo.
Revolução, do *IE-, Wel-, Welw-, que exprime a ideia geral de “rolar,
rodar”, através do lat. revolutio, ōnis, “acto de revolver”, envolve o sentido
de grande transformação, mudança radical, portadora, portanto, de no-
vidade. A novidade, neste caso, corresponde à exigência de que os adultos
passemos a compreender definitivamente:
156
anos, e que, de acordo com os estudos mais recentes, revela ten-
dência para ser diferida e não reduzida;
– que o processo tem lugar na família, através da vivência rela-
cional entre os pais ou os seus substitutos e os filhos, ou seja,
entre os naturais educadores e os naturais educandos e só depois,
complementar e subsidiariamente, na escola, entre os educado-
res-professores e os alunos;
– que o êxito do processo depende da maneira sábia ou inepta
como todos estes educadores obtêm o difícil equilíbrio entre,
por um lado, subordinar toda a sua intervenção aos graus e ma-
tizes de cada uma das etapas do “desenvolvimento das capa-
cidades” da criança e, por outro lado, manter sempre firme e
incansavelmente a própria capacidade de dar “a orientação e os
conselhos adequados”;
– que, nestas condições, a acção dos pais e de todos os outros
educadores complementares é de natureza funcional, justifica-
da, em cada fase do desenvolvimento, na exacta proporção da sua
necessidade e, por isso mesmo, progressivamente dispensável e
chamada a diminuir e a desaparecer, na mesma medida em que
a autonomia da criança vai crescendo, até atingir o nível de
pessoa adulta (crescida );
– que, em consequência, importa sempre tudo discernir à luz do
critério primordial do interesse superior da criança, porquanto,
neste universo em que nós todos verdadeiramente nem somos,
nem estamos, mas apenas passamos ou, dito de outra maneira,
estamos a passar, é ela que, vinda do passado, vai ocupando o
presente e constitui a garantia do futuro.
Quer então dizer que esta revolução da educação de infância assim
entendida, não atinge propriamente as crianças mas atinge-nos a nós os
adultos, na maneira de pensarmos e de falarmos acerca delas, com reper-
cussões na linguagem corrente, nos manuais escolares, nas publicações de
cultura geral ou de especialização científica das áreas da educação e da
pedagogia.
Ao dizermos e pensarmos, nos termos do Art.º 1º da Convenção, que
157
“criança é todo o ser humano menor de 18 anos”, já não estamos a referir-nos
apenas aos educandos dos jardins de infância mas também aos educandos
de todas as escolas de educação básica e de educação secundária, já não
estamos a empregar o “conceito” de criança para designar apenas os seres
humanos que se encontram na fase de “infância”, ou seja, os infantes (que
ainda não falam), mas sim para designar todos os seres humanos que se
encontram em processo de “criação” (crianças) ou em processo de “cres-
cimento” (adolescentes).
O que nos leva a remontar uma vez mais aos respectivos étimos para os
comparar: do *IE Bha-, que envolve a ideia geral de “falar”, vem infância e
infante (que não fala”); do *Europ. Kre-, que envolve a ideia geral de “cres-
cer” (desenvolver-se, abrir caminho), vem criação e criança (que “cresce”);
do Europ. Al-, variante Ol- que envolve a ideia geral de “alimentar” e, por
arrastamento, a ideia de “crescer”, através do latim adolescere, “crescer”, vem
adolescência e adolescente (que ”cresce”) e também adulto (“crescido”).
Nesta situação, para, em coerência com a definição de “criança” como
ser humano de 0 a 18 anos, constante do Art.º 1º da Convenção, pensar-
mos e falarmos com clareza e com rigor, impõe-se passarmos a dizer já
não “educação da infância ou dos infantes”, “educação da criação ou das
crianças” mas simplesmente, educação da adolescência ou dos adolescentes.
E, na medida em que, a seguir, vamos deparar com a educação de
adultos, deverá ser considerado não apenas preferível mas rigorosamente
obrigatório, passarmos a adoptar a designação educação de adolescentes.
E, na continuidade e em paralelo com a atribuição ao século XX do
título de Século da Criança, poderemos atribuir ao século XXI o título de
Século do Adolescente.
158
Educação da adolescência! Educação dos adolescentes! É toda para os
adolescentes! Mas depende toda dos adultos! E, em primeiro lugar, dos
pais e/ou dos seus substitutos e colaboradores!
Nesta situação, será possível assegurar a educação das crianças ou, no
vocabulário emergente, a educação dos adolescentes, sem antes acautelar a
educação dos adultos? Ou, pelo contrário e como já se vem repetindo ao
longo da história, desde Quintiliano e Juvenal em Roma, “a educação das
crianças [dos adolescentes] passa pela reeducação dos adultos”191? Vamos
procurar a resposta no capítulo seguinte.
159
•
Capítulo V
161
agro-pastoril e o ordenamento do território à criatividade hu-
mana nas linhas do comércio e da indústria, dos mercados, das
feiras, das exposições internacionais;
– na gestão social e liderança política das comunidades, que im-
plicou desde sempre tarefas de segurança, defesa e iniciativa
militar, de criação de instituições em todos os sectores da vida
civil que estão na base do desenvolvimento das aldeias primiti-
vas e das grandes cidades, capitais de reinos e de impérios, desde
Babilónia e Atenas, e Alexandria e Roma, à cidade capital de
Chi Huang Ti que incluía a área de muitos quilómetros quadra-
dos do celebrado túmulo do Imperador construtor da primeira
versão da Grande Muralha, e desde Teotihuacan dos Astecas no
México e Manchu Picchu dos Incas no Peru às metrópoles mo-
dernas e megalópoles do presente;
– na procura do conhecimento e das suas aplicações, no âmbi-
to das especulações filosóficas, das descobertas científicas e dos
avanços tecnológicos desde as “invenções” do fogo, da roda e da
escrita, às galáxias Gutenberg, McLhuan e Gates;
– na cultura e na arte, em todas as suas manifestações, desde os
ritos de iniciação e das festas sazonais das sementeiras e colheitas
nas tribos primitivas e das celebrações de vitórias e conquistas
nas velhas civilizações, aos festivais que, por acção do espírito
grego da Kalokagatia, se desenvolveram no âmbito da “ginástica”
(os jogos pan-helénicos em Olímpia), no âmbito da “música”
(os concursos de teatro em Atenas) e, mais tarde, se estenderam
ao império helenístico na fórmula da Paideia e ao mundo ro-
mano na síntese da Humanitas, e encontram eco nas maravilhas
da arquitectura, escultura, pintura, literatura e música de todos
os espaços e de todos os tempos, e hoje se perpetuam na alma
dos museus, fechados ou ao ar livre, e nos modernos festivais do
desporto, do cinema, da música e de todas as artes;
– nas tradições do culto dos gestos dos deuses e das gestas dos he-
rois, dos mitos e ritos que narram e repetem os passos dos ante-
passados, dos mistérios que envolvem as religiões e se exprimem
162
nos festivais de arquitectura, estatuária, pintura e vitral que em-
belezam os grandes monumentos do património comum, desde
as pirâmides, mastabas e hipogeus do Egipto, ao templo hindu
de Bhubaneswar na Índia, aos templos budistas de Borobudur
na Ilha de Java, de Angkor Vat no Cambodja e de Sukhotai
na Tailândia, às grandes mesquitas que resplandecem no mun-
do muçulmano e às basílicas e catedrais bizantinas, românicas,
góticas, renascentistas e barrocas espalhadas pela Europa e por
outras regiões do mundo cristão;
– nas grandes deslocações das massas humanas, a começar pelas do
“homo sapiens” que, no início, levaram à ocupação de todo o pla-
neta, continuando pelas invasões e conquistas, viagens e descobri-
mentos marítimos, ocupações, colonizações, migrações e rotas do
turismo até às grandes peregrinações, desde as locais e regionais
às de dimensão planetária, à Terra Santa, Roma e Compostela
para os cristãos, a Meca, na Arábia, para os muçulmanos, a Lhasa,
no Tibete, para os budistas, a Varanasi-Allahabad (que, nos 42
dias do Maha Kumbh Mela de 1989, atraiu 15 milhões de fieis ao
banho do rio Ganges), na Índia, para os hindus.
163
nos países mais avançados, sobretudo do norte da Europa e da América, a
partir de núcleos ligados à indústria e mesmo à agricultura para as tornar
mais competitivas, entre os prisioneiros de guerra como forma de ocupar
o tempo e promover a sua reconversão profissional e, depois da II Guerra
Mundial e durante as guerras da descolonização, um pouco por toda a
parte, com o fim de promover e elevar o nível das capacidades
da população em ordem a poder desempenhar as tarefas exigidas
pela reconstrução e/ou independência nacional.
A partir da década 60, vai ainda receber um apoio indirecto e ines-
perado com o deflagrar da crise da educação escolar.
Mas o movimento ininterrupto de Educação de Adultos, à escala
mundial, deve-se à iniciativa da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que pouco depois da sua
constituição (1945) e a partir do ano da Declaração Universal dos Direitos
do Homem (1948), chama a si a condução do processo, mobiliza vastos
recursos da cooperação internacional para o levantamento da situação,
promove reuniões de peritos à escala planetária para o debate dos proble-
mas e a elaboração de documentos, lança campanhas experimentais
de alfabetização nas regiões mais carenciadas com a ajuda econó
mica das regiões mais desenvolvidas, assegura a dinamização e
coordenação das acções e promove a sua avaliação periódica. O processo
desenvolve-se através de Conferências Mundiais (Elseneur, Dinamarca,
1949; Montreal, Canadá, 1960; Tóquio, Japão, 1972; Paris, França, 1985;
Hamburgo, Alemanha, 1997) e outras reuniões intercalares (Teerão, Irão,
1965; Persépolis, Irão, 1975; Nairobi, Quénia, 1976; etc.) que passam a
constituir marcos miliários da história de educação de adultos.
Verificamos, deste modo, que enquanto o movimento de educação
de infância, na fase da primeira metade do século XX, progrediu sempre
através de iniciativas de pedagogos e cientistas com repercussão local ou
regional, o movimento de Educação de Adultos, após a emergência da
Organização das Nações Unidas e dos organismos a ela ligados, designa-
damente da UNESCO, e sem esquecer intervenções marcantes de per-
sonalidades como Paulo Freire, desenvolve-se à escala mundial e a partir
sobretudo dos documentos emanados dos encontros periódicos de peri-
164
tos internacionais (pedagogos e especialistas dos vários campos do saber,
políticos, delegados das ONGs, gestores, administradores).
É nestas condições, através do esforço de acompanhamento, observa-
ção e análise das transformações do mundo contemporâneo, à margem
da educação escolar tradicional mas sem nunca a perder de vista, que o
novo subsistema de educação de adultos emerge e avança, lento mas firme,
à escala planetária, dando origem a uma galáxia de conceitos novos que
vão ampliar, esclarecer e aprofundar o campo da educação nas suas múl-
tiplas dimensões.
Passamos a acompanhar o processo, de acordo com a sequência das
suas fases e prestando sempre especial atenção à génese e evolução dos
novos conceitos192.
1. A formação contínua
165
de três características da sociedade da época: a mundialização crescente no
espaço, a aceleração da mudança no tempo e a explosão das ciências e das
técnicas verificada durante o conflito, fenómeno aliás tradicional durante
os períodos de guerra em que o problema acaba por ser matar ou morrer.
Tratando-se de representantes, na sua grande maioria, de países in-
dustrializados que após o conflito se encontram em processo de recons-
trução nacional e cujos quadros profissionais, para além de dizimados
pelos anos da guerra se encontram ultrapassados nos seus conhecimentos
e competências, ao equacionarem o problema da educação de adultos, nos
seus países, a atenção dos delegados à Conferência incide particularmente
sobre os “recursos humanos” que são esses adultos normalmente já esco-
larizados e profissionalizados, e sobre a necessidade e urgência de acelerar
o seu processo de actualização (em várias línguas, updating, fortbildung,
recyclage, aggiornamento) na formação profissional.
Mas porque esta necessidade e urgência, na perspectiva emergente da pla-
netização no espaço, da aceleração da mudança no tempo, e da complexifica-
ção da existência, mostram tendência para continuar a acentuar-se, haverá que
providenciar para que tal esforço de actualização passe a ter continuidade.
Nasce deste modo, para ficar, o conceito (novo) de formação contínua
dos adultos, passando toda a formação que receberam ao longo dos vá-
rios escalões do subsistema escolar a ser englobada no conceito (novo) de
formação inicial.
Se este simples facto representa um primeiro golpe na concepção tradi-
cional da educação como “preparação para a vida”, verifica-se também que
a educação de adultos, assim entendida, não passa ainda de um suplemen-
to ou complemento ou prolongamento ou aperfeiçoamento da formação
escolar, e continuaria a manter-se tributária da mesma no que respeita a
objectivos, conteúdos, métodos e avaliação se, para além deste primeiro
objectivo da reconstrução nacional, não acabasse por prevalecer outro ob-
jectivo mais abrangente, o do entendimento e cooperação para a paz.
De facto, reconhecendo a impossibilidade de chegar a uma definição
exaustiva e definitiva da educação de adultos194, os participantes procu-
ram determinar-lhe os contornos.
Prevalece a designação de educação de adultos sobre a de “educação (ou
166
cultura) popular” defendida por alguns delegados francófonos195.
Por outro lado, não se insiste na distinção entre os adultos que em
devido tempo foram escolarizados e os que nunca ou apenas levemente
beneficiaram da escolarização. Porque uns e outros se encontram sujei-
tos a dificuldades específicas, fala-se de todos os adultos e parte-se desta
“declaração de princípio” que constitui o germe da futura definição: a
educação de adultos tem por tarefa satisfazer as necessidades e aspirações do
adulto em toda a sua diversidade.
Deste modo e desde o início, o conceito de educação de adultos ex-
travasa dos limites estreitos da educação escolar e passa a ser entendido
nas dimensões de “uma concepção de educação dinâmica e funcional”, em
relação com a situação e experiência de vida concreta e a necessidade de se
realizar pessoalmente que afecta cada homem em todo o tempo e em todo
o lugar, nos termos definidos pelo próprio relatório:
167
Esta nova cultura deverá ainda procurar pôr termo, no plano nacio-
nal, à oposição entre elites e massas, no plano internacional à separação
entre “países de educação de base” e “países de educação de adultos”,
em todos os casos, aos “complexos mal fundados de superioridade ou de
inferioridade”198.
A concepção aprofundada de educação em relação com a cultura tem
consequências sobre a educação de adultos em tudo o que diz respeito
aos seus objectivos, metodologias e organização.
O objectivo da educação de adultos vai consistir não apenas na escola-
rização dos que ainda não o foram ou na actualização dos já escolarizados
mas, muito mais do que isso, no esforço por atingir um nível mais elevado
de cultura por parte de todos, de acordo com as necessidades e aspirações de
cada um e o tipo de cultura vigente em cada tempo e em cada lugar199.
A metodologia adequada vai passar, não pela tradicional relação entre o
professor que ensina e o aluno que aprende, mas pela «procura em comum da
verdade», no esforço para encontrar a resolução dos problemas de acordo
com programas flexíveis estabelecidos pela iniciativa dos indivíduos ou
dos grupos e lançando mão dos instrumentos colectivos disponíveis no
património da comunidade200.
No que diz respeito à organização e gestão da educação de adultos, ela
deverá ser grandemente participada e contar com a iniciativa das organi-
zações voluntárias, das associações privadas, profissionais, confessionais e
cooperativas, sob a coordenação dos poderes públicos e contando com a
cooperação internacional201.
Em resumo, até para atingir o êxito no esforço de procurar manter-
se plenamente actualizado no seu campo profissional, o adulto deverá
acompanhar o progresso em todas as dimensões do contexto cultural em
que se encontra inserido.
168
des reformas do subsistema escolar mas antes do início da contestação
universitária e, por isso mesmo, a sua temática, apresentada no Relatório
Final202, desenvolve-se ainda independentemente da crise que vai afectar,
durante a década que então se inicia, o sistema escolar vigente.
Os participantes debruçam-se sobre o tema geral “a educação de
adultos num mundo em transformação”, revelam-se profundamente
impressionados com as duas “mais dramáticas formas do desenvolvimen-
to tecnológico”, ou seja, o domínio da energia termonuclear (1945) e o
início da conquista do espaço (1957), e com a nova situação a que estes
avanços conduziram o mundo, perante a alternativa que oferecem aos
homens de destruição total ou de desenvolvimento sem limites.
Revelam ainda ter tomado plena consciência da “unidade de desti-
no” que, a partir de agora e transcendendo todas as divisões em facções
políticas ou blocos militares, afecta a humanidade no seu todo e a sua
sobrevivência, e transmitem ao Mundo estes sentimentos na “Declaração
da Conferência de Montreal sobre Educação de Adultos”, adoptada por una-
nimidade no final da reunião, bem como a “Resolução” que a acompanha
sobre “A Educação de Adultos e a paz do mundo”.
169
Em tais condições, os delegados verificam ainda que a educação, nes-
te mundo em movimento, pode e deve constituir um “instrumento de
mudança consciente dirigido para o futuro”, uma força de inovação e de
criatividade orientada para a sobrevivência e o desenvolvimento, e consi-
deram que a educação de adultos, como “parte integrante e orgânica” do
sistema nacional de educação, deverá revestir-se de uma dupla dimensão,
técnica e humanista, em ordem a contribuir não apenas para o desenvol-
vimento mas ainda para que este se processe de acordo com os interesses
e os ideais da comunidade humana204.
Neste sentido amplo, a educação de adultos torna-se necessária
quer aos países desenvolvidos em que o progresso tecnológico põe fre
quentemente em causa os valores humanos, quer aos países menos avan-
çados em que os valores da cultura tradicional colocam por vezes entraves
ao desenvolvimento científico-técnico.
Mais uma vez se verifica que não há razão para complexos de supe-
rioridade ou de inferioridade entre os povos da terra, porquanto todos
sofrem de carências e todos revelam potencialidades.
No entanto, dentro da nova perspectiva planetária, de acordo com ela
e cedendo à pressão da maioria dos delegados provenientes do Terceiro
Mundo, a Conferência acaba por reconhecer como primeira prioridade da
educação de adultos, à escala mundial, a educação então considerada base
das bases que é a alfabetização.
O processo assim desencadeado e mantido ao longo das duas décadas
seguintes, para além de provocar sucessivas decepções, vai fazer passar o
conceito de alfabetização por metamorfoses tais que acabarão por transfor-
mar o conceito de educação de adultos e afectar o próprio conceito de
educação.
Acompanhemos a sequência dessas metamorfoses.
Alfabetização…
170
controu na base do desenvolvimento acelerado das civilizações do Médio
e do Extremo Oriente a partir do quarto milénio a. C., se ampliou com
a invenção da imprensa na galáxia Gutenberg, se incrementou a partir
do séc. XVI nos países protestantes e um século mais tarde nos países
católicos com o objectivo de os fieis poderem aceder à leitura da Bíblia,
depois ganhou foros de exigência universal no Romantismo do séc. XIX
e entrou no curriculum da “escola primária” como tarefa de “aprender a
ler, escrever e contar”205.
Os delegados decidem aprovar a directiva de concentrar os esforços
da UNESCO no combate ao analfabetismo que ainda prevalece, numa
elevada taxa, em muitos países do Mundo. Entusiasmam-se mesmo com
a ideia de eliminar rapidamente o analfabetismo nos países pobres com a
ajuda dos países ricos. E entram em euforia ao proclamar:
… funcional…
171
ria dos casos por professores primários destacados para o efeito,
não utilizavam a seguir os conhecimentos adquiridos e recaiam
facilmente na situação anterior, dando origem ao conceito
(novo) de analfabetismo regressivo;
– que a alfabetização, assim reduzida a mero processo “escolar” e
não acompanhada de processos paralelos de transformação das
estruturas sócio-económicas que induzam a população recém
alfabetizada a treinar as competências adquiridas, aparece como
um novo órgão sem função que se atrofia por falta de prática.
172
Com efeito, verifica-se que ao contribuir para a criação de mão-de-
-obra mais dócil e dúctil a alimentar a máquina de produção e consumo,
a alfabetização funcional acaba por transformar o indivíduo em instru-
mento para manter o “statu quo” económico-social208, em vez de o ajudar
a tornar-se capaz de o transformar o que, para além de cavar mais o fosso
de injustiça entre as classes sociais, começa a provocar perturbações alar-
mantes no equilíbrio ecológico.
Por seu lado, a Conferência de Estocolmo (1972), sobre a situação am-
biental, ao analisar o desenvolvimento económico e as suas consequências,
começa a tomar consciência do alastramento de uma série de fenómenos
que até agora não tinham sido objecto da nossa atenção: a depredação dos
recursos terrestres (matérias primas, riquezas florestais, recursos energéti-
cos), o alastramento do fenómeno da poluição nas suas diversas vertentes
ou, por outras palavras, a degradação crescente das condições de vida, e reco-
nhece que o desenvolvimento que interessa ao homem não pode consistir
no mero crescimento económico a apontar para a subida do nível de vida,
mas no desenvolvimento em todas as dimensões capaz de proporcionar a
melhoria da qualidade de vida.
Paralelamente, as Conferências de Veneza (1970) e de Helsínquia (1972),
sobre o desenvolvimento cultural, apontam para o facto de o desenvolvi
mento só assumir uma dimensão humana quando se processa de acordo
com os valores sociais da superação das desigualdades e da igualdade de
oportunidades, e ainda com os valores culturais que estimulam o homem
a (re)encontrar o sentido da sua existência e do seu destino.
A Conferência Mundial de Educação de Adultos (Tóquio, 1972) que
adopta, mais uma vez, como tema “a educação de adultos num mundo
em mudança”, toma consciência destas várias dimensões do desenvolvi-
mento, constata que para além da possibilidade da destruição do planeta
por um processo de morte súbita (holocausto nuclear), também existe a
possibilidade da sua destruição por um processo de morte lenta (degra-
dação das condições e da qualidade de vida), e que a alfabetização vem
correndo o risco de inanição por falta de rumo ou, pior do que isso, por
seguir um rumo errado.
Perante esta perspectiva, a noção de funcionalidade, objecto de acesa
173
discussão no início da Conferência, obtém um consenso final em que o
seu sentido “reduzido” ao campo da economia e da produção vai ceder lu-
gar ao sentido “amplo” que abarca também os sectores social e cultural.
Na dimensão económica, conscientes de que o mundo se encontra na
transição da “civilização industrial” para a “civilização pos-industrial” ou
“dos serviços” na expressão de um analista209, ou da “civilização indus-
trial” para a “civilização científica” no dizer da própria Conferência210, e
de que, nesta nova fase, quanto mais as máquinas se tornam escravas den-
tro do processo produtivo, mais os homens se tornam livres, disponíveis
e capazes de orientar a produção e de lhe aumentar o ritmo, os delegados
reconhecem “a importância de investir em homens, mesmo sob o ponto de
vista meramente económico” e confirmam a ideia de que “é fazer prova
de inconsciência persistir em considerar a educação de adultos como um
luxo ou uma actividade marginal; a educação de adultos é um dos factores
essenciais do desenvolvimento económico”211.
Por outro lado e já no que diz respeito à dimensão social e porque “a
educação de adultos tem o seu ponto de partida num acto de fé na de-
mocracia”212, ela deverá evitar que continue a existir uma “repartição desi-
gual de conhecimentos”213 responsável pelo agravamento do fosso cavado
entre o número dos favorecidos e o “Quarto Mundo” dos desfavorecidos
ou “laissées pour compte”214, mas antes tudo fazer para que estes últimos
tomem consciência das suas condições de doença, fome, miséria e apatia,
das suas causas e dos métodos que permitem combatê-las215, de modo
a todos caminharmos para “uma democracia concreta em proveito dos
mais desfavorecidos”, em que a educação dos adultos seja verdadeiramen-
te “a educação da democracia”, “o exercício mesmo da democracia”216.
Finalmente e em relação com o desenvolvimento cultural definido
como “a mobilização dos recursos físicos e intelectuais do homem, ao
serviço da pessoa humana e da sociedade e como um processo que dura
toda a vida”217, os delegados concordam em que o essencial é “formar
homens livres numa sociedade em mutação”218 e em que “é na perspectiva
do desenvolvimento cultural que a educação de adultos deve ser, em última
análise, pensada e conduzida para assumir a sua verdadeira dimensão”219.
Tendo em conta estas três dimensões do desenvolvimento humano, a
174
Conferência de Tókio adopta uma posição clara e firme sobre o novo con-
ceito de alfabetização funcional a comportar a modulação do conceito de
educação de adultos e do próprio conceito de educação.
Depois de afirmar energicamente que por exigência da sua própria na-
tureza de “organização essencialmente humanista, para quem o homem
é um todo, um ser pluridimensional, incapaz de se satisfazer com uma
funcionalidade limitada”, o conceito de funcionalidade da alfabetização,
“em sentido bem mais estreito, estritamente económico, a Unesco, por
sua parte, recusa-o”220, adopta o conceito (novo) de alfabetização funcio-
nal em função do desenvolvimento não apenas económico mas também
social e cultural, ou seja do desenvolvimento integrado.
Mais, a Conferência avança também a ideia de que “encarar o conjun-
to das actividades da educação de adultos sob o ponto de vista funcional
no sentido amplo do termo”, constitui um “progresso capital” dos nossos
dias221.
E conclui que toda “a educação, de institucional, deve tornar-se funcio-
nal222. E que a educação funcional coincide com a educação integral223.
175
do nível do progresso atingido colectivamente por cada comu-
nidade humana e patente no resultado também colectivo que
se mede pelo número e qualidade das infra-estruturas de vida
amontoadas através dos séculos (civilização), ou em função da
capacidade atingida pessoalmente por cada ser humano de con-
tribuir para a produção desse resultado (cultura)?
– Ou ainda, a alfabetização deve visar colocar o homem ao servi-
ço do desenvolvimento exterior ou deve procurar que o desen-
volvimento exterior ajude a criar as melhores condições para o
desenvolvimento interior do próprio homem?
– O homem é para o desenvolvimento ou o desenvolvimento para o
homem?
176
como exigência de ter de enfrentar o próprio destino comum, concorre
para repensar a história no sentido de substituir a perspectiva tradicional
e estática da sua divisão em fases ou eras ou épocas ou idades (antiga,
clássica, medieval, moderna, contemporânea) pela perspectiva nova e di-
nâmica que a encara como sucessão de transformações mais ou menos
lentas mas sempre actuantes.
A resposta a tantos e tão exigentes desafios, vem a ser clarificada, a meio
da década, por ocasião da avaliação do decénio do Programa Experimental
Mundial de Alfabetização (PEMA) no Simpósio Internacional que está na
origem da Declaração de Persépolis (1975): a alfabetização deve ser coloca-
da ao serviço do crescimento e realização da pessoa humana. O homem
alfabetizado será aquele que cresce não apenas no sentido de contribuir
para o “desenvolvimento integrado”, mas também e sobretudo e antes no
sentido de procurar desenvolver-se a si próprio, até para tornar-se mais ca-
paz de participar no desenvolvimento da sua comunidade, incluindo, quan-
do for caso disso, intervir na condução dos destinos da polis.
A dimensão técnica da alfabetização cede assim o lugar à dimensão
política. A verdadeira meta da alfabetização não consiste em equipar o
homem com determinadas técnicas mas, através disso, em torná-lo capaz
de ele próprio crescer como pessoa e intervir na comunidade. Neste sen-
tido, a alfabetização tem como objectivo criar condições para que todo o
ser humano se torne capaz de se movimentar como pessoa – ser conscien-
te e livre – nos diversos sistemas em que se encontra inserido, de dominar
e controlar esses sistemas ou, na expressão forte adoptada pelo Simpósio,
de “assegurar a participação efectiva de cada cidadão na tomada de deci-
sões a todos os níveis da vida: social, económico, político, cultural”. “A
alfabetização, como a educação em geral, é um acto político”225.
Um acto político que, na praxis proposta por Paulo Freire em obras
escritas durante estes anos e que mais abaixo analisaremos, se inicia por
uma tomada de consciência pessoal ou “conscientização”, continua na cha-
mada e acesso ao “diálogo”, proporciona a progressiva libertação de todas
as servidões e alienações e culmina na humanização do adulto expressa na
capacidade (re)conquistada de poder dizer a sua palavra de homem no
meio dos outros homens.
177
As incisivas expressões da Declaração de Persépolis traduzem uma nova
metamorfose do conceito de alfabetização funcional (e, por contraste, do
conceito de analfabetismo funcional) que, a partir de agora, vai aplicar-se
a todos e cada um de nós.
Será permitido ao Autor, neste momento fazer uma pergunta ao
Leitor?
Quando começámos a falar de educação de adultos, nós pensámos em
quem? Nos agricultores e donas de casa das nossas aldeias? Nas popula-
ções das regiões mais desprotegidas do Planeta e particularmente daque-
las que fazem parte dos antigos países colonizados? Porque não sabiam ou
ainda não sabem “ler, escrever e contar”?
Nesta fase da evolução do conceito de alfabetização, à luz do texto
da Declaração de Persépolis, o nosso pensamento terá de orientar-se nou-
tra direcção: entre o número de analfabetos funcionais deverão contar-se
todos aqueles que ainda não são capazes de se movimentarem como pes-
soas (seres conscientes, livres, responsáveis) e de tomarem decisões, a este
nível, nos diversos sistemas (económico, social, político, cultural) em que
se encontram inseridos.
Assim sendo, quem de nós se considera capaz de formar opiniões con-
sistentes e tomar decisões fundamentadas, ou seja, de forma consciente,
livre e responsável,
178
saúde, à justiça, à educação, etc.),
– dentro do sistema cultural (no que diz respeito aos progres-
sos da investigação científica designadamente nos domínios da
bio- tecnologia e da bioética, à correcta apreciação das artes, por
exemplo da qualidade das obras expostas numa exposição de
pintura moderna, às ideias e ideologias, à moral e à ética, aos
valores e valorizações, às religiões e místicas)?
