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Educação

O Caminho da Nova Humanidade: Das Coisas Às Pessoas e Aos Valores


FICHA TÉCNICA

Título Educação – O Caminho da Nova Humanidade:


das Coisas às Pessoas e aos Valores
Autor José Ribeiro Dias

Editor Papiro Editora


Porto
Rua de Santa Catarina, nr. 489
4000-452 Porto
t. 220 103 900
f. 220 103 999
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Lisboa
Rua Virgílio Martinho nº3 Escritório F - 1600-821 Lisboa
t. 218 931 620
f. 218 931 629
e. infolisboa@papiroeditora.com

Ano de Edição Abril 2009

Coordenação Editorial Papiro Editora


Sandra Macedo

Revisão Papiro Editora


Alexandra Alves

Coordenação Gráfica Fólio Design


Miguel Paulo

Design Fólio Design

Distribuição BUK Distribuição


telefone: 220 103 900

ISBN 978-989-636-405-2
Depósito Legal
José Ribeiro Dias

Educação
O Caminho da Nova Humanidade:
das Coisas às Pessoas e aos Valores

Papiro Editora
Porto 2009

INTRODUÇÃO

Vivemos hoje convencidos da importância da educação. De que ela


constitui, provavelmente, o maior investimento a realizar na vida pessoal,
comunitária, ecossistémica.
Por outro lado, sofremos a angústia de não sabermos bem em que
consiste. Pelo menos é isso que frequentemente confessamos.
E particularmente no mundo de hoje, cada vez mais fracturado pe-
las incertezas resultantes da amplitude da globalização, da aceleração da
mudança, da complexificação da vida social e da profundidade da nossa
própria existência, sentimos dificuldade em nos desprendermos dos este-
reótipos tradicionais, reconhecermos o paradigma emergente, adoptar-
mos a estratégia adequada, acertarmos no caminho do futuro.
Este livro representa a contribuição do Autor para o esclarecimento
do conceito de educação, a partir da experiência, reflexão e pesquisa rea-
lizadas em instituições de Educação Superior, no mundo em transforma-
ção da última metade do último século em que lhe tocou viver.
Com a emergência das Organizações Mundiais em que os Povos da
Terra, pela primeira vez na História, ensaiaram falar a mesma lingua-
gem, através de documentos como a Declaração Universal dos Direitos
do Homem (ONU, 1948), os Relatórios das Conferências Mundiais so-
bre Educação de Adultos (UNESCO, desde 1949), a Convenção sobre
os Direitos da Criança (ONU, 1989), a Declaração da Milénio (ONU,
2000), começou a ser delineado o novo quadro contextual da educação:

–“o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros


da Família Humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis”
como fundamento do Mundo dos Valores, e “o advento” desse
Mundo como objecto da “mais alta aspiração do homem”;
– a “fé” dos “povos das Nações Unidas” no Mundo dos Valores,
como base do seu compromisso em procurarem sobre ele uma
“concepção comum”;
– a proclamação desse Mundo como “ideal comum a atingir por
todos os povos e por todas as nações”, “pelo ensino e educação”
(Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem).

A seguir e também no mesmo período histórico, emerge, consolida-


-se e ocupa o seu lugar, dentro das instituições de educação superior, a
área científica da Educação (faculdades, institutos, escolas) que passa a
dinamizar, neste campo, a investigação, a formação e o serviço às comu-
nidades envolventes.
Ponto adquirido, nos dias de hoje, é que no processo educativo, em ter-
mos de educação ao longo da vida e de educação comunitária, todos somos
educandos e todos somos educadores, na medida em que nunca ninguém
chegou a saber tudo e nunca ninguém ficou a saber nada, mas todos suporta-
mos carências e revelamos capacidades e, consequentemente, todos sentimos
a necessidade de que os outros procurem para nós e a responsabilidade de
nós procurarmos para os outros as melhores condições de desenvolvimento.
Nesta situação, a partir de novas experiências, linguagens, concepções e
práticas e através de um amplo e progressivo consenso, obtido entre homens
da ciência, da cultura e da política e vertido nos grandes documentos das
Organizações Internacionais e em publicações especializadas, o conceito de
educação vem-se perfilando, na consciência mundial, como processo de:

– rentabilizarmos todas as coisas (meios) do Universo na criação


de condições
– para que todas as pessoas (fins), membros da Família Humana,
possamos crescer
– no sentido de todos chegarmos a atingir a plena realização no
Mundo dos Valores.


Entretanto, nos anos mais recentes, os novos e graves problemas que
o desenvolvimento tecnológico vem colocando ao ecossistema, no que diz
respeito à própria sobrevivência da Família Humana em termos de “mor-
te súbita” ou de “morte lenta” do Planeta Terra, avivam em todos nós a
consciência de que o tema da educação, ao nível da actividade filosófica,
continua a destilar perguntas acutilantes e excessivas.

De sentido tão amplo que não consentem respostas de margem


estreita.

– Que(m) somos? Que é Tudo? Onde nos encontrarmos?


– Somos e estamos ou movemo-nos, andamos, passamos, vamos?
– Ou estamos a ir?

De tão longo alcance que não admitem respostas curtas.

– Porque(m) somos? De onde vimos e para onde vamos? Do Passado,


pelo Presente, para o Futuro?
– Qual é a lonjura no espaço e a duração no tempo?
– Passamos por um lugar ou trilhamos um Caminho?

De tanta profundidade que não deixam pairar nada à superfície.

– Viajamos no espaço e no tempo ou movimentamo-nos mergu-


lhados na Vida? Da Vida? Para a Vida? Somos nós que vivemos
ou é a Vida que passa através de nós?
– Gerados e criados (crianças), nascidos e alimentados (do lat.
alĕre, donde vem aluno), porque crescemos (do lat. adolescěre)
como adolescentes (“que crescem”) até chegarmos a adultos
(“crescidos”)?
– Há um limite para o nosso crescimento? De menos para mais, de
pouco para muito, de Nada para Tudo?

Em tão grande número que nos sentimos afogados nas perguntas.


– A propósito, somos nós que temos as perguntas ou são as per-
guntas que nos têm a nós e nos afrontam, interpelam, desafiam e
transcendem?
– Isto de ter e ser, de estar e passar, de vir e ir, de nascer e crescer! E
de outros verbos mais!
– E para tantas e tais perguntas e de tanta gente, será demais pro-
curar ouvir muitas respostas e da gente toda: pais e filhos, alunos
e professores, discípulos e mestres, leigos e cientistas, peritos e
experts, sábios e filósofos, poetas e artistas, místicos e profetas?

Esta última pergunta exige uma anotação sobre o recurso às fontes e


os critérios que presidiram ao manuseamento da bibliografia utilizada.
A evocação de programas e projectos, reformas e revoluções, sonhos e
utopias, não pretende inscrever-se no género romance, hoje tão em voga,
mas manter-se ao nível da simples reflexão. Ainda não apela à imagina-
ção por considerar que estamos longe de esgotar os filões da observação
e experiência. Porque a realidade é tão rica que ultrapassa toda a ficção.
Porque a realidade é o todo e a ficção apenas uma parte.
O recurso a citações, por vezes minuciosas e transmissoras de muitas e
muito diversas contribuições individuais e colectivas, não significa ceder
ao ruído da publicidade, da mera informação, da erudição, do ensino,
mas contribuir para cada um de nós poder aceder ao lugar da pesquisa e
do diálogo comunitário que propicia o silêncio e a concentração interior,
a consciencialização e a reflexão pessoal. Porque se torna difícil compreen-
der como ideias e ideais, projectos e propostas, orientações e recomen-
dações emitidas há milénios por Mestres e há décadas por Organizações
Mundiais a que pertencemos e nos merecem respeito, continuam a não
encontrar eco nas medidas adoptadas em reformas e reestruturações dos
sistemas educativos pelos governos e populações dos nossos países.
A apresentação, com algum cuidado e de forma acessível e através de
sínteses parcelares, de tópicos gerais sobre novas experiências, convicções
e práticas, e sobre a génese dos conceitos e as fases de desenvolvimento
do novo paradigma, não pretende pactuar com a ilusão de que o processo

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educativo se reduz ao conhecimento, mas pôr em evidência a convicção
de que ele depende do treino sustentado, do percurso moral, do esforço
agónico, do espírito de entrega de todos nós ao serviço do crescimento
e da realização de nós todos. Brota mesmo do convencimento de que a
educação, para além de exigir, em todos os domínios e na medida máxi-
ma o aprofundamento científico, é essencialmente questão de comporta-
mento ético, de crescimento humano, de realização pessoal.
Todas estas considerações ditaram a organização do presente trabalho.
A seguir aos dois primeiros capítulos de carácter introdutório sobre,
respectivamente, mudanças, problemas e questões metodológicas e o lugar
charneira da educação na Declaração Universal dos Direitos do Homem,
vêm os restantes capítulos sobre a educação escolar e a crise que nela se
instalou, as revoluções que afectaram a educação de infância e a educação
de adultos, a sua conjugação no conceito da educação ao longo da vida, a
urgência da educação comunitária nas dimensões intra e inter-cultural,
a necessidade da educação ecossistémica perante os graves problemas de
sobrevivência que hoje se colocam à Família Humana.
Nestas condições, o livro não se dirige apenas a académicos e investi-
gadores ou a professores e alunos, mas a todos os cidadãos implicados em
processos educativos, pais e filhos, responsáveis políticos e verdadeiros ac-
tores nos diversos domínios da economia, da saúde, da gestão, do direito,
da ciência, da arte, da cultura. A todos os que, sentindo-se portadores da
dignidade de membros da Família Humana, se preocupam em criar condi-
ções para que todos cresçamos no reconhecimento e respeito por esse nosso
estatuto. A todos, como contribuição modesta para, através do encontro,
comunicação, pesquisa e debate, podermos acertar no Caminho da Vida.
Dentro deste entendimento, o Autor agradece, desde já, a todos quan-
tos de algum modo contribuíram para a preparação do texto, designada-
mente colegas nos encontros e alunos nas aulas.
E a todos os leitores, com o agradecimento antecipado pela colabora-
ção que eventualmente venham a prestar na sua melhoria, o Autor deixa
uma saudação fraterna com votos de bom trabalho.

Valete, fratres.

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Capítulo I

Educação: transformações, problemas, questões metodológicas

Ao longo da segunda metade do séc. XX, a partir dos grandes consen-


sos obtidos pelos povos das Nações Unidas (1945), designadamente sobre
o valor fundamental da dignidade humana, e embora sempre ao ritmo
da variação dos recursos disponíveis e das etapas de desenvolvimento em
que vai encontrar-se cada uma das regiões que integram o nosso mundo,
o sistema educativo, na sequência do reconhecimento da prioridade que
progressivamente lhe é atribuída e de um maior investimento nas suas
infra-estruturas, alcançou progressos e sofreu transformações espectacu-
lares, no que diz respeito à clarificação das linguagens, à abrangência e
aprofundamento dos conceitos e ao enquadramento das práticas.
Por outro lado, não parece ter conseguido ultrapassar graves problemas
de fundo, em boa parte pela dificuldade de adoptar os métodos mais ade-
quados ao respectivo equacionamento e procura de solução.

1. As transformações do sistema educativo

O processo, que abre inicialmente com a atribuição de prioridade à


educação, vai traduzir-se na aplicação de múltiplas e sucessivas reformas,
assume depois, nalguns sectores, a dimensão de autênticas revoluções e,
porque se desenvolve num mundo em profunda transformação no que
diz respeito a experiências, convicções e valores, acaba por levar a educa-
ção a assumir os contornos de um novo paradigma.

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Avancemos uma primeira abordagem das principais etapas deste per-
curso, atentos à sua dimensão planetária e aos vectores socio-económicos,
políticos e culturais que as caracterizam.

Atribuição de prioridade estratégica à educação

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) marca o início


da clarificação do estatuto atribuído ao sistema educativo, na medida em
que, no seu Preâmbulo e depois de recordar as experiências traumáticas
da II Guerra Mundial que puseram em causa “o reconhecimento da dig-
nidade inerente a todos os membros da família humana”, afirma que “o
advento de um mundo em que os seres humanos tenham a liberdade de
falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado a mais alta
aspiração do homem”, se tornou objecto da “fé”, do “compromisso” e do
esforço das Nações Unidas para chegarem sobre ele a uma “concepção co-
mum” e agora, através desta Declaração, é proposto como “o ideal comum
a atingir por todos os povos e todas as nações”, “todos os indivíduos e
todos os órgãos da sociedade”, “pelo ensino e educação”.
E mais adiante, no articulado, acrescenta que “a educação deve visar o
pleno desenvolvimento da pessoa humana” (Art.º 26, 2)1.
Este documento fundamental virá a ser completado e matizado por mui-
tos outros, desde os dois Pactos Internacionais Relativos aos Direitos Económicos
Sociais e Culturais e aos Direitos Civís e Políticos (1966), até à Convenção sobre
os Direitos da Criança (1989) e à Declaração do Milénio (1999).
Entretanto e já desde o começo, ficam assim lapidarmente identifica-
dos: “o advento de um mundo” de Valores centrado no reconhecimento e
respeito pela dignidade humana como fim último a atingir “por todos os
povos e todas as nações”, “todos os indivíduos e todos os órgãos da socie-
dade”; o ensino e educação como caminho para lá chegar.

Reformas, contestação e crise da educação escolar

Tradicionalmente dedicado ao escalão etário dos adolescentes e jovens,


no sentido de promover a sua “preparação para a vida”, o subsistema de

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educação escolar (básica-secundária-superior) é o primeiro a beneficiar desta
atribuição de prioridade ao “ensino e educação”. Com efeito e já a partir
do último ano da guerra, várias nações procedem ao lançamento de gran-
des reformas do sistema educativo, entre as quais ficaram mais conhecidas
o Education Act (Reino Unido, 1944), a Lei Langevin - Wallon (França, a
partir de 1945) e o National Defense Education Act (USA, 1958). Este vasto
movimento de reformas obtém um sucesso extraordinário na generalidade
dos países em que é lançado, quer na dimensão quantitativa, provocando a
emergência da “escola de massas”, quer na dimensão qualitativa, conduzin-
do à situação de que, “pela primeira vez, sem dúvida, na história da huma-
nidade, o desenvolvimento da educação, considerada à escala planetária,
tende a preceder o nível do desenvolvimento económico”2.
Mas o êxito não esconde, no reverso da medalha, o fracasso consubs-
tanciado no desfasamento entre os sistemas económico e educativo, que
dá origem ao fenómeno social do desemprego e sub-emprego, e ainda à
convulsão cultural motivada quer pela desatenção à dignidade e direitos
das pessoas, quer pela erosão do culto dos valores.
Estes percalços, no seu conjunto, levam as reformas a esbarrar na que
ficou conhecida como “contestação universitária” (década 60, Maio de 68
em França)3 e a desembocar na chamada “crise mundial da educação”4 em
que chega a ser pedida a “desescolarização da sociedade”5.
O verdadeiro epicentro do sismo situa-se na tendência para pensar que
a finalidade da educação deve visar o desenvolvimento económico e não
o “pleno desenvolvimento da pessoa humana, o fortalecimento do respei-
to pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais” (Declaração
Universal dos Direitos do Homem, Artº 26º, 2) e vai alimentar, durante as
décadas seguintes, a turbulência de sucessivas contra-culturas e sub-culturas
juvenís e exigir um tempo de profunda reflexão sobre o estatuto e sentido
do subsistema escolar dentro do sistema educativo (Relatório da UNESCO,
1972)6, apontando para a solução de o considerar como fase de transição
entre a educação de infância e a educação de adultos (Relatório da Fundação
Europeia da Cultura, 1975)7 e, finalmente, para a sua completa metamor-
fose no contexto do novo paradigma da educação ao longo da vida.

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Desenvolvimento da revolução da educação de infância

O subsistema de educação de infância, desenvolvido nas últimas décadas


do séc. XIX e nas primeiras do séc. XX, na linha do trabalho da chamada
Revolução da Escola Nova confirmada na década 20 pelas descobertas da
Psicologia do Desenvolvimento, florescera em diversos países como arqué-
tipo do processo de educação, em que os adultos (educadores) procuram
criar as melhores condições para que os novos seres humanos (educandos)
possam desenvolver-se em todas as suas dimensões, de maneira global e
harmónica. Esta nova Pedagogia que entretanto e a partir da década 30, na
expressão de A. Clausse, fora “confiscada” pelos regimes autoritários8, recu-
pera a partir do fim da II Grande Guerra e obtém aceitação universal no
Art.º 26, 1-2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, “a educação
deve visar o pleno desenvolvimento da pessoa humana”, ao qual J. Piaget
teceu mais tarde, a pedido, o seguinte comentário: “o direito à educação”
[…] não é apenas o direito de frequentar escolas, é também […] o direito
de encontrar nessas escolas tudo aquilo que seja necessário à construção de
um raciocínio pronto e de uma consciência moral desperta”9.
Mas apesar dos enunciados do articulado e do comentário e da in-
sistência posterior da Declaração sobre os Direitos da Criança (1959), a
pedagogia da educação de infância continuou a não conseguir vencer a
resistência do subsistema escolar a deixar-se impregnar por ela.
É só com a mundialmente festejada Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989) que o sub-sistema de educação de infância e com ele todo
o sistema educativo vai sofrer novo abalo sísmico, a partir do Art.º 1º em
que se declara: “Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser
humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicá-
vel, atingir a maioridade mais cedo”10. Neste novo horizonte, torna-se cla-
ro que a aplicação da Pedagogia da Escola Nova deve estender-se a todo o
período que as psicologias clássicas do desenvolvimento consideravam de
crescimento do ser humano, ou seja, no sentido do verbo latino adolescere,
“crescer”, donde nos vem o particípio activo adolescente, “que cresce”, e
o particípio passivo adulto, “crescido”, durante todo o tempo em que se
mantém adolescente até ao período em que se tornou adulto.

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Entramos assim, numa revolução que vai implicar a total reestrutura-
ção do sistema educativo e de cujas consequências e alcance ainda esta-
mos longe de ter tomado consciência.

Educação de adultos e “revolução pedagógica”

A meados do século XX, em resultado das novas coordenadas civiliza-


cionais do pós-guerra – explosão das ciências e das técnicas, planetização
das relações humanas, aceleração da mudança – verifica-se a emergência
do novo subsistema de educação de adultos que, ao longo de 25 anos de
Conferências Mundiais e reuniões de estudo e/ou de avaliação promovi-
das pela United Nations for Education Sciences and Culture Organization
(UNESCO), dá origem a uma galáxia de conceitos novos: formação contí-
nua versus formação inicial (Elseneur, 1949), alfabetização (Montreal, 1960)
funcional (Teerão, 1965), em função do desenvolvimento integrado das popu-
lações (Tóquio, 1972), em função do desenvolvimento pessoal de cada ser hu-
mano. Neste último sentido, a alfabetização funcional assume as dimensões,
não de resposta a um mero problema técnico, mas de acto político que visa
criar condições para que o adulto “se movimente como pessoa, ser conscien-
te e livre, nos diversos sistemas em que se encontra inserido” (Persépolis,
1975) e “se torne capaz de, ele próprio e não outros por ele, procurar respos-
ta para as suas necessidades e aspirações” (Nairobi, 1976)11.
E porque no exercício desta árdua tarefa de “tornar-se pessoa” (Rogers,
1961)12, ninguém pode julgar-se excluído e ninguém pode vangloriar-se de já
ter chegado ao fim, acontece que a educação de adultos não é só para alguns
mas para todos. Para todos como educandos e para todos como educadores,
na medida em que todos nós, como educandos sentimos a necessidade e
como educadores sentimos a responsabilidade de que nos sejam criadas as
melhores condições para podermos crescer, em sentido humano, até ao ter-
mo dos nossos dias, respeitando a personalidade, a experiência e o ritmo de
cada um e atribuindo a prioridade ao 4º Mundo dos mais desfavorecidos.
Acontece ainda que, no período histórico actual do envelhecimento
generalizado da população e da importância crescente da gerontologia,
esta perspectiva se impõe com maior força e acuidade.

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O subsistema de educação de adultos emerge assim, ao lado dos tra-
dicionais subsistemas de educação de infância e de educação escolar ou de
jovens, como a outra parte do mesmo conjunto. O verdadeiro todo que
é o sistema educativo vê, assim, ampliado ao máximo o seu campo de
aplicação: das camadas populacionais das crianças e jovens à totalidade
da família humana.
E aprofunda inesperadamente o seu alcance e eficácia: neste mundo
marcado pela tensão entre opressores e oprimidos, é proposto a estes últi-
mos o recurso não à revolução violenta que operando pela guerra e visan-
do apenas a substituição de uns pelos outros não passa de uma revolução
falsa, mas à revolução pacífica, que avançando pela conscientização e o
diálogo com vista a chegar à eliminação radical da diferença entre opres-
sores e oprimidos, constitui a revolução verdadeira, ou seja, nos termos de
Paulo Freire (1970), a “revolução pedagógica”13.
E, ao apelar para uma revolução que afecta a relação intergeracional,
agita o problema da interdependência entre as gerações antiga e nova e
prepara assim a emergência do novo paradigma da educação.

O novo paradigma da educação ao longo da vida

A progressiva tomada de consciência de que o subsistema de educação


de adultos se posiciona, ao lado dos subsistemas tradicionais de educação
de crianças e de educação de jovens (escolar), como a outra parte do todo
que é o verdadeiro sistema educativo, marca o pico desta revolução e põe
em evidência, a partir do início da década 70, os processos indutores de
um novo paradigma da educação.
A concepção tradicional fazia corresponder o processo educativo à in-
tervenção dos adultos sobre as crianças e os jovens, no sentido de assegu-
rar a sua “preparação para a vida (adulta)”. Mas, se a educação se estende
também aos adultos, deixa de constituir uma preparação para a vida para
transformar-se num processo coextensivo à duração da existência, numa
dimensão da própria vida.
Por outro lado, as experiências, convicções e valores progressivamente
postos em destaque, à escala planetária, pelos processos da redução do espa-

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ço através das migrações e do turismo, do desenvolvimento das novas tec-
nologias da Galáxia McLuhan (1967)14, do subsequente processo de globa-
lização nas áreas económica, social, política e militar, da mudança em todas
as dimensões da civilização e da cultura e da aceleração da própria mudança
a provocar o “choque do futuro” (A. Toffler, 1970)15, vieram criar novos pro-
blemas e apelar para soluções radicais e urgentes no processo educativo.
Assim, após lenta gestação durante a década anterior, na III
Conferência Mundial de Educação de Adultos (Tóquio, 1972), apare-
ce à luz do dia e ganha foros de cidade o novo conceito de educação
permanente (tradução do original francês) ou educação ao longo da vida
(tradução do original inglês) que passa a designar o processo de crescimento
global e harmónico de cada ser humano, ao longo das diferentes fases da sua
existência, desde que nasce até que morre16.
Todas as estratégias parcelares de transmitir conhecimentos, numa ou
noutra área científica e/ou de proporcionar a aquisição de competências
num ou noutro campo profissional, passam a ter sentido apenas se e na
medida em que forem conjugadas e transcendidas pela estratégia global
de ajudar o ser humano a crescer, a tornar-se pessoa, a abrir o caminho da
própria realização.
A visão estática, que encarava o sistema educativo como um todo di-
vidido em partes ou subsistemas, cede o lugar à visão dinâmica que o vê
como um processo integrado por fases, inicialmente (década 70) por três
(a educação básica, a educação superior e, situada e entendida como uma
fase de transição a meio, a educação secundária)17 mas, a partir de fins
da década 90, em consequência da já mencionada definição de criança
como “todo o ser humano menor de 18 anos”, por apenas duas, educação
de infância e educação de adultos, passando ainda a primeira a abarcar,
como sub-fases, as antigas etapas de educação de infância, de educação
básica e de educação secundária18.
Só agora vamos começando a compreender quanto esta revolução está
a exigir de nós todos, no que respeita à transformação, sempre difícil e
morosa, das mentalidades, como condição prévia e necessária para nos
encontrarmos e movimentarmos dentro do novo paradigma.

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O enquadramento: educação comunitária

Cada um de nós (criança ou adulto) vive, em cada instante, o próprio


processo de educação ao longo da vida na respectiva fase de desenvolvi-
mento. E convive, dentro dos círculos concêntricos das diversas comu-
nidades de que faz parte (familiar, grupal, autárquica, nacional, regional,
humana), em permanente interacção com o processo de educação ao lon-
go da vida em que se encontra cada um dos outros membros dos mesmos
círculos comunitários.
Entretanto e de acordo com o ritmo de vida que caracteriza o nos-
so tempo, esta interacção acentua-se: entre as comunidades abertas, pelo
encurtamento geral das distâncias resultante do desenvolvimento dos
transportes, das migrações, do turismo, das tecnologias de informação e
comunicação, e ainda da associação regional pacífica entre os povos (por
exemplo, na União Europeia); entre as comunidades fechadas, a partir do
derrube de muros e fronteiras, provocado pela pressão das reivindicações
de liberdade e através do recurso aos meios e tecnologias de informação e
comunicação (por exemplo, na queda do Muro de Berlim). Como resul-
tado destes dois tipos de evolução, verificamos que, para o bem e para o
mal, todos os povos da terra, vêm sendo colocados em confronto directo.
Mais ainda, já na “Declaração da Conferência Mundial de Montreal so-
bre a Educação de Adultos” (1960), os participantes, perante os dois fenó-
menos emergentes na Guerra Fria, aumento dos arsenais de armamento
nuclear e início da conquista do espaço, conscientes de que “cada geração
tem os seus próprios problemas” e de que “a destruição da humanidade
e a conquista do espaço se tornaram possibilidades técnicas da presente
geração”, tomam consciência, pela primeira vez na história, da unidade de
destino da humanidade inteira:

“O nosso primeiro problema é sobreviver. Não se trata da sobrevivência dos


mais aptos. Ou sobrevivemos todos ou pereceremos todos. A sobrevivência exige
que os povos do mundo aprendam a viver juntos em paz”19.

Na tomada de consciência deste entardecer apocalíptico, ao qual, no

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alvorecer do novo milénio, veio somar-se a perspectiva aterradora dos
efeitos do terrorismo global, começámos a compreender melhor a pro-
fundidade do conceito de Família Humana. O que existe, de facto, não
são várias mas apenas uma única humanidade. E passámos a interiorizar
melhor que, assim como acontecia na relação intrageracional dos adul-
tos, também na relação intergeracional de adultos e crianças, nós todos
sentimos a necessidade de que os outros procurem para nós e a responsa-
bilidade de nós procurarmos para os outros as melhores condições de de-
senvolvimento. Também aqui, à escala das comunidades-base e da inteira
comunidade humana, todos nós somos educandos e todos nós somos
educadores.
Em perpétua interacção.
Dentro da qual se impõe dar toda a prioridade aos mais
desfavorecidos.
É neste sentido que, ao longo das últimas décadas e através de múl-
tiplos documentos das organizações internacionais, designadamente a
partir da Conferência Internacional de Jomtien (Tailândia, 1990) sobre a
Educação para Todos20, se desenvolve o conceito de educação comunitária,
a designar o processo de desenvolvimento global e harmónico de cada comu-
nidade, ao longo da sua história, a partir da interacção da educação ao longo
da vida de cada um dos seus membros21.
No limite, o conceito envolve toda a comunidade planetária ou, nos
termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, toda a Família
Humana.

O contexto: educação ecossistémica

O processo educativo tem lugar no contexto do mundo que nos ro-


deia (planeta, sistema solar, galáxia, universo), é condicionado por ele
e, nalguma medida, é também seu condicionante. Nas últimas décadas,
começámos a compreender melhor quanto a educação tem a ver com a
nossa casa (em grego, oikos) que é este mundo em que habitamos, quanto
nós dependemos dele e, por razões de natureza diversa, quanto eventual-
mente e de algum modo, ele depende de nós.

21
É assim que no início da década 70, a partir dos documentos ema-
nados das conferências de Veneza e de Helsínquia (1970) sobre o desen-
volvimento cultural, de Estocolmo (1972) sobre o desenvolvimento eco-
nómico e de Tóquio (1972) sobre a Educação de Adultos, e na sequência
da verificação dos resultados do desenvolvimento industrial e da entrada
na era da civilização do consumo, começámos a tomar consciência da
progressiva degradação das condições de vida do ecossistema (poluição,
desperdícios, resíduos, etc.), a perceber que a destruição do nosso Planeta
tanto pode verificar-se por morte súbita (holocausto nuclear) como por
morte lenta (degradação das condições de vida) e a preocupar-nos com a
qualidade de vida22.
O problema da qualidade de vida tem a ver com o processo educati-
vo no sentido de nos alertar para a conservação dos recursos do mundo
físico mobilizáveis para criar as condições do desenvolvimento humano:
a quantidade e qualidade do ar que respiramos, da água que bebemos,
de todos os meios de que precisamos. As reacções recentes, repetidas e
violentas contra os desequilíbrios, desigualdades e injustiças da chamada
globalização económica vêm pondo em evidência a progressiva comple-
xidade do processo.
Mas não se trata apenas das agressões cometidas contra o meio am-
biente do universo físico, cuja dimensão no espaço e duração no tempo
continuam para nós insondáveis, mas também e mais ainda das cometi-
das contra o mundo moral que tanto se caracteriza pela grandeza, ordem,
beleza, frémito de vida e esplendor da dignidade das pessoas que nele nos
movemos, como pelos abismos de maldade e de ódio, dos gangs, máfias
e associações criminosas, responsáveis pelos tráficos de armas, de droga,
de pessoas e de órgãos humanos. Trata-se, numa palavra, das várias com-
ponentes do mundo do espírito cuja dimensão, espessura, complexidade,
profundeza e mistério nos envolvem e nos ultrapassam. Afinal de contas,
aquilo que mais conta (e se conta e reconta) na primeira e última viagem
do grande Titanic, não são os sentimentos e expectativas, medos e com-
plexos, amores e ódios dos viajantes, não são os decks que ocupavam e
as classes sociais a que pertenciam, mas tudo aquilo em que, no fim, se
encontraram todos irmanados: a grandeza do navio, a imensidão do ho-

22
rizonte, a cumplicidade da noite e do nevoeiro na ocultação dos icebergs,
a profundidade do oceano, a origem de onde partiram e o destino a que
nunca mais chegaram.
De aqui vem emergindo o conceito de educação ecossistémica, se aceitar-
mos este lexema para designar o processo de desenvolvimento da comunidade
humana na medida em que é marcado pela interacção com o mistério do con-
texto em que decorre e pela necessidade de encontrar o rumo a seguir.

Coordenadas do novo conceito de Educação

Acompanhando a evolução acelerada do mundo nos últimos 60 anos


e as profundas transformações a que se tem encontrado sujeito, o concei-
to de educação vem progressivamente integrando as diversas dimensões
que acabámos de mencionar e nos propomos desenvolver nos capítulos
seguintes, e cujas coordenadas podemos, provisoriamente, descrever des-
te modo:

processo em que nos encontramos envolvidos


“todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade”,
“todos os povos e todas as nações”,
e que consiste em
utilizarmos todos os recursos (do ecossistema) em ordem a
contribuirmos para criar as melhores condições (na comunidade) para que
todos os membros da Família Humana,
com prioridade para os mais desfavorecidos,
cresçamos e
nos desenvolvamos
em todas as dimensões do ser e
ao longo de todas as fases da vida,
no sentido de,
com a inteligência discernirmos e
com a liberdade decidirmos
seguir o caminho recto (direito, ético) que nos conduz
ao reconhecimento e

23
ao respeito da dignidade humana,
em nós próprios e
em todos os outros e
à plena realização
de cada um de nós (nos planos, pessoal, social e profissional),
da inteira comunidade humana de que fazemos parte e,
em última análise,
do universo em que existimos.

Trata-se, muito simplesmente, de reconhecermos e respeitarmos a ca-


deia de finalidades que julgamos detectar no mundo em que vivemos:
utilizarmos os recursos disponíveis do universo (meios) para criarmos as
melhores condições a todos os membros da Família Humana (fins) em or-
dem a todos podermos crescer e atingir a plena realização (nos Valores).
Nestas condições, deverá considerar-se educado (ou bem-criado ou bem-
-formado) quem cresce(u) e vive(u) de acordo com estes parâmetros, e dese-
ducado (ou malcriado ou mal-formado) na proporção correspondente, quem,
por qualquer razão que seja, cresce(u) e vive(u) em desacordo com eles.

2. Os problemas: do ensino à educação

No mesmo período de tempo, assistimos a graves disfuncionamentos,


bloqueios e fracassos do actual sistema educativo, a provocar contestações
e crises, a apelar para reformas e a desencadear revoluções, em cuja base
podemos descortinar as dificuldades que sentimos em acompanhar a ver-
tiginosa evolução dos tempos, em assimilar as linguagens, convicções e
práticas que vão integrando o novo paradigma e em vivenciá-lo na sua
abrangência, complexidade, profundidade e direccionamento.
Acompanhemos esta evolução no que diz respeito a decepções, res-
ponsabilidades e temas como a escola, o ensino, a formação.

As grandes decepções

Já a meio do percurso do período histórico em análise, na Terceira

24
Conferência Mundial sobre Educação de Adultos (Tóquio, 1972), em
que se verifica a emergência do novo paradigma da educação permanen-
te ou educação ao longo da vida, o Director-Geral da UNESCO, René
Maheu, ao fazer o balanço desta evolução, confessa-se “extremamente
impressionado” por três constatações de fundo:

– “a rapidez com que as ideias se desenvolvem e expandem e a


notável capacidade de absorção e adaptação de que o mundo
moderno faz prova a este respeito”; e cita o caso da educação de
adultos, da alfabetização funcional, da educação permanente,
do desenvolvimento cultural, da atenção aos ecossistemas em
que o desenvolvimento se processa;
– a facilidade com que os participantes nas conferências inter-
nacionais, desde os especialistas que comunicam com as elites
até aos generalistas (políticos, administradores, gestores) que
se entendem com as massas, conseguem falar uma «linguagem
comum» e manifestam uma “unidade de pensamento” a atestar
«que nós fazemos realmente parte de um mesmo universo inte-
lectual» e a demonstrar o progresso de uma autêntica “solidarie-
dade intelectual e moral da humanidade”;
– a dúvida íntima sobre se “ideias tão novas, tão complexas e que
implicam transformações sociais e mentais tão profundas, pude-
ram ser verdadeiramente assimiladas em tempo tão reduzido, pelo
menos nas suas implicações concretas, porquanto se esta assimilação
fosse tão real quanto foi rápida a manifestar-se à superfície das pa-
lavras, nós assistiríamos a modificações nas nossas sociedades que,
há que dizê-lo, não se realizam de facto com a mesma rapidez”23.

Um terço de século passado sobre estas considerações, e apesar de


continuarmos a utilizar uma certa linguagem comum, reconhecemos
honestamente que persiste em nós a mesma dúvida. Por um lado, não
parece que tenhamos assimilado as ideias na abrangência, profundidade
e complexidade das suas múltiplas relações e, sobretudo, que as tenha-
mos sabido integrar nos super-conceitos de educação ao longo da vida,

25
educação comunitária e educação ecossistémica. Por outro lado, não parece
que tenhamos adquirido a consciência das implicações concretas que essas
ideias possam ter nas dimensões profissional, social e pessoal da nossa
própria realização.
Quer dizer que, no mundo de hoje, as ideias nascem, difundem-se e
entram rapidamente na “linguagem comum” dos homens sem no entanto
produzirem as transformações que, à primeira vista, parecem implicar.
Está em causa a força das ideias ou, acaso, a fraqueza dos homens, ou
as duas coisas em conjunto.
A situação é grave mas não é nova. Deve-se à extrema dificuldade que
os seres humanos sentimos em acompanhar a mutação dos paradigmas cul-
turais e teve lugar em todos os tempos, particularmente nas épocas de crise,
como é fácil comprovar, a título de exemplo, nos processos de emergência
dos antigos impérios do Médio Oriente, na Atenas de Péricles ao assumir
a hegemonia da Grécia (séc. V a. C.) e na de Demóstenes ao soçobrar no
horizonte do império helenístico (séc. IV a. C.), na longa e difícil gestação
da Europa medieval sobre as ruínas do império romano (sécs. V-XV), na
dificuldade em retirar efeitos duradouros da alfabetização dos guerreiros de
Gengis Khan após a entrada em Pequim ou da aculturação da Corte do
seu neto Kublai Khan após a conquista de toda a China (séc. XII-XIII), na
precariedade dos resultados do esforço de mestiçagem cultural por parte
da população azteca depois da conquista do México (séc. XVI), na longa
caminhada da razão após o Renascimento e na eclosão da “scienza nuova ”
durante a idade moderna (séc. XVI - XVIII), no percurso difícil da liberda-
de depois da queda do “antigo regime” e através das sucessivas revoluções
que marcaram a idade contemporânea (séc. XIX-XX), no parto acidentado
do processo de globalização que, a partir da emergência das organizações
mundiais ao longo do séc. XX, hoje particularmente nos afecta.
O que marca a diferença da crise actual é que os problemas se vêm
tornando cada vez mais difíceis de resolver, não apenas pela crescente
complexidade dos factores de toda a ordem que neles intervêm, como
ainda pelo facto de hoje qualquer problema só poder encontrar solução
no contexto global em que se encontra inserido, pela acumulação histó-
rica dos efeitos negativos da sua não-resolução ou mesmo não-equacio-

26
namento em épocas passadas e ainda pela resistência e acção de forças
poderosas e contrárias que visam, a todo o custo, o controlo total do
processo.
Particularizemos alguns dos problemas que podemos considerar
cruciais.

A responsabilidade da condução do processo

No início da história da humanidade, os incipientes sistemas educa-


tivos desenvolveram-se sem qualquer preocupação de reflectir sobre as
respectivas experiências, concepções e práticas e, menos ainda, sem aten-
der ao peso dos contextos comunitários e ecossistémicos respectivos, de-
correndo por simples processos de osmose e impregnação e, mais tarde,
empenhando-se os seus responsáveis mais na transmissão de conteúdos
(mitos e ritos) do que na compreensão dos seus mecanismos.
Na era das grandes civilizações, verifica-se que o diálogo-debate-pes-
quisa sobre o conceito de educação deveu-se mais a iniciativas pessoais, –
desde a intervenção de grandes Mestres como Zoroastro, Confúcio, Buda
ou Sócrates e as notáveis realizações da Academia de Platão ou do Liceu de
Aristóteles, às incursões esporádicas, durante o Médio-Evo, de Agostinho
de Hipona ou de Tomás de Aquino e às intervenções mais orientadas dos
modernos (Montaigne, Erasmo, Coménio, Kant) – e menos à preocupa-
ção e esforço dos regimes políticos, das religiões ou das culturas, emer-
gentes ou dominantes, cujas instituições se encontram normalmente mais
interessadas em transmitir as próprias mensagens. Diríamos que os gran-
des mestres (Confúcio, Buda, Sócrates, Jesus) nunca foram o produto de
escolas instituídas mas, exactamente, os seus criadores.
Neste contexto, é intrigante o facto de a universidade ocidental – que
em quase um milénio de história acolheu no seu seio tantas dimensões da
ciência e da cultura, desde as primeiras quatro faculdades da Idade Média
(Teologia, Artes, Direito e Medicina) às faculdades de Letras, Ciências,
Tecnologias e Ciências Humanas nos séculos seguintes – só recentemente
(nas cinco últimas décadas) ter admitido a Educação, na sua estrutura
orgânica, como área científica.

27
Com efeito, a área científica da educação que anteriormente aparecia, de
modo extremamente reduzido e empobrecido nas instituições de nível mé-
dio dedicadas à formação de professores e educadores dos escalões etários
mais baixos: a) só foi admitida nas universidades a partir dos anos 60, sob
a forma de departamentos, faculdades ou institutos, com designações que
vão de Educação e Ciências de Educação a Pedagogia e outras mais estra-
nhas e bizarras em que aparece associada às áreas colindantes de Psicologia,
Letras, Ciências Humanas, Ciências Sociais, etc.; b) porque esta inserção
na orgânica da vida universitária aconteceu na época do incremento da
“escola de massas”, o período de estruturação, rodagem e consolidação da
nova área científica foi perturbado pela urgência das tarefas de formação de
professores e educadores às quais inicialmente foi dedicada a maior parte
do esforço realizado; c) entretanto, o processo de desenvolvimento destas
novas unidades orgânicas seguiu o seu curso, a ponto de hoje podermos
constatar que nalguns países, entre os quais Portugal, muitas delas revelam
notável pujança nas tarefas da própria estruturação (faculdades, escolas,
institutos, departamentos, áreas), de docência (cursos de graduação e pós-
-graduação), de investigação (centros, produção científica, publicações peri-
ódicas e não periódicas); d) nesta situação, temos hoje fundadas esperanças
de que estas unidades orgânicas continuarão a prestar à educação o melhor
contributo dos seus especialistas.
Já no que respeita à coordenação geral do processo e porque se trata
de um problema crucial de qualquer comunidade humana, ela cabe cer-
tamente aos governos dos Estados de Direito eleitos democraticamente.
Mas aqui tem surgido uma pergunta referente ao critério de governa-
ção. Na medida em que as constituições ou leis fundamentais dos países
membros da ONU (e aparentemente são todos) se declaram de acordo
com o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e,
portanto, com o objectivo de tudo fazer para o advento de um mundo em
que sejam reconhecidos e respeitados a dignidade e os direitos humanos,
adoptando a estratégia do “ensino e educação”, o critério de governação
poderá continuar a ser de carácter “militar”, “político”, “económico” ou
qualquer outro, ou deverá passar a ser de carácter “educativo”?
Mais concretamente e porque se trata de acertar no verdadeiro ca-

28
minho, o critério de organização do Conselho de Ministros será mesmo
o que aceita um coordenador “político” dos vários pelouros (economia,
finanças, assuntos sociais, negócios estrangeiros, saúde, justiça, educação,
cultura, etc.) ou o que elege um coordenador “educativo” ou “pedagógico”
dos diversos pelouros, substituindo, no seu elenco, o da educação pelo da
política (interna e externa)? Como já se pretendeu fazer, ingloriamente é
certo, na Cidade de Platão, mas com consequências milenárias na China
de Confúcio?
Como esperamos sublinhar mais adiante (cap. II) e alertando desde já
para as terríveis perversões do processo que organizações de carácter mais
ou menos secreto, pelo menos no que diz respeito aos seus objectivos e
estratégias, a partir da aliança dos poderes económico, político, acadé-
mico e da comunicação social, podem pretender impor24, importa não
esquecer esta insistência do esboço de programa de Governo Mundial
que a Organização das Nações Unidas assume ao proclamar, nos termos
da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que o advento do mundo
dos direitos do homem, fulcrado no valor da dignidade humana, é o fim
último a atingir não apenas “por todos os indivíduos e todos os órgãos
da sociedade” mas também “por todos os povos e todas as nações” “pelo
ensino e educação”25.
Mas o problema coloca-se hoje a um nível mais radical e abrangente,
porquanto mais “democrático”.
Na perspectiva actual da educação de adultos, da educação ao longo da
vida e da educação comunitária, em que todos nos reconhecemos não ape-
nas educandos mas também educadores e, nessa medida, corresponsáveis
por todo o processo educativo, acontece que ninguém de nós poderá ho-
nestamente abdicar deste trabalho de pesquisa, reflexão e acção, a partir
dos campos em que se move a própria actividade profissional, ou preten-
der alijar noutrem (grupo, partido, governo, oligarquia ou ditadura) a
própria responsabilidade.
Em cada caso, tal pesquisa-reflexão-acção deverá partir da experiência
de natureza profissional, social e pessoal, armazenada por cada um de
nós, sobre o desenvolvimento de todos os seres humanos, no respeito
pelos valores que presidem à sua realização. Por outro lado, as exigências

29
actuais da reflexão, em matéria de tamanha importância como esta, obri-
gam-nos a remontar dos problemas que têm a ver com os procedimentos
correntes, em qualquer dos níveis micro, meso e macro, às questões essen-
ciais que resistem no cerne do processo educativo, têm a ver com a sua
origem e o seu fim, e podemos verter nas fórmulas que, até por serem de
sempre, se mantêm actuais: o quê, o porquê e o para quê da educação.
Abordamos a seguir três grandes questões (escola, ensino, formação),
em relação com os três grandes tópicos da definição provisória de edu-
cação que acima registámos (coisas, pessoas, Valores) e de acordo com a
hierarquia das finalidades: as coisas são para as pessoas e as pessoas são para
os Valores.
Trata-se de problemas fundamentais da existência de cada um de nós,
que só podem encontrar solução dentro da comunidade que constituímos
e no contexto do mundo que habitamos. Pelo que só tem sentido falarmos
no plural. Do aqui e do agora. E sem constrangimentos ou tabus.

Escola: as “coisas” e o binómio educação e economia

Para crescermos e nos desenvolvermos, os seres humanos dispomos


de imensos recursos no universo. O que, para já, nos põe o problema da
nossa relação com eles e da sua distribuição.
Trata-se da tarefa de mobilização desses recursos no sentido de criar-
mos as melhores condições para que todos os seres humanos – crianças,
adolescentes e adultos – se desenvolvam e cresçam, desde o seio e os bra-
ços da mãe até ao leito ou lugar do acidente que precede a morte.
E aqui como em tudo o mais, numa perspectiva histórica e em termos
de educação comunitária, todos podemos aprender com todos.
O problema não existia e continua a não existir no interior dos grupos
humanos das tribos de nómadas e recolectores em que todos se reconhecem
membros da mesma família: sejam caçadores, pescadores ou agricultores,
a caça ou a pesca, o milho, o trigo ou o arroz é propriedade de todos e por
todos distribuído. Fica deste modo assegurada a criação de condições para
todos viverem e crescerem. E desde que nascem até que morrem.
Com o advento das sociedades complexas que estão na origem das

30
chamadas “civilizações”, através dos processos violentos de guerras e con-
quistas e da instituição das hierarquias de classes ou castas, opera-se a ci-
são entre dominados e dominadores, escravos e homens livres: os primei-
ros, despojados de tudo até de tempo para si próprios, vão ser forçados ao
trabalho de angariação de recursos para todos; os segundos apropriando-
-se de tudo, inclusive do tempo dos escravos, passam a ser os únicos a go-
zar das condições favoráveis ao próprio desenvolvimento na medida em
que dispõem de “tempo livre”, de paragem, descanso, repouso, lazer, ócio,
divertimento ou, falando em grego de scholé e, falando em latim, de schola
(do *IE Segh- que envolve a ideia geral de “agarrar, manter”).
A possibilidade de dispor de condições e de tempo para o desenvol-
vimento propriamente humano deixa de ser atributo de todos e torna-se
privilégio de alguns. No processo educativo, ficam de fora as massas e
permanecem dentro as elites.
Falemos mais cruamente: pela redução de seres humanos à condição
infra-humana de escravos, aumenta exponencialmente o número de “coi-
sas” e diminui drasticamente o número pessoas.
Entretanto, ao longo da época clássica das civilizações grega e roma-
na, reconhece-se que este “tempo livre” dos privilegiados pode e deve ser
aproveitado para o trabalho, por vezes também esforçado, do desenvolvi-
mento do espírito através do estudo (do *IE Steu-, (S)teud-, que envolve
a ideia geral de “empurrar, bater” e donde nos vêm lexemas como tunda,
contundente, contusão, obtuso, etc.) e o lexema schola torna-se objecto, de
uma expressiva metamorfose semântica:

“O termo schola não é sinónimo de ócio e lazer; significa, isto sim,


que, deixando de parte as demais ocupações, as crianças devem dar-se
aos estudos próprios de homens livres” (Gramático Festo, séc. III).

O que exprime ainda melhor o fosso cultural desde sempre cavado


entre os “homens livres” e os “escravos”.
Com efeito, o sentido novo de lugar e tempo de estudo, ao longo dos
milénios, promoveu e alcandorou a escola aos mais elevados níveis de no-
breza e esplendor, como centro de encontro, diálogo, investigação e dina-

31
mismo produtivo das comunidades humanas, nos domínios da técnica,
da ciência, da arte, da cultura, da moral e da religião.
Mas este mesmo sentido, ligado às tarefas de quem, por se encontrar
liberto de ocupações materiais, se pode entregar a ocupações do espírito
através do estudo, se por um lado caracteriza o subsistema escolar, através
de toda a panóplia de realizações e êxitos, também marca o seu percurso
ao longo da história como triste rosário de ambiguidades e fracassos, de-
signadamente no sentido de não ser ou não ser igualmente para todos:

– na era antiga, por exemplo, não para o número incontável de


camponeses a trabalhar sob a longínqua orientação dos sábios da
corte na sequência milenar das dinastias do império da China,
nem para os membros inferiores do rígido sistema de castas,
consolidado no período neo-védico (1000 a C.) da Índia;
– na era clássica ocidental, greco-romana, não para os escravos
com todo o seu tempo ocupado nos trabalhos manuais, mas
apenas para os “politoi” ou “cidadãos” que dispõem de tempo
livre e podem dedicar-se às tarefas do espírito”;
– na época de transição do império bizantino e das nações lati-
no-germânicas emergentes do Centro da Europa, não para os
habitantes de espaços circundados ou circunvizinhos, sklabenoi
para os bizantinos e servi para os latino-germânicos, de onde de-
rivam os lexemas actuais de eslavos, sérvios e similares atribuídos
aos habitantes dessas imensas regiões;
– na época medieval, não para os “servos da gleba” dos campos nem
para a “arraia miúda” das cidades, dados às ocupações servís, mas
somente para os homens livres do clero, da nobreza e, mais tarde,
da burguesia, que podem aceder ao exercício das artes liberais;
– já na época moderna e durante séculos, não para as gerações
de africanos vítimas do “tráfico de negros” que, no circuito do
chamado “comércio triangular”, eram angariados pelos inter-
mediários e sobas do interior de África, vendidos nos portos
marítimos aos comerciantes europeus, transportados e forçados
a trabalhar nas “plantações esclavistas” das Américas (Tropical,

32
Norte e Sul) onde, no período posterior aos genocídios perpe-
trados sobre as populações autóctones, deram origem às actuais
populações euro-afro-americanas;
– entretanto começa a formar-se o “subsistema escolar”, pela
ordem dos escalões superior, secundário e primário (séc. XII-
XVII), que estabiliza em forma de pirâmide, com acesso tan-
to mais reduzido quanto mais alto é o escalão, em que se faz
corresponder o nível de cada escalão (primário, secundário, su-
perior) às tarefas sociais atribuídas ao respectivo extracto social
(baixo, médio, superior) e em que apenas o escalão mais alto,
representado pela universidade, fornece à elite preparação para
as profissões liberais;
– a mesma tendência redutora vai marcar até os subsistemas
emergentes da educação de infância (séc. XIX) e da educação
de adultos (séc. XX), na medida em que o subsistema escolar
dominante tende a situá-los à margem, através das designações
de pré-escolar e extra-escolar;
– nos dias de hoje, em tempos de assimilação generalizada do
conceito de educação comunitária, esta herança pesada de atri-
buir os recursos não a todos mas apenas a alguns, revela-se à
escala do mundo, no fosso cavado entre países “desenvolvidos”
e “subdesenvolvidos” também designados eufemisticamente “em
vias de desenvolvimento” ou, dito de forma mais abrangente, en-
tre os hemisférios Norte e Sul, e é espantosa a “tranquilidade de
consciência” com a qual continuamos a falar deste e dos ante-
riores “acidentes” da história.

Tudo isto põe a nu as dimensões do escândalo planetário em que a


educação naufragou desde sempre e continua a naufragar. A Humanidade
é só uma. Mas nos países “desenvolvidos” continuamos:

– a discutir as linguagens, aprofundar os conceitos, dinamizar


as práticas, promover as pesquisas sobre educação, sem olhar a
tantos milhões de seres humanos carentes dos recursos mínimos

33
e condições para (sobre)viver;
– a mostrar-nos sensíveis e prontos a socorrer, com ajudas de
todo o género, as vítimas dos grandes cataclismos e acidentes
naturais (inundações, sismos, maremotos), mas a permitir que
todos os dias morram crianças porque as mães não têm leite
para as amamentar ou um pouco de farinha para lhes dar, quan-
do é exactamente pelo gesto de nutrir (o sentido originário do
latim educare) que começa e acaba a educação;
– a acautelar e defender afincadamente o bem-estar intra-muros
dos nossos países “desenvolvidos” e a fechar as portas a todos
aqueles que, através dos ecrãs da geografia, da história, do turis-
mo ou do telejornal, sabemos reduzidos à miséria e que deixa-
mos morrer nos mares e nas praias que nos rodeiam;
– a provocar a degradação das condições de vida do planeta co-
mum (poluição, desperdícios, resíduos) sem cuidar das pertur-
bações do ambiente que nos afectam a todos e mais aos que
menos ou nada têm.

A gravidade do problema reside em que ele se enquista na tendência


tradicional da escola para colocar-se ao serviço da pura angariação de
recursos, quer através daqueles que excluiu do seu seio, quer orientando
prioritariamente para essa tarefa os próprios alunos ao preocupar-se quase
exclusivamente com a sua formação profissional.
Trata-se, afinal, da relação entre educação e economia. É óbvio que os
dois subsistemas são interdependentes. O que não se afigura aceitável
é que o sistema educativo fique sujeito, sub-dimensionado, diminuído,
bloqueado, frustrado, pela sua relação com o sistema económico ou, pior
ainda, que a educação se organize em função da economia, porque, na
medida em que o sistema económico for injusto, todo o processo educa-
tivo irá padecer de injustiça radical.
As consequências de em vez de pormos a economia ao serviço da edu-
cação, acabarmos por pôr a educação ao serviço da economia, tornam-se
mais trágicas no mundo de hoje em que tendo a Declaração Universal dos
Direitos do Homem atribuído a primeira prioridade à educação no sentido

34
mais amplo, continuamos a assistir ao domínio deste mundo pelo clube
da Banca Internacional com o apoio dos empresários, a anuência dos
políticos e o silêncio dos meios de comunicação social.
Afigura-se que esta disfunção educacional milenar apenas poderá en-
contrar solução se aderirmos ao paradigma educativo emergente que ul-
trapassa, em todos os sentidos, a escola:

– no horizonte da educação ao longo da vida, ela não se encontra


reduzida a um tempo ou um espaço, um edifício ou uma ins-
tituição, não corresponde a uma fase da existência, mas abarca
todo o tempo e todo o lugar em que o ser humano vive, convi-
ve, trabalha e se diverte, na medida em que pertence a todos ter
ocupações e dispor de tempos livres, trabalhar e folgar;
– no horizonte da educação comunitária, reconhecemos hoje que
todas as ocupações têm igual dignidade e que, através delas, cada
um de nós interage, como educando e como educador, com
todos os seus semelhantes;
– no horizonte da educação ecossistémica, pressupõe-se que a hu-
manidade, no seu conjunto, pode angariar os meios ou recursos
necessários a todos os seres humanos para desenvolver a vida e
transformar o mundo. Haja discernimentos e decisões!

O que se encontra em causa na base de todo este conflito é a resolu-


ção prévia do problema da hierarquia dos valores: educação ao serviço da
economia ou economia ao serviço da educação? Problema grande e velho
como o mundo a exigir, e com a urgência máxima, consciencialização e
clarividência, pesquisa e debate, consenso e determinação para encontrar
e seguir o verdadeiro caminho.
Pelo menos consta ser esta a mais grave questão agitada no “Bando
das Gaivotas”, no decorrer do conflito entre um casal de pais e a filhinha
rebelde e posteriormente submetida ao “Grande Conselho”, na forma
da pergunta considerada a mais difícil de responder desde que o Bando
existia: “as gaivotas voam para comer ou comem para voar?”26

35
Ensino: as pessoas e a relação entre educação e comunidade

Como acabamos de ver, a escola vem-se transformando ao longo dos


tempos.
Na medida em que, nas décadas mais recentes e nos países ditos de-
senvolvidos, ela vai chegando a todos ou todos vão chegando a ela, em
que vai diminuindo o número dos “escravos” ocupados na angariação de
recursos e vai aumentando o número de “pessoas” que dispõem de tempo
livre para o estudo, a própria escola foi tomando a seu cargo preparar os
alunos para o exercício das tarefas destinadas à obtenção dos recursos. O
objectivo principal passa a ser a preparação profissional e a estratégia vai
corresponder ao ensino no sentido de transmissão e à aprendizagem no
sentido de apreensão dos conhecimentos que constituem o legado das
nossas civilizações.
Até aqui tudo certo. Nem se compreende que possa ser de outra ma-
neira. Só ganhamos com o aproveitamento integral do riquíssimo patri-
mónio técnico e científico que herdamos das gerações anteriores. Mas
a experiência da actual “crise mundial da educação” obriga-nos hoje a
aprofundar a análise em ordem a evitarmos a derrapagem.
É sempre a geração adulta que toma conta do processo e o conduz,
de acordo com as experiências, convicções e práticas do paradigma do-
minante, pela transmissão dos mitos e ritos nos grupos humanos mais
antigos, pela propagação das doutrinas e ideologias nas civilizações poste-
riores, pela injunção dura nos “antigos regimes”, pela imposição violenta
nos antigos e modernos regimes ditatoriais.
Aos mestres, professores, dirigentes, condutores compete ensinar e aos
discípulos, alunos, dirigidos, conduzidos compete aprender os conheci-
mentos e as regras.
Ora se nos deixamos levar apenas por este critério, corremos o risco
de o peso da tradição da antiga geração, por natureza conservadora e
tendencialmente imobilista, abafar a força da geração nova, por natureza
pujante e inovadora, no sentido mais corrente que evoca o vocábulo in-
glês education e de acordo com a fórmula da educação continental que,
ainda em 1912, era recordada por Emile Durkeim:

36
“Toda a educação consiste num esforço contínuo por impor, à criança, mo-
dos de ver, de pensar e de agir aos quais ela não teria chegado espontaneamente
e que lhe são exigidos pela sociedade no seu conjunto e pelo meio social a que é
particularmente destinada”27.

Para além do juízo negativo emitido sobre a incapacidade estrutural da


criança e da persistência insuportável da mentalidade classista constantes
do texto, dimensões da pior mentalidade conservadora que esperamos se
encontrem hoje definitivamente superadas, importa sublinhar que, mes-
mo na modalidade mais benévola de simples transmissão e apreensão
dos conhecimentos, o processo nele descrito pode ficar reduzido a dar o
peixe em vez da cana para pescar (no velho ditado chinês), a desencadear
o mero enchimento à custa do desenvolvimento da inteligência (“cabeça
cheia versus cabeça bem feita”, de Montaigne) e, no melhor dos casos, a
estimular o desenvolvimento não de todas as potencialidades do aluno
mas apenas da sua capacidade intelectual.
Detenhamo-nos no último ponto, pois é nesta perspectiva que se vem
procedendo ao confronto entre os dois conceitos de ensino e educação.
Perante a pergunta “ensinar é o mesmo que educar?”, normalmente
pronunciamo-nos pela negativa. E, no entanto, é usual tomarmos os dois
processos como equivalentes. Mais, é corrente, ao falarmos em tudo o
que diz respeito ao sistema educativo (lei de bases, reformas, avaliação,
contestação, crise, etc.), pensarmos em tudo o que diz respeito ao sub-
sistema escolar ou de ensino. No limite, na maneira corrente de pensar e
de falar, acabamos por reduzir a educação ao ensino (e aprendizagem),
à mera transmissão (e apreensão) de conhecimentos, caindo numa du-
pla redução do processo educativo: a) promover apenas o enchimento
e não o desenvolvimento da capacidade intelectual; b) no melhor dos
casos, promover apenas o desenvolvimento da dimensão cognitiva e não
o desenvolvimento humano em todas as suas dimensões (física, afectiva,
intelectual, artística, moral, etc.).
Importa, por isso, compreender a relação entre os dois conceitos e a
necessidade de integrar o processo de ensino no processo de educação.
Se o processo de ensino consistir em mera transmissão de conheci-

37
mentos, ensinar é bom mas é insuficiente em termos de educação; se, para
além e através da transmissão de conhecimentos, visar o desenvolvimento
da capacidade intelectual do aluno, ensinar é melhor porquanto passa a
constituir uma parte, aliás muito importante, do verbo educar; se, para
além de tudo isso, tiver em conta a preocupação pelo “desenvolvimento
da pessoa humana” (Art.º 26º 2, da Declaração Universal dos Direitos do
Homem) em todas as suas dimensões, ensinar será óptimo, na medida em
que a conjugação do verbo ensinar se encontrará perfeitamente integrada
na conjugação do verbo educar.
Só integrado na educação, o ensino adquire sentido, justificação e
eficácia.
Da raiz *IE Sek- que envolve a ideia geral de “cortar”, recebemos:
– através do grego sēma, “sinal, marca”, os lexemas semântica, se-
miótica, etc.;
– através do lat. secare, “cortar”, lexemas como segar e segmento,
secção e sector, secante e insecto, etc.;
– através do latim signum, “signo, sinal”, lexemas como sino e sina,
selo e sigla, sinal e senha, significado e insígnia, sigilo e assinatura,
desenho e desígnio, ensino e ensinar, etc.
Nesta última derivação, o sentido original tende a ficar reduzido a um
“corte” superficial como o que fazemos na casca de uma árvore jovem, a
deixar “marca” que até pode crescer com ela, mas que não altera substan-
cialmente a sua natureza e a sua capacidade de crescer, florir e frutificar.

Para isso impõe-se agir em maior profundidade.


Da raiz *IE Deuk-, Duk- que envolve a ideia de “conduzir, guiar, li-
derar”, recebemos o verbo educar em três sentidos correspondentes a três
verbos latinos intermediários (que mais tarde, serão objecto de um desen-
volvimento mais aprofundado):

– através do verbo latino edŭco, as, āre, “nutrir, alimentar”, no


sentido de fornecer o alimento para as pessoas crescerem;
– através do verbo educo, is, ěre, “eduzir, extrair”, no sentido de
criar as condições para que, das suas capacidades e virtualidades,

38
brotem naturalmente todas as realidades nelas contidas;
– através do verbo duco, is, ěre, “conduzir”, no sentido de que se-
jam ajudadas pela condução dos mais experientes na abertura do
próprio caminho de existência.

Mas, para isso, importa avançar na transformação do processo de


simples informação que ainda caracteriza o circuito ensino-aprendizagem
do subsistema escolar no processo de verdadeira comunicação próprio de
uma autêntico sistema educativo.
Na educação ao longo da vida, a primeira fase (educação de infância) e
a última fase (educação de adultos) são já compreendidas neste sentido:
na comunicação com as crianças não se trata essencialmente de ensinar e
aprender mas, recorrendo a tudo isso e para além disso tudo, trata-se de
criar condições para que elas próprias se tornem capazes e procurem crescer
em todas as suas dimensões; na comunicação com os adultos, para além
dos processos de ensinar e aprender que incluem também os de desapren-
der muita coisa que tem a ver com enganos e erros acumulados, procura
estimular condições para que os próprios adultos se tornem capazes de se
movimentarem como pessoas conscientes e livres e de eles próprios procura-
rem respostas para as suas necessidades e aspirações.
Na dimensão da educação comunitária, trata-se não de uns ensinarem
e outros aprenderem, nem mesmo de uns educarem e outros serem edu-
cados, mas de todos aprendermos com todos, de todos nos inter-educarmos,
na certeza de que “ninguém educa ninguém nem ninguém se educa a si
próprio, todos nos educamos em comunhão” (P. Freire)28.
Em termos de educação ecossistémica, trata-se de explorarmos todos os
recursos do universo e colocá-los ao serviço de todas as pessoas da comu-
nidade para que todos nos realizemos nos Valores da existência.
Em resumo, não se trata de nos mantermos afastados mas de nos
aproximarmos, não de nos combatermos mas de nos inter-ajudarmos, não
de nos servirmos uns dos outros mas de nos servirmos uns aos outros.
É óbvio que este caminho não se percorre sem dificuldades. Que exige
experiência, discernimento, compreensão, tolerância, decisão, persistên-
cia, coragem, esforço agónico. E empenhamento ético no reconhecimen-

39
to e respeito pelos Valores. E sensibilidade e empatia e delicadeza com as
pessoas e as próprias coisas.
À maneira do que se conta de certo Principezinho, chegado de outro
Planeta, que docemente entrava em comunicação com tudo e com todos,
aprendia com a raposa a aproximar-se dela por pequeninos passos e a
“prendê-la a si” e a saber que “somente se vê bem com o coração” e que
“o essencial é invisível aos olhos”, e falava em “amar uma flor de que só
existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas”29.

Formação: os valores e o rumo do processo educativo

Relacionado com o grego morfé do qual, em português, recebemos


morfema, morfologia, metamorfose, etc. e derivado do latim forma do qual
recebemos forma e seus derivados, formoso, formulários, etc., o lexema
formação no sentido de acto, efeito ou modo de adquirir determinada
forma, pode entender-se de duas maneiras:

– como processo exógeno, de impressão de uma forma numa maté-


ria a partir do exterior, à maneira adoptada pela generalidade das
artes, seja por Rosa Ramalho a modelar o barro com as próprias
mãos, seja por Miguel Ângelo a esculpir o mármore a golpes de
escopro e de cinzel e, neste sentido, Plotino, para definir a educa-
ção, utiliza a expressão metafórica “esculpir a estátua de homem”;
– como processo endógeno, próprio dos seres vivos, em que a for-
ma brota do interior e implica as fases de germinar, nascer, cres-
cer, florescer, frutificar, amadurecer no reino vegetal, ou desen-
volver-se até se tornar adulto, tantas vezes através de inesperadas
transformações ou metamorfoses, no reino animal.

Verifica-se assim que o desenvolvimento dos seres vivos não se proces-


sa ao acaso ou parcialmente, mas de acordo com a programação definida
no genoma da própria espécie e definidora das dimensões, proporções,
tempo e ritmo peculiares do processo que conduz cada planta ou animal
à plena realização.

40
Mais concretamente no ser humano, dotado de consciência e liber-
dade, o processo de desenvolvimento não poderá decorrer sem rumo,
sem norte, sem regra, sem lei (anomia), mas de acordo com a direcção, a
linha recta, directa ou direita ou ética, que implica a aquisição das com-
petências para explorar os recursos do universo e os pôr ao serviço das
pessoas, no sentido de lhes proporcionar as melhores condições para elas
acederem aos Valores em que se completam e realizam.
Consideramos correntemente que a formação humana é integrada por
três dimensões fundamentais: profissional, social, pessoal.
No que respeita à formação profissional, não será aceitável que, pela
pressão dos interesses imediatos de ganhos, lucros ou proveitos na vida
concreta, privilegiemos apenas a obtenção do conjunto de competências
e atitudes que permitam e legitimem o exercício de determinada acti-
vidade (agricultor, comerciante, engenheiro, médico, jurista). Qual será
o maior crime, alguém roubar ou matar uma ou várias pessoas ou, aca-
parando os recursos que a natureza e a sociedade põem ao seu dispor
durante o tempo do percurso escolar, os aproveitar para adquirir um tipo
de formação meramente profissional, procurar atingir um elevado nível de
especialização e depois passar a vida, no exercício da profissão, a explorar
tudo e todos sem qualquer escrúpulo de ordem social e/ou moral, causan-
do a desestabilização das vítimas, da própria família humana e/ou até de
todo o ecossistema?
No que se refere à formação social, não poderemos, nos dias de hoje,
deixar-nos reduzir a dimensões limitadas do passado, como cidadãos de
Esparta ou de Atenas e, a seguir, do Império Romano, fiéis das igrejas
medievais ou modernas, súbditos de Sua Majestade no antigo regime, pa-
triotas das Pátrias ou filhos das Nações nos tempos modernos, mas, no
horizonte da abertura da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
importa assumirmos o pleno estatuto de cidadãos do Mundo ou, melhor e
nos próprios termos desse texto, de membros da Família Humana.
Finalmente e no que diz respeito à formação pessoal, impõe-se ter pre-
sente que interessa ainda e sobretudo aspirarmos ao desempenho cons-
ciente, livre e responsável do mister de Homem.
A formação assim entendida, na sua tríplice dimensão, e obtida ao

41
longo de todo o processo da educação ao longo da vida, na modalidade de
formação inicial durante a fase de educação de adolescentes e na modali-
dade de formação contínua durante todo o tempo de educação de adultos,
representa, nos dias de hoje, o cerne do sistema educativo, na medida
em que prepara o ser humano para participar na angariação de recursos
através das diferentes áreas de especialização profissional, para a criação
de condições propícias ao exercício da cidadania dentro das comunidades
de que faz parte, em ordem a atingir a sua plena realização como pessoa
consciente, autónoma e responsável, no universo em que existimos.
Os seres humanos que verdadeiramente acertaram no caminho da sua
tríplice formação foram sempre aqueles que, para além de se tornarem com-
petentes no domínio das coisas e no serviço das pessoas, se projectaram no
horizonte dos Valores e deste modo descobriram rumos, perseguiram ideais,
atingiram metas, e assim se aproximaram da realização em plenitude.
Fez-se assim, ao longo da História, a epopeia da técnica, da ciência, da
civilização, da arte, da cultura.
Que tudo isto implica ir além do normal, do real e acaso do possível,
pelo trabalho aturado, a pesquisa insatisfeita, a investigação permanente,
a coragem de servir e de abrir caminhos novos a projectar-se nos hori-
zontes da imaginação, do sonho, da utopia? Com certeza. O processo
educativo é feito da ambição, da coragem, do esforço, da persistência, do
entusiasmo e da alegria de todos aqueles que um dia exclamaram, com
Luther King, “I have a dream”, “eu tenho um sonho” e decidiram, com
Sebastião da Gama, “pelo sonho é que vamos!”.
Que, afinal, somos todos. Pois se alguns ficam de fora será porque,
estranhamente,

“Eles não sabem que o sonho


é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer […]

Eles não sabem nem sonham


que o sonho comanda a vida ,

42
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança”30.

3. Questões metodológicas

Para deslindarmos, equacionarmos e tentarmos resolver tantos e tão


graves problemas que surgem em matéria de tamanha importância como
é o do nosso crescimento global e harmónico ao longo de todas as fases
da vida pessoal, com repercussão positiva no funcionamento da comu-
nidade e na evolução do universo, importa que adoptemos os métodos
(metá, “com ou através do” + hodós, “caminho”) mais adequados.
Trata-se de acertarmos em cheio no Caminho.
Correntemente nem sempre atendemos a este ponto essencial, mas
vivemos ao acaso e ao sabor das circunstâncias: falamos muito, pensamos
pouco, vivemos mal; as palavras não correspondem aos conceitos e os
conceitos não se traduzem na prática da vida; detemo-nos no imediato
e planamos à superfície das coisas; por certa preguiça, contentámo-nos
com o fácil (repetir o que já foi feito) e abominamos o difícil (investigar
e descobrir o que é novo); aprendemos e sabemos razoavelmente o que
fazer das coisas, ignoramos tudo ou quase tudo sobre o que fazer de nós
próprios; aprendemos o quê, esquecemos o porquê e o para quê.
Cada ser humano, seja qual for a sua idade e o seu género de vida,
adopta, consciente ou inconscientemente, o método correspondente à
própria fase de desenvolvimento e/ou ao seu tipo de actividade e/ou espe-
cialidade técnica, científica, cultural. Neste sentido e na medida em que
todos somos educadores e educandos, o primeiro princípio consiste em
respeitar os métodos privilegiados por cada ser humano: criança, jovem,
adulto, técnico, investigador, artista, crente, agnóstico, ateu.
Mas no processo de educação ao longo da vida, de âmbito tão vas-
to como a nossa experiência humana global e acumulada, no sentido da
célebre afirmação de nihil humanum a me alienum puto, “nada do que é
humano considero alheio”, impõe-se a todos nós, na reflexão sobre o sis-

43
tema educativo, recorrer a um método integrado que, atento às exigências
do pensamento actual no que diz respeito a rigor, amplitude, aprofunda-
mento, vibração e disponibilidade, tenha na devida conta o vasto leque
de métodos provados, antigos e novos, e que, provavelmente, de acordo
com a descrição feita por H. Simon do espírito humano como um GPS,
general problems setting and solving, e na peugada de E. Morin, poderí-
amos resumir deste modo: a experiência que através do círculo curiosi-
dade-dúvida-reflexão alimenta o espírito crítico, o pensamento complexo, a
atitude questionadora, a mêtis, a serendipidade31.
Passamos a recordar cada um deles, de forma mais sintética ou mais
desenvolvida de acordo com a respectiva novidade, e pondo em relevo o
seu impacto na área da educação.

Experiência: curiosidade-dúvida-reflexão-espírito crítico

Ligado ao ante-positivo perig-, que envolve o sentido de “tentativa,


prova, ensaio” e se encontra em relação com os lexemas gregos peira e
empeiria, donde nos vem empíreo, empirismo, pirata, etc., e com o antigo
lexema latino periri, “perecer”, donde nos vem perigo, periclitante, etc., o
termo experiência, no sentido de metodologia radical, desenvolve-se ao
longo das diversas fases da existência e vai fazendo de nós expertos e peritos
nos processos da vida e da educação.
Partindo da experiência das sensações do mundo exterior e dos sen-
timentos do mundo interior, importa alimentar a curiosidade inata que
tantas vezes desemboca no espanto perante o que é estranho, no deslum-
bramento perante o que é belo, na felicidade perante o que é bom. Trata-se
do sentimento inato que leva a tudo olhar “como se fosse a primeira vez”,
representa a matriz verdadeira da energia, da magia e da alegria da infân-
cia e alimenta toda a literatura infantil, desde as fábulas de Esopo, de Fedro
e de La Fontaine, às estórias da Branca de Neve e da Gata Borralheira, aos
livros sobre Alice no País das Maravilhas e aos DVDs sobre as Maravilhas
no País do Pai Natal…
Depois é também estimulante a experiência de se deixar abalar pela
dúvida que se infiltra subtilmente na crise que acompanha a passagem

44
do novo ser humano através da adolescência, até atingir o paroxismo do
idealismo puro, da contestação e da rebeldia.
Finalmente, importa abrir todo o campo á experiência da reflexão pes-
soal do jovem adulto sobre os mil acidentes e incidentes da vida, da dor
e do amor.

Curiosidade, dúvida e reflexão pessoal representam as três facetas do


espírito crítico, que constituem a marca do ser adulto e que sucessiva-
mente foram glosadas, ao longo dos tempos, por Aristóteles na conti-
nuidade do espanto dos pré-socráticos perante o mundo que os rodeava,
por Descartes ao analisar as peripécias da dúvida metódica, por Kant ao
deixar-se envolver nas dimensões da crítica e, a seguir, foram integradas
no processo experimental característico de cada uma das “ciências expe-
rimentais” nascidas nos tempos modernos e herdadas, na última meta-
de do século XX, pelas chamadas “ciências da educação” cultivadas nos
actuais departamentos das instituições de educação superior: Ecologia,
Economia, Tecnologia, Sociologia, Psicologia, História … da Educação,
Desenvolvimento Curricular, Pedagogia, Didáctica, etc.
Porque se encontra no cerne da nossa existência pessoal e comunitária,
a educação exige, antes de mais, um tratamento rigorosamente científico
em todas as dimensões da sua abordagem.

Pensamento complexo

Mas a multiplicidade das “ciências da educação”, de acordo aliás com


o que se vinha verificando noutras áreas científicas, vem deparando com
imensas dificuldades e até objecções.
Com efeito, o desenvolvimento da ciência ao longo da história, atin-
giu uma situação brilhante mas insustentável, pela sua progressiva com-
partimentação, fragmentação e pulverização.
Em vez de aceitarem que

“os nossos problemas são, cada vez mais, do foro global e admitem
apenas soluções globais”, “os homens ergueram muros altos que sepa-

45
ram os ramos do conhecimento essencial a esta demanda – as várias
ciências, políticas, religiões, éticas”32

e reduziram cada um destes campos a uma pulverização de


especializações.
É contra este estado de coisas que, desde algum tempo a esta par-
te, o pensamento se vem movimentando nas correntes mais profun-
das e poderosas das diversas áreas científicas: de A. Einstein a P. Dirac
e W. Heisenberg nas Ciências Físicas, de Von Bertalanffy a E. Morin
nas Ciências Sociais, de R. Jakobson a R. Barthes e N. Chomsky na
Linguística33, do grupo da História Nova dos Annales à equipa da História
da Humanidade (UNESCO) na História, etc.
Se já a partir de princípios do séc. XX, com a emergência da teoria
quântica a Química acabou por ser integrada na Física, as primeiras
descobertas da Genética foram arrumadas dentro da Bioquímica, ou-
tras descobertas deram origem às teorias da auto-eco-organização34 e a
História se propôs alcançar a “compreensão do anthropos” e a “inteli-
gência das culturas”35, acontece que “a biblioteca da nossa própria for-
mação hereditária, o genoma humano, revela-nos hoje que a Biologia
é muito mais como a Língua e a História do que como a Física e a
Química36.
É neste contexto que Edgar Morin, na sequência das três etapas do
seu percurso de investigador – o interesse pela questão do método, a
preocupação com o estado da ciência e, mais recentemente, a impor-
tância atribuída à educação – fala do pensamento complexo a exigir

“uma tomada de consciência radical: a causa profunda do erro não está


no erro de facto (falsa percepção) ou no erro lógico (incoerência), mas
no modo de organização do nosso saber em sistemas de ideias (teorias,
ideologias), […] modo mutilador de organização do conhecimento,
incapaz de reconhecer e apreender a complexidade do real”37.

Frisando constantemente que sob esta designação de complexidade


não se esconde a solução mas apenas a abordagem do problema, que “a

46
complexidade é um problema, é um desafio, não é uma resposta”, recor-
da que o “paradigma da simplificação” que dominou o ocidente nos últi-
mos séculos, conduz a uma visão mutiladora do real na medida em que se
limita a operar pelos princípios: a) de disjunção entre a reflexão filosófica
e o conhecimento científico e, dentro deste, entre os campos da Física,
da Biologia e das Ciências do Homem e ainda, no interior de cada um
destes campos, num sempre crescente número de disciplinas, matando a
possibilidade de compreensão da unidade do real; b) de redução do todo
complexo (cada realidade) ao simples (as suas partes ou elementos); c)
de abstracção, na medida em que procura compreender a(s) realidade(s)
através da quantificação, medida, matematização e cálculo das relações
entre os seus elementos.
Nesta situação, desenvolve a ideia de complexidade, pondo em relevo:
a) o princípio dialógico entre contrários, por exemplo entre a ordem que
se degrada em desordem (terceiro princípio da termodinâmica) e a de-
sordem que se repõe em ordem (processo de auto-eco-organização); b) o
princípio de recursão organizacional entre causa e efeito (redemoinho); c)
o princípio hologramático (“não apenas a parte está no todo, mas o todo
está na parte”)38.
Nos últimos tempos e nos últimos livros em que, para além de tudo
o mais, encontramos este exemplo de mais um pensador que no decorrer
ou no termo do seu percurso, descobre a educação como tema central,
vem atribuindo à educação importância decisiva, pondo em relevo que “as
cinco finalidades educativas” estão ligadas entre si e devem alimentar-se
umas às outras: “a cabeça bem feita que nos dá aptidão para organizar o
conhecimento, o ensino da condição humana, a aprendizagem do viver,
a aprendizagem da incerteza, a educação cidadã”39.
E, respondendo a um convite da UNESCO, apresenta os Sete Saberes
para a Educação do Futuro: as cegueiras do conhecimento (o erro e a ilu-
são); os princípios de um conhecimento pertinente; ensinar a condição
humana; ensinar a identidade terrestre; enfrentar as incertezas; ensinar a
compreensão; a ética do género humano40.

47
Atitude questionadora

Mas o aprofundamento desta experiência só adquire sentido numa


perspectiva global que vá alimentando o treino do pensamento abran-
gente (“ars cogitandi”) e que se traduz no questionamento radical (que é
tudo?) dentro de uma disciplina ambiciosa (Filo-Sofia, Amor da Sabedoria)
permanentemente a destilar perguntas que ficam a aguardar respostas.
Brotando do sentimento originário de assombro perante o univer-
so que nos rodeia, consubstanciado nas perguntas sobre o ser, “que é e
porque é tudo isto?” “que são e porque são todas as coisas dentro do Todo?”,
a Filosofia desencadeia o processo de investigação que a todos nos impli-
ca, ao longo dos milénios, na conjugação dos verbos procurar, indagar,
pesquisar, questionar, criticar, ponderar, pesar, pensar, desde as crianças
de quatro anos que insistem “e porquê?”, aos alunos que se iniciam na
disciplina de Filosofia durante o Secundário, aos especialistas que numa
determinada área científica atingem o grau académico mais elevado re-
cebendo, na tradição inglesa de origem medieval, o título de Ph. D.,
Philosophiae Doctor, Doutor na Procura da Sabedoria, seja embora em
qualquer dos seus campos específicos, produção florestal, macrofísica, in-
formática, biotecnologia, ciências sociais ou qualquer outra.
Na sequência da adopção socrática do Oráculo de Delfos “conhece-te
a ti mesmo”, o esforço de filosofar passa a incidir sobre o Sujeito, depois,
na deriva platónica, metamorfoseia-se na questão do conhecer e coloca
os seres humanos a balancear entre dois posicionamentos: por um lado
a humilde confissão da sua ignorância – “não sei nada”, “só sei que nada
sei”, “quanto mais sei, mais sei que nada sei” – e, por outro lado e apesar
do reconhecimento de que a sabedoria é prerrogativa divina – “sábios, sá-
bios só os deuses” – o sentimento da impossibilidade pessoal de esquecer
ou iludir ou se desenvencilhar do impulso originário que vem atravessan-
do todos os tempos da História e os leva a querer, desejar, amar (philia) a
sabedoria (sofia), a insistir e persistir em procurar descolar do mundo que
se encontra perto para, no horizonte heideggeriano, “nos aproximarmos
do que está longínquo”41.
No horizonte do empreendimento socrático em que, originariamen-

48
te, mal se distinguem as fronteiras entre filosofia e educação, apesar das
derivas platónica e aristotélica, ficou sempre reservado à filosofia um pa-
pel fundamental na pesquisa sobre o processo educativo. Neste contex-
to, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), desde o Acto Constitutivo (1945) e o Projecto para
a Filosofia (1946), adoptou como programa atender a dois princípios:
colocar instrumentos internacionais adequados ao serviço do avanço dos
estudos filosóficos e colocar a filosofia ao serviço da educação internacional
dos povos. E hoje continua a assumir-se como “instituição filosófica” e a
considerar a “filosofia como instrumento” para a “formação do espírito
público” em todas as idades (Declaração de Paris para a Filosofia, 1995)42.
Nesta linha de pensamento, a Filosofia vem sendo apresentada como
disciplina instrumental central do curriculum no processo da Educação
ao longo da vida43, e a abrir para o horizonte de tudo o que possa haver
ainda mais além:

“Há homens que vêem as coisas que são e perguntam porquê? Eu sonho coi-
sas que nunca foram e pergunto porque não? (Robert Kennedy).

A “mêtis”

Palavra grega traduzível por “ardil”, “artifício”, mas no sentido originá-


rio de combinação de faro, previsão, sagacidade, astúcia, atitude vigilante e
sentido da oportunidade, que resulta da genética, do treino e da experiência
acumulada, se manifesta como princípio de economia que permite obter
o máximo de efeito com o mínimo de esforço e permite a um animal, por
exemplo a raposa, caçar a sua presa e escapar aos seus predadores.
Ao nível humano e sobre-humano, a mêtis aparece nos poemas homé-
ricos como qualidade dos combatentes e navegadores, Aquiles e Ulisses
“o dos mil artifícios”, e resplandece nas teogonias atribuídas a Orfeu
como capacidade de os heróis ultrapassarem todos os obstáculos, ou ain-
da como divindade primordial e arma absoluta a que recorre o próprio
Zeus para alcançar a supremacia sobre os outros deuses.
Sócrates, no Banquete, pronuncia dois discursos sobre o Amor: o pri-

49
meiro, semelhante aos discursos dos outros convivas, analisa e explica o
tema racionalmente; o segundo ultrapassa tudo e todos, os conceitos, as
categorias, a própria filosofia, na medida em que o orador transmite a
revelação de Diótima de Mantineia sobre o enlace entre Mêtis (a Pobreza,
a Invenção) e Porus (o Expediente, o Recurso) de que nasceu o Amor44. No
contexto em que o discurso é proferido, o Amor aparece à maneira de be-
bida fermentada, que tem a ver com a mesa, com o pão e sobretudo com
o vinho, e faz levitar os convivas na esfera da musa poética, da inspiração,
do inebriamento, da comunhão, do êxtase, da plenitude, da alegria.
Nesta passagem do milénio e já a partir da reacção crescente, ao longo
dos séculos XIX - XX, contra a cultura herdada do iluminismo ocidental,
desde Blondel a Nietzsche e a Levinas no espaço continental, e desde os
pragmatistas a R. Rorty no mundo anglo-saxónico, o árbitro epistémico
vem-se deslocando da instância da mera racionalidade, da inteligência,
do conhecimento, da ciência, do saber, da verdade, para algures na ins-
tância da além-razão, do coração, da liberdade, do querer, do desejo, dos
valores, do bem.
Mais recentemente, na linha da ruptura pragmatista de Sellars e
Quine que rejeitam a postura epistemológica de aceitação da verdade
como correspondência linguagem-mundo, e da teoria não representacio-
nista de Davidson para quem a linguagem constitui apenas meio mate-
rial, instrumento ou ferramenta que se utiliza para tecer descrições acerca
da realidade, R. Rorty chama a atenção para a exigência da superação
dos discursos literais por discursos metafóricos e para o facto de o leque
de vocabulários não abarcar apenas os de tipo científico, mas também e
sobretudo, os de tipo artístico, ético e religioso.
Nesta ordem de ideias, acrescenta ainda que: a) a mudança e acelera-
ção da mudança a que os indivíduos, povos, culturas e civilizações se en-
contram sujeitos, introduzem permanentemente novas prioridades, pers-
pectivas e metamorfoses que dão origem a novos vocabulários, linguagens
e discursos, de tal modo que a arte do pensamento não é outra coisa que
a arte de reinterpretar, redescrever e recontextualizar o mundo e, através
dela, de encontrar os caminhos da libertação, emancipação, crescimento,
auto-criação e realização de cada um (foro da vida privada) inseridos no

50
processo de desenvolvimento da(s) comunidade(s) em que participamos
(foro da vida pública); b) neste processo, os agentes com maior êxito se-
rão precisamente aqueles que, por força do seu talento ou do seu génio,
no mundo em mutação acelerada em que vivemos, serão mais capazes
de descobrir prioridades, forjar metáforas, utilizar vocabulários e discur-
sos e proceder a novas reinterpretações, redescrições e recontextualizações do
mundo e da vida, para poderem definir melhores estratégias de emancipa-
ção, libertação, crescimento e realização das pessoas e dos grupos.
A estes agentes capazes de alimentar um tal processo dinâmico,
po(i)ético, criativo, sem fim à vista, R. Rorty dá o nome de os poetas
fortes45.
Por sua vez, o crítico literário H. Bloom sublinha que os critérios para
distinguir os grandes escritores da Grande Literatura não podem situar-se
ao nível de qualquer ideologia, mas ao nível da dignidade da estética e
da capacidade de os autores (re)viverem e deixarem testemunho das mais
profundas experiências da realidade como profetas, filósofos, ensaístas,
dramaturgos, poetas, romancistas. Aos que reconhece como tais chama
ele os autores fortes. E constata que existiram em todos os tempos, desde
os autores da epopeia de Gilgamesh e do Mahabharata, até aos da Bíblia
e do Corão. E procura fixar o cânon dos maiores do Ocidente, de Dante
e Shakespeare a Kafka e Brecht46.
O mesmo têm procurado fazer outros críticos, nas áreas da arquitec-
tura, escultura, pintura, música, cinema, em ordem a detectar os artistas
que melhor captaram as diversas dimensões da existência.
Como intérpretes dos mais profundos abismos da experiência do ser
humano, todos eles, autores e artistas, se transformaram nas testemunhas
credenciadas para falar dos mistérios que envolvem a condição humana
e, por isso, os mais capazes de despertar em todos nós os mais elevados
níveis de consciencialização e promover as melhores condições de desen-
volvimento, tendo em conta o facto de que

“Todo o indivíduo, mesmo o mais fechado na mais banal das vidas,


constitui em si mesmo um cosmos. Traz em si as suas multiplicidades
interiores, as suas personalidades virtuais, uma infinidade de persona-

51
gens quiméricas, uma poli-existência no real e no imaginário, no sono
e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensível e no secre-
to, efervescências larvares nas suas cavernas e grutas insondáveis. Cada
um tem em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos insaciados
de desejos e de amores, de abismos de infelicidade, imensidades de in-
diferença gelada, abrasamentos de astros em fogo, explosões de ódio,
desvarios débeis, clarões de lucidez, tempestades dementes”47.

É por isso que muitos daqueles autores têm sido agraciados, nas respec-
tivas áreas culturais, com o título de Educadores: os Autores dos velhos livros
religiosos, dos Avestas à Bíblia e ao Corão, Homero Educador da Grécia,
Virgílio Educador de Roma e, desde Dante e Shakespeare, tantos Educadores
de áreas culturais do Ocidente e de outras regiões do nosso mundo!
Donde lhes vem esta capacidade, força e energia? Não apenas da in-
teligência que espicaça a procura da verdade e a amizade do saber, mas
do sentimento que explode na experiência da vida e na urgência do agir.
Nestas condições, podemos verificar que a educação é obra, não apenas
nem acaso sobretudo da inteligência mas do “coração”, não do eu ce-
rebral mas do eu profundo, e que procede não só e provavelmente não
tanto pela investigação e a descoberta da verdade, como pela intuição e a
com-paixão do amor.
É por isso que entre os Autores Fortes catalogados por críticos literários
como H. Bloom, outros vêm sendo escolhidos pela intuição da comu-
nidade mundial, como o Autor de O Principezinho (o livro, desde o seu
aparecimento em 1943 foi traduzido em mais de 160 línguas) que hoje
tem lugar cativo na lista dos escritores intemporais.
O coração tem razões que a razão desconhece!

A serendipidade

A palavra vem registada no dicionário como “aptidão, faculdade ou


dom de atrair o acontecimento de coisas felizes ou úteis, ou de descobri-las
por acaso”, e é tradução da palavra inglesa serendipity, cunhada em 1754
pelo escritor inglês Horace Walpole (1717-1797), “a partir do conto de

52
fadas Os três Príncipes de Serendip (ou Serendib, do árabe Sarandib, anti-
go nome do Sri Lanka) cujos heróis faziam sempre descobertas, aciden-
talmente ou por sagacidade, de coisas que não procuravam”48. E. Morin,
depois de mencionar a arte do paleontólogo e do pré-historiador, define-
-a como “arte de transformar detalhes aparentemente insignificantes em
indícios permitindo reconstituir toda uma história”49.
Neste sentido e tendo em conta a consonância com a etimologia de
investigação, a partir do substantivo latino vestigĭum, “planta ou sola dos
pés (das pessoas e dos animais), pegada, pista, rasto, rastro, passo, pisada,
traço, vestígio, sinal, marca”, e do verbo latino vestīgo, as, āvi, ātum, āre,
“seguir o rasto, ir na pista; procurar, buscar com cuidado…”, podere-
mos entender a serendipidade como a forma mais sofisticada e elegante
de pesquisa.
Não é maravilhoso, com efeito, particularmente nos últimos sé-
culos, que a partir de inesperadas descobertas de simples indícios, te-
nhamos obtido acesso a imensos horizontes em novas áreas do Micro
e do Macrocosmos, da Biologia e da Genética, da Paleontologia e da
Pré-História?
Nas dimensões do método anteriormente invocadas, a iniciativa per-
tence, feitas as contas, a cada um de nós. Mas porque na realidade eu me
encontro num universo cuja arquitectura não domino e que considero
“meu” por qualquer tipo de condescendência mas não por registo de pro-
priedade, reconheço que é possível e mesmo natural que existam aborda-
gens alternativas ao tema da educação, no que diz respeito às linguagens,
aos conceitos e às práticas educativas, apresentadas por seres pensantes que
ou ficam longe no espaço, ou me precederam no tempo ou, acaso, me
ultrapassam na capacidade.
Relativamente às linguagens, nas formas recebidas dos nossos antepas-
sados, reveste-se de extrema importância a possibilidade de, a partir da
palavra que utilizamos e através dos elos intermédios, remontarmos ao
seu étimo que, em grego (étimon, ou), significa “o verdadeiro sentido da
palavra segundo a sua origem”. Enquanto se mantém a impossibilidade de
chegar à matriz última da linguagem humana e a dificuldade em determi-
nar o tempo e o território original do proto-indo-europeu e o facto de que

53
“a questão da origem exacta da maior família linguística do mundo per-
manece por isso em aberto”50, é conhecido o esforço realizado, no que res-
peita às matrizes desta família linguística, por autores como Grandsaignes
d’ Hauterive e Heckler, A. G. da Cunha, Alain Rey, Bailly, Chantraine,
Corominas y Pascual, Ernout-Meillet, Giacomo Devoto, etc..
Mais perto de nós e no que respeita ao campo da educação, é co-
nhecido o valiosíssimo trabalho que Álvaro Gomes vem realizando, em
grande número de publicações, particularmente em Heuresis. Por uma
Genealogia/ Arqueologia das Ciências da Educação (2000), no sentido de
abrir caminhos de compreensão aprofundada dos processos educativos.
Procedendo ao jeito do aproveitamento de “indícios”, utilizado por cien-
tistas, paleontólogos e pré-historiadores, porque “também as palavras têm
os seus curricula vitae” que permitem, estando “atento a esses curricula
acompanhá-las desde a fonte até à foz”, o Autor, estudando “as marcas
linguísticas, os rastos e os restos dessas cristalografias semânticas, como
se duma espécie de Isótopo 16 ou de Carbono 14 linguístico se tratasse”,
remonta a “mais de sessenta” “das principais raízes” de interesse para a
educação e procede a amplas e profundas análises no âmbito da pedago-
gia e da metadidáctica51.
Assim, para além do recurso a novas metáforas que proporcionem
o acesso a novas reinterpretações, redescrições e reconstextualizações de que
nos falava R. Rorty, passamos a dispor de um método precioso e mais
radical, susceptível de ser utilizado, com as devidas adaptações e cautelas,
na nossa reflexão.
Por um caminho paralelo à aventura da linguagem, outros indícios e
indicações poderão permitir-nos avançar também na procura da génese
dos conceitos, remontando até à sua origem histórica, ao momento em
que aparecem, ao húmus cultural em que germinam e aos autores que os
descobrem e utilizam.
À pergunta sobre quem conduz ou, pelo menos, aponta o dedo a
mostrar o caminho do desenvolvimento humano até à plena realização
pessoal e, por extensão, comunitária e cósmica, a História da Educação
tende sempre a responder: o que mais longe chegou ou mais alto subiu,
o mais (lat. magis), o Mestre (lat. Magister)52. E menciona, por exemplo,

54
Confúcio e Lao Tseo, Buda e Mahawira, Zoroastro e Sócrates. Porque, no
exigente percurso humano de ser consciente, livre e responsável, parece
terem trilhado o caminho do esforço estritamente pessoal, até atingirem a
acmé da consciência, da lucidez, da audição, da iluminação.
A partir do Mestre Interior que parece ter existido neles e acaso existe
em cada um de nós53.
Pelo que se impõe urgentemente deixar em nós falar o Outro.
Entre os 26 Autores Fortes incluídos no seu Cânon Ocidental, ante-
riormente citado, H. Bloom coloca em destaque Walt Whitman como
“o grande poeta da América” (Laurence dirá “ o maior dos poetas mo-
dernos”) que conta, na estrada larga (open road) da sua influência, os
anglo-saxões T. S. Eliot, Wallace Stevens, Hart Crane, D. H. Lawrence
e John Ashbery e os Prémios Nobel hispano-americanos Luis Borges
(Argentina), Pablo Neruda (Chile), Alejo Carpentier (Cuba) e Octávio
Paz (México).
Walt Whitman tornou-se conhecido por distinguir três instâncias no
seu eu: a Alma (soul) mais ligada à realidade natural, o Eu (self) que tra-
duz a personalidade própria de um americano agressivo, um dos duros
do Oeste, e o Eu Verdadeiro ou Eu, Eu mesmo (real me or me myself) que
exprime o Eu na sua relação com o Mistério. É na obediência a esta ins-
tância superior do seu Eu que lhe é reconhecida a categoria de Mestre.
Fernando Pessoa, outro dos 26 Autores Fortes do Cânon Bloomiano, pa-
rece ter chegado mais longe na mesma linha54. Depois de criar a escola inte-
rior dos seus heterónimos em que o Mestre é Alberto Caeiro55, de ser aceite
como Mestre pelos seus contemporâneos56, de ter entrado na “divina consci-
ência da minha missão”57, de saber que “ter uma acção sobre a humanidade,
contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me
tornando os graves e pesados fins da minha vida”58 e de confessar a Ofélia
que o “meu destino pertence a uma Lei [… ] e está subordinado cada vez
mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam”59, mostra
seguir sempre o seu Eu Superior, Profundo, Verdadeiro, o Eu, Eu mesmo, de
acordo com a palavra de um Mestre do Oriente que falava num livro da sua
biblioteca pessoal, em texto por ele anotado: “Sê o teu melhor eu e não caias
no erro fatal de te tornares outro além de ti mesmo”60.

55
No que se refere às práticas desta ascese, o mesmo Fernando Pessoa
aponta-nos ainda o caminho, ao afirmar que “as formas de educação do
mal para o bem (não há educação de outra forma)”61 têm lugar através
do “misticismo que é ter o sentimento nítido de uma coisa que se não
sabe o que é”62 e pela iniciação, o processo que, através da submissão à
condução hierárquica (neófito-adepto-mestre), reconduz o homem a si
próprio, tendo em conta que “por não ser a iniciação um conhecimento
mas uma vida”, os homens “não apenas apreenderão as palavras em que
se exprimem, mas viverão por si próprios as suas vidas”63.
Neste sentido, acontece historicamente que os Mestres Maiores (lat.
Majōres) não tiveram por hábito falar da meta que pretendem atingir
mas apenas do caminho para lá chegar: Tao ou simplesmente Caminho,
na China; Xintó ou Caminho dos Deuses, no Japão; Caminho do Meio na
audição hindu e na iluminação budista.
Finalmente, para além das palavras, das concepções e das práticas e
de todos aqueles que as protagonizam, remontando mais ainda, consta
na História o nome daqueles que afirmaram terem estado, no Sinai, na
Galileia ou no Deserto, em contacto com o Mais ou o Máximo e terem
regressado com as mensagens d’Ele, ou seja, os Profetas, entre os quais
emergem Moisés, Jesus, Maomé.
Ninguém de nós poderá negar que os três são considerados, por mi-
lhares de milhões de membros da Família Humana, os maiores educado-
res da Humanidade. E também eles continuam a falar-nos do Caminho
do Êxodo, da Diáspora e do Retorno na tradição judaica, simplesmente do
Caminho, primeiro nome histórico do Cristianismo, do Caminho Certo
na oração (“salat”) islâmica.
As tremendas dificuldades que se avolumam hoje na compreensão
dos problemas do nosso mundo, desde o ambiente à economia, à polí-
tica e à cultura, passando pela educação, não são de molde a permitir a
economia do recurso a estas fontes. Pelo menos é o que vêm sugerindo
autores como Atlan, Goblot, Hannoun, Fullat, entre outros, tendo mes-
mo o primeiro começado a falar da eventualidade de o nosso tempo se
encontrar maduro para “o retorno dos profetas”64.

56
Por tudo o que acabamos de recordar, a serendipidade revela o espíri-
to de abertura e de aventura, no qual o que mais conta não é o trabalho
que faço mas a energia acumulada em mim para o poder fazer, não é a
minha produtividade mas o meu enriquecimento interior, não é centrar-
-me em mim próprio mas inserir-me no Todo que me abarca e transcen-
de, não é pretender conduzir-me por caminhos que além da próxima
curva eu ignoro mas deixar-me conduzir no Caminho pelo Saber que
tudo abarca, eventualmente não é alegrar-me com o êxito da descoberta
mas extasiar-me com a surpresa da aparição, não é deixar-me inebriar pelo
elã da conquista, mas deixar-me pacificar na aceitação do dom.

À guisa de conclusão sobre o Método ou o Caminho

Nos tempos em que, na continuidade dos descobrimentos geográficos


da era moderna, cruzamos hoje todas as rotas das migrações, do turismo
e da peregrinação, podemos verificar que entre as matrizes das linguagens
actuais, a indo-europeia, que ia de Portugal ao Bangladesh e mais tarde
abraçou o mundo, cruza hoje o céu de todos os continentes através de
cinco línguas intercontinentais, que a tradição dos grandes Mestres persis-
te no Grande Oriente e que a terra dos Profetas continua a dar que falar
em toda a dimensão do Crescente Fértil.
Regista-se ainda a coincidência de Serendip ser a Taprobana mencio-
nada por Camões no poema épico sobre a viagem que abriu caminho ao
primeiro encontro entre todos os Povos da Terra.
Nesta situação, tendo em conta as cinco dimensões do método inte-
grado que acabamos de sugerir (e eventualmente outras e sem exigir de
cada um de nós que as utilize todas) e acaso cedendo à pressão da lingua-
gem de tantos poetas fortes e autores fortes, poderíamos acrescentar que os
grandes educadores, reconhecidos ao longo da história, correspondem aos
“barões assinalados” que a partir da experiência feita de curiosidade, espan-
to e deslumbramento da “praia” de qualquer infância humana, “em perigos
e guerras esforçados” no treino agónico da dúvida, da reflexão e do rigor
exigidos pelo espírito científico, e “por mares nunca dantes navegados” do
pensamento complexo, do questionamento universal, da mêtis e da serendipi-

57
dade, “passaram inda além da Taprobana”65.
Que nos seja permitido seguir na peugada do caminho trilhado pelos
educadores-educandos dos tempos mais remotos e mais recentes. E sem
perdermos o optimismo ingénuo, sagaz e pertinaz da nossa infância, pois
ao deambularmos por terras de Serendip ou de qualquer outra ilha em
mar distante, há sempre uma voz que ecoa, um mestre que passa, um pro-
feta que anuncia, um caminho que seduz.
Para isso, impõe-se começar pelo momento histórico de meados do séc.
XX em que, pela primeira vez e pela voz dos seus máximos representantes
e a respeito dos problemas cruciais da humanidade, incluindo a educação,
todos os povos do mundo ensaiaram falar a mesma linguagem.

58

Capítulo II

Declaração Universal dos Direitos do Homem. O Caminho


entre dois Mundos

A experiência traumática da desumanidade de alguns episódios da II


Guerra Mundial encontra-se na génese de muitos dos novos conceitos
que, a partir dessa data, progressivamente ampliam, alteram, aprofun-
dam e revolucionam o processo educativo.
Pode relacionar-se o início desse movimento com a emergência e a pu-
blicação da Carta que está na origem da Organização das Nações Unidas
(1945): as nações que durante milénios andaram separadas e laceradas pela
guerra, pela primeira vez na História se descontarmos o episódico prece-
dente da Sociedade das Nações (1919-1939), superando fracturas e roturas
alimentadas por interesses, sentimentos, mitos e ideologias dos países beli-
gerantes, sentem-se levadas a tomar consciência de serem partes integrantes
da mesma Família Humana e a unir-se e cooperar na procura da paz.
A reflexão que se vem exercendo actualmente sobre a história, por
vezes decepcionante, da Organização das Nações Unidas e a crítica severa
do longo cortejo de falhas, incapacidades e frustrações que a têm afec-
tado, acompanhada por vezes do alerta acerca dos perigos que ensom-
bram o seu futuro, particularmente nos dias de hoje em que assistimos ao
acirrar de aquilo que, acaso impropriamente, tem chegado a designar-se
“choque de civilizações”, ou “guerra de religiões”, não pode fazer esquecer
os méritos extraordinários do testemunho que representa a sua existência,
o seu pensamento e a sua acção ao serviço da Humanidade, entendida

59
como “Família Humana” nos próprios termos do seu primeiro grande
documento.
Subordinado ao título Declaração Universal dos Direitos do Homem,
esse texto situa-se na linha de progressiva compreensão da dignidade e dos
direitos da pessoa humana em claros precedentes históricos, desde a Magna
Carta em forma de outorga unilateral de privilégios feita pelo rei à nobre-
za (1215), do Habeas Corpus (1679) e do Bill of Rights como pacto entre
o rei e o povo representado pelo Parlamento (1689), até às Constituições
Americana (1776) e Francesa (1791) em termos de Proclamação feita pe-
los Representantes do Povo constituídos em Assembleia Nacional.
Mas a Declaração Universal dos Direitos do Homem, avança muito
mais na medida em que, elaborada e aprovada pelos Representantes dos
Estados Membros, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas
em 1948 e, a partir dessa data, aceite por todos os novos Estados que a
ela foram aderindo, representa hoje a totalidade da população do planeta
percepcionada através do conceito de “Família Humana”66.
O seu conteúdo arranca de poderosas matrizes culturais de diferentes
povos da Terra e exprime as perplexidades e decepções e também as pers-
pectivas e esperanças daquele momento histórico. O essencial resume-se
à profissão de fé das Nações Unidas no advento de um mundo em que a
dignidade e os direitos de cada um dos membros da “Família Humana”
sejam reconhecidos e respeitados, à convicção da necessidade de procurar
o caminho para a concretização desse advento e à descoberta de que esse
caminho é a educação.

1. O “Advento do Mundo” dos Valores

Com efeito, no Preâmbulo, as Nações Unidas: a) declaram que o reco-


nhecimento e o respeito pela dignidade de todos os membros da Família
Humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis, constitui o fundamento
de um mundo de liberdade, de justiça e de paz, cujo advento corresponde
à “mais alta aspiração do homem”; b) recordam que já anteriormente, na
Carta, os povos das Nações Unidas proclamaram a sua fé nesses valores
e o seu compromisso em respeitá-los, e que agora se propõem dar execu-

60
ção ao propósito de procurar atingir sobre eles uma concepção comum; c)
proclamam que esta concepção comum, vertida na presente Declaração,
exprime o “ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”,
“todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade”, através do “ensino
e educação”.
A importância de que se reveste para o aprofundamento do conceito
de educação nos dias de hoje, obriga-nos a explorar o texto original nes-
sas três partes correspondentes ao que todos nós sentimos, pensamos e
queremos.

Experiência da “mais alta aspiração do Homem”

A primeira parte refere-se às experiências do mundo em que de facto


habitamos e aos sentimentos acerca de outro mundo em que pretende-
mos habitar.

“Considerando
que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis
constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo;
[…] que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem con
duziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da humanida
de e que o advento de um mundo em que os seres humanos tenham
a liberdade de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi procla
mado como a mais alta aspiração do homem […] ”

Verificamos assim, no texto do documento resultante, pela primeira vez


na história, de um consenso mundial: a) que o sentimento de pertença à
Família Humana demarca o terreno de tudo o que vem a seguir; b) que é
das mais profundas e dolorosas experiências da vida sobre o respeito devido
à hierarquia das coisas, pessoas e valores, que emerge o sentido da “mais
alta aspiração do homem”; c) que esta aspiração ao “advento de um mundo”
novo se situa no cerne da aventura humana e, muito para além dos dados
de que nos falam as ciências ditas positivas e os factos que abordam as ciên-

61
cias ditas humanas, abre caminho para a mais profunda reflexão no âmbito
da antropologia, da axiologia e da ética; d) que este mundo novo em que os
seres humanos, “libertos do terror e da miséria”, possam gozar da “liberda-
de de falar e de crer” e beneficiar “da justiça e da paz” é, afinal, o mundo
de todos os Valores; e) que a dignidade da pessoa, enquanto “fundamento”
deste mundo dos Valores, emerge como o conceito de que tudo irradia e
ao qual tudo conflui no horizonte do existir humano: a natureza, a vida, a
economia, a sociedade, a política, a arte, a religião.
As dimensões da dignidade humana aparecem invocadas logo no iní-
cio do texto:

“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.


São dotados de razão e consciência e devem proceder uns em relação
aos outros dentro de um espírito fraternal” (Art.º1º).

Trata-se dos valores da liberdade, igualdade e fraternidade, que evocam


veneráveis temas de revoluções recentes e, remontando no tempo, etapas
da grande (r)evolução da humanidade em milénios de história.
Cada uma delas implica as outras duas em círculo aberto e dinâmico.
No que respeita à liberdade, importa recordar que a dignidade huma-
na, nos últimos séculos – desde o iluminismo até ao positivismo, neo-po-
sitivismo e positivismo lógico – vinha sendo apresentada mais em termos
de inteligência (nous) ou mesmo de razão (logos); agora e sem derrogar
em nada essa real dimensão que lhe está na raiz (só os seres “dotados de
razão e consciência” podem ser livres), a dignidade humana caracteriza-
-se, define-se, mede-se, em termos de maior abrangência, como liberda-
de ou capacidade bivalente que tem, cada ser humano, de reconhecer e
respeitar ou de desconhecer e desprezar, em si mesmo e/ou nos noutros,
a própria dignidade.
Por outras palavras, a dignidade humana não se revela decisivamente
ao nível da razão, da inteligência, dos conhecimentos e/ou das compe-
tências de ordem intelectual (tem-se feito notar que os nazis responsá-
veis pelo planeamento e execução do holocausto eram, frequentemente,
portadores de um elevado cociente intelectual) mas, contemplando toda

62
essa dimensão e muito para além dela, se manifesta ao nível do uso da
liberdade e das atitudes e comportamentos de ordem moral.
Nesta ordem de ideias e ao longo da Declaração, os direitos decorren-
tes da dignidade da pessoa humana são mesmo frequentemente interpre-
tados em termos de liberdades fundamentais. E os próprios direitos, na
linha da inteligência, são descritos em termos de liberdade:

“direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião”


(Art.º 18º), “direito à liberdade de opinião e expressão” (Art.º 19º),
“direito de tomar livremente parte na vida cultural da comunidade”
(Art-º 27º), “direito a que haja, no plano social e no plano internacio-
nal, uma ordem tal que os direitos e liberdades enunciados na presen-
te Declaração possam aí produzir pleno efeito” (Art-º 28º).

Relativamente à igualdade, declara-se que a dignidade humana é apa-


nágio de todos os seres humanos, na medida em que todos são iguais e,
por isso mesmo,

“cada um pode usufruir de todos os direitos e de todas as liberdades


proclamadas na presente declaração sem distinção alguma, tanto de
raça como de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política
ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortu-
na, de nascimento ou de qualquer outra situação” (Art.º 2º).

E é na exacta medida em que todos os seres humanos nascem livres e


iguais em dignidade e direitos (Art.º 1º) e de acordo com a síntese “todo o
individuo tem direito à vida, à liberdade e à segurança” (Art.º 3º), que se ex-
plicitam, ao longo do texto, os direitos correspondentes a esses três grupos:

– a não ser “mantido em escravatura” (Artº 4º), a não ser “sub-


metido à tortura” (Art.º 5º), “ao reconhecimento, em todos os
lugares, da sua personalidade jurídica” (Art.º 6º), “a uma igual
protecção da lei” (Art.º 7º), “ a um recurso efectivo perante as
jurisdições nacionais competentes” (Art.º 8º), a não “ser arbi-

63
trariamente preso, detido ou exilado” (Art.º 9º), “a que a sua
causa seja julgada equitativamente e publicamente” (Art. 10), a
ser presumido como “inocente até que a sua culpabilidade seja
legalmente estabelecida” (Art.º 11º), “a não ser objecto de inter-
venções arbitrárias na sua vida privada” (Art.º 12º), a “circular
livremente” (Art.º 13º), a “procurar asilo” (Art.º 14º), “a uma
nacionalidade” (Art.º 15º), “a se casar e fundar família” (Art.º
16), “à propriedade” (Art.º 17º);
– “à liberdade de pensamento, de consciência e de religião” (Art.
º 18º), “de opinião e expressão” (Art.º 19º), “de reunião e de
associação pacífica” (Art.º20º), de “tomar parte na direcção dos
assuntos públicos do seu país” (Art.º 21º);
– “à segurança social” (Art.º 22º), “ao trabalho” (Art.º 23º), “ao
repouso e às distracções” (Art.º24º), “a um nível de vida sufi-
ciente” (Art.º 25º), “à educação” (Art.º 26º), “a tomar livremen-
te parte na vida cultural” (Art.º 27º).

Finalmente e no que diz respeito à fraternidade, afirma-se que a dig-


nidade humana pertence a todos os homens pela simples razão de que
todos eles pertencem à mesma Família Humana.
É a marca inicial da Declaração. A Humanidade é concebida não em
termos de espécie biológica, de grupo, de sociedade ou de comunidade,
mas de família. Falando com rigor, os seus membros não se relacionam
como sócios, camaradas, companheiros, colegas ou amigos, mas como
irmãos.
Este ponto, susceptível de suscitar algumas perplexidades pelo facto
de, nos textos que analisamos, não obter qualquer posterior desenvolvi-
mento, corresponde à intenção nuclear da Declaração e revelar-se-á, mais
adiante, prenhe das mais profundas consequências.

“Fé-compromisso” à procura de uma “concepção comum”

O Preâmbulo da Declaração, a seguir, dá mais um passo tão imprevi-


sível quanto ousado.

64
É obvio que esse mundo da dignidade humana, em que pretendemos
habitar, não existe perante os nossos olhos terrenos nem, apesar do anún-
cio delirante de todas as utopias, consta que tenha existido historicamen-
te em algum tempo e/ou em algum lugar. Pelo contrário, o que nos é
dado ver e constatar ainda hoje, a cada passo e em cada momento, é a
existência dos horrores da miséria, da fome, do medo, do terror, da ex-
ploração, da violência, da guerra, da morte, do genocídio, do terrorismo.
Consequentemente, esse mundo não pode ser objecto de observação, análi-
se e pesquisa próprias da investigação científica e/ou da reflexão filosófica.
Certamente por essa razão, o Preâmbulo avança um dado novo.

“Considerando
que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamaram de novo a
sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da
pessoa humana, […]
se comprometeram a assegurar, em cooperação com a Organização das
Nações Unidas, o respeito universal e efectivo dos direitos do homem e
das liberdades fundamentais; […] que uma concepção comum destes di-
reitos e liberdades é da mais alta importância para que seja plenamente
cumprido este compromisso […]”

Deparamos, assim, com outra perspectiva revolucionária nas nossas


maneiras de pensar e de agir.
Acerca desse “mundo em que os seres humanos sejam livres de falar
e de crer, libertos do terror e da miséria”, porque, de facto, nunca o vi-
mos nem experimentámos e nada, sobre ele, verificámos nem medimos,
acontece que nem sequer estamos em condições de formular perguntas,
aventar hipóteses, questionar, pesquisar, investigar, no sentido rigoroso
do termo. Só nos resta acreditar. E comprometer-nos.
De facto, nesta matéria, a base do conhecimento não é a experiência
científica (cujos dados “objectivos” e factos “sociólogos” disponíveis se
referem apenas a este mundo em que vivemos e não a esse mundo em
que pretendemos viver) nem a reflexão filosófica (que, na melhor das
hipóteses, pode gerar sobre ele apenas teorias, ideologias e utopias), mas

65
sim, por muito estranho que isto soe aos nossos ouvidos nos dias de hoje,
a fé e o compromisso, a fé-compromisso que, na sua raiz indo-europeia * IE
Bheid-, envolve exactamente esse significado.
Neste sentido e medida, o mundo novo em que seja reconhecida a
dignidade e sejam respeitados os direitos de todos os homens, porque não
é um dado abordável pelas ciências exactas e da natureza, nem é um facto
constatável pelas ciências humanas, da geografia à história, à sociologia e
ao direito, apresenta-se como alternativa apenas possível, desejável, rea-
lizável, a partir da base da fé e do compromisso de todos nós, e ainda do
esforço em obtermos, sobre eles, uma “concepção comum”.
A verificação da necessidade de, a partir da fé originária de todos os
povos na dignidade e direitos da pessoa humana, se avançar na procura
de uma concepção comum dessas realidades, vai no entanto constituir uma
dolorosa experiência nos anos seguintes à proclamação da Declaração.
Se por um lado a elaboração do seu texto, em 1948, resulta basica-
mente do consenso entre as grandes nações vencedoras, Estados Unidos,
Inglaterra, França, Rússia e China (as mesmas que irão deter o direito de
veto no Conselho de Segurança e que, de algum modo, atendendo aos
impérios coloniais da maior parte deles, representavam todas as regiões
do Planeta), a etapa histórica já então emergente, marcada pela cisão nos
dois blocos da Guerra Fria, assiste ao eclodir das mais graves dissensões
na interpretação do texto a partir das respectivas ideologias políticas, de-
signadamente no que se refere ao sentido, alcance e aplicação dos direi-
tos humanos. Esta guerra conceptual vai caracterizar a lenta e aciden-
tada gestação (seis anos, de 1948 a 1954, na preparação pela Comissão
dos Direitos Humanos, e 12 anos, de 1954 a 1966, na discussão pela
Assembleia Geral) dos dois grandes documentos que vêm complemen-
tar a Declaração Universal dos Direitos do Homem: o Pacto Internacional
Relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, exigido pelo Bloco
Oriental, e o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, pro-
posto pelo Bloco Ocidental, ambos adoptados em 196667.
Mas o problema agrava-se a partir de outro processo histórico de al-
cance mais abrangente e universal, porquanto de natureza também cultu-
ral, que lentamente começa a interferir com a situação: o movimento de

66
independência dos povos colonizados (desde 1947 na Índia e Paquistão
Ocidental e Oriental e, com maior incidência nas décadas de 60 e 70,
na generalidade dos povos de África e de alguns da Ásia e Oceânia) que
passam a fazer parte das Nações Unidas e, muitos deles, a pretender cons-
tituir um terceiro bloco político (Conferência de Bandung, 1955)68.
Este processo histórico afecta profundamente a evolução humana dos
últimos 60 anos, ao refazer, em sentido contrário, o movimento milenar
de separação dos povos.
A primeira colonização do Planeta (desde a África até à Polinésia) pro-
tagonizada pelo Homo Sapiens, ficou marcada pelo fenómeno da pulveri-
zação dos grupos humanos, separados entre si por diversíssimos habitats
no espaço e níveis de desenvolvimento no tempo, pela emergência de pe-
culiares tipos de experiências, ocupações e práticas a partir da influência
dos respectivos ecossistemas, e ainda pelas constelações de sentimentos de
pertença, mitos e ritos, crenças e tabus, religiões e místicas, a que global-
mente atribuímos a designação de culturas.
O mundo antigo foi, durante milénios, um mosaico de culturas que
se desconheciam.
O lento e progressivo reencontro, proporcionado pelos choques de
civilizações com fronteiras comuns e, mais recentemente, pelos desco-
brimentos geográficos (século XV-XVIII), não proporcionou uma des-
coberta recíproca dos povos em pé de igualdade, mas a oportunidade de
os “descobridores”, portadores de um grau de “civilização” mais avançado
em termos de força e poder, se imporem aos outros, chegando a extremos
de lhes destruírem a cultura e a própria existência. O texto da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, em 1948, considera ainda de algum
modo normal esta situação, ao preconizar, na parte final do Preâmbulo,
que o reconhecimento e a aplicação universais e efectivos dos direitos
humanos sejam promovidos “tanto entre as populações dos próprios
Estados Membros como entre os territórios sob a sua jurisdição”, e ainda
ao acautelar, relativamente à igualdade de direitos, que

“nenhuma distinção será praticada na base do estatuto político, jurídico ou


internacional do país ou território a que a pessoa pertence, quer esse país ou

67
território seja independente, sob tutela, não autónomo ou submetido a qualquer
limitação de soberania” (Artº 2º).

Neste contexto, compreende-se o sentimento, hoje largamente difun-


dido, de que a I e II Guerras Mundiais não passaram de guerras civis eu-
ropeias entre potências que eram ou aspiravam a ser colonizadoras, a “III
Guerra Mundial” ou Guerra Fria funcionou entre as potências liderantes
dos dois blocos que aspiravam ao domínio político-militar-económico
e cultural do mundo, a “IV Guerra Mundial” ou Guerra do Terrorismo
que decorre perante os nossos olhos, corresponde ao processo complexo
de luta, impregnada de subtis matrizes culturais, entre a potência que se
vinha arrogando o direito de conduzir o mundo e outras que, de formas
diversas, contestam essa liderança ou resistem à sua imposição.
Mas compreende-se também que, no decorrer dos últimos 60 anos,
o processo mais antigo de libertação dos povos e o processo mais recente
de globalização em curso, nas dimensões não apenas económica mas tam-
bém social, política, cultural e ambiental, têm proporcionado o encontro
e cruzamento de pessoas, ideias, projectos, vontades, e têm desencadeado
uma evolução positiva, embora muito lenta, no que respeita à aceitação,
por parte de todos os povos, nações e culturas, do núcleo de uma “concep-
ção comum” dos valores referentes

– aos direitos do Homem, mencionados no texto da Declaração e


dos dois Pactos;
– aos deveres do Homem, lamentável e imprudentemente deixa-
dos na sombra, uma vez que são mencionados apenas de ma-
neira vaga no Artº 29º, 1º, da Declaração e algo mais concreta
no Preâmbulo dos dois Pactos;
– à dignidade da pessoa humana como fonte dos direitos (e de-
veres), afirmada implicitamente no Preâmbulo da Declaração e
explicitamente no Preâmbulo dos dois Pactos:

“reconhecendo que estes direitos provêm da dignidade da pessoa


humana”.

68
É esta “concepção comum” que irá constituir a base da elaboração de
documentos de âmbito regional como o da Comissão Europeia para a
Protecção dos Direitos Humanos, a Convenção Americana dos Direitos
Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e outros
documentos fundamentais da ONU ou das organizações associadas,
tais como a Convenção sobre os Direitos da Mulher, a Convenção sobre os
Direitos da Criança, a Declaração do Milénio, etc., a que teremos ocasião
de nos referir mais adiante.
É ainda a fé nesta “concepção comum” que irá impregnar o trabalho
dos 450 historiadores do mundo inteiro empenhados na elaboração de
uma verdadeira História da Humanidade em que se procura dar o sal-
to do mero registo dos factos para o estudo dos factores relevantes da
Antropologia em ordem a atingir a “inteligência das culturas”69.
Confirma-se deste modo que a dignidade humana, fonte dos direitos
e deveres do homem, constitui o eixo da roda em que gira o mundo dos
valores mundialmente aceites como objecto da fé-compromisso de todos
os Povos da Terra. E afirma-se energicamente que este mundo assume,
por isso mesmo, as dimensões do que é universal e ecuménico, tem pro-
vavelmente a ver com aquilo que, em cada uma delas, se relaciona com o
espaço do valor e do sagrado, e contém a força capaz de mobilizar todos
os seres humanos para sobre ele alcançarem uma concepção comum e pro-
gredirem unidos numa longa marcha.

A meta do “ideal comum” e o caminho do “ensino e educação”

Na última parte do Preâmbulo, em que é feita a proclamação solene


do documento, abre-se o horizonte dos caminhos do futuro e o lugar que
nele pertence ao “ensino e educação”.
Uma vez que, no seu texto, se encontra vertida a concepção comum dos
povos das Nações Unidas sobre a dignidade e os direitos (e os deveres) de
todos os membros da família humana,

“A ASSEMBLEIA GERAL
Proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem

69
como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, afim
de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a
constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e educação,
por desenvolver o respeito destes direitos e liberdades e por promover,
por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu
reconhecimento e a sua aplicação universais e efectivos […]”

Temos assim que o mundo da dignidade e dos direitos humanos que


constitui a nossa mais alta aspiração e se encontra expresso na concepção
comum vertida na Declaração, é agora proclamado pela Assembleia-Geral
como ideal comum a atingir por todos os membros da “família humana”:
“todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade”, “todos os povos e
todas as nações”.
O conceito de ideal, no sentido de ideia que exprime a realização ple-
na do padrão da sua espécie e se ajusta ao respectivo arquétipo de per-
feição e excelência, emerge no horizonte dos objectivos, das metas, dos
alvos, dos fins, a polarizar os nossos afectos, aspirações e ambições.
Poderíamos dizer que toda a História da Humanidade se encontra mar-
cada por infinita variedade de ideais perseguidos pelos indivíduos, grupos,
povos e nações, nos domínios da expansão, da conquista, do poder, da
crença, da cultura, da arte, da religião. Pela sua abrangência, de entre todas
essas dimensões, o ideal comum aqui proposto assume o estatuto de objecti-
vo, meta ou fim último a atingir por toda a Família Humana.
Mas a maior novidade encontra-se na proposta do caminho a seguir
para lá chegar: não o do direito da força, nem apenas o da força do direi-
to mas, na fórmula adoptada, o do ensino e educação.
É evidente que não pode tratar-se do caminho do direito da força,
próprio das revoluções violentas dos regimes ditatoriais, responsáveis pelo
clima gerador dos conflitos e guerras que agora, exactamente, se pretende
evitar.
Torna-se claro que também não se trata apenas, do caminho da força
do direito, mencionado numa parte anterior do Preâmbulo,

“considerando que é essencial que os direitos do homem sejam pro-

70
tegidos por um regime de direito para que não seja constrangido, em
último recurso, à revolta contra a tirania e a opressão […]”

e que opera através dos necessários mecanismos de defesa das socie-


dades humanas contra o crime, pela pressão de forças sociais de algum
modo exteriores a cada ser humano – a imposição legal, a fiscalização,
o policiamento, os tribunais, as sanções – e que, por isso mesmo, não o
dinamizam a partir do seu interior.
O caminho que de facto se propõe para atingir “o ideal comum” cor-
responde a uma solução antropológica radical que consiste no recurso às
forças interiores de todos e de cada um dos seres humanos, de maneira a
que, “tendo sempre no espírito esta Declaração”, “se esforcem” “por desen-
volver o respeito destes direitos e liberdades” e por promover, “por medidas
progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a
sua aplicação universais e efectivos”, “pelo ensino e educação”.
Trata-se portanto, não de nos impormos violentamente aos outros
pela força, nem mesmo de, entre nós e eles, delimitarmos as fronteiras
jurídicas, para eventualmente nos defendermos e podermos viver em paz,
mas, em sentido radical e positivo, de crescermos todos no sentido de
não nos fecharmos nos nossos próprios mundos de interesses, ideias e
valores e, em vez disso, nos abrirmos ao diálogo com os mundos dos
outros, à compreensão dos seus interesses, ao brilho das suas ideias, à
relevância dos seus ideais, e ainda em procurarmos, através do encontro,
da comunicação, do debate, da empatia, da solidariedade, da colabora-
ção, respeitando sempre as diferentes idiossincrasias e culturas, contribuir
para o advento, no mundo em que vivemos, do mundo a que aspiramos.
A educação é assim apresentada como a via, o itinerário, a estrada real,
o caminho radical que se impõe seguir para a instauração do mundo da
dignidade e dos direitos humanos.
De acordo com a maneira como vem definida mais adiante, no arti-
culado da Declaração, no sentido de “visar o pleno desenvolvimento da
pessoa humana” (Art.º 26º, 2º), a educação tem a ver com o crescimento
interior do espírito e é por essa via que se pode aguardar o advento desse
mundo novo, em consonância com os termos da Carta da UNESCO:

71
“tendo as guerras nascido do espírito humano é no espírito humano que
deve gerar-se a paz”.
E se admitirmos que um tal advento implica necessariamente uma
revolução, ela irá ser definida mais tarde, nos termos de Paulo Freire, não
como revolução violenta e pretensamente instantânea, provocada pelas
armas materiais, que ao visar apenas a inversão da situação entre opres-
sores e oprimidos para deixar tudo na mesma acaba sempre por se tor-
nar superficial e falsa, mas como “revolução pedagógica”, conduzida pelos
processos da “conscientização” e do “diálogo”, revolução humana, acaso
lenta, mas, no final, a única profunda e verdadeira.
Em síntese: a) a partir da consciência de ser possível um mundo de
liberdade, justiça e paz, cujo fundamento é o reconhecimento e o respei-
to pela dignidade e os direitos de todos os membros da família humana
e de que o advento desse mundo constitui a mais alta aspiração de todo
o homem, b) e de que os povos das Nações Unidas, na Carta, procla-
maram de novo a sua fé na dignidade e valor da pessoa humana e o seu
comprometimento no esforço de encontrar uma concepção comum desses
direitos e liberdades, c) a Assembleia Geral das Nações Unidas propõe a
Declaração Universal dos Direitos do Homem como ideal comum a atingir
por nós todos, indivíduos e organizações da sociedade, povos e nações,
pelo caminho do ensino e educação.
Nestes precisos termos, a educação aparece verdadeiramente como o
Caminho da Nova Humanidade.

2. O ser humano a caminho

Mas esta análise incita a ir mais longe.


O mundo novo, mencionado na Declaração, não vem definido mas en-
volve certamente a intuição radical, complexa e englobante de que, para
além da dimensão física-material-objectiva em que vivemos, existe uma
outra dimensão humana-espiritual-intersubjectiva a que aspiramos e que
tem a ver com os valores em que cremos e os objectivos que perseguimos. A
primeira dimensão será sempre marcada, no sentido positivo ou negativo,
pela segunda, na medida em que a opção feita por cada um de nós de de-

72
terminados objectivos e valores, decide o rumo da própria existência.
Nesta situação, podemos avançar desde já três anotações, correspon-
dentes à nossa vivência, ao nosso conhecimento, ao nosso agir.
Bem vistas as coisas, o que realmente existe não é um mundo mas
dois: o mundo da miséria, da ignorância, da injustiça, da exploração, do
ódio, do terror, da guerra, do genocídio e do terrorismo em que de facto
nos movemos, e o mundo do reconhecimento e respeito pela dignidade
e os direitos de todos os membros da Família Humana a que aspiramos.
Entre eles existe uma distância incomensurável mas que implica sempre,
uma vez que a nossa “mais alta aspiração” consiste em passarmos de um
para o outro, um caminho a percorrer, com uma direcção ou um sentido:
do mundo em que vivemos para o mundo em que pretendemos habitar.
Também não existe apenas um tipo de conhecimento, mas dois: o
conhecimento da inteligência que incide sobre o mundo físico e moral
em que nos movemos e procede, a partir da experiência dos sentidos e/ou
das deambulações da razão, pelos caminhos da ciência e/ou da filosofia,
e o conhecimento da fé-compromisso que brota do mais fundo de nós
mesmos e recai sobre o mundo da dignidade humana e dos valores que
dela decorrem, e corresponde ao tipo de aposta numa realidade a que os
sentidos e a razão não têm acesso, porque, de facto, ainda não se expõe
à nossa observação e análise, mas apenas se constitui projecto da nossa
vida e meta da nossa mais “alta aspiração”. Entre estes dois tipos de co-
nhecimento existe uma hierarquia, na medida em que, ao contrário do
que normalmente pensamos, é a fé na dignidade e nos direitos da pessoa
humana que monitoriza os movimentos da razão no trabalho de procura
e obtenção de consensos sobre uma “concepção comum” acerca deles.
Finalmente não existe só um tipo de comportamento mas dois: ou
pela utilização das forças exteriores ao ser humano e postas ao seu serviço
pela sociedade para conter e dominar as raízes do mal (agentes e instru-
mentos da lei, do direito e da justiça), ou pelo recurso à fonte das energias
e dos dinamismos interiores que estão na base do próprio crescimento da
pessoa, em ordem a tornar-se ela mesma agente da construção do novo
mundo a que aspira. Só este caminho do ensino e educação pode preser-
var radicalmente o horizonte da liberdade, estimular o advento da justiça,

73
conduzir à solução do entendimento recíproco e da paz.
A assimilação em profundidade destas constatações leva-nos a sentir
que mais do que perante uma simples reforma ou uma revolução, nos
encontramos a braços com os primeiros indícios de uma mudança de pa-
radigma na maneira como encaramos a existência, susceptível de induzir
consequências e impactos imprevisíveis na atitude perante a vida em que
nos posicionamos, na armadura conceptual e vocabular com que nos ex-
primimos, na orientação moral e ética que adoptamos. Vejamos melhor.

Estar e Passar

Na medida em que, desde a infância, ao irmos tomando consciência


da nossa existência como pessoas, verificamos que mudamos, crescemos,
nos desenvolvemos em diversas dimensões, nós não podemos afirmar que
“somos” ou “estamos” mas, simplesmente, que nos movemos, caminha-
mos, andamos, passamos, vamos.
Que “Temos de ir. Para onde? Não sei, mas temos de ir ” ( Jack Kerouak)70.
De um ponto de partida para um ponto de chegada. De e para.

Não podemos dizer verdadeiramente que somos (do lat. sedēre, estar
sentado, donde nos vêm, por exemplo, os lexemas de sé e de sede ou centro
de funcionamento de uma qualquer estrutura, associação ou organização),
mas acaso apenas podemos afirmar, de acordo com a delicada e ao mesmo
tempo enérgica fórmula de Plotino, tantas vezes glosada pelos místicos de
todos os tempos e lugares, que brotamos, manamos, fluímos de uma origem
e somos atraídos e sugados por um fim71. Neste sentido e à luz desta realida-
de, também não podemos fazer a economia de uma revisão crítica de ou-
tras tantas filosofias do passado, desde a oposição oriental entre yin e yang
e a dialéctica pré-socrática entre a permanência (“o que é, é, e o que não
é, não é”, de Parménides) e a transitoriedade (“panta rei”, de Heraclito),
passando pelas concretizações que nos chegam desde os Gregos, de ser
isto ou aquilo (números de Pitágoras, conceitos de Sócrates, ideias de Platão,
formas de Aristóteles, essências da Escolástica, formas à priori de Kant) até
aos dilemas da filosofia medieval (“ser ou não ser” de Tomás de Aquino) e

74
da literatura moderna (“to be or not to be” de Shakespeare).
Nem podemos dizer que estamos no mundo (do lat. stare, estar de pé,
donde nos vêm, por exemplo, os lexemas de estância, estado, estatuto e,
de um modo geral, de tudo o que é parado ou estático). Não o podemos
dizer, mesmo que o nicho que ocupamos no planeta se nos imponha pela
sua delimitação num Entre-os-Rios (Mesopotâmia), pela sólida antiguida-
de e configuração na “Terra Mãe da Índia”, pela extensão amuralhada no
Império do Meio (China), pela altura sagrada em Manchu Pichu (Perú),
pela superfície monótona e cinzenta dos esquimós nos gelos do Pólo ou
pela areia movediça e tórrida dos Tuaregues no Deserto do Sara. Menos
ainda podemos pretender encontrar, a partir dessa ideia, a definição de
ser humano, como fizeram os representantes das “filosofias da existência”
de meados do século XX (“o homem como estar-no-mundo”). Só vendo
as coisas muito à superfície, poderemos dizer que estamos, pois mesmo
sob a aparência de estarmos, aqui ou além neste mundo, de facto nós só
estamos a passar por ele, depois de entrarmos e antes de sairmos.
Nem somos de, nem estamos em. Passamos por.
Não temos uma Terra. Vivemos uma Páscoa.

Saber e Crer

Por outro lado, acerca desse mundo novo, para o qual nos sentimos ar-
rastados pela nossa maior aspiração enraizada no mais fundo do nosso ser,
não podemos afirmar que o “conhecemos” nem mesmo, falando com rigor,
que “indagamos, pesquisamos, investigamos” acerca dele, mas apenas que
aspiramos a ele o que já implica alguma esperança de o poder encontrar,
que acreditamos na dignidade da pessoa humana e nos seus direitos, e que
nos comprometemos a procurar chegar, sobre eles, a uma concepção comum.
Torna-se assim claro que, acerca do que para nós é essencial e constitui
a nossa maior aspiração, não tem qualquer fundamento o optimismo inte-
lectual de correntes que atravessam toda a história do pensamento, desig-
nadamente ocidental, desde a afirmação ingénua dos sofistas (“sabemos”)
até ao posicionamento não menos infantil do positivismo e cientismo
do séc. XIX (“sabemos” ou, pelo menos, “vamos saber”) já em queda no

75
neo-positivismo e positivismo lógico do último século (“perante o que
não sabemos só vale calar”, Wittgenstein).
Falham também os esforços para superar toda a gama de cepticismos,
desde os espontâneos de certa filosofia grega, até aos reflectidos de algum
pensamento moderno, como o esforço cartesiano de, através da dúvida
metódica, chegar à certeza do “eu sou”, ou o trabalho de Kant tendo em
vista a fundamentação “crítica” de todo o conhecimento. Resta a atitude,
não isenta de fragilidade e angústia, dos que reconhecem que conhecemos
a verdade não apenas através da razão mas também através do coração, que
no Ocidente acabam por fazer uma “aposta” (Pascal) e no Oriente procu-
ram chegar à “audição” (Hinduísmo) ou à “iluminação” (Budismo).
Sentimos e proclamamos assim, em consonância com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, que acerca do essencial, objectivo da
nossa “maior aspiração”, o conhecimento radical desse mundo não pode
ser obtido pela experiência, pesquisa ou reflexão, mas apenas pela Fé-com-
promisso, como base do esforço de diálogo entre todos nós para atingir-
mos uma concepção comum.
Nem sabemos, nem propriamente investigamos. Cremos.
Não possuímos certezas. Fazemos uma aposta.

Agir e Seguir

Finalmente, no que diz respeito a este mundo ideal, nunca poderemos


dizer que o pretendemos alcançar como território conquistado pelo direi-
to da força ou defendido pela força do direito, mas apenas que constitui
o nosso ideal comum, a perseguir pelo esforço sustentado, persistente,
sofrido e, por vezes, agónico, do próprio crescimento interior.
Com efeito, a verdadeira consistência de vida não existe no posiciona-
mento do egoísta-egocentrista-egotista que se considera o centro do mundo
ou se crê auto-gerado e/ou julga poder marcar o próprio destino e submeter
a ele as coisas, as (outras) pessoas e até os Valores, mas na atitude daquele
que perante as contingências e as incertezas da vida e enquanto pessoa,
consciente, livre e responsável, apela às energias interiores que alimentam o
crescimento pessoal em ordem a atingir a sua plena realização.

76
Não se trata portanto de acertar com um sítio, um lugar (topos) ou
uma casa (oikos) onde possamos estar, morar ou habitar, de acordo com
as formas de pensamento estáticas e ancestrais que nos dominam (desde
o covil e a gruta nos tempos mais remotos, às tendas e cabanas da seden-
tarização no neolítico, às casas e palácios das cidades e aos arranha-céus
das megalópoles actuais), mas trata-se de percorrer o caminho de desen-
volvimento pessoal ao longo da nossa existência, de acordo com o sentido
convergente das grandes mundividências do Oriente e do Ocidente.
E porque sabemos pela experiência universal que o tempo de que pes-
soalmente dispomos para caminhar é limitado e, mais grave ainda, que
ignoramos totalmente a sua duração, não parece que se justifique exaurir
a nossa capacidade na elaboração de projectos de longo prazo, cuja inani-
dade o futuro acaba por revelar, desde as grandes utopias sonhadas pelos
modernos a partir de Tomas Moro (séc. XVI-XVIII) ou programadas
pelos “socialistas utópicos” (séc. XIX) ou repensadas pelos “mestres da
suspeita”, Marx, Nietzsche, Freud (séc. XIX-XX), até às “realizadas” nos
“campos de extermínio” do Terceiro Reich, nos “goulags” da URSS, nos
“saltos em frente” da China de Mao, nos “barcos em fuga a afundar-se
no mar” do Cambodja de Pol Pot (séc. XX) ou, mais recentemente, nos
projectos em curso do terrorismo internacional.
E porque “el camino se hace caminando” (A. Machado) e é cada vez
maior a incerteza que neste nosso tempo envolve até o horizonte do pró-
ximo futuro (E. Morin)72, a dificultar-nos a elaboração e concretização
de programas globais, resta-nos a alternativa de, no seguimento da aposta,
adoptarmos uma estratégia, apta a lançar mão, em cada momento, de todos
os recursos disponíveis para enfrentar cada situação emergente: a educação.
Nem nos gerámos nem nos conduzimos. Crescemos.
Não dispomos de projectos ou programas. Desenvolvemos uma
estratégia.

Passagem, aposta, estratégia, só têm sentido em função do caminho por


onde alguém, vindo de um determinado ponto de partida, avança para
uma determinada meta. Como compreender tudo isto?

77
3. Coordenadas essenciais do Caminho da Educação

Estamos verificando ao longo destas páginas que, no vastíssimo teatro


do universo das coisas, a pessoa consciente, livre e responsável, que se
encontra envolvida no drama alimentado pelos entre-choques das von-
tades livres de todos os outros membros da “companhia de teatro” que
é a Família Humana, sente-se naturalmente movida pela aspiração ao
mundo do reconhecimento e do respeito pelos Valores da dignidade e
dos direitos de todos os homens, e implicada no processo de crescimento
interior (educação) como caminho para lá chegar.
Uma breve reflexão sobre estes conceitos-base, com eventual recurso
ao sentido originário dos respectivos lexemas, pode ajudar-nos a penetrar
melhor na natureza do processo educativo.

O Grande Teatro do mundo das coisas

Encontrámo-nos no meio das coisas que constituem o palco deste


Universo, em interacção com os outros membros da companhia de teatro
que é a Família Humana, penetrados de estranhos sentimentos de espan-
to e angústia perante o mistério do drama em que nos sentimos envolvi-
dos, da vocação que aqui nos trouxe e da missão que nos cumpre realizar.
Entrámos em cena no dia em que nascemos. Sem tempo a perder, pois
nem sabemos de quanto dispomos, abrimos os olhos à luz e a língua à fala
(do *IE Bha- que envolve as duas ideias de “luz” e de “falar”, donde nos
vem, no segundo sentido, infante e fábula, fado e fama, e também profeta,
professor, profissional, etc.)73 e começámos a exercer a profissão de actores (do
*IE Ag- “empurrar”, donde nos vem também, ágil e agente, agir e actuar,
agitar e coagir, exigir e examinar, etc.) e, através da actuação pessoal, sempre
única e diferente de todas as outras (há quem provoca genocídios de mi-
lhões, há quem se coloca ao serviço dos que mais precisam, há quem fica
simplesmente sentado “à espera de Godot”), a (re)desenhar a máscara corres-
pondente ao papel que cada um de nós começa e acaba por desempenhar.
Até ao dia em que os bastidores nos abrirão a porta de saída. Como
actores, entrámos em e sairemos de cena.