179
capacidade de se movimentar como pessoa dentro dos vários subsistemas
do “desenvolvimento integrado” e, no limite, de compreender e controlar
o próprio desenvolvimento.
Por outro lado, o conceito apresenta-se extraordinariamente relativi-
zado. A capacidade de nos movimentarmos como pessoas no mundo que
nos rodeia admite graus, consoante se trate de uma comunidade rural ou
urbana, de uma cidade de província, de uma capital ou de uma mega-
lópode. I. Illich já notava, em 1970, que para viver como verdadeiro ser
humano na cidade de Nova York seria necessário o 12º ano228.
Somos assim levados a uma constatação ainda mais paradoxal. Um
índio da Amazónia que não sabe nem nunca ouviu falar de “saber ler,
escrever e contar”, mas que se movimenta, ao nível de desenvolvimento
do seu grupo, dentro do respectivo ecossistema, como homem conscien-
te e livre, não parece poder ser considerado analfabeto funcional. Em
contrapartida, um respeitável cidadão da Europa, da América, da Índia,
da China ou do Japão, munido de um diploma universitário, mas que
não consegue movimentar-se como pessoa, verdadeiramente consciente e
livre, dentro do seu emaranhado sistema eco-sócio-cultural (sem falar já
da sua capacidade para participar no respectivo controlo político), parece
que, em boa verdade, dificilmente poderá evitar ser catalogado no rol dos
analfabetos funcionais.
O conceito de alfabetização ganha clareza se remontarmos ao étimo
da palavra, em grego, alphábētos, ou.
Que significa com efeito ser “analfabeto”?
Pura e simplesmente, recorrendo ao grego, não saber o alfa e o beta, e
recorrendo ao latim, não conhecer as letras do abecedário, ou seja, o “a b
c” de qualquer coisa.
O alfabeto não passa de um código ou repertório de sinais da lingua-
gem escrita. Ser alfabetizado implica a capacidade de estar iniciado ao
conhecimento desse código de comunicação, a fim de poder codificar ou
descodificar as mensagens nele contidas.
Mas como este código, existem mil outros, mais gerais ou mais res-
tritos, privados ou públicos, como o código Morse, o código Braille, o
código da estrada, os códigos estabelecidos nas actividades económica,
180
social, jurídica, profissional, política, científica, cultural, artística, poéti-
ca, religiosa, mística…
O que nos conduz à compreensão de três coisas.
A primeira diz respeito à situação de privilégio de que goza o código “al-
fabeto”: deriva do facto de ter sido criado há cinco mil anos, e desde então
até aos dias de hoje, ter sido explorado pelas classes superiores de “letrados”
(sacerdotes antigos, clérigos medievais, administradores políticos, grandes
gestores) para se distinguirem das e se imporem às classes inferiores.
A segunda tem a ver com a verificação registada acima de que a ne-
cessidade de alfabetização funcional diz respeito a todos e cada um de nós:
podemos calcular a medida exacta em que acedemos a ela, interrogando-
-nos sobre o número de códigos de comunicação aos quais nos encontra-
mos ou não iniciados.
Finalmente e é o que neste momento conta mais, verificamos que o
nível de alfabetização funcional que nos anos 60 poderia corresponder, no
máximo, ao período inicial do subsistema escolar, passa a ser contabiliza-
do, a partir de 1975, pelos anos de escolaridade cumpridos. O facto vai
ter um impacto demolidor no subsistema escolar, afectar o subsistema de
educação de adultos e, como veremos a seu tempo, marcar o sentido da
educação ao longo da vida e da educação no seu todo.
181
Definição
Objectivos
182
(1949), a educação de adultos é entendida como processo que visa criar as
melhores condições para que o adulto se torne capaz, ele próprio e não outros
por ele, de procurar resposta para todas as suas necessidades e aspirações231,
não apenas de ordem mental, na linha do formalismo e intelectualismo
que tendencialmente caracterizam a escola, mas de todas as outras or-
dens, física e moral, ecológica e política, artística e religiosa, etc., que têm
a ver com a capacidade efectiva de movimentação, por parte da pessoa,
nos vários subsistemas em que vive, trabalha e se diverte.
Na mesma ordem de ideias e porque se trata de necessidades e aspi-
rações, há que “atribuir a mais alta prioridade aos grupos menos favore-
cidos”232, designadamente os do Quarto Mundo das mulheres, idosos,
populações rurais, desempregados, analfabetos, jovens que precisam de
um complemento ou do acabamento dos estudos anteriores, diminuídos
físicos ou mentais, migrantes, refugiados, minoras étnicas, os que não
têm liberdade de utilizar a língua materna e/ou de viver de acordo com a
própria cultura, marginais e marginalizados, oprimidos e explorados.
Esta perspectiva deverá levar os Estados a “reconhecer a educação de
adultos como componente necessária e específica do seu sistema de edu-
cação”233, a incluir os seus objectivos e metas nos planos nacionais de
desenvolvimento234, a tomar medidas concretas em pontos específicos
como o das relações entre educação de adultos e trabalho235 e entre edu-
cação de adultos e educação de jovens236.
Conteúdos
183
Um ponto deve ser cautelosamente assinalado: a definição dos pro-
gramas não pode competir a outros que aos próprios adultos, indivíduos
ou grupos, na medida em que se trata de encontrar resposta para as suas
necessidades e aspirações e que, sobre elas, são eles os que mais sabem se
não mesmo os únicos que as conhecem.
Resta um problema extraordinariamente delicado: e que fazer quando
os adultos chegaram a tal nível de alienação e degradação que nem sequer
têm consciência das próprias necessidades e aspirações? As iniciativas de
tipo endógeno não são previsíveis e as de tipo exógeno correm o risco de
ser objecto de rejeição.
A resposta, nada fácil, exige da parte dos responsáveis tais qualidades
de intuição, tacto e experiência que por si sós falam bem alto sobre os
cuidados a ter no seu recrutamento e formação.
Organização
184
específica. Neste caso, os candidatos serão objecto de um recrutamento
cuidadoso e de uma formação inicial (com estágio) que deve “incluir to-
dos os aspectos de competência técnica, conhecimentos, compreensão e
atitudes pessoais necessárias para o desempenho das suas diferentes tare-
fas, tendo em conta o contexto amplo em que se desenvolve a educação
de adultos”244.
Dever-se-á ainda recorrer a todas as pessoas, grupos e organizações fa-
miliares, profissionais, empresariais, sindicais, cooperativas, informativas,
educacionais e de voluntariado.
Métodos
185
ções da cultura dos antigos países colonizados perante a cultura os países
colonizadores.
Por tudo isto, o trabalho em educação de adultos só é possível se aos co-
nhecimentos, técnicas e métodos apropriados, se acrescentarem as atitudes
e competências morais específicas que se podem resumir no respeito:
Dito de outra forma, há que tratar o adulto não como objecto mas
como sujeito de educação246. Não se trata de exercermos sobre ele a acção
educativa mas de criarmos condições para que ele se torne o agente da sua
própria educação. O que interessa, em última análise, não é resolver-lhe
os seus problemas (o que terá de ser feito no caso de se tratar de deficiente
estrutural) mas, muito mais do que isso, ajudá-lo a tornar-se capaz de, ele
próprio, procurar para eles a melhor solução, de acordo com o célebre
ditado chinês «se queres matar a fome a um homem uma vez, dá-lhe um
peixe; se queres matar-lhe a fome toda a vida, ensina-o a pescar».
Quer dizer ainda que todo o esforço da hetero-educação (educação re-
cebida de outros) deve desembocar num esforço de auto-educação (edu-
cação procurada por si próprio), sempre no ambiente estimulante da
inter-educação.
186
bém educando e o outro é também educador. E “todos nos educamos em
comunhão”.
A distinção entre professor e aluno perde todo o sentido. E esta des-
coberta, feita no âmbito da educação de adultos247, é hoje universalmen-
te aceite no âmbito da educação comunitária. De facto, ninguém sabe
tudo e ninguém sabe nada, ninguém nasceu (só) para ensinar e ninguém
nasceu (só) para aprender. O que acontece é que todos nós sabemos al-
gumas coisas e ignoramos muitas mais. De aí que, ao ensinarmos o pou-
co que sabemos e aprendermos o muito que ignoramos, todos ficamos
enriquecidos.
Na mesma ordem de ideias, os métodos de educação de adultos afas
tam-se do esquema escolar da sala de aula e adoptam o de grupo de es-
tudo, em formas que se revestem de extrema variedade248, mas que ten-
dem a aproximar-se dos círculos de estudo dos países escandinavos ou dos
grupos de investigação dos temas geradores nas experiências de educação
problematizadora de Paulo Freire.
Dotados de extrema flexibilidade, funcionam com qualquer número
de membros (desde que não exagerado), em qualquer tempo e em qual-
quer lugar. O essencial é que, em comum, se abordem os problemas e se
procure encontrar a solução.
Sempre que o homem encontra outro homem ou grupo humano,
pode comunicar e enriquecer-se.
Sintetizando, poderemos dizer que se trata de desencadear e manter
o processo tendente a contribuir para criar as melhores condições a todo
o homem, ao homem todo, totalmente e sempre, como já no seu tempo era
proposto, na sua Didáctica Magna, por A. Coménio249.
Mas isto pode acontecer quando se estabelecem relações humanas
quer ao nível intrageracional, quer ao nível intergeracional.
187
responsáveis de amplos sectores educativos e cujas conclusões são ainda
frequentemente, nas Conferências e Reuniões Internacionais, objecto de
negociações e resultado de compromissos.
Mas há também os pedagogos cujas obras resultaram de experiências
amplas, profundas e duráveis, porquanto vividas, sofridas e postas à prova.
É o caso de Paulo Freire, numa região planetária em que, ao longo
dos últimos 500 anos e sem contar com os acidentes naturais como o da
desertificação deslizante nalgumas regiões, se cruzaram os gládios da in-
justiça de três continentes (genocídio de populações autóctones desde os
astecas do México aos incas do Peru, comércio negreiro dos escravos pro-
cedentes da África, violências exercidas pelos colonizadores da Europa).
A sua obra apresenta o resultado da praxis adquirida a partir da longa
experiência em processos de alfabetização da população desfavorecida do
nordeste brasileiro e da reflexão aprofundada sobre as raízes das ideolo-
gias então dominantes nos dois blocos da Guerra-fria. Abordando temas
como “opressão”, “revolução”, “libertação”, “conscientização”, “diálogo”,
“educação”, “pedagogia”, etc., encontra-se em profunda sintonia com as
preocupações expressas nos dois documentos que, em meados da déca-
da 70, fixam definitivamente a abrangência e semântica do conceito de
educação de adultos: a Declaração de Persépolis (1975), ao afirmar que a
alfabetização funcional não é um problema técnico mas um “problema
político”250, e a Recomendação de Nairobi (1976), ao insistir em que a edu-
cação de adultos visa “promover a criação de estruturas, a elaboração e a
execução de programas e a aplicação de métodos educativos que respon-
dam às necessidades e aspirações de todas as categorias de adultos”, e ainda ao
“atribuir a mais alta prioridade” aos
188
Paulo Freire, ao intervir neste debate que agita o mundo global na dé-
cada histórica de 70, desenvolve particularmente duas categorias concep-
tuais do pensamento da época: o conceito de revolução, central no con-
flito ideológico entre os dois blocos político-militares de Leste e Oeste,
e o conceito de pedagogia incrustado no cerne do processo de educação
escolar que andava na época a ser posto em causa pela contestação uni-
versitária, e do processo de educação de adultos que entretanto abria o
seu caminho252.
Evoquemos os tópicos essenciais do tratamento dado a cada um des-
tes dois conceitos e a sua fusão na síntese da “revolução pedagógica”.
189
querda, porquanto todos reagem contra a natureza consciente e livre do
ser humano. Há portanto que os distinguir cuidadosamente dos verda-
deiros revolucionários, ou seja, dos que trabalham pela transformação do
mundo respeitando em todos os homens a sua dignidade de seres cons-
cientes e livres257.
Todos os violentos são sectários, quer os da direita, quer os da esquer-
da, porquanto, fechados na sua verdade, “sofrem ambos da falta de dú-
vida”, sedentos do poder só procuram conservá-lo ou (re)conquistá-lo,
agarrados à sua segurança empenham-se em domesticar o presente para
o manter e o futuro para o prefixar. Há por isso que distinguir estes sec-
tários dos radicais que são os homens abertos a todas as alternativas e de-
cididos a aprofundar os problemas até às últimas consequências. Radicais
são os que se empenham numa revolução que visa não apenas substi-
tuir no poder uns pelos outros, invertendo simplesmente a situação dos
opressores e dos oprimidos para deixar ficar tudo na mesma, mas, através
do empenho e da persistência na procura da conscientização e do diálogo,
contribuir para a libertação de todos, oprimidos e opressores, da opressão
que os primeiros padecem e os outros exercem258.
“Já que não se pode afirmar que alguém liberta alguém ou que alguém
se liberta sozinho, mas que os homens se libertam em comunhão”259.
190
que “é a essência da acção revolucionária”. Neste sentido, P. Freire descreve
a acção anti-dialógica como processo de conquista, de dividir para reinar,
de manipulação, de invasão cultural, e a acção dialógica como processo de
cooperação, de organização, de união, de síntese cultural261.
A educação, entendida como dimensão ligada às duas alternativas do
processo, pode assim entender-se ou como prática de dominação de uns
pelos outros, ou como prática de libertação de todos262.
Na mesma ordem de ideias, a pedagogia, concebida como técnica-ci-
ência-filosofia da educação, pode corresponder ao actual sistema monta-
do e mantido pelos opressores – pedagogia dos opressores – ou a um sistema
que pode ser criado pelos oprimidos – pedagogia dos oprimidos – não para
eles mas deles e que esteja de acordo com as exigências que lhes impõe a
situação em que se encontram: uma pedagogia da revolução263.
Encontramos assim o caminho aberto para uma revolução de nature-
za pedagógica.
A “revolução pedagógica”
191
comunidade não apenas como espectador mas como actor e co-autor da
história265.
Mais tarde e já integrado nos círculos de investigação temática ou nos
círculos de cultura, ele passará a ser capaz de inventariar novos temas ge-
radores, elaborar projectos e programas de estudo sistemático e inter-disci-
plinar e progredir no processo normal da sua formação contínua e da sua
educação ao longo da vida266.
Finalmente, estes processos individuais serão enriquecidos, a cada
instante, pela inter-acção que gera a educação comunitária.
Porque “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se edu-
ca a si mesmo: os homens se educam em comunhão”267.
Temos assim efectivada a revolução verdadeira ou “revolução pedagó-
gica”: revolução porque realmente muda tudo; pedagógica porque procura
atingir esse objectivo respeitando a dignidade, os direitos (e os deveres) e
o ritmo pessoal de cada ser humano.
192
Educação de adultos de tipo supletivo
193
Educação de adultos de tipo funcional
194
aceite, nem parece de esperar que alguma vez isto possa vir a acontecer.
No entanto, neste campo e a nível micro, contamos com as experiên-
cias de avaliação da literacia realizadas desde a década de 70 em alguns
países, designadamente nos Estados Unidos da América270, no Canadá271
e na Europa272.
Trata-se de avaliar, numa determinada população, o grau de capaci-
dade da utilização das competências de leitura, escrita e cálculo, quer as
inicialmente adquiridas no âmbito das disciplinas, cursos e percursos das
diversas etapas da via escolar, quer as eventualmente recebidas através das
diversas actividades de educação de adultos, na interpretação de textos
escritos de informação (por exemplo, avisos, indicações sobre o tipo e po-
sologia dos medicamentos, instruções para a obtenção de um documento
ou a montagem de um electrodoméstico, etc.) em ordem à resolução dos
problemas do dia a dia.
195
devendo ser utilizada com as devidas cautelas, porquanto,
– de entre as múltiplas aprendizagens da vida, privilegia uma aprendi-
zagem adquirida na escola;
– dentro desta e entre outros códigos de comunicação, considera o
código de comunicação escrita;
– dentro deste, atende apenas à dimensão informativa (informações,
mensagens, gráficos, etc.) presente em textos monossémicos em prosa
(a situação tornar-se-ia muito mais complexa se houvesse recurso a
textos polissémicos da poesia e de outras dimensões da cultura);
porque tem a ver com a resolução dos problemas do dia-a-dia e apela
às competências de comunicação adquiridas no susbsistema escolar, o
mais difundido e desenvolvido do sistema educativo, reveste-se de um
poder heurístico extraordinário para a compreensão do nível educati-
vo das pessoas e das comunidades”273.
196
jovens, e por isso há que assegurar a sua preparação.
Mas também esta é feita pelos adultos que, por sua vez, só poderão
desempenhar bem essa tarefa se previamente estiverem educados.
Assegurar a educação dos adultos de hoje equivale a assegurar a educação
dos adolescentes de hoje que, afinal, são também os adultos de amanhã.
No fim do Preâmbulo da Recomendação sobre o Desenvolvimento da
Educação de Adultos saída da Conferência Geral da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, Nairobi, 1976)
e relativamente à política a adoptar sobre a educação de adultos,
197
se compadece com o facto de os governos continuarem a gastar (quase)
todo o seu orçamento apenas com a educação escolar, situação que vem
gerando o fenómeno do elitismo educativo em moldes novos.
Ao contrário do elitismo tradicional, de natureza sócio-económica, o
elitismo moderno apresenta-se como um elitismo de gerações: enquanto
as crianças e jovens de hoje dispõem normalmente de todas as vantagens
para se instruírem (escolas, tempo livre para as frequentarem, corpo do-
cente especialmente preparado, métodos modernos de ensino e aprendi-
zagem, material didáctico apropriado, meios audiovisuais e equipamen-
tos informáticos, etc.), os adultos de nada disso dispuseram no passado,
de nada ou de pouco dispõem no presente e, com o rodar do tempo,
encontram-se cada vez mais ultrapassados e marginalizados.
Mas a gravidade da questão situa-se no facto de que sem educação de
adultos, nunca será possível existir verdadeira educação de adolescentes.
A educação de adultos do presente envolve também a dimensão preven-
tiva da educação dos adultos do futuro que são as crianças, adolescentes e
jovens de hoje.
Nesta situação, importa encontrar resposta cabal para perguntas
difíceis:
198
próprios continuam menos instruídos ou até analfabetos e se de-
batem, por isso, com insuperáveis complexos de inferioridade?
– a pergunta de nós todos: e “ao esquecermos a educação dos adul-
tos de hoje e não acautelarmos, assim, o êxito da educação das
crianças e dos jovens, não estamos também a comprometer, ir-
remediavelmente, a educação dos adultos de amanhã?276
199
•
Capítulo VI
201
Por outro lado, já nas décadas 60-70 a partir do movimento genera-
lizado da “contestação escolar” e depois de 1989 na sequência da meta-
morfose da “educação de infância” em “educação da adolescência”, co-
meçámos a compreender que o futuro acabaria por avançar exactamente
na direcção contrária: o desmembramento do subsistema de educação
escolar em duas partes; a distribuição dessas duas partes pelos subsistemas
de educação de adolescentes e de educação de adultos; a sequenciação dos
dois no único processo de educação permanente ou educação ao longo da
vida de cada ser humano e a emergência deste conceito como expressão
do novo paradigma.
202
– até aos anos 50, sem pôr em causa a educação de infância emer-
gente, a educação entende-se, correntemente, como preparação
para a vida nas dimensões da educação escolar;
– nos anos 50, começa a estruturar-se, ao lado do campo escolar
tradicional, o novo campo da educação de adultos;
– nos anos 60, os dois campos dispõem-se como duas partes
de um todo, em termos de dois subsistemas do único sistema
educativo;
– nos anos 70, a educação escolar e a educação de adultos organi-
zam-se como duas fases de um único processo, que abarca toda a
existência de cada ser humano e, por isso mesmo, passa a desig-
nar-se educação permanente ou educação ao longo da vida277.
203
manifestações de carácter cultural que atingiam, em sentido e medida
muito diferentes, as diversas camadas populares.
Os delegados franceses à Conferência de Elseneur (1949) informam a
assembleia de que, no seu país, não se fala de “educação de adultos” mas
de “educação (ou cultura) popular”. Defendem mesmo ser esta a expres-
são mais correcta278. E a expressão “educação popular” aparece, de facto,
nalguns subtítulos do respectivo Relatório279, embora, no fim, acabe por
ceder todo o espaço à “educação de adultos”.
204
cias”285; fomentar a experiência artística em qualquer das suas dimen-
sões286, as actividades recreativas287 e, nos países menos desenvolvidos, a
instrução elementar288.
Considera-se “importante distinguir a educação de adultos da for-
mação profissional”, o que revela existir tendência para as confundir no
mundo ocidental cujos quadros tinham sido desfalcados pela guerra.
Reconhece-se depois que “a formação profissional dos adultos põe
uma série de problemas que se ligam directamente à educação de adul-
tos”, tendo em conta a necessidade de qualificação para o trabalho sentida
por todos e o facto de muitos se tornarem adultos sem preparação para as
tarefas que acabam por exercer, ou se adaptarem mal à profissão, ou se ve-
rem forçados, mais cedo ou mais tarde, a uma reconversão profissional.
A educação de adultos, no sentido emergente de formação contínua,
deve proporcionar este complemento de educação em diversos planos:
orientação profissional, formação profissional e cursos de aperfeiçoamento, le-
vando assim os adultos a encarar a sua profissão como meio de cultura289.
Aparece deste modo e suficientemente delineado, a par do sistema
educativo tradicional das crianças e dos jovens, o novo campo de educa-
ção dos adultos que se propõe:
205
adultos vai assumindo cada vez maiores proporções: aparece como substituto
de educação para muitos e suplemento de educação para todos; conduz a uma
progressiva tomada de consciência das responsabilidades que incumbem aos
formadores de adultos, aos cultores das ciências sociais, às universidades e
institutos de investigação, aos Estados no referente à atribuição das verbas
necessárias, à colaboração internacional, à liderança por parte da Unesco.
Mas, sobretudo, e como reconhecerá A. Basdevant, Secretário Geral
da Segunda Conferência Internacional, no prefácio do respectivo Relatório,
“desde a Conferência de Elseneur, o conceito de educação de adultos so-
freu um alargamento apreciável”290.
Vejamos em que sentido.
206
a educação de adultos seja tratada como uma parte do desenvolvimento
económico e do desenvolvimento em geral, a decidir avançar para um pla-
neamento integrado294, a atribuir a prioridade máxima à alfabetização, a
canalizar para ela todo o esforço da solidariedade internacional e a procla-
mar a sua fé no êxito próximo destas iniciativas295.
Conhecemos hoje o permanente fracasso deste projecto, os fracos re-
sultados das muitas Conferências Regionais promovidas pela Unesco no
início dos anos 60296 e a reorientação que irá estabelecer-se, dentro do
novo conceito de alfabetização funcional, em Teerão (1965).
Mas, por outro lado, verifica-se que a educação de adultos, para além
de exigir ser considerada parte do sistema educativo, começa a influenciar
a outra parte, a educação escolar, precisamente na altura em que esta co-
meça também a ser mais vivamente posta em causa.
Com efeito, a contestação ao subsistema escolar atinge dimensões à
escala mundial na década 60.
A mutação quantitativa que ele vinha sofrendo, através das reformas
lançadas nas duas décadas anteriores, orienta-se agora para o fracasso por
três razões essenciais: os Estados sentem-se incapazes de aguentar o esfor-
ço financeiro requerido para manter as taxas de crescimento da educação;
o ritmo acelerado da evolução da civilização e da cultura não é acom-
panhado pela instituição escolar que, por isso mesmo, aparece cada vez
mais desfasada da realidade; o “produto” da escola, o aluno, sente-se con-
sequentemente cada vez mais rejeitado pela sociedade, e entra em estado
de revolta contra a instituição que o (não) formou297.
O decénio caracteriza-se pela contestação generalizada a exigir mu-
danças estruturais ou mesmo a erradicação da Escola298.
É o período dos grandes movimentos de massas nas Universidades de
todo o mundo, da crise de Maio de 1968 em França, da erupção das con-
traculturas, das discussões entre os responsáveis que se irão fazer sentir na
Terceira Conferência Internacional de Tóquio299.
São também os anos da tomada de consciência do Choque do Futuro300.
A Escola terá de mudar, sob a ameaça de desaparecer.
A transformação quantitativa terá de dar lugar a uma transformação
qualitativa.
207
Mas qual será a força capaz de marcar o rumo positivo dessa
transformação?
Hoje e à luz da análise que é possível fazer, a resposta é clara: é o elã
da educação de adultos que começa a revelar-se capaz de insuflar novo
espírito à instituição escolar, designadamente no que diz respeito a: to-
mar consciência da nova situação do mundo; sair da sua torre de marfim
(metáfora válida sobretudo para a universidade) e tornar-se sensível às
necessidades e aspirações do seu contexto social; reformular os seus objec-
tivos, no sentido de ministrar uma “educação funcional”, ao serviço do
desenvolvimento da comunidade de que também ela faz parte; adoptar
os métodos mais adequados, sobretudo no que diz respeito à relação peda-
gógica; utilizar as técnicas mais eficientes, audiovisuais, mass media, etc.;
descobrir o tipo de organização mais apropriado; encarar a necessidade de
proceder a uma avaliação global e permanente.
208
problemas relativos à juventude, tais como os do abandono dos
cursos e do desemprego à saída da escola”301.
209
etapa deste processo contínuo”313; “a educação é um processo permanente; a
educação dos adultos e a das crianças e adolescentes são inseparáveis”314;
Finalmente reconhece-se que esta integração se verifica no processo de
educação ao longo da vida: “a educação dos adultos tem doravante o seu
lugar reconhecido no quadro geral da educação”; “o público está cada vez
mais consciente da importância da educação de adultos e cada vez mais
aberto ao conceito de educação ao longo da vida”315; por outro lado e ao
contrário da educação escolar que, em muitos países, é um sistema fecha-
do no tempo e no espaço, a educação ao longo da vida implica a abertura
no espaço (todos os lugares em que o homem vive) e a continuidade no
tempo (todas as fases da sua existência)316.
210
que diz respeito à maneira de abordar o processo educativo, à sua funda-
mentação e conceptualização e ao momento histórico de clarificação das
suas duas fases.
211
“É preciso não somente que a educação se dirija a todos os grupos de
idade, mas também que ela se evada dos quatro muros da escola tradicional e
que penetre na sociedade, a fim de que todos os lugares onde as pessoas se reú-
nem, trabalham, se alimentam ou se distraem, se transformem num meio
educativo potencial. É por isso que, nos anos que se aproximam, será cada
vez mais necessário identificar e encorajar formas de educação paralela que
fazem parte integrante da vida quotidiana”320.
212
pansão integral do homem em toda a sua riqueza e na complexi-
dade das suas expressões e compromissos […].
O nosso último postulado é o de que a educação, para formar
este homem completo […] terá de ser global e permanente. Trata-
se de não mais adquirir, de maneira exacta, conhecimentos de-
finitivos, mas de se preparar para elaborar, ao longo de toda a
vida, um saber em constante evolução e de ‘aprender a ser’ ”322
213
Depois de escolher um entre “quatro tipos prospectivos (ou “mode-
los”) de sistemas sociais, prevê o faseamento do processo de educação ao
longo da vida em três períodos.
214
existente, mas também desenvolver todo o potencial de formação
fora do sistema educativo;
– num tal projecto, o homem é o agente da sua própria educa-
ção através da interacção permanente da sua reflexão e das suas
acções;
– a educação e instrução, longe de se limitar ao período da escola-
ridade, deve prolongar-se por toda a vida, abarcar todos os domí-
nios do saber e conhecimentos práticos, utilizar todos os meios
possíveis e possibilitar a todo o indivíduo um desenvolvimento
pleno da sua personalidade;
– os processos educativos e de aprendizagem nos quais estão in-
tegrados ao longo da vida, as crianças, os jovens e os adultos, seja
sob que forma for, devem ser considerados como um todo”325.
215
Hamburgo, 1997, que irá intitular-se “Aprender em Idade Adulta: Uma
chave para o século XXI”), a educação passa a entender-se como proces-
so que afecta a existência de cada indivíduo e implica a continuidade
no tempo (todas as fases da vida: infância, adolescência, juventude, vida
adulta, terceira idade) e a abertura no espaço (todos os lugares em que
o homem vive, convive, trabalha e se diverte). O seu objectivo já não
consistirá em preparar a criança ou jovem para a vida mas em estimular
o processo da vida mesma, em ordem a que a pessoa, como agente da sua
própria educação, concretize o seu projecto de existência visando a sua re-
alização pessoal em comunhão com todos os outros membros da Família
Humana e dentro dos condicionalismos do respectivo ecossistema.
“Art. 1º. Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser hu-
mano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicá-
vel, atingir a maioridade mais cedo”326,
216
no que diz respeito ao advento do mundo dos valores da dignidade huma-
na, vida, segurança, verdade, justiça, beleza, felicidade, paz, e ao facto de
que esse mundo
217
– reconhece implicitamente que durante milénios, prevaleceu a
tendência para relegar as crianças para a categoria de coisas;
– proclama que a criança, como ser vivo e como “membro da
família humana” e “sem qualquer descriminação” (Artº 2º, 1),
é portadora da dignidade de pessoa humana e que, “por motivo
da sua falta de maturidade física e mental tem necessidade de
protecção e cuidados especiais” e, nos casos em que viva “em
condições particularmente difíceis” (Preâmbulo), carece de uma
atenção mais especial ainda;
– acrescenta que esta situação se refere a todo o período de meno-
ridade (0-18 anos), a decorrer dentro da “família como elemen-
to fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento
e bem estar de todos os seus membros e em particular das crian-
ças”, e que nele “a criança deve ser plenamente preparada para
uma vida independente na sociedade e ser educada” no espírito
dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas, designa-
damente no espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade,
igualdade e solidariedade, numa palavra, de todos os valores.