78
Acontece que o teatro (do gr. théa “espectáculo, visão”, mais o sufixo
-tron, “instrumento”, ou seja “máquina de espectáculo”) é o lugar onde
podemos também observar (do verbo grego theōréō, composto de théa “es-
petáculo” e horáō “ver”, donde nos vem teorema e teoria) todo o drama
como espectador (do radical *IE Spek- “olhar com atenção, contemplar,
observar”, donde nos vem ainda aspecto e circunspecto, espécie e especialis-
ta, espelho (lat. speculum) e especulativo, inspecção e perspectiva, respeito e
suspeito, etc.).
O drama é também espectáculo. Para além de actores, somos também
espectadores. E como espectadores, na atitude de quem observa, examina,
testemunha, sofremos também de expectativa, na ânsia de quem aguarda
e espera sem saber o quê, a despertar em nós sentimentos que desabro-
cham em questões que explodem em perguntas e aguardam respostas.
Mas as respostas, se as houver, apelam para decisões (do *IE Skei-,
“cortar, fender, rachar”, donde nos vêm cisão e decisão, cédula e cisma,
césar e czar, ciência e consciência, esquife, esquina, esquizofrenia, etc.) sobre
os comportamentos a adoptar perante as coisas do palco, as pessoas do
elenco e os valores que estão em causa na acção.
E ao agirmos de acordo com essas decisões pessoais, tornámo-­nos co-
-autores (do * IE Aug- “(a)crescer, aumentar”, donde nos vem ainda au-
gurar, autoridade e auxílio, Agosto e Outono) do drama, e corresponsáveis
pelo seu desenvolvimento e desenlace74.

O estatuto das Pessoas membros da Família Humana

O termo pessoa, que se contrapõe ao termo coisa, vem do latim per-


sona, parece ter emergido no ambiente rico do teatro greco-romano e
adquirido sucessivamente os significados de: a) a máscara do antepassado
usada pelo membro do grupo primitivo na festa tribal, ou do deus ou
do herói utilizada pelo actor grego ou romano na peça de teatro; b) o
papel que, por atribuição própria ou alheia, o actor desempenha no palco
ou na vida; c) o próprio actor que representa um determinado papel no
teatro ou na sociedade; d) o ser humano como autor das suas próprias in-
tervenções no “Gran Teatro del Mundo” (Calderon de la Barca) e, nessa

79
medida, como co-autor do drama da Família Humana.
A riqueza acumulada de todos estes sentidos, ampliável ainda através
de termos como personagem, personalidade, etc., põe em relevo a natureza
dramática da condição e da existência humana.
Nas suas diversas facetas – máscara, papel, actor, espectador, co-autor
– o conceito de pessoa encontra-se difuso em todas as culturas antigas,
emerge na palavra grega prosopon, clarifica-se nas discussões teológicas
dos concílios ecuménicos da Igreja cristã recém-reconhecida pelo poder
político constantiniano (séc. IV), ingressa na tradição filosófica medie-
val com a definição de Boécio, rationalis naturœ individua substantia (De
duabus naturis, III) e chega até nós como expressão do estatuto do ser
humano na prenhez e complexidade das suas múltiplas dimensões que
podemos reduzir a três: como centro de relações com as outras pesso-
as do universo inter-subjectivo em que todos nos encontramos; como
princípio, consciente e livre, de todos os seus comportamentos e, por isso
mesmo, responsável por todos eles; como fim de todos os meios e nunca
meio para qualquer fim.
Por outras palavras, o ser humano apresenta-se, sempre e simultanea-
mente, como centro e não periferia, sujeito e não objecto, fim e não meio.
Enquanto centro, desde sempre e de uma forma ou de outra em todas
as culturas, no contexto de todas as coisas que se movem à face da terra,
entre os astros que circulam na abóbada celeste, os mares e as ilhas, as
montanhas e os vales, as pedras mesmo as mais preciosas, as árvores, as
plantas e as flores, os animais da terra, os peixes do mar e as aves do céu,
nós, os seres humanos temos consciência de que nada encontramos de
mais grande, elevado e nobre e valioso do que nós próprios. Como já o
reconhecia o coro na tragédia grega Antígona:

“Inúmeras são do mundo as maravilhas,


mas nenhuma que ao homem se compare:
é vê-lo sobre as ondas, entre as ilhas,
as águas percorrer do branco mar; […]

80
É o ser dos recursos infindáveis:
até contra o futuro se faz forte;
e cura-se de males incuráveis…
Aquilo que o detém? Somente a Morte”75.

Por outro lado, a pessoa, enquanto sujeito, assume-se como princípio


dos seus actos nas dimensões de ser consciente, livre, responsável. Como
consciência, revela a capacidade de se assumir a si próprio no contexto de
tudo quanto o rodeia, de apreender o sentido da sua existência, de dis-
cernir, entre mil caminhos paralelos, cruzados, sobrepostos, imbricados,
confundidos, aquele que melhor o pode conduzir ao seu destino. Como
liberdade, é-lhe permitido optar por seguir um caminho divergente ou
mesmo errado, ou persistir em trilhar o caminho certo, não obstante os
tremendos obstáculos que se lhe levantem no percurso. Enquanto respon-
sável, acarreta o ónus de, mais tarde ou mais cedo, ter de prestar contas
das consequências de todos os seus actos.
Finalmente, na ordem ética, em ligação com o seu destino, de acordo
com a celebrada fórmula Kantiana,

“Age sempre de tal forma que trates a humanidade, tanto na própria


pessoa, como na pessoa de outrem, como um fim e não como um
simples meio”76,

a pessoa assume-se como um fim, sempre fim de todos os meios e nun-


ca meio para qualquer fim.
Esta máxima de Kant, que abriu um sulco profundo no pensamento
posterior põe em relevo a distância entre as pessoas e as coisas: as coi-
sas repetem um padrão geral específico, as pessoas apresentam um tipo
individual e único; as coisas recebem um nome comum, as pessoas co-
nhecem-se pelo nome próprio; as coisas têm preço, as pessoas revelam
dignidade:
“Não se pode confundir preço e dignidade. Uma coisa tem preço
quando pode ser substituída por outra equivalente. Mas uma reali-
dade que não tem equivalente e portanto ultrapassa qualquer preço,

81
tem dignidade. Só as pessoas têm dignidade ou valor, as coisas só têm
preço”77.

Mas a pessoa movimenta-se nestas três dimensões de princípio, centro


e fim dentro da “companhia de teatro” que é a Família Humana.
Ao que parece recebidos como empréstimos do osco famel e famelo,
os lexemas latinos famŭlus, ī “criado, servo, escravo” e familĭa, æ, origina-
riamente “conjunto de criados e escravos que vivem sob o mesmo tecto”,
representavam o oposto do lexema gens, gentis, “conjunto de cidadãos
livres de nascimento e descendentes dos mesmos antepassados e a viver
sob a autoridade de um pater com poder religioso, político e militar”78.
A associação de todos estes lexemas conduziu à delimitação e evolução
do conceito de família, ao longo da história, em acepções cada vez mais
amplas: até ao fim da República Romana (27 a. C.), família, em ligação
com casa (domus), como totalidade que abarcava, sob a autoridade do
pater famílias, a esposa, os filhos, os escravos e até os animais e as terras;
a seguir família como designação, mais ou menos explícita, do mundo
cultural em que os grupos humanos se sentiam integrados, reservando-se
as designações de gentes, gentios, gentílicos para os que não faziam parte
dele (“bárbaros” para os romanos, “pagãos” para os cristãos); mais tarde,
família como designação de um conjunto de pessoas com interesses co-
muns (de religião, etnia, cultura, arte, associação, profissão, índole, etc.);
finalmente, por força de concepções filosóficas (desde o helenismo) e/ou
religiosas (desde o cristianismo), família no sentido que abarca toda a
humanidade: a Família Humana.
Este último sentido permanece de algum modo ao longo da História
e é energicamente reevocado no início do Preâmbulo da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e suposto na base da afirmação do Artº
1º: “todos os seres humanos […] devem proceder uns em relação aos ou-
tros dentro de um espírito fraternal”. Embora no texto este último princí-
pio não obtenha qualquer desenvolvimento posterior, certamente devido
ao facto de os representantes dos Estados membros da ONU começarem
a se encontrar desavindos naquele momento histórico até no que respei-
ta à própria dignidade humana e às suas consequências, é este sentido

82
da Família Humana que passou a constituir a base dos conceitos que se
abordam a seguir.

A Dignidade Humana fonte de Direitos e Deveres

Ao afirmar, logo no início do texto, que “o reconhecimento da digni-


dade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos
iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e
da paz do mundo”, a Declaração Universal dos Direitos do Homem está a
proclamar que este mundo novo é o reino de todos os valores e a colocar
no centro deste reino o valor da dignidade humana.
Mas persiste a pergunta: donde vem ao homem a sua dignidade?
Vamos encontrar a resposta a partir do étimo da palavra. Mas an-
tes, evoquemos um conceito afim que o precedeu na história do
pensamento.
A relevância da dignidade humana, como centro polarizador e trans-
cendente da moralidade e do direito, emerge lentamente nos mitos antigos
e nas tradições orientais e aparece já no pensamento grego, particularmente
helenista e estóico, em ligação com a categoria conceptual dos princípios,
das fontes, das origens: “viver de acordo com a natureza do homem”.
O conceito de natureza, que tem perdido força no pensamento mo-
derno mais virado para a acção, a eficácia, o futuro, representava para eles
o valor fundamental da existência, da moral e do direito.
No interior de cada espécie biológica, todos os seres vivos nascem de
outros seres vivos. Dentro da Família Humana, todas as pessoas nascem
de outras pessoas.
Natureza (do verbo latino depoente, nascor, ēris, natus sum, nasci,
“nascer”, que através do particípio natus deu origem a lexemas como na-
tal, nativo, etc.), pode referir-se a realidades ordenadas em círculos cada
vez mais envolventes: a) conjunto das propriedades que um ser humano
tem por nascimento (e que por isso se dizem inatas e não adquiridas,
por exemplo, através da educação); b) conjunto de todos os seres vivos; c)
conjunto dos seres que existem no universo; d) conjunto das leis que regem
esse conjunto de seres.

83
A referência inicial ao ser humano e depois a todos os seres vivos que
nascem de outros seres vivos alarga-se, assim, posteriormente, a todos os
seres criados, na medida em que também eles recebem a existência e, por
extensão, ao conjunto das leis que os regem.
Remontando à raiz indo-europeia *IE Gen-, Gne- (I) que envolve as
ideias de gerar e nascer (donde provêm galáxias de lexemas como, por um
lado, gene, génese, genealogia, genital, gente, gentílico, gerar, geral, germe,
indígena, irmão (lat. germanus), etc. e, por outro lado, prenhe, cogna-
to, nado, nascer, nação, natal, natureza, etc.), verificamos que natureza
designa tudo o que recebemos por geração e por nascimento e que, por
isso mesmo, constitui o património originário que sustenta a permanência
do ser que somos e representa a lei que rege todo o processo do nosso
desenvolvimento.
Nesta ordem de ideias, natureza exprime a realidade que não depende
de nós mas de que nós dependemos, que nós não constituímos mas nos
constitui, que sendo-nos contemporânea nos é anterior, que sendo-nos
imanente nos é também transcendente, pelo que o nosso crescimento
verdadeiro só obtém sentido quando se processa de acordo com ela, nos
termos do grande princípio que o estoicismo nos legou.
Ao conceito antigo de natureza corresponde o conceito moderno de
dignidade, como se compreende remontando também do uso corrente ao
seu étimo.
A montante de outras acepções concretas e derivadas, no singular ou
no plural, como título, honraria, prerrogativa, cargo de elevado nível na
hierarquia social ou consciência do próprio valor, a dignidade aparece
definida como “qualidade do que é grande, nobre, elevado” (Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa).
Derivada do lat. dignus, exprime a ideia de “o que convém”, está em
conformidade, é apropriado, adequado, certo, e designa, no sentido abs-
tracto, o “carácter ou qualidade daquele que é (e por analogia daquilo
que é) digno, ou seja, como convém, e que, por isso, merece aprovação ou
mesmo respeito” (Foulquié, Dictionaire de La Langue Philosophique)79.
Por sua vez, dignus encontra-se relacionado com o latim decet que en-
volve o sentido de “é conveniente, está conforme” e, por isso, em sentido

84
abstracto, “dignidade tem a ver com decoro, decência, compostura, gravi-
dade […] que infunde respeito” (Dicionário da Academia)80.
Remontando mais, encontramos que decet deriva da raiz indo-euro-
peia *IE Dek-, Dak,- que envolve a ideia geral de receber e está na origem
de, para além de dignidade, uma galáxia de lexemas, muitos dos quais
constituem parte essencial do vocabulário educativo como, através do
grego, dogma, doxa, paradoxo, didáctica, didascália e, através do latim,
decência, decoro, dignidade, discente, disciplina, discípulo, docente, doutor,
doutrina, documento, etc. (Álvaro Gomes)81.
Limitando-nos por agora ao lexema dignidade, constatamos, de acor-
do com o sentido geral do étimo, que para aquém de todas as acepções
concretas, no sentido profundo e originário da especial nobreza reconhe-
cida ao ser humano, ele exprime uma realidade que é, não adquirida ou
conquistada pelo nosso próprio esforço, mas originária e gratuitamente
recebida por cada um de nós.
Não entrando, ao menos por agora, na indagação da fonte ou origem
que possa constituir o património comum de onde advém a todos os
seres humanos esta dignidade, até para não nos determos em eventual
discussão entre heranças culturais e/ou religiosas, assentemos na concep-
ção comum que a este respeito nos é transmitida pela Declaração Universal
dos Direitos do Homem: o dom recebido da dignidade humana é “inerente
a todos os membros da Família Humana”.
Somos assim levados a pensar e a dizer que a dignidade, à qual tan-
tas vezes apelamos instintivamente quando a sentimos afrontada em nós
próprios e/ou nos outros, pertence a cada homem, não por qualquer mé-
rito ou nível de grandeza conquistado, mas pelo estatuto recebido de ser
humano, e por isso constitui um valor que nos pré-existe, e que existe e
persiste em nós independentemente do nosso comportamento, huma-
namente sensato ou insensato, legalmente legítimo ou ilegítimo, moral-
mente bom ou mau.
A dignidade humana está lá, desde o início e até ao termo do nosso cur-
riculum vitœ, como dom recebido, anterior e transcendente a todo e qual-
quer nível ou estatuto por nós conquistado, de natureza económica, social,
política, cultural, legal, moral, religiosa ou outra. Por isso, porque pertence

85
ao foro do recebido e não do adquirido, a dignidade humana mantém-se ín-
tegra e inalterada, ao longo da vida inteira, em todos e cada um de nós: na
criança e no velho, no são e no doente, no rico e no pobre, no cidadão e no
estrangeiro, no suspeito e no acusado, no absolvido e até no condenado.
E a mesma origem e estatuto devem ser atribuídos aos direitos hu-
manos, na medida em que a Declaração Universal dos Direitos do Homem
implicitamente e os dois Pactos Internacionais complementares explici-
tamente reconhecem que “estes direitos provêm da dignidade da pessoa
humana”, e ainda aos deveres correspondentes.

A “Polis” dos Valores como Meta a alcançar pelo regime de Direito.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Preâmbulo, consi-


dera “essencial que os direitos do homem sejam protegidos por um regi-
me de direito”. E porque aos direitos de uns correspondem os deveres dos
outros, a menção da protecção dos direitos envolve, em idêntica medida,
a exigência do cumprimento dos deveres.
Direito vem da raiz *IE Reg- que envolve a ideia geral de “movimento
em linha recta”, e donde também procedem muitos outros lexemas tais
como, recta e rectidão, recto, directo e direcção, rei, reitor e regente, regra e
régua, regime e regulamento, etc.
Dentro desta ideia e sem esquecer o respeito pela dignidade de todo
o Ser Humano mesmo nos seus piores momentos de fragilidade e queda,
vem-se preconizando que o regime de direito deve informar o espírito e a
letra das constituições dos Estados membros da Organização das Nações
Unidas, como de facto acontece já, em medida mais ou menos perfeita,
na sua grande maioria.
Mas no contexto global que agora consideramos, na plena consciência
de que a dignidade do homem constitui o cerne de todos os valores e a
fonte de todos os seus direitos e deveres, encontrámo-nos confrontados
com a necessidade e urgência de refundar toda a política, já não ape-
nas ao nível local de cada Nação ou Estado ou ao nível regional de uma
União de Nações como a Europa, mas ao nível global da grande Polis que
é a Família Humana, de acordo com a “mais alta aspiração do homem”, a

86
”concepção comum” a alcançar e o “ideal comum” a atingir.
E de acordo com a separação dos três poderes clássicos, legislativo,
executivo e judicial.
Ao poder legislativo, onde quer que ele se encontre, compete pro-
clamar que o reconhecimento e o respeito pela dignidade humana é a lei
fundamental do funcionamento da Polis ou, nos termos da mencionada
raiz *IE Dek-, Dak-, e dos lexemas derivados que integram grande parte
do vocabulário do processo educativo, constitui o documento-base a ter
em conta, a linha ortodoxa que transcende todas as heterodoxias e todos os
paradoxos, o dogma que preside a toda a didáctica, a doutrina essencial a
transmitir na tarefa docente por todos os doutos e doutores e a aceitar dócil
e disciplinadamente em todas as disciplinas que fazem parte do curriculum
por todos os discentes e discípulos, a fim de que, mesmo que comecem
por apenas decorar, evitem qualquer situação indecorosa merecedora de
desdém e acedam a um nível de decência humana e decoro social à margem
do qual nenhuma decoração ou condecoração pode ter qualquer sentido.
Ao poder executivo e recorrendo agora à matriz *IE Reg- que envolve
a ideia geral de “movimento em linha recta” e aos lexemas que dela deri-
vam, cumpre sempre e tão somente agir e tudo pôr a funcionar de acordo
com tudo o que estabelece a Lei fundamental do respeito pela Dignidade
Humana entendida como régua ou regra de todo o comportamento, à
maneira do que faz a relha do arado ou a correia de transmissão, seguindo
a linha recta e a rectidão, o caminho recto, directo, direito nessa direcção,
de tal modo que todos os reis e regentes, reitores e regedores, directores e
dirigentes, de qualquer nível e em qualquer lugar, exerçam a sua função
de reinarem e de tudo erigirem e regerem, dirigirem e corrigirem, exigirem
e endereçarem, endireitarem e rectificarem, de acordo com os regimes, regi-
mentos e regulamentos ajustados, no respectivo reino ou região.
Ao poder judicial e agora no sentido da raiz *IE Deik- Dik-, que en-
volve a ideia geral de “mostrar”, e dos lexemas dela derivados, pertence
agir de tal modo que todos os juízes (lat. judices) mantenham permanente
sindicância ao cumprimento da sua missão jurídica de apontar aquele “ca-
minho recto” como o verdadeiro e único paradigma, de, sem condições ou
abdicações ou outras quaisquer contradições e sem, por outro lado, ceder a

87
qualquer tipo de desditosa ditadura, com o dedo (lat. digitus) o indigitar,
indiciar e indicar, de, com a linguagem, o dizer (lat. dicere) através de
todas as palavras do dicionário sem nunca o desdizer, de o ditar (lat. dic-
tare), de o pregar (lat. praedicare) e apregoar, de abençoar (lat. benedicěre)
a quem o segue e amaldiçoar (lat. maledicěre) a quem o ofende e, neste
caso, o interdizer (lat. interdicěre), o julgar (lat. judicare) e assim vingar
(lat. vindicare) o “caminho recto” da Família Humana e a ordem geral do
Universo.
Mas, como vimos acima, A Declaração Universal dos Direitos do
Homem, depois de afastar o caminho da guerra e defender a via do
Direito, aponta, como solução radical para provocar o advento do mundo
em que seja reconhecida a dignidade, respeitados os direitos e cumpridos
os deveres do homem, o caminho do ensino e educação.

A Educação como Caminho a seguir

A problematização das relações entre ensino e educação, feita no ca-


pítulo I, prosseguirá em devido tempo. Neste sentido far-se-á um mais
amplo recurso à raiz *IE Dek-, Dak-, receber e atendendo à inteira galáxia
dos lexemas que daí nos vêm, designadamente os referentes aos processos
de docência, discência, disciplina, etc., que se revestem neste campo da
maior importância.
Entretanto importa sublinhar que o cerne do processo educativo, en-
tre a estratégia da mobilização de recursos e o reconhecimento e respeito
pelos valores, reside na criação das melhores condições para que os seres
humanos cresçam e se desenvolvam em todas as dimensões do ser e em
todas as fases da vida, e pode ser esclarecido pelo recurso a mais duas raí-
zes cruciais do vocabulário-base da educação.
Da raiz *Europ. Kre-, que envolve a ideia geral de “crescer, desenvol-
ver-se, abrir caminho”, pelo lat. crescĕre vem o lexema crescer e pelo lat.
creare, “tirar do nada, gerar” vêm os lexemas criar, criação e criança. De
outra raiz *Europ. Al- Ol-, ideia geral de “alimentar”, pelo lat. alěre, supi-
no altum, vêm os lexemas alimentar, aluno, alto, altar, etc. e também, no
sentido que evoca o facto de a alimentação provocar o crescimento, pelo

88
lat. adolescĕre, “crescer” e através das formas dos particípios activo e pas-
sivo, vêm os lexemas adolescente (que cresce) e adulto (crescido). Importa
acrescentar que, no latim antigo, (e)ducare apresenta o sentido originário
de alimentar, nutrir.
Temos ainda que estas raízes estão na origem de realidades expressas
quer em forma de verbos transitivos quer em formas de verbos intransiti-
vos ou reflexos. Pertence aos pais-educadores conjugar os verbos transiti-
vos (gerar, alimentar, educar), pertence aos filhos-educandos conjugar os
verbos intransitivos e reflexos (nascer, crescer, desenvolver-se).
Esta relação revela ainda uma ordem funcional entre estes verbos, na
medida em que os primeiros estão ao serviço dos segundos: somos gera-
dos para nascer, alimentados para crescer, educados para nos desenvolvermos.
Os educadores, por mais adultos, fortes, sábios que sejam não têm por
missão essencial mandar, gerir, decidir, mas sim colocar-se ao serviço dos
educandos. Educar não é dominar mas servir.
Começa deste modo a configurar-se o estatuto da educação exercida
pelos pais como estratégia para alcançar o objectivo de proporcionar aos
filhos as melhores condições de crescimento.
Finalmente a educação deverá promover o crescimento dos educan-
dos em todas as suas dimensões, aptidões, faculdades ou capacidades sob
pena de ficar em desequilíbrio, e visar todos os valores que podem pro-
porcionar a sua plena realização sob pena de permanecer truncado.
Podemos assim compreender melhor que a tarefa de educação vai
consistir em mobilizar os recursos que são as coisas da natureza para criar
as melhores condições às pessoas da comunidade para que elas cresçam até
atingirem a própria realização na esfera dos valores.
Existe uma diferença subtil mas profunda entre os dois primeiros mo-
mentos deste processo – mobilizar os recursos que são as coisas e criar as
melhores condições às pessoas – que nós correntemente confundimos
mas que as raízes lexicais ajudam a distinguir.
No primeiro momento vamos encontrar a raiz *IE Ag- (que envolve a
ideia geral de empurrar, impelir, levar tudo, ou seja, as coisas, pela frente),
donde nos vêm, de entre uma galáxia de lexemas, ágil, agir, agitar, coagir,
exigir e ainda exame e estratégia.

89
No segundo, deparamos com a raiz *IE Deuk-, Duk-, (que envolve a
ideia geral de conduzir, guiar, liderar, ir à frente de todos, ou seja dos seres
humanos), donde nos vêm, de entre outra galáxia de lexemas, abduzir,
deduzir, induzir, conduzir, produzir, reduzir, seduzir e ainda condutor e
duque (em ital. condottiere, doge, duca, duce) e também educar, lexema
que vai seguir um caminho próprio.
Em rigor, importa distinguir entre “levar tudo pela frente” e “andar à
frente de todos”, entre empurrar e conduzir, entre estratégia e liderança. A
estratégia refere-se directamente à mobilização das coisas (meios, recursos,
instrumentos) enquanto a liderança tem a ver com a condução das pessoas.
Por outro lado, em sentido englobante não destituído de alguma proble-
maticidade e isento de riscos, tradicionalmente consideram-se as duas
partes como complementares.
Com efeito, a etimologia de estratégia mais próxima de nós (a partir do
grego stratós, oû, “exército” e do grego ágō, “conduzir”), evoca a ideia de
que o estratego ou chefe militar da antiga Atenas empurra o exército, como
máquina monstruosa integrada por todos os meios de que dispõe contra
o inimigo, caminhando à frente dos seus homens. Por outras palavras, o
mesmo general mobiliza (empurra) todos os meios logísticos e anda (vai à
frente) das suas tropas, arrasta as coisas e dá exemplo aos homens.
Assim, em educação, trata-se de pôr em movimento tudo e todos, as
coisas e as pessoas, as coisas para servirem as pessoas e as pessoas para cres-
cerem dentro do reconhecimento e respeito pelos valores que constituem
a meta da sua realização e, em primeiro lugar, pela fonte desses valores
que é a dignidade humana.
É neste sentido de todos crescermos no sentido de nos tornarmos ca-
pazes de contribuir para mobilizarmos as coisas, como meios ao serviço
da criação das melhores condições para que as pessoas, como fins, possam
crescer até atingir a sua plena realização nos valores, que adoptámos a
palavra caminho no título deste livro e damos importância à noção de
estratégia no seu desenvolvimento.
Nos capítulos que seguem e na perspectiva abrangente da dignida-
de e direitos de todas as pessoas dentro da Família Humana, passamos a
abordar as diversas dimensões e fases da educação, respeitando o proces-

90
so histórico da génese dos conceitos e da sua metamorfose e integração
em perspectivas cada vez mais amplas: as reformas da educação escolar, as
revoluções da educação de infância e da educação de adultos e o novo para-
digma da educação ao longo da vida de cada um de nós, na comunidade de
que fazermos parte, dentro do universo em que nos movimentamos.

91

Capítulo III

Educação escolar: reformas, contestação e crise

No final do Preâmbulo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem


(1948) afirma que o “ideal comum” do advento do mundo novo deverá
ser atingido pelo “ensino e educação”.
A associação em pé de igualdade dos dois conceitos que posterior-
mente no texto (Art.º 26º), já aparecem separados, é hoje chocante para
nós, mas não parece ter impressionado as sociedades da época e menos
ainda os seus responsáveis, uma vez que, na mentalidade então dominan-
te, o sistema educativo e o subsistema escolar se consideravam tenden-
cialmente como equivalentes.
Com efeito, em meados do século XX, o subsistema escolar, progres-
sivamente constituído ao longo dos séculos, representa a parte institucio-
nalizada da educação, na forma de encontro entre a geração de adultos
e a geração de crianças, adolescentes e jovens, em que a primeira sente a
responsabilidade de tudo fazer para que a segunda aceda ao património
cultural da comunidade, prevalentemente pela via da transmissão de co-
nhecimentos ou ensino.
Entretanto, a partir do fim da II Guerra Mundial e de formas extre-
mamente variadas, em sintonia com as mudanças que afectam cada uma
das suas principais regiões, o mundo assiste ao sismo que abala todo este
subsistema de educação escolar, a partir do lançamento de reformas que
acabam por gerar movimentos de contestação e desaguam numa crise geral
do sector da qual, mesmo a esta distância, não parece termos saído.

93
As três fases do processo vêm descritas no Relatório que a Comissão
Internacional da UNESCO, criada em 1970, constituída por sete repre-
sentantes das diversas regiões do Mundo e presidida por Edgar Faure,
apresentou em 1972 sob o título Aprender a ser82.
Na linha das tradições iluministas do Ocidente e do Oriente cuja
cultura dominante atribuía à educação o estatuto de primeira priorida-
de na “preparação para a vida”, e de modo particular na perspectiva do
Ocidente que a partir da revolução industrial privilegiava a sua dimensão
económica, as principais nações beligerantes mais ou menos afectadas
pela guerra, apostam na reconstrução nacional, dando prioridade má-
xima à preparação do que denominam “recursos humanos”, através do
lançamento de grandes reformas do “sistema educativo” que, tendencial-
mente, se confunde com o subsistema escolar.
Passados alguns anos e a condizer exactamente com aquela redução
de perspectiva, o resultado geral pode sintetizar-se no progresso da trans-
formação da “escola de elites” em “escola de massas” e é registado pelo
mencionado Relatório da seguinte forma:

“pela primeira vez, sem dúvida, na história da humanidade, o desen-


volvimento da educação considerada à escala planetária tende a prece-
der o nível do desenvolvimento económico”83.

Entretanto e para além do facto de tal “êxito” envolver, no reverso da


medalha, o “fracasso” que se vai manifestar no mercado de trabalho (situ-
ações de desemprego e sub-emprego), este período histórico caracteriza-se
ainda pela emergência de processos extremamente rápidos de alargamento
de horizontes no espaço, de aceleração de mudanças no tempo e de transfor-
mação das condições de existência que a escola não consegue acompanhar,
acentuando-se o processo de divórcio entre ela e a sociedade.
Nesta situação, a geração nova, mais aberta, flexível e capaz de se
adaptar rapidamente à mudança, começa a detectar as disfunções entre
a escola e a vida, a desorientação dos mais velhos e a vacuidade das suas
promessas e ainda, ao sentir-se defraudada nas espectativas e esperanças
de melhoria da existência que lhe tinham sido criadas, é levada a rebelar-

94
-se e a organizar-se em movimentos de contra-culturas, de subculturas,
de tribos e de redes que se articulam, ao longo do tempo, num movimen-
to de contestação global da escola, da sociedade e da cultura vigentes, nos
termos de outro registo do mesmo Relatório:

“pela primeira vez na história, as diferentes sociedades começam a


rejeitar um grande número de produtos oferecidos pela educação
institucionalizada”84.

Perante este fenómeno de contestação e rejeição, a geração dos adul-


tos, responsável pela condução do processo de ensino e pelo lançamento
das reformas, sente-se, numa primeira fase, surpreendida, desarmada e
desamparada, oscila depois entre a manutenção das receitas tradicionais
do ensino e a fuga para a frente da adopção de novas ideologias e uto-
pias, entre impôr-se através de todo o tipo de autoritarismo e demitir-se
das responsabilidades, entre acirrar o confronto e tentar evitá-lo, e acaba
por desbravar caminhos de reflexão à base da formulação de perguntas
que ficam a aguardar respostas: até que ponto o processo educativo tem
consistido em mobilizar as coisas para criar as melhores condições para as
pessoas crescerem no respeito pelos valores, designadamente pelo valor su-
premo da dignidade humana? em que medida os adultos nos reconhece-
mos habilitados para realizar a tarefa de conduzir as gerações mais novas,
não apenas pela transmissão do conhecimentos abstractos ou concretos,
mas pela experiência e o testemunho de vida, tendo em conta que para
fazer crescer os outros (adolescentes) é preciso ser crescido (adulto), que
para educar é preciso ser educado? até que ponto, para ter êxito na edu-
cação dos adolescentes, vai ser necessário assegurar previamente a educação
dos adultos?
Estas e outras perguntas semelhantes confrontam os adultos com a
emergência de uma situação de crise, evidenciada quer na dúvida sobre as
modalidades actuais quer na procura de modalidades futuras da educa-
ção, e testemunham a justeza de outra verificação do mesmo Relatório:

“pela primeira vez na história, a educação empenha-se consciente-

95
mente em preparar os homens para tipos de sociedade que não exis-
tem ainda”85.

Analisemos mais em detalhe as três dimensões deste processo


histórico.

1. As “reformas educativas” de meados do século XX

Para melhor podermos compreender o alcance das reformas de mea-


dos do século XX, importa evocar os momentos históricos mais significa-
tivos da génese e da institucionalização da educação escolar.

Génese e desenvolvimento da instituição escolar

Nos termos da definição provisória que encontrámos acima, a edu-


cação designa a acção do educador sobre o educando com vista a con-
tribuir para que nele se desencadeie e/ou estimule o processo do seu
desenvolvimento.
A fragilidade biológica e não especialização comportamental do re-
cém-nascido humano deixam-no em total dependência do contexto pa-
rental, comunitário e ecossistémico.
Nesta situação, a educação foi desde sempre entendida como acção
das gerações mais antigas sobre as mais novas, por osmose de vida e im-
pregnação cultural nos longos tempos da antropogénese, por transmissão
comunitária, utilizando a linguagem oral, através dos mitos e ritos, nas
celebrações de iniciação dos grupos humanos nos períodos posteriores.
Mas é durante o período longo e lento da descoberta dos processos da
domesticação de plantas e animais, da sedentarização, da estratificação das
classes sociais, da urbanização, da gestação das primeiras civilizações, da
descoberta, codificação e expansão da linguagem escrita e da consolidação
do poder que o seu domínio concede às classes superiores, que se desenvol-
ve definitivamente a educação nas modalidades da instituição escolar.
Procedente da raiz *IE Segh- que envolve a ideia geral de “agarrar,
manter” e veio a ser difundida pelo lexema grego scholé, no sentido de

96
”repouso, paragem, divertimento” e, mais tarde, já na época do impé-
rio romano, de centro de estudo, a escola, estruturada ao redor do texto
escrito e da relação professor e grupo de alunos, num tempo e espaço
demarcados86, desenvolve-se, “avant la lettre”, nas civilizações do Médio
Oriente (escolas de escribas), da China (mandarinato), da Índia (primei-
ras “universidades” bramânicas), da Pérsia (estruturas de educação per-
manente) e, já mais de acordo com o sentido etimológico, na Grécia
(Sofistas e Sócrates, Isócrates, Platão e Aristóteles), no mundo helenista
e no império romano, nos centros da catequese cristã e, mais tarde, nos
modelos de educação permanente muçulmana87.
Nos tempos mais recentes, e mantendo a perspectiva classista, dentro
de cada época e em cada espaço cultural, o tipo de escola passa a ficar
determinado pelo tipo de homem que se pretende formar.
Assim, na Idade Média Ocidental, a partir das iniciativas de instituições
monásticas e das intervenções de Carlos Magno (800), desenvolve-se uma
extrema variedade de instituições que vai das escolas monacais, episcopais e
palatinas, visando respectivamente a formação de monges, clérigos e prínci-
pes e, mais tarde, das universidades orientadas para a formação dos letrados
da época, às escolas de cavalaria para a nobreza, “scholae latinae” para a alta
burguesia, “escolas dos ofícios” para os homens dos misteres88.
Já nos tempos da modernidade quando, durante o século XVI nos
países reformados e um século mais tarde nos países católicos, germi-
nam as estruturas de educação de nível primário e, a seguir, entre elas
e as universidades, se posicionam os colégios abertos às classes médias,
é sabido que o objectivo final de todas essas instituições consistia na
preparação das crianças e jovens para a vida, como fiéis das diversas
igrejas nos séculos XVI e XVII, súbditos de Sua Majestade no século
XVIII, patriotas das nações no século XIX, cidadãos dos diversos es-
tados no século XX89.
Entretanto, se o período do Antigo Regime (sécs. XVI-XVIII) ain-
da corresponde à progressiva organização do subsistema escolar a par-
tir do modelo de instituição educativa marcada por um espaço, um
tempo, um conteúdo e um método, em que os antigos processos de
aprendizagem por impregnação vão cedendo lugar aos processos de

97
instrução e estudo rigoroso, mas ainda sob a orientação das correntes
culturais dominantes na tradição de cada sociedade, poderemos dizer
que o advento da idade contemporânea (sécs. XIX-XX), com a afir-
mação do estado-nação, a adopção plena da vernaculidade e a subs-
tituição dos colégios pelos liceus e as escolas técnicas e profissionais,
representa a consolidação da escola como estrutura tendencialmente
estatal, única, verticalizante, fechada e obrigatória90.
A progressiva complexificação do sistema de produção e de consu-
mo através das diversas fases da revolução industrial, da taylorização do
trabalho, da difusão das teorias económicas, da periodicidade de crises
tais como a “grande depressão” dos anos 30 e do progressivo acesso das
massas trabalhadoras ao subsistema escolar, conduz a que, no período
histórico mais recente, toda a vida humana incluindo a educação seja
polarizada pelas estruturas de ordem económica.
A “preparação para a vida” tende a privilegiar a função de fornecer aos
jovens a capacidade de resolver os desafios da existência adulta no que
respeita aos problemas da produção e do consumo, de os equipar com
os recursos da ciência e da técnica para desempenharem uma profissão,
obterem um emprego, ocuparem um lugar no mundo do trabalho.
É este tipo de instituição escolar que prevalece em meados do século
XX e vai tornar-se objecto das grandes reformas.

As grandes reformas do século XX

Terminada a II Guerra Mundial, as nações beligerantes, quer as ven-


cidas quer as vencedoras, porque todas se encontram semi-destruídas,
empenham-se nas tarefas da reconstrução.
E porque existe um consenso generalizado de que a prioridade deve
ser atribuída à educação, esta vai tornar-se objecto de grandes reformas,
tais como as constantes do Education Act (Reino Unido, 1944) ain-
da antes do final da guerra, da Lei Langevin-Wallon (França, 1947), do
National Defense Education Act (NDEA, USA, 1958) na sequência do
choque emocional sofrido pela nação perante o lançamento do primeiro
sputnik tripulado pela URSS. Se estas reformas são diferentes no tem-

98
po, nas motivações, no próprio desenvolvimento (os promotores da Lei
Langevin-Wallon mostrar-se-ão mais tarde extremamente decepcionados
com a sua frágil aplicação)91, todas elas convergem em três objectivos fun-
damentais, de carácter económico, social e cultural.
O primeiro, que nas condições daquele momento histórico prevalece,
tem a ver com a recuperação urgente da economia. Para além das destrui-
ções materiais sofridas e da morte de milhões dos seus filhos, todas estas
nações se defrontam com um grave problema comum: os seus quadros
profissionais encontram-se não apenas desfalcados mas também ultrapassa-
dos pelo avanço que entretanto se verificara nas ciências e nas tecnologias.
Pelo que a todos se impõe recomeçar pela superação do atraso na prepara-
ção científica, técnica e profissional dos chamados “recursos humanos”.
O segundo objectivo, de carácter eminentemente social, visa criar
condições para proporcionar a “igualdade de oportunidades” a todos os
cidadãos. Passando sobre a ambiguidade inicial de que esta fórmula se
reveste e que mais adiante abordaremos, pretende-se essencialmente, de
acordo com os ideais democratizantes das sociedades da época, criar con-
dições que permitam superar e substituir a estrutura de “pirâmide” que a
sociedade classista e elitista vinha impondo desde sempre ao subsistema
escolar. Procura-se que um número cada vez maior de crianças e jovens
entre no subsistema escolar e avance nele o mais possível (no limite até
ao escalão mais alto). Trata-se de educar mais cidadãos e durante mais
tempo, abrindo a todos a porta de acesso e de sucesso.
Finalmente, no que se refere à dimensão cultural, recria-se um certo
ambiente iluminista, apela-se para os valores tradicionais da modernidade
designadamente a ideia, tantas vezes reevocada ao longo da história, de que
a educação é o valor supremo, e adoptam-se princípios como o que vai conti-
do no slogan utilizado por John Kennedy durante a campanha presidencial
(1959): «a maior riqueza da América é o espírito dos seus filhos”.
Os resultados das reformas tornam-se visíveis, nos países que as puse-
ram em prática, à volta do início da década 60 e, à primeira vista, pare-
cem saldar-se num êxito espectacular: o investimento elevado e persisten-
te no sistema educativo cujo montante de “despesas públicas mundiais”
se posiciona “em segundo lugar, imediatamente a seguir às despesas mi-

99
litares” desencadeia a transformação progressiva e acelerada da “escola de
elites” na “escola de massas”, até ao ponto de o nível do desenvolvimento
educativo, “pela primeira vez na história”, ultrapassar o nível do desen-
volvimento económico92.
Entretanto e um pouco inesperadamente, começámos a tomar consci-
ência de que havia também o reverso da medalha. Se antes, quem tivesse
progredido significativamente nos diversos escalões do percurso escolar
encontrava certamente um emprego, porque havia mais lugares de traba-
lho disponíveis do que pessoas preparadas para os ocupar, agora a situa-
ção inverte-se: começa a haver cada vez mais pessoas preparadas do que
lugares disponíveis e abre-se a crise das grandes convulsões sociais oca-
sionadas pelo aumento do sub-emprego e do desemprego. Começamos
assim a compreender que a aplicação generalizada das reformas, mesmo
atendendo apenas ao ponto de vista económico conduzia também, a par
do êxito, ao insucesso espectacular.
Mas esta disfunção no plano económico sobrevém acompanhada e
potenciada por outras, mais virulentas ainda, nos planos social e cultural.
E tudo, em conjunto, vai contribuir para a contestação generalizada que,
a partir de agora, a juventude protagoniza.

2. A contestação: cultura, contraculturas e subculturas

Ao procurar obter uma visão histórica abrangente (e necessariamente


provisória) do último século, Eric Hobsbawm, em A Era dos Extremos.
História Breve do Século XX, 1914-1991, distingue nele três partes: “a era da
catástrofe” de 1914 a 1945, “a era de ouro” até ao início dos anos 70 e “a
derrocada” desde essa data até 199193.
Olhando as coisas sob o ponto de vista da educação, diremos que essa
divisão é aceitável registando que a “era de ouro” corresponde ao período
das reformas e ao início da contestação e a “derrocada” ao acentuar da con-
testação e ao período da crise.
Explorando as sinergias armazenadas pela sociedade ao longo do de-
senvolvimento da idade industrial, quando ainda só começa a emergir
a nova idade dos serviços identificada por Alvin Toffler94, e ainda não

100
existe a preocupação pelo meio ambiente que inesperadamente se irá im-
por a seguir, guiando-se ainda pelo velho ditado do empresário do séc.
XIX “onde há lixo [poluição] há massa [dinheiro]” e com a ajuda do
Plano Marshal, as nações europeias que tinham saído semi-destruídas da
II Guerra Mundial conseguem, ao longo da década 60, atingir e superar
largamente o nível de desenvolvimento económico de antes do conflito.
A década 60 é mesmo proclamada pela ONU a “Década do
Desenvolvimento”.
A partir dos anos 50, nascem, proliferam e desenvolvem-se novas ciên-
cias, técnicas, processos de pesquisa, de inovação e de invenção. Os pro-
dutos industriais de aí resultantes (electrodomésticos, circuitos integrados,
lasers, transístores, subprodutos da era espacial, rádios portáteis, fitas de
gravação, compact discs, televisões, equipamentos de foto e vídeo, calcula-
doras, etc.), aliados ao embaratecimento da produção, incremento da pu-
blicidade e aumento do número de consumidores, desencadeiam o ciclo da
“economia de excedentes” com repercussões na sociedade e na cultura.
Entretanto, apesar de ela própria ser uma das primeiras e principais
beneficiárias de todo este progresso, levada pelo seu instinto profundo
e certeiro, a juventude da década 60 envereda pelos caminhos da con-
testação. E do acervo de reivindicações de toda a ordem faz emergir um
conjunto mais ou menos consciente de críticas.
No sistema económico, os jovens sentem que se encontra posto em
causa o objectivo essencial da escola: fornecer-­lhes uma preparação para o
mundo do trabalho que lhes garanta, no fim do curso, a obtenção de um
emprego. E quando se verifica que a causa reside no facto de a educação
ter progredido a um ritmo mais veloz que o da economia, perguntam se
há coordenação entre os dois sistemas e se é possível uma autêntica re-
forma do sistema educativo que não seja acompanhada de uma reforma
compatível do sistema económico.
Detectam um problema semelhante no sistema social. É certo que
a escola, libertada em parte do tradicional estatuto de “escola de elites”
com tendência a isolar-se da vida real e a fechar-se na sua torre de marfim,
franqueara as suas portas à sociedade e era hoje uma “escola de massas”.
Mas também aqui, por falta de reformas semelhantes no sistema social,

101
a escola, sendo já para muitos, ainda não é para todos, deixando que os
fossos sociais continuem a cavar-se, e ainda mais fundo, entre maiorias e
minorias. Como jovens, sensíveis aos ideais e apelos de justiça, são leva-
dos a contestar este divórcio entre os dois sistemas.
No plano cultural, os problemas tornam-se ainda mais complexos.
Particularmente ao nível universitário, a escola, arrastada pelo peso da
própria instituição que a torna estruturalmente conservadora, sente difi-
culdade em acompanhar a evolução acelerada para o futuro, mantendo-
-se apenas atenta ao presente quando não ancorada no passado!
Em resumo, a escola aparece aos jovens como demasiadamente orien-
tada para o útil, a profissionalização e o trabalho, negligenciando a aqui-
sição da cultura como exigência humanística fundamental que é a ne-
cessidade de uma vida que tenha um sentido para a pessoa. A cultura
dominante no mundo dos adultos aparece mesmo aos jovens nas roupa-
gens de algo que é contra a verdadeira cultura.
É neste sentido que a “contestação universitária” à “(contra)cultura”
dominante se vai prolongar na “revolta dos jovens” em termos de “con-
traculturas” e “subculturas” opostas a ela.

A nova “classe social” da juventude e a deslocação da cultura

Um dos sectores da população que mais passam a beneficiar das di-


versas dimensões do desenvolvimento que caracterizam a “era de ouro”
é constituído pelo largo espectro de idades entre o nascimento e a vida
adulta, correspondente, na linguagem da época, aos diversos níveis do
sub-sistema escolar: infância no “ensino primário”, adolescência no “en-
sino liceal”, juventude no “ensino universitário”.
Com efeito, na dimensão económica, a publicidade da crescente econo-
mia da abastança, já desde a década 50, vai criando e alargando, para este
novo sector do consumo, vastos mercados de produtos a começar pelas rou-
pas de marca (desde blue jeans a mini-saias), espaços de associações, salas de
música e dança, tempos de lazer, formas de divertimento, modalidades de
turismo juvenil, até aos incentivos ao uso de símbolos materiais e culturais
de identidade e à permissividade e abuso de liberdades (sexo e droga), etc.

102
Já na dimensão social, a conjugação de factores tais como a abertura
da economia, o incentivo social da reforma escolar que leva ao progres-
sivo enchimento das salas dos ensinos básico, secundário e superior e à
transformação da “escola de elites” em “escola de massas”, e ainda à subs-
tituição, embora parcial e lenta, da cultura oral e escrita pela visual e
multimédia através da passagem da Galáxia Gutemberg para a Galáxia
McLuhan (1962)95, abrem caminho à emergência da “aldeia global” e à
nova sensação de vivermos “num mundo único”.
Mas é no plano da cultura que, bem vistas as coisas, aquela beneficia-
ção adquire maior relevo. A transformação da escola de elites em escola
de massas acaba por envolver os alunos, os próprios professores e ainda os
mentores intelectuais e autores da “bibliografia” relevante da época, desde
Sartre, Wilhelm Reich, Gerard Mendel e dissidentes de Praga na Europa,
até Herbert Marcuse, Paul Goodman, Escuela de Cuernavaca e J. e M.
Rowntree nas Américas.
Por outro lado, a deslocação em termos da catalogação vigente, da
direita para a esquerda, desencadeia uma autêntica revolução cultural de
carácter “demótico” (baseado no “povo”) e “anómico” (em fuga às “nor-
mas”), transmitido em cartazes das manifestações de Maio de 68 que
ficaram famosos – “é proibido proibir”, “tomo os meus desejos como
realidade, pois acredito na realidade dos meus desejos”, “quando penso
em revolução quero fazer amor” – e a atingir as bases da sociedade tradi-
cional: “a família e a casa através da estrutura de relação entre sexos e ge-
rações” e o Estado e a sociedade a partir do ataque aos valores tradicionais
que os regem (Hobsbawm).
Esta mudança implica,

“simplificando, a transição de uma cultura puritana para uma cultura


hedonista, de uma cultura de poupança para uma cultura de consumo,
de uma cultura patriarcal para novos modelos de convivência domés-
tica, de uma cultura monolítica (para cada grupo étnico ou de classe)
para uma pluralista e segmentada, de uma cultura oral e escrita para
uma visual e multimédia, de uma cultura local (ou nacional) para cultu-
ras globais (ou “glocais”), de culturas consideradas “puras” para culturas

103
“híbridas”, de culturas presenciais (baseadas em relações cara a cara) para
culturas virtuais (mediatizadas por intercâmbios electrónicos), etc.”96.

O crescente protagonismo da geração jovem, em grande parte com a


conivência tácita ou mesmo explícita de amplos sectores da geração antiga,
torna-se mais compreensível se, para além das mudanças que entretanto se
operam no reconhecimento da força que lhe advém da posição de forne-
cer novos e valiosos clientes à economia de mercado e do seu “espantoso
internacionalismo”, atendermos à própria imagem cultural da juventude
tacitamente aceite dentro da família humana em milénios de história.
Se por um lado os jovens (e em parte também os adolescentes e até as
crianças) eram vistos em épocas passadas como força de trabalho, recurso
essencial para a manutenção das guerras e material de diferentes tráficos,
por outro lado, acontecia também que

“a juventude era vista não como um estágio preparatório para a vida


adulta, mas, em certo sentido, como o estágio final do pleno desen-
volvimento humano”, tendo em conta que “a vida começa claramente
a declinar depois dos 30”97.

Esta anotação subtil que atinge os fundamentos da análise educati-


va, ganha todo o relevo se tivermos em mente a imagem da juventude,
difundida através dos séculos, no que respeita à beleza e à arte de todos
os tempos. Particularmente na civilização grega e já desde as figurinhas
de Tanagra, a figura humana do jovem e da jovem é vista como a acmé
da perfeição e o protótipo da beleza, admirada nos efebos que circulam
pela ágora e pelos fóruns, cotada nos encontros sociais e nos balneários,
discutida nas reuniões dos círculos filosóficos no que respeita à função
educativa da pederastia, cantada pelos poetas que celebram a vitória
dos atletas nos jogos olímpicos, procurada pelos artistas como padrão
da forma para esculpir as estátuas dos heróis e dos deuses, de Hércules
e de Aquiles, das Musas e das Graças, de Júpiter e de Apolo, da Diana
Caçadora e da Vénus de Milo, realizada enfim no esplendor do jovem
Alexandre Magno, criador do império helenístico e arquétipo de todos os

104
jovens que brilharam em todas as dimensões da grandeza, da glória, da
virtude, da arte, do amor.
De facto, jovem e juventude derivam da raiz *IE Dei- que envolve a
ideia de “brilhar” e deu origem, através do grego e do latim, a lexemas tão
nossos familiares como deus, diva, divino, endeusar, entusiasmo, teísmo, teodi-
ceia, teologia, teoria e teosofia; dia, Diana, diário, diurno, diuturno; e também
Júpiter, jorna, jornada, (ver os cognatos francês jour e italiano giorno), jornal,
jornalismo; e ainda jovem, jovial, juvenil, juventude, rejuvenescer, etc.98.

A “era de ouro” e as contra-culturas

Perante tanta luz a envolver a própria imagem da juventude, é natu-


ral que a existência e a cultura real da sociedade conduzida pela geração
adulta, com as ameaças de holocausto nuclear, guerras, terror, ignorância
e miséria reinantes, mesmo na “era de ouro” dos anos 50 e 60, apareça
aos jovens como trevas.
O primeiro momento alto desta viragem histórica é retratado no livro
On the Road, de Jack Kerouac, escrito em 1950 e publicado em 1957. Em
confronto com o tradicional “american way of life”, que levará o Autor a
confessar “a vida é um país estrangeiro”, o livro contém a narrativa da via-
gem de “costa a costa” que se impõe compulsivamente: “Temos de ir. Para
onde? Não sei mas temos de ir” – e vai transformar-se na lenda da “beat ge-
neration”, a convocar os jovens do mundo para percorrer, um pouco por
toda a parte, os caminhos da aventura, da errância e da libertinagem99.
Já na década 60, em face da “cultura dos adultos” denunciada no
autêntico manifesto de gerações de Theodoro Roszak, The Making of
Counter-culture, 1968, que traz como sub-título “Reflexões sobre a socieda-
de tecnocrática e a sua oposição juvenil”,

“depois de nos terem tirado sistematicamente todos os objectos tradi-


cionalmente transcendentes da vida, acabaram por nos dar um arsenal
de meios técnicos que vão da produção da abundância frívola à das
armas para o genocídio”100,

105
a juventude acaba por entender que a sua missão vai consistir em criar
uma contracultura alternativa, de maneira assumida (Ocidente) ou anun-
ciada (Oriente, China).
De facto, é a partir desta década que se observam as explosões da revo-
lução cultural, inicialmente em universidades norte-americanas, a seguir
nas europeias, com o pico em Maio de 1968 em França e o epicentro nas
ruas da Rive grauche, próximas da Sorbone, em Paris, e depois, por razões
e em situações muito diversas, um pouco por toda a parte, da Europa ao
Japão, passando por Repúblicas do Leste (“Primavera de Praga”, “por um
socialismo de rosto humano” promovido pela vanguarda artística juvenil
– literatura de Kundera, teatro de Havel, cinema de Formam – vencida
em 1968 mas a anunciar a “Revolução de Veludo” de fins da década 80),
varrendo a China (“Revolução Cultural” do “Salto em Frente”), atingin-
do as Américas (ligação dos meios universitários ao Zapatismo no México
e ao Sendero Luminoso na Nicarágua) e chegando à África do Sul (activi-
dades dos “jovens leões”).
É certo que as duas maiores explosões desta revolução, a de Maio de
68 em França e a da “revolução cultural” da China, se revestiram de na-
tureza sísmica mas transitória. A primeira esgotou-se nos desafios contra
o curriculum e a (re)estruturação do ensino superior, contra a democracia
formal tecnocrática e militarizada da França, contra grande parte do có-
digo de valores ainda vigente na geração adulta da sociedade ocidental. A
segunda e apesar do entusiasmo que também gerou em grupos “maoistas”
do Ocidente, definhou no pais de origem devido às contradições internas
do “Grande Salto em Frente” para afugentar a “contra-revolução”, do
envio de milhões de estudantes das escolas para os campos afim de serem
“reeducados”, da quebra de entusiasmo dos jovens «guardas vermelhos»
guiados pelos que mais tarde vieram a ser apresentados como o “bando
dos quatro”101.
Mas as ideias motoras, de um lado proclamadas pela juventude,

“venham, pais e mães de todo o mundo, e não critiquem o que não


entendem. Os vossos filhos e as vossas filhas estão para além do vosso
controlo, o vosso caminho antigo está a envelhecer rapidamente. Por

106
favor abandonem o novo rumo, se não são capazes de ajudar, pois os
tempos estão a mudar”102,

e, do outro lado, difundidas pelo “Grande Timoneiro”,

“o mundo é vosso [...]. Vós os jovens, cheios de vigor e de vitalidade,


estais no despertar da vida, como o sol às oito ou nove da manhã. O
nosso sonho está em vós […]. O mundo pertence-vos: o futuro da
China pertence-vos”103,

são convergentes na atitude de contestação da geração antiga pela ge-


ração nova, e vão animar todos os movimentos posteriores de “contra-
culturas” que emergem um pouco por toda a parte.
Estes movimentos de contraculturas, na continuidade de antecedentes
como os Western Style e os Caribean Style da década 40 e os Teddy Boys,
Existencialists, Modernists, La Dolce Vita, Beats e Beatnics da década 50,
desenvolvem-se, um pouco por toda a parte, entre os Hippies (ver Filme
Easy Rider, de D. Hopper, 1969, sobre a viagem de moto de três jovens
da época hippy, da fronteira México-Estados Unidos à Costa Leste), os
Psychodelics, Swinging London, Mods, Rockers e Rude Boys, etc., da década
60, que explodem no pico da contestação do final da mesma década e
acabam por fazer da última parte da “era de ouro”

“Uma época de experimentação cultural e de mutação de valores, que


se expressou em diferentes tentativas de criar alternativas às institui-
ções nas quais se tinha baseado a “sociedade organizada”: face à famí-
lia tradicional, comunas; face à democracia formal, acção directa; face
aos meios de comunicação de massas, meios de comunicação em me-
nor escala; face à monogamia, revolução sexual; face ao produtivismo,
utopia pastoral; face à sociedade armada, pacifismo, etc.”104

107
A crise económica e as subculturas, tribos e redes

Com a crise desencadeada em meados da década 70 pelo choque pe-


trolífero, a era das contraculturas, cada vez mais ligadas ao movimento das
comunas, ocupação de casas, rock’n’roll, sexo e drogas, vai ceder o lugar
à era das subculturas, caracterizadas pela reivindicação do direito à dife-
rença em estilos de vida minoritários, movimentos não menos rebeldes e
até, devido ao sofrimento provocado pela nova crise económica e social,
mais virulentos.
Na linha genealógica dos grupos anteriores e de outros contemporâ-
neos como os Funk, os Skinheads, os Greasers, os Glam, os Headbangers e
os Scaters, em meados da década 70, emergem os Punks, à letra “madeira
podre, coisa ou pessoa de qualidade inferior” (Filme Sid and Nancy, de
A. Cox, 1986).
É neste contexto do “star system” que emergem os The Sex Pistols que,
em três breves anos de vida, fizeram história com gestos como envolver-se
em rixas entre o público que assistia aos seus concertos, provocar escân-
dalos num programa da BBC e incidentes no aeroporto de Heathrow
e, sobretudo, descer o Tamisa, no dia do Jubileu da Rainha, a lançar ex-
crementos sobre o seu retrato enquanto cantavam o hino God save the
Queen na sua versão pessoal,

“Quando não há futuro, não pode haver pecado. Somos as flores no


balde do lixo. Somos o veneno na vossa máquina humana. Somos o
futuro. O vosso futuro”105.

A década 80, em que se abrem novos e decisivos rumos na política


internacional, vai ficar marcada, no que aos jovens se refere, pelos proble-
mas da inserção social em que as palavras-chave passam a ser “desempre-
go, angústia, atitude defensiva, pragmatismo, inclusive sobrevivência”106.
É o tempo de os movimentos de jovens recolherem mais aos clubes de
música e dança (Filme Febre de Sábado à Noite, de J. Badham, 1977) onde,
da conjugação dos velhos ritmos afro-americanos do jazz, soul, gospel e funk
com os europeus do pop e trance, vai sair o house (Chicago, 1977) que, na

108
Europa, depois do pop-rock e do punk, vai sobreviver no acid house e (já na
década 90) no techno dos clubers e dos ravers do Reino Unido e, a seguir, irá
gerar na Alemanha o “Love Parade” anual de Berlim.
Na mesma linha, embora num contexto sócio-cultural muito dife-
rente, encontramos o “baile funk” que, a partir dos fins desta década 80,
assaltou as grandes cidades brasileiras, caracterizado quer pela música hi-
persexual nas favelas do Rio de Janeiro quer pelo conteúdo dos textos dos
muitos hinos de “funk” e “rap” da música secreta dos gangs cuja venda é
proibida e, por isso, passou a ser designada “funk proibidão”:

[…] Infelizmente o livro não resolve / O Brasil só me respeita com a


revolução […] (Autor desconhecido, C. D. pirata de música do “Gang”
Comando Vermelho).
Faca na garganta, tiro no pescoço / Só quem é sabe que o final é cabu-
loso Alta Voltagem / Terror e Acção / É o oprimido contra a opressão
[…] (Taleban)107.

Toda esta situação pode ser vista como a crise do desencanto do indi-
víduo que, ao sentir-se isolado e/ou excluído da sociedade de massas, vai
juntar-se a outros, dando origem às tribos108, como em Espanha (tribos
urbanas), na Rússia (neformalniye grupirovki ou “grupos informais” dos
tempos da perestroika) e, noutros diferentes lugares, com percurso de si-
nal contrário: jovens leões contra o apartheid na África do Sul, “comandos”
nas revoluções da América Latina, grupos de pressão na queda do Xá do
Irão, triunfadores da “revolução de veludo” em Praga, grupos de acção
por altura da queda do Muro de Berlim, contestatários massacrados em
Tianamen (China).
Na década 90, entramos na “era das redes”. A utilização dos “web mo-
vements”, sobretudo a partir de 1989, vai fazer prevalecer a força da infor-
mação sobre a força das próprias armas, quer no fim da luta entre Este
e Oeste (Queda do Muro de Berlim), quer no início do confronto entre
o Norte e o Sul (Seatle, 1999) que em 2001 promove o I Fórum Social
Mundial de Porto Alegre, Brasil, contra o Fórum Económico Mundial
de Davos, Suiça, e faz emergir com a nova geração, já não da Galáxia

109
McLuhan mas da Galáxia Gates109, a “sociedade da rede”110.
É neste contexto (ver o filme A rede, de I. Winkler, 1995) que se
verifica a emergência dos hackers (de hack, cortar, dar uma patada), jo-
vens inicialmente ligados às contraculturas e defensores da substituição
das famílias pelas comunas que, marcando bem a sua diferença com os
crackers (jovens difusores de vírus), adoptam um novo tipo de ética a que
chamam nética, caracterizada por uma concepção lúdica da vida, liberta
do tempo, do espaço e da organização social111.

O tempo das ciberculturas

Na década 00 e a partir da “rede das redes” “world wide web”, desen-


volve-se a “era das ciberculturas”.
Se inicialmente e para alguns ela não passaria de mais uma subcultura,
parece hoje claro que se trata de uma revolução da nossa existência em
todas as dimensões, técnica e tecnológica, económica e social, cultural e
política e que, por razões óbvias, designadamente porque a sua geração se
encontra mais aberta e preparada, vem sendo mais intensamente explo-
rada pelos jovens.
No que directamente à educação diz respeito, por um lado e embora
oscilando entre os que se deixam dominar pelo mundo virtual (como
os jovens hikikomori do Japão que se fecham no próprio quarto ou os
que se integraram num grupo de diversão virtual tipo Karaoke) e os que
dele permanecem excluídos, o fenómeno está a fazer coincidir a viragem
do milénio com a transição entre a geração x, última do século XX, e a
geração @, primeira do século XXI, portadora de problemas graves de-
mais para podermos dar-nos ao luxo de não a enfrentar, com urgência,
profundidade e rigor.
Por outro lado e à cadência da entrada no processo por parte dos
adultos, da expansão dos blogers e da generalização do recurso ao Google
e similares, esta cultura começou a entrar no cerne da relação pedagógica
entre professores e alunos que, na abordagem dos problemas partem da
experiência pessoal, lançam mão da informação disponível à escala global
e, tendo em conta o acervo dos dados recolhidos de todo o contexto com

110
significado antropológico, centram o debate sobre o caminho a seguir em
termos de Info-ética.
Deste modo, espera-se também atenuar o afastamento entre gerações
que vem de tão longe e, tendo ainda em conta a longevidade crescente da
geração mais antiga, continua a acentuar-se112 e representa, provavelmen-
te, o principal responsável pela crise mundial da educação.

3. “A crise mundial da educação” nas suas diversas dimensões

Como frequentemente acontece quando as mudanças da História são


devidas a “vagas de fundo”, as gerações humanas dão conta, no início, da
agitação do mar e só depois (se ainda lhes é concedido o tempo necessá-
rio) tomam consciência das forças incomensuráveis e acaso longínquas
que se encontram na origem do eventual tsunami.
Indaguemos, ainda que de maneira rápida, acerca da “crise mundial
da educação”, a agitação à superfície e as correntes que a desencadeiam.

Os sintomas gerais da crise

O espírito de contestação que, na sequência do notável esforço do


lançamento das reformas escolares das duas décadas anteriores, se instala
no mundo dos jovens durante a década 60 com o pico da mobilização
universitária em Maio de 68 em França, apresenta características inespe-
radas e alarmantes:

– quem inicialmente contesta não são os alunos excluídos ou os


que ficaram a meio do caminho do percurso escolar, mas os
universitários que atingiram o seu mais alto escalão;
– quem lidera são os finalistas, precisamente aqueles que aufe-
riram todos os benefícios da reforma, mas agora se revoltam
contra a sociedade que lhes apresentara a escola como institui-
ção de “preparação para a vida” e, porque entretanto o nível de
desenvolvimento educativo fora superando o nível de desenvol-
vimento económico, começa a não lhes poder proporcionar um

111
lugar de trabalho compatível;
– nestas condições e no limite, os contestadores não pedem uma
“reforma educativa” que aliás se encontra em vigor, nem preten-
dem fazer uma “revolução” que, a pesar do apoio entusiástico
oferecido a quente pelos revolucionários profissionais da épo-
ca113, lhes parece insuficiente mas, porque a escola lhes aparece
como um órgão atrofiado e inoperante do corpo social, passam
(como veremos melhor adiante) a exigir de algum modo, pura
e simplesmente, a “desescolarização” da sociedade ou até a apre-
sentar a “declaração de óbito” da escola;
– finalmente e pelas mesmas razões, os contestadores põem em cau-
sa, para além da universidade e do subsistema escolar, o próprio
sistema educativo e todos os outros sistemas, social, político, cul-
tural, na medida em que eles se revelam incapazes de responder às
necessidades e aspirações da geração emergente dos jovens.

A reacção da geração dos adultos é inicialmente de surpresa, espanto e


desorientação, perante o facto de tão avançadas e generosas reformas do
“sistema educativo” terem provocado, ao cabo de 20 anos, tão amplas,
profundas e persistentes contestações.
Numa primeira fase, a reacção manifesta-se através de movimentos es-
pontâneos que, durante a segunda metade da década 60, começam a fa-
zer o diagnóstico da situação, a procurar alternativas e acabarão por ficar
conhecidos sob o rótulo comum de Pedagogia Institucional114. O diagnós-
tico aponta para o reconhecimento das falhas verificadas no decorrer do
processo e para o facto de as mudanças introduzidas nas décadas 40-50
não constituírem verdadeiras reformas na medida em que:

– insistiam mais na quantidade (transição da “escola de elites”


para a “escola de massas”) do que na qualidade (integração do
processo de ensino no processo de educação), limitando-se a
dar mais do mesmo (ensino) em vez de promoverem a educação
no sentido integral de “desenvolvimento da pessoa humana”;
– reduziam substancialmente, através do progressivo afunilamen-

112
to das áreas científicas contempladas ao longo do curriculum
escolar, a formação humana à formação profissional, deixando na
sombra a formação social e pessoal;
– pretendiam realizar a reforma do sistema educativo isolada-
mente, sem preocupação de verificar se eram realizadas reformas
paralelas nos outros sistemas (económico, social, político, cultu-
ral, etc.) em que se desenvolve a actividade humana;
– não tinham em conta o facto de a problemática da relação
pedagógica, professor-aluno dentro da sala de aula, ter de co-
meçar a ser inserida no contexto da relação mais ampla entre a
escola no seu conjunto e a sociedade dentro da qual se encontra
inserida;
– também não consideravam o facto de, pela aceleração da mu-
dança a que o mundo ia ficando cada vez mais submetido, a
educação escolar já não preparar o jovem para a vida toda, mas
constituir apenas a formação inicial a ter de ser prosseguida, na
fase de educação de adultos, pela formação contínua;
– sobretudo não atendiam ao facto de que os estudantes uni-
versitários, enquanto jovens adultos, já têm voz no mundo dos
adultos com direito a falarem e serem escutados.

Quanto às alternativas, começam a reconhecer que, nesse momento


histórico, é todo o sistema educativo que se encontra em fase de reno-
vação, debate e esclarecimento, a partir não só da convulsão do subsis-
tema de educação escolar mas também dos processos contemporâneos de
emergência da revisão do subsistema de educação de infância, da génese do
subsistema de educação de adultos e da conjugação de todos eles no sistema
de educação ao longo da vida.
Segue-se o tempo do alerta, lançado, em primeiro lugar e em ple-
no auge da crise por Ph. H. Coombs, La Crise Mondiale de l’Education
(1969), logo seguido por I. Illich, Deschooling Society (1970), por M.
Mead, Culture and Comitment (1970) e tantos outros. Já durante a dé-
cada 70 e na sequência do balanço contido no Relatório da Comissão
Internacional da UNESCO, presidida por E. Faure, Apprendre a être

113
(1972), a que acima fizemos referência, procede-se a uma profunda refle-
xão à escala individual, institucional universitária, nacional e mundial.
Cada um dos autores mencionados acima contribuiu para o esclareci-
mento da crise com as suas descobertas pessoais.
Ph. H. Coombs põe em relevo os sintomas da existência e aprofunda-
mento da crise115.
M. Mead analisa o processo de transmissão cultural entre gerações e
distingue as “culturas pos-figurativas” das sociedades primitivas em que
“as crianças aprendem primordialmente com os mais velhos” e se assiste a
uma mudança social lenta, as “culturas co-figurativas”, das grandes civili-
zações em que “tanto as crianças como os adultos aprendem com os seus
contemporâneos” e desencadeiam a mudança social acelerada, e as “cul-
turas pré-figurativas” a emergir agora, em que “os adultos também apren-
dem com as crianças” e os jovens imprimem uma aceleração ainda maior
à mudança social, na medida em que “assumem uma nova autoridade
através da sua captação pré-figurativa do futuro ainda desconhecido”116.
Illich menciona as “forças ocultas” que tudo mandam na instituição
escolar, hidden curriculum, hidden hand, hidden foundations e, em termos
chocantes para a época, fala de “desescolarização”, enquanto Reimer, cin-
co anos depois, falará mesmo de “morte da escola”117.
Estas últimas análises abrem já para a compreensão da crise que, nas
últimas três décadas do século XX, através da sequência de contracultu-
ras, subculturas, tribos e redes, se reveste de características cada vez mais
alarmantes no que diz respeito à educação e à própria existência da co-
munidade humana, a exigir uma reflexão aprofundada
A palavra crise parece ter nascido no campo da medicina onde signi-
ficava, “segundo antigas concepções, o 7º, 14º, 21º ou 28º dia que, na
evolução de uma doença, constituía o momento decisivo, para a cura
ou para a morte”118 e emprega-se hoje em todos os sectores da existência
humana para significar o “momento decisivo”, a “mudança súbita” entre
duas alternativas e a situação difícil, problemática, desgastante e angus-
tiante para as pessoas implicadas nessa transição.
Trata-se de um corte na realidade e do correspondente desajuste emo-
cional provocado nas pessoas.

114
De facto crise vem de uma dimensão da raiz *IE Ker-, Sker- que en-
volve a ideia geral de “cortar”119. Podemos portanto dizer, lançando mão
de lexemas derivados, que corresponde a corte, a espaço ou tempo curto
entre duas partes ou alternativas, que implica dificuldade em acertar sem
desacertar entre o certo e o incerto para chegar à certeza, em tudo concertar
para poder certificar, o que exige sempre, no que concerne ao cerne da
questão, o máximo discernimento, a capacidade discricionária para distin-
guir entre o discreto e o indiscreto, a disposição para guardar segredo sobre
o que é secreto e fazer passar tudo pelo crivo da razão para não cair no sin-
cretismo, enfim, não permanecer acrítico mas exercer a crítica e a diacrítica
em tudo o que é criticável, sempre à luz do respectivo critério, de modo a
quem estiver revestido de autoridade poder publicar o respectivo decreto,
sobretudo quando, em termos de endocrinologia social, houver lugar a
secreção ou excreção ou excremento com tendência para o ocultar por mera
hipocrisia ou se, no extremo limite, houver crime ou, pior ainda, uma
situação de criminalidade parcial ou generalizada.
Sintetizando, diríamos que toda a crise, porque sempre comporta in-
certeza e pode levar à hipocrisia ou degenerar em crime, exige discernimen-
to feito à base da crítica e à luz de um critério.
No caso pendente, importa reconhecer que a crise que se abateu sobre
a educação não é uma crise isolada de qualquer outra que afecte o ser
humano. É parte, porventura importante, da crise que na última metade
do século ou, falando com mais rigor, ao longo de toda a história da
Humanidade, afecta permanentemente o homem todo.
Nesta situação, compreende-se que analistas e historiadores como
F. Fukuyama (1992), Eric Hobsbaum (1994) e Samuel P. Huntington
(1996), perante a presente crise e a “revolução cultural” e os “conflitos de
gerações” e os “conflitos de civilizações” que ela comporta, confessem, de
um ou de outro modo, a sua dificuldade em compreender o presente e
prever o futuro120.
A provável razão de ser desta dificuldade reside no facto de a resolução
de uma crise histórica tão ampla e profunda exigir o recurso a um critério
com as mesmas dimensões. Que nunca poderá corresponder a critérios
de alcance parcial ou temporal correspondentes a ideologias ou doutri-

115
nas utilizadas por grupos económicos, classes sociais, Estados nacionais,
Blocos de Leste ou de Oeste que, durante grande parte do período de
tempo que analisamos, dominaram o palco do mundo e mobilizaram
milhões de seres humanos de um e outro lado do campo de batalha da
longa Guerra Fria, cuja inanidade é hoje bem patente e, a seguir, deram
lugar a uma pretensa liderança mundial e à guerra ainda mais feroz e des-
trutiva do terrorismo actual, cuja inanidade começa também a vir à tona
da consciência da humana.
O critério válido que anda esquecido e até por vezes desprezado como
utópico e ineficaz, só pode ser, importa reconhecê-lo uma vez mais,
aquele que desde 1948 foi acertado por consenso mundial como cor-
respondendo à “mais alta aspiração”, à “concepção comum” e ao “ideal
comum” de “todos os povos e todas as nações”: trabalhar pelo advento de
um mundo em que prevaleça o “reconhecimento da dignidade inerente a
todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalie-
náveis” como objectivo a atingir, e pelo “ensino e educação” como estratégia
para lá chegar.
E porque a educação “deve visar o pleno desenvolvimento da pessoa
humana” (Declaração Universal dos Direitos do Homem, Art. 26º, 2), o
que se impõe de imediato, como já descobrimos anteriormente, é utilizar
todos os meios (coisas) para criar as melhores condições para que todos
os seres humanos (pessoas) se desenvolvam até à sua plena realização nos
valores.
Na situação deste mundo em que a geração jovem procura ávidamen-
te crescer para ocupar o seu lugar dentro da Família Humana, importa
compreender até que ponto a geração adulta: a) entende ou não, real-
mente, que as coisas não passam de meios ao serviço de pessoas; b) cria ou
não as melhores condições para o desenvolvimento de todos os seres hu-
manos e, particularmente, dos jovens; c) ajuda ou não a que o desenvol-
vimento dos jovens vise a sua plena realização de acordo com a dignidade
da pessoa humana fulcro dos seus direitos e deveres.
Cada um destes pontos põe em causa, em cada um dos sectores ou
subsistemas fundamentais da vida do adulto, os valores que parecem pre-
valecer no mundo de hoje: no sub-sistema sócio-económico, o valor do ter,

116
no sub-sistema sócio-político, o valor do poder, no sub-sistema sócio-cul-
tural, o valor do conhecer e do agir.
Trata-se de saber se e até que ponto o mundo dos adultos conhece e
respeita a hierarquia vigente entre coisas, pessoas e valores.
E, na hipótese negativa, se encontra a possibilidade de reorientar a
educação no sentido de se empenhar “conscientemente em preparar os
homens para tipos de sociedades que ainda não existem”.

Economia: as coisas ao serviço das pessoas

Uma das coordenadas de reflexão sobre a crise do sistema educativo


insere-se no contexto da evolução da economia, desde as formas inci-
pientes das antigas civilizações, passando pelo florescimento da economia
política do séc. XVIII, até à complexidade da abordagem interdisciplinar
que chega a envolver a “teologia da libertação” nos dias de hoje.
Nela se move o pensamento de I. Illich que, ressalvando algum exage-
ro nalgumas aplicações concretas, constitui um estímulo à reflexão.
Numa linha de pensamento que vem do anarquismo e de Goodmann,
e está em ligação com Reimer e outros colaboradores do Centro
Intercultural de Documentação de Cuernavaca121, o Autor, depois de ter
apresentado a ideia de “desescolarização”, aborda a problemática da es-
cola pública, da sua obrigatoriedade e do seu funcionamento na evolu-
ção do actual contexto sócio-económico e cultural em que se encontra
inserida122.
A escola, sob a aparência de estar ao serviço dos jovens, controla-os
de facto a partir de mecanismos comandados por forças ocultas: “hidden
curriculum”, “hidden hand”,”hidden foundations”.
Em tudo isto, ela comporta-se exactamente como qualquer outro sec-
tor do sistema de produção e de consumo que caracteriza a sociedade em
que vivemos.
A razão de começar a análise pelo sistema educativo (I. Illich proce-
deu posteriormente à análise de outros sistemas), deve-se apenas ao facto
de lhe reconhecer toda a prioridade, devido a que o saber vem sendo
considerado como a mercadoria mais preciosa.

117
A origem do sistema de consumo encontra a sua razão de ser no facto de
o homem ser pobre de recursos e rico em necessidades. Estas necessidades
apelam para a procura da respectiva satisfação. O sistema de produção pro-
põe-se, através das instituições produtoras de bens e de serviços, proporcio-
nar os meios de satisfazer essa procura. Os produtos (objectos, ferramentas,
instrumentos, serviços, etc.) constituem portanto meios para os fins que os
homens, a título individual ou colectivo, se propõem atingir.
Pois bem, o Autor sente-se obrigado a reconhecer que “há característi-
cas técnicas nos meios de produção que inviabilizam o seu controlo num
processo político”, na medida em que verifica:

– a tendência dos meios para atingirem um grau de complexidade


que ultrapassa o limiar crítico da compreensão e do controlo
por parte do homem comum123;
– a tendência do sistema para produzir meios muito para além
das necessidades que o homem normal exige124;
– a tendência do sistema para, através desta “industrialização da
carência”, criar novas necessidades no consumidor125;
– a tendência do consumidor para aceitar estas novas necessida-
des, tornando-se portador de um novo tipo de pobreza que já
não é de miséria mas de abundância126;
– a tendência das instituições produtoras de bens para assumi-
rem o monopólio da produção e da assistência no respectivo
domínio, na medida em que só elas dispõem dos técnicos es-
pecializados que sabem fabricar, reparar e/ou implementar o
design dos produtos, podendo assim impor as suas condições ao
consumidor127;
– a tendência das instituições produtoras de serviços para, atra-
vés dos processos anteriores e da obrigatoriedade, imposta pelos
Estados aos cidadãos de adquirirem tais serviços (de saúde, edu-
cação, administração pública, segurança, defesa, etc.), instaura-
rem um monopolismo radical que favorece a exploração total dos
consumidores pelas castas privilegiadas dos técnicos produtores,
agrupados ou não em sindicatos, ordens, etc128;

118
– a tendência para fomentar a alienação dos consumidores através
da aceitação, por parte deles, do princípio de que quanto mais
se desenvolverem em quantidade os sistemas de produção (ex.:
produção de serviços de saúde, de educação, de transportes, de
segurança, de defesa, etc.), mais se atingirão os fins e valores
que eles, em princípio, prometem proporcionar (ex.: mais saú-
de, mais saber, mais velocidade, mais segurança, melhor defesa,
etc.), confundindo, lamentavelmente, processos e resultados129;
– finalmente, a tendência dos consumidores, que somos todos
nós, para aceitarmos, na prática e mesmo na teoria, a inversão
consumada dos fins e dos meios, na medida em que:
– os meios (produtos, ferramentas, instrumentos, equipamentos,
bens essenciais e supérfluos, serviços comuns e de luxo, dinhei-
ro, etc.), passam a ser aceites por nós como fins,
– de tal modo que em vez de utilizarmos os meios para viver me-
lhor, passamos a viver pior para os adquirirmos (desgaste físico,
psíquico e moral para pagar as prestações dos bens adquiridos,
ganhar dinheiro, acumular riquezas),
– até acabarmos por aceitar que estes pseudo-fins (o dinheiro, o
lucro, a carreira, a promoção social ou política) passem a justifi-
car todos os meios130.

Feito o diagnóstico, o Autor aponta os caminhos da cura sob o rótulo


geral de propostas para a convivialidade.
Tais propostas apontam para a necessidade de os homens tomarem
consciência da situação e substituírem as relações de competitividade,
promotoras do uso da força e da guerra em que acaba sempre por haver
vencedores e vencidos, por relações de solidariedade apoiada no direito e
na justiça, propiciadora do entendimento e da colaboração e que o Autor
resume nestes pontos:

– tomarmos decisões urgentes acerca do número de instrumentos


(não mais dos que são precisos) e sobretudo da sua qualidade
(não permitirmos que eles passem os limiares críticos de com-

119
plexificação que os tornem incontroláveis)131;
– adoptarmos a atitude de austeridade (palavra hoje vilipendiada
porquanto expulsa pelos empresários, degradada pelos políticos,
esquecida pelos meios de comunicação social) ou, por outras
palavras, assumirmos o espírito de pobreza (epimetaico e não
prometaico) no sentido de nos mantermos ao nível das necessi-
dades humanas sem pretendermos ultrapassá-las132;
– sobretudo não permitirmos, jamais, a subversão dos fins pelos
meios, porquanto ela nos conduz inexoravelmente à exploração
de uns pelos outros e à guerra generalizada entre todos133;
– participarmos na construção de um mundo diferente em que
nos sintamos, para além de profissionais em sã competitividade,
seres humanos conscientes e livres, ligados por estruturas de so-
lidariedade e cooperação134;
– propormos aos jovens a adopção de um projecto educativo de
“investigação radical” que atenda à sua formação não apenas como
profissionais, mas também e sobretudo como cidadãos da Polis
planetária e como pessoas membros da Família Humana135.

É claro que também estas propostas têm sido rotuladas de utópicas


ou de “votos piedosos”, tal é a convicção interior a que chegámos acerca
da irremeabilidade da situação. Por outro lado, o provérbio popular diz
que “a grandes males, grandes remédios”. É mais difícil prognosticar se
estes ainda chegarão a tempo, tendo em conta os “produtos” de armas de
destruição maciça incluindo as nucleares que, para a “defesa”, a “seguran-
ça” e a “paz” das populações, os sistemas de produção de nações grandes
e pequenas vêm produzindo e acumulando, e ainda o grau de poluição,
aquecimento e deterioração das condições de vida do planeta a que todo
este “maravilhoso progresso” nos vem conduzindo!

Sociedade: as condições para que as pessoas cresçam

Outra coordenada de reflexão sobre a crise que se abateu sobre o siste-


ma educativo pela progressiva tomada de consciência das disfunções que

120
afectam o mundo em que vivemos é de natureza social e tem a ver com
o “desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem” que “conduzi-
ram a actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade”
O texto extraído do Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, que recorda episódios traumáticos da II Guerra Mundial,
pode aplicar-se a todas as violências que envergonham a História da
Humanidade, desde a redução à escravatura de populações inteiras e da
transplantação forçada, por vezes entre continentes como a praticada
durante séculos pela actividade negreira entre a África e a América, às
guerras sangrentas de todos os tempos provocadas por cobiça, ânsia de
poder, ódio, vingança, e/ou fanatismo das populações e normalmente
conduzida pelos chefes, imperadores, reis, generais e “conquistadores”, a
provocar destruições e carnificinas e genocídios pelos quais quase nunca
foram julgados e muitas vezes foram glorificados e endeusados.
O maior contingente de vítimas dos conflitos e guerras foi sempre
constituído pelos jovens, tantas vezes recrutados à força, por vezes ainda
na idade de crianças como continua a acontecer nos dias de hoje em
conhecidas regiões do mundo, treinados brutalmente nos exércitos e, de-
pois, mortos ou ainda feridos, abandonados no campo de batalha.
Já desde os tempos medievais pensadores isolados lançavam a ideia de
“converter as espadas em arados”, Hugo Crócio afirmava que ”o inimigo
desarmado e vencido não deve ser maltratado, pois já não é um comba-
tente, mas um simples ser humano” (sec. XVII), Kant publicava o seu
“Projecto sobre a paz universal” (1785), etc. Mas só em meados do séc.
XIX, alastra a consciência desta desumanidade a partir de iniciativas pes-
soais como a de Florence Nightingale, a Lady with the lamp que de noite
com as suas companheiras procurava e assistia os feridos das batalhas na
guerra da Crimeia (1855) e Henri Dunant que, perante o espectáculo de
30.000 mortos e feridos, totalmente abandonados no campo da batalha
de Solferino (1859), em dias de muito calor e chuva, mobilizou e coorde-
nou os esforços dos camponeses para recolherem os feridos nos estábulos
das quintas circunjacentes136.
A intensa acção desenvolvida a partir de aqui por Henri Dunant vai
despertar “a consciência das nações” no que respeita a “melhorar a sorte

121
dos militares feridos dos exércitos em campanha” (Convenção de Genéve,
1864, em que são aprovados os estatutos da Cruz Vermelha Internacional),
a proclamar “que não são apenas os feridos que exigem o cuidado do ini-
migo mas também os cadáveres dos que tombaram” (Convenção de Genéve
rectificada, 1906), a insistir em que os barcos-hospitais, as enfermarias
nos barcos de guerra e os profissionais de saúde devem ser protegidos e
que “os prisioneiros de guerra […] devem ser tratados com humanidade”
(Convenção de Haia, 1907 e Convenção de Genéve, 1927) e que as nações
devem renunciar às armas químicas e biológicas, que ficam proibidos os
bombardeamentos de cidades indefesas, os maus tratos a idosos e crian-
ças, a ofensa à “honra das mulheres” (Protocolo Internacional, estabelecido
entre a maioria das nações europeias, 1925).
Estas várias medidas vão sendo reforçadas pela condenação liminar das
guerras (Bertha von Sutnner, Abaixo as armas, Áustria, 1889; J.S. Bloch,
A guerra futura, Rússia, 1888; intervenção de escritores como Lev Tolstoi,
Victor Hugo, Björnstjere, Ernest Renan, etc.), pela acção dos movimen-
tos pacifistas que se geram na transição entre o séc. XIX e XX, pelo peso
da Convenção sobre a Arbitragem (1899), pela intervenção da Fundação
Carnegie para a Paz Internacional cujo fundador afirmava “a guerra é a
mais infame mancha da nossa civilização” (1910) e a subsequente criação
do Tribunal Internacional da Haia, e ainda pela influência da Fundação
Nobel cujo fundador lembrava que “a guerra divide um país em vítimas e
assassinos” (1895). A partir do início do séc. XX, passam a ser atribuídos
os Prémios Nobel da Paz e, entre os primeiros, a Henri Dunant (1901) e
a Bertha Von Sutner (1905).
Entretanto, e apesar de tudo isso, o último século vai ficar conhe-
cido como o mais violento da história, com a I Guerra Mundial (das
trincheiras), a II Guerra Mundial (dos campos de extermínio e goulags,
dos bombardeamentos indiscriminados, de Hieroshima e Nagasaki), a
Guerra Fria como palco de fundo de todas as guerras da segunda metade
do século XX, a guerra global do terrorismo, já no século XXI.
Acresce que a Guerra não apenas se manteve mas ainda se ampliou
em todas as dimensões: deixou de utilizar apenas armas convencionais
para lançar mão de todo o tipo de armas, químicas, biológicas, nucleares;

122
deixou de ser apenas de natureza militar e passou também a ser de natu-
reza económica, política, social, científica, cultural, moral, religiosa.
A sociedade dos adultos de quem se esperava a criação das melhores
condições para que os jovens cresçam acaba por apenas gerar condições
para que se sacrifiquem e morram.
Nesta situação, tornam-se evidentes duas coisas: que o “mundo onde os
seres humanos tenham a liberdade de falar e de crer, libertos do terror e da
miséria” ainda não existe; que realmente a função da educação consiste em
“preparar os homens para tipos de sociedade que não existem ainda”.

Cultura: a realização das pessoas nos valores

Outra coordenada fundamental da reflexão dos adultos sobre a con-


testação dos jovens tem a ver com a cultura, no sentido antropológico
mais amplo, ou seja, entendida como conjunto de maneiras colectivas
de sentir, pensar e comportar-se nas dimensões física, intelectual, moral
e espiritual, envolvendo atitudes, crenças, hábitos, costumes, tradições,
princípios e valores de um determinado grupo humano.
Neste mundo tão vasto e multifacetado e no que se refere às diferen-
ças de latitude, altitude, tipos de espaço e de clima dos diversos nichos do
planeta, ele próprio submetido a permanente evolução, em que as popu-
lações se encontram alojadas, é óbvio que as culturas tenham de ser dife-
rentes, embora, em princípio, participem todas da mesma dignidade.
Já o mesmo não acontece com as ideologias que historicamente ger-
minaram no seio de algumas culturas, como “sistemas mais ou menos
coerentes de ideias, de opiniões ou de dogmas, que um grupo social ou
um partido apresenta como exigência da razão, mas cuja efectiva razão
de ser se encontra na necessidade de justificar actividades destinadas a
satisfazer as próprias aspirações e interesses e que funcionam sobretudo à
base da propaganda”137.
Nascidas não das condições da natureza mas da conjugação de inte-
resses sustentados por exercícios da razão, as ideologias não retratam os
sentimentos de todos os membros de uma comunidade, mas apenas in-
teresses de alguns, normalmente contra interesses de outros, nascem em

123
determinados períodos da história e, se chegam a dominar no período
seguinte, acabam frequentemente por perder a força e se dissolver.
As ideologias passam, enquanto as culturas permanecem.
Por isso, as gerações dos jovens contestatários da 2ª metade do séc.
XX não perdem tempo com as ideologias, mas pretendem enfrentar as
culturas, mencionadas como “sistemas” num expressivo texto da época:

“juventude decepcionada e irritada, que cada vez mais foge dos seus
padrões naturais, recusa sistemas que considera esclerosados, sejam
estes sistemas de ordem social ou capitalista, e que também não
acredita nas antigas fronteiras entre nações, descobrindo uma nova
solidariedade”138.

Por força do seu carácter ideológico (“social ou capitalista”), a com-


plexa e acidentada história dos dois sistemas aqui referidos revela dois
tipos de egoísmo: o pessoal do capitalismo, na medida em que foi sem-
pre mais ou menos expressamente afirmado, desde o mercantilismo e a
utopia do séc. XVI, Qnesnay e Adam Smith, Condillac e Benthan até
Ricardo e James Mill, e o grupal do socialismo, na medida em que acaba
também sempre por defender os interesses de um grupo contra o outro,
desde o comunismo naturalista e depois revolucionário na França do séc.
XVIII, passando pelos socialistas utópicos (Saint Simon, Charles Fourier,
Étienne Cabet, Robert Owen), até ao socialismo de Ferdinand de Lassalle
e ao comunismo de Marx-Engels.
Estes dois tipos de egoísmo, opostos e interdependentes que, para além
do egoísmo conservador paralelo, acabaram por encarnar durante o séc. XX,
nas suas formas extremas, as ideologias dos dois blocos políticos que se en-
frentaram durante a Guerra Fria, não conseguiram mobilizar a geração dos
jovens contestatários. Embora inserindo-se, por vezes, transitoriamente num
ou noutro, os jovens, levados pela própria propensão para o idealismo e pela
lenta mas progressiva assimilação que vão fazendo dos ideais difundidos e
propostos pelos documentos emanados dos organismos da Nações Unidas,
revelam um mal-estar que apela para um tipo de soluções muito para além
das propostas pelos blocos ideológicos e pelas respectivas propagandas.

124
Por outro lado, o desenvolvimento espectacular e acelerado dos novos
meios de comunicação social, da televisão à Internet e aos telemóveis,
vem hoje proporcionando aos jovens de todos os países, na proporção em
que gozam da democracia ou vão obtendo acesso a ela, a possibilidade
crescente de também se fazerem ouvir e de intervir activamente no curso
dos acontecimentos, como vai ficando claro em grandes transformações
do fim do século, desde a queda do muro de Berlim e da cortina de ferro
à intervenção em massa, cada vez maior, nos movimentos e decisões de
natureza sócio-política e ambiental.
Agarrando com ambas as mãos este progresso da técnica e tendo pre-
sente na memória a deplorável sorte de tantos dos seus companheiros que,
em tempos remotos ou recentes, nos seus próprios habitats ou noutros
para que tinham sido deportados (campos de concentração, Goulags, zo-
nas rurais de reeducação etc.), tiveram que ouvir e obedecer calados à voz
do “Fürer”, do “Duce”, do “Grande Líder” ou do “Grande Timoneiro”,
ou, no extremo oposto, continuam silenciados na situação de abandono
e esquecimento a que são votadas populações inteiras do terceiro mundo,
os jovens de hoje exigem, é certo que por vezes de forma desajeitada e
exagerada, que também os deixem falar de tudo aquilo em que crêem e
dizer da sua justiça.
E exigem mais. Exigem aos adultos que abram espaço para que acon-
teça aquilo que constitui “a mais alta aspiração do homem,” ou seja “o
advento de um mundo em que os seres humanos tenham a liberdade de
falar e de crer “ e para isso, que comecem por libertar o mundo da men-
tira, do “terror e da miséria”, e lhes criem condições para crescerem de
acordo com as exigências da dignidade humana pelo trabalho, a verdade,
a honestidade, a justiça, a tolerância, a compreensão e a solidariedade e,
para isso, utilizem sempre a linguagem do exemplo.
Esperam dos adultos, em última análise que lhes falem verdade sobre
se crêem ou não nestes valores.
Falar, através dos verbos latinos for, “falar”e fābŭlo, “conversar”, pro-
cede da raiz *IE Bha- que envolve as ideias de “luz” e de “falar” e da
qual deriva um grande numero de outros lexemas ligados, a esses dois
conceitos139.

125
Movendo-nos nesse campo lexemático, poderemos dizer que o que os
jovens pedem e esperam dos adultos é que em vez de se deixarem cair em
situações nefandas ou infamantes e difamantes, ou pactuarem com silêncios
afásicos ou infantis, próprios de infantes recolhidos em infantários ou de
infanções integrados em infantarias de exércitos que acabam por fazerem
e serem feitos vítimas de infanticídios culturais, ou de se entreterem com
fábulas ou feitos fabulosos ou outros géneros de confabulações próprias de
fantoches, ou de se limitarem a mencionar o que tem fama, é famoso ou me-
ramente famigerado, ou de recorrerem a fadas que apenas marcam fadários,
se afoitem a falar, de maneira afável e se possível inefável mas também, se
necessário, com facúndia e, não se limitando a simples prefácios, se tornem
capazes de confessar e professar, como verdadeiros profissionais, professores e
profetas, tudo o que diz respeito ao verdadeiro fado ou destino da Família
Humana ou, por outras palavras, sem se deixarem ficar nos meros fenóme-
nos e epifenómenos e, para além dos fantasmas e dos trabalhos de fantasia
e através das fases de fenótipos e fenotextos, darem ênfase ao que é enfático e
diáfano, para que apareça nas fotografias e floresça em epifanias a verdade
da realidade autêntica que é a dignidade de todos os membros da Família
Humana e o dever de todos a reconhecermos e respeitarmos.

Do subsistema escolar ao sistema educativo

Ensino e/ou educação?


O fracasso do movimento das reformas e a contestação e crise subse-
quentes tiveram o mérito de levar á detecção dos erros de que enfermava
a concepção tradicional da educação, designadamente no que diz respeito
a aceitar, como equivalentes, o subsistema escolar e o sistema educativo.
Ficaram à vista as limitações do subsistema escolar: não prepara suficiente-
mente para a vida mesmo no sentido profissional sem o apoio de reformas no
sistema económico; nem sequer anda suficientemente ligado à vida na me-
dida em que falha na consideração do conjunto das necessidades e aspirações
da comunidade humana que é chamada a servir; não esgota o domínio da
educação, mas apenas constitui, na melhor das hipóteses, um sector dentro
dele quando contribui para “o pleno desenvolvimento da pessoa humana”.

126
Afinal do que estamos a precisar e com a máxima urgência, não é das re-
formas do ensino que se vêm processando, ao longo das últimas décadas, no
espaço reduzido do subsistema escolar, com as insuficiências que acabámos
descrever, mas de uma revolução da educação que alastre a todos os sectores
e escalões do processo educativo “e vise o pleno desenvolvimento da pessoa
humana”, não, portanto, apenas na dimensão cognitiva que deverá manter-
se, aprofundar-se e integrar-se no processo global, mas também nas dimen-
sões física, afectiva, artística, ética e, sobretudo, nesta última.
O processo educativo não é apenas, nem sobretudo de natureza gnose-
ológica para formar expertos, peritos, técnicos, eruditos, especialistas, ou
mesmo sábios, mas é de carácter ético destinado a proporcionar condições
para o pleno desenvolvimento de seres humanos, como pessoas conscien-
tes, livres e responsáveis140.
Mas para isso, não teremos de ir mais longe (observar a evolução da
vida toda), mais ao concreto (identificar as fases dessa evolução) e mais
fundo (descobrir os valores que presidem a cada uma dessas fases)?
Para além de todos os pormenores abordados ao longo deste capítulo,
importa sublinhar que o problema fundamental da educação escolar se
mantém e só irá ser cabalmente esclarecido ao longo dos capítulos se-
guintes, ao discutir e pôr uma causa o vocabulário e o tipo de armadura
conceptual adoptados pela tradição escolar.
Os seres humanos beneficiários da reforma escolar, autores das contes-
tações e desencadeadores da crise de educação foram os jovens.
Para além da sua ligação ao étimo *IE Dei-, “brilhar”, acima referen-
ciado, o termo jovem, num sentido amplo, “diz-se do animal ou vegetal
que ainda não alcançou o seu pleno desenvolvimento ou, no caso exclu-
sivo do vegetal, um desenvolvimento que permita a sua exploração” e, no
sentido humano, designa “aquele que se encontra na juventude, no perío-
do de vida compreendido entre a infância e a idade adulta; adolescente”.
Nesta situação e em ordem a progredirmos na clarificação deste voca-
bulário herdado do passado, torna-se necessário ir muito além do subsis-
tema escolar e repensar todo o sistema educativo, a começar pela análise do
funcionamento dos subsistemas de educação de infância e de educação de
adultos. É o que nos propomos fazer nas páginas que seguem.

127

Capítulo IV

Educação da infância ou da adolescência? Uma revolução em


marcha

Trata-se de uma revolução tão longa como o tempo da história da


humanidade e tão lenta como o ritmo dos processos que a caracterizam.
Por outro lado, é no âmbito do processo histórico da educação de
infância e das relações que nele se estabelecem entre as gerações mais
antigas e mais novas, que foi emergindo o vocabulário essencial que hoje
utilizamos na área da educação:

– da raiz *Europ. Kre-, que envolve a ideia geral de “crescer, de-


senvolver-se, abrir caminho…”, pelo lat. creo, as, avi, creatum,
creare, “criar, tirar do nada, gerar, fazer crescer e crescer”, vem
criança, boa ou má criação, bem criado, malcriado, criatura, re-
creio, etc. e pelo lat. cresco, is, crevi, cretum, ĕre, “crescer”, vem
crescer, crescimento, crescente, crescido e ainda outros lexemas
como Ceres (deusa do crescimento) cereal, concreto, recruta, etc.;
– da raiz *Europ. Al-, variante Ol-, que envolve o sentido geral
de “alimentar”, através do verbo lat. alo, is, alĭtum ou altum,
ĕre, vem alimentar, aluno, alto, altar, etc. e do lat. adolesco, is,
ēvi, ultum, ĕre, ”crescer”, vem adolescente, “aquele que cresce” e
adulto, “o crescido”;
– do étimo mais próximo que é o lat. edŭco, as, avi, atum are,
“nutrir, alimentar, criar” e do étimo mais longínquo *IE Deuk-,

129
Duk-, que envolve a ideia de “conduzir, guiar, liderar, andar à
frente de”, vem educar e educação;
– finalmente, da ligação próxima entre os lexemas gregos pais,
dos, “criança” e agein, “impelir”, e da ligação longínqua entre
*IE Pu-, “pequeno rebento de planta” ou “pequena cria de ani-
mal” e *IE Ag- “empurrar, fazer andar à sua frente”, vem a pala-
vra Pedagogia141.

Esta actividade de “educação de infância”, exercida entre criadores e


crianças ou entre adultos e adolescentes, obviamente nasce da iniciativa e
exerce-se sob a responsabilidade dos primeiros.
E se temos definido educação como processo de pôr as coisas ao ser-
viço das pessoas para que elas cresçam, no sentido de se realizarem nos
valores, importa indagar, neste caso concreto e relativamente a cada uma
dessas dimensões:

– se ao longo da história, as crianças vêm sendo tratadas como


pessoas ou como “coisas”;
– através de que processos e a que ritmo as crianças foram passan-
do a ser reconhecidas como portadoras da dignidade de pessoa
humana e como sujeitos de direitos;
– que metamorfoses, ao longo destas etapas, foi sofrendo o con-
ceito de educação?

E porque as três questões são extremamente complexas e atravessam os


séculos, considero preferível proceder à sua abordagem na dimensão lon-
gitudinal através do tempo, deixando ao leitor o trabalho de estabelecer as
aproximações entre elas, em cortes transversais de cada período histórico.

1. As crianças tratadas como “coisas”

A par do natural sentimento de ternura perante a cria humana, apa-


receu também, desde sempre, nos pais, a tendência para deixar-se arras-
tar por comportamentos que a consideravam “objecto” ou “coisa” da sua

130
propriedade, para usar, abusar, vender, abandonar, matar.
Não obstante excepções honrosas como as mencionadas pelo histo-
riador latino Tácito ao elogiar as tribos germânicas que não praticavam
o infanticídio, “lá os bons costumes são mais fortes do que as boas leis
noutros lugares”142, o que faz lembrar os sentimentos de espanto mani-
festados, em tempos recentes, por chefes de reservas de índios perante a
violência das sociedades modernas, parece ser verdade que “quanto mais
se retrocede na história mais numerosas são as manifestações de impulsos
filicidas por parte dos pais” e que “o infanticídio de filhos legítimos e
ilegítimos praticava-se normalmente na Antiguidade, que o dos filhos le-
gítimos apenas diminuiu ligeiramente na Idade Média, e que se continua
a matar os ilegítimos até bem dentro do séc. XIX”143.
As formas de infanticídio “eram diversas: asfixia (no leito dos pais, por
exemplo), estrangulamento, afogamento (atirando as crianças aos rios),
encerramento em recipientes, enterramento (os árabes pré-islâmicos
enterravam vivas, por vezes, as filhas recém nascidas), sacrifícios rituais
(Bruto sacrificou os seus filhos à salvação da República Romana nascen-
te), etc.”144. Segundo DeMause, “emparedar a criança em muros ou en-
terrá-la nas argamassas de edifícios ou pontes, para reforçar a estrutura,
era também frequente desde que se construiu as muralhas de Jericó até ao
ano 1843 na Alemanha”145.
O mesmo DeMause regista que “até ao século IV, na Grécia ou
em Roma, nem a lei nem a opinião pública viam nada de mal no
infanticídio”146.
Referindo-se à Grécia, Marrou fala de “uma civilização que ignora de-
liberadamente a criança”147. Em Esparta, “só são conservadas as crianças
bem constituídas”148; em Atenas, Platão escreve que, na cidade ideal, há
médicos e juízes “para cuidar dos cidadãos bem constituídos de corpo e
alma, e quanto aos outros, deixa-se morrer os que têm um corpo enfermiço
e matam-se os que têm a alma perversa por natureza e incorrigível”149; na
Política, Aristóteles recorda que “é necessário pôr um limite numérico à
procriação e, se há casos que concebem ultrapassando esse limite, é preciso
praticar o aborto”150; no teatro, Eurípedes evoca o menino abandonado nos
caminhos, “presa para as aves, alimento para os animais selvagens”151.

131
Em Roma, uma lei atribuída a Rómulo, o Fundador, que de criança
também tinha sido abandonado, determinava que os “recém-nascidos
disformes ou monstruosos […] deviam ser mortos depois de terem sido
examinados por cinco vizinhos”152. “A Lei das XII Tábuas (450 a. C.),
fonte do Direito Romano, reconhecia ao pai (pater famílias) o direito
de decidir da vida ou morte dos filhos recém-nascidos. Podia também
dá-los, vendê-los, flagelá-los, prendê-los153. Por isso, perante o pai todo-
poderoso, os filhos ou proles eram também designados nepotes, ou seja,
privados de poder.

“Também o abuso, a exploração, a repressão e a mutilação sexuais das crian-


ças são um outro negro capítulo da história da infância. Na Roma antiga, por
exemplo, anéis de metal nos lábios menores da vagina das escravas visavam im-
pedir a procriação. Era frequente a castração dos meninos, por esmagamento ou
amputação dos testículos, para utilização em bordéis designadamente (a cópula
com castrados era particularmente excitante), ou para servir, mais tarde, como
guardas de haréns”154.

Outro tipo de mutilações sexuais tem a ver com “práticas pré-cristãs e


pré-islâmicas que persistem em várias regiões do mundo, designadamen-
te em cerca de 30 países africanos” e nalgumas regiões e comunidades
de imigrantes de outros continentes, como a circuncisão, a introcisão,
a clitoridectomia, a infibulação ou “circuncisão faraónica”, tantas vezes
feitas sem qualquer cuidado de higiene, a provocar as mais graves lesões e
traumas para toda a vida155.

“A forma de abandono mais extrema e mais antiga é a venda directa das


crianças”, por dívidas, como escravos ou como reféns. “A venda de crianças era
legal na época babilónica e, possivelmente, foi normal em muitas nações da
Antiguidade. Se bem que Sólon, em Atenas, tenha procurado limitar o direito
dos pais de vender os filhos, não se sabe até que ponto se cumpria a lei”156. “No
século XII, um Arcebispo de Cantuária (Teodoro) decretou que um filho só
podia ser vendido como escravo a partir dos sete anos. Na Rússia, esta prática só
foi proibida no século XIX”157.

132
Outra forma de abandono, na aparência menos dura mas não menos
trágica, consistia na entrega das crianças a amas. Trata-se de “uma figura
antiga de que falam a Bíblia, o Código de Hamurabi, papiros egípcios e a
literatura grega e romana. Em Roma, as amas estavam organizadas e ven-
diam os seus serviços na Coluna Lactária”158. As condições deficientes e as
consequências físicas, sociais e morais da “aleitação mercenária” foram, já
no mundo antigo, objecto de acirradas polémicas.
Mas o fenómeno reapareceu nas famílias aristocráticas da Europa en-
tre os séc. XIII e XVI, chegando a generalizar-se nas famílias burguesas
dos séculos XVII e XVIII, porque as mães não queriam ser “vacas lei-
teiras”, “era chique ter uma ama em casa e não era chique ‘parecer amar
demasiado os filhos’ ”159.
As amas que moravam longe e recebiam as crianças, frequentemente
acabadas de nascer, e “sobretudo quando tinham demasiadas crianças a
seu cargo”, recorriam ao processo de enfaixamento que consistia em “en-
rolar a criança numa espécie de longa ligadura dos pés até ao pescoço”
e “este estado de imobilização durava de três a seis meses”. Esta prática
durou, no centro da Europa, até fins do séc. XIX160. Pior sorte tinham
muitas destas crianças ao serem transportadas para casa das amas: per-
diam-se de 5 a 15%, ao caírem dos cestos e serem mortas por animais,
pelo que entregar as crianças a tais amas era “objectivamente um infanti-
cídio disfarçado”161.
As práticas de discriminação dos filhos, como a preferência pelos pri-
mogénitos, constituídos únicos herdeiros do património familiar, têm
permanecido ao longo da história. Mas as mais graves são as que de-
correm de velhos preconceitos culturais que ainda perduram em muitas
regiões do globo, tais como a discriminação negativa das crianças do sexo
feminino: indesejadas, abortadas, diminuídas (Mohamed Ali, ex-cam-
peão mundial de pugilismo, respondia a quem lhe perguntava quantos
filhos tinha: “um rapaz e sete enganos”), são engordadas e embelezadas
em função do maior dote que poderá render o seu matrimónio, ou tão
rebaixadas que, “em certas regiões do sul da Ásia […] são os pais da me-
nina que têm de pagar um dote ao marido. Caso extremo, sob todos os
pontos de vista, aconteceu em 10 de Julho de 2000, no Leste da Índia,

133
quando um sacerdote hindu ‘casou’ uma menina de quatro anos com um
cão cujo dono pagou um dote ao pai da ‘noiva’ ”162.

“Outras violências vitimaram e continuam a vitimar as crianças, ao


longo da história: administração de álcool para as calar ou fortalecer;
venda como escravos ou dádiva por dívidas ou como reféns políticos;
recolha de crianças abandonadas, para venda no mercado de escravos
ou de monstros (como os hermafroditas ou os anões, sendo estes, por
vezes, fabricados, encerrando crianças em caixas para interromper o seu
crescimento); estropiamento deliberado, para exploração na mendici-
dade (como ainda acontecia na França do século XVII, por exemplo);
o trabalho infantil e outras violências sobre as crianças são a negra ma-
téria-prima dos romances de Charles Dickens, cuja obra é um fresco
impressionante da situação da infância na Inglaterra do século XIX”,

através de títulos como Oliver Twist (1838), Nicholas Nickleby (1839),


David Copperfield (1850), Tempos Difíceis (1854), e, sobretudo, Grandes
Esperanças (1861),

“o romance onde Dickens vai mais fundo, talvez, na sua reflexão sobre
a infância. Nele se lê: geradas em grandes quantidades apenas para a
sua própria destruição […] crianças solenemente julgadas na barra do
tribunal […], habitualmente metidas nas prisões, chicoteadas, aban-
donadas, banidas, deportadas, preparadas de todas as maneiras para o
carrasco e só crescendo para serem enforcadas”163.

A “utilidade” dos seres humanos mais novos para as grandes tarefas da


sociedade foi sempre muito apreciada: desde a República Romana, os filhos
ou proles dos trabalhadores eram considerados um património precioso de
recursos para fazer a guerra; o grande número de filhos dos agricultores da
Idade Média constituía a maior riqueza do regime feudal; o crescimento
demográfico era estimulado em Estados modernos para assegurar o povo-
amento da metrópole e das colónias e, mais tarde, com o advento da era
industrial, para alimentar o funcionamento das fábricas e das minas.

134
Os Relatórios periódicos da UNICEF e da OIT revelam que muitos
destes males continuam a verificar-se nas actuais sociedades avançadas da
idade dos serviços:

– o egoísmo e o hedonismo dos adultos que, pelo uso e abuso


dos meios proporcionados pelos avanços científicos e tecnoló-
gicos, levam directamente à redução da natalidade e ao défice
demográfico;
– o abandono dos filhos, em casa, ao espectáculo permanente da
T V e aos jogos da Internet ou, na rua, a uma pseudo-existência
sujeita à miséria, ignorância e terror que conduzem, por um
lado à criação dos “gangs de jovens” e, por outro, à emergência
dos “esquadrões da morte”;
– a exploração da sua capacidade de trabalho na competitividade
das empresas e dos preços do comércio à escala mundial;
– a manutenção das guerras recorrendo, por vezes, ao recruta-
mento forçado de crianças-soldados e/ou à profissionalização de
alunos nas escolas de terrorismo;
– os sub-mundos dos tráficos da droga e da subsequente ruína
das famílias, dos tráficos do sexo e das consequências da degra-
dação humana e da destruição pela SIDA;
– os horrores da pedofilia, por vezes registados em filmes mos-
trando cenas de violação com a música de fundo do choro e
gritos das crianças até à sua morte física;
– os raptos para alimentação dos bancos de órgãos humanos;
– a dimensão “global” que as redes responsáveis pelos raptos e
abusos vêm assumindo a partir das facilidades proporcionadas
pela Internet.

O horror de ver crianças tratadas como coisas, ao serviço de “pessoas”,


como meios utilizados para alcançar outros fins que não elas próprias,
continua assim a desfilar, hoje, perante os nossos olhos!

135
2. O reconhecimento da dignidade e dos direitos da criança

Trata-se de um longo e difícil caminho de amadurecimento cultural das


comunidades humanas que ainda hoje precisa de continuar a ser trilhado.

Da criança “objecto” à criança “sujeito” de direitos

O enquadramento que, na antiguidade ocidental, melhor representa a


situação da criança-objecto, encontra-se no Direito Romano, com a sum-
ma divisio que estabelece entre escravos e homens livres e, dentro destes,
entre cidadãos sui iuris (autónomos) e alieni iuris (dependentes).
Neste contexto e dentro da família romana, no sentido doméstico
ligado à casa (domus) já acima referido, só o pater familias era sui iuris
e detentor de poder absoluto sobre tudo o mais (alieni iuris). Tal poder
obtinha designações próprias em cada caso: manus sobre a mulher, patria
potestas sobre os filhos, dominica potestas sobre os escravos e dominium
sobre todos os bens móveis e imóveis. A patria potestas sobre os filhos,
também denominados nepotes (destituídos de poder), era absoluta, in-
cluindo o ius vitœ necisque (direito de vida e de morte).
A instituição familiar assim constituída, sob o poder soberano do pa-
ter famílias como uma espécie de monarquia absoluta (“a família é um
conjunto de pessoas sujeitas ao poder de um só”, dizia Ulpiano, no séc.
III), apesar da progressiva moderação introduzida pelo cristianismo (que,
aliás, a inseriu mais tarde, no seu Direito Canónico) e pelo poder político
que a ele acabara de se ligar (o imperador Constantino, no séc. IV, equi-
parou o ius vitœ necisque ao crime de parricídio), atravessa praticamente
incólume, mais na Europa do Sul do que na Europa do Norte, toda a
Idade Média.
Tem-se feito notar que a família antiga “não tinha função afectiva”
porque, nesses tempos difíceis, o “sentimento entre os esposos e entre pais
e filhos não era necessário à existência nem ao equilíbrio da família”, uma
vez que tudo se encontrava mais orientado para a pura sobrevivência. O
que não significa ausência de amor entre marido e mulher ou entre pais
e filhos, mas simplesmente e no que a estes últimos diz respeito, que “a

136
consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem, essa consciência não
existia”. E é essa inconsciência que se encontra na base de acontecimen-
tos históricos hoje tão incompreensíveis como a organização, pelo Papa
Inocêncio III, da Cruzada com um exército de 20.000 crianças para con-
quistar Jerusalém (séc. XIII) e da persistência desta “mentalidade muito
antiga que ainda prevalece no teatro de Molière (séc. XVII)”.
Já no Renascimento, se por um lado a autoridade absoluta do pater fa-
mílias é aproveitada como justificação para implantar a monarquia abso-
luta (“o que vale para a família, célula da sociedade, vale para a sociedade
inteira”), por outro lado melhora sensivelmente o clima cultural favorável
à formação do “sentido de infância”, pela adopção de vestuário próprio
da infância e pela atribuição que lhe é feita de um lugar destacado na
produção artística, desde colocar as crianças no centro dos retratos de
família (Rubens e Van Dyck) ou separadamente (em Velazquez os filhos
da nobreza, em Murillo os filhos do povo) até, recuperando de algum
modo uma velha tradição da arte nas cenas dos sarcófagos romanos dos
séculos III e IV, ao uso e abuso, em pintura e escultura, da apresentação
da criança nua (putto) e ainda à propagação, em todas as modalidades da
arte religiosa cristã, do culto do Menino Jesus164.
Não se trata ainda do reconhecimento dos direitos da criança mas da
melhoria do clima social que irá permitir a sua emergência.
Entretanto e só na transição para a Idade Moderna, a autoridade abso-
luta do pater famílias começa a ser posta em causa, de algum modo, pela
“lógica política do contrato” de Rousseau (“o poder paternal era apenas
em função da debilidade da criança”) e, em geral, pela Enciclopédia no
séc. XVIII (não só o pai mas também a mãe têm os mesmos “direitos de
superioridade e de correcção sobre os filhos” e “tais direitos são limitados
pelas necessidades da criança”)165.
Estas últimas ideias vão abrir um caminho conturbado através da
Revolução Francesa (“convinha, depois da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, fazer a declaração dos direitos dos esposos, dos
pais e dos filhos, etc.”)166, da República (que procede à abolição da patria
potestas, em 1792) e do Império (o Código Penal de 1810 considera que

137
a família é “ uma pequena pátria e o governo político de um país uma
réplica ampliada do “governo da família”)167. O pater famílias dá lugar ao
“bom pai de família” e a potestas passa a ser contrabalançada pela pietas.
A partir da interiorização da ideia de que a criança carenciada é vítima
da família e do Estado, na segunda metade do séc. XIX desenvolve-se o
conhecimento da criança, a medicina infantil (Pediatria, 1872), apare-
cem, curiosa e significativamente depois das Sociedades Protectoras dos
Animais, as Sociedades Protectoras da Infância (1895) e desenvolve-se o
movimento da Educação Nova e respectiva pedagogia.
Já no séc. XX, designado no título do livro de Ellen Key, “O século da
criança” (1900), a Sociedade das Nações, deixando para trás o monopólio
antigo das famílias e o mais recente dos Estados sobre as crianças, cria
um Comité de Protecção da Infância (1919), acompanha a constituição
da Associação Internacional para a Protecção da Infância (Bruxelas, 1921)
e adopta a Declaração de Genebra (1924) que abre o caminho à primeira
definição da atenção especial e da prioridade a atribuir às crianças: “1.
A criança deve ser posta em condições de se desenvolver de um modo
normal, materialmente e espiritualmente [...]. 3. A criança deve ser a pri-
meira a ser socorrida em momentos de perigo”.
Um pormenor inesperado porquanto negativo e hoje, para nós, mes-
mo chocante, consiste no facto histórico de a Declaração Universal dos
Direitos do Homem não incluir referência às crianças, mas apenas ter em
conta os adultos: na abolição das diferenças discriminatórias dos cidadãos
“tanto de raça como de cor, de sexo, de língua”, etc., não se menciona
a de “idade” (Art.º 2º); na afirmação inicial de que “todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. São dotados de razão e
consciência...” (Art.º 1º), percebe-se que se fala de adultos mas não de
crianças; e quando menciona “crianças” (Art.º 25º, 2) e “filhos” (Art.º
26º, 3) é apenas no sentido da referência, respectivamente, à “protecção
social” que recebem e ao direito dos pais escolherem para eles o “género
de educação”. Nada há portanto, que tenha a ver com a sua própria per-
sonalidade, com os seus próprios direitos ou com o sentido da revolução
que já anteriormente se vinha verificando na educação de infância.
No entanto a ONU, que já em 1946 tinha criado o International

138
Children’s Emergency Found (ICEF) e mais tarde (1956) o perfilha (United
Nations + ICEF = UNICEF), prepara, a partir de 1951, e aprova por una-
nimidade a Declaração sobre os Direitos da Criança (1959) em que, pela
primeira vez, a criança aparece já não apenas como objecto mas como
sujeito do Direito Internacional.
Finalmente, a partir do ano 1979, proclamado Ano Internacional da
Criança para celebrar o 20º aniversário daquela Declaração, o Secretariado
Geral promove os trabalhos de preparação da Convenção sobre os Direitos
da Criança que decorre, através de um processo estimulante de parti-
cipação activa da generalidade das delegações nacionais, instituições es-
pecializadas e ONGs do mundo inteiro, durante dez anos, e vem a ser
adoptada, por consenso, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em
1989, ano do 30º Aniversário da Declaração sobre os Direitos da Criança e
Bicentenário da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989)

A Convenção, que até à passagem do milénio se tornou fonte de ins-


piração para outros documentos de carácter regional (África em 1990,
Estados Árabes em 1990, América em 1990 e 1994, Europa em 1995 e
1998), foi saudada com entusiasmo como consagração “do avanço dos
direitos do Homem que marcará as próximas décadas”168, como “um pro-
gresso de civilização” e como sinal da adopção de uma nova ética capaz de
reconhecer “que é pelo modo como a sociedade protege e cuida das suas
crianças que se pode avaliar o seu grau de civilização e de humanidade.
Porque é delas que depende o seu futuro”169.
A Convenção, consta do Preâmbulo e do articulado dividido em
três partes: sequência prescritiva (Art.ºs 1-41), medidas adoptadas para
o seu funcionamento (Artºs 42-45), disposições finais (Art.ºs 46-54).
Atendemos aqui apenas ao Preâmbulo e à sequência prescritiva.
Depois de invocar no Preâmbulo, como é corrente, os princípios fun-
damentais de documentos anteriores (Carta das Nações Unidas, 1945,
Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948 e os dois Pactos com-
plementares, 1966, Declaração de Genebra, 1924 e Declaração sobre os

139
Direitos da Criança, 1959), a Convenção assenta em três princípios básicos
que se referem à situação da criança, à função da família e à responsabilida-
de do Estado, ou seja (sublinhados nossos):
a) que “a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e inte-
lectual, tem necessidade de uma protecção e cuidados especiais, nome-
adamente de protecção jurídica adequada, tanto antes como depois do
nascimento” e que “em todos os países do mundo há crianças que vivem
em condições particularmente difíceis e que importa assegurar uma aten-
ção especial a essas crianças” (Preâmbulo);
b) que “a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua perso-
nalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade,
amor e compreensão” e, portanto, a “família, elemento natural e fun-
damental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem estar
de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a
protecção e assistência necessárias para desempenhar plenamente o seu
papel na comunidade” (Preâmbulo);
c) que “os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir os
direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças” (Art.º 2º, 1),
a tomar “todas as medidas adequadas” (Art.º 2º, 2), “a garantir à criança a
protecção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os
direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a
tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medi-
das legislativas e administrativas adequadas” (Art.º 3º, 2 e Art.º 5º), “no
limite máximo dos seus recursos disponíveis e, se necessário, no quadro
da cooperação internacional (Art.º 4º)
Sobre estes três princípios, os cinco primeiros artigos estabelecem o
enquadramento geral do documento para a compreensão dos restantes e
fazem emergir cinco tópicos essenciais que dizem respeito a: definição de
criança, reconhecimento da criança como sujeito de direitos, direito da
criança à educação, tipo de pedagogia a adoptar pelos pais, princípio nor-
mativo do interesse superior da criança (sublinhados nossos).

Definição de criança
“Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser humano

140
menor de 18 anos de idade, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável,
atingir a maioridade mais cedo” (Art.º 1º).

A criança como sujeito dos direitos


Todas as crianças gozarão destes direitos “sem discriminação alguma, in-
dependentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua, re-
ligião, opinião política ou outra da criança, de seus pais ou representantes
legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social, fortuna, incapacidade,
nascimento ou qualquer outra situação” (Art.º 2º, 1).

O direito à educação
“Os Estados Partes respeitam as responsabilidades, direitos e deveres
dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada ou da co-
munidade nos termos dos costumes locais, dos representantes legais ou
de outras pessoas que tenham a criança legalmente a seu cargo, de asse-
gurar à criança […] a orientação e os conselhos adequados ao exercício dos
direitos que lhe são reconhecidos pela presente Convenção”(Art.º 5º).

A pedagogia a adoptar
O acompanhamento e orientação das crianças, em todas as dimensões
da existência, pelos pais ou seus substitutos, deverão ser sempre exercidos
“de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades” (Art.º 5º).

O “interesse superior da criança”


“Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições pú-
blicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades admi-
nistrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o inte-
resse superior da criança” Art.º 3º, 1).

Neste contexto e a seguir, mencionam-se os direitos concretos da


criança:

Direito à vida, sobrevivência e desenvolvimento (6), a um nome e a


uma nacionalidade (7), à sua identidade (8), à sua relação com os pais

141
(9-11), a exprimir livremente a sua opinião em todos os assuntos que
lhe digam respeito (12), “à liberdade de expressão” (13), ”de pensa-
mento, de consciência e de religião” (14), “à liberdade de associação e
à liberdade de reunião pacífica” (15), a não ser “sujeita a intromissões
arbitrárias ou ilegais na sua vida privada”(16), a ter acesso à informação
(17), ao “reconhecimento do princípio segundo o qual ambos os pais
têm uma responsabilidade comum na educação e desenvolvimento
da criança” (18), à protecção “contra todas as formas de violência físi-
ca ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente,
maus tratos ou exploração” (19), quando “temporária ou definitiva-
mente privada do seu ambiente familiar [...], à protecção e assistência
especiais do Estado” (20), à adopção quando o sistema exista (21), ao
estatuto de refugiado (22), quando mental ou fisicamente afectada,
a uma vida plena, decente e digna (23), à saúde e serviços de saúde
(24), a exames periódicos em caso de internamento (25), à seguran-
ça social (26), a “um nível de vida suficiente, de forma a permitir o
seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social” (27),
à educação em todos os escalões do subsistema escolar (28), a que
a educação seja incrementada para “promover o desenvolvimento da
personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas,
na medida das suas potencialidades” (29), à vida cultural, religião e
idioma próprio da minoria a que eventualmente pertença (30), ao
descanso, lazer, jogo e vida cultural e artística (31), a “estar protegida
contra a exploração económica”, ou trabalho perigoso que dificulte a
sua educação, ou nocivo para a sua saúde ou desenvolvimento (32),
a estar defendida contra o uso ilícito de estupefacientes e substâncias
psicotrópicas (33), contra todas as formas de exploração e abusos se-
xuais (34), contra o sequestro, venda ou tráfico de crianças (35) ou
qualquer outra forma de exploração (36), direito a não ser ”submetida
à tortura ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradan-
tes”, à pena de morte ou prisão perpétua (37), a não ser recrutada e
a não ser obrigada a participar “directamente nas hostilidades” com
menos de 15 anos (38), à “recuperação física e psicológica e à reinser-
ção social da criança vítima” dos abusos mencionados anteriormente

142
(39), direito da “criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter
infringido a lei penal” a ser tratada de modo conducente a fomentar
o sentido da sua própria dignidade e do respeito devido aos outros e à
sociedade (40), a que nenhuma destas disposições seja utilizada contra
a própria criança (41).

Ficam assim estabelecidos os direitos da criança e estes direitos vão pas-


sar a ter peso nas linhas de força da revolução da educação de infância que
já se encontrava em marcha.

3. A longa revolução da educação de infância

Desde sempre se reconheceu que o ser humano, por força da nature-


za, faz parte de um todo, o grupo ou comunidade em que decorre a sua
existência.
Em igual medida, sempre existiu a educação, no sentido de os adultos
(crescidos) ajudarem os adolescentes (que estão a crescer) a integrar-se na
vida do grupo: a família progressivamente ampliada, a tribo, a cidade, a
nação, a região cultural, a comunidade humana. Tendo no entanto em
conta o drama em que se processaram desde sempre as relações entre
adultos e crianças, compreendemos hoje que a educação das crianças,
no sentido aberto pela Convenção sobre os Direitos da Criança e porque
vai comportar “profundas mudanças na ética dominante, não será nem
rápida nem fácil”170. Como aliás nunca o foi em época alguma.
É o que vamos procurar compreender, recordando as tragédias do passa-
do para medirmos as situações do presente e discernirmos as vias do futuro.

A educação antiga pela violência

Nas sociedades tribais, enraizadas no passado, em que é mais vivo o


sentimento das origens, mais envolvente a sombra dos antepassados e as
tarefas diárias são mais simples e homogéneas, o processo educativo passa
pelos vectores essenciais das festas de iniciação: a memória das gestas e
gestos dos antepassados – mitos – e o apelo à sua imitação – ritos.

143
Na medida em que o nomadismo foi dando lugar à sedentarização e
à emergência de sociedades cada vez mais estratificadas e portadoras de
civilizações complexas, fulcradas em cidades, reinos e impérios, também
a formação humana se foi modificando e especializando em função das
tarefas exigidas pela nova estrutura social.
Os modelos de educação tornam-se subsidiários dos modelos políti-
cos, sofrem a pressão das exigências de classe e acabam por se transformar
em “modelos impostos” pelos pais aos filhos e ainda, tendo em conta
a sua natureza irrequieta, incoerente e indisciplinada, com o recurso à
força, à violência e ao castigo. Um texto sumério-babilónico, relata que
o aprendiz de escriba era castigado várias vezes por dia171. Outro texto
egípcio recorda que ”as orelhas do adolescente chegam até às costelas” de
tanto serem puxadas172.
Na própria Grécia em que o pensamento educativo, no período antigo
se pautava pelo ideal da Kalokagatia (“do belo e do bom”), no período clás-
sico constituía o húmus em que se desenvolveu a filosofia e no período hele-
nista alimentava a paideia, acontece que, no tempo de Platão e Aristóteles,
a educação permanecia refém do pensamento político e, ao nível das esco-
las comuns, imperava simplesmente uma “pedagogia sumária e brutal”173.
Também em Roma, se na classe cultivada e ao cabo de grandes resis-
tências, a paideia grega se tinha metamorfoseado na humanitas, ao nível
da educação corrente dominava o mos maiorum (costume dos antepassa-
dos), imposto pelo todo poderoso pater famílias, através do exercício da
memória e da imitação, como Néraudau faz notar a respeito da família
do próprio Imperador Augusto174, e nas escolas comuns, o verbo “estu-
dar” andava associado ao manum ferulœ subducěre (estender a mão à pal-
matória)175 ou a sofrer os açoites nos glúteos desnudados, como mostra
um fresco da cidade de Pompeia. O castigo na educação foi mesmo erigi-
do em doutrina pelo orbilianismo, rótulo derivado de Orbilius Pupillus,
professor que segundo o testemunho de discípulos (entre eles o do poeta
Horácio que lhe atribuiu o cognome de “Orbílio o Espancador”), usava a
palmatória, a vara e o chicote e, no tratado que escreveu, com o título O
Bode espiatório, chega a relatar que, por vezes, ele próprio sofria as conse-
quências, pois também recebia o troco de alguns alunos176.

144
A “educação cristã”, designação introduzida por S. Clemente de Roma
(fins do séc. I) e utilizada por S. Clemente de Alexandria (séc. II), con-
segue suavizar mas não extirpar e, com o rodar dos séculos, até exacerbar
esta linha de conduta, tendo em conta a herança deixada pelos tradutores
alexandrinos da Bíblia, ao traduzirem o termo hebraico müsar, que signi-
ficava “educação e castigo”, por paideia, e ainda a importância crescente
atribuída, sobretudo desde a crise do maniqueísmo, ao problema do bem
e do mal e ao pecado original em que, segundo a tradição que já vinha do
judaísmo (David, Salmo 51, 7), a criança é concebida.
Ficou célebre e a pesar no decurso da história o testemunho de Santo
Agostinho, quer sobre o sentimento pessoal acerca dessa tradição (“na
culpa nasci e em pecado me concebeu a minha mãe”), quer sobre o sofri-
mento de quando

“a criança pequena que eu era pedia-Vos, Senhor, com um fervor que


não era pequeno para não ser batida na escola […] as pessoas grandes,
até os meus pais, que me queriam livre de todo o mal, riam-se das
pancadas que eu recebia, o meu grande e terrível tormento de então”
177
,

quer ainda através da interrogação que deixa a pairar numa obra do


fim da vida:

“quem, pois, não recuaria de horror e não escolheria a morte, se lhe


fosse dado escolher, entre morrer e voltar a ser criança?” 178.

O recurso ao castigo corporal mantém-se com agravantes nos séculos


seguintes, como quando era costume “sair com os alunos da escola para
levá-los a presenciar execuções e os pais costumavam acompanhá-los a
tais espectáculos, açoitando-os depois, ao regressar a casa, para que recor-
dassem o que tinham visto”179.
A partir do Renascimento, as opiniões sobre os castigos físicos divi-
diam-se entre aqueles que se lhes opunham, como Guarino de Verona
e, sobretudo, Montaigne, aqueles que aceitavam que fossem usados

145
com moderação e aqueles que os defendiam, entre os quais se mencio-
na Savonarola, Lutero e Robert Estienne que, “no seu Thesaurus Linguæ
Latinæ definia a criança como um ser em que é preciso bater… Nos colé-
gios de Jesuítas, havia um ‘Padre castigador’”180.
A dimensão quer do enraizamento da mentalidade quer da extensão
da prática, no período anterior ao séc.XVIII, revela-se no facto de o mes-
mo processo ser aplicado em todas as camadas sociais, desde os súbditos
até aos próprios reis. Jean Héroard, médico (1601-1628) do futuro rei de
França, Luís XIII, no seu Diário, publicado em 1668, conta que o pai do
futuro rei “tinha junto de si, à mesa, um látego, e já aos 17 meses o delfim
sabia que não devia chorar quando o ameaçava com o látego. Aos 25
meses, começaram a açoitá-lo sistematicamente, muitas vezes despindo-o
[...]. No dia da sua coroação, com 8 anos, foi açoitado”.

“Século após século, as crianças batidas cresciam e batiam, por sua


vez, nos seus filhos. O protesto público era raro. Mesmo humanistas
e professores que tinham fama de ser muito bondosos como Petrarca,
Ascham, Coménio e Pestalozzi, aprovavam o castigo corporal das
crianças”181.

E numa referência que abarca também os dois séculos seguintes, um


membro da Comissão Europeia dos Direitos do Homem afirma:

“Até ao início do séc. XX, a coerção pela punição ou a ameaça de pu-


nição era geralmente considerada como indispensável para obter, ao
mesmo tempo, a disciplina escolar e os progressos no estudo”182.

Já no séc. XX, tendo encontrado nas raízes desta crueldade genera-


lizada e atávica “declarações” do interesse e do amor dos pais para com
os filhos – “para que não venhas a passar o que eu passei”, “para poderes
chegar mais longe do que eu cheguei”, “filho, podes não acreditar, mas
olha que me doeu mais a mim do que a ti”, “olha, um dia compreende-
rás, faço isto por amor” − alguns psicanalistas vêm pondo em relevo as
consequências deste comportamento dos pais sobre o futuro dos filhos.

146
Um caso concreto: a partir do livro de Katharina Rutschky, Schvarze
Paedagogik (Pedagogia negra, 1977), a psicanalista Alice Miller, escreveu
o seu livro Am anfang war erziehung (No princípio era a educação, na
tradução francesa, C’est pour ton bien, É por teu bem) no sentido de se
esclarecer a si própria sobre se “a convicção – adquirida na minha prática
psicanalítica – da origem reaccional (e não inata) do carácter destruidor
do homem, poderia ser confirmada pelo caso de Adolfo Hitler”, chegou
a conclusões tais como “entre os grandes personagens do Terceiro Reich,
não encontrei um único que não tenha sofrido uma educação dura e se-
vera”, o que “pode ajudar-nos a compreender o fenómeno do holocausto”
e que “aqueles que sofreram um assassínio psíquico perpetuam o mesmo
assassínio [...], todo o carrasco, foi vítima um dia”183.
Neste sentido, alguns “anti-psiquiatras” tinham chegado a conclusões
semelhantes apresentadas em fórmulas paradoxais: “educar uma criança
é, praticamente, destruir uma pessoa”184, “destruímo-nos a nós próprios
[...] através de uma violência disfarçada de amor”185.

A Revolução da “Escola Nova” e o” Século da Criança”

Por outro lado e também desde sempre, aparecem testemunhos de


muitos educadores que se levantam contra esse estado de coisas e afirmam
a existência do sentimento de amor paternal: na Grécia desde Eurípedes
(“ricos e pobres, todos amam os seus filhos”), a “Platão, (“o homem livre
não deve aprender nada como escravo”) e a Plutarco (“os castigos cor-
porais são indignos de seres livres”); em Roma, desde Juvenal (“máxima
debetur puero reverentia”) a Plínio o Jovem (“usa a tua autoridade paternal
sem esquecer que és homem e pai de um homem”) e a Ulpiano (“o poder
paternal deve consistir em ternura e não em crueldade excessiva”).
Já em tempos mais recentes, a reacção contra a violência na educação
intensifica-se a partir da intervenção de homens tais como, no século
XVI, Erasmo, Vives, Rabelais e sobretudo Montaigne que aconselhava
agir “com uma severa doçura, não como se faz nos colégios”, no séc.
XVII Coménio e no século XVIII Rousseau que reagia contra “essa edu-
cação bárbara que sacrifica o presente a um futuro incerto”, e aconselha-

147
va, no Emílio: “ama a infância, favorece os seus jogos, os seus prazeres, o
seu amável instinto”186.
É nesta linha que se desenvolve desde a segunda metade do séc. XIX,
como passo decisivo da revolução da educação, a chamada “Escola Nova”,
em que o centro da relação pedagógica começa a deslocar-se, do professor
e do programa escolar como saber global definido pelas exigências sociais,
para o aluno enquanto suporte de uma personalidade, estrutura, interes-
ses, motivações e ritmos de maturação próprios.
Extraordinariamente complexa, a Escola Nova: aparece na linha das
ideias de Rousseau (a criança não é miniatura mas germe de homem, não
é má mas naturalmente boa a exigir apenas um meio adequado para se
desenvolver), de L. Tolstoi (liberdade e experiência), de Ellen Key (“que
as crianças vivam à sua maneira”), de L. Gurlit (respeito pela personali-
dade da criança); beneficia das investigações da medicina (as anomalias
dos deficientes psíquicos devem-se a perturbações do ritmo de desenvol-
vimento - Itard, Segun, Janet, Adler, etc.); cresce com as descobertas da
psicologia do desenvolvimento (ao contrário do que se pensava, em todas
as fases do processo biopsíquico da criança, as estruturas são diferentes
das do adulto e o funcionamento é igual, sempre à base do interesse -
Binet, Claparède, Wallon, Piaget).
As experiências da Escola Nova nascem um pouco por toda a parte:
A. Manjón (Espanha, 1888), C. Reddie (New School, Inglaterra, 1889),
Lietz (Alemanha, 1889), Kerschenteiner (Alemanha, 1896), Dewey
(Chicago, 1896), Demolins (França, 1899), Montessori (Roma, 1907),
Faria de Vasconcelos (Bruxelas, 1908).
As práticas são (re)pensadas pelos grandes teóricos da escola nova: J.
Dewey (a escola e a sociedade), G. Kerschenteiner (a escola e o trabalho),
E. Claparède (escola activa e educação funcional), A. Ferrière (educa-
ção individualizada, história da “Escola Nova” e sua coordenação através
do Bureau Internacional des Écoles Nouvelles, 1898, mais tarde da Liga
Internacional da Educação Nova e da revista Pour l’ere nouvelle, correspon-
dente a The New Era, de Ensor, 1921).
A simbiose de todas estas novas experiências, teorias e movimentos,
marcam a evolução da Escola Nova em três parâmetros essenciais:

148
– do magistrocentrismo ao puerocentrismo: a criança é uma pes-
soa, digna de atenção e de respeito, fim e centro da escola
(Montessori), dotada de um ritmo próprio de evolução, sobre-
tudo no caso dos deficientes psíquicos (individualização da edu-
cação: sistemas Mannheim e Oakland, Trinidad e Dalton Plan,
Sistemas Winnetka), exigindo processos de inserção social (tra-
balhos de grupo: Sistemas de Gari e Detroit, Jena Plan, Método
Cousinet, Técnicas de Freinet);
– do ensino à aprendizagem e espírito inventivo: mais que ensi-
nar, o educador deverá criar o ambiente propício para o emergir
da auto-actividade e auto-educação (Montessori), privilegiar a
globalização e o realismo (“Pour la vie par la vie”: Demolins,
Decroly, Método de Projectos), a espontaneidade, a originali-
dade, a criatividade;
– do dever ao interesse: a pedagogia pessimista do puro dever (ex-
pressão familiar “fazer os deveres”), do esforço vazio, anómalo
e amoral, cede o lugar à pedagogia optimista dos centros de
interesse (Decroly, etc.), activa e funcional, que leva o aluno a
crescer livremente e a procurar realizar-se em plenitude.

A Escola Nova, de início altamente controversa, acaba por se impor nas


grandes reformas escolares da Rússia (1918), Alemanha (1919), Itália (1923),
Espanha (1931), Bélgica (1936), França (1937), difunde-se pelo Mundo in-
teiro e evolui através de múltiplas associações, federações e movimentos
de pedagogia maternal, activa e cooperativa (na linha, respectivamente, de
Montessori, Decroly e Freinet), pedagogia terapêutica e psicanalítica (de
M. Klein e M. Mannoni até A. Freud, A. S. Neill e H. Marcuse), ensino
programado (de Search a Skinner), dinâmica de grupos (desde K. Lewin) e
team teaching, pedagogia da não-directividade (Rogers, etc.) e, mais tarde,
pedagogia institucional nas suas diversas manifestações.
O movimento da Escola Nova conduz também a exageros (Escolas
de Hamburgo, certas linhas de não-directividade, etc.)187, depois vem a
ser “confiscado”, nas décadas 20 e 30, pelos regimes políticos autoritários
e por eles abusado na constituição de “mocidades” “juventudes” e “milí-

149
cias”, de carácter político-militar188.
Mais recentemente, o desenvolvimento da tradição de remitologiza-
ção do mundo e da vida, na linha do “Círculo de Eranos”, Ascona-Suiça
(de C.G Iung e M. Eliade a G. Durand) e, ao jeito de clonagem do
Novo Espírito Científico de Bachelard, do Novo Espírito Pedagógico (da
Bildung alemã a Georges Jean e Bruno Duborgel) vem fornecendo am-
plo espaço de reflexão a uma Filosofia do Imaginário Educacional189.
Entretanto, a partir do meio do século XX, por força das profundas
transformações que o caracterizam, na economia, na sociedade, na ci-
ência e na tecnologia e, mais directamente, das reformas, contestações
e crises que afectaram o subsistema escolar, a Escola Nova vai sofrer um
abalo sísmico cujo epicentro já não se encontra na relação educador-edu-
cando dentro da escola, mas na relação entre a própria escola e o mundo
que a rodeia.

A Nova Revolução da Educação e o “Século do Adolescente”

A progressiva consciencialização dos graves problemas que afectam a


Educação de Infância, acaba por desencadear o processo de elaboração
e aprovação da Convenção sobre os Direitos da Criança e, na sequência
das ideias recolhidas dos documentos mencionados no seu Preâmbulo e
transformadas em princípios orientadores nos seus primeiro cinco artigos,
a que já acima fizemos referência, vai corporizar-se nos artigos que refe-
rem os direitos concretos da criança à educação (sublinhados nossos):

– o Art.º 27º menciona que “os Estados Partes, reconhecem à


criança o direito a um nível de vida suficiente, de forma a per-
mitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral,
social” e assumem a sua responsabilidade de tomarem “as medi-
das adequadas para ajudar os pais ou outras pessoas que tenham
a criança a seu cargo a realizar este direito”;
– o Artº 28, menciona as medidas a tomar no sentido de asse-
gurar “o direito da criança à educação e tendo nomeadamente
em vista assegurar progressivamente o exercício desse direito na

150
base de igualdade de oportunidades” e “ de forma compatível
com a dignidade humana”, ao longo de todo o tradicional per-
curso escolar;
– o Artº 29º apresenta o elenco das finalidades gerais do pro-
cesso: “promover o desenvolvimento da personalidade da criança,
dos seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas
potencialidades”, “inculcar na criança o respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais”, o respeito pelos
pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores
nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civili-
zações diferentes da sua”, “assumir as responsabilidades da vida
numa sociedade livre” e o respeito “pelo meio ambiente”.