218
daquela divisão em termos de maturidade/imaturidade, ao afirmar que os
membros menores de 18 anos, as crianças ou adolescentes “por motivo da
sua falta de maturidade física e mental têm necessidade de “protecção e
cuidados especiais” (Preâmbulo).
Finalmente e ao longo do texto, relativamente a todas as situações,
com destaque para aquelas em que as crianças “vivem em condições parti-
cularmente difíceis”, mais ou menos explicitamente, o tema é ainda abor-
dado em termos de autonomia/heteronomia, sempre que se apela para as
decisões a serem tomadas pelos adultos, designadamente “os pais”, “os
membros da família ampliada”, “os tutores ou outras pessoas encarre-
gadas legalmente da criança” (Art.º 5º), as pessoas que fazem parte das
“instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo”
(Art.º 3º, 3; Art.º 27º, 3-4), as pessoas responsáveis por “todas as deci-
sões relativas a crianças adoptadas por “instituições públicas ou privadas
de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos
legislativos” (Art.º 3º, 1).
Esta relação, dentro da Família Humana, entre a categoria das pessoas
rotuladas como maiores, amadurecidas e autónomas e a categoria das pes-
soas rotuladas como menores, imaturas e heterónomas, revela-se prenhe de
consequências.
O recurso aos étimos de todos estes lexemas, porque, para além do
mais, vai revelar-nos a extraordinária coerência vocabular e semântica dos
principais conceitos que utilizamos na área da educação, pode ajudar-nos
a compreender melhor o sentido de cada uma daquelas duas categorias e
a relação que entre elas se estabelece.
219
a ver com mais, como demais, demasia, jamais, e ainda mas; de
magister recebemos mestre e maestro, mestrado e mestria, magis-
tério e magistratura, etc.; de magnus, temos magno e magnate,
magnitude, magnânimo e magnífico, etc.; de major, vem major
e maior, maioria e maioridade, Maia (deusa) e Maio (mês),
morgado e mordomo, capitão-mor, etc.; de Majesta (deusa), vem
Majestade; de majusculus, vem maiúsculo; de maximus, vem má-
ximo, etc.
Neste contexto, maior aparece definido como “mais grande, que supera
outro em número, grandeza, extensão, intensidade, duração, importân-
cia, superioridade, excelência”, e maioridade, no sentido jurídico, designa
a “idade legal em que uma pessoa é reconhecida como plenamente capaz
e responsável”, em que alguém adquiriu capacidade para se “governar a si
próprio”, para “exercer […] os seus direitos políticos”, para “responder num
processo criminal”328, ou ainda a idade em que a pessoa adquiriu a maturi-
dade física e o discernimento para reconhecer os limites dos seus direitos e
as exigências dos seus deveres, governar a sua pessoa e os seus bens.
O limiar desta maioridade que para Platão, devido às elevadas exi-
gências da formação filosófica, se atingia pelos 50 anos e para Santo
Agostinho se situava à roda dos 30, foi fixado pelo Direito Romano aos
25, mais tarde aos 21, actualmente e na maioria dos países aos 18.
Em termos jurídicos, a maioridade pode atingir-se também por um
processo de emancipação e dura enquanto ela não for perdida por inter-
dição ou inabilitação.
Mas o conceito de maioridade, tomado como critério para definir
a transição fundamental da existência humana aferido pelo número de
anos, carece de fundamentação. Ela encontra-se numa característica pró-
pria do homem como ser vivo, capaz de amadurecer: ter atingido a fase
plena do amadurecimento ou de maturidade.
220
– pelo verbo lat. māno, ās, āre, que significa “gotejar, escorrer,
difundir-se”, recebemos em português manar, emanar, dimanar,
manancial, etc.
– pelo adjectivo arcaico mănis, depois mănus, “claro, bom, be-
névolo” (mas que também tinha como seu contrário immansis,
“não bom, mau, cruel”, capaz de immanitas, “crueldade, coisa
horrível”) e o seu plural Mănes, num, de onde vem Manes, “ as
almas dos mortos”, “deuses bons” que protegiam os homens,
recebemos manhã, de manhã, amanhã e amanhecer, etc.
– pelo substantivo Matūta, antiga deusa itálica, identificada com
a Aurora, recebemos matutino, matinas, matinal, “tudo o que
vem em boa hora, cedo”;
– finalmente pelo substantivo latino Matūra, divindade que presi-
de aos frutos, e ainda pelo adjectivo matūrus, a, um, “que se pro-
duz no bom momento, na hora favorável” (ao contrário do que
é imaturo ou prematuro), para além de madrugar e madrugada
no sentido anterior de “chegar cedo”, recebemos maturar, madu-
ro, amadurecer, o que acontece no reino vegetal com tudo aquilo
“que, havendo atingido o seu completo desenvolvimento, pode-
ria ser comido, colhido ou semeado”, no reino animal com todo
o animal que se considera ter atingido o “estado ou condição de
pleno desenvolvimento”329 e, mais concretamente, com o ser hu-
mano que atinge o desenvolvimento físico, intelectual e moral.
221
Sendo o lexema grego nomos, na acepção originária, atribuído apenas
às normas que regem a vida da polis, a autonomia somente se aplicava aos
povos, governos e Estados. Nesse contexto, quando aplicado individu-
almente, autonomia apenas podia significar uma relativa independência
perante a autoridade.
Já na moral Kantiana, a autonomia representa o carácter da vontade indi-
vidual que se determina pelo puro respeito à lei ditada pela razão prática.
Deixando para mais tarde o apuramento da questão, basta por agora
recordar que assim como as coisas estão ao serviço das pessoas, também as
pessoas não são para se fecharem em si mesmas mas, por movimentação
interior espontânea, se abrirem umas às outras e todas, através do cum-
primento das leis que nos regem, se colocarem ao serviço dos valores.
222
primariamente em vista, porque é ela que assegura o curso do processo
educativo a decorrer inicialmente na relação estabelecida entre os pais
educadores e os filhos educandos.
Mas a Convenção sublinha também a existência e a função de cada
um dos círculos concêntricos que se formam ao redor da família nuclear
e que, respeitando o seu papel coordenador, ampliam a sua acção, desde
os tutores e responsáveis de educação, passando pela família ampliada, a
comunidade e os Estados Partes, até à Família Humana.
Neste contexto e ao longo do tempo, família começou também a
empregar-se para designar grupos de pessoas unidas por interesses, con-
vicções ou ideias comuns de natureza profissional, social, cultural ou re-
ligiosa e ligados ou não à família nuclear. É o caso da Escola instituição
que passou a recolher os adolescentes dos vários escalões etários para lhes
abrir os caminhos do conhecimento, da ciência, da investigação e da pre-
paração para o exercício das diversas profissões.
Acontece no entanto, ao longo dos séculos recentes, que a escola se
foi promovendo a centro de educação, em consequência de uma série de
factores, entre os quais se enumeram: a abdicação dos pais; a apropriação
dos professores; a pressão das ideologias do iluminismo e do economicis-
mo reinantes; a progressiva usurpação de todos os poderes pelos regimes
políticos autoritários, desde os absolutismos reais às modernas ditaduras
e a muitas das actuais “democracias”.
Esta situação é totalmente rectificada, na Convenção sobre os Direitos
da Criança, pelos seus Autores que são os próprios “Estados Partes”.
Com efeito, ao proclamarem que a família nuclear é o “elemento
natural e fundamental da sociedade e meio natural para o crescimen-
to e bem estar de todos os seus membros e em particular das crianças”
(Preâmbulo), relativamente a proporcionar-lhes os “recursos económi-
cos”, a “assistência material e programas de apoio, designadamente no
que diz respeito a alimentação, vestuário e habitação”, o “nível de vida
adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e so-
cial” (Art.º 27, 1-4), numa palavra tudo o que é necessário “ao desenvol-
vimento da sua personalidade” (Preâmbulo), e ainda ao acrescentarem
que eles próprios “respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deve-
223
res dos pais ou, quando for o caso, dos membros da família ampliada ou
da comunidade” (Art.º 5º), os Estados Partes, combatem hoje frontalmente
a tendência de a escola se arvorar em centro da educação dos adolescentes.
De facto, o que está a acontecer diante dos nossos olhos, já a partir da
crise da educação escolar desencadeada pelo movimento da contestação
universitária da década 60 em simultaneidade com a emergência e con-
solidação da revolução da educação de adultos e, agora, nesta segunda
revolução da educação de infância (fins da década 80), é o avanço de uma
espécie de “desescolarização” que força o sistema tradicional de educação
escolar a cindir-se nas duas fases da educação ao longo da vida: por um
lado, a educação da infância ou da adolescência (de 0 a 18 anos), abar-
cando as etapas antigas da educação de infância, de educação básica e de
educação secundária e centrada na família e, por outro lado, a educação
de adultos englobando todas as idades de 18 anos em diante e a partir do
centro de irradiação universitária.
Nesta situação, impõe-se proceder urgentemente à revisão de todo o
processo pedagógico da educação dos adolescentes a decorrer na escola,
enquanto lugar complementar da e subordinado à família, e no referente
aos diversos tópicos do “desenvolvimento curricular” no sentido tradicio-
nal: situação, objectivo, organização, metodologia, avaliação.
224
natural do seu crescimento que é a casa dos seus pais.
Por isso, a Convenção reconhece que pertence aos pais ou tutores a
responsabilidade máxima da coordenação de todo o processo.
Nesta situação, todos os cidadãos chamados a intervir, médicos e pes-
soal de saúde, agentes e funcionários da justiça, representantes dos servi-
ços económicos, sociais e administrativos, professores e agentes dos siste-
mas educativos de cultura e de lazer, etc., não passam de participantes e
colaboradores no processo educacional.
Os próprios políticos, membros dos poderes legislativo, executivo e
judicial e os agentes da autoridade têm apenas as funções atribuídas pelos
Estados Partes, de acordo com os princípios que eles próprios assumiram
ao afirmarem, na Convenção sobre os Direitos da Criança, que “respeitarão
as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, no caso dis-
so, dos membros da família ampliada ou da comunidade” (Art.º 5º) e
“adoptarão as medidas apropriadas para ajudar os pais e as outras pessoas
responsáveis pela criança a dar efectividade a este direito” (Art.º 27, 3).
É neste contexto que importa compreender os tópicos restantes do
funcionamento da instituição escolar.
225
Organização. O processo educativo deixa de poder ser concebido
como sistema integrado pelos três subsistemas antigos (educação de in-
fância, educação escolar, educação de adultos), ou mesmo como processo
sequencial nas três fases anteriores (de infância, escolar e de adultos), mas
apresenta-se agora como processo de educação ao longo da vida integrado
pelas duas fases de educação de infância ou de adolescência (a abarcar todo
o percurso educativo dos menores de idade, de 0 a 18 anos, distribuído pe-
los diversos antigos escalões) e de educação de adultos (a abarcar também
todo o processo educativo dos maiores de idade com o seu centro e motor
no antigo escalão universitário).
Neste contexto, a fase de educação do adolescente deverá organizar-se
em escalões que se encontrem de acordo com as descobertas da Psicologia
do Desenvolvimento – educação de infância no sentido tradicional (0-6
anos), de educação básica (6-15 anos), de educação secundária (15-18 anos)
– ou outros que venham a ser consensualizados.
226
Metodologia. Nesta situação, a mudança de perspectiva na relação pro-
fessor-aluno é radical.
Perante o professor-mestre, não estão simples alunos para apenas “apren-
derem uma disciplina”, mas adolescentes que, para além de fazerem isso
(e devendo fazê-lo o mais eficazmente possível), precisam de crescer para
se tornarem adultos.
Perante os alunos-adolescentes, o professor-mestre não pode pretender
apenas “ensinar uma disciplina” nem sequer apenas “criar condições de
aprendizagem”, mas, ao fazer isso, deverá procurar fazer muito mais: criar
condições para que eles, sem descurar nada disso e procurando isso afin-
cadamente, se tornem progressivamente capazes de, eles próprios e não
outros por eles, tomarem progressivamente nas mãos a condução do pro-
cesso de procurarem resposta para as suas necessidades e aspirações.
Nesta perspectiva e no que diz respeito às estratégias a adoptar para
atingir estes objectivos, não será suficiente conseguir que os alunos-ado-
lescentes utilizem os métodos consabidos dentro da “disciplina” que estu-
dam nesse momento, nem sequer que descubram, adoptem e adaptem
métodos novos, mas haverá que, desde cedo, incitá-los a observar, pesquisar,
reflectir, inovar, criar. A boa estratégia consistirá mesmo em ajudá-los a
treinar-se em programar, nesse sentido, todas as suas actividades.
227
O conceito de educação de adolescentes e as suas dimensões
228
Da raiz *IE Deuk- Duk-, que envolve a ideia geral de “conduzir (guiar,
liderar)”332
– através do verbo latino dūco, is, dūxi, ductum, ěre, “levar, condu-
zir” (de cuja forma nominal dux, ducis, veio condutor, primitiva-
mente “o que vai à frente das ovelhas, pastor” e na época clássica
“o que vai à frente dos homens, dirigente ou chefe militar”),
recebemos em português, através do verbo latino composto
condūco, “levar junto, reunir, contratar”, o verbo conduzir e o
substantivo condução;
– através de outros verbos compostos do mesmo verbo latino
dūco, a explicitarem diferentes rumos que o movimento de con-
dução pode tomar, recebemos grande número de verbos e de
substantivos derivados: de abdūco, “levar, distanciar, fazer sair”,
recebemos, entre outros lexemas, abduzir e abdução; de addūco,
“puxar para si, trazer”, aduzir e adução; de dedūco,”levar, puxar
de alto abaixo”, deduzir e dedução; de indūco, “levar, introduzir,
enganar”, induzir e indução; de introdūco, introduzir e introdu-
ção; de prodūco, produzir e produção; de sedūco, seduzir e sedução;
de tradūco, traduzir e tradução e, em paralelo com todos estes
verbos, encontramos também em latim edūco, is, eduxi, educ-
tum, cěre, “conduzir para fora de”, “tirar de, retirar, extrair” (por
exemplo, a espada da bainha), de onde nos vem o verbo (cultis-
mo raro) eduzir nesse mesmo sentido de “retirar (de), extrair”, e
o substantivo edução;
– mas no que diz respeito à derivação latina que conduz ao nos-
so verbo educar, verifica-se que, para além do sentido geral do
verbo simples dūco, “conduzir”, e do sentido específico do ver-
bo composto edūco, “eduzir”, encontramos ainda lateralmente
a existência do verbo edūco, ās, educāvi, educātum, āre (na 1ª
conjugação), que envolve a ideia de “criar (uma criança); nutrir;
amamentar; cuidar”, cultivar [as plantas]; amestrar, domar, do-
mesticar [os animais]; “instruir, ensinar [as pessoas]”; educar.
229
É este verbo latino edūco que, seguindo um caminho paralelo aos ver-
bos dūco e edūco, deu origem ao nosso verbo educar no sentido originá-
rio de “nutrir, amamentar, alimentar” e não apenas no sentido físico de
“dar o sustento”, mas também nos sentidos: afectivo, de “cuidar, criar”;
intelectual, de “ensinar, instruir”; moral, de “acompanhar, orientar, for-
mar”; humano, de prestar (a alguém) todos os cuidados necessários ao
desenvolvimento da sua personalidade333, o sentido pleno que hoje lhe
atribuímos.
Deparamos assim, na ascendência do verbo português educar, com
três verbos latinos (cuja cognação se encontra na base de muitas das tra-
dicionais confusões acerca da maneira de utilizar o vocábulo e de enten-
der o conceito), cada um dos quais envolve um sentido diferente e com-
plementar quase exclusivamente perfilhado por cada um dos três tipos de
adultos acima referidos, pais, educadores - professores e políticos.
O mais recente e próximo, “educar” (de edūco, ās, āre), anda prati-
camente ausente da teoria dos pedagogos mas continua omnipresente
e ocupa toda a dimensão da prática educacional exercida pelos pais cuja
preocupação é “amamentar, nutrir, cuidar, assegurar o sustento” (“para
que não lhes falte nada”) e a “boa criação” dos seus filhos (“crianças”).
O intermédio, “eduzir” (de edūco is, ěre), prevalece nas preocupações
do sistema escolar vigente, na medida em que os educadores-professores se
preocupam, ao ensinar os seus alunos, em desencadear neles o processo
interno que os leve a reduzirem ao acto as suas potencialidades e, parti-
cularmente na dimensão cognitiva, desenvolverem a sua capacidade de
prender, apreender, aprender e compreender.
O mais remoto, “conduzir” (de dūco, is, ěre), é universalmente adopta-
do no processo sociopolítico, na medida em que os chefes, políticos e cidadãos
revestidos de autoridade de todos os tempos exercem a função de conduzir,
liderar, orientar, formar os cidadãos, com todos os riscos de endoutrina-
mento, imposição, manipulação, dominação e mesmo domesticação que
o gesto possa vir a comportar.
Relativamente aos dois primeiros verbos e à estreita relação entre eles
e, desta vez, só no espaço europeu, encontramos outros dois étimos com-
plementares e extraordinariamente esclarecedores, até pela sua contribui-
230
ção histórica para o enriquecimento do vocabulário da educação. Trata-se
dos étimos de alimentar e de crescer e dos respectivos desdobramentos.
Do *Europ. Al-, Ol-, que envolve a ideia de “alimentar”:
– pelo latim alo, ĭs, alĭtum ou altum, ěre, “alimentar, nutrir”, re-
cebemos alimentar e aluno e ainda realçar e exaltar, alto e altivo,
altar e outeiro, etc.;
– pelo latim adolesco, īs, ēvi, ultum, ěre, “crescer”, recebemos ado-
lescente e adulto e, por vias paralelas, abolir e índole, prole e pro-
letário, etc.
– através do latim creo, ās, āvi, ātum, āre, com o sentido de “criar,
gerar, dar à luz, produzir”, vem criar e criança, procriar e recriar,
criado e crioulo, etc.;
– através do latim cresco, is, crēvi, crētum, ěre, que envolve a ideia
de “nascer, brotar, crescer”, vem crescer e acrescentar, Ceres (deusa)
e cereal, concreto e recruta, incremento e excrescência, etc.334.
As três dimensões do verbo educar conjugam-se no processo integrado
da educação dos adolescentes e, registemo-lo mais uma vez, correspondem
às funções específicas dos pais, dos educadores-professores e dos respon-
sáveis políticos:
231
– a dimensão de, suposta a base da “alimentação” e, sobretudo, a
partir do próprio “exemplo”, criar condições para que todas as
potencialidades do adolescente e não só as de tipo cognitivo se
actualizem e assim ele possa crescer e desabrochar num variega-
do leque de capacidades e competências, constitui a missão de
quantos se reconhecem como educadores, de que tão eloquente
testemunho nos deixou Sócrates ao utilizar o método maiêuti-
co com os adolescentes (e o método irónico com os adultos), a
ponto de merecer o máximo elogio feito pelo seu antigo edu-
cando Alcibíades no último discurso do diálogo O Banquete
sobre o Amor;
– a dimensão de orientação-condução exercida pelos adultos, para
que o desenvolvimento dos adolescentes tenha um rumo e se faça
no sentido da sua realização nos valores, é função assumida por
responsáveis políticos, na linha da deriva racionalista da República
de Platão, que comete aos Filósofos o governo da cidade, ou da
prática milenar do Mandarinato introduzida por Confúcio no
Império do Meio, ou dos condutores mais recentes nas suas mui-
tas designações de duque, “duca”, “doge”, “duce”, “condottiere“ ou
ainda de “Fürer” ou de “Grande Líder” ou de “Grande Timoneiro”,
em cada caso com as consequências históricas conhecidas.
232
vistos na presente Convenção a todas as crianças” (Art° 2°, 1.).
233
Torna-se assim claro que, sempre que na família esteja criado o “clima
de felicidade, amor e compreensão” e mais ainda na ausência dele, quando
se verificam “condições particularmente difíceis”, existe a estrita “respon-
sabilidade, direito e dever” por parte dos pais, dos seus substitutos ou, em
caso extremo, dos Estados Partes, de prestar, de preferência pelo exemplo e
sempre com mão firme, “a orientação e os conselhos adequados”.
A Convenção corta, deste modo, pela raiz, todos os desvios da
Pedagogia que têm a ver com qualquer tipo de lassidão, frouxidão, con-
temporização, cedência, transigência ou incúria, na prática ou na teoria
por mais bem justificada que se apresente, para já não falar da inconsci-
ência que se encontra na base da fuga ou demissão da própria responsa-
bilidade por parte dos pais, tutores, instituições sociais e departamentos
dos Estados Partes.
Mas a Convenção acrescenta que esta orientação e aconselhamento
devem ser prestados à criança (adolescente) “de forma compatível com o
desenvolvimento das suas capacidades”.
O recurso à etimologia dos verbos cuidar, medicar e pensar revela-nos
um horizonte inesperado, no que diz respeito quer directamente a esta
metodologia, quer ao facto de estes verbos virem complementar e apro-
fundar o sentido do verbo educar, quer ainda à especificidade e qualidade
do estatuto dos outros educadores chamados a colaborar mais estreita-
mente com os pais.
A primeira constelação de lexemas gira ao redor da palavra cuidado,
recorrentemente mencionada ao longo do texto da Convenção sobre os
Direitos da Criança.
Cuidar remonta à raiz *IE Ag- que envolve a ideia geral de “empur-
rar”. Desta raiz:
234
cado de “pensar, meditar, considerar, reflectir, conceber, prepa-
rar”, “agitar no espírito, remoer no pensamento” (“cogito, ergo
sum” de Descartes), recebemos o verbo cuidar, com o sentido
de “cogitar, pensar, ponderar, meditar com ponderação”, e o
substantivo cuidado, no sentido geral de acto que é “submeti-
do a rigorosa análise, meditado, pensado”, de “comportamento
vigilante, prevenido”, de “zelo, desvelo que se dedica a alguém
ou a algo”335.
235
par-se de, dispensar cuidados a, tratar, medicar, dar remédio a,
aplicar remédio contra”, recebemos remediar e remédio, medicina
e mezinha, médico e medicamento, etc.336
Quer isto dizer que a atenção e o cuidado dos adultos em relação aos
adolescentes deve estender-se não apenas a criar as melhores condições
para o seu desenvolvimento em circunstâncias normais, mas também e
mais ainda naquelas em que a normalidade falha, por qualquer razão que
seja, de natureza conjuntural ou permanente, recorrendo aos cuidados
prestados pela medicina.
Uma terceira constelação de lexemas que ajuda a esclarecer a metodo-
logia da educação dos adolescentes gira ao redor dos verbos pender, pesar
e pensar e tem a ver com a aplicação de cuidados, quer nas situações nor-
mais da vida, quer nas especiais, quer ainda nas mais difíceis, traumáticas,
crónicas e recorrentes:
236
íntima do corpo humano (penso rápido, penso higiénico, etc.);
– directamente do supino pensum do mesmo verbo pendo, vem pen-
são, “renda, abono ou pagamento” que, por iniciativa pessoal ou
por imposição jurídica, é fornecida a alguém (reformados, filhos
menores após o divórcio do casal, pessoas necessitadas, etc.)337.
237
abrindo penosamente um caminho eriçado de dificuldades só compre-
ensíveis à luz do facto da criança, durante milénios, ter sido considerada
como “coisa” desprovida de direitos.
Aparece pela primeira vez, como “interesse da criança”, no Código Civil
Napoleónico (1804) e evolui para “interesse superior da criança”, associado ao
“do pai e da mãe”, no mesmo Código Civil, em meados do mesmo século. Já
no século XX, afirma-se que “a criança deve ser a primeira a receber socorros
em tempo de perigo” (Declaração de Genebra, Ponto 5, 1924), que a fórmula
“bem estar” da criança deve constituir a “consideração primeira e primordial”
a ter em conta (“Guardianship of Infants Act, Reino Unido, 1925), que “a con-
sideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da crian-
ça” (Declaração sobre os Direitos da Criança, Princípio 2, 1959) e, depois de
muitas e laboriosas discussões, durante os dez anos da sua elaboração, sobre
a redacção final no que respeita à palavra inicial “a” ou “uma”, a Convenção
sobre os Direitos da Criança (1989), determina que “todas as decisões relativas
a crianças adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social,
por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos terão prima-
cialmente em conta o interesse superior da criança” (Art.º 3, 1).
A fórmula, passível de variadas e subtis interpretações jurídicas no
contexto do texto, marca o rumo da interpretação de todo o documen-
to e não pode deixar de ser entendida na linha de outras fórmulas de
documentos anteriores: “os homens e as mulheres de todas as nações re-
conhecem que devem dar à criança o melhor que têm” (Declaração de
Genebra, Preâmbulo, 1924 e 1948); “a humanidade deve dar à criança o
melhor que possa dar-lhe” ou “o melhor de si mesma” na versão francesa
(Declaração sobre os Direitos da Criança, Preâmbulo, 1959)338.
Como compreender este “superior interesse da criança”?
Em conexão com a raiz *IE Es-, que envolve a ideia geral de “ser”,
através do verbo latino interest, ēsse, “importar, ser do interesse de”, inte-
resse encontra-se encastoado no cerne do ser humano e designa “o que é
importante, vantajoso, útil, nos planos moral, social, material”.
Na linha dos desenvolvimentos anteriores e reconhecendo de ante-
mão a impossibilidade de separar as três dimensões que se mencionam a
seguir, poderíamos dizer:
238
– no plano moral, o interesse da criança consiste em que, após
a concepção, seja aceite na gestação e acolhida no nascimento
pelos pais e, a seguir, tratada por eles e pela família ampliada
e pela comunidade envolvente, não apenas como “coisa”, mas
como “pessoa” portadora de dignidade e direitos;
– no plano social, o interesse da criança, porque é “menor”, “ima-
tura” “heterónoma”, consiste em que lhes sejam criadas as me-
lhores condições para crescer em todas as suas dimensões e de
maneira global e harmónica;
– no plano material, se é possível falar dele isoladamente e como
condição essencial para crescer, o interesse da criança é ser alimen-
tada, em todas as dimensões da vida humana, de pão e de afectos,
de conhecimentos e de compreensão, de exemplos e de amor.
E assim, mais uma vez, constatamos que a educação do adolescente, em-
bora exigindo tudo isso, não se esgota no fornecimento de bens materiais
(e menos na sua acumulação) ao nível da economia, nem na transmissão
de conhecimentos, menos ou mais extensos e ampliados e aprofundados
ao nível da ciência, mas exige dos adultos a adopção de comportamentos
verdadeiramente humanos e pautados pelos valores ao nível da ética.
A essencial exigência da nossa vida não é uma questão de riqueza ou
de saber, mas de justiça. Como a própria criança e a sua natureza recor-
dam pela voz do poeta:
239
Quero eu e a Natureza
e a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu!339
240
Em documentos anteriores, designadamente naquele que é conside-
rado a síntese da educação de adultos (Recomendação de Nairobi, 1976),
a UNESCO não apresenta uma definição do conceito de adulto, mas
apenas se refere às “pessoas consideradas como adultas pela sociedade a
que pertencem”340.
Por outro lado, o mesmo documento, ao referir-se, nos termos do vo-
cabulário de educação escolar corrente na época, à situação complexa dos
jovens que tendo abandonado os estudos se debatem com dificuldades
para obter o primeiro emprego, insiste na necessidade de proporcionar
a estes “jovens adultos” “programas de educação destinados aos jovens”,
“programas de educação de adultos para jovens”341.
E noutro lugar, ao referir-se, ainda nos termos confusos do vocabu-
lário da época, à transição entre as actuais duas fases (de educação de
adolescentes e educação de adultos) acrescenta que
241
educação de adultos entrou na rotina das diversas modalidades de forma-
ção contínua, educação recorrente, complemento de habilitações, aquisição
de graus de pós-graduação, reconversão profissional, etc.
Esta rotina revela tendência para alastrar também, com as limitações
compreensíveis, ao contingente de adultos não maduros nem maiores nem
autónomos, por força, em cada caso: a) de falhas de natureza genética (defi-
cientes); b) de perda ou diminuição de capacidades por ocasião de traumas
ou acidentes (acidentados); c) de atrasos no desenvolvimento normal devi-
dos a contextos sociais desfavorecidos e que atingem uma dimensão difícil
de recuperar; d) de transtornos no desenvolvimento normal devidos a situ-
ações anómalas (ex: escolaridade deficiente) em princípio recuperáveis.
Relativamente ao período final da vida (pós-reforma), a situação
é bem menos estimulante quando não triste e até dramaticamente
confrangedora.
Com efeito, a “terceira idade” de hoje, se por um lado e a partir dos
espantosos progressos da ciência e da técnica, tem beneficiado das condi-
ções favoráveis ao prolongamento da existência, por outro lado e por falta
de tempo, de atenção e/ou de mentalidade, não tem sabido ou não tem
podido aproveitar as oportunidades oferecidas pela rápida (r)evolução do
sistema educativo na segunda metade do século XX. Como resultado, so-
fre a tragédia de se ver ultrapassada pela aceleração da mudança: formada
na ideia de que a educação era uma preparação para a vida do trabalho
profissional, não sabe que fazer do tempo (cada vez mais longo) que lhe
resta depois da reforma, e acaba por ficar sentada nos bancos do jardim
público e/ou em casa, no sofá ou na cama, diante da televisão.
Para além de se incentivar e apoiar, através de todas as formas possíveis,
o aproveitamento do tempo da senectude que vem sendo feito por muitos
adultos nas instituições e universidades da terceira idade, torna-se urgente e
premente descobrir e desencadear processos de mentalização e de ajuda que
levem todos os outros a compreender que, até ao fim da vida, são portado-
res de riquezas ilimitadas de experiência, compreensão e sabedoria, suscep-
tíveis de serem utilizadas em campanhas de testemunho e tarefas de volun-
tariado, ao serviço das gerações novas e de todos os que mais precisam.