Ora é na conjugação destes três artigos, com os cinco primeiros e os


considerandos do Preâmbulo e na continuidade dos princípios que já, de
algum modo, vinham sendo proclamados pelos grandes educadores do
passado e progressivamente assumidos pelos educadores do “Século da
Criança” na linha da “Escola Nova”, que emergem e se definem as linhas
de força desta nova revolução e que se referem ao conceito, lugar, tempo,
metodologia e critério último da educação de infância.

Conceito. Constitui certamente grande surpresa para todos nós,


membros da Comunidade Mundial, o novo conceito de criança que a
Convenção proclama no início do seu articulado:

“Art.º 1º. Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser hu-
mano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicá-
vel, atingir a maioridade mais cedo”.

Mas constitui certamente surpresa ainda maior o facto de esta defini-


ção exprimir o resultado de um consenso verdadeiramente mundial:

– “durante a primeira metade dos anos 80, apenas delegações de


cerca de trinta países” participaram na sua preparação com as

151
dificuldades inerentes às contingências da guerra fria;
– o número foi aumentando e o trabalho foi sendo reforçado com
a participação de um grupo de ONGs liderado pela UNICEF,
até à adopção do documento, por consenso, na Assembleia Geral
das Nações Unidas, em 20 de Novembro de 1989;
– na Cimeira Mundial para as Crianças, reunida na sede da
ONU, Nova York, em 29-30 de Setembro de 1990, conside-
rada “a maior reunião de dirigentes da história até então”, os
dois documentos dela emanados, Declaração Mundial a favor
da sobrevivência, da protecção e do desenvolvimento da criança e
o Plano de Acção para a sua aplicação nos anos 90, foram apro-
vados por unanimidade e “posteriormente subscritos por 181
Estados, 155 dos quais puseram em prática programas nacionais
de acção”190.

O consenso praticamente universal entre países de tantas e tão varia-


das culturas, reveste-se de extraordinária importância histórica, na medi-
da em que constitui demonstração incontestável de que a reflexão exer-
cida pelos Estados Partes sobre a crise mundial da educação escolar, ao
longo das décadas 70-80, atingiu um claro resultado e que este resultado
passa a marcar decisivamente o futuro da educação e da pedagogia:

– estabelece a fronteira entre os seres humanos de maior e de me-


nor idade, fazendo-a coincidir com a fronteira que a Psicologia
do Desenvolvimento, com todas as suas oscilações e dúvidas, vi-
nha estabelecendo entre os seres humanos que se encontram na
fase de criação (crianças) ou de crescimento (adolescentes) e os
que se encontram na fase de “criados” ou “crescidos” (adultos);
– define claramente, deste modo, o conceito de criança e o conceito
de adulto;
– coloca-se em condições de poder clarificar o tipo de educação e
de pedagogia correspondente a cada um deles.

Lugar. Os Estados Partes reconhecem: que a família é o “elemento

152
fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem estar
de todos os seus membros e em particular das crianças”; que “a criança,
para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer
num ambiente familiar, em clima de felicidade amor e compreensão”
(Preâmbulo); que

“cabe primacialmente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu


cargo a responsabilidade de assegurar […] as condições de vida neces-
sárias ao desenvolvimento da criança” (Art.º 27, 2);

que “respeitam as responsabilidades, direitos e deveres dos pais” (Art.


º 5º) nesta matéria e ”tomam as medidas adequadas para ajudar os pais
e outras pessoas que tenham a criança a seu cargo, a realizar este direito”
(art.º 27º, 3).
Ao reconhecerem tudo isto, os Estados Partes proclamam, sem sub-
terfúgios, que o lugar central da educação de infância é a família e não a
escola, à qual apenas se referem como espaço complementar destinado à
aquisição de determinados conhecimentos, atitudes e competências (Art.
º 28º).
Rompe-se assim com o pensamento corrente que, esquecendo a famí-
lia, continua a tudo esperar da escola, apesar dos resultados de abandono
e/ou de contestação escolar que analisámos acima.
O lugar da educação de infância não é a escola que chega depois e
muitas vezes já tarde, mas a família que já lá estava anteriormente e por
isso chega sempre a tempo, que está lá desde o início e por isso lá deve
continuar durante todo o período em que a criança se encontra em fase
de desenvolvimento.

Tempo. Ao afirmarem, no Art. 1º, que “criança é todo o ser humano


menor de 18 anos de idade”, e que a criança, “por motivo da sua falta
de maturidade física e intelectual, tem necessidade de uma protecção e
cuidados especiais” e ainda que “em todos os países do mundo há crian-
ças que vivem em condições particularmente difíceis e importa assegurar
uma atenção especial a essas crianças” (Preâmbulo), por continuarem a

153
ser frequentemente vítimas de crimes de abandono e incúria quando não
de terrível abuso, violência e crueldade até por parte dos próprios pais
e tutores, os Estados Partes rompem com o conceito de “educação de
infância” no sentido tradicional reduzido ao período etário dos 3 aos 6
anos, ou alargado ao período de 0 a 6 anos, e proclamam que

O tempo de educação de infância tem a mesma duração do tempo da criança,


ou seja, de 0 a 18 anos.

Quer isto dizer, em primeiro lugar, que o subsistema escolar, até ao


fim do nível secundário, não é um subsistema de “ensino” mas de educa-
ção e que os seus níveis ou fases não podem continuar a ser rotulados de
“ensino básico” e “ensino secundário”, mas sim de educação básica e de
educação secundária.
E quer dizer mais: que sendo todo este período ou fase (de 0 a 18
anos) educação de infância, quer a antiga subfase de educação de infância
quer as novas subfases de educação básica e de educação secundária são
todas subfases de educação de infância que podem receber as designações
de inicial (de 0 a 6 anos), básica (de 7 a 15 anos) e secundária (de 16 a 18
anos) ou outras, correspondentes aos diversos grupos de idade, de acordo
com as etapas de desenvolvimento que venham a ser reconhecidas.

Metodologia. Ao acrescentarem que “as responsabilidades, direitos e


deveres dos pais” ou de outros responsáveis, incluindo os professores,
consistem em

“assegurar à criança de forma compatível com o desenvolvimento das


suas capacidades, a orientação e os conselhos adequados ao exercício dos
direitos que lhe são reconhecidos” (Art.º 5º),

a Convenção toca no cerne da educação de infância e apela para a


necessidade de adoptar a metodologia ou pedagogia correspondente, que
já não poderá continuar a manter-se como simples processo de ensino-
-aprendizagem, no sentido de pura transmissão-assimilação de conheci-

154
mentos, mas deverá integrar-se no processo de educação que o engloba e
consiste em criar e estimular condições para que a criança se desenvolva e
cresça, não apenas na dimensão cognitiva mas em todas as suas dimensões.
Mais, esta “pedagogia da educação de infância”, exige ter em conta as
duas dimensões essenciais de modulação ou monitorização mencionadas
no articulado.
A primeira diz que os pais e todos os educadores associados devem
dosear sempre a sua intervenção “de forma compatível com o desenvolvi-
mento” das capacidades da criança. Trata-se de compreender que a in-
tervenção dos adultos, pais e professores, apenas se justifica em função
do nível de carência de cada fase de desenvolvimento da criança e que,
nesse sentido, ela é chamada a diminuir na exacta medida em que se vai
tornando supérflua ou desnecessária. O que importa é que, ao longo do
processo, a criança cresça e a acção do adulto diminua.
Mas quer dizer também, por outro lado, que a acção dos pais e de to-
dos os educadores complementares não pode limitar-se a proporcionar os
meios e criar as condições, deixando as crianças crescerem ao acaso, mas
deve assumir também a difícil e, por vezes, dura tarefa de impartir-lhes a
“orientação e os conselhos adequados”. Esta afirmação peremptória leva-nos
necessariamente a pôr em causa, discutir e aprofundar todas as teorias
da “não-directividade” e, sobretudo, a reprovar enérgicamente as práticas
de abdicação e demissão, por parte dos pais e de outros educadores, das
exigentes responsabilidades de orientação e acompanhamento que lhes
incumbem.

Critério supremo. Nesta situação, torna-se evidente que “todas as deci-


sões” que lhe digam respeito deverão

“ter primacialmente em conta o interesse superior da criança” (Art.º,


3º, 1),

ou seja, o direito a que lhe sejam proporcionadas todas as condições,


para crescer como ser humano, enquanto portadora da mesma dignidade
e dos mesmos direitos de qualquer outro ser humano, e ainda dos direitos

155
especiais a que se torna credora “por motivo da sua falta de maturidade
física e intelectual” (Preâmbulo), e mais especiais ainda no caso de crian-
ças que vivam “em condições particularmente difíceis” (Preâmbulo) para
abrirem o seu próprio caminho e irem ocupando o espaço do futuro que
lhes é devido.
Mas, porque estas condições indispensáveis não podem reduzir-se
apenas às de natureza física e material ou de estimulação intelectual e
cultural, mas também às de orientação moral e ética, o “interesse superior
da criança” é o de crescer, não apenas nalgumas das suas dimensões, com
o risco de se transformar num monstro, mas em todas, de modo a atingir
a sua realização plena, global e harmónica.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, situa-se assim na
perfeita continuidade da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
de 1948, e abre um horizonte novo à consciência humana que, apesar
das tomadas de posição consequentes e concordantes de documentos
posteriores, nas várias regiões do mundo, nós ainda não assimilámos
suficientemente.
Nestas condições, a Convenção representa não apenas uma reforma,
mas uma nova revolução. Não se fica na mudança da forma ou da aparência
exterior, mas vai direita ao fundo do problema e actua no seu interior. Não
visa acrescentar apenas qualquer coisa, em quantidade, para dar mais do
mesmo, mas pretende melhorar a qualidade e acrescenta algo de novo.
Revolução, do *IE-, Wel-, Welw-, que exprime a ideia geral de “rolar,
rodar”, através do lat. revolutio, ōnis, “acto de revolver”, envolve o sentido
de grande transformação, mudança radical, portadora, portanto, de no-
vidade. A novidade, neste caso, corresponde à exigência de que os adultos
passemos a compreender definitivamente:

– que a dignidade (dom recebido) e os direitos das crias humanas


comportam um tempo de progressiva tomada de consciência e
de assimilação, por parte delas mesmas, do próprio processo de
“criação” ou crescimento;
– que este processo de “criação” ou “crescimento” acontece ao
longo da primeira fase da vida, com duração normal até aos 18

156
anos, e que, de acordo com os estudos mais recentes, revela ten-
dência para ser diferida e não reduzida;
– que o processo tem lugar na família, através da vivência rela-
cional entre os pais ou os seus substitutos e os filhos, ou seja,
entre os naturais educadores e os naturais educandos e só depois,
complementar e subsidiariamente, na escola, entre os educado-
res-professores e os alunos;
– que o êxito do processo depende da maneira sábia ou inepta
como todos estes educadores obtêm o difícil equilíbrio entre,
por um lado, subordinar toda a sua intervenção aos graus e ma-
tizes de cada uma das etapas do “desenvolvimento das capa-
cidades” da criança e, por outro lado, manter sempre firme e
incansavelmente a própria capacidade de dar “a orientação e os
conselhos adequados”;
– que, nestas condições, a acção dos pais e de todos os outros
educadores complementares é de natureza funcional, justifica-
da, em cada fase do desenvolvimento, na exacta proporção da sua
necessidade e, por isso mesmo, progressivamente dispensável e
chamada a diminuir e a desaparecer, na mesma medida em que
a autonomia da criança vai crescendo, até atingir o nível de
pessoa adulta (crescida );
– que, em consequência, importa sempre tudo discernir à luz do
critério primordial do interesse superior da criança, porquanto,
neste universo em que nós todos verdadeiramente nem somos,
nem estamos, mas apenas passamos ou, dito de outra maneira,
estamos a passar, é ela que, vinda do passado, vai ocupando o
presente e constitui a garantia do futuro.
Quer então dizer que esta revolução da educação de infância assim
entendida, não atinge propriamente as crianças mas atinge-nos a nós os
adultos, na maneira de pensarmos e de falarmos acerca delas, com reper-
cussões na linguagem corrente, nos manuais escolares, nas publicações de
cultura geral ou de especialização científica das áreas da educação e da
pedagogia.
Ao dizermos e pensarmos, nos termos do Art.º 1º da Convenção, que

157
“criança é todo o ser humano menor de 18 anos”, já não estamos a referir-nos
apenas aos educandos dos jardins de infância mas também aos educandos
de todas as escolas de educação básica e de educação secundária, já não
estamos a empregar o “conceito” de criança para designar apenas os seres
humanos que se encontram na fase de “infância”, ou seja, os infantes (que
ainda não falam), mas sim para designar todos os seres humanos que se
encontram em processo de “criação” (crianças) ou em processo de “cres-
cimento” (adolescentes).
O que nos leva a remontar uma vez mais aos respectivos étimos para os
comparar: do *IE Bha-, que envolve a ideia geral de “falar”, vem infância e
infante (que não fala”); do *Europ. Kre-, que envolve a ideia geral de “cres-
cer” (desenvolver-se, abrir caminho), vem criação e criança (que “cresce”);
do Europ. Al-, variante Ol- que envolve a ideia geral de “alimentar” e, por
arrastamento, a ideia de “crescer”, através do latim adolescere, “crescer”, vem
adolescência e adolescente (que ”cresce”) e também adulto (“crescido”).
Nesta situação, para, em coerência com a definição de “criança” como
ser humano de 0 a 18 anos, constante do Art.º 1º da Convenção, pensar-
mos e falarmos com clareza e com rigor, impõe-se passarmos a dizer já
não “educação da infância ou dos infantes”, “educação da criação ou das
crianças” mas simplesmente, educação da adolescência ou dos adolescentes.
E, na medida em que, a seguir, vamos deparar com a educação de
adultos, deverá ser considerado não apenas preferível mas rigorosamente
obrigatório, passarmos a adoptar a designação educação de adolescentes.
E, na continuidade e em paralelo com a atribuição ao século XX do
título de Século da Criança, poderemos atribuir ao século XXI o título de
Século do Adolescente.

De facto, a definição “criança é todo o ser humano menor de 18 anos”,


constante do Art.º 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança, documen-
to aprovado por consenso na Assembleia Geral das Nações Unidas (1989),
confirmada por unanimidade na Cimeira Mundial para as Crianças atra-
vés dos seus dois documentos complementares (1990) subscritos por 181
Estados, não deixa margem para qualquer outra designação que não seja
Educação da adolescência, Educação dos adolescentes.

158
Educação da adolescência! Educação dos adolescentes! É toda para os
adolescentes! Mas depende toda dos adultos! E, em primeiro lugar, dos
pais e/ou dos seus substitutos e colaboradores!
Nesta situação, será possível assegurar a educação das crianças ou, no
vocabulário emergente, a educação dos adolescentes, sem antes acautelar a
educação dos adultos? Ou, pelo contrário e como já se vem repetindo ao
longo da história, desde Quintiliano e Juvenal em Roma, “a educação das
crianças [dos adolescentes] passa pela reeducação dos adultos”191? Vamos
procurar a resposta no capítulo seguinte.

159

Capítulo V

Educação de Adultos. A “revolução pedagógica”

Importa esclarecer, desde o início, um ponto essencial.


Se utilizarmos a linguagem que a tradição nos legou e que reduzia a
educação a um processo formal, tendencialmente de natureza escolar, em
que os adultos ensinam e as crianças aprendem, diremos que enquanto
o subsistema da educação escolar se encontra enraizado desde há sécu-
los e o subsistema da educação de infância obtém o reconhecimento na
primeira metade do século XX, o subsistema de educação de adultos só
a meados do mesmo século começa a emergir como a outra parte do sis-
tema educativo.
Mas se tivermos em conta o conceito de educação como hoje o enten-
demos, a designar o processo de todos os seres humanos criarmos uns aos
outros as melhores condições para que todos nos desenvolvamos em to-
das as dimensões, de maneira global e harmónica, até à plena realização,
teremos de admitir que a educação de adultos sempre existiu e se revelou
em todas as coordenadas da experiência da vida, mãe de toda a aprendi-
zagem e de toda a criatividade, e ao longo de toda a história:

– na maneira como estabelecemos o contacto com a natureza e


reagimos perante a riqueza das suas manifestações, a variedade
dos climas, a grandiosidade das paisagens, a beleza dos matizes,
o terror que nos inspiram os cataclismos naturais;
– no aproveitamento económico dos recursos, desde a exploração

161
agro-pastoril e o ordenamento do território à criatividade hu-
mana nas linhas do comércio e da indústria, dos mercados, das
feiras, das exposições internacionais;
– na gestão social e liderança política das comunidades, que im-
plicou desde sempre tarefas de segurança, defesa e iniciativa
militar, de criação de instituições em todos os sectores da vida
civil que estão na base do desenvolvimento das aldeias primiti-
vas e das grandes cidades, capitais de reinos e de impérios, desde
Babilónia e Atenas, e Alexandria e Roma, à cidade capital de
Chi Huang Ti que incluía a área de muitos quilómetros quadra-
dos do celebrado túmulo do Imperador construtor da primeira
versão da Grande Muralha, e desde Teotihuacan dos Astecas no
México e Manchu Picchu dos Incas no Peru às metrópoles mo-
dernas e megalópoles do presente;
– na procura do conhecimento e das suas aplicações, no âmbi-
to das especulações filosóficas, das descobertas científicas e dos
avanços tecnológicos desde as “invenções” do fogo, da roda e da
escrita, às galáxias Gutenberg, McLhuan e Gates;
– na cultura e na arte, em todas as suas manifestações, desde os
ritos de iniciação e das festas sazonais das sementeiras e colheitas
nas tribos primitivas e das celebrações de vitórias e conquistas
nas velhas civilizações, aos festivais que, por acção do espírito
grego da Kalokagatia, se desenvolveram no âmbito da “ginástica”
(os jogos pan-helénicos em Olímpia), no âmbito da “música”
(os concursos de teatro em Atenas) e, mais tarde, se estenderam
ao império helenístico na fórmula da Paideia e ao mundo ro-
mano na síntese da Humanitas, e encontram eco nas maravilhas
da arquitectura, escultura, pintura, literatura e música de todos
os espaços e de todos os tempos, e hoje se perpetuam na alma
dos museus, fechados ou ao ar livre, e nos modernos festivais do
desporto, do cinema, da música e de todas as artes;
– nas tradições do culto dos gestos dos deuses e das gestas dos he-
rois, dos mitos e ritos que narram e repetem os passos dos ante-
passados, dos mistérios que envolvem as religiões e se exprimem

162
nos festivais de arquitectura, estatuária, pintura e vitral que em-
belezam os grandes monumentos do património comum, desde
as pirâmides, mastabas e hipogeus do Egipto, ao templo hindu
de Bhubaneswar na Índia, aos templos budistas de Borobudur
na Ilha de Java, de Angkor Vat no Cambodja e de Sukhotai
na Tailândia, às grandes mesquitas que resplandecem no mun-
do muçulmano e às basílicas e catedrais bizantinas, românicas,
góticas, renascentistas e barrocas espalhadas pela Europa e por
outras regiões do mundo cristão;
– nas grandes deslocações das massas humanas, a começar pelas do
“homo sapiens” que, no início, levaram à ocupação de todo o pla-
neta, continuando pelas invasões e conquistas, viagens e descobri-
mentos marítimos, ocupações, colonizações, migrações e rotas do
turismo até às grandes peregrinações, desde as locais e regionais
às de dimensão planetária, à Terra Santa, Roma e Compostela
para os cristãos, a Meca, na Arábia, para os muçulmanos, a Lhasa,
no Tibete, para os budistas, a Varanasi-Allahabad (que, nos 42
dias do Maha Kumbh Mela de 1989, atraiu 15 milhões de fieis ao
banho do rio Ganges), na Índia, para os hindus.

Tudo isto constitui a verdadeira “escola da vida” que envolve, con-


textualiza, ultrapassa e transcende todas as modalidades históricas do
tradicional subsistema de educação escolar, cuja institucionalização his-
tórica, nos séculos mais recentes, teve ainda o demérito de desencadear,
no capítulo dos recursos atribuídos ao sistema educativo, uma espécie de
elitismo de gerações, cujos beneficiários eram as crianças e os jovens.
Acontece que ao nível superficial em que temos lidado com o con-
ceito de “educação”, de nada disto tínhamos clara consciência. Acontece
mesmo que vai ser nesse contexto restritivo que a educação de adultos co-
meçará a emergir e crescer lentamente, e só ao cabo de algumas décadas
irá estender-se a toda a gama de experiências do processo de crescimento
do ser humano, na dimensão, abrangência e profundidade do que cha-
mamos cultura e em que, na realidade sempre se desenvolvera.
O movimento mergulha as suas raízes no séc. XIX, começa a proliferar

163
nos países mais avançados, sobretudo do norte da Europa e da América, a
partir de núcleos ligados à indústria e mesmo à agricultura para as tornar
mais competitivas, entre os prisio­neiros de guerra como forma de ocupar
o tempo e promover a sua reconversão profissional e, depois da II Guerra
Mundial e durante as guerras da descolonização, um pouco por toda a
parte, com o fim de promover e elevar o nível das capacidades
da população em ordem a poder desempenhar as tarefas exigidas
pela reconstrução e/ou independência nacional.
A partir da década 60, vai ainda receber um apoio indirecto e ines-
perado com o deflagrar da crise da educação escolar.
Mas o movimento ininterrupto de Educação de Adultos, à escala
mundial, deve-se à iniciativa da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que pouco depois da sua
constituição (1945) e a partir do ano da Declaração Universal dos Direitos
do Homem (1948), chama a si a condução do processo, mobiliza vastos
recursos da cooperação internacional para o levantamento da situação,
promove reuniões de peritos à escala planetária para o debate dos proble-
mas e a elaboração de documentos, lança campanhas experimentais
de alfabetização nas regiões mais carenciadas com a ajuda econó­
mica das regiões mais desenvolvidas, assegura a dinamização e
coordenação das acções e promove a sua avaliação periódica. O processo
desenvolve-se através de Conferências Mundiais (Elseneur, Dinamarca,
1949; Montreal, Canadá, 1960; Tóquio, Japão, 1972; Paris, França, 1985;
Hamburgo, Alemanha, 1997) e outras reuniões intercalares (Teerão, Irão,
1965; Persépolis, Irão, 1975; Nairobi, Quénia, 1976; etc.) que passam a
constituir marcos miliários da história de educação de adultos.
Verificamos, deste modo, que enquanto o movimento de educação
de infância, na fase da primeira metade do século XX, progrediu sempre
através de iniciativas de pedagogos e cientistas com repercussão local ou
regional, o movimento de Educação de Adultos, após a emergência da
Organização das Nações Unidas e dos organismos a ela ligados, designa-
damente da UNESCO, e sem esquecer intervenções marcantes de per-
sonalidades como Paulo Freire, desenvolve-se à escala mundial e a partir
sobretudo dos documentos emanados dos encontros periódicos de peri-

164
tos internacionais (pedagogos e especialistas dos vários campos do saber,
políticos, delegados das ONGs, gestores, administradores).
É nestas condições, através do esforço de acompanhamento, observa-
ção e análise das transformações do mundo contemporâneo, à margem
da educação escolar tradicional mas sem nunca a perder de vista, que o
novo subsistema de educação de adultos emerge e avança, lento mas firme,
à escala planetária, dando origem a uma galáxia de conceitos novos que
vão ampliar, esclarecer e aprofundar o campo da educação nas suas múl-
tiplas dimensões.
Passamos a acompanhar o processo, de acordo com a sequência das
suas fases e prestando sempre especial atenção à génese e evolução dos
novos conceitos192.

1. A formação contínua

Na Conferência Mundial de Elseneur (1949), participam 25 países,


20 dos quais pertencem ao que se começa a designar “Primeiro Mundo”
(países mais ligados ao tipo de organização capitalista) e os outros cin-
co ao “Segundo Mundo” (conjunto de nações ou Estados que se dizem
“socialistas”).
Este vocabulário emergente na época, que vai incluir ainda um
Terceiro Mundo (conjunto de países considerados economicamente sub-
-desenvolvidos ou “em vias de desenvolvimento”) e um Quarto Mundo
(integrado por todos os mais desfavorecidos – pobres, deficientes, velhos,
migrantes, marginalizados e excluídos que podem encontrar-se em qual-
quer lugar, designadamente em zonas deprimidas nos subúrbios ou mes-
mo no interior das grandes cidades), vai obter um lugar relevante nas
fases seguintes da evolução do conceito de Educação de Adultos.
Pelo Relatório Final193, verificamos que as preocupações gerais da
Conferência são as do mundo do pós-guerra: reconstrução nacional e
entendimento e cooperação internacionais como fundamentos da paz. A
educação de adultos é entendida como um meio privilegiado para atingir
aqueles dois objectivos.
Relativamente ao primeiro, os delegados presentes não podem abstrair

165
de três características da sociedade da época: a mundialização crescente no
espaço, a aceleração da mudança no tempo e a explosão das ciências e das
técnicas verificada durante o conflito, fenómeno aliás tradicional durante
os períodos de guerra em que o problema acaba por ser matar ou morrer.
Tratando-se de representantes, na sua grande maioria, de países in-
dustrializados que após o conflito se encontram em processo de recons-
trução nacional e cujos quadros profissionais, para além de dizimados
pelos anos da guerra se encontram ultrapassados nos seus conhecimentos
e competências, ao equacionarem o problema da educação de adultos, nos
seus países, a atenção dos delegados à Conferência incide particularmente
sobre os “recursos humanos” que são esses adultos normalmente já esco-
larizados e profissionalizados, e sobre a necessidade e urgência de acelerar
o seu processo de actualização (em várias línguas, updating, fortbildung,
recyclage, aggiornamento) na formação profissional.
Mas porque esta necessidade e urgência, na perspectiva emergente da pla-
netização no espaço, da aceleração da mudança no tempo, e da complexifica-
ção da existência, mostram tendência para continuar a acentuar-se, haverá que
providenciar para que tal esforço de actualização passe a ter continuidade.
Nasce deste modo, para ficar, o conceito (novo) de formação contínua
dos adultos, passando toda a formação que receberam ao longo dos vá-
rios escalões do subsistema escolar a ser englobada no conceito (novo) de
formação inicial.
Se este simples facto representa um primeiro golpe na concepção tradi-
cional da educação como “preparação para a vida”, verifica-se também que
a educação de adultos, assim entendida, não passa ainda de um suplemen-
to ou complemento ou prolongamento ou aperfeiçoamento da formação
escolar, e continuaria a manter-se tributária da mesma no que respeita a
objectivos, conteúdos, métodos e avaliação se, para além deste primeiro
objectivo da reconstrução nacional, não acabasse por prevalecer outro ob-
jectivo mais abrangente, o do entendimento e cooperação para a paz.
De facto, reconhecendo a impossibilidade de chegar a uma definição
exaus­tiva e definitiva da educação de adultos194, os participantes procu-
ram determinar-lhe os contornos.
Prevalece a designação de educação de adultos sobre a de “educação (ou

166
cultura) popular” defendida por alguns delegados francófonos195.
Por outro lado, não se insiste na distinção entre os adultos que em
devido tempo foram escolarizados e os que nunca ou apenas levemente
beneficiaram da escolarização. Porque uns e outros se encontram sujei-
tos a dificuldades específicas, fala-se de todos os adultos e parte-se desta
“declaração de princípio” que constitui o germe da futura definição: a
educação de adultos tem por tarefa satisfazer as necessidades e aspirações do
adulto em toda a sua diversidade.
Deste modo e desde o início, o conceito de educação de adultos ex-
travasa dos limites estreitos da educação escolar e passa a ser entendido
nas dimen­sões de “uma concepção de educação dinâmica e funcional”, em
relação com a situação e experiência de vida concreta e a necessidade de se
realizar pessoal­mente que afecta cada homem em todo o tempo e em todo
o lugar, nos termos definidos pelo próprio relatório:

“esta declaração pode parecer banal, mas ela é rica de conse-


quências práticas; ela comanda uma concepção da educação
dinâmica e funcional que se opõe à concepção intelectualizada
tradicional. Nesta perspectiva funcional, não se parte de um
programa previamente estabelecido nem de uma divisão do saber
por matérias separadas tais como o ensino tradicional estabeleceu,
mas parte-se de situações concretas, de problemas actuais para os
quais os interessados, eles mesmos, se esforçam por encontrar uma
solução”196.

Deste modo, o conceito de educação de adultos assume-se no contexto


mais vasto de cultura. Com efeito, a Conferência declara que a educação de
adultos, assim entendida, deve constituir um esforço por fazer prevalecer

“uma concepção de cultura em que se trata não de distribuir


um saber todo feito, mas de utilizar, sem jamais os subestimar, a
aportação e o contri­buto de cada indivíduo e de cada grupo, para
lançar os fundamentos de uma civilização mais completa e
mais humana”197.

167
Esta nova cultura deverá ainda procurar pôr termo, no plano nacio-
nal, à oposição entre elites e massas, no plano internacional à separação
entre “países de educação de base” e “países de educação de adultos”,
em todos os casos, aos “complexos mal fundados de superioridade ou de
inferioridade”198.
A concepção aprofundada de educação em relação com a cultura tem
conse­quências sobre a educação de adultos em tudo o que diz respeito
aos seus objectivos, metodologias e organização.
O objectivo da educação de adultos vai consistir não apenas na escola-
rização dos que ainda não o foram ou na actualização dos já escolarizados
mas, muito mais do que isso, no esforço por atingir um nível mais elevado
de cultura por parte de todos, de acordo com as necessidades e aspirações de
cada um e o tipo de cultura vigente em cada tempo e em cada lugar199.
A metodologia adequada vai passar, não pela tradicional relação entre o
professor que ensina e o aluno que aprende, mas pela «procura em comum da
verdade», no esforço para encontrar a resolução dos problemas de acordo
com programas flexíveis estabelecidos pela iniciativa dos indivíduos ou
dos grupos e lançando mão dos instrumentos colectivos disponíveis no
património da comunidade200.
No que diz respeito à organização e gestão da educação de adultos, ela
deverá ser grandemente participada e contar com a iniciativa das organi-
zações voluntárias, das associações privadas, profissionais, confessionais e
cooperativas, sob a coordenação dos poderes públicos e contando com a
cooperação internacional201.
Em resumo, até para atingir o êxito no esforço de procurar manter-
se plenamente actualizado no seu campo profissional, o adulto deverá
acompanhar o progresso em todas as dimensões do contexto cultural em
que se encontra inserido.

2. A alfabetização e as suas metamorfoses

A Conferência de Montreal, Canadá, 1960, conta com a participação


de 51 países, a maior parte dos quais pertence ao Terceiro Mundo, reali-
za-se quando começam a sentir-se os resultados do lançamento das gran-

168
des reformas do subsistema escolar mas antes do início da contestação
universitária e, por isso mesmo, a sua temática, apresentada no Relatório
Final202, desenvolve-se ainda independentemente da crise que vai afectar,
durante a década que então se inicia, o sistema escolar vigente.
Os participantes debruçam-se sobre o tema geral “a educação de
adultos num mundo em transformação”, revelam-se profundamente
impressio­nados com as duas “mais dramáticas formas do desenvolvimen-
to tecno­lógico”, ou seja, o domínio da energia termonuclear (1945) e o
início da conquista do espaço (1957), e com a nova situação a que estes
avanços conduziram o mundo, perante a alternativa que oferecem aos
homens de destruição total ou de desenvolvimento sem limites.
Revelam ainda ter tomado plena consciência da “unidade de desti-
no” que, a partir de agora e transcendendo todas as divisões em facções
políticas ou blocos militares, afecta a humanidade no seu todo e a sua
sobrevivência, e transmitem ao Mundo estes sentimentos na “Declaração
da Conferência de Montreal sobre Educação de Adultos”, adoptada por una-
nimidade no final da reunião, bem como a “Resolução” que a acompanha
sobre “A Educação de Adultos e a paz do mundo”.

“Cada geração tem os seus próprios problemas. De facto, ne-


nhuma geração anterior foi confrontada com a extensão e ra-
pidez da mudança como aquela que nos enfrenta e desafia. A
destruição da humanidade e a conquista do espaço tornaram-
se possibilidades tecnológicas para a presente geração. Elas são
as mais dramáticas do desenvolvimento tecnológico, ainda
que não as únicas”.
“O nosso primeiro problema é sobreviver. Não se trata da so-
brevivência do mais forte. Ou sobrevivemos juntos ou perecemos
juntos. A sobrevivência exige que os países do mundo apren-
dam a viver juntos em paz”.
“Sob a condição de aprender a sobreviver, o homem tem pela
frente oportunidades para o desenvolvimento social e o bem-
-estar pessoal como nunca lhe foi dado ter no passado”203.

169
Em tais condições, os delegados verificam ainda que a educação, nes-
te mundo em movimento, pode e deve constituir um “instrumento de
mudança consciente dirigido para o futuro”, uma força de inovação e de
criatividade orientada para a sobrevivência e o desenvolvimento, e consi-
deram que a educação de adultos, como “parte integrante e orgânica” do
sistema nacional de educação, deverá revestir-se de uma dupla dimensão,
técnica e humanista, em ordem a contribuir não apenas para o desenvol-
vimento mas ainda para que este se processe de acordo com os interesses
e os ideais da comunidade humana204.
Neste sentido amplo, a educação de adultos torna-se necessária
quer aos países desenvolvidos em que o progresso tecnológico põe fre­
quentemente em causa os valores humanos, quer aos países menos avan-
çados em que os valores da cultura tradicional colocam por vezes entraves
ao desenvolvimento científico-técnico.
Mais uma vez se verifica que não há razão para complexos de supe-
rioridade ou de inferioridade entre os povos da terra, porquanto todos
sofrem de carências e todos revelam potencialidades.
No entanto, dentro da nova perspectiva planetária, de acordo com ela
e cedendo à pressão da maioria dos delegados provenientes do Terceiro
Mundo, a Conferência acaba por reconhecer como primeira prioridade da
educação de adultos, à escala mundial, a educação então considerada base
das bases que é a alfabetização.
O processo assim desencadeado e mantido ao longo das duas décadas
seguintes, para além de provocar sucessivas decepções, vai fazer passar o
conceito de alfabetização por metamorfoses tais que acabarão por transfor-
mar o conceito de educação de adultos e afectar o próprio conceito de
educação.
Acompanhemos a sequência dessas metamorfoses.

Alfabetização…

Trata-se, na fase inicial, de alfabetização no sentido tradicional de


proporcionar a todas as populações do mundo de hoje a iniciação ao có-
digo da linguagem escrita (cuneiforme, ideográfica, alfabética) que se en-

170
controu na base do desenvolvimento acelerado das civilizações do Médio
e do Extremo Oriente a partir do quarto milénio a. C., se ampliou com
a invenção da imprensa na galáxia Gutenberg, se incrementou a partir
do séc. XVI nos países protestantes e um século mais tarde nos países
católicos com o objectivo de os fieis poderem aceder à leitura da Bíblia,
depois ganhou foros de exigência universal no Romantismo do séc. XIX
e entrou no curriculum da “escola primária” como tarefa de “aprender a
ler, escrever e contar”205.
Os delegados decidem aprovar a directiva de concentrar os esforços
da UNESCO no combate ao analfabetismo que ainda prevalece, numa
elevada taxa, em muitos países do Mundo. Entusiasmam-se mesmo com
a ideia de eliminar rapidamente o analfabetismo nos países pobres com a
ajuda dos países ricos. E entram em euforia ao proclamar:

“com a sua ajuda, pode o analfabetismo ser erradicado dentro de pou-


cos anos”206.

De facto, nesta perspectiva e nos anos seguintes, a UNESCO patroci-


na vastas cam­panhas de alfabetização em diversos países.

… funcional…

Em 1965, a meio da “Década das Nações Unidas para o


Desenvolvimento”, o “Congresso Mundial dos Ministros da Educação sobre
a Eliminação do Analfabetismo” (Teerão, Irão, 1965), procede à primeira
avaliação dos resultados destas campanhas, e a euforia de Montreal cede
o lugar a uma reflexão cautelosa. Verifica-se de facto:

– que embora a taxa mundial de analfabetismo, para a popu­lação


adulta de mais de 15 anos, entre 1960 e 1965, tenha descido
ligeiramente de 39,3% para 36,8%, o número de analfabetos
subiu de facto de 735 para 755 milhões;
– que os alfabetizados pelos processos tradicionais de ensino da
leitura, escrita e cálculo, ministrados aceleradamente, na maio-

171
ria dos casos por professores primários destacados para o efeito,
não utilizavam a seguir os conhecimentos adquiridos e recaiam
facilmente na situação anterior, dando origem ao conceito
(novo) de analfabetismo regressivo;
– que a alfabetização, assim reduzida a mero processo “escolar” e
não acompanhada de processos paralelos de transformação das
estruturas sócio-económicas que induzam a população recém
alfabetizada a treinar as competências adquiridas, aparece como
um novo órgão sem função que se atrofia por falta de prática.

Tendo em conta estes resultados, o Congresso reconhece a necessida-


de de promover a alfabetização não como um fim mas como um meio,
não em si mesma mas em função do desenvolvimento das populações e da
aquisição da capacidade de exercer e exercitar as “competências” adquiri-
das para, por exemplo, ler o edital público ou o jornalzinho da terra, es-
crever a carta ao filho emigrante, manter a contabilidade do negócio fami-
liar, etc. Emerge deste modo o conceito (novo) de alfabetização funcional,
definido como “acção educativa associada a uma formação sócio-econó-
mica e profissional no quadro de um pro­cesso de desenvolvimento”207.
O novo conceito vai alargar-se a todo o âmbito da educação de adultos
e passa a ser adoptado e testado pelo Programa Experimental Mundial de
Alfabetização (PEMA) da UNESCO e pelo Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), em vinte países, de 1966 a 1971.

... em função do desenvolvimento integrado…

Mas a avaliação do PEMA, nos primeiros anos da década 70, põe em


relevo novas contradições e acarreta uma decepção ainda maior. Verifica-se
que a alfabetização se vem processando em função do desenvolvimento (a
década de 60 fora decretada pela ONU como “Década do Desenvolvimento”
e revelara a tendência para insistir na classificação dos países entre desenvol-
vidos e subdesenvolvidos também denominados, eufemisticamente, em vias
de desenvolvimento), mas apenas na dimensão económica, com as graves
consequências de que, entretanto, se começa a tomar consciência.

172
Com efeito, verifica-se que ao contribuir para a criação de mão-de-
-obra mais dócil e dúctil a alimentar a máquina de produção e consumo,
a alfabetização funcional acaba por transformar o indivíduo em instru-
mento para manter o “statu quo” económico-social208, em vez de o ajudar
a tornar-se capaz de o transformar o que, para além de cavar mais o fosso
de injustiça entre as classes sociais, começa a provocar perturbações alar-
mantes no equilíbrio ecológico.
Por seu lado, a Conferência de Estocolmo (1972), sobre a situação am-
biental, ao analisar o desenvolvimento económico e as suas consequências,
começa a tomar consciência do alastramento de uma série de fenómenos
que até agora não tinham sido objecto da nossa atenção: a depredação dos
recursos terrestres (matérias primas, riquezas florestais, recursos energéti-
cos), o alastramento do fenómeno da poluição nas suas diversas vertentes
ou, por outras palavras, a degradação crescente das condições de vida, e reco-
nhece que o desenvolvimento que interessa ao homem não pode consistir
no mero crescimento económico a apontar para a subida do nível de vida,
mas no desenvolvimento em todas as dimensões capaz de proporcionar a
melhoria da qualidade de vida.
Paralelamente, as Conferências de Veneza (1970) e de Helsínquia (1972),
sobre o desenvolvimento cultural, apontam para o facto de o desenvolvi­
mento só assumir uma dimensão humana quando se processa de acordo
com os valores sociais da superação das desigualdades e da igualdade de
oportunidades, e ainda com os valores culturais que estimulam o homem
a (re)encontrar o sentido da sua existência e do seu destino.
A Conferência Mundial de Educação de Adultos (Tóquio, 1972) que
adopta, mais uma vez, como tema “a educação de adultos num mundo
em mudança”, toma consciência destas várias dimensões do desenvolvi-
mento, constata que para além da possibilidade da destruição do planeta
por um processo de morte súbita (holocausto nuclear), também existe a
possibilidade da sua destruição por um processo de morte lenta (degra-
dação das condições e da qualidade de vida), e que a alfabetização vem
correndo o risco de inanição por falta de rumo ou, pior do que isso, por
seguir um rumo errado.
Perante esta perspectiva, a noção de funcionalidade, objecto de acesa

173
discussão no início da Conferência, obtém um consenso final em que o
seu sentido “reduzido” ao campo da economia e da produção vai ceder lu-
gar ao sentido “amplo” que abarca também os sectores social e cultural.
Na dimensão económica, conscientes de que o mundo se encontra na
transição da “civilização industrial” para a “civilização pos-industrial” ou
“dos serviços” na expressão de um analista209, ou da “civilização indus-
trial” para a “civilização científica” no dizer da própria Conferência210, e
de que, nesta nova fase, quanto mais as máquinas se tornam escravas den-
tro do processo produtivo, mais os homens se tornam livres, disponíveis
e capazes de orientar a produção e de lhe aumentar o ritmo, os delegados
reconhecem “a importância de investir em homens, mesmo sob o ponto de
vista meramente económico” e confirmam a ideia de que “é fazer prova
de inconsciência persistir em considerar a educação de adultos como um
luxo ou uma actividade marginal; a educação de adultos é um dos factores
essenciais do desenvolvimento económico”211.
Por outro lado e já no que diz respeito à dimensão social e porque “a
educação de adultos tem o seu ponto de partida num acto de fé na de-
mocracia”212, ela deverá evitar que continue a existir uma “repartição desi-
gual de conhecimentos”213 responsável pelo agravamento do fosso cavado
entre o número dos favorecidos e o “Quarto Mundo” dos desfavorecidos
ou “laissées pour compte”214, mas antes tudo fazer para que estes últimos
tomem consciência das suas condições de doença, fome, miséria e apatia,
das suas causas e dos métodos que permitem combatê-las215, de modo
a todos caminharmos para “uma democracia concreta em proveito dos
mais desfavorecidos”, em que a educação dos adultos seja verdadeiramen-
te “a educação da democracia”, “o exercício mesmo da democracia”216.
Finalmente e em relação com o desenvolvimento cultural definido
como “a mobilização dos recursos físicos e intelectuais do homem, ao
serviço da pessoa humana e da sociedade e como um processo que dura
toda a vida”217, os delegados concordam em que o essencial é “formar
homens livres numa sociedade em mutação”218 e em que “é na perspectiva
do desenvolvimento cultural que a educação de adultos deve ser, em última
análise, pensada e conduzida para assumir a sua verdadeira dimensão”219.
Tendo em conta estas três dimensões do desenvolvimento humano, a

174
Conferência de Tókio adopta uma posição clara e firme sobre o novo con-
ceito de alfabetização funcional a comportar a modulação do conceito de
educação de adultos e do próprio conceito de educação.
Depois de afirmar energicamente que por exigência da sua própria na-
tureza de “organização essencialmente humanista, para quem o homem
é um todo, um ser pluridimensional, incapaz de se satisfazer com uma
funcionalidade limitada”, o conceito de funcionalidade da alfabetização,
“em sentido bem mais estreito, estritamente económico, a Unesco, por
sua parte, recusa-o”220, adopta o conceito (novo) de alfabetização funcio-
nal em função do desenvolvimento não apenas económico mas também
social e cultural, ou seja do desenvolvimento integrado.
Mais, a Conferência avança também a ideia de que “encarar o conjun-
to das actividades da educação de adultos sob o ponto de vista funcional
no sentido amplo do termo”, constitui um “progresso capital” dos nossos
dias221.
E conclui que toda “a educação, de institucional, deve tornar-se funcio-
nal222. E que a educação funcional coincide com a educação integral223.

… em função do crescimento do Homem…

Durante a primeira metade da década 70, caracterizada pelo “choque


petrolífero”, a desaceleração geral da economia e a crise social que dela re-
sulta, emerge uma pergunta cuja resposta vai obrigar a dar mais um passo
no caminho do esclarecimento do conceito de alfabetização. A pergunta,
formulada em 1975 por Jean Thomas, “a educação é um meio ou um fim
para o desenvolvimento”?224 põe em marcha questões deste género:

– a alfabetização deverá processar-se em função do desenvolvi-


mento das estruturas exteriores (económica, social, cultural) ou
em função da realidade que lhe está na origem, ou seja, o cresci-
mento interior do próprio homem?
– Por outras palavras e com toda a circunspecção perante a com-
plexidade de matizes que neste caso afectam a diversidade das
línguas nacionais, a alfabetização deve processar-se em função

175
do nível do progresso atingido colectivamente por cada comu-
nidade humana e patente no resultado também colectivo que
se mede pelo número e qualidade das infra-estruturas de vida
amontoadas através dos séculos (civilização), ou em função da
capacidade atingida pessoalmente por cada ser humano de con-
tribuir para a produção desse resultado (cultura)?
– Ou ainda, a alfabetização deve visar colocar o homem ao servi-
ço do desenvolvimento exterior ou deve procurar que o desen-
volvimento exterior ajude a criar as melhores condições para o
desenvolvimento interior do próprio homem?
– O homem é para o desenvolvimento ou o desenvolvimento para o
homem?

A resposta inclina-se para a segunda alternativa, a partir da consciên-


cia cada vez mais viva da situação do mundo em acelerada mudança que
se adquire nesta primeira metade da década 70.
O esforço de investigação científica e aplicação tecnológica que as na-
ções beligerantes vinham suportando desde a II Guerra Mundial e au-
menta no subsequente confronto entre os dois blocos militares da Guerra
Fria designadamente no que diz respeito à conquista do espaço, conti-
nua a alimentar a explosão das ciências físicas, biológicas, humanas e das
respectivas tecnologias, bem como, através de complexos fenómenos de
interdisciplinaridade, o eclodir de novas ciências e novas profissões.
As correntes migratórias de trabalhadores, exigidas pela reconstrução
nacional do pós-guerra, bem como as correntes de turismo à procura de
melhores climas para a fruição dos tempos livres, mormente durante as
férias estivais, e ainda o desenvolvimento dos meios de comunicação so-
cial concorrem para o alargamento do espaço de cada comunidade e para
a transformação do mundo numa aldeia planetária.
A substituição da estabilidade pela mudança e pela aceleração da pró-
pria mudança, à escala individual como agente veiculador da doença do
stress ou “choque do futuro” (Alvin Toffler, 1970), à escala familiar como
força estimuladora da crise de gerações, à escala nacional como necessi-
dade peremptória de planificação a longo prazo, à escala da humanidade

176
como exigência de ter de enfrentar o próprio destino comum, concorre
para repensar a história no sentido de substituir a perspectiva tradicional
e estática da sua divisão em fases ou eras ou épocas ou idades (antiga,
clássica, medieval, moderna, contemporânea) pela perspectiva nova e di-
nâmica que a encara como sucessão de transformações mais ou menos
lentas mas sempre actuantes.
A resposta a tantos e tão exigentes desafios, vem a ser clarificada, a meio
da década, por ocasião da avaliação do decénio do Programa Experimental
Mundial de Alfabetização (PEMA) no Simpósio Internacional que está na
origem da Declaração de Persépolis (1975): a alfabetização deve ser coloca-
da ao serviço do crescimento e realização da pessoa humana. O homem
alfabetizado será aquele que cresce não apenas no sentido de contribuir
para o “desenvolvimento integrado”, mas também e sobretudo e antes no
sentido de procurar desenvolver-se a si próprio, até para tornar-se mais ca-
paz de participar no desenvolvimento da sua comunidade, incluindo, quan-
do for caso disso, intervir na condução dos destinos da polis.
A dimensão técnica da alfabetização cede assim o lugar à dimensão
política. A verdadeira meta da alfabetização não consiste em equipar o
homem com determinadas técnicas mas, através disso, em torná-lo capaz
de ele próprio crescer como pessoa e intervir na comunidade. Neste sen-
tido, a alfabetização tem como objectivo criar condições para que todo o
ser humano se torne capaz de se movimentar como pessoa – ser conscien-
te e livre – nos diversos sistemas em que se encontra inserido, de dominar
e controlar esses sistemas ou, na expressão forte adoptada pelo Simpósio,
de “assegurar a participação efectiva de cada cidadão na tomada de deci-
sões a todos os níveis da vida: social, económico, político, cultural”. “A
alfabetização, como a educação em geral, é um acto político”225.
Um acto político que, na praxis proposta por Paulo Freire em obras
escritas durante estes anos e que mais abaixo analisaremos, se inicia por
uma tomada de consciência pessoal ou “conscientização”, continua na cha-
mada e acesso ao “diálogo”, proporciona a progressiva libertação de todas
as servidões e alienações e culmina na humanização do adulto expressa na
capacidade (re)conquistada de poder dizer a sua palavra de homem no
meio dos outros homens.

177
As incisivas expressões da Declaração de Persépolis traduzem uma nova
metamorfose do conceito de alfabetização funcional (e, por contraste, do
conceito de analfabetismo funcional) que, a partir de agora, vai aplicar-se
a todos e cada um de nós.
Será permitido ao Autor, neste momento fazer uma pergunta ao
Leitor?
Quando começámos a falar de educação de adultos, nós pensámos em
quem? Nos agricultores e donas de casa das nossas aldeias? Nas popula-
ções das regiões mais desprotegidas do Planeta e particularmente daque-
las que fazem parte dos antigos países colonizados? Porque não sabiam ou
ainda não sabem “ler, escrever e contar”?
Nesta fase da evolução do conceito de alfabetização, à luz do texto
da Declaração de Persépolis, o nosso pensamento terá de orientar-se nou-
tra direcção: entre o número de analfabetos funcionais deverão contar-se
todos aqueles que ainda não são capazes de se movimentarem como pes-
soas (seres conscientes, livres, responsáveis) e de tomarem decisões, a este
nível, nos diversos sistemas (económico, social, político, cultural) em que
se encontram inseridos.
Assim sendo, quem de nós se considera capaz de formar opiniões con-
sistentes e tomar decisões fundamentadas, ou seja, de forma consciente,
livre e responsável,

– dentro do sistema económico (movimentar-se com conheci-


mento de causa no mundo dos negócios, transacções, acções e
obrigações, banca e bolsas de valores),
– dentro do sistema social (complexidade das relações sociais,
classes sociais, etnias, meandros da informação e comunicação
social),
– dentro do sistema político (votar sempre com pleno conhe-
cimento de causa, ter opinião clara sobre as ideologias e mo-
tivações dos candidatos e dos partidos políticos, sobre as leis
promulgadas, a sua execução e as sentenças proferidas de acordo
com elas, sobre as decisões políticas tomadas na defesa, na se-
gurança e sobre as prioridades atribuídas ao desenvolvimento, à

178
saúde, à justiça, à educação, etc.),
– dentro do sistema cultural (no que diz respeito aos progres-
sos da investigação científica designadamente nos domínios da
bio- tecnologia e da bioética, à correcta apreciação das artes, por
exemplo da qualidade das obras expostas numa exposição de
pintura moderna, às ideias e ideologias, à moral e à ética, aos
valores e valorizações, às religiões e místicas)?

Relativamente a si próprio, o Autor responde humildemente pela


negativa.
Se o Leitor acaso responde também pela negativa, não vá depois dizer
que o Autor o chamou “analfabeto funcional”. Terá sido o próprio Leitor
quem o reconheceu.
De facto, nesta fase da evolução do conceito e atendendo à sua di-
mensão de funcionalidade, a alfabetização funcional torna-se coextensiva
à educação de adultos e de todos os adultos.

… alfabetização e iniciação aos códigos

As grandes campanhas de alfabetização funcional patrocinadas pela


UNESCO consideram-se terminadas com a experiência do PEMA. Mas
as acções continuam sob a própria responsabilidade, nos países carencia-
dos do Terceiro Mundo226.
Entretanto e a partir de meados da década 70, começámos a tomar
conhecimento dos índices de analfabetismo funcional detectados em países
do Primeiro Mundo, apurando-se 4% na Inglaterra, 5% na Itália, 7% no
Canadá, 10% nos Estados Unidos. Os americanos fornecem também o
critério utilizado nesta contagem: consideram analfabetos funcionais todos
os cidadãos que não ultrapassaram o 5º ano da escolaridade obrigatória227.
Torna-se evidente que a adopção deste critério implica uma nova e
decisiva metamorfose no conceito de alfabetização e em vários sentidos.
Com efeito, já não se trata do sentido técnico tradicional, “apren-
der a ler, escrever e contar”, mas do sentido político de que nos falava a
Declaração de Persépolis, ou seja, da aquisição, por parte do adulto, da

179
capacidade de se movimentar como pessoa dentro dos vários subsistemas
do “desenvolvimento integrado” e, no limite, de compreender e controlar
o próprio desenvolvimento.
Por outro lado, o conceito apresenta-se extraordinariamente relativi-
zado. A capacidade de nos movimentarmos como pessoas no mundo que
nos rodeia admite graus, consoante se trate de uma comunidade rural ou
urbana, de uma cidade de província, de uma capital ou de uma mega-
lópode. I. Illich já notava, em 1970, que para viver como verdadeiro ser
humano na cidade de Nova York seria necessário o 12º ano228.
Somos assim levados a uma constatação ainda mais paradoxal. Um
índio da Amazónia que não sabe nem nunca ouviu falar de “saber ler,
escrever e contar”, mas que se movimenta, ao nível de desenvolvimento
do seu grupo, dentro do respectivo ecossistema, como homem conscien-
te e livre, não parece poder ser considerado analfabeto funcional. Em
contrapartida, um respeitável cidadão da Europa, da América, da Índia,
da China ou do Japão, munido de um diploma universitário, mas que
não consegue movimentar-se como pessoa, verdadeiramente consciente e
livre, dentro do seu emaranhado sistema eco-sócio-cultural (sem falar já
da sua capacidade para participar no respectivo controlo político), parece
que, em boa verdade, dificilmente poderá evitar ser catalogado no rol dos
analfabetos funcionais.
O conceito de alfabetização ganha clareza se remontarmos ao étimo
da palavra, em grego, alphábētos, ou.
Que significa com efeito ser “analfabeto”?
Pura e simplesmente, recorrendo ao grego, não saber o alfa e o beta, e
recorrendo ao latim, não conhecer as letras do abecedário, ou seja, o “a b
c” de qualquer coisa.
O alfabeto não passa de um código ou repertório de sinais da lingua-
gem escrita. Ser alfabetizado implica a capacidade de estar iniciado ao
conhecimento desse código de comunicação, a fim de poder codificar ou
descodificar as mensagens nele contidas.
Mas como este código, existem mil outros, mais gerais ou mais res-
tritos, privados ou públicos, como o código Morse, o código Braille, o
código da estrada, os códigos estabelecidos nas actividades económica,

180
social, jurídica, profissional, política, científica, cultural, artística, poéti-
ca, religiosa, mística…
O que nos conduz à compreensão de três coisas.
A primeira diz respeito à situação de privilégio de que goza o código “al-
fabeto”: deriva do facto de ter sido criado há cinco mil anos, e desde então
até aos dias de hoje, ter sido explorado pelas classes superiores de “letrados”
(sacerdotes antigos, clérigos medievais, administradores políticos, grandes
gestores) para se distinguirem das e se imporem às classes inferiores.
A segunda tem a ver com a verificação registada acima de que a ne-
cessidade de alfabetização funcional diz respeito a todos e cada um de nós:
podemos calcular a medida exacta em que acedemos a ela, interrogando-
-nos sobre o número de códigos de comunicação aos quais nos encontra-
mos ou não iniciados.
Finalmente e é o que neste momento conta mais, verificamos que o
nível de alfabetização funcional que nos anos 60 poderia corresponder, no
máximo, ao período inicial do subsistema escolar, passa a ser contabiliza-
do, a partir de 1975, pelos anos de escolaridade cumpridos. O facto vai
ter um impacto demolidor no subsistema escolar, afectar o subsistema de
educação de adultos e, como veremos a seu tempo, marcar o sentido da
educação ao longo da vida e da educação no seu todo.

3. O que é a Educação de Adultos (Nairobi, 1976)

Considerando que depois de cerca de um quarto de século de deba-


tes (1949-1972), o conceito de educação de adultos se encontrava sufi-
cientemente amadurecido, a Conferência de Tóquio (1972), criou uma
Comissão para elaborar um documento síntese sobre a educação de adul-
tos que de facto veio a ser apresentado, adoptado e tornado público na
Reunião de Nairobi (1976)229.
Na forma de Recomendação aos Estados Membros e à maneira de sínte-
se das contribuições das diferentes Conferências Internacionais realizadas
até à data, desenvolve aspectos fundamentais da educação de adultos de
que destacamos cinco pontos: definição, objectivos, conteúdos, organi-
zação, métodos.

181
Definição

A educação de adultos aparece no documento como “um subconjunto


integrado num projecto global de educação ao longo da vida” cuja longa de-
finição apresentamos de forma estriada para a tornar mais compreensiva:

“Na presente recomendação, a expressão “educação de adultos” de-


signa a totalidade dos processos organizados de educação,
qualquer que seja o conteúdo, o nível ou o método,
quer sejam formais ou não formais,
quer prolonguem ou substituam a educação inicial ministrada nas
escolas e universidades ou se apresentem sob a forma de aprendizagem
profissional, graças aos quais as pessoas consideradas como adultos
pela sociedade a que pertencem
desenvolvem as suas aptidões [...] na dupla perspectiva
de um desenvolvimento integral do homem e
de uma participação no desenvolvimento social, económico e cul-
tural, equilibrado e independente”230.

A educação de adultos é assim apresentada na sua dimensão de for-


mação integral e refere-se a todos os adultos, os que tiveram e os que não
tiveram acesso aos benefícios da educação escolar, na medida em que uns
e outros são portadores de carências específicas.

Objectivos

Como a qualquer outro serviço comunitário, à educação de adultos


são apontados como últimos fins a atingir: a paz como síntese das condi-
ções em que se pode efectivar a realização da pessoa humana, a partici-
pação nas transformações sociais, a atenção aos problemas do meio físico
e cultural, o respeito pelos outros, a inserção no mundo do trabalho e
dos tempos livres, a promoção da capacidade de comunicar, o treino da
capacidade de aprender, a procura da realização pessoal.
Neste sentido e de acordo com a tradição que já vem de Elseneur

182
(1949), a educação de adultos é entendida como processo que visa criar as
melhores condições para que o adulto se torne capaz, ele próprio e não outros
por ele, de procurar resposta para todas as suas necessidades e aspirações231,
não apenas de ordem mental, na linha do formalismo e intelectualismo
que tendencialmente caracterizam a escola, mas de todas as outras or-
dens, física e moral, ecológica e política, artística e religiosa, etc., que têm
a ver com a capacidade efectiva de movi­mentação, por parte da pessoa,
nos vários subsistemas em que vive, trabalha e se diverte.
Na mesma ordem de ideias e porque se trata de necessidades e aspi-
rações, há que “atribuir a mais alta prioridade aos grupos menos favore-
cidos”232, designadamente os do Quarto Mundo das mulheres, idosos,
populações rurais, desempregados, analfabetos, jovens que precisam de
um complemento ou do acabamento dos estudos anteriores, diminuídos
físicos ou mentais, migrantes, refugiados, minoras étnicas, os que não
têm liberdade de utilizar a língua materna e/ou de viver de acordo com a
própria cultura, marginais e marginalizados, oprimidos e explorados.
Esta perspectiva deverá levar os Estados a “reconhecer a educação de
adultos como componente necessária e específica do seu sistema de edu-
cação”233, a incluir os seus objectivos e metas nos planos nacionais de
desenvolvimento234, a tomar medidas concretas em pontos específicos
como o das relações entre educação de adultos e trabalho235 e entre edu-
cação de adultos e educação de jovens236.

Conteúdos

Os conteúdos da educação de adultos «não têm fronteiras teóricas» e


abarcam tudo aquilo que pode favorecer a procura de respostas para as
necessidades de todas as categorias de adultos.
Tratando-se de um tão vasto programa, diríamos que corresponde a
tudo quanto possa contribuir para tornar o homem cada vez mais capaz
de três coisas: como pessoa, realizar-se em plenitude; como cidadão, par-
ticipar na vida e na condução dos destinos da sua comunidade; como
profissional, contribuir para o desenvolvimento integrado dentro dos con-
dicionalismos do seu ecossistema.

183
Um ponto deve ser cautelosamente assinalado: a definição dos pro-
gramas não pode competir a outros que aos próprios adultos, indivíduos
ou grupos, na medida em que se trata de encontrar resposta para as suas
necessidades e aspirações e que, sobre elas, são eles os que mais sabem se
não mesmo os únicos que as conhecem.
Resta um problema extraordinariamente delicado: e que fazer quando
os adultos chegaram a tal nível de alienação e degradação que nem sequer
têm consciência das próprias necessidades e aspirações? As iniciativas de
tipo endógeno não são previsíveis e as de tipo exógeno correm o risco de
ser objecto de rejeição.
A resposta, nada fácil, exige da parte dos responsáveis tais qualidades
de intuição, tacto e experiência que por si sós falam bem alto sobre os
cuidados a ter no seu recrutamento e formação.

Organização

O documento aborda o problema das estruturas237, da gestão, admi-


nistração, coordenação e financiamento238, da cooperação internacional239
e da formação e do estatuto das pessoas que intervêm nas actividades de
educação de adultos240.
Trata-se dos meios para atingir os fins. O documento propõe que se
devem “utilizar plenamente os meios de educação existentes e criar os que
fizerem falta”241.
Neste contexto, considera-se função do Estado estabelecer e desen-
volver a rede de organismos necessários, proceder ao levantamento das
necessidades, utilizar os meios existentes, criar outros novos, suprimir
obstáculos, fomentar a troca de experiências, estimular a colaboração en-
tre todas as entidades públicas e privadas.
No que diz respeito aos recursos humanos, impõe-se a pergunta:
quem deverá fazer educação de adultos?
A resposta é que, tendo em conta a “importância crucial da tarefa, to-
das as pessoas capazes de darem uma contribuição o devem fazer242, sobre-
tudo os especialistas dos diferentes ramos”243, a começar, evidentemen-
te, por aqueles que aceitem profissionalizar-se para exercer esta função

184
específica. Neste caso, os candidatos serão objecto de um recrutamento
cuidadoso e de uma formação inicial (com estágio) que deve “incluir to-
dos os aspectos de competência técnica, conhecimentos, compreensão e
atitudes pessoais necessárias para o desempenho das suas diferentes tare-
fas, tendo em conta o contexto amplo em que se desenvolve a educação
de adultos”244.
Dever-se-á ainda recorrer a todas as pessoas, grupos e organizações fa-
miliares, profissionais, empresariais, sindicais, cooperativas, informativas,
educacionais e de voluntariado.

Métodos

O documento trata em conjunto de meios, métodos, investigação e


avaliação245.
Ao falarmos de educação de adultos, e não estranha que isso tenha
acontecido com o leitor ao percorrer estas páginas, é frequente pensarmos
naqueles que julgamos mais desprovidos de preparação escolar: popula-
ções rurais, massas operárias, etc.
Continuando a pensar à maneira antiga, inconscientemente admiti-
mos que os adultos nos encontramos divididos em dois grupos, escola-
rizados e não escolarizados, e que aos primeiros pertence serem os edu-
cadores e aos segundos serem os educandos. Pelo menos isso pareceria
evidente quando se encarava a distinção entre citadinos e rurais, ou entre
europeus e habitantes dos antigos países colonizados.
Será mesmo assim? Haverá razão para pensarmos que existem uns
adultos educados e outros não educados, uns mais educados do que ou-
tros, ou para pensarmos simplesmente que uns adultos são mais educados
em certas dimensões (por exemplo, escolar, científica) e outros noutras
(por exemplo, familiar, moral)?
Não pode portanto haver razão para a existência de complexos de su-
perioridade de uns e/ou de inferioridade dos outros. De qualquer modo,
nenhum adulto, tomado individualmente ou em grupo, suporta os com-
plexos de supe­rioridade de outro adulto. Como se comprova na rejeição
frequente dos chamados “intelectuais” ou, em mais larga escala, nas reac-

185
ções da cultura dos antigos países colonizados perante a cultura os países
colonizadores.
Por tudo isto, o trabalho em educação de adultos só é possível se aos co-
nhecimentos, técnicas e métodos apropriados, se acrescentarem as atitudes
e competências morais específicas que se podem resumir no respeito:

– pelo adulto e a sua dignidade de pessoa,


– pela sua experiência de vida e pela sua cultura (que duma forma
ou de outra são sempre riquíssimas),
– pela sua sensibilidade e susceptibilidade (sofrimentos, traumas,
complexos, revoltas),
– pela sua iniciativa (das suas necessidades e aspirações é ele quem
tem pleno conhecimento),
– pelo seu ritmo (tão variável como a idiossincrasia e as condições
de vida de cada ser humano).

Dito de outra forma, há que tratar o adulto não como objecto mas
como sujeito de educação246. Não se trata de exercermos sobre ele a acção
educativa mas de criarmos condições para que ele se torne o agente da sua
própria educação. O que interessa, em última análise, não é resolver-lhe
os seus problemas (o que terá de ser feito no caso de se tratar de deficiente
estrutural) mas, muito mais do que isso, ajudá-lo a tornar-se capaz de, ele
próprio, procurar para eles a melhor solução, de acordo com o célebre
ditado chinês «se queres matar a fome a um homem uma vez, dá-lhe um
peixe; se queres matar-lhe a fome toda a vida, ensina-o a pescar».
Quer dizer ainda que todo o esforço da hetero-educação (educação re-
cebida de outros) deve desembocar num esforço de auto-educação (edu-
cação procurada por si próprio), sempre no ambiente estimulante da
inter-educação.

Mas há mais. Ao começar a tratar o outro como outro eu, começo a


descobrir-me a mim próprio como semelhante ao outro. Também sou
adulto, também tenho necessidades e aspirações, também me estimulo
com o seu contacto e me enri­queço com a sua experiência. Eu sou tam-

186
bém educando e o outro é também educador. E “todos nos educamos em
comunhão”.
A distinção entre professor e aluno perde todo o sentido. E esta des-
coberta, feita no âmbito da educação de adultos247, é hoje universalmen-
te aceite no âmbito da educação comunitária. De facto, ninguém sabe
tudo e ninguém sabe nada, ninguém nasceu (só) para ensinar e ninguém
nasceu (só) para aprender. O que acontece é que todos nós sabemos al-
gumas coisas e ignoramos muitas mais. De aí que, ao ensinarmos o pou-
co que sabemos e aprendermos o muito que ignoramos, todos ficamos
enriquecidos.
Na mesma ordem de ideias, os métodos de educação de adultos afas­
tam-se do esquema escolar da sala de aula e adoptam o de grupo de es-
tudo, em formas que se revestem de extrema variedade248, mas que ten-
dem a aproximar-se dos círculos de estudo dos países escandinavos ou dos
grupos de investigação dos temas geradores nas experiências de educação
problematizadora de Paulo Freire.
Dotados de extrema flexibilidade, funcionam com qualquer número
de membros (desde que não exagerado), em qualquer tempo e em qual-
quer lugar. O essencial é que, em comum, se abordem os problemas e se
procure encontrar a solução.
Sempre que o homem encontra outro homem ou grupo humano,
pode comunicar e enriquecer-se.
Sintetizando, poderemos dizer que se trata de desencadear e manter
o processo tendente a contribuir para criar as melhores condições a todo
o homem, ao homem todo, totalmente e sempre, como já no seu tempo era
proposto, na sua Didáctica Magna, por A. Coménio249.
Mas isto pode acontecer quando se estabelecem relações humanas
quer ao nível intrageracional, quer ao nível intergeracional.

4. Relação intrageracional: ética e “revolução pedagógica” (P.


Freire)

Tem-se feito notar o carácter algo abstracto e impessoal dos docu-


mentos da UNESCO, elaborados muitas vezes por delegados ge­neralistas

187
responsáveis de amplos sectores educativos e cujas conclusões são ainda
frequentemente, nas Conferências e Reuniões Internacionais, objecto de
negociações e resultado de compromissos.
Mas há também os pedagogos cujas obras resultaram de experiências
amplas, profundas e duráveis, porquanto vividas, sofridas e postas à prova.
É o caso de Paulo Freire, numa região planetária em que, ao longo
dos últimos 500 anos e sem contar com os acidentes naturais como o da
desertificação deslizante nalgumas regiões, se cruzaram os gládios da in-
justiça de três continentes (genocídio de populações autóctones desde os
astecas do México aos incas do Peru, comércio negreiro dos escravos pro-
cedentes da África, violências exercidas pelos colonizadores da Europa).
A sua obra apresenta o resultado da praxis adquirida a partir da longa
experiência em processos de alfabetização da população desfavorecida do
nordeste brasileiro e da reflexão aprofundada sobre as raízes das ideolo-
gias então dominantes nos dois blocos da Guerra-fria. Abordando temas
como “opressão”, “revolução”, “libertação”, “conscientização”, “diálogo”,
“educação”, “pedagogia”, etc., encontra-se em profunda sintonia com as
preocupações expressas nos dois documentos que, em meados da déca-
da 70, fixam definitivamente a abrangência e semântica do conceito de
educação de adultos: a Declaração de Persépolis (1975), ao afirmar que a
alfabetização funcional não é um problema técnico mas um “problema
político”250, e a Recomendação de Nairobi (1976), ao insistir em que a edu-
cação de adultos visa “promover a criação de estruturas, a elaboração e a
execução de programas e a aplicação de métodos educativos que respon-
dam às necessidades e aspirações de todas as categorias de adultos”, e ainda ao
“atribuir a mais alta prioridade” aos

“membros dos grupos menos favorecidos, rurais ou urbanos, sedentários


ou nómadas, em particular os analfabetos, os jovens que não pude-
ram obter um nível de educação geral suficiente ou uma qualificação;
os trabalhadores imigrantes e os refugiados, os trabalhadores desem-
pregados, os membros de minorias étnicas, os diminuídos físicos ou
mentais, os inadaptados sociais e presos”251.

188
Paulo Freire, ao intervir neste debate que agita o mundo global na dé-
cada histórica de 70, desenvolve particularmente duas categorias concep-
tuais do pensamento da época: o conceito de revolução, central no con-
flito ideológico entre os dois blocos político-militares de Leste e Oeste,
e o conceito de pedagogia incrustado no cerne do processo de educação
escolar que andava na época a ser posto em causa pela contestação uni-
versitária, e do processo de educação de adultos que entretanto abria o
seu caminho252.
Evoquemos os tópicos essenciais do tratamento dado a cada um des-
tes dois conceitos e a sua fusão na síntese da “revolução pedagógica”.

Revolução violenta e revolução não violenta

O homem é, por natureza, um ser imperfeito, inacabado, inconclu-


so e sujeito, por isso mesmo, a um pro­cesso contínuo que pode ser de
humanização quando as condições favorecem o seu desenvolvimento no
sentido de tornar-se (cada vez mais) homem, e pode ser de desumanização
quando, pelo contrário, as condições de carência, alienação e exploração
a que se encontra submetido por outros, são de molde a torná-lo cada
vez menos um ser humano e cada vez mais um cadáver, um objecto, uma
coisa, um nada253.
Quando esta última situação acontece e permanece, às vítimas resta
apenas um caminho: o da revolução.
Há porém que distinguir entre revolução violenta, realizada pela força
e de resultados aparentes e que por isso não passa de uma revolução falsa,
e revolução não violenta, cultural ou pedagógica, que opera pela conscienti-
zação e pelo diálogo e constitui a verdadeira revolução254.
A violência é característica de todos aqueles que se impõem pela força e
aparece, quer na acção violenta dos opressores, quer na revolução violenta dos
oprimidos, quando eles adoptam os mesmos processos dos opressores255.
A revolução violenta acontece quando os seus líderes a fazem contra,
sem, sobre ou mesmo para o povo, mas não com o povo, através da cons-
cientização e do diálogo256.
Todos os violentos são reaccionários, quer os da direita quer os da es-

189
querda, porquanto todos reagem contra a natureza consciente e livre do
ser humano. Há portanto que os distinguir cuidadosamente dos verda-
deiros revolucionários, ou seja, dos que trabalham pela transformação do
mundo respeitando em todos os homens a sua dignidade de seres cons-
cientes e livres257.
Todos os violentos são sectários, quer os da direita, quer os da esquer-
da, porquanto, fechados na sua verdade, “sofrem ambos da falta de dú-
vida”, sedentos do poder só procuram conservá-lo ou (re)conquistá-lo,
agarrados à sua segurança empenham-se em domesticar o presente para
o manter e o futuro para o prefixar. Há por isso que distinguir estes sec-
tários dos radicais que são os homens abertos a todas as alternativas e de-
cididos a aprofundar os problemas até às últimas consequências. Radicais
são os que se empenham numa revolução que visa não apenas substi-
tuir no poder uns pelos outros, invertendo simplesmente a situação dos
opressores e dos oprimidos para deixar ficar tudo na mesma, mas, através
do empenho e da persistência na procura da conscientização e do diálogo,
contribuir para a libertação de todos, oprimidos e opressores, da opressão
que os primeiros padecem e os outros exercem258.
“Já que não se pode afirmar que alguém liberta alguém ou que alguém
se liberta sozinho, mas que os homens se libertam em comunhão”259.

Pedagogia bancária e pedagogia problematizadora

A partir de aqui, é possível caracterizar a pedagogia utilizada pelos


sectários como pedagogia bancária e a pedagogia utilizada pelos radicais
como pedagogia problematizadora.
A pedagogia bancária opera a partir do banco de dados que só o edu-
cador se arroga o direito de possuir e decide repartir entre os educandos.
Mantém portanto a distinção entre professores e alunos e serve à dominação
de uns pelos outros. A pedagogia problematizadora parte da abordagem e
debate dos temas e pro­blemas por todos os adultos em pé de igualdade.
Supera a distinção entre educadores e educandos e serve o processo da li-
bertação de todos260.
A pedagogia problematizadora opera pela conscientização e pelo diálogo

190
que “é a essência da acção revolucio­nária”. Neste sentido, P. Freire descreve
a acção anti-dialógica como processo de conquista, de dividir para reinar,
de manipulação, de invasão cultural, e a acção dialógica como processo de
cooperação, de organização, de união, de síntese cultural261.
A educação, entendida como dimensão ligada às duas alternativas do
processo, pode assim entender-se ou como prática de dominação de uns
pelos outros, ou como prática de libertação de todos262.
Na mesma ordem de ideias, a pedagogia, concebida co­mo técnica-ci-
ência-filosofia da educação, pode corresponder ao actual sistema monta-
do e mantido pelos opressores – pedagogia dos opressores – ou a um sistema
que pode ser criado pelos oprimidos – pedagogia dos oprimidos – não para
eles mas deles e que esteja de acordo com as exigências que lhes impõe a
situação em que se encontram: uma pedagogia da revolução263.
Encontramos assim o caminho aberto para uma revolução de nature-
za pedagógica.

A “revolução pedagógica”

No grupo de diálogo, o analfabeto pode iniciar o seu processo de cons-


cientização pela praxis ou síntese de acção-reflexão, através da qual ele apro-
veita a actividade de aprender a ler e escrever para recuperar dos atrasos
e desvios, das servidões e alienações, ou, dito de outra maneira, para se
humanizar: a partir da detecção e utilização de palavras geradoras (ex. tijolo,
cultura, etc.), ele começa progressivamente a tornar-se consciente do mundo
em que vive (objecto), e do mundo consciente que é ele próprio (sujeito), e
do universo inter-subjectivo em que se encontra com os outros, e dos proces-
sos de comunicação que se estabelecem entre todos e através dos quais ele se
vai tornando capaz não só de ouvir e repetir as palavras dos outros, mas de
encontrar e dizer a sua própria palavra, no sentido de uma avaliação, um
juízo critico, uma opção, uma decisão, uma acção, uma intervenção264.
Assim, associando o acto de aprender a ler e escrever ao desenvolvimen-
to da sua consciência ou à sua consciência em desenvolvimento, torna-se não
objecto mas sujeito da sua alfabetização, aprendizagem e auto-educação,
emerge da massa das coisas como pessoa e começa a parti­cipar na vida da

191
comunidade não apenas como espectador mas como actor e co-autor da
história265.
Mais tarde e já integrado nos círculos de investi­gação temática ou nos
círculos de cultura, ele pas­sará a ser capaz de inventariar novos temas ge-
radores, elaborar projectos e programas de estudo sistemático e inter-disci-
plinar e progredir no processo normal da sua formação contínua e da sua
educação ao longo da vida266.
Finalmente, estes processos individuais serão enriquecidos, a cada
instante, pela inter-acção que ge­ra a educação comunitária.
Porque “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se edu-
ca a si mesmo: os homens se educam em comunhão”267.
Temos assim efectivada a revolução verdadeira ou “revolução pedagó-
gica”: revolução porque realmente muda tudo; pedagógica porque procura
atingir esse objectivo respeitando a dignidade, os direitos (e os deveres) e
o ritmo pessoal de cada ser humano.

5. Relação intergeracional: a caminho da “revolução


paradigmática”

A sequência das metamorfoses operadas a partir da década 50 no con-


ceito de formação contínua e da década 60 no conceito de alfabetização
funcional, tendo como pano de fundo o cenário da contestação e crise
que no mesmo período de tempo se abate sobre a educação escolar, acaba
por afectar a evolução do conceito de educação de adultos que, em fases
sucessivas, se apresenta como processo educacional:

– de tipo supletivo ou remediativo destinado a ultrapassar as situ-


ações de atrasos, desvios ou inibições;
– de tipo funcional orientado para procurar resposta às necessida-
des e aspirações da geração de adultos do presente;
0150 de tipo preventivo a acautelar já desde agora a educação de
adultos do futuro.

192
Educação de adultos de tipo supletivo

A partir da Conferência de Elseneur (1949), a educação de adultos co-


meça a desenvolver-se nos países escolarizados como processo destinado a
suprir e colmatar as falhas resultantes das deficiências da educação escolar
e/ou do atraso no acompanhamento da evolução acelerada do conheci-
mento nos tempos da guerra.
Trata-se ainda da educação de adultos na perspectiva estática de um
novo subsistema de educação que se vem acrescentar ao subsistema de
educação escolar já existente. Mas o processo, em termos de formação
contínua é rapidamente aceite, assimilado e posto em prática pela socie-
dade da época em diversas modalidades:

– formação contínua propriamente dita, que se processa dentro


ou fora das instituições e dos locais de trabalho;
– educação recorrente, que corresponde a períodos de formação
inseridos no tempo de trabalho e em variadíssimas formas: de
reciclagem e/ou actualização, de aquisição de novos conheci-
mentos e/ou de treino de novas técnicas, de tempos reservados à
investigação e/ou reflexão, de anos sabáticos, etc.;
– períodos de tempo de estudo dedicados a complemento de habi-
litações ou a novas etapas de formação;
0 reconversão profissional, cada vez mais reclamada no mundo de
hoje em mudança acelerada, que já não permite encarar o traba-
lho na perspectiva de um emprego para a vida toda.

Com a Conferência de Montreal (1960), a educação de adultos, na mo-


dalidade de alfabetização integra-se também no tipo supletivo ou reme-
diativo, para a grande massa das populações dos países menos desenvolvi-
dos e assim continua a ser compreendida nas subsequentes campanhas do
Programa Experimental Mundial de Alfabetização (PEMA) e no Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de 1966 a 1971268.

193
Educação de adultos de tipo funcional

Mas a rápida metamorfose do conceito de alfabetização funcional no


sentido cada vez mais abrangente, conduz a que, a partir da Declaração
de Persépolis (1975) e da Recomendação de Nairobi (1976), ele se estenda
a todos os adultos que sentem dificuldades em se movimentarem como
pessoas, ou seja como seres conscientes e livres nos diversos sistemas em
que se encontram inseridos e, deste modo, o próprio conceito de alfabeti-
zação funcional se torne coextensivo ao conceito de educação de adultos.
Toda a educação de adultos assume a dimensão funcional.
E a perspectiva estática da década anterior cede o lugar a esta perspecti-
va dinâmica que vai projectar-se e aprofundar-se até ao final do século XX,
através da Quarta Conferência Mundial de Educação de Adultos (Paris, 1985),
que privilegia o desenvolvimento do tema das aprendizagens no contexto
da educação permanente, e da Quinta Conferência Mundial de Educação de
Adultos (Hamburgo, 1997) que, já na transição do milénio, debate o tema
Aprender em Idade Adulta: uma Chave para o Século XXI269.
Entretanto, tomamos consciência de que o analfabetismo simples, no
sentido tradicional, corresponde à falta de iniciação ao código da lingua-
gem escrita ou alfabeto e que o analfabetismo funcional corresponde à
falta de iniciação aos múltiplos e diferentes códigos de comunicação que
prevalecem nos diferentes sistemas em que cada um de nós se insere.
E uma vez que existe uma infinidade destes códigos, o nível de anal-
fabetismo e de alfabetização funcional (ou de educação de adultos funcio-
nal) mede-se pelo volume de códigos em que nos encontramos ou não
inseridos.
Convenhamos que se revestiria do mais elevado interesse dispormos
de um instrumento que nos permitisse medir a taxa de analfabetismo
funcional que atingimos no conjunto das dimensões da nossa vida (física,
psicológica, social, intelectual, artística, moral, religiosa), em determina-
da fase da nossa existência.
Tratar-se-ia da avaliação global do nível de educação atingido em cada
momento por cada ser humano adulto, mas não consta que alguma vez
se tenha tentado de acordo com um critério objectivo, universalmente

194
aceite, nem parece de esperar que alguma vez isto possa vir a acontecer.
No entanto, neste campo e a nível micro, contamos com as experiên-
cias de avaliação da literacia realizadas desde a década de 70 em alguns
países, designadamente nos Estados Unidos da América270, no Canadá271
e na Europa272.
Trata-se de avaliar, numa determinada população, o grau de capaci-
dade da utilização das competências de leitura, escrita e cálculo, quer as
inicialmente adquiridas no âmbito das disciplinas, cursos e percursos das
diversas etapas da via escolar, quer as eventualmente recebidas através das
diversas actividades de educação de adultos, na interpretação de textos
escritos de informação (por exemplo, avisos, indicações sobre o tipo e po-
sologia dos medicamentos, instruções para a obtenção de um documento
ou a montagem de um electrodoméstico, etc.) em ordem à resolução dos
problemas do dia a dia.

“A literacia, assim entendida, como capacidade de uso daquelas com­


petências, quer na globalidade, quer em cada um dos seus diversos
níveis:
– nem corresponde necessariamente aos graus de escolaridade, de-
signadamente nos casos em que os conhecimentos nela ad­quiridos,
por insuficientes, mal assimilados e/ou pouco uti­lizados, não pro-
duziram, no todo ou em parte, o desenvolvimento esperado dessas
competências;
– nem equivale forçosamente aos graus de alfabetização fun­cional,
concretamente nos casos em que esta revela insufi­ciência ou atraso ou
qualquer outro tipo de disfunção rela­tivamente ao nível das exigências
da resolução dos problemas postos pelas comunidades e pelos ecossis-
temas envolventes;
– mas constitui um referencial característico, indicador do posiciona-
mento de cada pessoa relativamente àquelas duas vertentes, em cada
tempo e em cada lugar.

“Assim, o conceito de literacia, entendida como capacidade de pro­


cessamento da informação escrita na vida quotidiana (Canadá, 1991),

195
devendo ser utilizada com as devidas cautelas, porquanto,
– de entre as múltiplas aprendizagens da vida, privilegia uma aprendi-
zagem adquirida na escola;
– dentro desta e entre outros códigos de comunicação, consi­dera o
código de comunicação escrita;
– dentro deste, atende apenas à dimensão informativa (infor­mações,
mensagens, gráficos, etc.) presente em textos mo­nossémicos em prosa
(a situação tornar-se-ia muito mais com­plexa se houvesse recurso a
textos polissémicos da poesia e de outras dimensões da cultura);
porque tem a ver com a resolução dos problemas do dia-a-dia e apela
às competências de comunicação adquiridas no susbsistema escolar, o
mais difundido e desenvolvido do sistema educativo, reveste-se de um
poder heurístico extraordinário para a compreensão do nível educati-
vo das pessoas e das comunidades”273.

Nestas condições, a capacidade demonstrada na interpretação correcta


de uma gama de textos de dificuldade crescente, revela o nível de literacia
alcançado, em termos de percentagem, pela população avaliada.
Os resultados, quando se revelam menos satisfatórios (o que acontece
por vezes em percentagem elevada) e porque põem a nu a falta de fun-
cionalidade da educação recebida pelos adultos, vem suscitando ondas
de choque nos países que os realizaram, a ponto de se ter falado de “uma
nação em risco”274.
Por outro lado, esta simples experiência de micro-avaliação da edu-
cação de adultos de tipo funcional, levanta o problema da educação de
adultos de tipo preventivo.

Educação de adultos de tipo preventivo

A análise da relação estreita entre o subsistema tradicional da edu-


cação escolar e o novo subsistema da educação de adultos levanta ainda
o problema da política de educação em duas componentes essenciais: a
gestão do presente é feita pelos adultos e por isso há que atender à sua
formação; a prevenção do futuro tem a ver com as crianças, adolescentes e

196
jovens, e por isso há que assegurar a sua preparação.
Mas também esta é feita pelos adultos que, por sua vez, só poderão
desempenhar bem essa tarefa se previamente estiverem educados.
Assegurar a educação dos adultos de hoje equivale a assegurar a educação
dos adolescentes de hoje que, afinal, são também os adultos de amanhã.
No fim do Preâmbulo da Recomendação sobre o Desenvolvimento da
Educação de Adultos saída da Conferência Geral da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, Nairobi, 1976)
e relativamente à política a adoptar sobre a educação de adultos,

“a Conferência Geral recomenda aos Estados Membros


– que apliquem as disposições seguintes, adoptando, sob a forma de
lei nacional ou de qualquer outra forma, em conformidade com a
prática constitucional de cada Estado, medidas destinadas a pôr em
prática os princípios formulados na presente Recomendação
– que dêem conhecimento da presente Recomendação às autorida-
des, serviços ou organismos responsáveis pela educação de adultos, às
diversas organizações que exercem uma actividade educativa em be-
nefício dos adultos, bem como às organizações sindicais, associações,
empresas e outras partes interessadas
– que apresentem, nas datas e sob a forma que ela determinar, infor-
mações sobre a acção por eles desenvolvida para dar cumprimento à
presente Recomendação”275.

O grau de aplicação destas recomendações por parte dos diferentes


Estados nacionais, para além do diagnóstico que possa representar sobre
o actual efectivo funcionamento da “Família Humana”, apela para uma
reflexão sobre os problemas que dizem respeito ao presente e ao futuro
de todos nós.
Falando dos países “desenvolvidos” ou em “vias de desenvolvimento”,
continua a verificar-se um saldo negativo na estimulação do subsistema
de educação de adultos.
Ora a eficiência deste subsistema justifica-se hoje pelas exigências na-
cionais de pro­gresso cultural, justiça social e dinamismo económico e não

197
se compa­dece com o facto de os governos continuarem a gastar (quase)
todo o seu orçamento apenas com a educação escolar, situação que vem
gerando o fenómeno do elitismo educativo em moldes novos.
Ao contrário do elitismo tradicional, de natureza sócio-económica, o
elitismo moderno apresenta-se como um elitismo de gerações: enquanto
as crianças e jovens de hoje dispõem normalmente de todas as vantagens
para se instruírem (escolas, tempo livre para as frequentarem, corpo do-
cente especialmente preparado, métodos modernos de ensino e aprendi-
zagem, material didáctico apropriado, meios audiovisuais e equipamen-
tos informáticos, etc.), os adultos de nada disso dispuseram no passado,
de nada ou de pouco dispõem no presente e, com o rodar do tempo,
encontram-se cada vez mais ultra­passados e marginalizados.
Mas a gravidade da questão situa-se no facto de que sem educação de
adultos, nunca será possível existir verdadeira educação de adolescentes.
A educação de adultos do presente envolve também a dimensão preven-
tiva da educação dos adultos do futuro que são as crianças, adolescentes e
jovens de hoje.
Nesta situação, importa encontrar resposta cabal para perguntas
difíceis:

– a pergunta de natureza política: será possível assegurar minima-


mente o desenvolvimento integrado da comunidade, uma vez que
os responsáveis de hoje pela produção, pelo funcionamento das
institui­ções sociais, pela defesa dos valores da civilização e da
cultura são exactamente os adultos?
– a pergunta dos professores dos diversos níveis do subsistema esco-
lar: será possível assegurar o êxito da educação dos nossos alunos
sem assegurar previamente o processo da educação dos adultos
da família e da comunidade dentro das quais eles vivem?
– a pergunta dos pais “responsáveis da educação” ou equiparados
(nem sempre conscientemente formulada): será possível à geração
mais antiga desempenhar a sua função de ajudar a geração mais
nova a orientar-se na vida, quando os pais (ou substitutos), cons-
cientes de que os filhos é que estudam e sabem enquanto eles

198
próprios continuam menos instruídos ou até analfabetos e se de-
batem, por isso, com insuperáveis complexos de inferioridade?
– a pergunta de nós todos: e “ao esquecermos a educação dos adul-
tos de hoje e não acautelarmos, assim, o êxito da educação das
crianças e dos jovens, não estamos também a comprometer, ir-
remediavelmente, a educação dos adultos de amanhã?276

A questão é demasiadamente grave para não fazer estremecer a nossa


consciência de membros da Família Humana.
A “revolução pedagógica” protagonizada pela emergência da “educa-
ção de adultos” nasce na sua dimensão remediativa, cresce na sua dimen-
são funcional e culmina na sua dimensão preventiva.
Somos assim introduzidos na parte central deste livro que vai passar
a abordar as experiências, convicções e valores que põem em relevo a
continuidade existente entre a educação dos adolescentes e a educação dos
adultos, dentro do novo paradigma da educação ao longo da vida.

199

Capítulo VI

Educação ao Longo da Vida: o desenvolvimento de cada ser


humano

Compreendemos hoje, com facilidade, que ao longo do século XX


houve duas grandes revoluções em educação, ambas caracterizadas pelo
esforço em demarcar novos territórios educativos e, nessa medida, ambas
polarizadas pela oposição ao monopólio do paradigma escolar: a educação
de infância e a educação de adultos.
Acontece que pela dificuldade, dureza e duração desse confronto, ain-
da hoje nos encontramos longe de as poder considerar vitoriosas.
A primeira aparece desvitalizada desde o início pela designação que a
tornou mais conhecida: “escola nova” em vez de educação nova. Assim,
ao longo do século, e sem falar já da “confiscação” de que foi objecto por
parte dos regimes políticos autoritários nas décadas 30 e 40, vai ser recu-
perada pelo subsistema escolar e reduzida a um movimento importante,
mas não mais do que isso, da sua franja inferior e anterior: a educação
pré-escolar.
A segunda abre o novo campo da educação de adultos mas tende a ser
reabsorvida pela força de recuperação do mesmo subsistema escolar, na
medida em que ele vai procurar reduzir a educação de adultos à sua outra
franja, posterior e exterior, a considerá-la só marginalmente, nas dimen-
sões de “educação recorrente” e de “formação profissional contínua” e a
deixá-la na sombra, em relação às dimensões mais relevantes e significati-
vas, como educação extra-escolar.

201
Por outro lado, já nas décadas 60-70 a partir do movimento genera-
lizado da “contestação escolar” e depois de 1989 na sequência da meta-
morfose da “educação de infância” em “educação da adolescência”, co-
meçámos a compreender que o futuro acabaria por avançar exactamente
na direcção contrária: o desmembramento do subsistema de educação
escolar em duas partes; a distribuição dessas duas partes pelos subsistemas
de educação de adolescentes e de educação de adultos; a sequenciação dos
dois no único processo de educação permanente ou educação ao longo da
vida de cada ser humano e a emergência deste conceito como expressão
do novo paradigma.

É tempo de tomarmos consciência:

– da emergência desta (r)evolução;


– do seu sentido e alcance, designadamente no que respeita à
divisão do processo educativo nas duas fases de educação de ado-
lescentes e educação de adultos;
– da urgência de aceitarmos as suas consequências na reestrutura-
ção quer da educação de adolescentes fulcrada na família e só por
extensão na escola, quer da educação de adultos em toda a res-
tante duração da existência e alimentada a partir do seu centro
e motor que é a universidade;
– de encararmos o futuro da educação nos termos do novo para-
digma da educação ao longo da vida.

Assim, no presente capítulo, passamos a analisar o novo conceito no


que se refere à sua emergência, à definição e delimitação das suas duas
fases, à caracterização e funcionalidade de cada uma delas e ainda ao seu
sentido de processo de desenvolvimento pessoal de cada ser humano.

1. Emergência do novo conceito de educação ao longo da vida

Generalizando e no que respeita ao período inicial, poderíamos dizer


que:

202
– até aos anos 50, sem pôr em causa a educação de infância emer-
gente, a educação entende-se, correntemente, como preparação
para a vida nas dimensões da educação escolar;
– nos anos 50, começa a estruturar-se, ao lado do campo escolar
tradicional, o novo campo da educação de adultos;
– nos anos 60, os dois campos dispõem-se como duas partes
de um todo, em termos de dois subsistemas do único sistema
educativo;
– nos anos 70, a educação escolar e a educação de adultos organi-
zam-se como duas fases de um único processo, que abarca toda a
existência de cada ser humano e, por isso mesmo, passa a desig-
nar-se educação permanente ou educação ao longo da vida277.

Até 1950: a educação (escolar) como processo de preparação para


a vida

Devido a um fenómeno de afunilamento mental, provocado pelo ra-


cionalismo dominante nos últimos séculos, precisamente aqueles em que
o subsistema escolar se estruturou e desenvolveu tal como ainda hoje o
conhecemos, o conceito de educação é compreendido, em meados do
século XX, como circunscrevendo-se à fase dita escolar da vida humana.
Parte-se do pressuposto de que a existência humana se encontra frac-
cionada em dois períodos: o período da educação, ou formação, ou pre-
paração para a vida, e o período da vida (adulta) em que as pessoas se
consideram preparadas, formadas, educadas.
O ritmo lento da evolução socioeconómica e cultural permitia des-
cansar nesta separação das duas fases da vida em compartimentos estan-
ques, segundo a qual quem se preparou na primeira se encontrava conve-
nientemente equipado para todo o tempo da segunda.
Nesta perspectiva, o conceito de educação tinha aplicação apenas na
primeira fase, a da “preparação”. Na segunda fase, a da “vida”, verifica-
vam-se ainda acções de carácter educativo mas, fora do âmbito da inves-
tigação científica que constituía acaso o embrião em desenvolvimento
da futura educação de adultos, essas acções apresentavam-se mais como

203
manifestações de carácter cultural que atingiam, em sentido e medida
muito diferentes, as diversas camadas populares.
Os delegados franceses à Conferência de Elseneur (1949) informam a
assembleia de que, no seu país, não se fala de “educação de adultos” mas
de “educação (ou cultura) popular”. Defendem mesmo ser esta a expres-
são mais correcta278. E a expressão “educação popular” aparece, de facto,
nalguns subtítulos do respectivo Relatório279, embora, no fim, acabe por
ceder todo o espaço à “educação de adultos”.

Década 50: a educação de adultos como “novo sector” da educação

Neste contexto histórico, a Primeira Conferência Internacional


(Elseneur, 1949) funciona como a força catalizadora da convergência e
conjugação de ideias, tendências, aspirações e esforços que geram o clima
em que vai ganhar rapidamente consistência o conceito e a realidade do
novo sector educativo: a educação de adultos.
Todos os participantes reconhecem que a necessidade da educação
de adultos vem sendo sentida pela população dos seus países280 e que,
por isso mesmo, “não se poderia falar de ‘países de educação de base’ e
de países de educação de adultos’, mas que estes dois aspectos da educação
popular” apresentam diferenças mais de grau que de natureza281.
Os participantes divergem sobre se a educação de adultos nasceu nos
meios operários ou em ligação com o movimento rural282, põem em con-
fronto as diferentes maneiras como, nos seus países, ela é entendida283,
mas convergem todos no reconhecimento da existência incontrovertível
deste novo campo de educação e na definição da sua tarefa: “satisfazer as
necessidades e aspirações do adulto em toda a sua diversidade”284.
Dentro deste conceito global e abrangente que irá permanecer no fu-
turo, situam as tarefas que no momento consideram mais significativas:
promover “a formação económica, social e política dos adultos”, “a partir
das suas actividades de todos os dias e das suas preocupações fundamen-
tais” e através das instituições responsáveis “ (sindicatos, coope­rativas,
grupos culturais, etc.)”; “favorecer o desenvolvimento de uma atitude de
espírito científico” pondo em evidência “a repercussão social das ciên-

204
cias”285; fomentar a experiência artística em qualquer das suas dimen-
sões286, as actividades recreativas287 e, nos países menos desenvolvidos, a
instrução elementar288.
Considera-se “importante distinguir a educação de adultos da for-
mação profissional”, o que revela existir tendência para as confundir no
mundo ocidental cujos quadros tinham sido desfalcados pela guerra.
Reconhece-se depois que “a formação profissional dos adultos põe
uma série de problemas que se ligam directamente à educação de adul-
tos”, tendo em conta a necessidade de qualificação para o trabalho sentida
por todos e o facto de muitos se tornarem adultos sem preparação para as
tarefas que acabam por exercer, ou se adaptarem mal à profissão, ou se ve-
rem forçados, mais cedo ou mais tarde, a uma reconversão profissional.
A educação de adultos, no sentido emergente de formação contínua,
deve proporcionar este complemento de educação em diversos planos:
orientação profissional, formação profissional e cursos de aperfeiçoamento, le-
vando assim os adultos a encarar a sua profissão como meio de cultura289.
Aparece deste modo e suficientemente delineado, a par do sistema
educativo tradicional das crianças e dos jovens, o novo campo de educa-
ção dos adultos que se propõe:

– encontrar uma resposta às necessidades e aspirações dos adul-


tos, de acordo com as condições de vida de cada comunidade
concreta;
– adoptar para isso os métodos e técnicas mais adequados, desde
os tradicionais – do ensino à investigação – até aos mais moder-
nos, das novas técnicas áudio-visuais aos meios de comunicação
de massas e à exploração efectiva e intensiva de outros recursos
culturais, bibliotecas, museus, etc.;
– recorrer à iniciativa privada, à acção coordenadora do Estado, à
cooperação internacional;
– contribuir para o desenvolvimento económico, social, político
e cultural dos povos e para a paz mundial.

Os anos 50 procuram pôr em prática este programa e a educação de

205
adultos vai assumindo cada vez maiores proporções: aparece como substituto
de educação para muitos e suplemento de educação para todos; conduz a uma
progressiva tomada de consciência das responsabilidades que incumbem aos
formadores de adultos, aos cultores das ciências sociais, às universidades e
institutos de investigação, aos Estados no referente à atribuição das verbas
necessárias, à colaboração internacional, à liderança por parte da Unesco.
Mas, sobretudo, e como reconhecerá A. Basdevant, Secretário Geral
da Segunda Conferência Internacional, no prefácio do respectivo Relatório,
“desde a Conferência de Elseneur, o conceito de educação de adultos so-
freu um alargamento apreciável”290.
Vejamos em que sentido.

Década 60: a educação de adultos como “a outra parte” do siste-


ma educativo

A Segunda Conferência Mundial (Montreal, 1960) reivindica para a


educação de adultos que seja considerada, em pé de igualdade com a edu-
cação escolar tradicional, uma parte, a outra parte, do sistema edu­cativo.
Já na Introdução do Relatório, A. Basdevant afirma que, ao longo da
década 50, se tornou claro que a educação deve, para além da idade esco-
lar, atingir a vida toda291.
A Terceira Comissão adopta, como primeira resolução, requerer aos
Governos que considerem a educação de adultos não como um apêndice,
mas como parte integrante do sistema de educação.
Propõe mesmo que seja declarado “princípio fundamental desta
Conferência que a educação de adultos é uma parte integrante e orgânica de
cada sistema nacional de educação”, com todas as suas consequências292.
De facto, a Conferência, na Declaração Final, propõe que todos os
povos considerem a educação de adultos como uma parte normal e os
Governos a tratem como parte necessária dos seus sistemas educativos293.
E em consonância com os objectivos da Unesco que visam a Paz
Mundial permanentemente ameaçada pelos desequilíbrios regionais,
atribui “a mais alta prioridade ao desenvolvimento económico, particu-
larmente nos países subdesenvolvidos”, o que a leva ainda a propor que

206
a educação de adultos seja tratada como uma parte do desenvolvimento
económico e do desenvolvimento em geral, a decidir avançar para um pla-
neamento integrado294, a atribuir a prioridade máxima à alfabetização, a
canalizar para ela todo o esforço da solidariedade internacional e a procla-
mar a sua fé no êxito próximo destas iniciativas295.
Conhecemos hoje o permanente fracasso deste projecto, os fracos re-
sultados das muitas Conferências Regionais promovidas pela Unesco no
início dos anos 60296 e a reorientação que irá estabelecer-se, dentro do
novo conceito de alfabetização funcional, em Teerão (1965).
Mas, por outro lado, verifica-se que a educação de adultos, para além
de exigir ser considerada parte do sistema educativo, começa a influenciar
a outra parte, a educação escolar, precisamente na altura em que esta co-
meça também a ser mais vivamente posta em causa.
Com efeito, a contestação ao subsistema escolar atinge dimen­sões à
escala mundial na década 60.
A mutação quantitativa que ele vinha sofrendo, através das reformas
lançadas nas duas décadas anteriores, orienta-se agora para o fracasso por
três razões essenciais: os Estados sentem-se incapazes de aguentar o esfor-
ço financeiro requerido para manter as taxas de crescimento da educação;
o ritmo acelerado da evolução da civilização e da cultura não é acom-
panhado pela instituição escolar que, por isso mesmo, aparece cada vez
mais desfasada da realidade; o “pro­duto” da escola, o aluno, sente-se con-
sequentemente cada vez mais rejeitado pela sociedade, e entra em estado
de revolta contra a instituição que o (não) formou297.
O decénio caracteriza-se pela contestação generalizada a exigir mu-
danças estruturais ou mesmo a erradicação da Escola298.
É o período dos grandes movimentos de massas nas Universidades de
todo o mundo, da crise de Maio de 1968 em França, da erupção das con-
traculturas, das discussões entre os responsáveis que se irão fazer sentir na
Terceira Conferência Internacional de Tóquio299.
São também os anos da tomada de consciência do Choque do Futuro300.
A Escola terá de mudar, sob a ameaça de desaparecer.
A transformação quantitativa terá de dar lugar a uma transformação
qualitativa.

207
Mas qual será a força capaz de marcar o rumo positivo dessa
transformação?
Hoje e à luz da análise que é possível fazer, a resposta é clara: é o elã
da educação de adultos que começa a revelar-se capaz de insuflar novo
espírito à instituição escolar, designadamente no que diz respeito a: to-
mar consciência da nova situação do mundo; sair da sua torre de marfim
(metáfora válida sobretudo para a universidade) e tornar-se sensível às
necessidades e aspirações do seu contexto social; reformular os seus objec-
tivos, no sentido de ministrar uma “educação funcional”, ao serviço do
desenvolvimento da comunidade de que também ela faz parte; adoptar
os métodos mais adequados, sobretudo no que diz respeito à relação peda-
gógica; utilizar as técnicas mais eficientes, audiovisuais, mass media, etc.;
descobrir o tipo de organização mais apropriado; encarar a necessidade de
proceder a uma avaliação global e permanente.

Década 70: a educação de adultos como “a outra fase” do proces-


so da educação ao longo da vida

A partir da Terceira Conferência Internacional (Tóquio, 1972), a ten-


são dialéctica entre educação escolar e educação de adultos entra num
processo de síntese integradora. Porque a fronteira que as separa não é
propriamente da ordem do espaço mas da ordem do tempo, as duas co-
meçam a ser compreendidas cada vez menos como partes de um todo e
cada vez mais como fases de um processo.
O Plenário da Conferência, ao abordar o “Ponto 6 da ordem do dia” so-
bre o tema “principais tendências da educação dos adultos ao longo do últi-
mo decénio (análise e problemas maiores)”, começa por reconhecer que

“na época da Conferência de Montreal existiam na prática em


numerosos países, dois sistemas paralelos de educação: o sistema
de educação regular por uma parte e a educação de adultos por
outra; depois de 1960, produziu-se uma integração progressiva
dos dois sistemas; frequentemente os laços entre os dois são muito
estreitos; assim, a educação de adultos é chamada a resolver certos

208
problemas relativos à juventude, tais como os do abandono dos
cursos e do desemprego à saída da escola”301.

Em consequência, rejeitam-se soluções extremistas acerca de cada um


dos dois tipos de educação: “desescolarizar” não pode significar a inten­
ção de destruir a escola e a universidade porquanto elas, com todos os
seus defeitos, estão na origem da civilização e da cultura de hoje; o que
importa não é destruí-las “mas reforçá-las de modo a fazê-las reentrar
num sistema mais completo em que a sua acção se encontrará prolongada
e alargada”302; por outro lado e até porque os seus métodos, materiais de
ensino, etc., são diferentes, deverá procurar-se que a educação de adultos
não se deixe absorver pelo sistema escolar303, que ultra­passe a sua era arte-
sanal304 e “seja reconhecida como compo­nente específica e indispensável”305
e mesmo como sector essen­cial da educação306.
Exige-se a igualdade de tratamento: “a distribuição dos recursos entre a
educação de adultos e o ensino escolar é uma tendência que se generali-
za”; “os planificadores deverão ter em conta as necessidades espe­cíficas da
educação de adultos quando planificam a criação de escolas ou de outros
estabelecimentos de ensino”307.
Sublinham-se aspectos de complementaridade e colaboração entre as duas
fases: a educação escolar deverá ter em conta o contexto em que se insere,
família, comunidade, meio ambiente, sobretudo o nível educativo dos pais
cuja educação “é uma função impor­tante da educação de adultos”308; a edu-
cação de adultos procurará soluções para a educação extra-escolar dos jovens
que não tiveram acesso à escola ou a abandonaram antes do tempo309.
Insiste-se na função estimuladora recíproca: “ a escola deve preparar
para a educação ao longo da vida; ela não deve constituir um fim em si”310
e, “neste sentido, os docentes de todos os níveis devem ser capazes de
realizar a função de educadores de adultos”311; por sua vez, “a educação
de adultos pode em realidade contribuir largamente para a reforma do
sistema escolar”312.
Regista-se a integração das duas num processo único: “a educação deve
ser concebida como um processo contínuo que interessa a todos os grupos
de idade”, em que a educação de adultos “não representa mais que uma

209
etapa deste processo contínuo”313; “a educação é um processo permanente; a
educação dos adultos e a das crianças e adolescentes são inseparáveis”314;
Finalmente reconhece-se que esta integração se verifica no processo de
educação ao longo da vida: “a educação dos adultos tem doravante o seu
lugar reconhecido no quadro geral da educação”; “o público está cada vez
mais consciente da importância da educação de adultos e cada vez mais
aberto ao conceito de educação ao longo da vida”315; por outro lado e ao
contrário da educação escolar que, em muitos países, é um sistema fecha-
do no tempo e no espaço, a educação ao longo da vida implica a abertura
no espaço (todos os lugares em que o homem vive) e a continuidade no
tempo (todas as fases da sua existência)316.

2. Educação ao longo da vida: transição, definição e fases

Jean Thomas, Director Geral Adjunto que na Conferência de


Montreal (1960) tinha representado o Director Geral impedido de assis-
tir (Final Report, p. 5), ao referir-se em 1975 à educação ao longo da vida,
faz notar que, na década 60, ela era um conceito ainda difuso, um mero
horizonte, uma “perspectiva de educação”, “um estado de espírito”, um
“princípio sobre o qual se funda a organização global de um sistema e
consequentemente a elaboração de cada uma das suas partes”317.
De facto e como acabámos de ver, o novo conceito, quer pela resistên-
cia encontrada na educação escolar ao longo do tempo (três décadas, de
50 a 70), quer pela complexidade resultante da sua emergência no espaço
(à escala mundial), foi sendo assimilado de maneira muito lenta.
Por outro lado, essa mesma lentidão vai proporcionar condições para
o amadurecimento de um conjunto extremamente rico de novas experi-
ências, crenças e valores, no que respeita à relação entre ensino e educa-
ção: a centralidade do processo desloca-se do ensino para a aprendizagem
e, a seguir, da aprendizagem para a educação. Este amadurecimento, lade-
ando e ultrapassando as resistências da educação escolar, vai propiciar a
eclosão, agora rápida, nas décadas 70 e 80, daquilo que, nos termos de T.
Khün, se poderá considerar um novo paradigma da educação.
Acompanhemos as etapas desta metamorfose, designadamente no

210
que diz respeito à maneira de abordar o processo educativo, à sua funda-
mentação e conceptualização e ao momento histórico de clarificação das
suas duas fases.

“Processo global e contínuo” (Conferência Mundial de Tóquio,


1972)

Os representantes dos 87 Estados presentes na Conferência


Internacional de Tóquio (1972) retomam a problemática da educação
de adultos a partir de duas evidências: a crise da educação escolar e o
progresso da educação de adultos. O Director-Geral da Unesco, René
Maheu, avança mais um passo e fala da inversão do relacionamento entre
essas duas fases do sistema educativo, na medida em que já não é a edu-
cação de adultos que procura apoio na educação escolar, mas a educação
escolar que apela para a ajuda da educação de adultos318.
Tal novidade não depende apenas do fracasso da educação escolar mas
também do progresso da educação de adultos que, a partir do aprofunda-
mento do conceito de alfabetização, passou a entender-se como funcional,
em função do desenvolvimento integrado e em função do desenvolvimento do
próprio ser humano.
No entanto, dentro deste processo contínuo que começa a ser desig-
nado educação ao longo da vida, também, como vimos acima, “seria um
erro insistir demais sobre o carácter distinto da educação de adultos”; a
educação de adultos «não representa mais que uma etapa deste processo
contínuo”, e só porque a educação de adultos tem merecido tradicional-
mente menos atenção que as outras etapas de educação, e só “en­quanto
este desequilíbrio persistir, é que a educação de adultos deverá ser objecto
de um tratamento especial”319.
Por outras palavras, é preciso tomar consciência de estar a desvanecer-
se a centralidade da educação escolar sem correr o perigo de a educação
de adultos pretender ocupar esse lugar: mais que falar de educação de in-
fância, de educação escolar e de educação de adultos, haverá que falar de
educação ao longo da vida e, no limite, pura e simplesmente de educação.

211
“É preciso não somente que a educação se dirija a todos os grupos de
idade, mas também que ela se evada dos quatro muros da escola tradicional e
que penetre na sociedade, a fim de que todos os lugares onde as pessoas se reú-
nem, trabalham, se alimentam ou se distraem, se transformem num meio
educativo potencial. É por isso que, nos anos que se aproximam, será cada
vez mais necessário identificar e encorajar formas de educação paralela que
fazem parte integrante da vida quotidiana”320.

Neste sentido e em várias recomendações, a Conferência apela para a


Unesco, as universidades e todos os responsáveis, a fim de que intensifi-
quem a investigação em tudo o que diz respeito aos “novos sistemas inte-
grados de educação”, que “articulem os diversos sub-sistemas:

– ensino escolar, formação, educação complementar, orientação


profissional, ensino rural, etc.”,
– e que tenham em conta, simultaneamente, “as condições especí­
ficas de cada país”, “o seu contexto cultural e as necessidades do
seu desenvolvimento económico e social”321.

”Noção fundamental” (Relatório da UNESCO, 1972)

A Comissão Internacional para o Desenvolvimento da Educação, criada


pela Unesco no início de 1971, constituída por seis representantes das
diversas regiões do Planeta e presidida por Edgar Faure, publicou o seu
Relatório em 1972, com o título Aprender a Ser.
Na Apresentação, o Presidente refere os quatro postulados subjacentes a
todo o trabalho da Comissão:

“O primeiro, que constitui a própria justificação da tarefa em-


preendida, é o da existência duma comunidade internacional
[…].
O segundo é a crença na democracia concebida como o direito
de cada homem se realizar plenamente […].
O terceiro […] o desenvolvimento que tem por objectivo a ex-

212
pansão integral do homem em toda a sua riqueza e na complexi-
dade das suas expressões e compromissos […].
O nosso último postulado é o de que a educação, para formar
este homem completo […] terá de ser global e permanente. Trata-
se de não mais adquirir, de maneira exacta, conhecimentos de-
finitivos, mas de se preparar para elaborar, ao longo de toda a
vida, um saber em constante evolução e de ‘aprender a ser’ ”322

No Preâmbulo acrescenta que, a partir destes postulados,

“a Comissão dedicou todo o interesse a duas noções fundamen-


tais: a educação permanente e a cidade educativa. Se os estudos
não podem mais constituir um “todo” definitivo, que se distri-
bui e se recebe antes da entrada na vida adulta, qualquer que
seja o nível da bagagem intelectual e a idade desta entrada, é
então preciso reconsiderar os sistemas de ensino no seu conjun-
to e mesmo na sua concepção. Se o que é necessário aprender é
a reinventar e a renovar constantemente, então o ensino torna-se
educação e, cada vez mais, aprendizagem. Se aprender é acção de
toda uma vida, tanto na sua duração como na sua diversida-
de, assim como de toda uma sociedade, no que concerne quer
às suas fontes educativas, quer às sociais e económi­cas, então
é preciso ir ainda mais além na revisão necessária dos “sistemas
educativos” e pensar na criação duma cidade educativa. Esta é a
verdadeira dimensão do desafio educativo do futuro”323.

Ensaio de faseamento (Fundação Europeia da Cultura, 1975)

O livro L’éducation crèatrice, em “resultado de um processo original que


se desenvolveu ao nível da Europa inteira, de 1968 a 1975, na forma de
“prospectiva voluntariamente europeia fundada sobre a democracia e o va-
lor da pessoa humana”, apresenta o que denomina “Plano Europeu 2000”
e que, mais que um “plano no sentido técnico”, constitui um “projecto”,
“uma visão de futuro que se apresenta como uma política a longo termo”.

213
Depois de escolher um entre “quatro tipos prospectivos (ou “mode-
los”) de sistemas sociais, prevê o faseamento do processo de educação ao
longo da vida em três períodos.

1.Período da obrigação da educação. Na “escola formal”. Desti­nado


ao “desenvolvimento e realização máxima das capacidades dos
indivíduos”. Objectivo: “aprender a aprender”. Até aos 15-16
anos.
2.Período de transição, ainda obrigatório, destinado à aquisição
de uma técnica que permita o exercício de uma profissão em
ordem a ocupar um lugar no mundo do trabalho. Através de
uma “fórmula de alternância do trabalho e estudo”. “Abertura
da educação não apenas sobre a vida, mas à acção educativa da
vida mesma”. Dos 15-16 aos 18-19 anos.
3.Período do direito à educação. Na universidade totalmente
re­fundida, pois “este sector terá passado de uma organiza-
ção estrutural como é a do ensino superior actual, para uma
orga­nização funcional”. Destinado à especialização e educação
permanente324.

A definição (“Recomendação” de Nairobi, 1976)

Para além da definição de educação de adultos que transcrevemos aci-


ma, o texto de Nairobi acrescenta que a educação de adultos constitui um
conjunto integrado num “projecto global de educação ao longo da vida”.
Passamos a citá-lo, assumindo a responsabilidade de o apresentar de
forma estriada e de sublinhar as palavras que consideramos de interesse
para a sua melhor compreensão.

“A educação de adultos não pode, contudo, ser considerada como


uma entidade em si mesma; trata-se de um subconjunto integrado
num projecto global de educação ao longo da vida;
– a expressão ‘educação ao longo da vida’ designa, por sua vez, um
projecto global que visa não só reestruturar o sistema educativo

214
existente, mas também desenvolver todo o potencial de formação
fora do sistema educativo;
– num tal projecto, o homem é o agente da sua própria educa-
ção através da interacção permanente da sua reflexão e das suas
acções;
– a educação e instrução, longe de se limitar ao período da escola-
ridade, deve prolongar-se por toda a vida, abarcar todos os domí-
nios do saber e conhecimentos práticos, utilizar todos os meios
possíveis e possibilitar a todo o indivíduo um desenvolvimento
pleno da sua personalidade;
– os processos educativos e de aprendizagem nos quais estão in-
tegrados ao longo da vida, as crianças, os jovens e os adultos, seja
sob que forma for, devem ser considerados como um todo”325.

Verificamos, assim, que

– à dificuldade sentida para definir a educação de adultos na


Conferência de Elseneur (1949) sucede, cerca de 30 anos depois,
na Reunião de Nairobi (1976), esta clarificação da definição da
educação de adultos no contexto da educação ao longo da vida e
da educação pura e simples;
– ao crepúsculo de confusões, contestações e crises do subsiste-
ma da educação escolar, na segunda metade do século, segue-se
agora o anúncio de uma aurora clarificadora da educação em
dimensões mais vastas;
– à sinuosa emergência do conceito de educação ao longo da vida,
segue-se agora a transformação do próprio conceito de educação
em geral e de tudo o que tem a ver com ela – objectivos, conte-
údos, métodos, técnicas, organização, gestão, avaliação – tudo,
no fim de contas, que tem a ver com as novas experiências, con-
vicções e práticas que andam a fazer emergir o novo paradigma.
Ao longo desta evolução que irá prosseguir na última parte do sé-
culo XX, com os marcos miliários de outras Conferências Mundiais de
Educação de Adultos (Paris, 1985, a insistir no tema das aprendizagens e

215
Hamburgo, 1997, que irá intitular-se “Aprender em Idade Adulta: Uma
chave para o século XXI”), a educação passa a entender-se como proces-
so que afecta a existência de cada indivíduo e implica a continui­dade
no tempo (todas as fases da vida: infância, adolescência, juventude, vida
adulta, terceira idade) e a abertura no espaço (todos os lugares em que
o homem vive, convive, trabalha e se diverte). O seu objectivo já não
consistirá em preparar a criança ou jovem para a vida mas em estimular
o processo da vida mesma, em ordem a que a pessoa, como agente da sua
própria educação, concretize o seu projecto de existência visando a sua re-
alização pessoal em comunhão com todos os outros membros da Família
Humana e dentro dos condicio­nalismos do respectivo ecossistema.

As duas fases do processo (Convenção sobre os Direitos da


Criança, 1989)

Mas é com a adopção, por consenso, da Convenção sobre os Direitos da


Criança, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de Novembro de
1989, já apresentada no capítulo anterior, e a partir da definição de criança,

“Art. 1º. Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser hu-
mano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicá-
vel, atingir a maioridade mais cedo”326,

que assistimos ao ponto de viragem decisivo no estabelecimento do


conceito de educação ao longo da vida e das suas duas fases: educação de
adolescentes (que crescem) e educação de adultos (crescidos).
As razões do seu enorme potencial inovador podem resumir-se nos
três planos que a seguir se enumeram.
No plano da Antropologia, da Ética, da Moral e do Direito, a Convenção
sobre os Direitos da Criança (1989), ao inscrever-se na plena continuidade
com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), prova que, nas
quatro décadas que separam os dois documentos, para além de todos os
desentendimentos, incompreensões, conflitos e guerras que tudo bara-
lham à superfície, os Povos da Terra continuam a encontrar-se de acordo

216
no que diz respeito ao advento do mundo dos valores da dignidade huma-
na, vida, segurança, verdade, justiça, beleza, felicidade, paz, e ao facto de
que esse mundo

– constitui a sua “mais alta aspiração”,


– impõe à sua fé-compromisso com ele a procura de uma “con-
cepção comum”,
– representa o “ideal comum” a atingir pelo “ensino e educação”.

No plano da política da educação, o facto de, na Cimeira Mundial para


as Crianças, reunida na sede da ONU em 29 e 30 de Setembro de 1990 e
considerada “a maior reunião de dirigentes da história até então”, os dois
textos dela emanados terem sido aprovados por unanimidade e “poste-
riormente subscritos por 181 Estados, 155 dos quais puseram em prática
programas nacionais de acção”, constitui a prova insofismável de existir,
sobre este ponto, o consenso político à escala planetária, tão inesperado
quanto raríssimo, senão único, na História da Família Humana.
Já no plano do “curriculum”educacional, após a emergência do concei-
to de educação ao longo da vida desde meados do século XX e mantendo,
ao nível micro, a clivagem tradicionalmente estabelecida entre primeira e
segunda infância, adolescência e juventude, verifica-se que a consciência
mundial passa a adoptar, ao nível macro, a divisão correspondente às duas
grandes fases da existência humana: educação de infância ou de adolescen-
tes e educação de adultos.
Impõe-se, por isso, passarmos a abordar cada uma delas, primeiro se-
paradamente atendendo à respectiva especificidade, e depois na sua con-
tinuidade dentro do conceito de educação ao longo da vida.

3. Fase da Educação de Adolescentes (0-18 anos): a família e a escola

Tardamos em tomar plena consciência de que a Convenção sobre os


Direitos da Criança (1989) criou uma situação nova no mundo da educação.
De facto, invocando no seu Preâmbulo os documentos de alcance
universal produzidos ao longo do século XX, a Convenção

217
– reconhece implicitamente que durante milénios, prevaleceu a
tendência para relegar as crianças para a categoria de coisas;
– proclama que a criança, como ser vivo e como “membro da
família humana” e “sem qualquer descriminação” (Artº 2º, 1),
é portadora da dignidade de pessoa humana e que, “por motivo
da sua falta de maturidade física e mental tem necessidade de
protecção e cuidados especiais” e, nos casos em que viva “em
condições particularmente difíceis” (Preâmbulo), carece de uma
atenção mais especial ainda;
– acrescenta que esta situação se refere a todo o período de meno-
ridade (0-18 anos), a decorrer dentro da “família como elemen-
to fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento
e bem estar de todos os seus membros e em particular das crian-
ças”, e que nele “a criança deve ser plenamente preparada para
uma vida independente na sociedade e ser educada” no espírito
dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas, designa-
damente no espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade,
igualdade e solidariedade, numa palavra, de todos os valores.

Deparamos assim com o que poderíamos designar tópicos do “de-


senvolvimento curricular” da educação de adolescentes e que passamos a
abordar desenvolvidamente, por esta ordem: tempo, lugar, conceito, meto-
dologia e critério de avaliação.

O tempo: da menoridade à maioridade

A Convenção sobre os Direitos da Criança parte de uma situação con-


creta da Família Humana que é a divisão dos seus membros em adoles-
centes e adultos.
A divisão é apresentada desde o início em termos de maioridade/me-
noridade: “criança é todo o ser humano menor de 18 anos de idade, sal-
vo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais
cedo” (Art.º 1º).
Mas também desde o início, o documento aborda os fundamentos

218
daquela divisão em termos de maturidade/imaturidade, ao afirmar que os
membros menores de 18 anos, as crianças ou adolescentes “por motivo da
sua falta de maturidade física e mental têm necessidade de “protecção e
cuidados especiais” (Preâmbulo).
Finalmente e ao longo do texto, relativamente a todas as situações,
com destaque para aquelas em que as crianças “vivem em condições parti-
cularmente difíceis”, mais ou menos explicitamente, o tema é ainda abor-
dado em termos de autonomia/heteronomia, sempre que se apela para as
decisões a serem tomadas pelos adultos, designadamente “os pais”, “os
membros da família ampliada”, “os tutores ou outras pessoas encarre-
gadas legalmente da criança” (Art.º 5º), as pessoas que fazem parte das
“instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo”
(Art.º 3º, 3; Art.º 27º, 3-4), as pessoas responsáveis por “todas as deci-
sões relativas a crianças adoptadas por “instituições públicas ou privadas
de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos
legislativos” (Art.º 3º, 1).
Esta relação, dentro da Família Humana, entre a categoria das pessoas
rotuladas como maiores, amadurecidas e autónomas e a categoria das pes-
soas rotuladas como menores, imaturas e heterónomas, revela-se prenhe de
consequências.
O recurso aos étimos de todos estes lexemas, porque, para além do
mais, vai revelar-nos a extraordinária coerência vocabular e semântica dos
principais conceitos que utilizamos na área da educação, pode ajudar-nos
a compreender melhor o sentido de cada uma daquelas duas categorias e
a relação que entre elas se estabelece.

Maioridade/Menoridade. Da raiz *IE Mag-, Meg-, que envolve a ideia


geral de “grandeza”, através do grego e do latim recebemos lexemas com
o sentido de grande, maior, máximo327:

– através do grego: de mega, “grande”, recebemos mega em eleva-


do número de palavras compostas, como megalítico, megalópo-
de, megabyte, etc.;
– através do latim: de magis, recebemos todos os lexemas que têm

219
a ver com mais, como demais, demasia, jamais, e ainda mas; de
magister recebemos mestre e maestro, mestrado e mestria, magis-
tério e magistratura, etc.; de magnus, temos magno e magnate,
magnitude, magnânimo e magnífico, etc.; de major, vem major
e maior, maioria e maioridade, Maia (deusa) e Maio (mês),
morgado e mordomo, capitão-mor, etc.; de Majesta (deusa), vem
Majestade; de majusculus, vem maiúsculo; de maximus, vem má-
ximo, etc.

Neste contexto, maior aparece definido como “mais grande, que supera
outro em número, grandeza, extensão, intensidade, duração, importân-
cia, superioridade, excelência”, e maioridade, no sentido jurídico, designa
a “idade legal em que uma pessoa é reconhecida como plenamente capaz
e responsável”, em que alguém adquiriu capacidade para se “governar a si
próprio”, para “exercer […] os seus direitos políticos”, para “responder num
processo criminal”328, ou ainda a idade em que a pessoa adquiriu a maturi-
dade física e o discernimento para reconhecer os limites dos seus direitos e
as exigências dos seus deveres, governar a sua pessoa e os seus bens.
O limiar desta maioridade que para Platão, devido às elevadas exi-
gências da formação filosófica, se atingia pelos 50 anos e para Santo
Agostinho se situava à roda dos 30, foi fixado pelo Direito Romano aos
25, mais tarde aos 21, actualmente e na maioria dos países aos 18.
Em termos jurídicos, a maioridade pode atingir-se também por um
processo de emancipação e dura enquanto ela não for perdida por inter-
dição ou inabilitação.
Mas o conceito de maioridade, tomado como critério para definir
a transição fundamental da existência humana aferido pelo número de
anos, carece de fundamentação. Ela encontra-se numa característica pró-
pria do homem como ser vivo, capaz de amadurecer: ter atingido a fase
plena do amadurecimento ou de maturidade.

Maturidade/imaturidade. Da raiz *IE Mā-, que encerra a ideia geral


de “bom”, através do latim, recebemos em herança uma constelação de
lexemas.

220
– pelo verbo lat. māno, ās, āre, que significa “gotejar, escorrer,
difundir-se”, recebemos em português manar, emanar, dimanar,
manancial, etc.
– pelo adjectivo arcaico mănis, depois mănus, “claro, bom, be-
névolo” (mas que também tinha como seu contrário immansis,
“não bom, mau, cruel”, capaz de immanitas, “crueldade, coisa
horrível”) e o seu plural Mănes, num, de onde vem Manes, “ as
almas dos mortos”, “deuses bons” que protegiam os homens,
recebemos manhã, de manhã, amanhã e amanhecer, etc.
– pelo substantivo Matūta, antiga deusa itálica, identificada com
a Aurora, recebemos matutino, matinas, matinal, “tudo o que
vem em boa hora, cedo”;
– finalmente pelo substantivo latino Matūra, divindade que presi-
de aos frutos, e ainda pelo adjectivo matūrus, a, um, “que se pro-
duz no bom momento, na hora favorável” (ao contrário do que
é imaturo ou prematuro), para além de madrugar e madrugada
no sentido anterior de “chegar cedo”, recebemos maturar, madu-
ro, amadurecer, o que acontece no reino vegetal com tudo aquilo
“que, havendo atingido o seu completo desenvolvimento, pode-
ria ser comido, colhido ou semeado”, no reino animal com todo
o animal que se considera ter atingido o “estado ou condição de
pleno desenvolvimento”329 e, mais concretamente, com o ser hu-
mano que atinge o desenvolvimento físico, intelectual e moral.

Encontramos assim o sentido de tudo o que se relaciona com crescer e


desenvolver-se até atingir a hora certa da luz, do calor e da vida no zénite
do Verão, das ceifas, das colheitas e das vindimas no pico do Outono, do
apogeu do crescimento de cada espécie animal, do pleno desenvolvimen-
to de cada ser humano.

Autonomia/Heteronomia. Um terceiro conceito invocado como crité-


rio para definir a fronteira entre a infância e a vida adulta é já tipicamente
humano e tem a ver com o momento de atingir o estado de autonomia
pessoal.

221
Sendo o lexema grego nomos, na acepção originária, atribuído apenas
às normas que regem a vida da polis, a autonomia somente se aplicava aos
povos, governos e Estados. Nesse contexto, quando aplicado individu-
almente, autonomia apenas podia significar uma relativa independência
perante a autoridade.
Já na moral Kantiana, a autonomia representa o carácter da vontade indi-
vidual que se determina pelo puro respeito à lei ditada pela razão prática.
Deixando para mais tarde o apuramento da questão, basta por agora
recordar que assim como as coisas estão ao serviço das pessoas, também as
pessoas não são para se fecharem em si mesmas mas, por movimentação
interior espontânea, se abrirem umas às outras e todas, através do cum-
primento das leis que nos regem, se colocarem ao serviço dos valores.

O lugar: a família e a escola

Nos termos da Convenção sobre os Direitos da Criança, o lugar da edu-


cação da criança (adolescente) é a família, no sentido de família nuclear,
centro de todo o espaço englobante em que a vida do novo ser humano
brota e naturalmente decorre.
Embora, em sentido figurado, também utilizemos família para designar
o conjunto ou agrupamento de outras realidades que apresentam proprie-
dades ou características comuns (materiais, instrumentos, figuras, palavras,
etc.) ou de seres vivos (na hierarquia da classificação taxonómica, família si-
tua-se entre a ordem e a tribo ou o género), em sentido próprio reservamos a
palavra para significar o grupo de pessoas ligadas pelo casamento e/ou pela
filiação (e/ou adopção), em princípio descendentes de um tronco comum
e/ou que normalmente vivem sob o mesmo tecto.
No fim da República Romana (27 a. C.), a família, em relação com
domus (casa) designava a totalidade constituída, sob a autoridade do pater
famílias, pela esposa, os filhos, os escravos e até os animais e as terras.
Tendo-se mantido nesta dimensão ao longo dos tempos, nos dias de hoje
e por força das actuais condições de vida urbana, a dimensão da família
nuclear vem-se reduzindo até ao casal dos pais e aos filhos. É certamente
esta realidade que o texto da Convenção sobre os Direitos da Criança tem

222
primariamente em vista, porque é ela que assegura o curso do processo
educativo a decorrer inicialmente na relação estabelecida entre os pais
educadores e os filhos educandos.
Mas a Convenção sublinha também a existência e a função de cada
um dos círculos concêntricos que se formam ao redor da família nuclear
e que, respeitando o seu papel coordenador, ampliam a sua acção, desde
os tutores e responsáveis de educação, passando pela família ampliada, a
comunidade e os Estados Partes, até à Família Humana.
Neste contexto e ao longo do tempo, família começou também a
empregar-se para designar grupos de pessoas unidas por interesses, con-
vicções ou ideias comuns de natureza profissional, social, cultural ou re-
ligiosa e ligados ou não à família nuclear. É o caso da Escola instituição
que passou a recolher os adolescentes dos vários escalões etários para lhes
abrir os caminhos do conhecimento, da ciência, da investigação e da pre-
paração para o exercício das diversas profissões.
Acontece no entanto, ao longo dos séculos recentes, que a escola se
foi promovendo a centro de educação, em consequência de uma série de
factores, entre os quais se enumeram: a abdicação dos pais; a apropriação
dos professores; a pressão das ideologias do iluminismo e do economicis-
mo reinantes; a progressiva usurpação de todos os poderes pelos regimes
políticos autoritários, desde os absolutismos reais às modernas ditaduras
e a muitas das actuais “democracias”.
Esta situação é totalmente rectificada, na Convenção sobre os Direitos
da Criança, pelos seus Autores que são os próprios “Estados Partes”.
Com efeito, ao proclamarem que a família nuclear é o “elemento
natural e fundamental da sociedade e meio natural para o crescimen-
to e bem estar de todos os seus membros e em particular das crianças”
(Preâmbulo), relativamente a proporcionar-lhes os “recursos económi-
cos”, a “assistência material e programas de apoio, designadamente no
que diz respeito a alimentação, vestuário e habitação”, o “nível de vida
adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e so-
cial” (Art.º 27, 1-4), numa palavra tudo o que é necessário “ao desenvol-
vimento da sua personalidade” (Preâmbulo), e ainda ao acrescentarem
que eles próprios “respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deve-

223
res dos pais ou, quando for o caso, dos membros da família ampliada ou
da comunidade” (Art.º 5º), os Estados Partes, combatem hoje frontalmente
a tendência de a escola se arvorar em centro da educação dos adolescentes.
De facto, o que está a acontecer diante dos nossos olhos, já a partir da
crise da educação escolar desencadeada pelo movimento da contestação
universitária da década 60 em simultaneidade com a emergência e con-
solidação da revolução da educação de adultos e, agora, nesta segunda
revolução da educação de infância (fins da década 80), é o avanço de uma
espécie de “desescolarização” que força o sistema tradicional de educação
escolar a cindir-se nas duas fases da educação ao longo da vida: por um
lado, a educação da infância ou da adolescência (de 0 a 18 anos), abar-
cando as etapas antigas da educação de infância, de educação básica e de
educação secundária e centrada na família e, por outro lado, a educação
de adultos englobando todas as idades de 18 anos em diante e a partir do
centro de irradiação universitária.
Nesta situação, impõe-se proceder urgentemente à revisão de todo o
processo pedagógico da educação dos adolescentes a decorrer na escola,
enquanto lugar complementar da e subordinado à família, e no referente
aos diversos tópicos do “desenvolvimento curricular” no sentido tradicio-
nal: situação, objectivo, organização, metodologia, avaliação.

Situação. Olhando as coisas à luz das exigências da Convenção sobre


os Direitos da Criança, a educação de infância (adolescência) processa-se,
de facto, em todos os lugares por ela frequentados. Mas, entre todos eles,
o lugar natural e portanto central é a família, cabendo a todos os outros
lugares, sejam hospitais, centros de assistência e/ou de correcção, escolas
e quaisquer outras instituições de aprendizagem, cultura, recreio, etc., o
estatuto de espaços complementares para os adolescentes que os venham a
frequentar ampliarem e potenciarem a educação projectada, desenvolvida
e coordenada pelos pais ou “responsáveis da educação”.
Com efeito, um qualquer adolescente com vida normal pode nunca
ter frequentado uma instituição de cultura ou de lazer, nunca se ter senta-
do num banco de escola ou deitado numa cama de hospital, mas dispôs
sempre, no início da vida de uma alcofa e, a seguir, de uma cama no lugar

224
natural do seu crescimento que é a casa dos seus pais.
Por isso, a Convenção reconhece que pertence aos pais ou tutores a
responsabilidade máxima da coordenação de todo o processo.
Nesta situação, todos os cidadãos chamados a intervir, médicos e pes-
soal de saúde, agentes e funcionários da justiça, representantes dos servi-
ços económicos, sociais e administrativos, professores e agentes dos siste-
mas educativos de cultura e de lazer, etc., não passam de participantes e
colaboradores no processo educacional.
Os próprios políticos, membros dos poderes legislativo, executivo e
judicial e os agentes da autoridade têm apenas as funções atribuídas pelos
Estados Partes, de acordo com os princípios que eles próprios assumiram
ao afirmarem, na Convenção sobre os Direitos da Criança, que “respeitarão
as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, no caso dis-
so, dos membros da família ampliada ou da comunidade” (Art.º 5º) e
“adoptarão as medidas apropriadas para ajudar os pais e as outras pessoas
responsáveis pela criança a dar efectividade a este direito” (Art.º 27, 3).
É neste contexto que importa compreender os tópicos restantes do
funcionamento da instituição escolar.

Objectivo. Contra a posição extrema de I. Illich e dos seus seguidores


e as dúvidas de outros sobre certas implicações da educação ao longo da
vida, continua a ser reconhecida a necessidade da escola como lugar com-
plementar da educação. O que se exige é que a educação por ela ministra-
da, nessa fase, aos adolescentes não se organize em função de si própria,
mas em função da fase de educação de adultos que virá a seguir.
Nesta ordem de ideias, o objectivo fundamental da escola não poderá
continuar a ser meramente “ensinar” nem apenas proporcionar condições
ao adolescente para “aprender que” qualquer coisa existe ou acontece (in-
formação), “aprender a” fazer isto ou aquilo (saber técnico), ou mesmo
“aprender no sentido de compreender” as leis que regem os fenómenos (saber
científico), mas sim “aprender a ser”, a tornar-se progressivamente capaz de
agir como pessoa, consciente, livre e responsável, em ordem a prosseguir
este esforço, na fase de educação de adultos, durante a vida inteira330.

225
Organização. O processo educativo deixa de poder ser concebido
como sistema integrado pelos três subsistemas antigos (educação de in-
fância, educação escolar, educação de adultos), ou mesmo como processo
sequencial nas três fases anteriores (de infância, escolar e de adultos), mas
apresenta-se agora como processo de educação ao longo da vida integrado
pelas duas fases de educação de infância ou de adolescência (a abarcar todo
o percurso educativo dos menores de idade, de 0 a 18 anos, distribuído pe-
los diversos antigos escalões) e de educação de adultos (a abarcar também
todo o processo educativo dos maiores de idade com o seu centro e motor
no antigo escalão universitário).
Neste contexto, a fase de educação do adolescente deverá organizar-se
em escalões que se encontrem de acordo com as descobertas da Psicologia
do Desenvolvimento – educação de infância no sentido tradicional (0-6
anos), de educação básica (6-15 anos), de educação secundária (15-18 anos)
– ou outros que venham a ser consensualizados.

Formação de educadores-professores. Para atingir tais objectivos e desen-


volver correctamente o processo educativo escolar neste tipo de organiza-
ção, requer-se que os responsáveis obtenham préviamente uma preparação
à altura destas exigências para cada uma das fases mencionadas, que os
torne conscientes da sua função essencial de promover não a mera instru-
ção mas a educação e que, por isso mesmo, não os deixe reduzir-se a meros
professores ou agentes de ensino para formar técnicos, cientistas ou profis-
sionais neste ou naquele sector, mas os leve a exercer o seu munus de verda-
deiros educadores e mestres (do lat. magistri, “mestres”, do lat. magis, “mais”,
da raiz *IE Meg-, Mag-, “grande”), capazes de contribuir para a formação
integral dos adolescentes no sentido de se tornarem adultos.
Claro que uma coisa não pode nem deve excluir a outra e, por isso
mesmo, o verdadeiro mestre será exactamente aquele que sabe integrar o
processo de ensino no processo de educação, aquele que “enquanto ensi-
na, educa”331.
Só deste modo teremos garantia de a escola estar a contribuir para a
formação de verdadeiros homens.

226
Metodologia. Nesta situação, a mudança de perspectiva na relação pro-
fessor-aluno é radical.
Perante o professor-mestre, não estão simples alunos para apenas “apren-
derem uma disciplina”, mas adolescentes que, para além de fazerem isso
(e devendo fazê-lo o mais eficazmente possível), precisam de crescer para
se tornarem adultos.
Perante os alunos-adolescentes, o professor-mestre não pode pretender
apenas “ensinar uma disciplina” nem sequer apenas “criar condições de
aprendizagem”, mas, ao fazer isso, deverá procurar fazer muito mais: criar
condições para que eles, sem descurar nada disso e procurando isso afin-
cadamente, se tornem progressivamente capazes de, eles próprios e não
outros por eles, tomarem progressivamente nas mãos a condução do pro-
cesso de procurarem resposta para as suas necessidades e aspirações.
Nesta perspectiva e no que diz respeito às estratégias a adoptar para
atingir estes objectivos, não será suficiente conseguir que os alunos-ado-
lescentes utilizem os métodos consabidos dentro da “disciplina” que estu-
dam nesse momento, nem sequer que descubram, adoptem e adaptem
métodos novos, mas haverá que, desde cedo, incitá-los a observar, pesquisar,
reflectir, inovar, criar. A boa estratégia consistirá mesmo em ajudá-los a
treinar-se em programar, nesse sentido, todas as suas actividades.

Avaliação. Não deverá confinar-se às formas tradicionais da “avaliação


somativa ou informativa” ou mesmo da “avaliação formativa”, mas deverá
ir mais longe, iniciar o adolescente na auto-avaliação de toda a sua ma-
neira de viver, que será chamado a exercer, como ser humano, em toda a
sua existência de adulto.

Em resumo, diríamos que a função essencial do Mestre, para além de


ensinar e mesmo de educar, deverá consistir em desencadear no discípu-
lo, através dessas tarefas, o processo da sua auto-educação.
Somente assim a escola desempenhará cabalmente a sua função de cola-
borar com a família em orientar toda a fase da educação dos adolescentes para
a fase da educação de adultos, no processo da educação ao longo da vida.

227
O conceito de educação de adolescentes e as suas dimensões

Nesta situação nova, impõe-se, antes de mais nada, revisitar o conceito


de educação corrente e vigente nos últimos séculos, com o intuito de o
decantar, clarificar e aprofundar na globalidade e complexidade das suas
dimensões.
Chegamos assim ao momento crucial do esclarecimento do conceito
de educação, tema deste livro.
Para isso, consideramos altamente proveitoso recorrer uma vez mais,
mas agora em detalhe, à constelação dos étimos (“os verdadeiros signifi-
cados da palavra segundo a sua origem”) dos lexemas educação e afins, no
intuito de descobrirmos, na educação dos adolescentes, como rentabilizar
todas as coisas no sentido de criar as melhores condições para eles se de-
senvolverem no sentido de se tornarem pessoas maiores, maduras e autóno-
mas, capazes de procurarem, no pleno uso da sua consciência, liberdade e
responsabilidade, a própria realização nos valores.
É evidente que o conceito de educação tem a ver com o processo de
maturação.
Tendo em conta a fase transitória em que se encontra de “falta de
maturidade física e intelectual”, para atingir a maioridade, a maturidade e
a autonomia no lugar originário do seu nascimento e actual do seu ama-
durecimento que é a família nuclear, o adolescente, como todo o ser vivo,
precisa de crescer.
E, para crescer, precisa de ser alimentado.
Ser alimentado para poder crescer no sentido de chegar à maturidade­
maioridade-autonomia, eis todo o projecto-processo da educação, do
ponto de vista do sentimento dos adolescentes.
Mas do ponto de vista da compreensão dos adultos, a história revela-
-nos que esse projecto-processo tem sido interpretado de maneira diferente
pelos pais, pelos educadores-professores e pelos políticos, em cada caso,
na medida parcial e por isso reduzida em que cada um dos três grupos
têm captado o riquíssimo conteúdo do conceito de educação.