242
O lugar: a Família Humana e a Universidade
243
exames, diplomas. E, por arrastamento, toda a estrutura da instituição,
em sectores-chave, acaba por aparecer dimensionada no mesmo senti-
do: os lugares do quadro de professores definem-se em termos de grupos
de disciplinas e ampliam-se de acordo com o ratio professores/alunos, o
montante do financiamento público estabelece-se em função do número
de alunos, etc.
A partir da década 70, e em consequência da (r)evolução do siste-
ma educativo, designadamente no que respeita à sequência educação
escolar (de adolescentes) e educação de adultos, a universidade come-
ça a ser compreendida como centro e motor da educação de adultos, com
consequências positivas na sua (re)conceptualização mas dilatórias na sua
(re)estruturação.
Se bem repararmos, todos os alunos da universidade são adultos, desde
os jovens adultos chegados da educação secundária até aos antigos alunos
que regressam à universidade em demanda de formação contínua ou de
iniciação às práticas de investigação nos ciclos mais elevados de mestrado
e doutoramento, e ainda a todos os outros que, eventualmente, nunca
foram alunos mas que a vida activa ou aposentada impele a procurar
múltiplas formas de alfabetização funcional, de complemento de habilita-
ções ou de reconversão profissional.
No entanto, perante esta invasão progressiva de trabalhadores-estudan-
tes, quase nada se fez no sentido de proceder à revisão profunda do fun-
cionamento da instituição que a nova situação exige, quer em termos de
adopção da pedagogia de educação de adultos e dos respectivos processos
que arrancam não da oferta mas da procura dos cursos por aqueles que
deles têm necessidade, quer em termos da necessária flexibilização institu-
cional na criação, organização e funcionamento de cursos breves, de mó-
dulos flexíveis e de horários pós-laborais, de fim de semana ou de férias.
Finalmente e na sequência dos mais recentes desenvolvimentos, de-
signadamente da publicação da Convenção sobre os Direitos da Criança, a
universidade vem-se assumindo como lugar de consciencialização e dina-
mização de todo o sistema educativo, nas dimensões abrangentes das duas
fases da educação ao longo da vida, com profundas consequências na
reconceptualização dos seus objectivos e funções.
244
Na medida em que a instituição de educação superior tem como uma
das suas missões a formação dos especialistas e responsáveis pelo desen-
volvimento de todos os sectores da vida humana que se encontram em
processo acelerado de mudança e de interacção à escala global, considera-
se que o trabalho da universidade não pode reduzir-se ao ensino ou trans-
missão dos conhecimentos já existentes (pedagogia bancária) e menos
ainda a dar aos alunos o mau exemplo dessa perspectiva reducionista do
processo educativo, mas deverá empenhar-se em detectar as necessidades
emergentes do mundo de hoje e procurar encontrar a melhor resposta
para elas (pedagogia problematizadora) e ainda, através da adopção desta
pedagogia da educação de adultos, visar que os seus alunos adultos se trei-
nem na capacidade de iniciar nos mesmos métodos a geração mais nova
dos adolescentes.
Só um desempenho deste tipo poderá corresponder verdadeiramente
à missão primeira e essencial da universidade: a investigação, como fonte
de produção de conhecimentos, ao serviço da inteira comunidade humana.
245
versidade e, acaso sobretudo, dos mais antigos e consolidados, perante
os novos colegas das faculdades, institutos e departamentos do recente
domínio científico da educação.
Passando por alto o facto histórico de alguns desses domínios científi-
cos terem sofrido dificuldades semelhantes nos tempos em que emergiram
dentro da instituição universitária, aqueles professores referem-se, por ve-
zes em tom displicente ou mesmo pejorativo, às “ciências da educação”,
às “práticas pedagógicas”, às “pedagogias”, ao “pedagogismo”. E por uma
razão de peso: porque acreditam que, ao insistir-se neste ponto, se está a
descurar ou reduzir a importância da que consideram ser a tarefa primeira e
mais nobre da universidade: investigar. E, neste sentido, há que reconhecer
que têm toda a razão e merecem total acordo com o seu ponto de vista.
Mas importa verificar também que há em tudo isto uma grande con-
fusão: essa reacção visceral que, afinal, é de todos nós, não é contra a
pedagogia sem mais, mas contra a pedagogia da mera transmissão de co-
nhecimentos, tradicionalmente praticada nos escalões da educação básica
e secundária e, incompreensivelmente, também em muita pedagogia em
uso na universidade.
De facto, a verdadeira pedagogia universitária corresponde à pedago-
gia da educação de adultos, em que não há ensino nem dualidade de pro-
fessores e alunos, mas sim encontro de adultos que procuram ajudar-se
uns aos outros na procura de respostas para os problemas, necessidades,
aspirações e sonhos de todos os adultos da comunidade.
Trata-se da pedagogia não bancária mas problematizadora, no voca-
bulário de Paulo Freire344. Ou da verdadeira pedagogia universitária que
Ortega e Gasset, nos anos 30, denominava pedagogia da alusão: “a única
pedagogia delicada e profunda. Quem quiser ensinar-nos uma verdade
que não no-la diga, mas simplesmente aluda a ela com um breve gesto.
[…] Quem quiser ensinar-nos uma verdade, que nos situe de modo a
que nós a descubramos”345.
Sim, é necessário repeti-lo e bem alto: a pedagogia universitária não
é a do ensino mas a da investigação, não é a da aula mas a do laboratório
ou, se quisermos, é a da aula quando esta é transformada em laboratório
de pesquisa ou em gabinete de investigação. Verifica-se quando o professor
246
se despe da postura professoral ou magistral de “quem sabe”, e assume
perante os alunos a atitude humilde de quem não sabe e, consciente de
que ele próprio anda à procura, convida os seus alunos a participarem nessa
mesma tarefa: “eu ando a investigar este assunto; vocês querem associar-se
a mim nesse trabalho?”
Encontramos, assim, o perfil que, por um lado, é o do verdadeiro edu-
cador de adultos e, por outro lado, corresponde à identidade profissional
do verdadeiro educador- investigador-professor universitário:
247
sua existência, vá sendo capaz de conjugar diferentes verbos: ao nível da
educação dos adolescentes, o verbo crescer em todas as suas dimensões;
ao nível da educação dos adultos, para além de redescobrir a ciência já
anteriormente descoberta por outros, o verbo descobrir a ciência ainda
por descobrir, em tudo o que diz respeito à procura de resposta para os
problemas, as necessidades, os desejos, as aspirações e as utopias de todos e de
cada um de nós.
E a liderança deste último processo corresponde ao perfil da identida-
de do educador-investigador-professor universitário.
248
Pelo contrário e longe do sentido ligado à ideia de superficialidade que
hoje correntemente lhe atribuímos, generalista vem da raíz *IE Gen-, Gne-
que envolve as ideias de “gerar, nascer”, e da qual recebemos grande parte
do vocabulário essencial que diz respeito à existência de todos e de cada
um de nós: pela parte de gerar, temos gene e genital, germe e gestação, génio
e genial, gente e genuíno, irmão (lat. germanus) e progenitor, geral e general
etc.; pela parte de nascer, temos natal, nação e nacional, nado, inato e nativo,
natural e natureza, emprenhar e impregnar, cognato e cunhado, etc.347
Tomamos, assim, consciência de que a formação de que temos neces-
sidade para exercer a tarefa de educador de acordo com o perfil verdadei-
ramente humano, implica, não só nem tanto adquirir conhecimentos nas
ciências em que nos tornamos especialistas, mas também e anteriormente
assimilarmos conhecimentos no âmbito das disciplinas que visam captar
o sentido da própria existência dos seres humanos, que são gerados, nascem,
crescem e morrem.
Mais concretamente, o âmbito da formação necessária aos educado-
res-investigadores-professores da educação superior e da educação de adul-
tos em geral não poderá fazer a economia de qualquer uma destas três
componentes:
249
ti-inter-transdiciplinaridade. As dificuldades universalmente sentidas nos
projectos desta natureza só poderão ser superados se e na medida em que
exploremos devidamente a nossa outra dimensão de experiência e saber
humano próprios do generalista. O homem adulto só é completo quan-
do, para além de procurar ser o melhor na sua especialidade ou o que
sabe mais do seu ofício, também sabe trabalhar em equipa, sabe articular
a sua com as outras especialidades à luz da sabedoria-mãe sobre o que é o
ser humano que, de uma ou de outra forma, se encontra latente em cada
um de nós.
A este nível de exigência e na continuidade de uma disciplina que
todos cursámos na educação secundária, nunca poderá deixar de ser útil
recorrer ao gene da filosofia (da educação) para que nos estimule a pôr em
questão e agitar, para além dos tópicos específicos da nossa área científica,
os tópicos comuns propriamente humanos, no âmbito da ontologia (que
é o ser, o homem e o seu crescimento?), da epistemologia (que é o saber,
a verdade e a sua interpretação?), da axiologia e da ética (que é o agir, o
mundo dos valores e o seu mistério?).
250
quer no sistema sócio-político pela continuidade das guerras e sequência
das mortandades e genocídios, quer ainda no sistema cultural dominado
pela competitividade versus solidariedade como revela o registo dos atra-
sos que se avolumam em várias regiões do mundo.
Mas, por outro lado, a exigência de reconhecimento e respeito pela
dignidade e direitos de todos e de cada homem, não permite afrouxar na
defesa deste projecto, antes pelo contrário.
Porque o mínimo que se pede para cada ser humano adulto, enquan-
to ser crescido, amadurecido, autónomo, é que lhe seja dada a possibili-
dade de tomar nas mãos as rédeas do seu caminho para poder chegar à sua
realização como pessoa.
251
análise, da evolução dos comportamentos nos seus diferentes estádios,
da relevância dos factores biológicos, psicológicos, sociais e culturais, dos
estrangulamentos a ter em conta na prática pedagógica, dos problemas a
exigir mais aprofundada investigação.
Emerge assim o facto já registado anteriormente de o verbo educar, no
tríplice sentido de alimentar, ajudar a crescer e conduzir, dever ser auxi-
liado por outros verbos tais como “cuidar”, “medicar”, “pensar”, e emerge
também a necessidade de os pais recorrerem, sempre que for caso disso,
aos profissionais das respectivas áreas, professores, psicólogos, assistentes
sociais, médicos, enfermeiros, etc. E, importa acrescentar que este prin-
cípio, válido para todos os seres humanos cujo percurso se desenvolve na
forma normal, vale mais ainda para todos aqueles que, por qualquer des-
vio dos padrões normais de desenvolvimento, resultantes de raiz genética,
de acidente traumático, de deficiências da condição económica, social ou
cultural, sai fora dos parâmetros da normalidade.
A dignidade pertence igualmente a todos os membros da Família
Humana.
Nessa exacta medida, a cada ser humano enquanto pessoa única, irre-
petível e insubstituível, assiste o direito a que lhe sejam criadas as melhores
condições para poder abrir e percorrer o seu próprio caminho e procurar
atingir a sua realização pessoal.
Ninguém cresce ninguém. Cada um de nós é que cresce, ao seu pró-
prio ritmo e para a sua própria meta, a partir das capacidades recebidas
na origem e das condições criadas pela comunidade envolvente durante
o percurso.
Assim, o conceito de educação ao longo da vida que emergiu e se foi
clarificando durante a segunda metade do século XX, acaba por definir-se
como processo global e sequencial de desenvolvimento de cada ser humano,
desde que nasce até que morre, ao longo das duas fases, – adolescência e vida
adulta – da sua existência.
Este novo paradigma da educação que ao longo de quatro décadas, de
maneira lenta mas imparável, vem abrindo o seu caminho, anda hoje a
ser assimilado, seja embora, por vezes, de maneira um tanto desfocada na
252
linha dos respectivos interesses e deformações profissionais, por responsá-
veis da política, da sociedade e da cultura.
Na sequência de estudos levados a cabo no âmbito do Parlamento
Europeu, o Livro Branco sobre o Crescimento, Competitividade, Emprego.
Os Desafios e a Pista para entrar no Séc. XXI (1994), evocando os “ideais
que forjaram a personalidade e a marca distintiva da Europa”, atribui
prioridade a “apostar na educação e na formação ao longo da vida” e pro-
mover o desenvolvimento de uma verdadeira “sociedade de aprendiza-
gem” ou “sociedade educativa349.
Por sua vez, a Mesa-Redonda dos Industriais Europeus (1995), no
Relatório com o título Uma Educação Europeia. A caminho de uma so-
ciedade que Aprende, depois de se mostrar consciente da “transformação
radical tanto política como social e económica” que a todos nos afecta,
e de verificar que a escola não está a acompanhar o ritmo da mudança e
que “o fosso entre a educação necessária e aquela que na realidade existe é
grande e corre o risco de aumentar”, lança o “grito de alarme” para “agir
desde já” nos cinco elos da “cadeia educativa”, em que o primeiro e o
último são tão importantes como os outros três:
253
A Educação – Um Tesouro está Escondido Dentro Dela (1996), depois de
fazer o balanço da educação do séc. XX, procura descortinar o horizonte
da educação no séc. XXI.
Depois de assentar os quatro pilares da educação – aprender a conhe-
cer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros, aprender a ser – destaca
a importância da educação secundária como “placa giratória” de todo o
processo e a vantagem de a reestruturar na forma de “formação em alter-
nância” escola-empresa, põe em relevo a educação de adultos, designada-
mente na sua dimensão de formação contínua, e aborda a sequência entre
as duas na perspectiva da educação ao longo da vida chegando a focar uma
situação carregada de futuro: o lugar do trabalho na sociedade.
“E se amanhã o trabalho deixasse de constituir a referência principal relativa-
mente à qual se define a maior parte dos indivíduos?”351
254
“preferências individuais dos trabalhadores” e pelas “necessidades de
flexibilização das empresas”, parecem convergir para um contínuum
de vida activa e de vida “aposentada” em que os adultos mais no-
vos ganhem algum tempo para tarefas fora do trabalho não menos
importantes como as familiares, sociais e culturais, e os adultos mais
velhos, acaso reformados, tenham ocasião de contribuir para as tarefas
comuns com a sua experiência e o seu saber acumulados.
E tudo a redundar para o enriquecimento recíproco das diversas
gerações e a educação permanente de cada um na comunidade de
todos.”352
255
•
Capítulo VII
257
ficar reféns de mil dificuldades e contradições a ponto de “não se poder
afirmar que alguém liberta alguém ou que alguém se liberta sozinho, mas
que os homens se libertam em comunhão”354, no lugar natural que é a
Grande Família que todos constituímos.
Destas complexas relações de interdependência que se estabelecem en-
tre os processos de educação ao longo da vida de cada um dos seus mem-
bros, vai emergir o processo de educação da comunidade inteira.
Acontece ainda que os seres humanos, de qualquer idade, fazem parte
das muitas comunidades que os envolvem em círculos concêntricos (fa-
mília nuclear e ampliada, grupo social, profissional e religioso, autarquia,
cidade, nação, associação supranacional, Família Humana)355 e devem ser
encorajados a participar nelas e entreajudar-se, de acordo com a meto-
dologia da educação comunitária, na qual “cada um é não somente um
aluno em potência mas também um educador em potência”356.
Esta situação factual e óbvia no plano da compreensão racional que
atravessa os documentos emanados das Organizações Internacionais, é
contraditada, de forma chocante e problemática, pela experiência de to-
dos os dias e pelo conhecimento da história da humanidade: o compor-
tamento dos seres humanos, quer individualmente quer em grupo, nem
sempre se pauta, melhor, muito pouco se pauta pelo critério de entrea-
juda, antes pelo contrário, parece prevalecer nele o afastamento e fecha-
mento egoísta, quando não o conflito, a violência e a guerra.
Urge portanto inventariar e analisar as atitudes do ser humano que
se encontram na base destes comportamentos e que provavelmente se
podem reduzir a três:
258
da única família humana, no sentido de se dedicar a rentabilizar
os recursos do território comum para criar as melhores condi-
ções a todos, particularmente aos mais desfavorecidos, a fim de
todos nos podermos realizar nos valores da dignidade e dos di-
reitos humanos que constituem a nossa “mais alta aspiração”, a
“concepção comum” e o “ideal comum”.
A raiz *IE Mei- envolve três significados diferentes dos quais, através
dos lexemas latinos intermediários a que mais abaixo e na devida altu-
ra iremos fazendo referência detalhada, recebemos em português uma
boa parte do vocabulário essencial das relações humanas e dos processos
educacionais:
259
1. Sentido, emergência e actualidade do conceito
260
delicados na vida humana, verificamos que nas famílias em que os pais
desenvolvem um ambiente de respeito pelos seus filhos independente-
mente do seu tamanho ou idade, de atenção, compreensão, benevolên-
cia, carinho, ternura e amor, são progressivamente retribuídos por eles.
Mesmo em termos de ensino e aprendizagem e na medida em que
se trata de um sub-processo integrado no processo global de cria-
ção de condições para que as pessoas cresçam, encontramos a mesma
reciprocidade.
Verificámos anteriormente que na educação de adultos, ao nível intra-
geracional, não existem por um lado adultos educandos e por outro lado
adultos educadores, mas que todos nós, na medida da própria preparação
e experiência de vida, somos educadores e educandos e que, por isso,
“ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mes-
mo: os homens se educam em comunhão”359.
Temos agora ocasião de verificar que também aqui, na educação co-
munitária, ao nível intergeracional que envolve adultos e adolescentes
(incluindo as crianças da mais tenra idade e até em gestação no seio das
mães), não existem educadores (adultos) por um lado e educandos (ado-
lescentes) por outro lado, mas que todos, uns e outros, adolescentes e
adultos, somos simultaneamente educadores e educandos, na medida em
que a ninguém de nós apenas são criadas condições pelos outros, nem a
ninguém de nós só compete apenas criar aos outros condições, mas que
todos podemos, devemos e de facto, mesmo inconscientemente, anda-
mos a criar condições para que todos cresçamos (ou, no sentido contrá-
rio, para que decresçamos).
Nesta situação e a partir de um simples exemplo, podemos verificar
quanto é difícil estabelecer quem é mais e quem é menos educador e edu-
cando. Imaginemos o caso, outrora corrente na vida rural e hoje mais raro,
mas que, por uma razão ou por outra, continua a acontecer nas aldeias e
mesmo nas cidades, de uma família na qual coabitam, debaixo do mes-
mo tecto, os avós, os pais e os netos, e procuremos responder à pergunta:
“quem educa mais a quem, o avô ao netinho ou o netinho ao avô?”.
Uma primeira constatação é de que esta pergunta, se fosse feita há
pouco mais de meio século, era totalmente destituída de sentido: toda a
261
gente sabia, sem qualquer sombra de dúvida que, enquanto adulto, só o
avô era educador e, enquanto criança, só o netinho era educando. Hoje,
depois das revoluções entretanto operadas, quer na educação de adoles-
centes, quer na educação de adultos e, sobretudo, no próprio conceito
de educação que deixou de estar reduzido a ensinar e (re)adquiriu o sen-
tido de contribuir para criar as melhores condições para que as pessoas,
qualquer que seja a sua idade, cresçam e se desenvolvam até à sua plena
realização, depois destas espantosas revoluções, já ninguém de nós sente
qualquer estranheza perante a pergunta formulada.
Outra constatação é de sentirmos que não é fácil a resposta: em ter-
mos de acumulação de conhecimentos, de experiência e de compreensão
aprofundada da vida, o avô pode certamente exercer em maior medida
o munus de educador; mas em termos de acompanhamento do ritmo
da aceleração da mudança, designadamente no domínio das novas tec-
nologias emergentes, da sintonia com os novos espaços do presente e
da intuição dos novos horizontes do futuro, quase sem dúvida a criança
monitoriza hoje melhor o processo de educação.
Se não vejamos: mesmo tratando-se de uma criança de tenra idade,
quem lá em casa sabe mais de marcas de automóveis, lida melhor com os
computadores, explora mais a Internet e melhor os telemóveis? Há anos
atrás, quando imperou a moda do “cubo mágico” e se testava a capaci-
dade de uniformizar as suas quatro faces, quem concorria e ganhava os
concursos: os adultos ou os adolescentes?
De qualquer modo, ao procurarmos responder a essa pergunta que
hoje todos aceitamos e até se tornou familiar, podemos ter dúvidas e dis-
cutir indefinidamente sobre quem educa mais a quem, mas o facto de
não estranharmos a pergunta e sobre ela entabularmos discussão, tem
como base a aceitação actual e generalizada do facto indiscutível de que
todos, adolescentes e adultos, somos educadores e educandos e “todos
nos educamos em comunhão”.
De aqui vem o conceito actual de educação comunitária, entendido
como processo global e sequencial de desenvolvimento das comunidades hu-
manas, ao longo da história, a partir da interacção dos processos de educação
ao longo da vida de cada um dos seus membros.
262
É este conceito que se encontra na base de todas as diversas modalida-
des de educação comunitária que abordamos a seguir.
263
parte de todos os membros da comunidade, das necessidades e aspirações
do grupo e da sua capacidade para lhes encontrar resposta; b) a auto-
-organização em ordem à resolução desses problemas, o que implica a
identificação e mobilização de todos os recursos (humanos, físicos, técnicos
e financeiros), de todas as forças institucionais (do interior e do exterior,
incluindo a ajuda de outras comunidades e os subsídios estatais), de to-
dos os apoios exteriores previsíveis; c) a criação e rodagem das estruturas
(de planeamento, ensaio, execução e avaliação) capazes de promover a
resolução permanente dos problemas, actuais e futuros, de acordo com
o ritmo imposto pela própria dinâmica do desenvolvimento das popu-
lações dentro do respectivo ecossistema; d) a vivência plena do sentido
comunitário na existência de cada um.
264
Organização. Em tal comunidade educativa de mestres-discípulos que,
na fórmula anglo-saxónica corrente, utiliza como agente catalítico uma
estrutura organizacional que envolve o(s) estabelecimento(s) escolar(es)
existente(s) e a autarquia local, através de uma enorme variedade de for-
mas e estilos, tudo é feito por todas as pessoas, para todas as pessoas, e
com todas as pessoas, gerando-se um clima de vivência interpessoal que
assegura o crescimento dos indivíduos e do grupo e a progressiva desco-
berta do projecto de desenvolvimento comunitário integrado, pluraliza-
do e participativo, mais adequado a cada comunidade concreta.
265
de nações (exemplo: a União Europeia), de organização mundial (exem-
plo: Nações Unidas).
A nível nacional, desenvolveram-se experiências extremamente varia-
das e um pouco por toda a parte, desde Portugal através de iniciativas
ligadas à Associação de Escolas Comunitárias (1965-1985) inspirada na tra-
dição anglo-saxónica de Além-Atlântico com ligações ao Plano Nacional
de Educação de Adultos (PNAEBA, 1976-86), até à Jugoslávia e Hungria
(pela Sociedade para a Disseminação da Ciência, em trabalhos nas comu-
nidades-base), Cuba e Peru (que pretendeu “romper definitivamente com
dois vícios igualmente perniciosos da educação tradicional, o estatismo
autoritário e o privatismo discriminatório” e instituir a educação comu-
nitária “nuclearizada”), Tanzânia e China (após 1949), etc.363
No plano médio, a Fundação Europeia da Cultura lançou o seu Projecto
de Educação do Plano Europa Ano 2000 (1975), orientado para uma educação
comunitária “fundada sobre as relações interpessoais e locais”364, o Conselho
da Europa, em Educação de Adultos e Desenvolvimento Comunitário: de-
safios e respostas (1987), atribui a mesma relevância ao tema365 e a União
Europeia, através de dois Livros Brancos, sobre Crescimento, Competitividade
e Emprego (1994) e sobre Educação e Formação (1995), apelando para “os
ideais que forjaram a personalidade e a marca distintiva da Europa”, aponta
para a necessidade de promover, a esta escala, uma verdadeira “sociedade de
aprendizagem” ou “sociedade educativa”366.
À escala mundial, dentro do horizonte aberto pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem e nos anos mais recentes, encontramos
o exemplo do esforço conjugado das organizações internacionais UMDP,
UNESCO, UNICEF, World Bank, através da Declaração Mundial sobre
a Educação para Todos (Jomtien - Tailândia, 1990), em que o espírito da
educação comunitária de reveste de múltiplas e variadas fórmulas pro-
postas às comunidades locais, nacionais e regionais com a intencionali-
dade de atingir as dimensões da inteira comunidade humana367. Por sua
vez, o Relatório à UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação
para o Séc. XXI (1996), mencionando os vectores que apontam o cami-
nho que vai da comunidade-base para a comunidade mundial, da coe-
são social para a participação democrática e do crescimento económico
266
para o desenvolvimento humano sustentado, apela para a urgência de
instaurarmos a educação ao longo de toda a vida, em ordem a promo-
vermos a emergência, no séc. XXI e na nossa “aldeia planetária”, de uma
comunidade verdadeiramente mundial e educativa368.
Nesta última dimensão impõe-se uma reflexão mais ampla e apro-
fundada, designadamente focando os temas da condição do homem, da
cidadania terrestre, da Família Humana.
267
Totalmente dependentes do ecossistema na sua luta pela sobrevivência
e a partir do berço africano, as sucessivas gerações foram-se deslocando e
ocupando progressivamente o planeta: se o australopitecus (4-1 milhões de
anos) não ultrapassou as fronteiras de África, já o homo habilis e o homo
erectus (2 milhões a 200 mil anos) avançaram por toda a Eurásia, o homo
sapiens ocupou o mesmo espaço e, a partir dos últimos 40 mil anos, o
homo sapiens sapiens chegou aos confins das Américas e da Austrália369.
Mas é no Período Neolítico (10.000 a 4.000 a. C.) que o ser humano
avança decididamente no domínio e utilização controlada dos recursos
da natureza.
Lutando contra dificuldades de sobrevivência acrescidas, resultantes
das mudanças climáticas que acompanham o fim da última Era do Gelo
(Glaciação de Würm), inicia a passagem da vida nómada, recolectora
e caçadora, para a vida sedentária marcada pela progressiva fixação no
terreno, a construção dos primeiros abrigos de barro, de madeira e de
pedra que dão origem às primeiras aldeias, dedicação às tarefas de arrote-
amento e exploração agrícola, de domesticação e criação de animais, de
aproveitamento de peles e de lãs, de produção de cereais e de frutos, de
carnes e de leite, de ferramentas de madeira e de pedra, de utensílios de
barro a anunciar a cerâmica, mais tarde de objectos de cobre, de bron-
ze e de ferro que vão gerar circuitos de trocas e promover o comércio,
desenvolver o artesanato e a produção de obras de arte e ainda, levados
pelo sentimento das forças da natureza interior e exterior, dos símbolos
religiosos.
Criadas assim lentamente todas as condições necessárias, emergem
as sociedades complexas, nascem as primeiras civilizações e desenvol-
vem-se as grandes culturas, a começar pela Cultura Natufense (Líbano
– Palestina, 10.500 – 8.500 a. C.), num amplo movimento que se alarga
ao Crescente Fértil (Mesopotâmia e Egipto) e ainda à Anatólia (8.000-
7.000 a. C.), a todo o corredor do Irão-Índia-China (também a partir de
8.000-7.000 a. C.), à Europa (desde 6.000 a. C.), à América Central e
Andina (desde 4.000 a. C.), aos arquipélagos da Indonésia (a partir de
3.000 a. C.)370.
268
Mesmo restringindo-nos a uma análise mais ligada ao nosso tema da
educação, verificamos que o conceito de cultura é extraordinariamente
complexo e multifacetado.
Da raiz *IE Kwel- que envolve a ideia geral de “circular” e as ideias es-
pecíficas de “girar”, “ocupar-se de”, “pescoço”, através do verbo latino colo,
is, colŭi, cultum, ĕre, recebemos lexemas de importância fundamental no
que diz respeito quer ao aproveitamento das coisas, quer ao relacionamento
entre as pessoas, quer ainda ao respeito que nos merecem os Valores371.
269
os três lexemas – cultivo das coisas, cultura dos homens, culto dos valores
– se encontra absolutamente baralhada e confusa.
Em vez de respeitarem, no processo educativo, a sequência natural de
lançar mão das coisas para criar as melhores condições para que as pessoas
cresçam no sentido de atingirem a sua plena realização nos valores, desde
sempre os homens, particularmente os chefes e os grupos humanos atrás
deles, sucumbiram à tentação de inverter esta hierarquia natural, preten-
dendo colocar-se a si próprios no lugar dos valores e utilizar os outros seres
humanos como meios para se apoderarem do máximo número de coisas.
A generalização desta tendência é tributária de uma tremenda ilusão:
ao não respeitarmos o valor da dignidade dos outros seres humanos mas
pretendermos utilizá-los como simples meios para nos apoderarmos das
coisas, estamos na realidade a abdicar do valor da nossa própria digni-
dade, a rebaixar-nos a nós próprios à categoria de meios e a erigirmos as
coisas à categoria de fins.
E a consequência é catastrófica: como a tal “projecto” de cada in-
divíduo ou de cada grupo humano naturalmente se opõe a barreira de
projectos semelhantes e concorrentes de outros indivíduos e/ou de ou-
tros grupos humanos, desencadeia-se, também naturalmente, o processo
interminável dos conflitos, lutas e guerras que constituem as contas do
rosário da História.
De facto, ao analisarmos o seu percurso, não parece ser outra a se-
quência da diáspora da humanidade através do Planeta Terra.
270
construir cercas, muros ou fortificações”, presente no verbo latino mūnĭo
(antigo mœnĭo), is, īvi, ītum, īre, “trabalhar em obra de fortificação, fortifi-
car; munir, defender, manter, etc.”, de onde nos vem municiar e munições,
munido e premunido, etc., e também no substantivo latino murus, i, “muro
de uma cidade (por oposição a paries, etis, “muro de uma casa, parede”), de
onde nos vem muro e murar, muralha e amuralhado, etc.373
De facto e desde sempre, à semelhança da defesa individual (escudo,
malha, couraça), desenvolve-se a defesa da aldeia (vedação, tapume, bar-
reira, paliçada), da cidade (muros e muralhas, reforçados por redutos e
por castelos), do reino (raia, fronteira, alfândega), do império (Grande
Muralha da China) e, já nos tempos modernos e noutras modalidades,
dos novos grandes espaços regionais (na Europa as fronteiras do Espaço
Shengen) ou dos dois grandes Blocos Militares, Leste e Oeste, no passado
recente (Cortina de Ferro).
O mais estranho é que a tradição milenária de erguer muros físicos
se mantém e se vem mesmo intensificando extraordinariamente depois
da queda do muro de Berlim. Entre cerca de três dezenas de “muros”
de diversa natureza, segundo os casos (blocos de betão, cimento, pedras
ou areias, cercas de arame farpado, vedações electrificadas com torres de
vigia, valas e/ou campos de minas, alarmes, sensores térmicos de movi-
mento, sensores de alta tecnologia, patrulhas de soldados, barcos e he-
licópteros), construídos nas últimas décadas, é possível destacar (men-
cionando nome e lugar, extensão e ano): a Linha de Átila (Chipre, 300
km, 1974), o Muro Marroquino (entre a zona ocupada por Marrocos e
a Mauritânia, 2.720 km, 1980), os muros de diferente natureza, entre as
zonas administradas pela Índia e pelo Pakistão na região de Caxemira
(550 km, 1991), entre o Koweit e o Iraque (195 km, 1991), entre a Índia
e o Bangladesh (em construção, 3.300 km, 2000), entre Israel e os ter-
ritórios Palestinianos (247 km, 2003), entre a Tailândia e a Malásia (100
km, 2004), entre a China e a Coreia do Norte (1.416 km, 2006), entre os
Estados-Unidos e o México (1.126 km, 2006).
Tinham ficado célebres na história o Muro de Adriano (Grã-Bertanha,
122 km, séc. I), a Linha Maginot (França, 1927-1936), a Cortina de
Ferro evocada por Churchil em 1946, de Stetin no Báltico a Trieste no
271
Adriático, com o centro no Muro de Berlim (1961-1989) e a Cortina de
Bambu (na China da mesma época).
A Grande Muralha da China, com entre 5 e 6 mil km, construída e
reconstruída ao longo de 2200 anos, transposta, a pesar de tudo, pelas
invasões mongol (séc. XIII) e manchu (séc. XVII), hoje o único monu-
mento visível do exterior do Planeta Terra, diz muito sobre o carácter de
todos os seus habitantes374.
E diz também muito sobre a inanidade de muitas das suas realizações.
Mas os muros erguidos entre as comunidades humanas arrastam con-
sigo outros males endémicos ao longo da história: a produção, armazena-
mento e uso de armas de defesa e de ataque.
O arsenal antigo de armas de luta corpo a corpo e de combate à distân-
cia evoluiu, no século XX, para os dois sectores das armas convencionais
e das armas de destruição maciça, químicas, biológicas, nucleares (sendo
estas últimas potenciadas pela utilização de mísseis e aperfeiçoadas, desig-
nadamente no domínio de alta precisão, pelo recurso à electrónica, infor-
mática e tecnologia laser) e ainda, já no século XXI, para a proliferação das
“armas assimétricas” ou bombistas – suicidas das redes terroristas.
Ao longo do século XX, a “guerra quente” dos dois conflitos mundiais
e a “guerra fria” entre os blocos Leste e Oeste bem como a criação e ma-
nutenção das “Alianças e Organizações Internacionais Multilaterais com
Vocação Militar” manteve a “corrida aos armamentos” e o incremento
constante das “despesas militares”, à custa da satisfação das carências bá-
sicas das populações.
Entretanto floresce, nos países produtores, a indústria das armas na
dupla e pouco discernível dimensão de tecnologia militar e civil, o co-
mércio lucrativo com os países consumidores e a consequente prolifera-
ção geral do armamento acompanhada, também neste campo sensível,
do aumento galopante do fosso entre países ricos e países pobres.
A este propósito e em relação com a educação, tornou-se terrivelmente
esclarecedora a anotação constante do Relatório da Comissão Internacional
para o Desenvolvimento da Educação, da Unesco, publicada sob o título
Aprender a Ser (1972).
272
“A educação tornou-se desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o
maior ramo de actividade do mundo em termos de despesas globais.
Em termos orçamentais e no total das despesas públicas mundiais, vem
em segundo lugar, imediatamente a seguir às despesas militares”375.
A sobrevivência da Humanidade
273
vezes planeados e executados friamente, entraram na ordem do dia.
Mencionamos apenas os perpetrados desde o início do século XX
(registando o lugar, a data e o número de vítimas): Congo Belga (1884-
1907, entre 4 e 8 milhões de africanos); Namíbia Alemã (1904, 70.000
hereros ou seja 80% da população); Turquia (1915-1917, 1,5 milhões de
arménios); Ásia ocupada pelo Japão (1936-1945, entre 3 e 5 milhões de
chineses, coreanos e vietnamitas); Europa ocupada pela Alemanha (1941-
1945, 6 milhões de judeus, 3-5 milhões de eslavos, 130-170 mil ciganos);
URSS (1917-1953, 23,5 milhões de cidadãos soviéticos); China (1946-
1976, entre 45 e 75 milhões de chineses); Madagáscar (1947, 70.000 mal-
gaches); Índia-Paquistão (1947-1948, 4 a 6 milhões de hindus e muçul-
manos); Guatemala (1960-1990, 200.000 índios); Cambodja (1975-1978,
2 milhões de kmeres); Indonésia (1975-1979, 200.000 leste-timorenses);
Jugoslávia (1991-1995, 300.000 bósnios, croatas e sérvios); Ruanda-
Burundi (1994, entre 450.000 e 800.000 tutsis e hutos moderados)377.
Os actos de limpeza étnica e de genocídio incidiam sobre o “outro” grupo
que importa eliminar. Entretanto, já no séc. XXI, os agentes do terrorismo
internacional, muitos dos quais animados pelo fundamentalismo religioso,
fazem-se explodir a si próprios, deixam de atender à identidade das suas víti-
mas e passam a matar e destruir indiscriminadamente, até onde pode chegar
a capacidade mortífera das armas ou dos instrumentos de que dispõem.
E não sabemos adivinhar, nesta situação, o que o futuro nos reserva.
Relativamente às armas de destruição maciça, algumas medidas
vêm sendo tomadas, desde a Convenção da Proibição de Armas biológi-
cas (1972), a Convenção de Armas Químicas (1993) e o Tratado de Não
Proliferação de Armas Nucleares (1968 e 1994).
Mas nada se encontra assegurado e o risco é total, como perante a
antevisão apocalíptica de um holocausto nuclear, no decurso da Guerra
Fria, foi proclamado pela Declaração da Conferência Mundial de Montreal
sobre a Educação de Adultos, seguida da “Resolução” “Educação de Adultos
e Paz Mundial” (1960).
Com efeito a Conferência, consciente de que “a educação processa-se
hoje num mundo em mudança”378, de que, a partir do domínio da ener-
gia nuclear e do início da conquista do espaço, os avanços nas relações
274
do homem com a natureza provocaram avanços nas relações do homem
com o homem e de que, neste sentido, a “tecnologia saltou as fronteiras
nacionais”, “alargou os horizontes do homem e tornou pequena a sua
comunidade”379, escancara as portas do risco de “solução final” com que
hoje nos defrontamos: o auto-genocídio de toda a humanidade.
275
Com estas últimas palavras, a Declaração aponta o verdadeiro rumo
da educação na plenitude da sua dimensão comunitária.
276
Os desafios
Da raiz *IE Bheidh- (leia-se Fheidh-), que envolve a ideia geral de “fé,
compromisso”, recebemos em português três séries de lexemas:
277
algo” o que supõe ter sido posta em causa essa confiança, de provocar o
seu antigo detentor a provar que continua a merecê-la e de o desafian-
te (provocador) convocar o desafiado (provocado) a pedir meças e/ou a
apresentar “argumentos”, quer se trate das lutas de adolescentes “para ver
quem tem mais força”, das “cantigas ao desafio” entre os bardos das aldeias
de antigamente, dos desafios de futebol, das greves, contestações e revolu-
ções em que os subordinados desafiam os chefes ou o statu quo, ou ainda
dos desafios que pequenas nações fazem às grandes, às lideranças mundiais
ou às resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Neste contexto e como cidadãos, encontrámo-nos, o leitor e eu, aqui
e agora, desafiados a justificar e fundamentar os projectos de educação cor-
respondentes à cidadania terrestre que estamos a invocar.
A própria educação de hoje sente-se desafiada a pôr à prova os limi-
tes das suas dimensões actuais – familiar, autárquica, nacional, regional
(ex. europeia) – para, sem perder e mesmo valorizando a substância rica
dessas marcas culturais, assumir e explorar a riqueza mais abrangente e
englobante da sua dimensão universal.
Os projectos
278
rejeição; de objĭcio, “ lançar ou pôr diante”, objecção, objectivo, objecto; de
subjĭcio, “lançar ou pôr debaixo”, sujeição e sujeito; de adjĭcio, “lançar ao
lado, ajuntar”, adjectivo e adjecto; de interjĭcio, “lançar entre, interpor”,
interjectivo e interjeição; de conjĭcio, “lançar com, reunir”, conjectura; de
transjĭcio, “lançar além, transportar”, trajecto; de injĭcio, “lançar em ou so-
bre”, injectar, injector e injecção; de abjĭcio, “atirar para longe”, abjecção e
abjecto; de ejĭcio, “lançar fora, expulsar”, ejecção e ejecto; de dejĭcio, “deitar
para baixo, evacuar”, dejecção e dejecto386.
Resumindo e recorrendo a outros verbos derivados da mesma raiz: de
jăculor, ārĭs, “lançar”, pode vir ou uma jaculatória ou um simples acto de
ejacular; de jactus, ūs, “acção de lançar com força, arremessar”, vem jacto
e também jeito; de jacto, ās, āre, “lançar frequentemente” vem jactar-se e
jactância; de jăceo, ēs, ěre, “estar deitado, prostrado, caído, morto”, vem
jazer e (estátua) jacente.
Nesta encruzilhada de tantas direcções possíveis, ao falarmos de pro-
jecto, é fundamental pararmos a considerar a multiplicidade de direcções
ou sentidos que os nossos comportamentos podem tomar, a pôr toda a
atenção na possibilidade de em vez de lançarmos para a frente, lançarmos
para trás, para cima, para baixo ou indiscriminadamente para os lados e,
mais concretamente, assegurarmos que o projecto educativo, em qualquer
uma das suas dimensões, não descaia em mero trajecto ou ejecto ou, pior
ainda, em algo abjecto ou simplesmente dejecto.
Mais concretamente e de acordo com a fórmula abrangente de edu-
cação acima avançada, importa saber se o nosso projecto pessoal se orienta
apenas para “aprendermos”, estudarmos, fazermos um curso para depois
“ganharmos a vida”, exercendo uma profissão, eventualmente sem ex-
cluirmos a hipótese de nela prejudicarmos e explorarmos os outros, ou
se verdadeiramente se orienta, no sentido positivo, para crescermos, nos
desenvolvermos e realizarmos ao longo da vida toda, abrindo caminho
entre as oportunidades e dificuldades que nos são criadas e contribuindo
para a criação das melhores condições para que os membros da comuni-
dade humana possamos todos atingir a meta.
Sobretudo importa avaliar se o nosso projecto comunitário caminha
na direcção de nos deixarmos escravizar pelas coisas (economia, lucro,
279
dinheiro), ou de procurarmos o domínio sobre as pessoas (sociedade,
política, poder), ou de nos colocarmos ao serviço do reino dos valores
(dignidade humana, verdade, justiça, compreensão, paz, amor).
A Cidadania Terrestre
280
e sustentada por uma inesperada e imparável metamorfose nas dimensões
da vida económica, social e cultural, correspondentes às três dimensões
do conceito de educação que acima reconhecemos.
No que respeita aos processos produtivos característicos da economia
das coisas de que dispomos no universo, o progresso científico-técnico
desencadeou a sucessão das eras agrícola, industrial e de serviços, a ponto
de hoje comermos, nos vestirmos, calçarmos, nos abrigarmos e nos equi-
parmos utilizando recursos procedentes dos quatro cantos do mundo387.
No que se refere à sociedade, os fenómenos da progressiva globaliza-
ção do espaço, da aceleração da mudança no tempo, da complexificação
dos tipos de existência, da sucessão das galáxias Gutemberg, McLuhan e
Gates, do desenvolvimento das TICs, da internet e dos telemóveis, estão a
contribuir para a rápida emergência de um “mundo plano” (Friedman)388
em que hoje se potenciam ao máximo e em tempo real as relações inter-
-grupais e inter-subjectivas das pessoas.
No atinente ao reino da cultura, acontece que o facto de as tecnolo-
gias se encarregarem de prestar a informação necessária em tempo útil
começa a favorecer a canalização do esforço humano para o debate moral
e axiológico sobre comportamentos e valores.
Por outro lado, esta evolução galopante ameaça de ruptura a nossa
capacidade de adaptação e põe em causa a consciência que temos acerca
da nossa actual cidadania.
Com efeito, se por um lado a educação, entendida como processo de
crescimento humano, é tarefa de carácter estritamente pessoal, por outro
lado e atendendo à dimensão social, o seu delineamento e efectivação fica
sempre a depender do contexto comunitário em que se realiza, da “cida-
de” (latim civitas) em que a vida decorre.
Entretanto, habituados durante séculos a viver dentro dos limites da
“cidade” (na linguagem clássica) ou das fronteiras da “nação” (na lingua-
gem actual), sentimos hoje dificuldade em movimentar-nos, por exem-
plo, na “região” da Europa e mais ainda no espaço do Mundo.
E passámos a não distinguir claramente qual é a nossa actual cidada-
nia ou nacionalidade ou ainda, dito de maneira mais popular e castiça, a
não saber “de que freguesia somos”.
281
Em paralelismo com polis, a cidade grega, desde Troia até Atenas, que
nos legou toda a riqueza da ciência e da prática política, e em contra-
posição com urbs, a cidade por autonomásia, Roma, de onde nos vem
urbano e urbanidade e ainda expressões lapidares do calendário romano
(“Ab Urbe Condita”) e da linguagem cristã (falar “Urbi et Orbi”), a civitas
designa a cividade ou cidade, no sentido inicial de aglomeração humana
importante, normalmente circunscrita, murada ou amuralhada, em que
os “cives” ou cidadãos têm a sua morada, exercem as suas actividades civís
(de natureza não militar ou eclesiástica mas económica, social, política e
cultural), de acordo com os seus direitos e deveres cívicos, submetendo-
se às regras exigentes do civismo e delicadas da civilidade e contribuindo
assim para o progresso da civilização.
Com o tempo, o conceito de cidade estende-se aos agrupamentos hu-
manos em dimensões referentes, quer à solidariedade de vida presidida
pelos deuses “Lares” (Lar, Home, Heimat), quer à origem (Nação ou Terra
onde nascemos, Pátria ou Terra dos nossos Pais), quer ainda ao destino
comum, sublinhando a pertença a um Estado (ex. Ex-Jugoslávia), a uma
Região Supra-Nacional (ex. União Europeia), a todo o Mundo (Família
Humana), ou aprofunda-se, em sentido religioso, na Cidade Santa (ex.
Jerusalém), no Império Celestial do Meio fulcrado na Cidade Proibida
(China), na Cidade de Deus (S. to Agostinho).
Em cada um destes níveis, a cidadania designa a qualidade, condição,
atributo, foro, direito ou estatuto de membro da cidade que hoje, em de-
mocracia, se define pela consciência de uma identidade, a liberdade de
iniciativa, a participação responsável na procura do bem comum.
Também aqui e na medida em que a educação implica colocar os bens
da Terra ao serviço dos membros da Comunidade em homenagem aos
Valores que nos transcendem, importa examinar que tipo de cidadania
professamos: a da Família Humana ou simplesmente a do “império”, do
país, da autarquia, do bairro, do partido político, do clube de futebol ou,
mais simplesmente ainda, da classe social, do grupo de pressão, do círcu-
lo dos amigos ou do jogo de interesses do momento.
Uma breve análise das palavras que utilizamos para designar “Terra”
pode ajudar-nos hoje a abrir o verdadeiro caminho.
282
Para além do antepositivo ge(o)-, do grego gê, ês, “Terra”, mais em uso
na acepção científica (geografia, geometria, geologia e um elevado número
de cultismos semelhantes a partir do séc. XIX) e do pospositivo -geia
(pangeia, etc.), e ainda para além de tellūs, ūris, “terra”, mais usado na
linguagem poética (telúrico), a designação corrente procede do lat. Terra,
œ, “a mais antiga das deusas”, que deu origem a Terra e múltiplos lexemas
derivados como terreno, terrenal, terrígeno, térreo, terraço, território, ater-
rar, desterrar, soterrar, enterrar, etc.
Mas a designação mais sugestiva para o nosso propósito é o termo
latino humus,ī, “solo, chão, terra”, donde vem, em português, húmus,
humilde, exumação, inumação, etc. A sua cognação com homo, inis, “ho-
mem” e seus derivados humano e deshumano, humanado, humanista, etc.,
evoca expressamente a ideia de que os homens somos os “habitantes da
Terra” (por oposição aos deuses) e de que a nossa verdadeira cidadania é
a cidadania terrestre389.
A Terra é, de facto, a Nação e a Pátria de todos nós, porque todos nela
nascemos e nascemos dos nossos Pais.
Mas falta esclarecer uma questão: qual pode e deverá ser o grau de so-
lidariedade (etimologicamente, de vínculo sólido, firme, resistente) entre
os membros ligados entre si pela cidadania terrestre?
283
lectum, ĕre, “ajuntar, reunir, escolher, eleger, ler, etc.”, e do seu composto
collĭgo, is, ēgi, ectum, ĕre, recebemos os lexemas colher, acolher, escolher,
recolher, etc., e também coligir e colectar, colecta, colecção e colectividade,
no sentido de “conjunto mais ou menos numeroso de pessoas ou coisas,
grupo, agrupamento, agremiação”390.
O conceito de colectividade (de trabalho, de recreio, etc.), limita-se a
mencionar apenas a ligação das pessoas e o facto de serem em número
significativo.
284
Comunidade, Comunicação, Comunhão. A compreensão destes níveis
superiores de solidariedade pode beneficiar do recurso à raiz já mencio-
nada *IE Mei-, no sentido de “mudar, trocar”, do qual, através de quatro
lexemas latinos, recebemos uma galáxia de lexemas em português, muito
esclarecedores:
285
“viver em ligação, comparticipação, sintonia no sentir, pensar e agir”,
“união, identificação entre pessoas”.
Por estranho que pareça à primeira vista, um bom exemplo de “comu-
nhão em estado puro” tem-se verificado na vivência da população de um
país no momento em que a sua equipa de futebol está a jogar na final do
campeonato europeu ou mundial. A população inteira reage como um
todo: desfralda a Bandeira e canta o Hino do País com a mais profunda
emoção. Porque, nesses instantes, toma parte, participa, comunga, entra
em estado de comunhão a partir das raízes mais profundas que alimentam
os valores do sentimento de identidade nacional.
Desta forma, ao comungar, através do consentimento profundamente
vivido, os mesmos valores, a comunidade transforma-se em comunhão.
E se a comunidade é aquela em que todos os homens comungam os
valores da cidadania terrestre, ela transforma-se na Família Humana.
286
(meios) a explorar, as pessoas humanas (fins) chamadas a crescer e a rea-
lizar-se, os ideais de verdade, justiça, amor e paz, que nos são comuns e
nos transcendem.
Acontece ainda que, em sentido amplo, incluímos tudo isto na catego-
ria de valores: valores materiais enquanto meios, valores humanos enquanto
fins, valores superiores que nos sentimos chamados a reconhecer e respeitar.
Mas ocorre perguntar até que ponto frequentemente confundimos,
baralhamos e pervertemos esta hierarquia natural dos valores, trocando
fins e meios, e pretendendo nós próprios assumir nela o lugar que não
nos pertence?
De facto, no processo histórico da comunidade dinâmica que cons-
tituímos, deparamos com três linhas de comportamento humano bem
diferentes:
287
te todas as coisas: o ar que respiram, os alimentos que comem, as roupas
que vestem, as casas que habitam, os terrenos que cultivam ou de que
desfrutam, as fontes de energia que exploram, os instrumentos que usam
no asseio, no trabalho nas deslocações e no lazer, os dinheiros que gastam
na satisfação das necessidades e diversões.
Todas estas coisas têm valor. Costumamos mesmo dizer que são os
nossos valores mas apenas em um dos sentidos que a palavra tem: medida
variável do preço que se atribui a um objecto em função da importância
ou interesse de que se reveste para os desígnios que sobre ele possa ter
uma pessoa humana. As coisas são para as pessoas e nesse “para” reside o
critério que nos permite aferir a medida do seu preço ou valor.
As coisas, todas as coisas, por mais valiosas e maravilhosas que sejam,
são meios, apenas meios, não passam de meios ao serviço dos fins que são
as pessoas.
Ora os meios servem apenas para alimentar os fins.
Aqui emerge uma primeira aproximação do processo educativo.
Verificámos anteriormente que, no sentido original e básico, educar (de
edŭco, as, are) significa alimentar. E só a partir de se alimentarem é que os
seres vivos podem crescer como é sugerido pelo facto de as duas variantes
da raiz *IE Al-, Ol- “alimentar, crescer”, estarem na base, respectivamente,
do lat. alĕre, “alimentar”, donde vem aluno e do lat. adolescere, “crescer”
donde vem adolescente e adulto.
É neste sentido que, por ocasião de uma das inundações recorrentes
do Bangladesh, alguém terá dito que a educação das crianças que tinham
sobrevivido à morte dos seus, consistia, naquele momento, em dar-lhes
farinha para se alimentarem.
E, com certeza, não apenas a farinha que alimenta o corpo, mas tam-
bém o acolhimento, aconchego, protecção, assistência, carinho e amor,
projecto e futuro, ou seja, tudo aquilo de que o ser humano carece, à luz
da verdade de que “não só de pão vive o homem”.
Acontece que este problema é tão vasto como o Mundo, na medida
em que atinge todos os seres humanos e que, um pouco por toda a parte
e não apenas em situações de calamidade ou catástrofe mas na vida nor-
mal, muitos vivem de parcos ou quase nenhuns recursos, na penúria ou
288
mesmo na carência dos meios necessários para viver.
Trata-se dos pobres, de todos os que são mal providos ou mesmo des-
providos desses meios:
289
mero “um”, mas estende-se, pelo menos, ao número dois.
E ao construir-se, a família integra as pessoas, qualquer que seja o seu
número e por mais que o número cresça, numa unidade que nada tem a
ver com a quantidade, mas com a coesão proporcionada pelo(s) valor(es)
que a sustenta(m).
O plural de “eu” transcende as categorias numéricas: não é “eus”, mas
é nós.
Este princípio aplica-se aos grupos humanos e às respectivas culturas.
A diáspora milenar da Família Humana através de todo o planeta pro-
vocou, nos numerosos pequenos grupos que se fixaram em variadíssimos
habitats, as tão diferentes marcas que hoje caracterizam as suas culturas.
O lento regresso à convivência e à unidade que caracteriza a História
Moderna, designadamente a partir dos descobrimentos geográficos, com
as tragédias de genocídios e de limpezas étnicas e também de sucessivas
miscigenações, gerou problemas de identidade cultural que hoje afectam,
em larga medida, muitos povos da Terra. E promoveu também, nos tem-
pos mais recentes, as actuais “políticas de identidade”.
A UNESCO, em 1969, introduziu a noção de “políticas cultu-
rais” movida pela preocupação de, simultaneamente, proteger a he-
rança e promover a liberdade cultural. O conceito abre lentamente
o seu caminho: Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, México,
1982; ONU, Declaração da Década 1988-1997 como Década da
Cultura e Desenvolvimento; Comissão Mundial para a Cultura e o
Desenvolvimento, através do Relatório Our creative Diversity (1995);
Conferência Intergovernamental de Estocolmo sobre Políticas Culturais para
o Desenvolvimento (1998)394.
Entretanto, ao longo das duas últimas décadas e a partir de numerosos
contributos (Clifford, 1988; Rosaldo, 1989; Olwig, Fog e Hastrup, 1997;
Brumann, 1999), vem-se operando uma mudança de paradigma no con-
ceito de cultura dentro da Antropologia. Entendido anteriormente como
um “todo” coerente, estável e limitado, correspondente a cada “povo”,
“o conceito de cultura e, por extensão, a ideia de diferença cultural e as
hipóteses subjacentes de homogeneidade, holismo e integridade têm sido
reavaliadas”395.
290
É este o sentido adoptado na Declaração Universal sobre Diversidade
Cultural (2001):
291
minação cultural” vindos de grupos fundamentalistas ou outros (gangs e
máfias criminosas).
Aconselha a desvalorização dos receios dos defensores da globalização,
e faz uma chamada de atenção para exemplos positivos como o evoca-
do por John Hume, Nobel da Paz de 1998, ao recordar que “a União
Europeia substituiu esses conflitos pela cooperação entre os seus povos.
Transformou a sua vasta gama de tradições, de uma fonte de conflitos
numa fonte de força unificadora”398.
E, na babel dos conflitos, violações e guerras de “exclusão mútua” que
continuam a afectar o mundo em que vivemos, aponta exemplos, fórmu-
las e caminhos da solução: “direito à terra” no Brasil e nas Filipinas399, “re-
conhecimento da diversidade linguística” em diversos países da África400
e educação multilingue desde o Canadá ao Afeganistão e Papua Nova
Guiné401, transição dos “direitos privados” para um “código civil unifor-
me” na Índia402, trajectórias de organização política como “identidades
múltiplas e complementares” (Espanha e Bélgica)403, “federações mul-
tinacionais” em acção (Suiça e Malásia passando pela Austrália, Índia,
Áustria, Alemanha, Brasil e Canadá)404 ou em forma de desafio (da Nova
Zelândia à Nigéria)405.
Entre os mais graves problemas de multiculturalismo, emergem os
que afectam a emigração cujo ritmo acelerou nos últimos tempos (citan-
do-se o exemplo de quase metade da população actual de Toronto ter
nascido fora do Canadá) e cuja incidência vem adquirindo a acuidade
máxima nas fronteiras e zonas periféricas dos espaços de maior desenvol-
vimento económico (Estados Unidos e Europa).
O mútuo benefício que o fenómeno pode representar para ambas as
partes vem sendo posto em relevo, à luz do programa “recrutamos traba-
lhadores mas recebemos pessoas”, no sentido de que
292
O problema do indigenato reveste-se ainda de maior gravidade na
medida em que, para além de se manter actual, acumula um longo e
doloroso percurso histórico. O Fórum Permanente da ONU sobre Questões
Indígenas (Segunda Sessão, Maio de 2003) afirma a importância positiva
da diversidade cultural nos processos de desenvolvimento. Porque, nas
palavras do seu Presidente, Olé Henrik Magga,
“Não quero que a minha casa seja cercada de muros por todos os la-
dos, nem que as minhas janelas sejam tapadas. Quero que as culturas
de todas as terras sejam sopradas para dentro da minha casa, o mais
livremente possível. Mas recuso-me a ser desapossado da minha por
qualquer outra” (Mahatma Gandhy)408.
293
Valores transcendentes e prioridade aos mais desfavorecidos
294
O sentimento de nos vermos englobados nessas realidades transcen-
dentes é de molde a desencadear, dentro da nossa identidade pessoal, um
movimento dialéctico: porque, perante elas, nos sentimos pequenos e sen-
timos pequenos todos os outros, sentimos também a necessidade de sermos
ajudados e, simultaneamente, o chamamento a ajudarmos os outros todos.
O que nos conduz aos conceitos de serviço e de voluntariado.
295
ram de lado os legítimos interesses pessoais para se colocarem ao serviço
dos seus concidadãos no trabalho da procura do bem comum.
E se os exemplos maus e contraditórios abundam, de maior mere-
cimento são credores aqueles que, no desempenho das suas funções, se
pautam por este critério.
É também este o momento de reconhecermos todos, apesar das mui-
tas e graves deficiências conhecidas, o esforço e dedicação de tantos e tão
categorizados membros das equipas das Organizações Internacionais que,
desde meados do século XX, vêm procedendo à elaboração dos docu-
mentos e relatórios que tão maravilhosos horizontes abriram à melhoria
das condições da existência da Família Humana e, neste contexto, ao seu
caminho que é a educação.
O mesmo reconhecimento, completado aqui com o chamamento a
todos e a cada um de nós para seguirmos o seu exemplo, deve ser presta-
do a tantos membros da Família Humana empenhados num variadíssi-
mo leque de actividades de voluntariado ao serviço dos seus irmãos.
Que tudo isto exige energia, trabalho, esforço, boa vontade? É certo.
Mas compensa. A julgar pelo testemunho de todos aqueles que nos vêm
legando esse exemplo, como este relativo ao esforço realizado para vencer
o sistema do apartheid, na África do Sul:
296
deparamos inopinadamente com um conterrâneo e exclamamos: “és da
minha Terra!”, “ainda pertences à minha família!”, “dá cá um abraço!”.
Ora isto é rigorosamente verdade no que respeita a todos e cada um dos
seres humanos.
Um extraterrestre que ao aportar ao nosso Planeta se sentisse atónito
perante o rol de conflitos que nele se desenvolvem, poderia clamar com
toda a razão: “não se matem pois são todos da mesma Terra e pertencem
à mesma Família!”
De facto, porque somos habitantes da mesma Terra e cidadãos da
mesma Pátria, todas as guerras são guerras civis. Porque todos moramos
na mesma Casa (em latim domus), todos os conflitos são conflitos do-
mésticos. Porque todos pertencemos à mesma e única Família, todas as
desavenças são desavenças familiares.
Não se compreende, por isso, a diarreia conflitual entre indivídu-
os, povos, nações, reinos e impérios que caracteriza toda a História da
humanidade.