Vejamos melhor à luz do respectivo étimo.

228
Da raiz *IE Deuk- Duk-, que envolve a ideia geral de “conduzir (guiar,
liderar)”332

– através do verbo latino dūco, is, dūxi, ductum, ěre, “levar, condu-
zir” (de cuja forma nominal dux, ducis, veio condutor, primitiva-
mente “o que vai à frente das ovelhas, pastor” e na época clássica
“o que vai à frente dos homens, dirigente ou chefe militar”),
recebemos em português, através do verbo latino composto
condūco, “levar junto, reunir, contratar”, o verbo conduzir e o
substantivo condução;
– através de outros verbos compostos do mesmo verbo latino
dūco, a explicitarem diferentes rumos que o movimento de con-
dução pode tomar, recebemos grande número de verbos e de
substantivos derivados: de abdūco, “levar, distanciar, fazer sair”,
recebemos, entre outros lexemas, abduzir e abdução; de addūco,
“puxar para si, trazer”, aduzir e adução; de dedūco,”levar, puxar
de alto abaixo”, deduzir e dedução; de indūco, “levar, introduzir,
enganar”, induzir e indução; de introdūco, introduzir e introdu-
ção; de prodūco, produzir e produção; de sedūco, seduzir e sedução;
de tradūco, traduzir e tradução e, em paralelo com todos estes
verbos, encontramos também em latim edūco, is, eduxi, educ-
tum, cěre, “conduzir para fora de”, “tirar de, retirar, extrair” (por
exemplo, a espada da bainha), de onde nos vem o verbo (cultis-
mo raro) eduzir nesse mesmo sentido de “retirar (de), extrair”, e
o substantivo edução;
– mas no que diz respeito à derivação latina que conduz ao nos-
so verbo educar, verifica-se que, para além do sentido geral do
verbo simples dūco, “conduzir”, e do sentido específico do ver-
bo composto edūco, “eduzir”, encontramos ainda lateralmente
a existência do verbo edūco, ās, educāvi, educātum, āre (na 1ª
conjugação), que envolve a ideia de “criar (uma criança); nutrir;
amamentar; cuidar”, cultivar [as plantas]; amestrar, domar, do-
mesticar [os animais]; “instruir, ensinar [as pessoas]”; educar.

229
É este verbo latino edūco que, seguindo um caminho paralelo aos ver-
bos dūco e edūco, deu origem ao nosso verbo educar no sentido originá-
rio de “nutrir, amamentar, alimentar” e não apenas no sentido físico de
“dar o sustento”, mas também nos sentidos: afectivo, de “cuidar, criar”;
intelectual, de “ensinar, instruir”; moral, de “acompanhar, orientar, for-
mar”; humano, de prestar (a alguém) todos os cuidados necessários ao
desenvolvimento da sua personalidade333, o sentido pleno que hoje lhe
atribuímos.
Deparamos assim, na ascendência do verbo português educar, com
três verbos latinos (cuja cognação se encontra na base de muitas das tra-
dicionais confusões acerca da maneira de utilizar o vocábulo e de enten-
der o conceito), cada um dos quais envolve um sentido diferente e com-
plementar quase exclusivamente perfilhado por cada um dos três tipos de
adultos acima referidos, pais, educadores - professores e políticos.
O mais recente e próximo, “educar” (de edūco, ās, āre), anda prati-
camente ausente da teoria dos pedagogos mas continua omnipresente
e ocupa toda a dimensão da prática educacional exercida pelos pais cuja
preocupação é “amamentar, nutrir, cuidar, assegurar o sustento” (“para
que não lhes falte nada”) e a “boa criação” dos seus filhos (“crianças”).
O intermédio, “eduzir” (de edūco is, ěre), prevalece nas preocupações
do sistema escolar vigente, na medida em que os educadores-professores se
preocupam, ao ensinar os seus alunos, em desencadear neles o processo
interno que os leve a reduzirem ao acto as suas potencialidades e, parti-
cularmente na dimensão cognitiva, desenvolverem a sua capacidade de
prender, apreender, aprender e compreender.
O mais remoto, “conduzir” (de dūco, is, ěre), é universalmente adopta-
do no processo sociopolítico, na medida em que os chefes, políticos e cidadãos
revestidos de autoridade de todos os tempos exercem a função de conduzir,
liderar, orientar, formar os cidadãos, com todos os riscos de endoutrina-
mento, imposição, manipulação, dominação e mesmo domesticação que
o gesto possa vir a comportar.
Relativamente aos dois primeiros verbos e à estreita relação entre eles
e, desta vez, só no espaço europeu, encontramos outros dois étimos com-
plementares e extraordinariamente esclarecedores, até pela sua contribui-

230
ção histórica para o enriquecimento do vocabulário da educação. Trata-se
dos étimos de alimentar e de crescer e dos respectivos desdobramentos.
Do *Europ. Al-, Ol-, que envolve a ideia de “alimentar”:

– pelo latim alo, ĭs, alĭtum ou altum, ěre, “alimentar, nutrir”, re-
cebemos alimentar e aluno e ainda realçar e exaltar, alto e altivo,
altar e outeiro, etc.;
– pelo latim adolesco, īs, ēvi, ultum, ěre, “crescer”, recebemos ado-
lescente e adulto e, por vias paralelas, abolir e índole, prole e pro-
letário, etc.

Por outro lado, do *Europ. Kre-, que envolve a ideia geral de


“crescer, desenvolver-se, abrir caminho”:

– através do latim creo, ās, āvi, ātum, āre, com o sentido de “criar,
gerar, dar à luz, produzir”, vem criar e criança, procriar e recriar,
criado e crioulo, etc.;
– através do latim cresco, is, crēvi, crētum, ěre, que envolve a ideia
de “nascer, brotar, crescer”, vem crescer e acrescentar, Ceres (deusa)
e cereal, concreto e recruta, incremento e excrescência, etc.334.
As três dimensões do verbo educar conjugam-se no processo integrado
da educação dos adolescentes e, registemo-lo mais uma vez, correspondem
às funções específicas dos pais, dos educadores-professores e dos respon-
sáveis políticos:

– a dimensão de alimentar, no sentido amplo que significa não


apenas fornecer a nutrição do corpo como também quanto é
necessário à recepção e acolhimento do recém-nascido, habita-
ção, vestuário, atenção, ocupação e preocupação com todas as
suas falhas e deficiências, prestação de todos os cuidados, am-
biente de afecto, carinho, ternura, amor, e tudo na medida e
ao ritmo das necessidades do adolescente, é função primordial
dos pais e assim tem sido normalmente entendida ao longo da
história;

231
– a dimensão de, suposta a base da “alimentação” e, sobretudo, a
partir do próprio “exemplo”, criar condições para que todas as
potencialidades do adolescente e não só as de tipo cognitivo se
actualizem e assim ele possa crescer e desabrochar num variega-
do leque de capacidades e competências, constitui a missão de
quantos se reconhecem como educadores, de que tão eloquente
testemunho nos deixou Sócrates ao utilizar o método maiêuti-
co com os adolescentes (e o método irónico com os adultos), a
ponto de merecer o máximo elogio feito pelo seu antigo edu-
cando Alcibíades no último discurso do diálogo O Banquete
sobre o Amor;
– a dimensão de orientação-condução exercida pelos adultos, para
que o desenvolvimento dos adolescentes tenha um rumo e se faça
no sentido da sua realização nos valores, é função assumida por
responsáveis políticos, na linha da deriva racionalista da República
de Platão, que comete aos Filósofos o governo da cidade, ou da
prática milenar do Mandarinato introduzida por Confúcio no
Império do Meio, ou dos condutores mais recentes nas suas mui-
tas designações de duque, “duca”, “doge”, “duce”, “condottiere“ ou
ainda de “Fürer” ou de “Grande Líder” ou de “Grande Timoneiro”,
em cada caso com as consequências históricas conhecidas.

A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) prevê, como vimos,


a articulação dessas três dimensões do processo educativo dos adolescen-
tes, ao definir claramente as funções atribuídas a cada um dos grupos de
adultos que nela intervém:

– aos pais, assegurar “as condições de vida necessárias ao desen-


volvimento da criança” (Art° 27, 2);
– aos educadores-professores, colaborar no sentido de “promover
o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e
aptidões mentais e físicas, na medida das suas potencialidades”
(Art° 29, 1. a));
– aos próprios Estados Partes, “respeitar e garantir os direitos pre-

232
vistos na presente Convenção a todas as crianças” (Art° 2°, 1.).

Deste modo e em sintonia com a afirmação “a educação deve visar


o pleno desenvolvimento da pessoa humana” (Declaração Universal dos
Direitos do Homem, Art°. 26°, 2°), mais uma vez poderemos ligar as três
dimensões na fórmula abrangente que temos adoptado, susceptível de ser
interpretada como súmula de um projecto global de educação:

– rentabilizarmos todas as coisas (meios) do universo na criação


de condições (alimentação no sentido amplo)
– para que todas as pessoas (fins) da família humana (neste caso os
adolescentes) possam crescer
– no sentido de se desenvolverem até atingirem a plena matura-
ção que lhes permita, como adultos, entrarem no caminho da
plena realização nos valores.

Mas tudo isto exige a estabilidade e estimulação do ambiente familiar,


designadamente da família nuclear tendencialmente alargada. É neste
sentido, e só neste, que tem de ser radical e urgentemente revista a peda-
gogia de toda a fase de educação de adolescentes.

Metodologia: “de forma compatível com o desenvolvimento”, “a


orientação e os conselhos adequados”

A directriz fundamental da Convenção sobre os Direitos da Criança, re-


lativa ao desempenho das responsabilidades dos pais e de todos os outros
adultos na educação dos adolescentes, vem resumida na fórmula “asse-
gurar à criança, de forma compatível com o desenvolvimento das suas
capacidades, a orientação e os conselhos adequados” (Art.º 5).
Depois de ter definido o tempo (de 0 a 18 anos), o lugar (a família,
“meio natural para o crescimento”) e o conceito de educação de adoles-
centes, a Convenção sobre os Direitos da Criança põe em relevo “as res-
ponsabilidades, direitos e deveres dos pais” ou de quem os substitua de
“assegurar à criança” “a orientação e os conselhos adequados” (Art. 5).

233
Torna-se assim claro que, sempre que na família esteja criado o “clima
de felicidade, amor e compreensão” e mais ainda na ausência dele, quando
se verificam “condições particularmente difíceis”, existe a estrita “respon-
sabilidade, direito e dever” por parte dos pais, dos seus substitutos ou, em
caso extremo, dos Estados Partes, de prestar, de preferência pelo exemplo e
sempre com mão firme, “a orientação e os conselhos adequados”.
A Convenção corta, deste modo, pela raiz, todos os desvios da
Pedagogia que têm a ver com qualquer tipo de lassidão, frouxidão, con-
temporização, cedência, transigência ou incúria, na prática ou na teoria
por mais bem justificada que se apresente, para já não falar da inconsci-
ência que se encontra na base da fuga ou demissão da própria responsa-
bilidade por parte dos pais, tutores, instituições sociais e departamentos
dos Estados Partes.
Mas a Convenção acrescenta que esta orientação e aconselhamento
devem ser prestados à criança (adolescente) “de forma compatível com o
desenvolvimento das suas capacidades”.
O recurso à etimologia dos verbos cuidar, medicar e pensar revela-nos
um horizonte inesperado, no que diz respeito quer directamente a esta
metodologia, quer ao facto de estes verbos virem complementar e apro-
fundar o sentido do verbo educar, quer ainda à especificidade e qualidade
do estatuto dos outros educadores chamados a colaborar mais estreita-
mente com os pais.
A primeira constelação de lexemas gira ao redor da palavra cuidado,
recorrentemente mencionada ao longo do texto da Convenção sobre os
Direitos da Criança.
Cuidar remonta à raiz *IE Ag- que envolve a ideia geral de “empur-
rar”. Desta raiz:

– recebemos na língua portuguesa, uma constelação de lexemas


que inclui acção e actividade, agitação e exigência, exiguidade e
ambiguidade, exame e exactidão, etc.;
– mais em concreto e através do verbo latino cōgo, is, ěre, com o
sentido de “empurrar, impelir, constranger, forçar, juntar, co-
lher” e ainda do seu frequentativo cōgito, ās, āre, com o signifi-

234
cado de “pensar, meditar, considerar, reflectir, conceber, prepa-
rar”, “agitar no espírito, remoer no pensamento” (“cogito, ergo
sum” de Descartes), recebemos o verbo cuidar, com o sentido
de “cogitar, pensar, ponderar, meditar com ponderação”, e o
substantivo cuidado, no sentido geral de acto que é “submeti-
do a rigorosa análise, meditado, pensado”, de “comportamento
vigilante, prevenido”, de “zelo, desvelo que se dedica a alguém
ou a algo”335.

Assim, a palavra cuidado, tão utilizada na linguagem corrente e recen-


temente escolhida para designar a tarefa específica da profissão de enfer-
meiro, exprime bem o sentido que pode e deve assumir toda e qualquer
intervenção dos humanos adultos sobre os humanos adolescentes.
Em paralelo com esta constelação de lexemas e relativamente aos cui-
dados a ter com os adolescentes, existe ainda outra que igualmente vem
clarificar e completar o sentido de educação, desta vez na sua ligação com
a saúde e em relação directa já não tanto com os adolescentes normais
que, “por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, necessi-
tam de protecção e cuidados especiais”, mas sobretudo com os outros “que
vivem em condições particularmente difíceis”, designadamente no âm-
bito de perturbações de saúde, de deficiências estruturais e de carências
básicas, a exigir cuidados mais especiais ainda. Trata-se da constelação de
lexemas que tem como centro medicina:

– a raiz *IE Med-, envolve também a ideia geral de “pensar, re-


flectir” e, por extensão, de “dedicar-se a qualquer exercício físico
ou intelectual”, “exercitar-se, estudar, ensaiar um papel”;
– desta raiz, através do verbo grego médō, “medir, regular”, e da
sua forma medomai, “ocupar-se de, preocupar-se com, pensar
em, meditar”, vem Medusa, “aquela que medita”, nome de uma
das três Górgonas;
– da mesma raiz, através do verbo latino, meditor, āris, āri, re-
cebemos em português meditar, meditação, meditativo, medita-
bundo e, através de outro verbo latino, meděor, ēris, ēri, “ocu-

235
par-se de, dispensar cuidados a, tratar, medicar, dar remédio a,
aplicar remédio contra”, recebemos remediar e remédio, medicina
e mezinha, médico e medicamento, etc.336

Quer isto dizer que a atenção e o cuidado dos adultos em relação aos
adolescentes deve estender-se não apenas a criar as melhores condições
para o seu desenvolvimento em circunstâncias normais, mas também e
mais ainda naquelas em que a normalidade falha, por qualquer razão que
seja, de natureza conjuntural ou permanente, recorrendo aos cuidados
prestados pela medicina.
Uma terceira constelação de lexemas que ajuda a esclarecer a metodo-
logia da educação dos adolescentes gira ao redor dos verbos pender, pesar
e pensar e tem a ver com a aplicação de cuidados, quer nas situações nor-
mais da vida, quer nas especiais, quer ainda nas mais difíceis, traumáticas,
crónicas e recorrentes:

– do verbo latino pendō, is, pependi, pensum, pendere, que envolve


o sentido de “suspender, pensar, examinar, ponderar, ter peso,
pagar, dar em paga, expiar”;
– a partir do supino pensum e pelo verbo frequentativo penso,
as, āvi, ātum, āre, que, no latim clássico, envolve o sentido de
“pesar, examinar, ponderar, considerar, meditar, ruminar”, e no
latim tardio, o sentido de “pensar, cogitar”, recebemos em por-
tuguês, pela via da linguagem vulgar, pesar, e pela via da lingua-
gem erudita, pensar;
– acontece que este verbo pensar, para além do sentido nobre cor-
rente na história da filosofia e da cultura, de exercício mental
consciente e organizado, de intuição e raciocínio lógico, de reflec-
tir, de ponderar, provavelmente por contaminação com os verbos
cogitar e cuidar, apresenta ainda os sentidos de “cuidar ou tratar
convenientemente de”, dando origem ao substantivo penso, quer
na acepção de tratamento, sustento, alimentação, sobretudo de
animais (penso ou ração), quer na acepção de cobertura anti-sépti-
ca e protectora de um ferimento, de incisão cirúrgica ou de parte

236
íntima do corpo humano (penso rápido, penso higiénico, etc.);
– directamente do supino pensum do mesmo verbo pendo, vem pen-
são, “renda, abono ou pagamento” que, por iniciativa pessoal ou
por imposição jurídica, é fornecida a alguém (reformados, filhos
menores após o divórcio do casal, pessoas necessitadas, etc.)337.

Em resumo, podemos concluir que as três constelações de lexemas e


conceitos que acabámos de percorrer concorrem em mostrar que toda e
qualquer intervenção dos adultos sobre os adolescentes deverá ser feita,
não apressadamente ou à toa mas, bem pelo contrário e dentro das possi-
bilidades e das contingências da vida, de maneira rigorosamente coagita-
da, cogitada e cuidada, bem medida, meditada e medicada, o mais possível
ponderada, pesada e pensada, de maneira a não pecar por demais nem por
de menos e estar sempre de acordo com as sucessivas fases e o ritmo geral
do desenvolvimento do adolescente.
Na vida normal, os pais, tutores e responsáveis não profissionais na área
científica da educação dos filhos, guiamo-nos pela intuição e a experiência, e
ao debater-nos com as dificuldades, sobretudo na “idade da rebeldia”, sofre-
mos com as falhas e decepções causadas pela nossa ignorância e inabilidade.
Impõe-se, por isso, cada vez mais, para além do recurso tradicional aos
professores na área da educação, o recurso a profissionais noutras áreas
(médicos, enfermeiros, conselheiros psicológicos, assistentes sociais, etc.)
e não apenas nas crises de saúde ou em momentos de desastre, cataclismo
ou calamidade pública, mas também na vida normal de todos os dias.
E estes imperativos da metodologia da educação de adolescentes le-
vam-nos mais longe: exigem dos pais, tutores, professores e em geral de
todos os adultos que de algum modo somos chamados a intervir na edu-
cação, conhecimentos razoáveis, se não aprofundados, do processo de de-
senvolvimento humano que, mais adiante, havemos de abordar.

Critério supremo: “o superior interesse da criança”( adolescente)

O conceito de “interesse da criança”, enquanto princípio de limitação


do poder dos adultos, emerge no início do século XIX e desde então vem

237
abrindo penosamente um caminho eriçado de dificuldades só compre-
ensíveis à luz do facto da criança, durante milénios, ter sido considerada
como “coisa” desprovida de direitos.
Aparece pela primeira vez, como “interesse da criança”, no Código Civil
Napoleónico (1804) e evolui para “interesse superior da criança”, associado ao
“do pai e da mãe”, no mesmo Código Civil, em meados do mesmo século. Já
no século XX, afirma-se que “a criança deve ser a primeira a receber socorros
em tempo de perigo” (Declaração de Genebra, Ponto 5, 1924), que a fórmula
“bem estar” da criança deve constituir a “consideração primeira e primordial”
a ter em conta (“Guardianship of Infants Act, Reino Unido, 1925), que “a con-
sideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da crian-
ça” (Declaração sobre os Direitos da Criança, Princípio 2, 1959) e, depois de
muitas e laboriosas discussões, durante os dez anos da sua elaboração, sobre
a redacção final no que respeita à palavra inicial “a” ou “uma”, a Convenção
sobre os Direitos da Criança (1989), determina que “todas as decisões relativas
a crianças adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social,
por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos terão prima-
cialmente em conta o interesse superior da criança” (Art.º 3, 1).
A fórmula, passível de variadas e subtis interpretações jurídicas no
contexto do texto, marca o rumo da interpretação de todo o documen-
to e não pode deixar de ser entendida na linha de outras fórmulas de
documentos anteriores: “os homens e as mulheres de todas as nações re-
conhecem que devem dar à criança o melhor que têm” (Declaração de
Genebra, Preâmbulo, 1924 e 1948); “a humanidade deve dar à criança o
melhor que possa dar-lhe” ou “o melhor de si mesma” na versão francesa
(Declaração sobre os Direitos da Criança, Preâmbulo, 1959)338.
Como compreender este “superior interesse da criança”?

Em conexão com a raiz *IE Es-, que envolve a ideia geral de “ser”,
através do verbo latino interest, ēsse, “importar, ser do interesse de”, inte-
resse encontra-se encastoado no cerne do ser humano e designa “o que é
importante, vantajoso, útil, nos planos moral, social, material”.
Na linha dos desenvolvimentos anteriores e reconhecendo de ante-
mão a impossibilidade de separar as três dimensões que se mencionam a
seguir, poderíamos dizer:

238
– no plano moral, o interesse da criança consiste em que, após
a concepção, seja aceite na gestação e acolhida no nascimento
pelos pais e, a seguir, tratada por eles e pela família ampliada
e pela comunidade envolvente, não apenas como “coisa”, mas
como “pessoa” portadora de dignidade e direitos;
– no plano social, o interesse da criança, porque é “menor”, “ima-
tura” “heterónoma”, consiste em que lhes sejam criadas as me-
lhores condições para crescer em todas as suas dimensões e de
maneira global e harmónica;
– no plano material, se é possível falar dele isoladamente e como
condição essencial para crescer, o interesse da criança é ser alimen-
tada, em todas as dimensões da vida humana, de pão e de afectos,
de conhecimentos e de compreensão, de exemplos e de amor.
E assim, mais uma vez, constatamos que a educação do adolescente, em-
bora exigindo tudo isso, não se esgota no fornecimento de bens materiais
(e menos na sua acumulação) ao nível da economia, nem na transmissão
de conhecimentos, menos ou mais extensos e ampliados e aprofundados
ao nível da ciência, mas exige dos adultos a adopção de comportamentos
verdadeiramente humanos e pautados pelos valores ao nível da ética.
A essencial exigência da nossa vida não é uma questão de riqueza ou
de saber, mas de justiça. Como a própria criança e a sua natureza recor-
dam pela voz do poeta:

Venho da terra assombrada


do ventre da minha mãe,
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.

Quero só o que me é devido


por me trazerem aqui,
eu nem sequer fui ouvido
no acto em que nasci.

239
Quero eu e a Natureza
e a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu!339

A Natureza não é vencida. Mas o adolescente, imensas vezes, sim. Pela


força, a ignorância e o egoísmo dos responsáveis por ele.
A educação dos menores fica a depender da educação dos maiores. Por
isso, para que haja (boa) educação dos adolescentes, é preciso assegurar que
haja antes (boa) educação dos adultos.

4. Fase da educação de Adultos: a vida e a universidade

Os seres humanos alimentados (altos) são também os crescidos


(adultos).
E porque são os maiores, amadurecidos, autónomos, são também res-
ponsáveis pelos menores, imaturos, heterónomos.
Mas para poderem desempenhar essa tarefa, também eles precisam de
continuar sempre a alimentar-se, a crescer, a desenvolver-se.
Assim, na sequência e em paralelismo com o que fizemos na primei-
ra fase, da educação dos adolescentes, nesta segunda fase, da educação dos
adultos, vamos percorrer os mesmos tópicos do tempo (da juventude à
senectude), do lugar (a família humana e a universidade), do conceito (de
educação de adultos e universitária), da metodologia (relação entre espe-
cialistas e generalistas) e do critério (realização pessoal do adulto).

O tempo: da juventude à senectude

Antes de mais nada e visando particularmente os estereótipos corren-


tes acerca do seu início e do seu termo, impõe-se uma clarificação sobre
o sentido de vida adulta.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, ao definir criança em termos
de crescimento para a maioridade, maturidade e autonomia, está implici-
tamente a definir também adulto e nos mesmos termos.

240
Em documentos anteriores, designadamente naquele que é conside-
rado a síntese da educação de adultos (Recomendação de Nairobi, 1976),
a UNESCO não apresenta uma definição do conceito de adulto, mas
apenas se refere às “pessoas consideradas como adultas pela sociedade a
que pertencem”340.
Por outro lado, o mesmo documento, ao referir-se, nos termos do vo-
cabulário de educação escolar corrente na época, à situação complexa dos
jovens que tendo abandonado os estudos se debatem com dificuldades
para obter o primeiro emprego, insiste na necessidade de proporcionar
a estes “jovens adultos” “programas de educação destinados aos jovens”,
“programas de educação de adultos para jovens”341.
E noutro lugar, ao referir-se, ainda nos termos confusos do vocabu-
lário da época, à transição entre as actuais duas fases (de educação de
adolescentes e educação de adultos) acrescenta que

“a educação de jovens deverá ser progressivamente orientada para a


educação ao longo da vida, tendo em conta a experiência adquirida no
âmbito da educação de adultos, e tendo em vista preparar os jovens,
qualquer que seja a sua origem social, para beneficiarem da educação de
adultos ou contribuírem para ela”342.

A partir da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), existe um


consenso verdadeiramente mundial sobre o início da vida adulta, funda-
mentado num critério científico consistente: o acesso à maturidade bio-
lógica, base da maioridade jurídica e da autonomia moral.
Nesta situação, a primeira fase, dos “jovens adultos”, vem sendo ob-
jecto de reflexão teórica e de medidas práticas, designadamente no que
respeita à alfabetização funcional, literacia, formas de educação de adultos
remediativas, educação recorrente e, sobretudo, reconceptualização de toda
a fase de educação de adolescentes em termos de educação de adultos pre-
ventiva: a melhor maneira de assegurar a educação de adultos do futuro é
assegurar a educação de adolescentes do presente em moldes de educação
ao longo da vida.
No que respeita à fase média de todo o tempo da vida produtiva, a

241
educação de adultos entrou na rotina das diversas modalidades de forma-
ção contínua, educação recorrente, complemento de habilitações, aquisição
de graus de pós-graduação, reconversão profissional, etc.
Esta rotina revela tendência para alastrar também, com as limitações
compreensíveis, ao contingente de adultos não maduros nem maiores nem
autónomos, por força, em cada caso: a) de falhas de natureza genética (defi-
cientes); b) de perda ou diminuição de capacidades por ocasião de traumas
ou acidentes (acidentados); c) de atrasos no desenvolvimento normal devi-
dos a contextos sociais desfavorecidos e que atingem uma dimensão difícil
de recuperar; d) de transtornos no desenvolvimento normal devidos a situ-
ações anómalas (ex: escolaridade deficiente) em princípio recuperáveis.
Relativamente ao período final da vida (pós-reforma), a situação
é bem menos estimulante quando não triste e até dramaticamente
confrangedora.
Com efeito, a “terceira idade” de hoje, se por um lado e a partir dos
espantosos progressos da ciência e da técnica, tem beneficiado das condi-
ções favoráveis ao prolongamento da existência, por outro lado e por falta
de tempo, de atenção e/ou de mentalidade, não tem sabido ou não tem
podido aproveitar as oportunidades oferecidas pela rápida (r)evolução do
sistema educativo na segunda metade do século XX. Como resultado, so-
fre a tragédia de se ver ultrapassada pela aceleração da mudança: formada
na ideia de que a educação era uma preparação para a vida do trabalho
profissional, não sabe que fazer do tempo (cada vez mais longo) que lhe
resta depois da reforma, e acaba por ficar sentada nos bancos do jardim
público e/ou em casa, no sofá ou na cama, diante da televisão.
Para além de se incentivar e apoiar, através de todas as formas possíveis,
o aproveitamento do tempo da senectude que vem sendo feito por muitos
adultos nas instituições e universidades da terceira idade, torna-se urgente e
premente descobrir e desencadear processos de mentalização e de ajuda que
levem todos os outros a compreender que, até ao fim da vida, são portado-
res de riquezas ilimitadas de experiência, compreensão e sabedoria, suscep-
tíveis de serem utilizadas em campanhas de testemunho e tarefas de volun-
tariado, ao serviço das gerações novas e de todos os que mais precisam.

242
O lugar: a Família Humana e a Universidade

Assim como, na educação de adolescentes, o lugar central era a família


nuclear, aqui, na educação de adultos, o lugar próprio tem as dimensões
de todo o espaço ocupado pela actividade da inteira Família Humana.
Com efeito, ela decorre em todos os lugares em que os adultos se
movimentam: nas casas em que habitam, nas escolas em que estudam,
nos locais em que trabalham, nas instituições públicas e privadas que
frequentam, nos transportes em que se deslocam, nas instâncias de férias
em que descansam, nos hospitais em que se tratam, nas cadeias em que se
reabilitam, nas clínicas em que acaso aguardam o fim.
E decorre também para além do mundo físico, nos outros mundos
da Memória, da Ciência, da Arte, da Cultura, no Mundo dos Valores
cujo advento, nos termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
constitui a nossa “mais alta aspiração”, é o centro do debate que visa
chegar sobre ele a uma “concepção comum” e representa o “ideal comum” a
atingir pelo ensino e educação.
Neste contexto, como lugar específico central, onde a educação de
adultos assim compreendida se processa ao nível mais elevado e pode e
deve irradiar para a inteira comunidade humana, cumpre citar a univer-
sidade e tomar consciência das metamorfoses que ela vem sofrendo nos
últimos tempos por força da revolução operada no sistema educativo,
e da urgência de procedermos á sua reconceptualização, no sentido de
ultrapassarmos a fase confusa em que esta instituição fundamental con-
tinua a debater-se.
Recordemos três maneiras recentes de entender a universidade343.
Em meados do século XX e nos termos da concepção de educação
que prevalece na época, o chamado “ensino superior” é considerado o
escalão mais alto do (sub-)sistema escolar. A par do objectivo de serviço à
comunidade, que herdou do tempo da sua fundação na Idade Média e do
objectivo de investigação que adoptou no século XVIII, a universidade
considera como um dos seus objectivos essenciais, a par da investigação
e do serviço à comunidade, o ensino. Em consequência, o seu funcio-
namento pauta-se pelos cursos, curricula, programas, aulas, sumários,

243
exames, diplomas. E, por arrastamento, toda a estrutura da instituição,
em sectores-chave, acaba por aparecer dimensionada no mesmo senti-
do: os lugares do quadro de professores definem-se em termos de grupos
de disciplinas e ampliam-se de acordo com o ratio professores/alunos, o
montante do financiamento público estabelece-se em função do número
de alunos, etc.
A partir da década 70, e em consequência da (r)evolução do siste-
ma educativo, designadamente no que respeita à sequência educação
escolar (de adolescentes) e educação de adultos, a universidade come-
ça a ser compreendida como centro e motor da educação de adultos, com
consequências positivas na sua (re)conceptualização mas dilatórias na sua
(re)estruturação.
Se bem repararmos, todos os alunos da universidade são adultos, desde
os jovens adultos chegados da educação secundária até aos antigos alunos
que regressam à universidade em demanda de formação contínua ou de
iniciação às práticas de investigação nos ciclos mais elevados de mestrado
e doutoramento, e ainda a todos os outros que, eventualmente, nunca
foram alunos mas que a vida activa ou aposentada impele a procurar
múltiplas formas de alfabetização funcional, de complemento de habilita-
ções ou de reconversão profissional.
No entanto, perante esta invasão progressiva de trabalhadores-estudan-
tes, quase nada se fez no sentido de proceder à revisão profunda do fun-
cionamento da instituição que a nova situação exige, quer em termos de
adopção da pedagogia de educação de adultos e dos respectivos processos
que arrancam não da oferta mas da procura dos cursos por aqueles que
deles têm necessidade, quer em termos da necessária flexibilização institu-
cional na criação, organização e funcionamento de cursos breves, de mó-
dulos flexíveis e de horários pós-laborais, de fim de semana ou de férias.
Finalmente e na sequência dos mais recentes desenvolvimentos, de-
signadamente da publicação da Convenção sobre os Direitos da Criança, a
universidade vem-se assumindo como lugar de consciencialização e dina-
mização de todo o sistema educativo, nas dimensões abrangentes das duas
fases da educação ao longo da vida, com profundas consequências na
reconceptualização dos seus objectivos e funções.

244
Na medida em que a instituição de educação superior tem como uma
das suas missões a formação dos especialistas e responsáveis pelo desen-
volvimento de todos os sectores da vida humana que se encontram em
processo acelerado de mudança e de interacção à escala global, considera-
se que o trabalho da universidade não pode reduzir-se ao ensino ou trans-
missão dos conhecimentos já existentes (pedagogia bancária) e menos
ainda a dar aos alunos o mau exemplo dessa perspectiva reducionista do
processo educativo, mas deverá empenhar-se em detectar as necessidades
emergentes do mundo de hoje e procurar encontrar a melhor resposta
para elas (pedagogia problematizadora) e ainda, através da adopção desta
pedagogia da educação de adultos, visar que os seus alunos adultos se trei-
nem na capacidade de iniciar nos mesmos métodos a geração mais nova
dos adolescentes.
Só um desempenho deste tipo poderá corresponder verdadeiramente
à missão primeira e essencial da universidade: a investigação, como fonte
de produção de conhecimentos, ao serviço da inteira comunidade humana.

O conceito de educação de adultos e a investigação universitária

Vimos anteriormente, no capítulo que lhe foi dedicado, que a educa-


ção de adultos consiste em criar condições para que os adultos se tornem ca-
pazes de procurar resposta para as suas necessidades e aspirações. Constatámos
ainda que, neste processo, não há professores que ensinem e alunos que
aprendam, nem sequer há educadores por um lado e educandos por ou-
tro, mas que todos, ao ritmo das necessidades da vida, podemos e de-
vemos exercer as duas funções, na medida em que todos podemos con-
tribuir para que todos nos tornemos mais capazes de prosseguir aquele
objectivo e atingir a realização pessoal e comunitária.
Esta postura pedagógica, correntemente assimilada e vivida pelos pro-
fissionais de educação de adultos, estranhamente continua a encontrar
dificuldade em ser aceite no espaço nuclear da educação de adultos que é
a instituição de educação superior.
É conhecida a reacção por vezes violenta, se não mesmo virulenta, de
uma boa parte dos professores de diversos domínios científicos da uni-

245
versidade e, acaso sobretudo, dos mais antigos e consolidados, perante
os novos colegas das faculdades, institutos e departamentos do recente
domínio científico da educação.
Passando por alto o facto histórico de alguns desses domínios científi-
cos terem sofrido dificuldades semelhantes nos tempos em que emergiram
dentro da instituição universitária, aqueles professores referem-se, por ve-
zes em tom displicente ou mesmo pejorativo, às “ciências da educação”,
às “práticas pedagógicas”, às “pedagogias”, ao “pedagogismo”. E por uma
razão de peso: porque acreditam que, ao insistir-se neste ponto, se está a
descurar ou reduzir a importância da que consideram ser a tarefa primeira e
mais nobre da universidade: investigar. E, neste sentido, há que reconhecer
que têm toda a razão e merecem total acordo com o seu ponto de vista.
Mas importa verificar também que há em tudo isto uma grande con-
fusão: essa reacção visceral que, afinal, é de todos nós, não é contra a
pedagogia sem mais, mas contra a pedagogia da mera transmissão de co-
nhecimentos, tradicionalmente praticada nos escalões da educação básica
e secundária e, incompreensivelmente, também em muita pedagogia em
uso na universidade.
De facto, a verdadeira pedagogia universitária corresponde à pedago-
gia da educação de adultos, em que não há ensino nem dualidade de pro-
fessores e alunos, mas sim encontro de adultos que procuram ajudar-se
uns aos outros na procura de respostas para os problemas, necessidades,
aspirações e sonhos de todos os adultos da comunidade.
Trata-se da pedagogia não bancária mas problemati­zadora, no voca-
bulário de Paulo Freire344. Ou da verdadeira pedagogia universitária que
Ortega e Gasset, nos anos 30, deno­minava pedagogia da alusão: “a única
pedagogia delicada e profunda. Quem quiser ensinar-nos uma verdade
que não no-la diga, mas simplesmente aluda a ela com um breve gesto.
[…] Quem quiser ensinar-nos uma verdade, que nos situe de modo a
que nós a descubramos”345.
Sim, é necessário repeti-lo e bem alto: a pedagogia universitária não
é a do ensino mas a da investigação, não é a da aula mas a do laboratório
ou, se quisermos, é a da aula quando esta é transformada em laboratório
de pesquisa ou em gabinete de investigação. Verifica-se quando o professor

246
se despe da postura pro­fessoral ou magistral de “quem sabe”, e assume
perante os alunos a atitude humilde de quem não sabe e, consciente de
que ele próprio anda à procura, convida os seus alunos a participarem nessa
mesma tarefa: “eu ando a investigar este assunto; vocês querem associar-se
a mim nesse trabalho?”
Encontramos, assim, o perfil que, por um lado, é o do verdadeiro edu-
cador de adultos e, por outro lado, corresponde à identidade profissio­nal
do verdadeiro educador- investigador-professor universitário:

– não mero “docente” ou transmissor de conhecimentos, acaso


hau­ridos de outros professores ou autores,
– nem mero cientista ou especialista investigador que trabalha para
si próprio, isolado ou integrado em equipas ao serviço de uma
empresa privada ou do sector público,
– mas investigador que trabalha numa instituição de educação su-
perior, acolhe os alunos candidatos a iniciar-se na investigação e
com eles cria um grupo de trabalho e desenvolve um processo que
os leva a sentirem-se irmanados na aventura da pesquisa, e assim
presta um contributo específico para o crescimento pessoal de
cada um deles e estimula, na universidade, a função reprodutora
de novos investigadores, ao serviço da comunidade de nós todos.

Ao nível da universidade, a investigação e a educação (de adultos) equi-


valem-se como dimensões do mesmo processo que visa a realização hu-
mana e o serviço comunitário.
O douto que sabe, o doutor que investiga e o docente que ensina revelam
três faces da mesma identidade profissional e três exigências da formação
do educador-investigador-professor universitário. Ao colocar essas três com-
petências ao serviço da criação de condições para que os seus alunos se
desenvolvam, cresçam, sejam e se realizem como pessoas, cidadãos e pro-
fissionais, o educador-investigador-professor universitário está certamente a
promover o processo educativo ao nível mais elevado.
Em termos de educação ao longo da vida, o processo educativo im-
plica assim a criação de condições para que o ser humano, ao longo da

247
sua existência, vá sendo capaz de conjugar diferentes verbos: ao nível da
educação dos adolescentes, o verbo crescer em todas as suas dimensões;
ao nível da educação dos adultos, para além de redescobrir a ciência já
anteriormente descoberta por outros, o verbo descobrir a ciência ainda
por descobrir, em tudo o que diz respeito à procura de resposta para os
problemas, as necessidades, os desejos, as aspirações e as utopias de todos e de
cada um de nós.
E a liderança deste último processo corresponde ao perfil da identida-
de do educador-investigador-professor universitário.

Metodologia: a relação especialista/generalista

Para o recto desempenho de semelhante tarefa, não basta ao educador


de adultos, quer ao nível das necessidades correntes e concretas da vida de
todos os dias, quer ao nível da investigação universitária, ter adquirido a
especialização (por mais aprofundada que seja) numa ciência ou ramo do
conhecimento, mas necessita de possuir a formação geral, o mais ampla
e aprofundada possível, na compreensão do sentido da própria existência
humana.
Por outras palavras, no vastíssimo campo da formação, não basta ser
especialista. É preciso também e mesmo antes ser generalista.

Especialista procede do *IE Spec- que envolve a ideia de “olhar com


atenção, contemplar, observar” e de onde, através de diferentes lexemas
latinos, recebemos um grande número de lexemas em português cuja
semântica aponta para realidades que, de algum modo, reflectem uma
perspectiva reduzida, à superfície, afastada ou desnivelada, resultante da
postura de quem observa ou contempla: (reduzida) espécime, espécie e es-
pecífico, especial e especializado; (à superfície) inspecção e inspector; (afasta-
da) aspecto e circunspecto, espectáculo e espectador, perspectiva, prospectiva e
rectrospectiva, expectativa e expectável, perspicácia e suspicácia; (desnivela-
da) respeito, despeito, desrespeito e suspeito; (levitante) espectro e espectogra-
ma, espelho, especular e espectulativo; etc.346.

248
Pelo contrário e longe do sentido ligado à ideia de superficialidade que
hoje correntemente lhe atribuímos, generalista vem da raíz *IE Gen-, Gne-
que envolve as ideias de “gerar, nascer”, e da qual recebemos grande parte
do vocabulário essencial que diz respeito à existência de todos e de cada
um de nós: pela parte de gerar, temos gene e genital, germe e gestação, génio
e genial, gente e genuíno, irmão (lat. germanus) e progenitor, geral e general
etc.; pela parte de nascer, temos natal, nação e nacional, nado, inato e nativo,
natural e natureza, emprenhar e impregnar, cognato e cunhado, etc.347
Tomamos, assim, consciência de que a formação de que temos neces-
sidade para exercer a tarefa de educador de acordo com o perfil verdadei-
ramente humano, implica, não só nem tanto adquirir conhecimentos nas
ciências em que nos tornamos especialistas, mas também e anteriormente
assimilarmos conhecimentos no âmbito das disciplinas que visam captar
o sentido da própria existência dos seres humanos, que são gerados, nascem,
crescem e morrem.
Mais concretamente, o âmbito da formação necessária aos educado-
res-investigadores-professores da educação superior e da educação de adul-
tos em geral não poderá fazer a economia de qualquer uma destas três
componentes:

– as ciências do domínio científico em que nos especializamos;


– as ciências da comunicação que nos habilitem a saber interagir
com os outros seres humanos adultos que são os colegas e os
alunos;
– as ciências humanas que ajudem a nos compreendermos o me-
lhor possível a nós próprios e aos outros, a fim de podermos
ajudar na criação das melhores condições para crescermos todos
como pessoas, cidadãos e profissionais.

E porque a especialização exacerbada e a desatenção ao pensamento


complexo, para além de nos reduzirem o campo de visão, frequentemen-
te nos toldam o olhar para vermos bem para além dele, e deste modo
acabam por tornar-se “a causa profunda do erro”348, importa recorrermos
todos à inter-ajuda, promovendo o trabalho comum em equipas de mul-

249
ti-inter-transdiciplinaridade. As dificuldades universalmente sentidas nos
projectos desta natureza só poderão ser superados se e na medida em que
exploremos devidamente a nossa outra dimensão de experiência e saber
humano próprios do generalista. O homem adulto só é completo quan-
do, para além de procurar ser o melhor na sua especialidade ou o que
sabe mais do seu ofício, também sabe trabalhar em equipa, sabe articular
a sua com as outras especialidades à luz da sabedoria-mãe sobre o que é o
ser humano que, de uma ou de outra forma, se encontra latente em cada
um de nós.
A este nível de exigência e na continuidade de uma disciplina que
todos cursámos na educação secundária, nunca poderá deixar de ser útil
recorrer ao gene da filosofia (da educação) para que nos estimule a pôr em
questão e agitar, para além dos tópicos específicos da nossa área científica,
os tópicos comuns propriamente humanos, no âmbito da ontologia (que
é o ser, o homem e o seu crescimento?), da epistemologia (que é o saber,
a verdade e a sua interpretação?), da axiologia e da ética (que é o agir, o
mundo dos valores e o seu mistério?).

Critério último: a realização pessoal do adulto

O desenvolvimento que dedicámos a cada um dos tópicos da educa-


ção de adultos e a insistência, neste contexto, sobre a educação superior,
não pode levar-nos a perder de vista o que fundamentalmente está em
causa, ou seja promover e estimular a criação de condições para que to-
dos os adultos se tornem capazes de: se movimentarem como pessoas, seres
conscientes, livres e responsáveis, nos diversos sistemas de vida (econó-
mico, sócio-político, cultural) em que se encontram inseridos; procura-
rem eles próprios e não outros por eles, resposta para as suas necessidades e
aspirações; procurarem deste modo atingir a sua realização pessoal; entre-
-ajudarem-se, na medida em que todos somos educadores e educandos;
atribuírem prioridade aos mais desfavorecidos.
Todos estamos conscientes das tremendas dificuldades que continuam
a levantar-se a este projecto, quer no sistema económico pela injustiça das
desigualdades no acesso aos bens materiais patentes na geografia da fome,

250
quer no sistema sócio-político pela continuidade das guerras e sequência
das mortandades e genocídios, quer ainda no sistema cultural dominado
pela competitividade versus solidariedade como revela o registo dos atra-
sos que se avolumam em várias regiões do mundo.
Mas, por outro lado, a exigência de reconhecimento e respeito pela
dignidade e direitos de todos e de cada homem, não permite afrouxar na
defesa deste projecto, antes pelo contrário.
Porque o mínimo que se pede para cada ser humano adulto, enquan-
to ser crescido, amadurecido, autónomo, é que lhe seja dada a possibili-
dade de tomar nas mãos as rédeas do seu caminho para poder chegar à sua
realização como pessoa.

5. A educação ao longo da vida como processo de desenvolvi-


mento pessoal

Acabamos de abordar a educação de adolescentes e a educação de adul-


tos enquanto duas fases do processo de educação ao longo da vida, especifi-
cando, para cada uma delas, o que diz respeito ao tempo, lugar, conceito,
metodologia, avaliação.
Lenta mas progressivamente, a educação começa a entender-se como
processo que afecta a existência de cada ser humano e implica continuidade
no tempo da adolescência (do nascimento aos 18 anos) e da vida adulta
(da juventude à terceira idade) e abertura no espaço (todos os lugares em
que o homem vive, convive, trabalha e se diverte).
O seu objectivo já não consiste em “preparar o adolescente para a
vida” mas em estimular o processo da vida mesma em ordem a que o
ser humano, depois de ter crescido enquanto adolescente e como agente
da sua própria educação enquanto adulto, concretize o seu projecto de
existência, até à realização pessoal e a participação no desenvolvimento
integrado da comunidade, dentro dos condicionalismos do respectivo
ecossistema.
Nesta situação reveste-se da maior importância o conhecimento ge-
neralizado e aprofundado do processo global e complexo do desenvolvi-
mento humano, dos seus fundamentos científicos e diferentes modelos de

251
análise, da evolução dos comportamentos nos seus diferentes estádios,
da relevância dos factores biológicos, psicológicos, sociais e culturais, dos
estrangulamentos a ter em conta na prática pedagógica, dos problemas a
exigir mais aprofundada investigação.
Emerge assim o facto já registado anteriormente de o verbo educar, no
tríplice sentido de alimentar, ajudar a crescer e conduzir, dever ser auxi-
liado por outros verbos tais como “cuidar”, “medicar”, “pensar”, e emerge
também a necessidade de os pais recorrerem, sempre que for caso disso,
aos profissionais das respectivas áreas, professores, psicólogos, assistentes
sociais, médicos, enfermeiros, etc. E, importa acrescentar que este prin-
cípio, válido para todos os seres humanos cujo percurso se desenvolve na
forma normal, vale mais ainda para todos aqueles que, por qualquer des-
vio dos padrões normais de desenvolvimento, resultantes de raiz genética,
de acidente traumático, de deficiências da condição económica, social ou
cultural, sai fora dos parâmetros da normalidade.
A dignidade pertence igualmente a todos os membros da Família
Humana.

Nessa exacta medida, a cada ser humano enquanto pessoa única, irre-
petível e insubstituível, assiste o direito a que lhe sejam criadas as melhores
condições para poder abrir e percorrer o seu próprio caminho e procurar
atingir a sua realização pessoal.
Ninguém cresce ninguém. Cada um de nós é que cresce, ao seu pró-
prio ritmo e para a sua própria meta, a partir das capacidades recebidas
na origem e das condições criadas pela comunidade envolvente durante
o percurso.
Assim, o conceito de educação ao longo da vida que emergiu e se foi
clarificando durante a segunda metade do século XX, acaba por definir-se
como processo global e sequencial de desenvolvimento de cada ser humano,
desde que nasce até que morre, ao longo das duas fases, – adolescência e vida
adulta – da sua existência.
Este novo paradigma da educação que ao longo de quatro décadas, de
maneira lenta mas imparável, vem abrindo o seu caminho, anda hoje a
ser assimilado, seja embora, por vezes, de maneira um tanto desfocada na

252
linha dos respectivos interesses e deformações profissionais, por responsá-
veis da política, da sociedade e da cultura.
Na sequência de estudos levados a cabo no âmbito do Parlamento
Europeu, o Livro Branco sobre o Crescimento, Competitividade, Emprego.
Os Desafios e a Pista para entrar no Séc. XXI (1994), evocando os “ideais
que forjaram a personalidade e a marca distintiva da Europa”, atribui
prioridade a “apostar na educação e na formação ao longo da vida” e pro-
mover o desenvolvimento de uma verdadeira “sociedade de aprendiza-
gem” ou “sociedade educativa349.
Por sua vez, a Mesa-Redonda dos Industriais Europeus (1995), no
Relatório com o título Uma Educação Europeia. A caminho de uma so-
ciedade que Aprende, depois de se mostrar consciente da “transformação
radical tanto política como social e económica” que a todos nos afecta,
e de verificar que a escola não está a acompanhar o ritmo da mudança e
que “o fosso entre a educação necessária e aquela que na realidade existe é
grande e corre o risco de aumentar”, lança o “grito de alarme” para “agir
desde já” nos cinco elos da “cadeia educativa”, em que o primeiro e o
último são tão importantes como os outros três:

Elo I: reforçar a “educação pré-escolar”;


Elo II: reorganizar a “educação escolar” a partir das três cul-
turas: científico-tecnológica, cultural-linguística,
económico-social;
Elo III: estruturar o “ensino secundário” como “placa giratória”
tridimensional que articule a continuação da formação
geral, a formação profissional e a experiência na empresa;
Elo IV: “formação superior inicial” nas instituições de ensino supe-
rior em cooperação e partenariado com as empresas;
Elo V: educação de adultos na modalidade de formação contínua
que responda às necessidades das populações350.

A Comissão Internacional criada pela UNESCO, constituída por 14


personalidades representativas das diversas áreas geográfico-culturais e
presidida por Jacques Delors, ao apresentar o seu Relatório com o título

253
A Educação – Um Tesouro está Escondido Dentro Dela (1996), depois de
fazer o balanço da educação do séc. XX, procura descortinar o horizonte
da educação no séc. XXI.
Depois de assentar os quatro pilares da educação – aprender a conhe-
cer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros, aprender a ser – destaca
a importância da educação secundária como “placa giratória” de todo o
processo e a vantagem de a reestruturar na forma de “formação em alter-
nância” escola-empresa, põe em relevo a educação de adultos, designada-
mente na sua dimensão de formação contínua, e aborda a sequência entre
as duas na perspectiva da educação ao longo da vida chegando a focar uma
situação carregada de futuro: o lugar do trabalho na sociedade.
“E se amanhã o trabalho deixasse de constituir a referência princi­pal relativa-
mente à qual se define a maior parte dos indivíduos?”351

Tendo em conta as recentes e rápidas transformações operadas nas


comunidades dos países avançados por força do desenvolvimento cien-
tífico-tecnológico com particular incidência na distribuição e no ritmo
de tempo de trabalho e no prolongamento da vida humana, esta nova
questão passou de imediato a ser amplamente reflectida e comentada.

“A redução do tempo de trabalho, devido ao facto de os jovens chega­


rem a ele mais tarde e os adultos se retirarem dele mais cedo, vem
introduzindo situações e conceitos novos como ”trabalho a tempo
parcial”, “trabalho a tempo determinado ou precário”, trabalho de
duração indeterminada”, “desenvolvimento do auto-emprego”, e tem
a ver, mais uma vez e na linha da tradição ocidental, com a relação
entre o trabalho e o lazer, o negócio e o ócio, o emprego e o tempo
livre, a vida e a educação.
Os tempos dedicados ao pleno emprego, por um lado, e à educação-
formação inicial de jovens e contínua de adultos, por outro, tendem a
flexibilizar-se, a conjugar-se e a dar origem a novas sínteses: trabalho
flexível a tempo reduzido, licenças parentais, sabáticas, de educação,
etc.
Estas concepções inovadoras de trabalho, que se vêm impondo pelas

254
“preferências individuais dos trabalhadores” e pelas “necessidades de
flexibilização das empresas”, parecem convergir para um contínuum
de vida activa e de vida “aposentada” em que os adultos mais no-
vos ganhem algum tempo para tarefas fora do trabalho não menos
impor­tantes como as familiares, sociais e culturais, e os adultos mais
velhos, acaso reformados, tenham ocasião de contribuir para as tarefas
co­muns com a sua experiência e o seu saber acumulados.
E tudo a redundar para o enriquecimento recíproco das diversas
gera­ções e a educação permanente de cada um na comunidade de
todos.”352

Entretanto, o ritmo da evolução acelerou de tal modo que, nestas di-


versas dimensões, nos últimos anos e um pouco por toda a parte, os temas
da educação de adolescentes e da educação de adultos se vêm conjugando no
novo paradigma de aprendizagem e de educação ao longo da vida353.
Começámos a verificar ainda que a educação ao longo da vida de cada
um de nós tem a ver com o nível de educação comunitária de nós todos.
E constatámos ao mesmo tempo que uma comunidade verdadeiramen-
te mundial e educativa traz consigo a emergência de novos problemas.
O que nos leva a dar mais um passo nessa direcção.

255

Capítulo VII

Educação Comunitária: o desenvolvimento da Família Humana

O caminho do nosso desenvolvimento pessoal não se processa de ma-


neira isolada, mas dentro da trama vastíssima e complexa da comunidade
dos homens.
De facto, vivemos em conjunto. Mesmo quando não podemos, não
sabemos, ou não queremos conviver, quando nos fechamos, afastamos,
isolamos, quando nos deixamos envolver em mal entendidos, em confli-
tos, em lutas, em guerras, quando nos agredimos, atacamos, matamos.
Por mais que doa e custe ao nosso eventual ego(cen)t(r)ismo, somos
levados a reconhecer que fazemos parte do todo que é a comunidade e
que não existe alternativa.
Acontece que o caminho do desenvolvimento pessoal de cada um de
nós se encontra sempre eriçado de obstáculos e constrangimentos, provo-
cados quer pelo universo das coisas, tantas vezes hostis, quer pela comu-
nidade de todos os seres humanos cujos caminhos se cruzam, baralham e
confundem com os nossos.
Por isso mesmo, acontece também que a educação ao longo da vida de
cada um de nós só é possível com a ajuda e a colaboração de nós todos:
na fase da educação de infância e porque “a criança, pela sua falta de
maturidade física e mental tem necessidade de protecção e de cuidados
especiais” (Convenção sobre os Direitos da Criança), no lugar natural da
família nuclear com o apoio da família alargada; na fase da vida adulta
e porque nela todos nos encontramos e desencontramos e acabamos por

257
ficar reféns de mil dificuldades e contradições a ponto de “não se poder
afirmar que alguém liberta alguém ou que alguém se liberta sozinho, mas
que os homens se libertam em comunhão”354, no lugar natural que é a
Grande Família que todos constituímos.
Destas complexas relações de interdependência que se estabelecem en-
tre os processos de educação ao longo da vida de cada um dos seus mem-
bros, vai emergir o processo de educação da comunidade inteira.
Acontece ainda que os seres humanos, de qualquer idade, fazem parte
das muitas comunidades que os envolvem em círculos concêntricos (fa-
mília nuclear e ampliada, grupo social, profissional e religioso, autarquia,
cidade, nação, associação supranacional, Família Humana)355 e devem ser
encorajados a participar nelas e entreajudar-se, de acordo com a meto-
dologia da educação comunitária, na qual “cada um é não somente um
aluno em potência mas também um educador em potência”356.
Esta situação factual e óbvia no plano da compreensão racional que
atravessa os documentos emanados das Organizações Internacionais, é
contraditada, de forma chocante e problemática, pela experiência de to-
dos os dias e pelo conhecimento da história da humanidade: o compor-
tamento dos seres humanos, quer individualmente quer em grupo, nem
sempre se pauta, melhor, muito pouco se pauta pelo critério de entrea-
juda, antes pelo contrário, parece prevalecer nele o afastamento e fecha-
mento egoísta, quando não o conflito, a violência e a guerra.
Urge portanto inventariar e analisar as atitudes do ser humano que
se encontram na base destes comportamentos e que provavelmente se
podem reduzir a três:

– fechar-se em si mesmo, demarcar, defender e, se possível, au-


mentar o seu território;
– abrir-se aos outros, entrar em comunicação com eles e parti-
cipar na procura, em conjunto, de regras de convivência, es-
treitamento de laços e processos de vida harmoniosa dentro do
território comum;
– abrir-se ainda mais, ao sentimento e compreensão do contexto
em que todos nos encontramos, nos movemos e somos dentro

258
da única família humana, no sentido de se dedicar a rentabilizar
os recursos do território comum para criar as melhores condi-
ções a todos, particularmente aos mais desfavorecidos, a fim de
todos nos podermos realizar nos valores da dignidade e dos di-
reitos humanos que constituem a nossa “mais alta aspiração”, a
“concepção comum” e o “ideal comum”.

Neste esforço de compreensão e síntese, o recurso a uma determinada


matriz do indo-europeu poderá revestir-se de grande utilidade.

A raiz *IE Mei- envolve três significados diferentes dos quais, através
dos lexemas latinos intermediários a que mais abaixo e na devida altu-
ra iremos fazendo referência detalhada, recebemos em português uma
boa parte do vocabulário essencial das relações humanas e dos processos
educacionais:

– sentido de “fixar, construir, cercas, muros ou fortificações”,


donde nos vem muros e muralhas, munir e munições;
– sentido de “mudar e trocar”, donde recebemos mudar, mi-
grar e permear e ainda imunidade e comunidade, comunicação e
comunhão;
– sentido de “pequeno e pequenez”, donde nos vem diminuir,
menos, menor e mínimo e ainda ministro no sentido originário
de “servidor”357.

A partir destes dados e ao longo do presente capítulo, propomo-nos abrir


caminho para a compreensão do processo de educação comunitária, designa-
damente o sentido, emergência e actualidade do conceito, e a seguir e de acordo
com a sequência dos três significados da raiz indo-europeia que acabamos de
mencionar, a condição humana e a utilização das coisas, a cidadania terrestre e
a comunhão entre as pessoas, a família humana e o culto dos valores.

259
1. Sentido, emergência e actualidade do conceito

O processo de educação ao longo da vida de cada um de nós decorre


dentro das comunidades humanas de que fazemos parte.
Nesta situação, o seu êxito irá depender, em grande medida, das con-
dições que saibamos criar uns aos outros para o crescimento de todos e,
no fim de contas, para o crescimento da própria comunidade.
Abordemos o sentido, a emergência e a actualidade deste novo
conceito.

O sentido de educação comunitária

As relações humanas caracterizam-se pela reciprocidade.


A afirmação “cabe primacialmente aos pais e às pessoas que têm as
crianças a seu cargo a responsabilidade de assegurar […] as condições de
vida necessárias ao desenvolvimento da criança”358 envolve a recíproca de,
numa vida normal, caber a qualquer criança, mesmo que seja de forma
inconsciente, contribuir para assegurar as condições de crescimento hu-
mano e realização pessoal de seus pais e parentes e, em última análise, de
todos os membros da sua comunidade.
Com efeito a satisfação da tendência natural para o acasalamento,
para a geração dos próprios filhos ou para a adopção de filhos alheios na
falta dos próprios, para a tarefa de os “criar” ou educar, fazem parte do
processo de desenvolvimento e realização dos seres humanos.
Assim, em termos de educação, no sentido básico referido de “ama-
mentar, nutrir, alimentar”, os pais que proporcionam aos filhos o alimen-
to que lhes é necessário em todas as dimensões, desde a simplesmente
material e afectiva à social, mental, moral e espiritual, são também ali-
mentados por eles nas mesmas dimensões.
Em termos de formação, no sentido endógeno, que exprime a maneira
como do invólucro material dos seres vivos brotam as mais belas formas,
ao jeito de folhas, flores e frutos na vida vegetal, de movimentos, gestos,
sons, (re)conhecimentos e comportamentos afectivos na vida animal, de
sentimentos profundos, conhecimentos abrangentes e comportamentos

260
delicados na vida humana, verificamos que nas famílias em que os pais
desenvolvem um ambiente de respeito pelos seus filhos independente-
mente do seu tamanho ou idade, de atenção, compreensão, benevolên-
cia, carinho, ternura e amor, são progressivamente retribuídos por eles.
Mesmo em termos de ensino e aprendizagem e na medida em que
se trata de um sub-processo integrado no processo global de cria-
ção de condições para que as pessoas cresçam, encontramos a mesma
reciprocidade.
Verificámos anteriormente que na educação de adultos, ao nível intra-
geracional, não existem por um lado adultos educandos e por outro lado
adultos educadores, mas que todos nós, na medida da própria preparação
e experiência de vida, somos educadores e educandos e que, por isso,
“ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mes-
mo: os homens se educam em comunhão”359.
Temos agora ocasião de verificar que também aqui, na educação co-
munitária, ao nível intergeracional que envolve adultos e adolescentes
(incluindo as crianças da mais tenra idade e até em gestação no seio das
mães), não existem educadores (adultos) por um lado e educandos (ado-
lescentes) por outro lado, mas que todos, uns e outros, adolescentes e
adultos, somos simultaneamente educadores e educandos, na medida em
que a ninguém de nós apenas são criadas condições pelos outros, nem a
ninguém de nós só compete apenas criar aos outros condições, mas que
todos podemos, devemos e de facto, mesmo inconscientemente, anda-
mos a criar condições para que todos cresçamos (ou, no sentido contrá-
rio, para que decresçamos).
Nesta situação e a partir de um simples exemplo, podemos verificar
quanto é difícil estabelecer quem é mais e quem é menos educador e edu-
cando. Imaginemos o caso, outrora corrente na vida rural e hoje mais raro,
mas que, por uma razão ou por outra, continua a acontecer nas aldeias e
mesmo nas cidades, de uma família na qual coabitam, debaixo do mes-
mo tecto, os avós, os pais e os netos, e procuremos responder à pergunta:
“quem educa mais a quem, o avô ao netinho ou o netinho ao avô?”.
Uma primeira constatação é de que esta pergunta, se fosse feita há
pouco mais de meio século, era totalmente destituída de sentido: toda a

261
gente sabia, sem qualquer sombra de dúvida que, enquanto adulto, só o
avô era educador e, enquanto criança, só o netinho era educando. Hoje,
depois das revoluções entretanto operadas, quer na educação de adoles-
centes, quer na educação de adultos e, sobretudo, no próprio conceito
de educação que deixou de estar reduzido a ensinar e (re)adquiriu o sen-
tido de contribuir para criar as melhores condições para que as pessoas,
qualquer que seja a sua idade, cresçam e se desenvolvam até à sua plena
realização, depois destas espantosas revoluções, já ninguém de nós sente
qualquer estranheza perante a pergunta formulada.
Outra constatação é de sentirmos que não é fácil a resposta: em ter-
mos de acumulação de conhecimentos, de experiência e de compreensão
aprofundada da vida, o avô pode certamente exercer em maior medida
o munus de educador; mas em termos de acompanhamento do ritmo
da aceleração da mudança, designadamente no domínio das novas tec-
nologias emergentes, da sintonia com os novos espaços do presente e
da intuição dos novos horizontes do futuro, quase sem dúvida a criança
monitoriza hoje melhor o processo de educação.
Se não vejamos: mesmo tratando-se de uma criança de tenra idade,
quem lá em casa sabe mais de marcas de automóveis, lida melhor com os
computadores, explora mais a Internet e melhor os telemóveis? Há anos
atrás, quando imperou a moda do “cubo mágico” e se testava a capaci-
dade de uniformizar as suas quatro faces, quem concorria e ganhava os
concursos: os adultos ou os adolescentes?
De qualquer modo, ao procurarmos responder a essa pergunta que
hoje todos aceitamos e até se tornou familiar, podemos ter dúvidas e dis-
cutir indefinidamente sobre quem educa mais a quem, mas o facto de
não estranharmos a pergunta e sobre ela entabularmos discussão, tem
como base a aceitação actual e generalizada do facto indiscutível de que
todos, adolescentes e adultos, somos educadores e educandos e “todos
nos educamos em comunhão”.
De aqui vem o conceito actual de educação comunitária, entendido
como processo global e sequencial de desenvolvimento das comunidades hu-
manas, ao longo da história, a partir da interacção dos processos de educação
ao longo da vida de cada um dos seus membros.

262
É este conceito que se encontra na base de todas as diversas modalida-
des de educação comunitária que abordamos a seguir.

Emergência do conceito ao nível das comunidades-base

História. O conceito de educação comunitária360 aparece nos países


anglo-saxónicos nos tempos da grande depressão que se seguiu ao crash
financeiro de 1929, e se traduziu no caos económico, nos níveis brutais
de desemprego, na estagnação produtiva e na lenta recuperação à sombra
do programa New Deal dos anos 30.
Pressupõe o envolvimento e a participação dos membros de uma co-
munidade na resolução dos seus problemas.
O movimento enraizou-se na tradição destes países: na Inglaterra
com as experiências dos village colleges que emergiram (H. Morris, 1930)
nas comunidades rurais e depois se estenderam a outros núcleos da po-
pulação; nos EUA, através de múltiplas fórmulas que nasceram (Flint,
Michigan, 1932), se expandiram e foram consagradas pela legislação fe-
deral em nove de Março de 1978361.
Entretanto o movimento alastrou um pouco por toda a parte.

Concepção: trata-se de processos que envolvem as comunidades-base


(grupos locais, bairros, al­deias, etc.) cujos membros, na generalidade e
sem qualquer discriminação de idade, sexo, classes sociais, credos polí-
ticos ou religiosos, tomam consciência das suas necessidades e do ritmo
da mudança a que se encontram sujeitos, e propõem consti­tuir-se numa
comunidade dinâmica, que mude progredindo, pela participação de todos
num projecto comum de vida e desenvolvimento.
Nos últimos anos, procura-se que o desenvol­vimento, orientado para
a qualidade de vida, tenha em conta todos os condicionalismos e poten-
cialidades do ecossistema em que a comu­nidade se encontra inserida.

Objectivos. Revestindo-se das características de processo endógeno no


que diz respeito à iniciativa e à liderança, a educação comunitária propõe-
se como objectivos essenciais e sequen­ciais: a) a tomada de consciência, por

263
parte de todos os membros da comunidade, das neces­sidades e aspirações
do grupo e da sua capa­cidade para lhes encontrar resposta; b) a auto­-
-organização em ordem à resolução desses problemas, o que implica a
identificação e mo­bilização de todos os recursos (humanos, físi­cos, técnicos
e financeiros), de todas as forças institucionais (do interior e do exterior,
incluin­do a ajuda de outras comunidades e os subsí­dios estatais), de to-
dos os apoios exteriores previsíveis; c) a criação e rodagem das estruturas
(de pla­neamento, ensaio, execução e avaliação) capa­zes de promover a
resolução permanente dos problemas, actuais e futuros, de acordo com
o ritmo imposto pela própria dinâmica do desen­volvimento das popu-
lações dentro do respecti­vo ecossistema; d) a vivência plena do sentido
comunitário na existência de cada um.

Conteúdo. O conteúdo da educação comunitária não comporta, por


isso mesmo, limites institucionais, integra todas as actividades, processos,
recursos e forças educativas da comunidade, e o seu verdadeiro potencial
e significado somente será atingido quando responder às diversas necessi-
dades e situações, criar as condições requeridas e utilizar as competências
disponibilizadas pela existência das pessoas e do grupo. Nesta medida, a
educação comunitária define-se não como um projecto, programa ou curri-
culum, mas como um processo que alguns responsáveis entendem mais em
termos de comunidade (Minzey e Le Tarte, Van Voorhees, Bright e Case)
e outros mais em termos de educação (Seay, Kerensky e Melby, Hiemstra),
mas que afinal se exprime na síntese em que a comunidade é centrada na
educação e a educação é concebida na dimensão comunitária.

Métodos. Para além da utilização de todos os recursos e forças da co-


munidade, os métodos implicam sobretudo a participação de todos na
educação de todos, através da interacção essencialmente cooperativa e
não competitiva entre classes, gerações e indivíduos, em que cada um
ensina aos outros o que sabe e aprende com eles o que ignora, num pro-
cesso que não se pode definir como serviço de uns (professores) em be-
nefício de outros (alunos), mas como troca de conhecimentos e serviços
mutuamente enriquecedora.

264
Organização. Em tal comunidade educativa de mestres-discípulos que,
na fórmula anglo-saxónica corrente, utiliza como agente catalítico uma
estrutura organizacional que envolve o(s) estabelecimento(s) escolar(es)
existente(s) e a autarquia local, através de uma enorme variedade de for-
mas e estilos, tudo é feito por todas as pessoas, para todas as pessoas, e
com todas as pessoas, gerando-se um clima de vivência interpessoal que
assegura o crescimento dos indivíduos e do grupo e a progressiva desco-
berta do projecto de desenvolvimento comunitário integrado, pluraliza-
do e participativo, mais adequado a cada comunidade concreta.

Funcionamento. A comunidade, toda ela transformada em ambiente,


matéria e estímulo de aprendizagem, assume o aspecto de verdadeira “ci-
dade educativa” (E. Faure) que não só educa os seus membros, segundo
a tradição da paideia grega – “a cidade é o melhor mestre” (Plutarco)
– mas, tomada em sentido global, se auto-educa a si própria e se transfor-
ma em sujeito do próprio desenvolvimento362.

Avaliação. Desenvolve-se deste modo um novo conceito de educação


que engloba a educação de adolescentes e a educação de adultos e cons-
titui a fórmula mais perfeita de educação ao longo da vida, na medida
em que é centrada não propriamente sobre o indivíduo, as suas diferen-
ças, interesses, criatividade e realização pessoal, mas directamente sobre
a comunidade, e sobre as diferenças, interesses e criatividade individuais
como factores de participação na tarefa comum da realização de todos.