Ou, dito pela inversa, teremos de admitir que o sentimento de Família
Humana que arrasta para a ajuda recíproca e o serviço mútuo dando mesmo
prioridade aos mais desfavorecidos, base do verdadeiro projecto educativo, ao
colocar todos os recursos da terra ao serviço de todas as pessoas membros da
grande Família Humana para crescerem e se realizarem nos valores, carece
de explicação mais esclarecedora e de fundamentação mais sólida.
Tal fundamentação dos sentimentos de natural solidariedade que
marcam a condição humana de pertença dos homens à Terra e caracteri-
zam a nossa identidade terrestre só poderá ser encontrada nas raízes vitais
e vivificantes da unidade de origem e destino que envolvem o sentido de
Família Humana.
Para isso importa compreender a importância da relação que se esta-
belece entre, por um lado, a Família Humana e a própria Terra nossa mo-
rada e, por outro lado, o contexto em que ambas existem, se movimentam
e se desenvolvem.
Passamos assim a abordar a última faceta do sentido abrangente do
conceito de educação.
297
•
Capítulo VIII
299
social, cultural, moral;
– mais recentemente e através da associação de eco e sistema, te-
mos ecossistema, no sentido que abarca cada agrupamento de
seres vivos, o meio ambiente em que vive e as relações que se
estabelecem entre eles;
– paralelamente e também do gr. oikouménē (gē), particípio pas-
sivo do verbo oikéō, “viver em, habitar, morar, residir, ocupar”,
recebemos ecúmena, terra habitada (em oposição a deserto),
área geográfica permanentemente habitada e, por extensão,
toda a terra habitada pelo homem, o todo, o geral, o universal;
neste sentido, ecúmena designou o espaço do império criado
por Alexandre Magno e em que se difundiu a língua grega na
forma koinē (comum), depois o espaço do Império Romano do
Oriente que falava grego e, mais tarde, o espaço do mundo todo,
reivindicado pela religião cristã, que recebeu e incluiu a palavra
no seu vocabulário eclesial, desde os primeiros séculos (concílio
ecuménico) até aos tempos de hoje (movimento ecuménico).
300
reduzido a um instável e minúsculo nicho dentro do verdadeiro Oikos
que é o Universo.
Mas este Oikos, já na dimensão física tão misterioso, continua a des-
dobrar-se em sucessivas camadas envolventes:
– o que sabemos do universo físico vai, no dizer dos especialistas, até
onde chegam os nossos instrumentos de pesquisa porque, mais além, ele
parece continuar… modificar-se… recriar-se…
– continua certamente no universo gnoseológico do nosso pensamen-
to, ou noosfera como dizia Teillard de Chardin, a diluir-se em pistas de
investigação, extrapolações, hipóteses, teorias, sonhos, utopias …
– mais além ainda, continua no universo axiológico da nossa angústia
íntima, evocada no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do
Homem e entretecida de interrogações sobre as últimas razões do ser e do
saber, os ideais e os valores, as origens e os fins…
E ao chegar aqui, perante o mistério que se adensa cada vez mais,
acabamos por apenas saber repetir baixinho aquela canção, feita de melo-
dia cadenciada e ritmo lento, que aprendemos de crianças no jardim de
infância,
301
e, quando muito, também do desenvolvimento intelectual, científico e
tecnológico, deixando para trás o desenvolvimento moral e ético sem o
qual falha a garantia de êxito dos dois anteriores.
Porque as Nações (des)Unidas se esquecem constantemente da sua
Declaração Universal dos Direitos do Homem na qual afirmaram que to-
dos os homens, enquanto portadores da dignidade de seres humanos,
ainda antes da pertença a qualquer povo, raça, cultura ou religião, fazem
parte, em pé de igualdade e como irmãos, da mesma e única Família
Humana, e de que o advento do Mundo dos Valores constitui a “mais alta
aspiração do homem”, a “concepção comum” em que acreditam e o “ide-
al comum” “a atingir por todos os Povos e todas as Nações”, “pelo ensino
e educação”.
Nesta situação paradoxal, impõe-se questionar radicalmente, no úl-
timo capítulo, as três facetas do processo educativo: condições de vida,
dimensões do crescimento, universalidade dos valores.
E porque elas se encontram em relação com os três níveis de aprofun-
damento do espaço ecuménico, reduzimo-las a ecúmenas:
302
A degradação das condições de vida e a morte lenta da Terra
303
distribuídos, utilizados, abandonados:
304
Mas é nas últimas décadas que esta previsão passa a tornar-se concre-
ta, visível, inquestionável e alarmante.
305
vivos que moram no biótopo), até à sua recondução às fontes originais.
A cadeia alimentar ou rede trófica desenvolve-se através de um percur-
so em que a energia é
306
dados ou desérticos416.
Entretanto os inúmeros acordos internacionais, à escala mundial e re-
gional, não surtem o efeito desejado e a degradação das condições de vida
começa a pôr em causa o planeta inteiro.
É exactamente o risco de que passámos a aperceber-nos melhor nos
últimos anos.
307
lemóveis) e pelas exigências dos novos estilos de vida, as devastações pro-
vocadas pelos processos de mineração e desflorestação, os desvios de rios
e secagem de lagos (Mar de Aral), a proliferação dos lixos (dos normais
aos tóxicos e aos nucleares), vêm pondo em causa o equilíbrio do Planeta
e começaram mesmo a provocar transtornos mortíferos nas condições e
qualidade de vida.
Entretanto, o problema maior incide sobre a atmosfera e tem a ver
com o fenómeno do aquecimento global e do efeito de estufa.
Se a dosagem de gases como o dióxido de carbono, metano e óxido
nitroso é necessária para manter o aquecimento global da Terra à tempe-
ratura média de 15º C (que, sem ela, desceria a -18º C), por outro lado
o seu aumento descontrolado, designadamente por parte do dióxido de
carbono (CO2) que vem sendo responsável por 80% desse descontrolo,
e do metano que recentemente vem sendo considerado ainda de algum
modo mais gravoso, provoca inexoravelmente a subida da temperatura
para níveis que ameaçam este equilíbrio e começam a provocar transtor-
nos mortíferos nas condições de vida e a pôr em risco todo o funciona-
mento do ecossistema global.
Por outro lado, o abate sistemático e intensivo da floresta (que absor-
ve durante o dia o dióxido de carbono), por exemplo da floresta tropical
da Amazónia, para além de, no próprio momento, libertar dióxido de
carbono, extingue para sempre a sua absorção por parte das mesmas ár-
vores abatidas.
De facto, a temperatura média da Terra que se manteve em certo
equilíbrio ao longo dos últimos 650.000 anos, cresceu lentamente desde
1860, acelerou desde 1980 (sendo 2005 o ano mais quente), e receia-se
que irá acelerar muito mais até 2050.
E se durante anos prevaleceram as dúvidas sobre a factualidade do
aquecimento global, nos últimos tempos vêm-se acumulando as provas
a ponto de a situação aparecer descrita em termos de “agonia da Terra”
e apresentada como “verdade inconveniente” mas também como cri-
se que envolve uma oportunidade a agarrar e aproveitar como “urgência
planetária”417:
308
– tendência para a diminuição até ao desaparecimento das antes
chamadas “neves eternas” (Monte Kilimanjaro, na Tanzânia)
e de glaciares (Parque de Montana, nos USA; Alpes e Países
Nórdicos, na UE; Patagónia, na Argentina) ou recessão de mas-
sas de gelo (na cordilheira dos Himalaias, sobre o oceano do
Árctico e sobre as terras da Antártida e da Gronelândia);
– tempestades do tipo furacões e tufões formados no mar, e de
tornados formados em Terra, cada vez mais numerosos, mais
violentos (ex. furacão Katrina, USA, 2005) e a atingir maiores
raios de acção no Planeta;
– inundações (Ásia, América, Europa) em número crescente (na
Ásia, de menos de 50 na década 50 passou para 325 na década
90) e que, por vezes, estranhamente, ocorrem ao lado de regiões
que suportam secas agravadas;
– incêndios (nas Américas e na década 90, o número quase
quintuplicou);
– aparecimento de zonas mortas nos mares devido à “fluorescên-
cia de algas” (por vezes tóxicas), causada pela falta de oxigénio
induzida pela poluição (Florida, nos USA; Mar Báltico, na UE)
e deterioração dos recifes de coral (Polinésia), com devastadoras
consequências para as espécies marinhas que deles dependem;
– proliferação e expansão de formas de vida transmissoras de do-
enças (parasitas, moscas e mosquitos, roedores, etc.);
– alterações nas estações do ano a provocar transtornos nas cultu-
ras agrícolas e na reprodução de aves migratórias.
309
Protocolo de Kioto e Cimeira sobre o Ambiente em Bali.
Comentando as conclusões do último relatório (2006) do Painel
Intergovernamental sobre Alterações Climáticas, nas antevésperas da
Cimeira de Bali, o Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon, reconhece
que “os cientistas já cumpriram a sua missão. Agora compete aos políti-
cos agir”. Mas, apesar de nas difíceis negociações ter proposto “agarrem
este momento para o bem de toda a Humanidade”, a Cimeira não foi
além de estabelecer o mapa das bases em que será negociado um novo
acordo global a substituir o Acordo de Kioto418.
Mais uma vez constatamos a urgência de nos agarrarmos ao que é
essencial: perante a incerteza que afecta a nossa natureza física, biológi-
ca, intelectual e moral e a falta de coragem para a enfrentar através dos
aconselháveis “viáticos” (ecologia de acção, estratégia, aposta)419, importa
questionar-nos sobre até que ponto nós, os humanos, estamos conscientes
de sermos responsáveis pela deterioração do nosso Oikos e de nos caber
a missão e a tarefa de procurarmos crescer todos e em todas as dimensões,
a fim de nos tornarmos capazes de tomar as medidas adequadas para a
remediar no presente e a prevenir no futuro.
Da raiz *IE Pete- que envolve a ideia geral de “precipitar-se para, ati-
rar-se a”, talvez aparentada com outra raiz *IE Pet-, Ped- que envolve a
ideia de “cair”, através do verbo compito, is, ěre, “ir dar ao mesmo ponto,
310
encontrar-se”, “concorrer com outro”, recebemos competir e competição,
no sentido de acto ou efeito de concorrência entre indivíduos ou grupos
em que uns procuram igualar ou superar os outros, e competitividade no
sentido de qualidade do que ou de quem é competitivo.
O exercício da competitividade é alimentado pelo instinto da “areté”.
Trata-se de uma palavra grega derivada da raiz *IE Are- ou Re- que
envolve a ideia geral de “ajustar, adaptar”, e que está relacionada com áris-
tos, ē, ón (superlativo de agathós, “bom”), “o melhor, excelente”, de onde
recebemos em português aristocracia420.
Areté, com o significado de procura da “adaptação perfeita, excelência,
virtude”, na história da educação grega, aparece associada a paideia, que
envolve a ideia originária de “criação” ou “processo trófico” de alimentar
a criança para assegurar o seu desenvolvimento em todas as dimensões e
que, mais tarde, na forma de “enkyklios paideia”, dará o nome à civiliza-
ção característica do brilhante período histórico do Helenismo.
A palavra areté, que não passou para a língua portuguesa, acrescenta
a paideia a intencionalidade de empregar toda a energia, força, ânimo e
vontade de vencer que arrasta, por exemplo o atleta dos Jogos Olímpicos,
a procurar ser o mais grande, ser o maior, ser o melhor, ser o primeiro.
Deste modo, areté influenciou toda a cultura ocidental através do mo-
delo da educação grega que envolve a ideia de procurar crescer (paídeusis)
no sentido de chegar a ser o melhor (áristos).
O melhor nos Jogos Olímpicos antigos e modernos, e nas Olimpíadas
de toda a nossa existência.
De facto, toda a nossa vida se desenvolve num “campo de jogos” ou
“campo de luta” ou de competitividade, no qual cada um de nós, à pró-
pria maneira, inconsciente, consciente e/ou esforçadamente mas sempre
numa perspectiva tendencialmente ego(cen)t(r)ista, procura ser o primei-
ro ou o melhor, nas coisa boas da força, da velocidade, da flexibilidade, da
ciência, da arte, da virtude, ou até nas coisas más do poder, da violência,
do conflito, do confronto, da guerra, do vício.
Em termos de educação, entendemos que enveredar pelo caminho
positivo corresponde a crescer (nas fases de adolescentes e de adultos) e en-
veredar pelo caminho negativo corresponde a decrescer.
311
Acontece ainda que quando enveredamos pelo caminho positivo e cres-
cemos nós próprios, queremos que cresçam também os nossos, os do nosso
grupo étnico, social, político, cultural e/ou religioso. Mas também aqui
prevalece o ego(cen)t(r)ismo fracturante, com a única diferença de em vez
de pessoal ser colectivo e, por isso, com a agravante de este tipo de competi-
tividade, dentro da Família Humana, provocar as mais graves fracturas que
estão na origem de todas as guerras, destruições e genocídios.
Torna-se, deste modo, mais necessário ainda que o natural e legítimo
esforço para que nós próprios e todos os membros do nosso grupo nos
tornemos os primeiros, os maiores, os melhores, se entenda na dimensão,
sublinhada no parágrafo anterior, do grupo completo que é a Família
Humana, atribuindo ainda a prioridade aos mais pequenos, fracos, po-
bres, desfavorecidos.
Só assim o natural exercício de competitividade, alimentado pelo ins-
tinto da areté à procura da “adaptação perfeita” e do nível de “excelência”,
até ao limite do esforço “agónico”, estará a metamorfosear-se no instinto
de solidariedade que visa promover o desenvolvimento pessoal de todos os
membros da Família Humana que habitamos o nicho comum do Planeta
Terra dentro do Oikos misterioso que é o universo.
Nesta perspectiva, impõe-se atender ao verdadeiro desenvolvimento
humano em todas as suas dimensões: a dimensão do desenvolvimento físi-
co a partir dos bens que podem proporcionar o crescimento e bem-estar
de cada um de nós; a dimensão do desenvolvimento mental através da
consciencialização e do conhecimento (científico e técnico) em ordem
a optimizarmos as relações de uns com os outros e com o Oikos em que
moramos; a dimensão do desenvolvimento moral pela assunção das nossas
responsabilidades, de ordem pessoal e colectiva, perante os Valores.
E impõe-se ainda mais: reconhecer o facto de cada uma destas dimen-
sões ser necessária mas não suficiente e depender da que vem a seguir
para se poder concretizar.
Passamos assim a abordar:
312
– o “mundo axial” e o desenvolvimento moral e ético.
313
Comércio (1995). Todos estes organismos apoiam a liberdade completa
dos fluxos de capitais, e a mobilidade total à escala planetária das empre-
sas da produção e do comércio, acabando por atribuir ao sector financei-
ro o poder dominante na economia mundial.
Embora mais lentamente, cresce também a circulação das pessoas
(viagens de negócios e de turismo, migração transcontinental, facilitação
da concessão de asilo político, etc.), a expansão das tecnologias da infor-
mação e comunicação (TICs) e da comunicação de massas, a abertura e
mesmo abolição de fronteiras, tudo se conjugando no sentido de favore-
cer a diminuição da autonomia dos antigos Estados nacionais e o reforço
da interdependência, em termos económicos, sociais e políticos.
O avanço do processo é acompanhado pela reflexão sobre as diversas
dimensões do fenómeno da globalização: os riscos que representa (U.
Beck, 1992), o fim dos Estados Nacionais (K. Ohmae, 1995), o choque
de civilizações (S. P. Huntington, 1996), as transformações económicas
(P. Dicken, 1998)422.
E enquanto autores como D. Held e A. McGrew, D. Goldblatt, J.
Perraton (1999) analisam o confronto de argumentos entre “globalistas”
que defendem a “globalização” como nova etapa da história exigida pela
actual incapacidade dos Estados nacionais para resolver os problemas,
e os “cépticos” que defendem ainda existir neles a capacidade de con-
trolar os próprios territórios e de assegurar o desenvolvimento das suas
populações, outros, como J. A. Shoolte (2000), verificam como a globa-
lização continua a abrir o seu caminho apresentando-se, por vezes, atra-
vés de sinónimos que exprimem dimensões específicas de objectividade
incontestável:
314
– ocidentalização (algum mimetismo inicial, aliás em queda, pe-
rante a cultura ocidental),
– planetização (aproximação tecnológica de formas, experiências
e modos de vida de vários regiões do Planeta)423.
É esta situação factual que hoje se impõe e cujo impacto sobre a educa-
ção, na dimensão comunitária, enquanto processo de crescimento de todos
os membros da Família Humana, se por um lado representa uma abertura
de excelentes oportunidades, por outro revela a existência de entraves e in-
justiças que adiam e dificultam ainda mais a resolução dos problemas.
A questão maior tem a ver com o facto de que, por ausência de coor-
denação política responsável, a economia, à escala mundial, padece das
mais graves disfunções na justa distribuição dos recursos por todos os
membros da Família Humana.
Analisemos os acontecimentos.
Dentro da complexidade que caracteriza o funcionamento da econo-
mia mundial nas últimas duas décadas, vem-se observando a existência de
três grandes blocos: a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Europeu (OCDE) já constituída desde 1961 pela generalidade dos países
da Europa Ocidental mais os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova
Zelândia, a que vieram juntar-se o Japão (1964) e, mais recentemente o
México (1994), a República Checa (1995), a Coreia do Sul, a Hungria e
a Polónia (1996), e dentro da qual emerge a Tríade da União Europeia,
Estados Unidos e Japão; as regiões em vias de desenvolvimento ligadas
às diversas áreas de influência da Tríade e a partir das quais se regista,
na transição do milénio, a emergência dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia,
China); as regiões consideradas economicamente pouco interessantes e
que vão ficando fora do processo (África Subsariana, países do Centro da
Ásia e de algumas zonas do Pacífico.
E porque, na generalidade, os países do primeiro grupo se situam mais
no hemisfério Norte e os do terceiro mais no hemisfério Sul, tornou-se
corrente falar do Norte rico e do Sul pobre.
Deste modo, no que respeita à primeira dimensão do processo educa-
tivo – criar condições de vida – verifica-se que o funcionamento da eco-
315
nomia cresceu até atingir a dimensão global, mas não melhorou em qua-
lidade e tornou-se mesmo ameaçadora para toda a família humana, na
medida em que as divisões entre os seus membros que antes proliferavam
dentro das fronteiras de cada nação entre zonas rurais e urbanas, ou entre
classes sociais e diferenças de género, emergem agora (à escala planetária)
a gerar permanentes conflitos entre regiões desenvolvidas e deprimidas,
ou mesmo a desencadear guerras entre etnias, culturas e religiões.
Com efeito, constata-se que:
316
concentrados nos países em que grande parte da população é forçada a
viver com menos de 1 euro por dia, e os do Quarto Mundo que vivem
dispersos um pouco por todo a parte em condições ainda mais gravosas.
É este sentimento de gritante injustiça que, perante as consequências
da situação complexa e moralmente insustentável dessa faceta do proces-
so de globalização, na transição do Milénio começou a abalar consciên-
cias e a provocar reacções e manifestações, à escala mundial, por parte de
amplos sectores da Família Humana, de que mencionamos algumas das
mais significativas:
317
insegura. Sentem-se cada vez mais impotentes perante forças que es-
capam ao seu controlo. Assistiram à destruição das suas democracias,
à erosão das suas culturas”424.
318
demos concluir que o “terceiro mundo” pura e simplesmente desaparece
de cena, deixando todo o terreno à luta entre as três superpotências do
“primeiro mundo”, no “campo de batalha do “segundo mundo”.
Por coincidência, acontece hoje perante os nossos olhos que o de-
clínio dos combustíveis fosseis vem provocando a corrida aos bio-com-
bustiveis, ao correspondente desvio para esse fim dos cereais e forragens
que, somado à redução de áreas de produção agrícola nos anos anteriores
por pressão dos mesmos poderes económico-financeiros, conduz agora à
diminuição drástica dos recursos alimentares e à propagação da fome que
mata populações do terceiro mundo e começa a atingir as do segundo e
do primeiro.
A este propósito, Stiglitz evoca uma recordação.
319
O “mundo plano” e o desenvolvimento técnico, científico e
sapiencial
320
Para isso, a primeira condição a assegurar tem a ver com a aquisição e
difusão do conhecimento.
Ora os meios de informação e comunicação e os meios de comu-
nicação de massas, não chegam às populações de África Subsariana, da
Papua-Guiné e de grandes regiões da Ásia.
E mesmo que chegassem, a realidade social, cultural e política das
populações não lhes permitiria poder tirar qualquer proveito imediato
desses meios, na medida em que a par da miséria material continua a
prevalecer, nessas regiões, com uma deficiente rede escolar, uma elevada
taxa de iletrismo e de analfabetismo funcional.
E não vale apontar para as possibilidades do Futuro porquanto, como
vimos anteriormente, para esta geração de membros pobres da Família
Humana, não alfabetizados, esquecidos, marginalizados e excluídos,
como para tantas outras gerações semelhantes do Passado, o seu real
Futuro só pode ser o seu Presente. Que não lhes oferece condições de
vida mas sentenças de morte.
O modelo de ajuda aos “países menos desenvolvidos” (PMD) atra-
vés do fornecimento de bens materiais carece por isso de uma profunda
revisão: em vez de “desenvolvimento, a palavra chave deve passar a ser co-
nhecimento”. É esta a conclusão da Conferência das Nações Unidas para
o Comércio e Desenvolvimento (CNUCD) no Relatório com o título
Conhecimento, Aprendizagem, Tecnologia e Inovação (2007).
Sobretudo a partir da análise da evolução dos PMD no período 2000-
2005, marcado pela transição de países asiáticos para a categoria de países
em desenvolvimento e pela estabilização de países africanos na situação de
países menos desenvolvidos, verifica-se que “a concessão de mais ajuda ao
conhecimento, desde que dirigida para as áreas certas e nas modalidades
apropriadas, pode ser a chave” para a inovação nos processos tecnológicos
“independentemente de serem ou não novos para o resto do mundo”.
Mas o “novo modelo” deverá ter ainda em conta a atenção às caracte-
rísticas locais e ambientais da agricultura, indústria e serviços e, sobretu-
do, que o “esforço tecnológico não se limite apenas aos meios tecnológi-
cos mas também à compreensão tecnológica”428.
Para isso é vital a ligação destes países à rede internacional do conheci-
321
mento da qual até agora têm estado praticamente afastados, de tal modo
que ela não se faça por mera justaposição de partes, mas por verdadeiro
enxerto da cultura científica e tecnológica no tronco da cultura ancestral
das populações. E, mais do que tudo, importa que esta enxertia se faça
ressalvando o justo equilíbrio entre duas vertentes extremas: o natural
entusiasmo do ser humano pelo “prazer de descobrir coisas” que fun-
damentalmente caracteriza toda a História da Ciência, (John Gribbin,
2002) e o risco máximo que, no termo actual da mesma História da
Ciência, passou a representar para a sobrevivência das populações, da
Família Humana e do Planeta terra, o uso criminoso das modernas tec-
nologias por parte das organizações de terrorismo internacional, uma vez
que, ”nesta catástrofe múltipla, o pior que aconteceu foi o facto de a
tecnologia ter ultrapassado a maturidade política”, de tal modo que “o
novo século arrisca-se a ser dominado tanto pela anarquia como pela
tecnologia” (Robert Cooper, 2003)429.
Por razões históricas de diversa natureza, climáticas, económicas, sociais,
políticas, culturais, trata-se de países cujos cidadãos podem catalogar-se na
classe dos seres humanos “oprimidos” de que nos fala Paulo Freire.
Só a “revolução pedagógica” na dimensão planetária poderá constituir
para eles o caminho da “libertação”, lançando mão obviamente de to-
dos os recursos da tecnologia mas dentro das coordenadas propostas pela
pedagogia: criar condições de acesso e sucesso no processo de “conscien-
tização”, através do qual o ser humano se torne progressivamente capaz
de se movimentar dentro do universo (objecto) que o rodeia como pessoa
(sujeito) e de “dizer a sua própria palavra” no meio dos outros seres huma-
nos e ainda, através do “diálogo”, participar no processo de crescimento e
realização de toda a Família Terrestre.
Enquanto não avançarmos neste sentido e porque “não se pode afir-
mar que alguém liberta alguém ou que alguém se liberta sozinho, mas
que os homens se libertam em comunhão”, em vez de caminharmos para
a construção de um “mundo plano” de oportunidades iguais para todos,
continuaremos a cavar mais o fosso entre os membros das populações dos
diversos “mundos”.
Quer tudo isto dizer que a solução depende de todos nós. E é precisa-
322
mente neste ponto que reside a gravidade da situação: na raiz do analfa-
betismo funcional dos pobres constata-se a existência de outro ainda mais
preocupante, o analfabetismo funcional que prolifera em nós todos, fruto
da ignorância, distracção e/ou inconsciência quando não da falta de res-
peito ou mesmo desprezo pelo estatuto da nossa própria dignidade e da
dignidade inerente a todos os outros membros da Família Planetária.
É universalmente reconhecido, nos dias de hoje, que dispomos dos
meios financeiros necessários e suficientes para promover a educação à
escala mundial. Tem-se repetidamente feito notar que pequenas medidas
políticas de poupança, nas despesas militares e económicas e no lucro das
empresas multinacionais, são mais que suficientes para atingir essa meta.
Constata-se ainda que, à escala global, se encontram disponíveis os
recursos da ciência e da tecnologia para estimular o crescimento, não ape-
nas de alguns mas de todos, de acordo com as metodologias de educação
ao longo da vida, quer na fase de educação de adolescentes, quer na fase de
educação de adultos e em todas as dimensões envolvidas pela semântica do
verbo educar: alimentar, eduzir, conduzir, cuidar, medicar, pensar.
Nesta situação, o que é que nos falta? Falta-nos ir muito mais além
de todo o conhecimento especializado contido em todas as disciplinas
científicas do currículo escolar dos muitos cursos de formação dos di-
versos sectores profissionais (juristas, médicos, arquitectos, engenheiros,
etc.) e mesmo em todas as disciplinas de um curso de formação de edu-
cadores – História, Filosofia, Sociologia, Psicologia, Biologia, Economia,
Tecnologia, etc., da Educação. Falta-nos remontar até às disciplinas fun-
damentais que estudam o Ser Humano, a Família Humana de que ele se
considera membro, o Universo em que decorre a existência desde o seu
início até ao seu termo, em suma e porque existe “uma só atmosfera”,
“uma só economia”, “uma só lei”, e “uma só comunidade” (Peter Singer,
2003), as disciplinas que integram a Sabedoria ou Sapiência ou Sageza
Fundamental sobre o Homem, o seu Percurso e o seu Destino.
Em resumo, o processo exige de todos nós
323
– não apenas tecnologia, mas também energia espiritual, para
manter sob controle os riscos imprevisíveis de uma tecnolo-
gia de alta eficiência;
– não apenas indústria, mas também ecologia, que numa era
de globalização possa fazer frente a uma economia sempre
em expansão;
– não apenas democracia, mas também uma ética, que seja ca-
paz de enfrentar os maciços interesses das pessoas e grupos
que detêm o poder: num mundo globalizado, uma ética glo-
bal, um etos comum da humanidade, uma ética mundial430.
324
ção, o conflito, o confronto, a guerra por parte das entidades concor-
rentes, como sempre foi e continua a ser patente na história das políticas
individuais, de grupos e de nações.
Também não se confirma que seja encontrado na linha do saber. Não
se obterá através de toda a classe de hipóteses científicas, ideias e ideolo-
gias, mitos e utopias, doutrinas e dogmas que, ao longo da História, se
vêm sucedendo em, por vezes, magníficas weltanschaungen ou mundi-
vidências de iluminados da inteligência que durante algum tempo nos
ofuscam e depois desaparecem no vórtice da história.
Em questão de tamanha dificuldade e delicadeza, o processo nunca
será o de “chegar, ver e vencer” (tarefa sempre impossível para além das
curvas da história), mas de caminhar e descobrir, de descobrir caminhan-
do (“el camino se hace al caminar”), a passo ou em corrida, mas sempre
exigindo a determinação, a persistência e o esforço, por vezes agónico, de
quem percorre a maratona.
Também não poderá ser encontrado na linha do poder. Não, eviden-
temente, na linha do poder oculto, ocultado e clandestino por parte das
associações de malfeitores, gangs e máfias que hoje, tirando também parti-
do da era da globalização, estendem os tentáculos pelo planeta inteiro. A
eterna luta entre o bem e o mal, com todo o seu cortejo de inconsciência,
irresponsabilidade, mentira, corrupção e crime, leva-os a excluirem-se
eles próprios da convivialidade natural da Família Humana.
Mas não também na procura do poder por parte das organizações se-
cretas que hoje ainda proliferam, desde as que reconhecem as origens nos
sindicatos dos pedreiros construtores das velhas catedrais da Idade Média
às fundadas no século XX, incluindo as constituídas por altos dirigentes
da política, da banca e dos meios de comunicação social, decididos a
monitorizar o decurso dos acontecimentos à escala mundial. As naturais
e óbvias desconfianças que provocam em organizações similares foram
sempre de molde a suscitar reacções defensivas ou atitudes persecutórias,
num círculo vicioso sem fim à vista.
Menos ainda poderá ser encontrado o verdadeiro rumo no baralha-
mento das três linhas do ter, do saber e do poder que se vem revelando na
crise de 2008-2009, de caracter sucessivamente financeiro, económico,
325
social, até científico e fundamentalmente ético, permitida ou provocada
por uma dinastia de gestores inconscientes, ignorantes, e nalguns casos,
criminosos.
Finalmente, e esta é a nova situação na História da Humanidade, para
podermos verdadeiramente abrir caminho no Mundo Global de hoje,
o rumo certo já não poderá ser encontrada no âmbito de cada um dos
Estados Nacionais, mesmo funcionando em sociedade democrática, mas
requer-se a participação da sociedade civil planetária, a funcionar não
apenas nos moldes fragmentários das cidadanias nacionais de hoje, mas
imbuída do espírito de corpo que caracteriza o conceito que acima desen-
volvemos de cidadania terrestre.
E a cidade planetária só poderá subsistir se compreendida e vivida em
termos de Família Humana.
Em resumo crescemos num mundo a mudar. Em aceleração da mu-
dança. A sua direccionalidade não é clara. Precisamos de descobrir a di-
recção certa. Mas ela não se encontra na linha do ter, do saber ou do
poder, nem apenas na linha do ser mas do dever ser. Para isso precisamos
encontrar o eixo da roda em que tudo se move de maneira ajustada: o
mundo axial da moral e da ética.
Da raiz *IE Aks- que envolve a ideia de “eixo”, através do gr. áksōn,
onos e do lat. axis, is, recebemos em português áxis e eixo, no sentido de
linha recta, real ou imaginária, que atravessa o centro de um corpo e em
torno da qual esse corpo faz o seu movimento de rotação.
Numa aplicação imediata, diríamos que o eixo essencial do funciona-
mento de cada ser humano é aquele que o atravessa no sentido que vai da
sua origem ao seu fim e em torno do qual se operam todas as rotações da
sua existência, em torno de si próprio e/ou das coisas, das pessoas e dos
Valores que elege como seu centro, no sistema de “gravitação universal
humana” em que se insere.
É neste sentido que falamos aqui de o mundo axial e o crescimento
moral e ético
Moral, do lat. mos, moris, envolve a ideia de “costume, maneira de
agir determinada pelo uso” (contraposto a lex, legis, “obrigação estabele-
cida por decreto”). Emprega-se também, ainda que menos, para designar
326
o “carácter” da pessoa. No plural mores, pode significar também ou os
velhos costumes (“Oh tempora! Oh mores!” de Cícero) ou os traços do
carácter de uma pessoa, de um povo ou de uma época.
“Por mais diferentes que sejam, todas as culturas incluem certos prin-
cípios comuns.
Nenhuma cultura tolera a exploração de seres humanos.
Nenhuma religião permite que se mate o inocente.
Nenhuma civilização aceita a violência ou o terror.
A tortura é repugnante para a consciência humana.
A brutalidade e a crueldade são horríveis em todas as tradições.
Em suma, estes princípios comuns, que são partilhados por todas as
civilizações, reflectem os nossos direitos humanos fundamentais. Estes
327
direitos são muito apreciados e acarinhados por toda a gente, em toda
a parte.
Assim, a relatividade cultural nunca devia ser usada como pretexto para
violar os direitos humanos, uma vez que estes direitos incorporam os
valores mais fundamentais das civilizações humanas.
É preciso que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja uni-
versal, aplicável tanto a Leste como a Oeste. É compatível com toda
a fé e religião. Fracassar no respeito pelos direitos humanos só mina a
nossa humanidade.
Não destruamos esta verdade fundamental; se o fizermos, os fracos
não terão uma alternativa”432.
“Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões.
Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as
religiões.
Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos
globais.
O nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um etos global, uma
ética para o mundo inteiro”433.
328
– equidade
– direitos humanos e responsabilidades
– democracia
– protecção de minorias
– resolução pacífica de conflitos e negociação justa434.
É ainda neste sentido que Edgar Morin, no livro “Os sete saberes para
a educação do futuro”, tudo faz convergir para o último capítulo “Ética do
género humano” em que, a partir da premissa de que “a concepção com-
plexa do género humano comporta a tríade individuo – sociedade – espé-
cie”, apresenta, como sétimo e último saber sobre a educação, a Ética do
Género Humano435.
Trata-se de continuar a abrir o caminho em que verdadeiramente po-
derá cumprir-se todo o ser humano, dentro da Família Humana e em
harmonia com a ordem do Universo.
329
Realização, enquanto acto ou efeito de realizar-se, vem de real (do lat.
res, rei, “coisa”), ou seja, o que é concreto, objectivo, sensível, autêntico,
contraposto a abstracto, subjectivo, artificial, ilusório.
No caso vertente do processo educativo e num sentido de algum
modo contraditório com as próprias palavras, trata-se de o movimento
de utilizar as coisas no sentido de criar condições para que as pessoas se
desenvolvam em todas as suas dimensões atinja, de facto, a sua meta de
realização das pessoas nos Valores.
Neste percurso a caminho da própria realização, marcada por etapas,
metas, finalidades, não se trata de as perspectivas, os desejos, os sonhos, os
ideais das pessoas se concretizarem em realidades materiais mas, pelo con-
trário, de as coisas materiais proporcionarem condições às pessoas para elas
se realizarem nos Valores. E esta realização não acontecerá, como por vezes
chegamos a pensar, atingindo realidades exteriores, mas identificando-nos
com os padrões de realidade que transportamos em nós próprios.
E tais padrões poderão proporcionar esse resultado precisamente por-
que têm peso, substância, consistência, importância, relevância, porque
têm valor.
Derivado do lat. văleo, ēs, uī, ĭtum, ēre, “estar de saúde”, ser saudável,
forte, vigoroso, corajoso no combate e, como cognato de valetudo, ĭnis,
“saúde”, o lexema português valor transporta o sentido originário de ca-
pacidade ou qualidade pessoal, padrão de excelência física e, por extensão,
também intelectual e moral, que impõe admiração e respeito. Encontra-se
também semanticamente ligado ao adjectivo grego áksios, a, on, “ponderá-
vel, que tem peso” donde nos vem axiologia, “ciência dos valores”.
Sempre tributário desta sua origem, o termo valor foi no entanto ad-
quirindo, ao longo da História e nos diversos campos da existência, ou-
tros significados:
330
– propriedade do que corresponde às normas ideais do seu tipo;
– na filosofia medieval e em correspondência com os conceitos
transcendentais (ser, uno, verdadeiro, bom e belo), “tudo aquilo
que é não apenas desejado mas desejável”;
– na filosofia moderna dos valores, em oposição a ser, “aquilo que
não apenas é mas deve ser”;
– na moral e na ética, tudo aquilo que pode proporcionar (valor
ideal) ou proporciona de facto (valor real) a realização da natu-
reza do ser humano.
Por outro lado e porque no eixo essencial da roda que monitoriza todo
o existir humano deparamos com alguns valores preponderantes na ori-
gem, no processo e no seu termo, importa prestar-lhes especial atenção.
Na origem, o valor (máximo e único) é a dignidade humana que to-
dos recebemos gratuitamente no início e mantemos inalterável até ao
331
termo das nossas vidas, em condições de absoluta igualdade com todos os
outros seres humanos.
Ao longo do processo de crescimento e de maturação humana, nas
condições, favoráveis ou desfavoráveis, do meio ambiente físico, intelec-
tual e moral em que se realiza e na medida em que são exercitadas a
consciência e a liberdade emergentes, vai-se gerando a configuração da
nossa verdade pessoal.
No termo, é feito (por vezes, visivelmente, já nos tribunais nacionais
ou no Tribunal Internacional da Haia) o exame ou avaliação ou julga-
mento desse percurso, à luz das coordenadas da dignidade recebida e da
responsabilidade exercida, em termos de justiça universal.
Por economia de espaço e tempo, passamos a considerar estes valores
fundamentais e integradores de todos os outros no caminho da educação:
a dignidade humana, a verdade pessoal, a justiça universal.
A dignidade humana
332
onde os seres humanos tenham a liberdade de pensar e de crer, libertos
do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta aspiração do
homem”.
Do texto brotam assim duas implicações: que a dignidade é um dom
recebido por cada um de nós e que importa preservá-lo a todo o custo.
O facto de a dignidade ser vista como um dom recebido, consta na
afirmação “cada um pode usufruir de todos os direitos e de todas as liber-
dades proclamadas na presente Declaração, sem distinção alguma, tanto
de raça, como de cor, de sexo, de língua, de religião”, etc.436
Esta maneira de entender a dignidade condiz de todo, como tivemos
ocasião de referir anteriormente, com a raiz *IE Dek,- Dak-, “receber” de
que a palavra deriva.
Interessante é ainda e o facto de existir um apertado relacionamento
semântico entre, por um lado, o gr. áksios, a, on (ponderável, valioso,
digno, que merece; conveniente” e, por outro lado, o adjectivo lat. dig-
nus, a, um, “digno de, conveniente a; que merece; justo, honesto” e ainda
o verbo lat. decet, “convir, ser conveniente, decente, decoroso”. Ganha
assim consistência a aproximação entre axiologia, “ciência dos valores” e
dignidade, “valor fundamental”.
Por outro lado, se olharmos para a História da Humanidade, verifi-
camos que esta situação é reconhecida desde a antiguidade até ao nosso
tempo.
Encarando os Valores na sua dimensão de finalidades do nosso agir
e ao procurar a resposta à pergunta porque os procuramos, vem-se acen-
tuando o espanto de autores recentes perante um horizonte inesperado:
os valores não aparecem em resultado das nossas investigações nem são
passíveis de justificação racional, mas apresentam-se como realidades in-
demonstráveis, dados. Assim pensa H. Hannoun (1995) citando autores
antigos e recentes: “nós dizemos que queremos a felicidade, mas dizer que
nós escolhemos ser felizes não está de acordo com os factos” (Aristóteles);
“estes fins só podem ser dados” […] “nós os desejamos, os amamos, aspi-
ramos a possuí-los” […] “a função da inteligência limita-se a multiplicar
as vias que permitem alcançá-los” (E. Goblot)437.
Trata-se portanto de realidades que se afirmam não como conclusões
333
do conhecimento racional ou objectivos de um projecto pessoal ou co-
lectivo, mas como presenças, não previamente justificadas pela inteligên-
cia nem escolhidas pela liberdade, que se impõem ao sentimento do ser
humano. Trata-se, simplesmente, no plano racional de dados e no plano
moral de dons.
A segunda implicação tem a ver com a necessidade de defendermos a
todo o custo esta dignidade pessoal de cada um de nós.
Neste sentido, entre outros autores, Octávio Fullat, vem atribuindo
a máxima relevância às finalidades e valores na educação. E reivindican-
do sempre, contra a tendência dos políticos para considerarem apenas a
ficção do homem universal, que tenhamos em conta a situação de cada
homem concreto.
Já em “Las finalidades educativas em tiempo de crisis” (1982), procura
abrir caminho entre, por um lado, quanto se tem dito sobre o facto de a
política tentar sempre controlar a educação (Platão, Maquiavel, Hobbes,
Hegel) e, por outro, as propostas da “suspeita” (Nietzsche, Marx, Freud),
do “anarquismo” (Max Stirner), da “desescolarização” (I. Illich). Neste
sentido, através de um “tratamento irónico”, “para desbaratar um pou-
co a fome devoradora dos políticos de todos os quadrantes, mas prin-
cipalmente dos políticos descarados, isto é, dos totalitários”, através do
discurso filosófico, numa atitude moral e em jeito de franco atirador,
punha em confronto com os “fins formais” do “ser humano universal”
correntemente propostos pelos poderes políticos e aceites pelos cidadãos
– felicidade, paz, liberdade, democracia, justiça, criatividade, participa-
ção, fraternidade – os “fins materiais estilizados” de cada pessoa humana
propostos por ele próprio:
– prazer e ventura
– utopia; não ilustração
– morte e desenlace
– ser – para – outro
– a fuga artística
– Deus na esperança
– a dúvida criadora
334
– desde nada com ironia
– o saber da ignorância
– talante moral438.
A Verdade
335
de, fraternidade, consciência, liberdade – e de todos os valores dela deri-
vados: os direitos (e os deveres) à vida, à segurança, e a todas as condições
para sobrevivermos, crescermos e nos realizarmos.
É necessário que avancemos também na conjugação do verbo reconhe-
cer e que este reconhecimento
336
se existe ou não existe em nós esta correspondência, através dos processos
de experiência, conhecimento, investigação, abertura no sentido amplo da
serendipidade e sabedoria.
Mas acontece ainda que a nossa existência, exactamente devido a esta
nossa condição de seres conscientes e livres, decorre na corda bamba do
bem e do mal, podendo seguir o caminho recto da correspondência – ver-
dade – entre o que recebemos e o que fazemos, ou descambar para outros
quaisquer caminhos, falhando assim na verdade e caindo na mentira.
Merece por isso a pena, antes de abordarmos os métodos para atingir
a verdade, deter-nos no significado da mentira.
337
acautelar, por todos os meios, a correspondência entre a nossa dignidade
e a nossa vida.
E o método-base para a verificação da correspondência que chama-
mos verdade situa-se na experiência.
A dignidade da pessoa humana abriga, no seu cerne de consciência e
liberdade, a capacidade de verdade e de mentira, de bem e de mal.
A estrutura pessoal de cada um de nós, integrada pela inteligência ou
capacidade de verdade e de erro, e pela liberdade ou capacidade de bem e de
mal, encontra-se naturalmente sujeita a todas as ilusões e tentações e muitas
vezes é, de facto, utilizada nos sentidos mais divergentes, a atingirem níveis
máximos de erro, mentira, violência e crueldade. Em resultado disso, este
mundo tornou-se absolutamente perigoso e nele a pessoa, sujeita a todos os
riscos, é posta à prova e chamada a realizar ensaios e tentativas para os ultra-
passar e, no limite, alcançar a sabedoria necessária para abrir o seu caminho.
Este encadeamento das fases do processo que vai do perigo, prova, ten-
tativa, até ao saber de aí resultante, revela o percurso da experiência ou ha-
bilidade adquirida que, desde sempre constituiu o método fundamental
da existência humana.
338
“O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
Família Humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo” […].
“o desconhecimento e desprezo dos direitos do homem conduziram a
actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade” […]
“o advento de um mundo onde os seres humanos tenham a liberdade
de pensar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado
como a mais alta aspiração do homem”442.
339
A este nível da serendipidade, é interessante constatar que a maior e
primeira grande descoberta que todos nós, ao longo da vida, acabamos
por fazer, é a da nossa própria existência e da dignidade que a envolve, em
nós e também em todos os outros.
Esta descoberta vem sempre acompanhada pelo sentimento de que a
nossa dignidade foi de facto recebida como puro dom, até porque, ante-
riormente a existirmos, a nossa inexistência não nos permitia procurá-la.
Mas a dupla experiência básica do reconhecimento e desconhecimento
da dignidade humana evocada no Preâmbulo da Declaração Universal dos
Direito do Homem permite-nos também aceder ao elo mais elevado da ca-
deia de métodos para atingir a verdade, nos termos da continuação do texto:
340
dades. A principal fonte da ética mundial é a ideia de vulnerabilidade
humana e o desejo de aliviar o sofrimento de todas as pessoas, na
medida do possível. Outra fonte é a crença na igualdade moral básica
de todos os seres humanos. A injunção para tratarmos os outros como
gostaríamos de ser tratados encontra menção explícita no budismo,
cristianismo, confucionismo, hinduísmo, islamismo, judaísmo, taois-
mo e no zoroastrismo e está implícita na prática das outras fés”444.
A Justiça
341
Se os nossos sentimentos mais delicados e profundos emergem da
nossa dignidade (recebida) e os nossos conhecimentos mais subtis e ela-
borados perseguem a verdade (ou correspondência entre o que somos e o
que pensamos), os nossos comportamentos tornam-se coerentes e ajusta-
dos na medida em que prosseguem o caminho do direito e da justiça.
Admite-se que a palavra latina jūs, jūris, “direito, justiça”, corresponde
originariamente a uma fórmula religiosa, ainda sobrevivente nas expres-
sões latinas jūra legesque “os direitos (recebidos) e as leis (escritas)” e jūs
jūrandum, “juramento”. Mas já no latim clássico, aparece mais no sentido
laico de “direito, justiça”, envolvendo tudo o que diz respeito:
342
Humana, como nossos irmãos (incluindo nesta categoria antropológica
os nossos pais) e recebemos todas as coisas do Universo como recursos para
empreender a caminhada.
Se recebemos tudo isto, tudo isto se integra na categoria de dom.
No que diz respeito à segunda questão, importa recordar que o dom
fundamental que recebemos, a dignidade humana, caracteriza-se essen-
cialmente pela liberdade.
Mas a liberdade consiste, não em “escolhermos” entre o bem e o mal,
entre os valores e os pseudo ou contra-valores, mas em fazermos o que
realmente queremos (o bem), em procurarmos o que está de acordo com
o mundo dos valores, objecto de “a mais alta aspiração do homem”.
A liberdade consiste ainda na capacidade de, neste mundo semeado
de perigos, seduções e forças do mal, após eventuais cedências, falhas e
quedas, reagir, lutar, retornar ao e refazer o caminho direito da justiça.
Mas a liberdade consiste ainda em muito mais. Porque todos os outros
membros da Família Humana receberam igualmente a liberdade e a cor-
respondente capacidade do seu bom e mau uso, a nossa própria liberdade
consiste ainda em procurarmos contribuir para que todos a utilizem bem
e, no caso de a utilizarem mal, de recorrermos a todos os meios legítimos
para defendermos o caminho direito comum, mas com total respeito pela
dignidade de todos os seres humanos.
Em directo confronto com o “caminho torto” do mundo da miséria,
da mentira e do terror, a nossa liberdade consiste, afinal, em manter-nos
invariavelmente no caminho direito e defendê-lo por todos os meios legí-
timos e, ao mesmo tempo, aceitar que este dom da liberdade concedido a
todos nós seja utilizado por muitos no sentido mais negativo possível, e
suportar as eventuais terríveis consequências.
Entre pessoas, seres conscientes e livres, a primeira resposta positiva ao
verbo receber consiste no verbo aceitar.
Levanta-se aqui o problema crucial, no percurso da existência huma-
na, que tem a ver com a alternativa entre a aceitação do dom da liberdade
concedido a todos os seres humanos e a revolta pessoal que afecta grande
parte dos membros da comunidade humana perante as consequências de
ele ser mal utilizado pelos ouros ou até por eles próprios.
343
Trata-se, assim, de aceitarmos simultaneamente (ou não e, neste caso,
de nos revoltarmos) a liberdade, nossa e alheia e todas as consequências
resultantes do seu bom ou mau uso: por um lado, beneficiarmos de tudo
o que há de digno, verdadeiro, bom e belo, o mundo da abundância,
da justiça, da solidariedade, da compreensão, da bondade, da felicidade;
por outro lado, suportarmos e resistirmos a tudo o que há de indigno,
falso, mau e feio, ao mundo da miséria, da ignorância, da violência, do
terror e do crime, sem no entanto cairmos na revolta contra a Ordem do
Universo que permite e existência de seres conscientes e livres causadores
de todos estes males e, menos ainda, sem pretendermos arrogar-nos o
direito de os atacar ou destruir ou “fazer justiça pelas nossas mãos”.
Porque esta é a realidade do Mundo. Porque este é o Mundo real em
que vivemos e no qual podemos, livremente, ou inserir-nos, participar
e crescer ou revoltar-nos passando a negá-lo, combatê-lo, destruí-lo, se-
guindo caminhos que conduzem a nenhuma parte.
Parece mesmo que, ao longo da História da Humanidade, tem pre-
valecido a segunda alternativa e que, na economia geral do Universo,
deverá acabar por prevalecer a primeira. Pelo menos é esta “a mais alta
aspiração do Homem”.
De qualquer modo, só o ser humano totalmente consciente de toda a
verdade do Universo e verdadeiramente livre no sentido de aceitar todo
o bem e resistir a todo o mal, se encontra no caminho direito e em condi-
ções de se tornar arauto da justiça.
Resta-nos a última questão: para onde se dirige o caminho direito?
Humanamente simples de compreender é o facto de que tendo arran-
cado, na sua origem, do dom, o caminho direito só pode conduzir, no seu
termo, ao dom.
Por outras palavras, a quem está a receber, o caminho da justiça natu-
ralmente impõe dar.
Dar, verbo directamente derivado do verbo latino dō, ās, dědi, dātum,
dăre, “dar, oferecer, presentear, entregar, ceder, etc.”, encontra-se relacio-
nado com a raiz *IE Dhe- que envolve a ideia geral de “colocar”, pôr algo
em aras de o deixar à disposição de alguém sem exigir contrapartida, no
sentido aprofundado de dom.
344
De facto, ao longo da História, a justiça aparece sempre estreitamente
ligada à conjugação do verbo dar.
E em duas linhas claramente definidas: a linha horizontal das relações
entre os membros da Família Humana e a linha vertical das relações da
Família Humana com o Universo Transcendente.
Na linha horizontal das relações entre os membros da Família Humana,
ao longo da História, encontramos três tipos fundamentais de justiça dis-
cerníveis através das correspondentes significações atribuídas ao verbo dar.
É esta última ideia de justiça que, ficando ainda muito longe das neces-
sidades reais de todos os membros da Família Humana como acabamos
de ver nos parágrafos anteriores, já vem prevalecendo nos documentos
das Organizações Internacionais e se vem afirmando nas preocupações de
muitos responsáveis políticos.
É também nesta linha de pensamento que, ao longo deste livro, vie-
345
mos insistindo no contexto-chave de Família Humana. Dentro de uma
família a funcionar normalmente, não se dá a cada membro, criança ou
idoso, são ou doente, normal ou deficiente, “o que merece” ou “o que
lhe pertence” no sentido da justiça romana, mas “o que precisa”, ou seja,
tudo aquilo de que tem necessidade naquele momento e naquelas con-
dições ou, se quisermos ainda, “o que merece” ou “o que lhe pertence”
como membro da mesma e única família.
Trata-se afinal de, sempre e em tudo, dar a cada um o que precisa de
receber.
Mas vendo agora as coisas na linha vertical da relação entre quem rece-
be e quem dá, dentro de todo este Universo que nos envolve e transcende,
a justiça desvenda-nos outro horizonte novo e deslumbrante.
Se receber pressupõe a situação de carência, dar é sempre resultado da
abundância. Só dá quem pode, ou seja quem, para além de ser, não se
deixa dominar pelas coisas nem se fecha em si próprio, mas se abre aos
outros e ao Outro.
Por outro lado, o verbo dar pode ser conjugado em muito diversas
medidas. E a medida do verdadeiro dar não tem a ver com a quantidade
da abundância mas com a qualidade do dom.
346
dimensões da educação ao longo da vida, da educação comunitária e da
educação ecossistémica.
347
– Aceitar receber tudo o que implica a dignidade-liberdade, pró-
pria e alheia, é já entrar no processo.
– Retribuir com o esforço de criar as melhores condições para
crescermos todos, é participar nele em força.
– Restituir-se é jogar em plenitude este jogo real da Vida e do
Universo.
348
•
CONCLUSÃO
349
durante a II Guerra Mundial e a experiência paralela de que “o reconhe-
cimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e
dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberda-
de, da justiça e da paz no mundo”, conduziu inevitavelmente à conclusão
de “que o advento de um mundo em que os seres humanos tenham a
liberdade de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado
como a mais alta aspiração do homem”.
A progressiva consciencialização desta experiência global que inte-
gra o reconhecimento das piores falhas, dos mais elevados sentimentos
e das mais profundas aspirações do Homem, vai obrigar a rever tudo na
História da Humanidade e em três dimensões:
350
Outro factor de carácter transcendente diz respeito ao sentimento de,
porque pertencemos à mesma Família Humana, nos sentirmos obrigados
a encarar melhor a gestão da Casa (Oikos) em que habitamos, o Planeta
Terra. Esta obrigação vem sendo mais sentida a partir do momento em
que tomámos consciência aprofundada, para além da nossa unidade de
origem, também da nossa unidade de destino (“ou sobrevivemos juntos
ou perecemos juntos”) perante as ameaças ao Planeta, quer de “morte sú-
bita” a partir de um holocausto nuclear (década 60), quer de “morte len-
ta” por força da degradação crescente das condições de vida (década 70).
Mas o factor decisivo vai ligado ao ponto de vista mais elevado e
abrangente (“vê mais longe a gaivota que voa mais alto”, Richard Bach)
entretanto adoptado pela Comunidade Planetária na adopção do crité-
rio para discernir o essencial: não passa tanto pela nossa relação com as
coisas, mas pela relação entre as pessoas e, sobretudo, pela relação que
mantemos com o Mundo dos Valores.
De facto, o Mundo Novo cujo advento responde à nossa “mais
alta aspiração” e de que nos falam os documentos das Organizações
Internacionais:
351
mesmos, queremos passar do mundo em que habitamos e que bem co-
nhecemos, onde campeia a pobreza e a miséria, o engano e a mentira, o
terror e a violência, para o mundo em que pretendemos habitar, o mun-
do do bem-estar e da abundância, da transparência e da verdade, do aco-
lhimento e do amor. Este Mundo Novo é hoje objecto da “mais alta aspi-
ração” de todos nós, da “fé” e da procura de uma “concepção comum” de
todos os povos, do “ideal comum” de todas as Nações (Unidas).
Mas levanta-se o problema: qual é o caminho para lá chegar?
E, mais uma vez, impõe-se a constatação já feita noutras épocas da
História, desde a Corte Imperial da China de Confúcio até à polis da
Atenas dos Sofistas e de Sócrates: o caminho entre esses dois mundos é a
educação.
Só que agora o problema adquiriu novas dimensões: trata-se da educa-
ção de toda a Família Humana, a morar em toda a superfície do Planeta
Terra e cada vez mais consciente de que o essencial não se reduz às coisas
mas passa pelas pessoas na sua relação com os Valores.
Em consequência de tudo isto, o conceito de educação aparece pro-
fundamente modificado.
A partir destas novas exigências, perdem força algumas coordenadas
da educação tradicional:
352
tual deixando de parte as outras dimensões e assim, no limite,
assegurar apenas a informação e não a formação do homem;
– não pode entender-se no sentido de formação exógena, à manei-
ra do artista que introduz uma forma numa matéria, mas sim
no sentido de formação endógena, própria dos seres vivos, em
que a forma brota da matéria quando ao ser vivo são criadas as
condições para que se desenvolva e, por isso mesmo, não basta
a formação profissional para lidar com as coisas e/ou os aconte-
cimentos, nem mesmo a formação social para saber integrar-se
nas comunidades, mas exige-se a formação pessoal que ajude o
ser humano, com todo o respeito pela sua dignidade, a procurar
e encontrar a própria realização nos Valores.
É esta formação integral que, ao longo das últimas décadas, se veio
clarificando através de fórmulas como a formação inicial e a formação con-
tínua, correspondentes às duas fases, educação de adolescentes e educação
de adultos, do processo de educação ao longo da vida.
353
florescimento de toda a criatividade que lhe é própria enquan-
to ser vivo, de conduzir (dūco) no sentido de procurar que ele
avance pelo “caminho direito” dos Valores, correspondente ao
conceito originário de justiça;
– a metodologia, no sentido de a necessária “orientação” exercida
pelos pais e/ou outros educadores se processar sempre de acor-
do com o ritmo de desenvolvimento dos adolescentes, através
da conjugação dos verbos complementares de cuidar, medicar,
“pensar”;
– o critério último de sempre agir de acordo com o interesse supe-
rior do adolescente.
354
– superarmos, de uma vez por todas, quanto há de negativo nas
perspectivas de vistas curtas confinadas aos pequenos ou gran-
des nichos do Planeta ocupados nos tempos da diáspora origi-
nária pelos diversos grupos humanos (estepes da Ásia Central
ou montanhas dos Andes, gelos das regiões polares ou ilhas dos
Mares do Sul, desertos do Sara ou selva da Amazónia) e nas
civilizações e culturas delas resultantes, responsáveis ainda hoje
pela construção de muros, fabrico de armas e proliferação de
guerras cuja tecnologia avançada passou a pôr em risco a pró-
pria sobrevivência da Humanidade;
– não adiarmos mais o processo da tomada de consciência, aliás
apoiado pelo progresso espantoso dos meios de comunicação
(TICs, telemóveis, Internet), de que o Planeta Terra é verda-
deiramente a nossa Pátria (terra dos nossos Pais), a nossa Nação
(Terra em que todos nascemos), e de que somos portadores da
“cidadania terrestre” e, como tais, “livres e iguais em dignidade
e direitos”;
– interiorizarmos definitivamente o facto, hoje reconhecido pela
ciência, de todos fazermos parte da mesma e única Família
Humana e de a verdadeira relação existente entre nós ser, não de
camaradas, companheiros, sócios ou colegas, mas de irmãos;
– contribuirmos todos para a gestão correcta dos bens da herança
comum, colocando os valores materiais ao serviço das pessoas,
reconhecendo os valores pessoais decorrentes “da dignidade ine-
rente a todos os membros da Família Humana e dos seus direi-
tos iguais e inalienáveis” e a necessária inclusão de todos (mino-
rias, imigrantes, estrangeiros, etc.) na vida normal da Família,
e respeitando os valores transcendentes que incitam a atribuir
“prioridade” aos mais carenciados e desfavorecidos.
355
que a Família Humana habita, não se reduz à dimensão física
que mal conhecemos e só até onde chegam os nossos instru-
mentos de pesquisa, mas continua na dimensão gnoseológica
das nossas extrapolações, hipóteses, teorias, sonhos e utopias,
e ainda mais além na dimensão axiológica das nossas angús-
tias acerca das razões do ser e do saber, dos ideais e dos valores,
das origens e dos fins e, por tudo isto, assume o estatuto do
Transcendente e do Sagrado;
– que o Planeta Terra, enquanto compartimento minúsculo que
ocupamos dentro desta Morada, merece todo o respeito e exige
todo o cuidado para não o deixarmos destruir, quer por obra de
um holocausto nuclear indutor da sua “morte súbita”, quer pela
degradação das condições de vida dos ecossistemas sectoriais ou
pela agressão ao frágil equilíbrio do ecossistema global, suscep-
tíveis de lhe provocar a “morte lenta”;
– que se impõe colocar todos os recursos da Terra, dos mais
abundantes aos mais escassos, ao serviço de todos os membros
da Família Humana, tendo presente que a fome se encontra nos
antípodas da educação (lat. “educare” = alimentar, nutrir);
– que importa desenvolver ao máximo o potencial do conhecimen-
to e da ciência para o bem da Humanidade, acautelando sempre
que nunca a tecnologia ultrapasse a maturidade política;
– que todos os comportamentos devem reconhecer o primado da
ética e o culto dos valores, da dignidade, da verdade e da justiça.
356
A reflexão aprofundada leva-nos a reconhecer que, perante a alterna-
tiva da dialéctica clássica, ser ou não ser, situámo-nos a meio: movemo-nos
entre os dois extremos, crescemos, desenvolvemo-nos.
De facto, a constatação radical da nossa existência é que, verdadeira-
mente, nem somos (< lat. sedēre, “estar sentado” < * IE Es-, “ser”) nem es-
tamos (< lat. stare, < * IE Sta-, “estar de pé”), mas caminhamos, andamos,
passamos, vamos.
Sobre este ponto, torna-se imperativo e urgente ultrapassar a nossa
mentalidade estática que paira à superfície das coisas, pousa o olhar nas
suas aparências ou estados sem tomar consciência de que no interior das
próprias realidades materiais, segundo a moderna ciência, é tudo energia,
movimento e dinamismo.
No limite, poderíamos dizer que não há substantivos mas apenas verbos.
O problema é que todos os verbos mencionados ao longo deste livro, no
sentido de esclarecer a semântica do verbo caminhar, aparecem tolhidos por
outros significados envolventes, discrepantes, sub-reptícios e até contradi-
tórios, a reflectir exactamente a selva que prevalece no mundo da educação
humana em que seguimos caminhos paralelos, divergentes, afastados, trun-
cados, cruzados ou opostos, em forma de vias, rampas, estradas e alamedas,
mas também de sendas, veredas, trilhos, picadas, carreiros, atalhos, desvios,
quelhas, vielas, becos, betesgas (que conduzem a nenhuma parte).
E é, muitas vezes, a educação que leva a esses caminhos, e são esses
caminhos que, tantas vezes, destroem a educação.
Vejamos mais concretamente.
357
dobrar, desenrolar…mostrar…revelar”, recebemos, por um
lado, expandir e expansão, etc. e, por outro lado, passo e compas-
so, passar e passado, passear e passeio, etc.
– Mover: do lat. movēo, es, movi, motum, ēre, “pôr(-se) em mo-
vimento, mover(-se), agitar(-se)”, recebemos indiscriminada-
mente mover, amover e demover, comover e emocionar-se, mobili-
zar e desmobilizar, momento e motivo, motim e amotinar, móvel e
imobiliário, motor e motriz, promoção e remoção, etc.
– Desenvolver(-se): da raiz * IE Wel-, Welw-, “rolar, rodar”, rece-
bemos, através de numerosos lexemas latinos, voluta e volume,
volúvel e vulva, voltar e emborcar, circunvolução e devolução, en-
volver e desenvolver, revolver e revolução e, directamente de vocá-
bulos de outras línguas modernas, evolução, arquivolta, desenvol-
to, revólver, válvula, vale, valsa, etc.
– Verter: da raiz * IE Wer-, “tornar, girar, torcer”, através do lat.
vērgo, is, ēre, “voltar, virar, vergar”, recebemos convergir e diver-
gir, e através do lat. verto, is, ěre e dos seus compostos, rece-
bemos verter e inverter, adverso e aversão, converter e conversão,
investir e inversão, perverter e perversão, retroverter e reverter, revés
e revesar, subverter e subversão, transverter e transversão, travessa e
travesseiro, travessia e travessura, etc.
– Ir: do verbo lat. eo, īs, ĭi ou īvī, ītum, ire, para além de recebermos,
do particípio passado, íter e itinerário, etc. herdamos, através dos
verbos latinos formados de diversas preposições + eo, inúmeros e
contraditórios semantemas em cujo cerne encontramos incrusta-
do o mesmo i do verbo ir: ádito, âmbito, início, intróito, circuito,
coito, êxito, súbito, pretérito, rédito, trânsito, óbito, etc.
358
E todos eles têm sido e continuam, legitimamente, a ser objecto de
investigação e estudo nas diferentes áreas científicas das universidades e
centros de investigação do mundo inteiro.
Por outro lado, todos compreendemos que a verdadeira sabedoria do
ser humano não consiste em descobrir compreender e seleccionar as vere-
das, muitas das quais podem conduzir a nenhuma parte, mas em acertar
com o destino. Ou pelo menos com o caminho que a ele conduz.
359
da educação parece exigir que, pelo comportamento ético, todos nós pro-
curemos também restituir tudo, o que temos e o que somos, uns aos outros
e em homenagem à Ordem da Família Humana dentro do Universo.
Do lat. ordo, ĭnis, “ordem (dos fios na trama); fila, fileira, alinhamen-
to”, recebemos ordem e desordem, ordinal e ordeiro, ordenhar e ordenança,
contra-ordem e subordinação, ordinário e extraordinário, etc.
E também coordenar e coordenada.
Podemos dizer que esta subordinação à Ordem geral do Universo, co-
ordenando todas as dimensões da nossa vida, de acordo com a hierarquia
dos Valores da Dignidade, da Verdade e da Justiça, constitui a Coordenada
essencial do Caminho.
NOTAS
Capítulo I
363
11 UNESCO, Rapport Sommaire de la Conférence Internationale de
l’Éducation des Adultes, Elseneur, Danemark, 16-25 Juin, 1949.
Paris.
UNESCO. World Conference on Adult Education, Montreal, Canada,
21-31 August, 1960. Final Report. Paris.
UNESCO. Congrès Mondial des Ministres de l’Éducation sur
l’élimination del’analphabétisme. Tehéran, 8-10 Septembre, 1965.
Rapport final. Unesco/ED/2l7.
UNESCO. Rapport Final, Troisième Conférence Internationale sur
l’éducation des adultes réunie par l’Unesco, Tokio, 25 Juillet - 7
Août, 1972. Paris.
UNESCO. International Symposium for literacy. Persepolis, 3-8
September, 1975, Declaration of Persepolis. Paris.
UNESCO. Recommendation on the development of adult educa-
tion adopted by the General Conference at its nineteenth session,
Nairobi, 26 November, 1976. Paris. Trad. port. da UM, Braga,
1977 e da DGEP, Lisboa, 1978.
12 Rogers, Carl R. (1961). On becoming a Person. Trad. port. (6ª ed;
364
20 UMDP, UNESCO, UNICEF, World Bank (1990). World
Declaration on Education for All and Framework for Action to
Meet Basic Learning Needs, Jomtien, Thailandy, 5-9 Mars, 1990.
New York: UNICEF – House.
21 Dias, J. Ribeiro (1979). A Educação de Adultos. A Pessoa e a
Comunidade. Braga: Universidade do Minho. Dias J. Ribeiro (1999).
“Educação Comunitária” in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de
Cultura. Lisboa-São Paulo: Editora Verbo, 9, Cols. 1241-1244.
22 UNESCO. Rapport Final. Troisième Conférence Internationale
sur l’éducation des adultes réunie par l’Unesco. Tokio, 25 juillet-7
août, 1972. Paris.
23 Maheu, R., in UNESCO, Rapport Final…Tokio, p. 74.
24 Estulin, Daniel (2005). The road to tyranny–-Total Enslavement.
Trad. port. (2005). Clube Bilderberg. Os Senhores do Mundo.
Lisboa: Círculo de Leitores.
25 Ver o desenvolvimento deste projecto em Commission on
Global Governance (1995). Our Global Neighborhood. The
Report of the Commission on Global Governance. Oxford: Oxford
University Press.
26 Bach, Richard (1970). Jonathan Livingston Seagull, a story. N.Y.
Trad. port. A História de Fernão Capelo Gaivota. Rio de Janeiro:
Nórdica, pp. 15-17.
27 Citado por Dottrens, R., in Gilbert, R. (1973). Les idées actuelles
en Pédagogie. Paris: Éd. Centurion. Trad. port. (1976). Lisboa:
Moraes Ed., p. 7.
28 Freire, Paulo (1970). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz
e Terra (6ª ed., 1976), p. 155.
29 Saint-Exupery, Antoine de (1943). Le Petit Prince. Paris: Éditions
Gallimard. Trad. port. (1987). O Principezinho. Lisboa: Círculo
de Leitores, XXI, pp. 66-74 e VII, pp. 30.
30 António Gedeão (1956). Poesias Completas (1956-1967). Lisboa:
Portugália Editora (1975), pp. 35-37.
31 Morin, Edgar (1999). La tête bien faite. Paris: Éditions du Seuil.
Trad. port. (2002). Repensar a Reforma. Reformar o pensamento.
365
A Cabeça Bem Feita. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 24-25.
32 Sagan, C. e Druyan, A. (1992). Shadows of Forgotten Ancestors.
Trad. port. (1994). A Sombra dos nossos antepassados esquecidos.
Lisboa: Círculo de Leitores, pp. 371 e 10.
33 Gomes, Álvaro (2000). “A ciência é inconsutil”, in Diário do
Minho Cultural, Braga, 4 de Outubro de 2000, pp. 5-7.
34 Morin, Edgar (1990). Introduction à la Pensée Complexe. Trad.
port. (3ª ed., 2001). Introdução ao pensamento complexo. Lisboa:
Instituto Piaget, pp. 26-80.
35 Morazé, Ch., in UNESCO (1994). History of Humanity. Trad.
port. (1996). A História da Humanidade.Vol. I. Considerações
prévias. Lisboa: Verbo, p. XII, 1-2.
36 Sagan, C. e Druyan, A. Op.cit., p. 90.
37 Morin, Edgar. Op.cit., pp.13-14.
38 Morin, Edgar. Op.cit., pp. 106-109.
39 Morin, Edgar (1999). La tête bien faite. Paris: Éditions du Seuil.
Trad. port. (2002). Repensar a Reforma. Reformar o Pensamento.
A Cabeça Bem Feita. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 23-80. Ver ain-
da Morin, Edgar (1999). Relier les connaissonces, Paris: Editions
du Seuil. Trad. port. (2001). O desafio do Século XXI. Religar os
conhecimentos. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 491-497.
40 Morin, Edgar (1999). Les sept savoirs nécessaires à l’éducation du
futur. Paris: UNESCO. Trad. port. (2002). Os sete saberes para a
educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 23-123.
41 Heidegger (1959). Gelassenheit. Pfullingen: Günther Neske.
42 Droit, Roger-Pol (1995). Philosophie et Démocratie dans le
Monde. Paris: Editions Unesco. Prefácio do então Director-
-Geral da Unesco, Federico Mayor.
43 Medeiros, Emanuel (2005). A Filosofia como centro do currículo
na educação ao longo da vida. Lisboa: Instituto Piaget. Na parte
final da obra, o Autor procede a um amplo desenvolvimento da
relação entre Unesco, Filosofia e Educação, pp. 378-396. Com
Prefácio do Autor deste livro, que foi modificado e adaptado no
presente parágrafo.
366
44 Platão, O Banquete. Sobretudo II Parte (198, b – 212, c) e III
Parte (212, c – 223, d).
45 Ver o conjunto das obras mais representativas: Rorty, Richard
(1979). Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton: Princeton
University Press. / Rorty, Richard (1989). Contingency, Irony and
Solidarity. Cambridge: Cambridge University Press. / Rorty,
Richard (1990). Objectivity, Relativism and Truth. Cambridge:
Cambridge University Press. / Rorty, Richard (1991). Essays on
Heidegger and Others. Philosophical Papers (2 vols). Cambridge:
Cambridge University Press. / Sobre incidências das teses de
Rorty na educação, ver Antunes, Mª da C. Pinto (2001). Teoria
e prática pedagógica. Lisboa: Instituto Piaget.
46 Bloom, Harold (1994). The Western canon. Trad. port. (1997). O
Cânone Ocidental. Lisboa: Círculo de Leitores.
47 Hadj Garm ’Oren. Texto citado como “manuscrito inédito” por
Morin, Edgar (1999). La tête bien faite. Paris: Editions du Seuil.
Trad. port. (2002). Repensar a Reforma. Reformar o Pensamento.
A Cabeça Bem Feita. Lisboa: Instituto Piaget, p. 47.
48 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa: Círculo de
Leitores (2002). Dadas as características deste dicionário recente
e muito completo, será objecto de frequente recurso, designa-
damente no que diz respeito à origem e cognações de vocábulos
com maior relevância para o tema deste livro.
49 Morin, Edgar. Op. cit., pp. 24-25.
50 Mallory, J. P., “O Fenómeno Indo-Europeu: Linguística e
Arqueologia”, in UNESCO (1996). History of Humanity. Trad.
port. (1997). História da Humanidade. Vol II. Do Terceiro
Milénio ao Século VII a.C. Lisboa: Verbo, 8.3, pp. 81-93, p.
93.
51 Gomes, Álvaro (2000). Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia
das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora. O Autor identifica as raízes nas pp. 216-246
e 387-459 e procede a variadíssimos desenvolvimentos em todo
o texto. Ver ainda Gomes, Álvaro (2003). A Aula. Porto: Porto
367
Editora. Identificação de raízes nas pp. 89-105 e desenvolvimen-
tos em todo o texto.
Porque grande parte dos problemas nas diversas áreas científicas,
com particular incidência nas Ciências Humanas, na Filosofia e
na Educação, procedem de deficiente utilização da linguagem,
nesta linha metodológica da serendipidade e sempre na medida
em que se justificar, procuraremos o esclarecimento inicial dos
conceitos e das correspondentes palavras-chave pelo recurso ao
respectivo étimo que, em grego, etimon, ou, significa “o verdadei-
ro sentido da palavra segundo a sua origem”. Frequentemente,
para além de esclarecer o termo em causa, o seu étimo lança luz
sobre toda a família de outros lexemas dele derivados. De aqui
o recurso frequente que faremos a estudiosos e dicionaristas que
melhor exploram este filão semântico.
52 Gusdorf, G. (1963). Pourquoi les professeurs? Paris: Payot. Trad.
368
Textos estabelecidos e prefaci ados por Georg Rudolph Lind e
Jacinto do Prado Coelho, pp. 63-64.
58 Fernando Pessoa (1979). Obra poética e em prosa, II, pp.
176-177.
59 Fernando Pessoa (1990). Cartas de amor de …Organização, pos-
fácio e notas de David Mourão-Ferreira. Preâmbulo e estabele-
cimento do texto de Maria da Graça Queiroz (1ª ed., 1978), p.
131.
60 Citação em Azevedo, Mª. da Conceição, Op. cit., extraída de
uma anotação de Fernando Pessoa no livro, existente na sua bi-
blioteca pessoal, de Mead, G.R. S. (1913). Quests Old and New.
London, p. 36.
61 Fernando Pessoa (1988). Moral, Regras de Vida, Condições de
Iniciação. Textos estabelecidos e comentados por Pedro Teixeira
da Mota. Lisboa: Edições Lencastre, p. 71.
62 Fernando Pessoa (1979). Obra poética e em prosa, III, p. 730.
63 Id., Ib., p. 445.
64 Atlan, H. (1991). Tout, non, peut-être. Paris: Le Seuil.
Goblot, E. (1954). Traité de Logique. Paris: Armand Colin.
Hannoun, H. (1995). Compreendre l’éducation. Introduction à la
philosophie de l’éducation, Paris: Editions Nathan.
Fullat, O. (2005). Valores y Narrativa. Axiologia educativa de
Occidente: Barcelona: Publicacions i Edicions de la Universitat
de Barcelona.
65 “As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia lusitana,
Por mares nunca d’ antes navegados,
Passaram inda além da Taprobana
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que permitia a força humana,
Entre gente remota edificaram
Novo Reino que tanto sublimaram”.
Camões, L. de, Os Lusíadas, Livro I, 1.
369
Capítulo II
370
Capítulo III
371
93 Hobsbawm, Eric (1994). Age of extremes. The Short Twentieth
Century: 1914–1991. Trad. port. (1996). A Era dos Extremos.
História Breve do Séc. XX, 1914–1991. Lisboa: Edit. Presença, pp.
17-18.
94 Toffler Alvin (1970). Future shock. By A. Toffler. Trad. port. (s/
d.). O choque do futuro. Lisboa: Livros do Brasil.
95 McLuhan, M. (1967). The Gutemberg Galaxy. Toronto.
96 Feixa Pàmpols, Carles. “Os novos modelos culturais”, in (2005).
História Universal. Vol. 20. Fim de século. Os grandes temas do
século XXI. Editorial Salvat – Público, pp. 103-104.
97 Hobsbawm, Eric. Op. cit., p. 321, pp. 316-338.
98 Gomes, Álvaro (2000). Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia
das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora. p. 394.
99 Kerouac, Jack (1957). On the road.
100 Roszack, Th. (1968). The making of counter culture. Trad. esp.
(1973). El nacimiento de una contracultura. Barcelona.
101 Jung Chang (1991). Cisnes Selvagens./ O filme Xiu Xiu, Chen,
1998. / Jung Chang e Jon Halliday (2005). Mao. A História
Desconhecida. Lisboa: Círculo de Leitores.
102 Bob Dylan, The Times They Are A-Changing.
103 Mao Tsé Tung. (1967). O Livro Vermelho. Pequim: Edições em
línguas estrangeiras, p. 313.
104 Feixa Pàmpols, Carles. Op. cit., p. 122.
105 The Sex Pistols (1977). “God Save the Queen”.
106 UNESCO (1983). A juventude na década 80 (Relatório).
107 Expresso, Pública. 06-05-28, pp. 24-30.
108 Maffesoli, Michel (1990). El tiempo de las tribus. Barcelona.
109 Tapscott, D. (1998). Growing Up digital. The rise of the new gene-
ration. New York.
110 Castells, M. (2002). A era da informação. Lisboa.
111 Himannen, Pekka (2001). A ética dos Hackers e o Espírito da era
da informação. Editora Campus.
112 http://www.cibersociedad.org. (Observatório para a cibersociedade)
372
113 Prévost, Claude (1968). Les étudiants et le gauchisme. Trad.
Port. (1975). Os estudantes e o esquerdismo. Lisboa: Círculo de
Leitores.
114 Ver Roger, Gilbert (1973). Les Idées Actuelles en Pédagogie. Paris:
Éditions du Centurion. Trad. Port. (3ª ed. 1976). As ideias actu-
ais em pedagogia. Lisboa: Moraes Editores.
115 Coombs, Ph. H. (1968). La crise mondiale de l’éducation. Paris:
Presses Universitaires de France.
116 Mead, M. (1970). Culture and commitment. Trad. esp. (1977).
Cultura y compromisso. El mensage a la nueva generacion.
Barcelona.
117 Illich, Ivan (1971). Deschooling society, New York: Harper and
Row Publishers. Trad. esp. (1975). La sociedad desescolarizada.
Barcelona: Barral Edit. / Reimer, Everett (1975). School is dead:
alternatives in education. New York: Doubleday and Company.
Trad. port. (1979). A escola está morta. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves Editora, SA.
118 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001). Lisboa: Círculo
de Leitores.
119 Gomes Álvaro (2000). Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia
das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora, p. 412.
120 Fukuyama, Francis (1992). The end of History and the last man.
Trad. port. (1992). O fim da História e o Último Homem. Lisboa:
Círculo de Leitores. / Hobsbawm, Eric. Op. cit. / Huntington,
Samuel P. (1996). The Clash of Civilizations – Remaking of World
Order. Trad. port. (1999). O Choque das Civilizações e a Mudança
na Ordem Mundial. Lisboa: Gradiva.
121 Goodman, P. e Outros (1972). Pour ou contre Summerhill. Paris:
Ed. Payot. / Vincent, B. (1976). Paul Goodman, el la reconquête
du present. Paris: Ed. du Seuil.
122 As ideias a seguir apresentadas são desenvolvidas pelo au-
tor no conjunto da sua obra, particularmente em Illich, Ivan
(1971). Deschooling Society (ver acima, nota 36) e em Illich,
373
Ivan (1973). Tools for Conviviality. New York: Harper and Row
Publishers. Trad. port. (1976). A convivencialidade. Lisboa:
Europa-América.
123 Id., Tools for Conviviality, pp. 37, ss.
124 Id., Ib., p. 7, ss.
125 Id., Ib., p. 34, ss.
126 Id., Deschooling Society, p. 13.
127 Id., Tools for Conviviality, p. 38, pp. 55, ss.
128 Id., Ib., pp. 69, ss.
129 Id., Deschooling Society, p. 11.
130 Id., Tools for Conviviality, p. 42, p. 49, p. 68.
131 Id., Ib., p. 39, p. 51, p. 102, ss.
132 Id., Ib., p. 87, ss. Deschooling Society, pp. 135, ss.
133 Id., lb., pp. 101, ss.
134 Id., lb., pp. 54, ss.
135 Id., lb., pp. 102, ss. / Deschooling Society, p. 12.
136 Jutglar, Antoni. “Esforços pacifistas e alianças políticas no fim
do século”, in (2005). História Universal, Editorial Salvat, S.L.
- Público, VoI. 19, pp. 156-212.
137 Foulquié, Paul (1962). Dictionaire de la Langue Philosophique,
Paris: Presses Universitaires de France, Idéologie, p. 337, 2.
138 Le Monde, Maio de 1968.
139 Gomes, Álvaro (2000). Op. cit., p. 392.
140 “Os princípios inscritos na Declaração. Universal dos Direitos da
Homem constituem uma ética comum a todos os membros da
comunidade internacional” e “a juventude deve conhecer, respei-
tar e desenvolver tudo o que a humanidade realizou, até agora,
de positivo, para reforçar o respeito do ser humano”. Conferência
lnternacional sobre os direitos do homem (1968, Teerão). “Resolução
sobre a educação da juventude no respeito pelos direitos do homem e
das liberdades fundamentais”. Preâmbulo. Sublinhado nosso.
374
Capítulo IV
375
160 DeMause. Op. cit., pp. 449-450.
161 Badinter, Elisabeth (1980). L’Amour en plus – Histoire de l’amour
maternel (XVIII e – XX e siècle). Paris: Flammarion, p.133.
162 Reis Monteiro. Op. cit., p. 50.
163 Id. Ib., pp. 39-40.
164 Ariès, Philipe (1960). L’ enfant et la vie familiale sous l’ Ancien
Régime. Paris: Ed. Seuil, pp. 7, 176-179, 62-67, 153-154.
165 Badinter, E. Op. cit., pp. 154-155, 218.
166 Murat, Pierre (1989). “La Puissance paternelle et la Révolution
française: essai de régénération de l’autorité des pères”. In Irène
Théry et Christian Biet (Textes reúnis et présentés par). La fa-
mille, la loi, l’État – de la Révolution au Code civil. Paris: Éditions
du Centre Georges Pompidou/ Imprimerie Nationale-Éditions,
p. 393.
167 Lascoumes, Pierre (1989). “L’Émergence de la famille comme
intérêt protégé par le droit penal, 1791-1810”. In Irène Théry et
Christian Biet (Textes réunis et présentés par). La famille, la loi,
l’État – de la Révolution au Code civil. Paris, Éditions du Centre
Georges Pompidou/ Imprimerie Nationale-Éditions, p. 344.
168 Rosenczveig, Jean-Pierre (en collaboration avec Annie Bouyx,
chargée de mission à L’IDEF) (1990). Les Droits des Enfats en
France - État d ‘un débat et perspectives. Paris: Éditions Condot-
-Bourgery/lnstitut de l’Enfance et de la Famille (IDEF), pp.
69-70.
169 Grant, James P. (1990). UNICEF., pp. 27-28, 47.
170 Id., Ib.
171 Gonelle, Michel (1975). “Le Droit à l’éducation, de l’époque
de la 3.e dynastie d’Ur à celle de la dynastie de Hammurabi”.
In Recueil de la Société Jean Bodin pour l’histoire comparative des
institutions, XXXIX – L’enfant – Cinquième partie: Le Droit à
l’éducation. Bruxelles, Éditions de la Librairie Encyclopédique,
p.75.
172 Marrou, Henri-Iréné (1948). Histoire de l’éducation dans l’ anti-
quité. Paris: Éditions du Seuil (7e éd., 1965), p. 24.
376
173 Marrou. Op. cit., p. 240.
174 Néraudau. Op. cit., pp. 117, 165-166.
175 Marrou. Op. cit., pp. 397-398.
176 Néraudau. Op. cit., pp. 314-316.
177 S. Agostinho, Confessiones.
178 S. Agostinho, De Civitate Dei.
179 DeMause. Op. cit., p. 34.
180 Reis Monteiro. Op. cit., pp. 73.
181 DeMause. Op. cit., pp. 42, 73-76, 456.
182 Klecker. In Conseil de l’Europe (1980). Requêtes nº 7511/76 et
7743/76: Grace Campbell et Jane Cosans contre Royaume-Uni –
Rapport de la Comission. Strasbourg: Commission Européenne
des Droits de l’Homme, p. 47.
183 Miller Alice (1980). Am Anfang war Erziehung. Trad. fr. (1984).
C’est pour ton bien – Racines de la violence dans l’éducation de
l’enfant. Paris: Éditions Aubier Montaigne, pp. 21-22, 83-85,
107, 266, 283.
184 Cooper, David (1971). The death of the family. Trad. fr. (1972).
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185 Laing, Ronald (1967). The Politics of Experience and Bird of
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215 Id., Ib., p. 21, nº 21.
216 Id., Ib., pp. 75-76. Sublinhado nosso.
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218 Id., Ib., p. 16, nº49 e nºs 52-53; p. 20, nº10; p. 49, Recom. 11.
Sublinhado nosso.
219 Id., Ib., Annexe II, p. 70; p. 49, Recom. 11. Sublinhado nosso.
220 Id., Ib., Annexe IV, p. 82.
221 Id., Ib., Annexe II, p. 70. Sublinhado nosso.
222 Id., Ib., p. 20, nº 7. Sublinhado nosso.
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233 Id., Ib., nº. 4, a).
234 Id., Ib., nº. 7.
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CapítuloVI
383
293 Ib., p. 9.
294 Ib., p. 29.
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lhe ocorreu a expressão “Choque do Futuro” em 1965 (p. 8) e
como investigou o seu conceito nos anos seguintes (pp. 479-
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sur l’éducation des adultes réunie par l’Unesco, Tokio, 25 Juillet - 7
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303 Ib., p. 17, nº 59.
304 Ib., p. 28, nº 57.
305 Ib., p. 41, Recom. 1. 2. Sublinhado nosso.
306 Ib., pp. 47-48, Recom. 8. 1. Sublinhado nosso.
307 Ib., p. 17, nº59. Sublinhado nosso.
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309 Ib., p. 17, nº 59; p. 44, Recom. 5, nºs 1-2. Sublinhado nosso.
310 Ib., p. 17, nº 60; p. 41, Recom. 1, nº 2. Sublinhado nosso.
311 Ib., p. 17, nº 62.
312 Ib., p. 17, nº 61. Sublinhado nosso.
313 Ib., p. 17, nº 55. Sublinhado nosso.
314 Ib., p. 21, nº 21. Sublinhado nosso.
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315 Ib., p. 11, nº 4. Sublinhado nosso.
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320 Ib., p.17, nº 56. Sublinhado nosso.
321 Ib., Recom. 13, nºs 1-3. Sublinhados nossos. Ver também
Recom. 8, nºs 4-6 (à Unesco); Recom. 4, nºs 1-4 (à Unesco);
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333 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, - duz-, educ-, educar.
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342 Id., Ib., VII. 46.
343 Dias, J. Ribeiro. Este parágrafo e os dois que seguem cor-
respondem a uma adaptação do texto do Autor “A for-
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346 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, espec-.
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379 Ib., Annex II, nº 11, p. 2.
380 Ib., p. 8.
381 Ib.
382 Ib., p. 12; Annex II, nºs 15- 20, p. 3.
383 Ib., Annex II, nº 13; nºs 12-14.
384 Ib., p. 27.
385 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, fi(a)-.
386 Ib., jact-.
387 Toffler, Alvin (1970). Future Shock, by A. Toffler.Trad. port. (s/
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391 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, soci-, pan(i)-, camer-.
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401 Ib., pp. 60-65.
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CapítuloVIII
391
ção do Prémio Nobel da Paz de 2007, que acaba de ser feita
a Al Gore, em paridade com o IPCC, testemunha o reconhe-
cimento da Comunidade Planetária pelo esforço realizado na
apresentação de provas acerca do aquecimento global e das suas
consequências.
418 Ban Ki-Moon, in Público, 9 Dez. 2007, p. 47; 16 Dez. 2007, p.
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Preâmbulo.
393
443 Id., Ib.
444 PNUD, Relatório do Desenvolvimento Humano 2004. Liberdade
Cultural num Mundo Diversificado. Lisboa: Mensagem, p. 90.
394
Índice
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 7
CAP. I
Educação: transformações, problemas, questões
metodológicas
3. Questões metodológicas................................................................... 43
Experiência: curiosidade-dúvida-reflexão-espírito crítico........................................... 44
Pensamento complexo................................................................................................45
Atitude questionadora............................................................................................... 48
A “mêtis”................................................................................................................... 49
A serendipidade..........................................................................................................52
À guisa de conclusão sobre o Método ou Caminho....................................................57
CAP. II
Declaração Universal dos Direitos do Homem. O Caminho
entre dois Mundos
CAP. III
Educação escolar: reformas, contestação e crise
CAP. IV
Educação da infância ou da adolescência? Uma revolução em
marcha
CAP. V
Educação de Adultos. A “revolução pedagógica
CAP. VII
Educação ao Longo da Vida: o desenvolvimento de cada ser
humano
CAP. VIII
Educação Comunitária: o desenvolvimento da Família
Humana
CAP. VIII
Educação ecossistémica: a realização do Homem no Universo
CONCLUSÃO................................................................................................................ 349
NOTAS............................................................................................................................ 363
EDUCAÇÃO
O Caminho da Nova Humanidade: das Coisas às Pessoas e aos Valores – José Ribeiro Dias