Expansão do conceito ao nível nacional, regional e mundial

Na segunda metade do séc. XX e na sequência do desenvolvimento


das diversas dimensões do processo educativo anteriormente abordadas
– educação escolar, educação de infância, educação de adultos, educação
ao longo da vida – a educação comunitária emerge como síntese de todas
elas e, por outro lado, tende a assumir-se em espaços cada vez mais am-
plos correspondentes à estrutura política de uma nação, de um Estado
integrado por regiões (exemplo: a antiga Jugoslávia), de uma associação

265
de nações (exemplo: a União Europeia), de organização mundial (exem-
plo: Nações Unidas).
A nível nacional, desenvolveram-se experiências extremamente varia-
das e um pouco por toda a parte, desde Portugal através de iniciativas
ligadas à Associação de Escolas Comunitárias (1965-1985) inspirada na tra-
dição anglo-saxónica de Além-Atlântico com ligações ao Plano Nacional
de Educação de Adultos (PNAEBA, 1976-86), até à Jugoslávia e Hungria
(pela Sociedade para a Disseminação da Ciência, em trabalhos nas comu-
nidades-base), Cuba e Peru (que pretendeu “romper definitivamente com
dois vícios igualmente perniciosos da educação tradicional, o estatis­mo
autoritário e o privatismo discriminatório” e instituir a educação comu-
nitária “nuclearizada”), Tanzânia e China (após 1949), etc.363
No plano médio, a Fundação Europeia da Cultura lançou o seu Projecto
de Educação do Plano Europa Ano 2000 (1975), orientado para uma educação
comunitária “fundada sobre as relações interpessoais e locais”364, o Conselho
da Europa, em Educação de Adultos e Desenvolvimento Comunitário: de-
safios e respostas (1987), atribui a mesma relevância ao tema365 e a União
Europeia, através de dois Livros Brancos, sobre Crescimento, Competitividade
e Emprego (1994) e sobre Educação e Formação (1995), apelando para “os
ideais que forjaram a personalidade e a marca distintiva da Europa”, aponta
para a necessida­de de promover, a esta escala, uma verdadeira “sociedade de
aprendizagem” ou “sociedade educativa”366.
À escala mundial, dentro do horizonte aberto pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem e nos anos mais recentes, encontramos
o exemplo do esforço conjugado das organizações internacionais UMDP,
UNESCO, UNICEF, World Bank, através da Declaração Mundial sobre
a Educação para Todos (Jomtien - Tailândia, 1990), em que o espírito da
educação comunitária de reveste de múltiplas e va­riadas fórmulas pro-
postas às comunidades locais, nacionais e regionais com a intencionali-
dade de atingir as dimensões da inteira comunidade humana367. Por sua
vez, o Relatório à UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação
para o Séc. XXI (1996), mencionando os vecto­res que apontam o cami-
nho que vai da comunidade­-base para a comunidade mundial, da coe-
são social para a participação democrática e do crescimento económico

266
para o desenvolvimento humano sustentado, apela para a urgência de
instaurarmos a educação ao longo de toda a vida, em ordem a promo-
vermos a emergência, no séc. XXI e na nossa “aldeia planetária”, de uma
co­munidade verdadeiramente mundial e educativa368.
Nesta última dimensão impõe-se uma reflexão mais ampla e apro-
fundada, designadamente focando os temas da condição do homem, da
cidadania terrestre, da Família Humana.

2. A condição humana e a utilização das coisas

Vimos anteriormente que no cerne do étimo do verbo educar (lat.


edŭco, as, are) se encontra a ideia de “amamentar, nutrir, alimentar”.
O homem, como aliás todo o ser vivo, necessita de alimento para so-
breviver. E para crescer. E para se desenvolver. E para se realizar.
Não admira pois que a primeira preocupação do ser humano tenha
sido e continue a ser a de procurar reunir, defender e explorar o máximo
de recursos para (sobre)viver e progredir. Mas este espírito, que de início
arrastou o homem para a diáspora planetária, é também o responsável
pela criação das civilizações dos muros, das armas e das guerras, o desen-
volvimento das culturas marcadas pelo culto dos meios que são as coisas
mesmo à custa dos fins que são os seres humanos, e com desprezo pelos
padrões de desenvolvimento que são os valores.
Vejamos melhor.

Diáspora planetária, civilizações e culturas

O estado actual da investigação, com recurso fundamental aos proces-


sos de serendipidade, vem pondo em relevo alguns consensos de natureza
científica acerca da evolução da vida (desde há 4 mil milhões de anos),
designadamente nas suas últimas etapas, rumo ao ser humano actual:
ordem dos primatas (70 milhões de anos), família dos hominídeos (7-6
milhões de anos), género homo nos sucessivos representantes – homo habi-
lis (2,5 milhões de anos), homo erectus (700 mil anos), homo sapiens (300
mil anos), espécie actual, homo sapiens sapiens (100 mil anos).

267
Totalmente dependentes do ecossistema na sua luta pela sobrevivência
e a partir do berço africano, as sucessivas gerações foram-se deslocando e
ocupando progressivamente o planeta: se o australopitecus (4-1 milhões de
anos) não ultrapassou as fronteiras de África, já o homo habilis e o homo
erectus (2 milhões a 200 mil anos) avançaram por toda a Eurásia, o homo
sapiens ocupou o mesmo espaço e, a partir dos últimos 40 mil anos, o
homo sapiens sapiens chegou aos confins das Américas e da Austrália369.
Mas é no Período Neolítico (10.000 a 4.000 a. C.) que o ser humano
avança decididamente no domínio e utilização controlada dos recursos
da natureza.
Lutando contra dificuldades de sobrevivência acrescidas, resultantes
das mudanças climáticas que acompanham o fim da última Era do Gelo
(Glaciação de Würm), inicia a passagem da vida nómada, recolectora
e caçadora, para a vida sedentária marcada pela progressiva fixação no
terreno, a construção dos primeiros abrigos de barro, de madeira e de
pedra que dão origem às primeiras aldeias, dedicação às tarefas de arrote-
amento e exploração agrícola, de domesticação e criação de animais, de
aproveitamento de peles e de lãs, de produção de cereais e de frutos, de
carnes e de leite, de ferramentas de madeira e de pedra, de utensílios de
barro a anunciar a cerâmica, mais tarde de objectos de cobre, de bron-
ze e de ferro que vão gerar circuitos de trocas e promover o comércio,
desenvolver o artesanato e a produção de obras de arte e ainda, levados
pelo sentimento das forças da natureza interior e exterior, dos símbolos
religiosos.
Criadas assim lentamente todas as condições necessárias, emergem
as sociedades complexas, nascem as primeiras civilizações e desenvol-
vem-se as grandes culturas, a começar pela Cultura Natufense (Líbano
– Palestina, 10.500 – 8.500 a. C.), num amplo movimento que se alarga
ao Crescente Fértil (Mesopotâmia e Egipto) e ainda à Anatólia (8.000-
7.000 a. C.), a todo o corredor do Irão-Índia-China (também a partir de
8.000-7.000 a. C.), à Europa (desde 6.000 a. C.), à América Central e
Andina (desde 4.000 a. C.), aos arquipélagos da Indonésia (a partir de
3.000 a. C.)370.

268
Mesmo restringindo-nos a uma análise mais ligada ao nosso tema da
educação, verificamos que o conceito de cultura é extraordinariamente
complexo e multifacetado.

Da raiz *IE Kwel- que envolve a ideia geral de “circular” e as ideias es-
pecíficas de “girar”, “ocupar-se de”, “pescoço”, através do verbo latino colo,
is, colŭi, cultum, ĕre, recebemos lexemas de importância fundamental no
que diz respeito quer ao aproveitamento das coisas, quer ao relacionamento
entre as pessoas, quer ainda ao respeito que nos merecem os Valores371.

– No que diz respeito ao aproveitamento das coisas, recebemos


duas heranças vocabulares interessantes: do verbo incŏlo, is,
incolŭi, incultum, ĕre, que envolve o sentido de “habitar, residir,
morar em” e, mais directamente, do substantivo incŏla, “mora-
dor”, recebemos colono, colonizar, colónia, etc., e também inqui-
lino; directamente do verbo colo, is, ui, cultum, ĕre, no sentido
de “cultivar, cuidar de, tratar de”, recebemos cultivo que pode
referir-se a terras, plantas, animais, bem como o pospositivo -
cola (agrícola, florícola, piscícola, etc.) e ainda o pospositivo -cul-
tura (agricultura, silvicultura, apicultura, puericultura, etc.).
– Já ao nível propriamente humano, falamos de cultura, quer
como processo de cultivo das dimensões do ser (capacidades,
sentimentos, talentos, hábitos, etc.), quer como resultado des-
se processo (conjunto de padrões, costumes, conhecimentos
e comportamentos, herdados e/ou adquiridos) que marcam o
nível de desenvolvimento da pessoa (culta) e ou constituem o
património da sua classe social ou do seu grupo étnico.
– No âmbito dos valores e das realidades transcendentes e religio-
sas, prevalece a expressão culto no sentido de acatamento, res-
peito e reverência pela divindade transcendente, ou do preito,
veneração, paixão extrema por alguém ou algo372.

Acontece que em resultado da extrema complexidade e maleabilidade


da existência, consciência e liberdade dos seres humanos, a relação entre

269
os três lexemas – cultivo das coisas, cultura dos homens, culto dos valores
– se encontra absolutamente baralhada e confusa.
Em vez de respeitarem, no processo educativo, a sequência natural de
lançar mão das coisas para criar as melhores condições para que as pessoas
cresçam no sentido de atingirem a sua plena realização nos valores, desde
sempre os homens, particularmente os chefes e os grupos humanos atrás
deles, sucumbiram à tentação de inverter esta hierarquia natural, preten-
dendo colocar-se a si próprios no lugar dos valores e utilizar os outros seres
humanos como meios para se apoderarem do máximo número de coisas.
A generalização desta tendência é tributária de uma tremenda ilusão:
ao não respeitarmos o valor da dignidade dos outros seres humanos mas
pretendermos utilizá-los como simples meios para nos apoderarmos das
coisas, estamos na realidade a abdicar do valor da nossa própria digni-
dade, a rebaixar-nos a nós próprios à categoria de meios e a erigirmos as
coisas à categoria de fins.
E a consequência é catastrófica: como a tal “projecto” de cada in-
divíduo ou de cada grupo humano naturalmente se opõe a barreira de
projectos semelhantes e concorrentes de outros indivíduos e/ou de ou-
tros grupos humanos, desencadeia-se, também naturalmente, o processo
interminável dos conflitos, lutas e guerras que constituem as contas do
rosário da História.
De facto, ao analisarmos o seu percurso, não parece ser outra a se-
quência da diáspora da humanidade através do Planeta Terra.

Muros, armas e guerras

A diáspora, na complexa tessitura e sobreposição das múltiplas e su-


cessivas migrações, conquistas, resistências e miscegenações, dá lugar, em
cada momento histórico, à fixação de cada grupo humano em determina-
do nicho do Planeta. Mas o processo complexifica-se interminavelmente
entre aldeias, cidades, reinos e impérios, nas fases de disputa, ocupação e
defesa de novos territórios.
Trata-se de uma constante da história que, dentro do espaço indo-euro-
peu, aparece verbalizada na raiz *IE Mei-, no seu primeiro sentido de “fixar,

270
construir cercas, muros ou fortificações”, presente no verbo latino mūnĭo
(antigo mœnĭo), is, īvi, ītum, īre, “trabalhar em obra de fortificação, fortifi-
car; munir, defender, manter, etc.”, de onde nos vem municiar e munições,
munido e premunido, etc., e também no substantivo latino murus, i, “muro
de uma cidade (por oposição a paries, etis, “muro de uma casa, parede”), de
onde nos vem muro e murar, muralha e amuralhado, etc.373
De facto e desde sempre, à semelhança da defesa individual (escudo,
malha, couraça), desenvolve-se a defesa da aldeia (vedação, tapume, bar-
reira, paliçada), da cidade (muros e muralhas, reforçados por redutos e
por castelos), do reino (raia, fronteira, alfândega), do império (Grande
Muralha da China) e, já nos tempos modernos e noutras modalidades,
dos novos grandes espaços regionais (na Europa as fronteiras do Espaço
Shengen) ou dos dois grandes Blocos Militares, Leste e Oeste, no passado
recente (Cortina de Ferro).
O mais estranho é que a tradição milenária de erguer muros físicos
se mantém e se vem mesmo intensificando extraordinariamente depois
da queda do muro de Berlim. Entre cerca de três dezenas de “muros”
de diversa natureza, segundo os casos (blocos de betão, cimento, pedras
ou areias, cercas de arame farpado, vedações electrificadas com torres de
vigia, valas e/ou campos de minas, alarmes, sensores térmicos de movi-
mento, sensores de alta tecnologia, patrulhas de soldados, barcos e he-
licópteros), construídos nas últimas décadas, é possível destacar (men-
cionando nome e lugar, extensão e ano): a Linha de Átila (Chipre, 300
km, 1974), o Muro Marroquino (entre a zona ocupada por Marrocos e
a Mauritânia, 2.720 km, 1980), os muros de diferente natureza, entre as
zonas administradas pela Índia e pelo Pakistão na região de Caxemira
(550 km, 1991), entre o Koweit e o Iraque (195 km, 1991), entre a Índia
e o Bangladesh (em construção, 3.300 km, 2000), entre Israel e os ter-
ritórios Palestinianos (247 km, 2003), entre a Tailândia e a Malásia (100
km, 2004), entre a China e a Coreia do Norte (1.416 km, 2006), entre os
Estados-Unidos e o México (1.126 km, 2006).
Tinham ficado célebres na história o Muro de Adriano (Grã-Bertanha,
122 km, séc. I), a Linha Maginot (França, 1927-1936), a Cortina de
Ferro evocada por Churchil em 1946, de Stetin no Báltico a Trieste no

271
Adriático, com o centro no Muro de Berlim (1961-1989) e a Cortina de
Bambu (na China da mesma época).
A Grande Muralha da China, com entre 5 e 6 mil km, construída e
reconstruída ao longo de 2200 anos, transposta, a pesar de tudo, pelas
invasões mongol (séc. XIII) e manchu (séc. XVII), hoje o único monu-
mento visível do exterior do Planeta Terra, diz muito sobre o carácter de
todos os seus habitantes374.
E diz também muito sobre a inanidade de muitas das suas realizações.
Mas os muros erguidos entre as comunidades humanas arrastam con-
sigo outros males endémicos ao longo da história: a produção, armazena-
mento e uso de armas de defesa e de ataque.
O arsenal antigo de armas de luta corpo a corpo e de combate à distân-
cia evoluiu, no século XX, para os dois sectores das armas convencionais
e das armas de destruição maciça, químicas, biológicas, nucleares (sendo
estas últimas potenciadas pela utilização de mísseis e aperfeiçoadas, desig-
nadamente no domínio de alta precisão, pelo recurso à electrónica, infor-
mática e tecnologia laser) e ainda, já no século XXI, para a proliferação das
“armas assimétricas” ou bombistas – suicidas das redes terroristas.
Ao longo do século XX, a “guerra quente” dos dois conflitos mundiais
e a “guerra fria” entre os blocos Leste e Oeste bem como a criação e ma-
nutenção das “Alianças e Organizações Internacionais Multilaterais com
Vocação Militar” manteve a “corrida aos armamentos” e o incremento
constante das “despesas militares”, à custa da satisfação das carências bá-
sicas das populações.
Entretanto floresce, nos países produtores, a indústria das armas na
dupla e pouco discernível dimensão de tecnologia militar e civil, o co-
mércio lucrativo com os países consumidores e a consequente prolifera-
ção geral do armamento acompanhada, também neste campo sensível,
do aumento galopante do fosso entre países ricos e países pobres.
A este propósito e em relação com a educação, tornou-se terrivelmente
esclarecedora a anotação constante do Relatório da Comissão Internacional
para o Desenvolvimento da Educação, da Unesco, publicada sob o título
Aprender a Ser (1972).

272
“A educação tornou-se desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o
maior ramo de actividade do mundo em termos de despesas globais.
Em termos orçamentais e no total das despesas públicas mundiais, vem
em segundo lugar, imediatamente a seguir às despesas militares”375.

O destino final da produção das armas é a alimentação das guerras,


ocasionais e provocadas, pequenas e grandes, regionais e mundiais, quen-
tes e frias. E também a sua proliferação. A título de exemplo, verifica-
mos que, em 1989, no termo da Guerra Fria, encontravam-se “activos”
13 conflitos “menores”, 19 “intermédios” e 12 “guerras”, no total de 44
conflitos, em 36 lugares diferentes; entre 1989-2003 “houve um total de
56 conflitos “menores”, 14 “intermédios” e 46 “guerras”, num total de 116
conflitos, em 78 lugares diferentes”376.
Não admira que, desde o seu início (1945), a Organização das Nações
Unidas tenha assumido como objectivo fundamental a procura da paz.
Mas a análise da evolução da Humanidade, depois dessa data, obriga-
-nos a ir mais longe e mais fundo.

A sobrevivência da Humanidade

A construção de muros, a proliferação de armas e o aumento dos con-


flitos armados chegaram a um ponto que põem hoje em causa a sobrevi-
vência da Humanidade.
As guerras entraram na fase de não permitirem a sobrevivência dos
vencidos, as armas começaram a fazer recear um holocausto nuclear
e, nesta situação, à semelhança do que já aconteceu noutras épocas da
História e apesar de continuarem a ser erguidos e multiplicados, os “mu-
ros” deixaram, a prazo, de ter qualquer sentido.
A força das ideologias sociais, rácicas, clânicas, étnicas e mesmo reli-
giosas, que em guerras anteriores se contentava com vencer os soldados
dos exércitos inimigos, fazer deles escravos ou reduzi-los a prisioneiros,
entrou na fase de não os deixar sobreviver e, mais ainda, de atacar e exter-
minar toda a população que eles defendem.
Os crimes de extermínio social, de limpeza étnica e de genocídio, por

273
vezes planeados e executados friamente, entraram na ordem do dia.
Mencionamos apenas os perpetrados desde o início do século XX
(registando o lugar, a data e o número de vítimas): Congo Belga (1884-
1907, entre 4 e 8 milhões de africanos); Namíbia Alemã (1904, 70.000
hereros ou seja 80% da população); Turquia (1915-1917, 1,5 milhões de
arménios); Ásia ocupada pelo Japão (1936-1945, entre 3 e 5 milhões de
chineses, coreanos e vietnamitas); Europa ocupada pela Alemanha (1941-
1945, 6 milhões de judeus, 3-5 milhões de eslavos, 130-170 mil ciganos);
URSS (1917-1953, 23,5 milhões de cidadãos soviéticos); China (1946-
1976, entre 45 e 75 milhões de chineses); Madagáscar (1947, 70.000 mal-
gaches); Índia-Paquistão (1947-1948, 4 a 6 milhões de hindus e muçul-
manos); Guatemala (1960-1990, 200.000 índios); Cambodja (1975-1978,
2 milhões de kmeres); Indonésia (1975-1979, 200.000 leste-timorenses);
Jugoslávia (1991-1995, 300.000 bósnios, croatas e sérvios); Ruanda-
Burundi (1994, entre 450.000 e 800.000 tutsis e hutos moderados)377.
Os actos de limpeza étnica e de genocídio incidiam sobre o “outro” grupo
que importa eliminar. Entretanto, já no séc. XXI, os agentes do terrorismo
internacional, muitos dos quais animados pelo fundamentalismo religioso,
fazem-se explodir a si próprios, deixam de atender à identidade das suas víti-
mas e passam a matar e destruir indiscriminadamente, até onde pode chegar
a capacidade mortífera das armas ou dos instrumentos de que dispõem.
E não sabemos adivinhar, nesta situação, o que o futuro nos reserva.
Relativamente às armas de destruição maciça, algumas medidas
vêm sendo tomadas, desde a Convenção da Proibição de Armas biológi-
cas (1972), a Convenção de Armas Químicas (1993) e o Tratado de Não
Proliferação de Armas Nucleares (1968 e 1994).
Mas nada se encontra assegurado e o risco é total, como perante a
antevisão apocalíptica de um holocausto nuclear, no decurso da Guerra
Fria, foi proclamado pela Declaração da Conferência Mundial de Montreal
sobre a Educação de Adultos, seguida da “Resolução” “Educação de Adultos
e Paz Mundial” (1960).
Com efeito a Conferência, consciente de que “a educação processa-se
hoje num mundo em mudança”378, de que, a partir do domínio da ener-
gia nuclear e do início da conquista do espaço, os avanços nas relações

274
do homem com a natureza provocaram avanços nas relações do homem
com o homem e de que, neste sentido, a “tecnologia saltou as fronteiras
nacionais”, “alargou os horizontes do homem e tornou pequena a sua
comunidade”379, escancara as portas do risco de “solução final” com que
hoje nos defrontamos: o auto-genocídio de toda a humanidade.

“Cada geração tem os seus próprios problemas. De forma imprevisí-


vel, esta geração viu-se confrontada com a extensão e rapidez da mu-
dança que agora nos enfrenta e desafia. A destruição da humanidade
e a conquista do espaço transformaram-se em possibilidades técnicas
da presente geração. Estas são as mais dramáticas consequências do
desenvolvimento tecnológico, mas não são as únicas”.
“O nosso primeiro problema é sobreviver. Mas não se trata da sobre-
vivência dos mais fortes. Ou sobrevivemos todos ou perecemos todos”380.

Nesta situação, impõe-se encontrarmos o caminho conducente à me-


lhor alternativa.

“A sobrevivência exige que as regiões do mundo aprendam a viver


juntas em paz”.
“Se o homem aprender a sobreviver, terá diante de si oportunidades
para o desenvolvimento social e o bem estar pessoal como nunca an-
tes lhe estiveram abertas”381.
“Importa treinar o povo não sobre o que pensar mas sobre como
pensar”382.

E este caminho é o da educação.

“A meta da educação de adultos consiste em ajudar o adulto a ser


um efectivo membro das suas comunidades e a colaborar com as
outras”383.
“Toda a educação deve abraçar os grandes ideais da humanidade e
encorajar o mútuo respeito entre os povos e o apreço recíproco pelos
seus valores culturais”384.

275
Com estas últimas palavras, a Declaração aponta o verdadeiro rumo
da educação na plenitude da sua dimensão comunitária.

3. A Cidadania Terrestre e a relação entre as Pessoas

Os alertas que acabamos de escutar são de molde a provocar um ter-


ramoto nas consciências adormecidas.
Sabemos bem pela experiência que o nosso processo pessoal de edu-
cação ao longo da vida tem decorrido sempre dentro das comunidades
de que nos sentimos fazer parte, inicialmente mais na comunidade da
família nuclear ampliada durante a etapa de educação de adolescentes, de-
pois mais na comunidade nacional com todas as suas extensões de carácter
sócio-político-cultural, durante a etapa de educação de adultos.
Entretanto tardamos a tomar consciência de que nos dias que correm
e mercê da aceleração da mudança nas condições económicas, sócio-polí-
ticas, científico-tecnológicas, culturais e éticas do mundo em processo de
globalização, o espaço em que realmente decorre a nossa vida se ampliou
até às dimensões da comunidade planetária.
Parece mesmo existir uma reacção secreta contra esta evolução, quando
observamos a construção de mais e mais altos muros, a produção de mais
armas e mais mortíferas, o deflagrar de mais guerras e mais sofisticadas.
Em síntese, o mundo parece mudar mais depressa do que a nossa ca-
pacidade de o compreender ou, por outras palavras, a civilização mundial
avança mais rapidamente do que a cultura humana.
Entretanto e por tudo isto, os problemas da educação vêm-se tor-
nando graves demais para não terem de ser abordados na dimensão da
comunidade global ou, empregando os termos da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, de toda a Família Humana.
Vejamos os desafios que se põem e os projectos que se impõem à edu-
cação dos seres humanos que têm consciência da sua cidadania terrestre
e da necessidade de passarem a vivê-la no sentido ascensional que vai de
simples colectividade para sociedade, comunidade e comunhão.

276
Os desafios

Assim como verificámos anteriormente que a educação ao longo da


vida não pode continuar a ser entendida nos estreitos horizontes da sua
primeira etapa, educação de adolescentes, mas deve alargar-se à segunda
etapa, educação de adultos, e em toda a sua extensão, ou seja até à velhice
e à morte, também aqui, a educação comunitária não pode entender-se
e processar-se apenas nem principalmente no âmbito das comunidades
mais reduzidas – família comunidade-base, autarquia, nação ou mesmo
comunidade regional de nações (exemplo, União Europeia) – mas deve
passar a ser pensada e desenvolvida na dimensão real de toda a comuni-
dade humana.
Ora isto coloca hoje, a todos nós, um conjunto de grandes desafios.

Da raiz *IE Bheidh- (leia-se Fheidh-), que envolve a ideia geral de “fé,
compromisso”, recebemos em português três séries de lexemas:

– através do lat. fĭdēs, ēi, que envolve o significado de “fé, crença”,


vem fé, no sentido propriamente religioso;
– através do lat. fœdŭs, ĕris, “tratado (público ou privado), pacto,
convenção, aliança”, vem federação, na qual se pressupõe existir
confiança recíproca entre as partes;
– através do verbo latino fīdo, ĭs, fīsus sum, fīdĕre, vem “fiar, fiar-
se, confiar, ter confiança em outrem ou em si próprio”.

Ora a atitude de fiar, fiar-se, verbos simples que vêm acompanhados


de outros compostos como afiançar, confiar, confidenciar e ainda de outros
lexemas como fiado (vendido a crédito, de onde a expressão “aqui não se
vende fiado”), fiador (“que ou quem afiança ou responde por outrem”),
fiança, fiável, fiduciário, fiuza, etc., evoca também a atitude contrária,
expressa em lexemas como desconfiar, desconfiança, inafiançável, inconfi-
dência, etc., e ainda a passagem de uma situação a outra385.
É neste último caso que aparece o lexema desafiar, no sentido de
des+(a+fiar), ou seja, de “apartar da anterior confiança em alguém ou

277
algo” o que supõe ter sido posta em causa essa confiança, de provocar o
seu antigo detentor a provar que continua a merecê-la e de o desafian-
te (provocador) convocar o desafiado (provocado) a pedir meças e/ou a
apresentar “argumentos”, quer se trate das lutas de adolescentes “para ver
quem tem mais força”, das “cantigas ao desafio” entre os bardos das aldeias
de antigamente, dos desafios de futebol, das greves, contestações e revolu-
ções em que os subordinados desafiam os chefes ou o statu quo, ou ainda
dos desafios que pequenas nações fazem às grandes, às lideranças mundiais
ou às resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Neste contexto e como cidadãos, encontrámo-nos, o leitor e eu, aqui
e agora, desafiados a justificar e fundamentar os projectos de educação cor-
respondentes à cidadania terrestre que estamos a invocar.
A própria educação de hoje sente-se desafiada a pôr à prova os limi-
tes das suas dimensões actuais – familiar, autárquica, nacional, regional
(ex. europeia) – para, sem perder e mesmo valorizando a substância rica
dessas marcas culturais, assumir e explorar a riqueza mais abrangente e
englobante da sua dimensão universal.

Os projectos

O conceito de projecto assume grande protagonismo nos tempos que


correm no subsistema da educação escolar e vem sendo também muito
utilizado, ao nível micro, nas diversas áreas e dimensões da educação ao
longo da vida. Invocámo-lo aqui ao nível macro e no que se refere à edu-
cação comunitária na acepção mais abrangente.
Projecto envolve o sentido de “ideia, desejo, intenção, desenho, desíg-
nio, esboço, plano, descrição de algo a realizar no futuro”.
A palavra procede da raiz *IE Ye- “lançar”, e chegou até nós através do
verbo lat. jăcio, ĭs, jēci, jactum, jacěre, “lançar, deitar, arrojar”. Este sentido
geral deixa em aberto que o movimento de “lançar” pode concretizar-se,
nos diferentes verbos derivados do latim, em muitas, se não em todas as
direcções.
Assim, de projĭcio, “lançar para deante”, recebemos em português pro-
jectar, projecção, projecto e projéctil; de rejĭcio, “lançar para trás”, rejeitar e

278
rejeição; de objĭcio, “ lançar ou pôr diante”, objecção, objectivo, objecto; de
subjĭcio, “lançar ou pôr debaixo”, sujeição e sujeito; de adjĭcio, “lançar ao
lado, ajuntar”, adjectivo e adjecto; de interjĭcio, “lançar entre, interpor”,
interjectivo e interjeição; de conjĭcio, “lançar com, reunir”, conjectura; de
transjĭcio, “lançar além, transportar”, trajecto; de injĭcio, “lançar em ou so-
bre”, injectar, injector e injecção; de abjĭcio, “atirar para longe”, abjecção e
abjecto; de ejĭcio, “lançar fora, expulsar”, ejecção e ejecto; de dejĭcio, “deitar
para baixo, evacuar”, dejecção e dejecto386.
Resumindo e recorrendo a outros verbos derivados da mesma raiz: de
jăculor, ārĭs, “lançar”, pode vir ou uma jaculatória ou um simples acto de
ejacular; de jactus, ūs, “acção de lançar com força, arremessar”, vem jacto
e também jeito; de jacto, ās, āre, “lançar frequentemente” vem jactar-se e
jactância; de jăceo, ēs, ěre, “estar deitado, prostrado, caído, morto”, vem
jazer e (estátua) jacente.
Nesta encruzilhada de tantas direcções possíveis, ao falarmos de pro-
jecto, é fundamental pararmos a considerar a multiplicidade de direcções
ou sentidos que os nossos comportamentos podem tomar, a pôr toda a
atenção na possibilidade de em vez de lançarmos para a frente, lançarmos
para trás, para cima, para baixo ou indiscriminadamente para os lados e,
mais concretamente, assegurarmos que o projecto educativo, em qualquer
uma das suas dimensões, não descaia em mero trajecto ou ejecto ou, pior
ainda, em algo abjecto ou simplesmente dejecto.
Mais concretamente e de acordo com a fórmula abrangente de edu-
cação acima avançada, importa saber se o nosso projecto pessoal se orienta
apenas para “aprendermos”, estudarmos, fazermos um curso para depois
“ganharmos a vida”, exercendo uma profissão, eventualmente sem ex-
cluirmos a hipótese de nela prejudicarmos e explorarmos os outros, ou
se verdadeiramente se orienta, no sentido positivo, para crescermos, nos
desenvolvermos e realizarmos ao longo da vida toda, abrindo caminho
entre as oportunidades e dificuldades que nos são criadas e contribuindo
para a criação das melhores condições para que os membros da comuni-
dade humana possamos todos atingir a meta.
Sobretudo importa avaliar se o nosso projecto comunitário caminha
na direcção de nos deixarmos escravizar pelas coisas (economia, lucro,

279
dinheiro), ou de procurarmos o domínio sobre as pessoas (sociedade,
política, poder), ou de nos colocarmos ao serviço do reino dos valores
(dignidade humana, verdade, justiça, compreensão, paz, amor).

A Cidadania Terrestre

O verdadeiro projecto educativo pessoal e comunitário, nos dias de


hoje, deverá corresponder ao estatuto da pessoa enquanto membro da
inteira comunidade humana.
Vivemos tempos estimulantes.
Em que se abre um novo ciclo da História.
No início, a partir da África, silenciosamente e ao longo de muitos
milhares de anos, verificou-se a diáspora planetária do homo sapiens e
a dispersão do homo sapiens sapiens pela Eurásia, Américas e Polinésia,
dando origem, através da passagem do nomadismo ao sedentarismo e
por virtude dos vários nichos de ocupação terrestre, variações climáticas e
situações de isolamento, à sua diferenciação, em diversos tipos de confi-
gurações somáticas, estaturas, cores, línguas, culturas.
Depois, também lentamente, abriram-se os caminhos da recuperação
da unidade entretanto enriquecida com todas essas diferenças, através de
encontros e encontrões, de miscigenações, de emergências de aldeias, ci-
dades, reinos, impérios, de relações violentas ou pacíficas entre eles.
Quando, no fim do século XV, coexistiam mais ou menos afastados e
até, nalguns casos, desconhecidos, os impérios Ming na China e Mongol
na Índia, Islâmico entre a Ásia e a África e Otomano entre a Ásia e a
Europa, dos Astecas no México e dos Incas no Peru, os descobrimentos
marítimos colocaram em contacto todas as regiões do Planeta e, depois
de um longo período de afastamento e de guerras “civis” entre os impé-
rios coloniais que entretanto se constituíram e depois se desmoronaram,
já nos últimos 50 anos, as próprias metrópoles da Europa integraram-se
na União Europeia e o conjunto dos povos do planeta agregaram-se na
Organização das Nações Unidas.
Entretanto, particularmente nos últimos dois séculos e a um ritmo
cada vez mais alucinante, esta evolução política vem sendo acompanhada

280
e sustentada por uma inesperada e imparável metamorfose nas dimensões
da vida económica, social e cultural, correspondentes às três dimensões
do conceito de educação que acima reconhecemos.
No que respeita aos processos produtivos característicos da economia
das coisas de que dispomos no universo, o progresso científico-técnico
desencadeou a sucessão das eras agrícola, industrial e de serviços, a ponto
de hoje comermos, nos vestirmos, calçarmos, nos abrigarmos e nos equi-
parmos utilizando recursos procedentes dos quatro cantos do mundo387.
No que se refere à sociedade, os fenómenos da progressiva globaliza-
ção do espaço, da aceleração da mudança no tempo, da complexificação
dos tipos de existência, da sucessão das galáxias Gutemberg, McLuhan e
Gates, do desenvolvimento das TICs, da internet e dos telemóveis, estão a
contribuir para a rápida emergência de um “mundo plano” (Friedman)388
em que hoje se potenciam ao máximo e em tempo real as relações inter-
-grupais e inter-subjectivas das pessoas.
No atinente ao reino da cultura, acontece que o facto de as tecnolo-
gias se encarregarem de prestar a informação necessária em tempo útil
começa a favorecer a canalização do esforço humano para o debate moral
e axiológico sobre comportamentos e valores.
Por outro lado, esta evolução galopante ameaça de ruptura a nossa
capacidade de adaptação e põe em causa a consciência que temos acerca
da nossa actual cidadania.
Com efeito, se por um lado a educação, entendida como processo de
crescimento humano, é tarefa de carácter estritamente pessoal, por outro
lado e atendendo à dimensão social, o seu delineamento e efectivação fica
sempre a depender do contexto comunitário em que se realiza, da “cida-
de” (latim civitas) em que a vida decorre.
Entretanto, habituados durante séculos a viver dentro dos limites da
“cidade” (na linguagem clássica) ou das fronteiras da “nação” (na lingua-
gem actual), sentimos hoje dificuldade em movimentar-nos, por exem-
plo, na “região” da Europa e mais ainda no espaço do Mundo.
E passámos a não distinguir claramente qual é a nossa actual cidada-
nia ou nacionalidade ou ainda, dito de maneira mais popular e castiça, a
não saber “de que freguesia somos”.

281
Em paralelismo com polis, a cidade grega, desde Troia até Atenas, que
nos legou toda a riqueza da ciência e da prática política, e em contra-
posição com urbs, a cidade por autonomásia, Roma, de onde nos vem
urbano e urbanidade e ainda expressões lapidares do calendário romano
(“Ab Urbe Condita”) e da linguagem cristã (falar “Urbi et Orbi”), a civitas
designa a cividade ou cidade, no sentido inicial de aglomeração humana
importante, normalmente circunscrita, murada ou amuralhada, em que
os “cives” ou cidadãos têm a sua morada, exercem as suas actividades civís
(de natureza não militar ou eclesiástica mas económica, social, política e
cultural), de acordo com os seus direitos e deveres cívicos, submetendo-
se às regras exigentes do civismo e delicadas da civilidade e contribuindo
assim para o progresso da civilização.
Com o tempo, o conceito de cidade estende-se aos agrupamentos hu-
manos em dimensões referentes, quer à solidariedade de vida presidida
pelos deuses “Lares” (Lar, Home, Heimat), quer à origem (Nação ou Terra
onde nascemos, Pátria ou Terra dos nossos Pais), quer ainda ao destino
comum, sublinhando a pertença a um Estado (ex. Ex-Jugoslávia), a uma
Região Supra-Nacional (ex. União Europeia), a todo o Mundo (Família
Humana), ou aprofunda-se, em sentido religioso, na Cidade Santa (ex.
Jerusalém), no Império Celestial do Meio fulcrado na Cidade Proibida
(China), na Cidade de Deus (S. to Agostinho).
Em cada um destes níveis, a cidadania designa a qualidade, condição,
atributo, foro, direito ou estatuto de membro da cidade que hoje, em de-
mocracia, se define pela consciência de uma identidade, a liberdade de
iniciativa, a participação responsável na procura do bem comum.
Também aqui e na medida em que a educação implica colocar os bens
da Terra ao serviço dos membros da Comunidade em homenagem aos
Valores que nos transcendem, importa examinar que tipo de cidadania
professamos: a da Família Humana ou simplesmente a do “império”, do
país, da autarquia, do bairro, do partido político, do clube de futebol ou,
mais simplesmente ainda, da classe social, do grupo de pressão, do círcu-
lo dos amigos ou do jogo de interesses do momento.
Uma breve análise das palavras que utilizamos para designar “Terra”
pode ajudar-nos hoje a abrir o verdadeiro caminho.

282
Para além do antepositivo ge(o)-, do grego gê, ês, “Terra”, mais em uso
na acepção científica (geografia, geometria, geologia e um elevado número
de cultismos semelhantes a partir do séc. XIX) e do pospositivo -geia
(pangeia, etc.), e ainda para além de tellūs, ūris, “terra”, mais usado na
linguagem poética (telúrico), a designação corrente procede do lat. Terra,
œ, “a mais antiga das deusas”, que deu origem a Terra e múltiplos lexemas
derivados como terreno, terrenal, terrígeno, térreo, terraço, território, ater-
rar, desterrar, soterrar, enterrar, etc.
Mas a designação mais sugestiva para o nosso propósito é o termo
latino humus,ī, “solo, chão, terra”, donde vem, em português, húmus,
humilde, exumação, inumação, etc. A sua cognação com homo, inis, “ho-
mem” e seus derivados humano e deshumano, humanado, humanista, etc.,
evoca expressamente a ideia de que os homens somos os “habitantes da
Terra” (por oposição aos deuses) e de que a nossa verdadeira cidadania é
a cidadania terrestre389.
A Terra é, de facto, a Nação e a Pátria de todos nós, porque todos nela
nascemos e nascemos dos nossos Pais.
Mas falta esclarecer uma questão: qual pode e deverá ser o grau de so-
lidariedade (etimologicamente, de vínculo sólido, firme, resistente) entre
os membros ligados entre si pela cidadania terrestre?

Os níveis de relação entre as pessoas

No contexto das oposições clássicas estabelecidas entre colectividade


e comunidade por Berdiaeff, entre sociedade (Gesellschaft) e comunidade
(Gemeinschaft) por Tönnies e entre sociedade, comunidade e comunhão
por Gurvitch, podemos, numa primeira abordagem, sequenciar os agru-
pamentos humanos pelo nível crescente de solidariedade.
E também aqui, um simples remontar ao respectivo étimo (“o verda-
deiro significado da palavra segundo a sua origem”) pode ajudar-nos a
clarificar os conceitos.

Colectividade. Vem da raiz, comum ao grego e latim, Leg- que envolve


a ideia geral de “colher, reunir, ler”. Através do verbo latino lego, is, lēgi,

283
lectum, ĕre, “ajuntar, reunir, escolher, eleger, ler, etc.”, e do seu composto
collĭgo, is, ēgi, ectum, ĕre, recebemos os lexemas colher, acolher, escolher,
recolher, etc., e também coligir e colectar, colecta, colecção e colectividade,
no sentido de “conjunto mais ou menos numeroso de pessoas ou coisas,
grupo, agrupamento, agremiação”390.
O conceito de colectividade (de trabalho, de recreio, etc.), limita-se a
mencionar apenas a ligação das pessoas e o facto de serem em número
significativo.

Sociedade. Deriva do adjectivo latino socĭus, a, um, “que acompanha,


associado, unido” (na linguagem da época imperial “aliado”) e do substan-
tivo socĭus, ĭi, “aquele que compartilha (algo) ou faz coisas em conjunto
com (outrem), companheiro”.
A compreensão da etimologia de sócio, ganha muito com o esclareci-
mento de outros dois lexemas: companheiro e camarada.
Companheiro vem do lat. panis, is, donde recebemos pão, panificar
e apaniguar, padeiro e empadão, etc. O lexema panis deu mais tarde ori-
gem a companĭo e companĭa, formas alatinadas, constantes do texto da Lei
Sálica, que terão suplantado, nas línguas românicas, as formas clássicas
contuberniŭm e contubernālis com o sentido de “companheiro, camarada”
e de “companheiro camarada”.
Por sua vez, camarada procede do latim camĕra (ou camăra), œ, “tecto
abobadado, abóbada, ponte ou coberta de navio”, de onde recebemos câma-
ra, camarário e camareiro, camarata e camarada,” etc., este último lexema no
sentido geral de “pessoa que coabita com outra, come e dorme no mesmo
recinto” e, no sentido informal, “de soldado, companheiro de armas”. Neste
contexto e a partir da conexão com o iraniano védico, etimologistas têm
chegado a “supor uma raiz indo-europeia de carácter “expressivo popular”
designante de “companheiro”, provavelmente “companheiro de guerra”391.
Destes elementos parece poder deduzir-se que sociedade, na modali-
dade violenta (ditatorial, autoritária) submetida a forças individuais ou
colectivas, ou na modalidade democrática (civil, empresarial, financeira,
anónima, etc.), é fundada sobre um acordo ou contrato, nada ou menos
ou mais livre e explícito, entre os participantes.

284
Comunidade, Comunicação, Comunhão. A compreensão destes níveis
superiores de solidariedade pode beneficiar do recurso à raiz já mencio-
nada *IE Mei-, no sentido de “mudar, trocar”, do qual, através de quatro
lexemas latinos, recebemos uma galáxia de lexemas em português, muito
esclarecedores:

– através do lat. meāre, “passar, caminhar”, vem meato, permeável


e permabilidade, etc;
– através do lat. mutāre, “mudar, trocar, alterar, transformar, mo-
dificar”, vêm mudar e permutar, mútuo e imutavel, etc. e seus
derivados;
– através do lat. migrāre, “passar de um lugar (ou estado) para
outro”, vêm migrar e seus compostos;
– através de munus ĕris, “cargo, ofício, presente que se dá”, rece-
bemos uma constelação riquíssima de lexemas, desde munus e
remunerar, imune e imunidade, comum e comunidade, comunicar
e comunicação, comungar e comunhão392.

De momento, importa ordenar estes lexemas pelo critério da solida-


riedade crescente.
Comum: que pertence a mais de um, à maioria ou a todos.
Comunidade: conjunto de pessoas organizadas num todo a partir de
um traço comum. A comunidade (familiar, rural, urbana, nacional, etc.)
resulta da vontade ou concordância, consciente ou inconsciente, dos in-
divíduos que normalmente nascem dentro dela ou a ela aderem por vo-
luntária partilha de sentimentos comuns.
Comunicação: transmissão e recepção de mensagens, designadamente
entre pessoas humanas e em situação de reciprocidade.
Comunhão (amorosa, religiosa): como forma superior de comunidade e
resultante da comunicação, ao nível profundo, entre pessoas, acontece quan-
do a pressão das vontades é mínima e a fusão de sentimentos é máxima.
Para além ou aquém dos sentidos de “comunhão de bens e/ou de
vida”, por exemplo entre marido e mulher, e de “comunhão eucarística”
na linguagem religiosa, trata-se aqui de “fazer alguma coisa em comum”,

285
“viver em ligação, comparticipação, sintonia no sentir, pensar e agir”,
“união, identificação entre pessoas”.
Por estranho que pareça à primeira vista, um bom exemplo de “comu-
nhão em estado puro” tem-se verificado na vivência da população de um
país no momento em que a sua equipa de futebol está a jogar na final do
campeonato europeu ou mundial. A população inteira reage como um
todo: desfralda a Bandeira e canta o Hino do País com a mais profunda
emoção. Porque, nesses instantes, toma parte, participa, comunga, entra
em estado de comunhão a partir das raízes mais profundas que alimentam
os valores do sentimento de identidade nacional.
Desta forma, ao comungar, através do consentimento profundamente
vivido, os mesmos valores, a comunidade transforma-se em comunhão.
E se a comunidade é aquela em que todos os homens comungam os
valores da cidadania terrestre, ela transforma-se na Família Humana.

4. A Família Humana e a Comunhão nos Valores

O sentimento de pertença à mesma comunidade, que constitui a mar-


ca da cidadania terrestre, provoca também nos seres humanos o estado
de comunhão, embora raramente, por ocasião de grandes cataclismos na-
turais (sismos, tsunamis, inundações) de profundas tragédias humanas
(crimes, guerras, genocídios), ou ainda de grandiosas manifestações de
carácter cultural (competições desportivas, festivais de música) ou religio-
so (grandes festividades e peregrinações).
Quer isto dizer que o sentimento de pertença à cidadania terrestre en-
contra o seu fundamento não tanto no facto de morarmos na mesma
Terra, mas de nos alimentarmos das mesmas raízes da unidade de ori-
gem, de vida e de destino.
Por outro lado, assim como a família romana, nos finais da República
(27 a. C.), em relação com domus (casa), designava a totalidade constituí-
da, sob a autoridade do pater famílias, pela esposa, os filhos, os escravos e
até os animais e as terras, também podemos dizer hoje, de algum modo,
que a Família Humana abarca todas as realidades que integram o seu
texto e o seu contexto: as coisas que nos rodeiam e constituem os recursos

286
(meios) a explorar, as pessoas humanas (fins) chamadas a crescer e a rea-
lizar-se, os ideais de verdade, justiça, amor e paz, que nos são comuns e
nos transcendem.
Acontece ainda que, em sentido amplo, incluímos tudo isto na catego-
ria de valores: valores materiais enquanto meios, valores humanos enquanto
fins, valores superiores que nos sentimos chamados a reconhecer e respeitar.
Mas ocorre perguntar até que ponto frequentemente confundimos,
baralhamos e pervertemos esta hierarquia natural dos valores, trocando
fins e meios, e pretendendo nós próprios assumir nela o lugar que não
nos pertence?
De facto, no processo histórico da comunidade dinâmica que cons-
tituímos, deparamos com três linhas de comportamento humano bem
diferentes:

– competição para nos apropriarmos dos bens materiais ignoran-


do, negando e combatendo a pessoa do outro;
– abertura e aceitação do outro para, em clima de solidariedade e
convivialidade, debater os problemas comuns;
– consciencialização dos laços de consanguinidade e disponibili-
dade para ajudá-lo e servi-lo em aras do reconhecimento e res-
peito pelos Valores que a todos nos transcendem.

Perante estas alternativas e em termos de execução do projecto educati-


vo da Família Humana, importa questionar se e até que ponto andamos
empenhados em colocar todos os recursos da terra ao serviço das pessoas,
em procurar que todos os seres humanos sejam incluídos neste processo
sem deixar espaço a qualquer tipo de exclusão física, social ou cultural, e
ainda e porque todos fazemos parte da mesma família, em dar toda a
prioridade aos mais desfavorecidos?
Analisemos cada um destes questionamentos.

Valores materiais ao serviço das pessoas

Do círculo vital da existência da família dos seres humanos fazem par-

287
te todas as coisas: o ar que respiram, os alimentos que comem, as roupas
que vestem, as casas que habitam, os terrenos que cultivam ou de que
desfrutam, as fontes de energia que exploram, os instrumentos que usam
no asseio, no trabalho nas deslocações e no lazer, os dinheiros que gastam
na satisfação das necessidades e diversões.
Todas estas coisas têm valor. Costumamos mesmo dizer que são os
nossos valores mas apenas em um dos sentidos que a palavra tem: medida
variável do preço que se atribui a um objecto em função da importância
ou interesse de que se reveste para os desígnios que sobre ele possa ter
uma pessoa humana. As coisas são para as pessoas e nesse “para” reside o
critério que nos permite aferir a medida do seu preço ou valor.
As coisas, todas as coisas, por mais valiosas e maravilhosas que sejam,
são meios, apenas meios, não passam de meios ao serviço dos fins que são
as pessoas.
Ora os meios servem apenas para alimentar os fins.
Aqui emerge uma primeira aproximação do processo educativo.
Verificámos anteriormente que, no sentido original e básico, educar (de
edŭco, as, are) significa alimentar. E só a partir de se alimentarem é que os
seres vivos podem crescer como é sugerido pelo facto de as duas variantes
da raiz *IE Al-, Ol- “alimentar, crescer”, estarem na base, respectivamente,
do lat. alĕre, “alimentar”, donde vem aluno e do lat. adolescere, “crescer”
donde vem adolescente e adulto.
É neste sentido que, por ocasião de uma das inundações recorrentes
do Bangladesh, alguém terá dito que a educação das crianças que tinham
sobrevivido à morte dos seus, consistia, naquele momento, em dar-lhes
farinha para se alimentarem.
E, com certeza, não apenas a farinha que alimenta o corpo, mas tam-
bém o acolhimento, aconchego, protecção, assistência, carinho e amor,
projecto e futuro, ou seja, tudo aquilo de que o ser humano carece, à luz
da verdade de que “não só de pão vive o homem”.
Acontece que este problema é tão vasto como o Mundo, na medida
em que atinge todos os seres humanos e que, um pouco por toda a parte
e não apenas em situações de calamidade ou catástrofe mas na vida nor-
mal, muitos vivem de parcos ou quase nenhuns recursos, na penúria ou

288
mesmo na carência dos meios necessários para viver.
Trata-se dos pobres, de todos os que são mal providos ou mesmo des-
providos desses meios:

– nas nossas sociedades, quer nos aglomerados rurais vivendo à


míngua, quer nas grandes cidades, debatendo-se entre a pobreza
ignorada e envergonhada, nas fronteiras da marginalidade e/ou
da criminalidade;
– em muitos países, por força das alterações do clima, da explora-
ção económica, dos conflitos de toda a ordem;
– nos continentes da Ásia do Sul e da África Subsariana em resul-
tado das quebras na produção, dos conflitos étnicos, da explora-
ção política e do abandono a que continuam a ser votados.

A geografia da fome vem sendo e continua a ser a mais vergonhosa


pústula no corpo da humanidade. A título de exemplo, citamos apenas
dois números recentes significativos sobre a alimentação no sentido “ma-
terial” (em milhões):

– seres humanos a viver com menos de um dólar por dia no


Mundo: 1.100 (África Subsariana, 323; Ásia Oriental e Pacífico,
261; Ásia do Sul, 432);
– população total sub-alimentada no Mundo, 831 (África
Subsariana, 185; Ásia Oriental e Pacífico, 212; Ásia do Sul,
312)393.

Sem falarmos dos cadáveres ambulantes ou jacentes, de crianças e de


adultos de conhecidas regiões do mundo, que recorrentemente as repor-
tagens nos descrevem nos jornais e mostram na televisão!

Valores pessoais e inclusão cultural

O núcleo da família é constituído pelas pessoas que a integram.


Por definição, a família é mais do que a pessoa. Não se reduz ao nú-

289
mero “um”, mas estende-se, pelo menos, ao número dois.
E ao construir-se, a família integra as pessoas, qualquer que seja o seu
número e por mais que o número cresça, numa unidade que nada tem a
ver com a quantidade, mas com a coesão proporcionada pelo(s) valor(es)
que a sustenta(m).
O plural de “eu” transcende as categorias numéricas: não é “eus”, mas
é nós.
Este princípio aplica-se aos grupos humanos e às respectivas culturas.
A diáspora milenar da Família Humana através de todo o planeta pro-
vocou, nos numerosos pequenos grupos que se fixaram em variadíssimos
habitats, as tão diferentes marcas que hoje caracterizam as suas culturas.
O lento regresso à convivência e à unidade que caracteriza a História
Moderna, designadamente a partir dos descobrimentos geográficos, com
as tragédias de genocídios e de limpezas étnicas e também de sucessivas
miscigenações, gerou problemas de identidade cultural que hoje afectam,
em larga medida, muitos povos da Terra. E promoveu também, nos tem-
pos mais recentes, as actuais “políticas de identidade”.
A UNESCO, em 1969, introduziu a noção de “políticas cultu-
rais” movida pela preocupação de, simultaneamente, proteger a he-
rança e promover a liberdade cultural. O conceito abre lentamente
o seu caminho: Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, México,
1982; ONU, Declaração da Década 1988-1997 como Década da
Cultura e Desenvolvimento; Comissão Mundial para a Cultura e o
Desenvolvimento, através do Relatório Our creative Diversity (1995);
Conferência Intergovernamental de Estocolmo sobre Políticas Culturais para
o Desenvolvimento (1998)394.
Entretanto, ao longo das duas últimas décadas e a partir de numerosos
contributos (Clifford, 1988; Rosaldo, 1989; Olwig, Fog e Hastrup, 1997;
Brumann, 1999), vem-se operando uma mudança de paradigma no con-
ceito de cultura dentro da Antropologia. Entendido anteriormente como
um “todo” coerente, estável e limitado, correspondente a cada “povo”,
“o conceito de cultura e, por extensão, a ideia de diferença cultural e as
hipóteses subjacentes de homogeneidade, holismo e integridade têm sido
reavaliadas”395.

290
É este o sentido adoptado na Declaração Universal sobre Diversidade
Cultural (2001):

Artigo 1º. A diversidade cultural é tão necessária para a humanidade


como a biodiversidade para a natureza. Neste sentido é a herança co-
mum da humanidade e deve ser reconhecida e afirmada para o bene-
fício das gerações presentes e futuras”396.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no


Relatório do Desenvolvimento Humano, 2004, com o sub-título Liberdade
Cultural num Mundo Diversificado, fornece-nos um panorama actualiza-
do sobre o tema.

“A liberdade cultural é uma parte vital do desenvolvimento huma-


no, porque a capacidade de uma pessoa escolher a sua identidade
– quem ela é – sem perder o respeito dos outros ou ser excluída de
outras opções, é importante para uma vida plena. As pessoas querem
liberdade para praticar abertamente a sua religião, falar a sua língua,
celebrar a sua herança étnica ou religiosa sem medo do ridículo, de
punições ou de diminuição de oportunidades. As pessoas querem a
liberdade de participar na sociedade sem ter de prescindir das amarras
culturais que escolheram. É uma ideia simples, mas profundamente
perturbadora”397.

Assim, o Relatório, ao propugnar “políticas de identidade” no sentido


positivo de inclusão cultural, parte do reconhecimento e respeito pelas di-
ferentes culturas e, com o objectivo de integrar estas políticas, menciona
“três pilares da estratégia de desenvolvimento humano”: “democracia”,
“crescimento a favor dos pobres”, “expansão equitativa de oportunidades
sociais”.
Seguidamente, o mesmo documento desautoriza os cinco mitos em
torno da liberdade cultural e desenvolvimento e percorre um variadíssi-
mo leque de problemas e de soluções.
Propõe manter a proposta de “enfrentar os movimentos para a do-

291
minação cultural” vindos de grupos fundamentalistas ou outros (gangs e
máfias criminosas).
Aconselha a desvalorização dos receios dos defensores da globalização,
e faz uma chamada de atenção para exemplos positivos como o evoca-
do por John Hume, Nobel da Paz de 1998, ao recordar que “a União
Europeia substituiu esses conflitos pela cooperação entre os seus povos.
Transformou a sua vasta gama de tradições, de uma fonte de conflitos
numa fonte de força unificadora”398.
E, na babel dos conflitos, violações e guerras de “exclusão mútua” que
continuam a afectar o mundo em que vivemos, aponta exemplos, fórmu-
las e caminhos da solução: “direito à terra” no Brasil e nas Filipinas399, “re-
conhecimento da diversidade linguística” em diversos países da África400
e educação multilingue desde o Canadá ao Afeganistão e Papua Nova
Guiné401, transição dos “direitos privados” para um “código civil unifor-
me” na Índia402, trajectórias de organização política como “identidades
múltiplas e complementares” (Espanha e Bélgica)403, “federações mul-
tinacionais” em acção (Suiça e Malásia passando pela Austrália, Índia,
Áustria, Alemanha, Brasil e Canadá)404 ou em forma de desafio (da Nova
Zelândia à Nigéria)405.
Entre os mais graves problemas de multiculturalismo, emergem os
que afectam a emigração cujo ritmo acelerou nos últimos tempos (citan-
do-se o exemplo de quase metade da população actual de Toronto ter
nascido fora do Canadá) e cuja incidência vem adquirindo a acuidade
máxima nas fronteiras e zonas periféricas dos espaços de maior desenvol-
vimento económico (Estados Unidos e Europa).
O mútuo benefício que o fenómeno pode representar para ambas as
partes vem sendo posto em relevo, à luz do programa “recrutamos traba-
lhadores mas recebemos pessoas”, no sentido de que

“desenvolvimento divorciado do seu contexto humano ou cultural é


crescimento sem alma. O desenvolvimento no seu pleno florescimen-
to faz parte da cultura de um povo” (Comissão Mundial para a Cultura
e Desenvolvimento, 1995)406.

292
O problema do indigenato reveste-se ainda de maior gravidade na
medida em que, para além de se manter actual, acumula um longo e
doloroso percurso histórico. O Fórum Permanente da ONU sobre Questões
Indígenas (Segunda Sessão, Maio de 2003) afirma a importância positiva
da diversidade cultural nos processos de desenvolvimento. Porque, nas
palavras do seu Presidente, Olé Henrik Magga,

“Os povos indígenas têm culturas vivas e dinâmicas e procuram o seu


lugar no mundo moderno. Não são contra o desenvolvimento, mas
durante demasiado tempo foram vítimas do desenvolvimento e agora
exigem ser participantes – e beneficiários – de um desenvolvimento
sustentável”407.

Sobre este ponto, ocorre registar uma síntese, na linha da fé inque-


brantável de quem lutou até à morte por esta causa:

“Não quero que a minha casa seja cercada de muros por todos os la-
dos, nem que as minhas janelas sejam tapadas. Quero que as culturas
de todas as terras sejam sopradas para dentro da minha casa, o mais
livremente possível. Mas recuso-me a ser desapossado da minha por
qualquer outra” (Mahatma Gandhy)408.

Em termos de educação comunitária, não é possível dizer mais e me-


lhor. Cada um de nós tem a sua dignidade e cada povo tem a sua cultura.
Mas há uma única Terra de que todos somos cidadãos e uma só Família
Humana de que todos somos membros. E todos nós, à luz do texto do
Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, somos leva-
dos a reconhecer como nossa mais alta aspiração, a proclamar como ob-
jecto da nossa fé-compromisso e a procurar atingir como nossos ideais,
todos estes valores.
Manter esta postura parece constituir, hoje, uma tarefa urgente para
nós todos, mais, a missão de todos nós.
Ou podemos ir mais longe?

293
Valores transcendentes e prioridade aos mais desfavorecidos

No trajecto que vimos percorrendo sobre as diferentes fases do pro-


cesso educativo, deparámos pelo menos com duas passagens em que os
documentos internacionais propunham a adopção de atitudes de descri-
minação positiva sobre alguns membros da comunidade humana, desig-
nadamente adolescentes no primeiro caso e adultos no segundo.
A primeira aparece no Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989) e apresenta-se como justificação da elaboração do próprio
documento: “a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e
intelectual, tem necessidade de uma protecção e cuidados especiais”, e
mais ainda quando se trata de “crianças que vivem em condições parti-
cularmente difíceis e que importa assegurar uma atenção especial a essas
crianças”409.
A segunda consta na Recomendação sobre o Desenvolvimento da
Educação de Adultos (Nairobi, 1976) e, numa pequena frase, recolhe a
síntese do percurso de quase 30 anos de emergência e desenvolvimento
do conceito de educação de adultos ao recomendar: “atribuir a mais alta
prioridade aos grupos menos favorecidos” ou, noutra expressão também
ali usada, ao “Quarto Mundo” das mulheres, idosos, rurais, desemprega-
dos, explorados e oprimidos, pobres e doentes, diminuídos físicos e/ou
mentais, marginais e marginalizados, excluídos e perseguidos410.
A evocação destes casos extremos e concretos não pode levar-nos a per-
der de vista os casos correntes que afectam a generalidade dos seres hu-
manos. Todos e cada um de nós, num ou noutro dia da nossa existência,
sofremos de hostilidade, incompreensão e isolamento, de carências externas
de recursos, apoios, estímulos, de carências internas de energia, inspiração,
entusiasmo, de carência íntimas de força, de coragem, de ideal e de paz.
E ao falarmos de quem mais precisa, facilmente sentimos, no fundo
de nós mesmos, que todos precisamos mais.
É nesta situação que ganham sentido e força estimulante os conceitos
de Identidade Terrestre, de Família Humana e de Fraternidade Universal,
os dois últimos adoptados, como fundamentais, no Preâmbulo e no Art.
º 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

294
O sentimento de nos vermos englobados nessas realidades transcen-
dentes é de molde a desencadear, dentro da nossa identidade pessoal, um
movimento dialéctico: porque, perante elas, nos sentimos pequenos e sen-
timos pequenos todos os outros, sentimos também a necessidade de sermos
ajudados e, simultaneamente, o chamamento a ajudarmos os outros todos.
O que nos conduz aos conceitos de serviço e de voluntariado.

Da raiz *IE Mei-, no terceiro sentido já anteriormente mencionado,


de “pequeno, pequenez” e, por contaminação com outra raiz *IE Men-,
que também envolve a ideia de “pequeno”:

– através do grego meíōn (comparativo de mikro), “menor, infe-


rior”, recebemos na terminologia científica, desde o séc. XIX,
lexemas como miocénico, miolítico etc. e, desde o séc. XX, lexe-
mas como meiose e meiótico, etc.;
– através do lat. minor, ōris e minus (comparativos de parvus, “pe-
queno” e de parum, “pouco”), temos, por um lado, menor, por-
menor e derivados e, por outro lado, menos, diminuir, diminuto,
minúcia, miudo, amiúde, mindinho, etc.;
– através do lat. minimus (superlativo de parvus, “pequeno”), te-
mos mínimo, mingar, míngua, miniatura, etc;
– finalmente através do lat. minister, “servidor, criado, assistente;
sacerdote, ministro do culto”, temos ministro, ministério, minis-
terial, ministrar, administrar, etc..411

Ao tomarmos consciência de que a mesma raiz donde nos vêm as pa-


lavras “menos”, “menor” e “mínimo” vem a palavra “ministro”, no sentido
de “servidor”, descobrimos o perfil da verdadeira função dos responsá-
veis políticos, quer da Nação, quer das Nações Unidas, no horizonte dos
“ministros”do culto das várias religiões.
A função política, frequentemente objecto de tão pouco apreço, cer-
tamente pela forma como é desempenhada, merece na realidade todo o
reconhecimento e respeito, na medida em que corresponde ao altruísmo
e generosidade daqueles que, ao candidatarem-se ao seu exercício, deixa-

295
ram de lado os legítimos interesses pessoais para se colocarem ao serviço
dos seus concidadãos no trabalho da procura do bem comum.
E se os exemplos maus e contraditórios abundam, de maior mere-
cimento são credores aqueles que, no desempenho das suas funções, se
pautam por este critério.
É também este o momento de reconhecermos todos, apesar das mui-
tas e graves deficiências conhecidas, o esforço e dedicação de tantos e tão
categorizados membros das equipas das Organizações Internacionais que,
desde meados do século XX, vêm procedendo à elaboração dos docu-
mentos e relatórios que tão maravilhosos horizontes abriram à melhoria
das condições da existência da Família Humana e, neste contexto, ao seu
caminho que é a educação.
O mesmo reconhecimento, completado aqui com o chamamento a
todos e a cada um de nós para seguirmos o seu exemplo, deve ser presta-
do a tantos membros da Família Humana empenhados num variadíssi-
mo leque de actividades de voluntariado ao serviço dos seus irmãos.
Que tudo isto exige energia, trabalho, esforço, boa vontade? É certo.
Mas compensa. A julgar pelo testemunho de todos aqueles que nos vêm
legando esse exemplo, como este relativo ao esforço realizado para vencer
o sistema do apartheid, na África do Sul:

“Quando assumimos o projecto de transformar a nossa sociedade,


uma das nossas palavras de ordem era: “não à privação”. O nosso ob-
jectivo era banir a fome, o analfabetismo e a falta de abrigo e garantir
que todos tivessem acesso a comida, educação e alojamento […]
Há muita gente na comunidade internacional que, observando à dis-
tância o modo como a nossa sociedade desafiou os profetas da desgra-
ça e as suas previsões de um conflito interminável, falou de milagre.
Todavia, os que estiveram intimamente envolvidos na transição sabe-
rão que foi o resultado da decisão humana” (Nelson Mandela, Nobel
da Paz de 1993)412.

Em resumo do presente capítulo, poderíamos evocar o sentimento de


alegria que se apodera de nós quando, em viagem por terras longínquas,

296
deparamos inopinadamente com um conterrâneo e exclamamos: “és da
minha Terra!”, “ainda pertences à minha família!”, “dá cá um abraço!”.
Ora isto é rigorosamente verdade no que respeita a todos e cada um dos
seres humanos.
Um extraterrestre que ao aportar ao nosso Planeta se sentisse atónito
perante o rol de conflitos que nele se desenvolvem, poderia clamar com
toda a razão: “não se matem pois são todos da mesma Terra e pertencem
à mesma Família!”
De facto, porque somos habitantes da mesma Terra e cidadãos da
mesma Pátria, todas as guerras são guerras civis. Porque todos moramos
na mesma Casa (em latim domus), todos os conflitos são conflitos do-
mésticos. Porque todos pertencemos à mesma e única Família, todas as
desavenças são desavenças familiares.
Não se compreende, por isso, a diarreia conflitual entre indivídu-
os, povos, nações, reinos e impérios que caracteriza toda a História da
humanidade.
Ou, dito pela inversa, teremos de admitir que o sentimento de Família
Humana que arrasta para a ajuda recíproca e o serviço mútuo dando mesmo
prioridade aos mais desfavorecidos, base do verdadeiro projecto educativo, ao
colocar todos os recursos da terra ao serviço de todas as pessoas membros da
grande Família Humana para crescerem e se realizarem nos valores, carece
de explicação mais esclarecedora e de fundamentação mais sólida.
Tal fundamentação dos sentimentos de natural solidariedade que
marcam a condição humana de pertença dos homens à Terra e caracteri-
zam a nossa identidade terrestre só poderá ser encontrada nas raízes vitais
e vivificantes da unidade de origem e destino que envolvem o sentido de
Família Humana.
Para isso importa compreender a importância da relação que se esta-
belece entre, por um lado, a Família Humana e a própria Terra nossa mo-
rada e, por outro lado, o contexto em que ambas existem, se movimentam
e se desenvolvem.
Passamos assim a abordar a última faceta do sentido abrangente do
conceito de educação.

297

Capítulo VIII

Educação ecossistémica: a realização do Homem no Universo

A educação ao longo da vida de cada um de nós desenvolve-se em in-


teracção com os processos de educação ao longo da vida de todos os ou-
tros membros da mesma Família Humana e cidadãos da mesma Pátria
Terrestre e, dessa interacção, resulta o processo que designámos educação
comunitária.
Por sua vez, a educação comunitária desenvolve-se em interacção com
o contexto do Universo em que nos movimentamos (que envolve, no
tempo, o passado e o futuro da Família Humana e, no espaço, o aquém
e o além da Pátria Terrestre) e, dessa interacção, nasce o processo que
podemos designar educação ecossistémica.

“Eco”, primeiro elemento deste último lexema, procede do substanti-


vo grego oîkos, “casa, habitação, casa em que se habita” e dele

– pela associação de oîkos (casa) e nomos (lei), através dos lexemas


grego oikonomía e latino œconomĭa, recebemos economia, no
sentido de administração, organização e/ou gestão da casa e, por
extensão, de outros bens, instituições ou actividades humanas;
– pela associação de oîkos (casa) e logos (razão) e através do neolo-
gismo alemão Ökologie, introduzido por E. H. Haeckel (1866),
recebemos ecologia, estudo das relações entre os seres vivos e o
seu meio, no caso do homem, do seu meio físico, económico,

299
social, cultural, moral;
– mais recentemente e através da associação de eco e sistema, te-
mos ecossistema, no sentido que abarca cada agrupamento de
seres vivos, o meio ambiente em que vive e as relações que se
estabelecem entre eles;
– paralelamente e também do gr. oikouménē (gē), particípio pas-
sivo do verbo oikéō, “viver em, habitar, morar, residir, ocupar”,
recebemos ecúmena, terra habitada (em oposição a deserto),
área geográfica permanentemente habitada e, por extensão,
toda a terra habitada pelo homem, o todo, o geral, o universal;
neste sentido, ecúmena designou o espaço do império criado
por Alexandre Magno e em que se difundiu a língua grega na
forma koinē (comum), depois o espaço do Império Romano do
Oriente que falava grego e, mais tarde, o espaço do mundo todo,
reivindicado pela religião cristã, que recebeu e incluiu a palavra
no seu vocabulário eclesial, desde os primeiros séculos (concílio
ecuménico) até aos tempos de hoje (movimento ecuménico).

Nesta dimensão ecuménica, a Casa em que moramos, não se encontra


confinada ao Planeta Terra e a tudo o que ele contém de maravilhoso:
continentes e ilhas, gelos e oceanos, montanhas e fundos do mar, plantas,
animais e seres humanos, obras geradas pela força da natureza e pela arte
dos homens, celebradas pelos artistas, cantadas pelos poetas e que hoje,
umas e outras, constituem o nosso património comum.
O nosso Planeta Terra, na primeira aparência tão grande que os ho-
mens primitivos demoraram milhares de anos a percorrê-lo e ocupá-lo e
só recentemente atingimos os seus cumes e ainda não descemos a todas
as suas profundezas, é também um mundo aberto: durante o dia à luz do
sol, durante a noite ao clarão da lua e ao brilho das estrelas e, sempre, às
influências de todo o espaço que o rodeia porque, no dizer dos sábios,
anda a mover-se como astronave no meio do sistema solar, numa zona
periférica de uma galáxia de 150 mil milhões de sóis, a qual, por sua vez,
se move entre milhares de milhões de outras galáxias…
Nesta perspectiva inesperada, o Planeta Terra fica instantaneamente

300
reduzido a um instável e minúsculo nicho dentro do verdadeiro Oikos
que é o Universo.
Mas este Oikos, já na dimensão física tão misterioso, continua a des-
dobrar-se em sucessivas camadas envolventes:
– o que sabemos do universo físico vai, no dizer dos especialistas, até
onde chegam os nossos instrumentos de pesquisa porque, mais além, ele
parece continuar… modificar-se… recriar-se…
– continua certamente no universo gnoseológico do nosso pensamen-
to, ou noosfera como dizia Teillard de Chardin, a diluir-se em pistas de
investigação, extrapolações, hipóteses, teorias, sonhos, utopias …
– mais além ainda, continua no universo axiológico da nossa angústia
íntima, evocada no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do
Homem e entretecida de interrogações sobre as últimas razões do ser e do
saber, os ideais e os valores, as origens e os fins…
E ao chegar aqui, perante o mistério que se adensa cada vez mais,
acabamos por apenas saber repetir baixinho aquela canção, feita de melo-
dia cadenciada e ritmo lento, que aprendemos de crianças no jardim de
infância,

“era uma casa muito engraçada,


não tinha tecto, não tinha nada…”

Entretanto e por estranho que pareça, desde meados do mesmo séc. XX


em que nos fomos apercebendo melhor do mistério que envolve o universo
que habitamos e cujas fronteiras desconhecemos, o Planeta Terra, menos
que minúscula astronave em que nos encontrámos a viver e viajar através
dele, passou a ser objecto de ameaças de morte: já na década 50 pela cor-
rida aos armamentos e na perspectiva de um holocausto nuclear, ameaça
de morte súbita; a partir da década 70, pelo agravamento do fenómeno da
poluição e degradação das condições de vida, ameaça de morte lenta.
Porque os seres humanos, continuando a deixar-se arrastar pelos deva-
neios e desvarios dos egoísmos e hedonismos pessoais e colectivos, tantas
vezes camuflados de ideologias étnicas, políticas, culturais ou religiosas, se
preocupam em crescer apenas na dimensão do desenvolvimento material

301
e, quando muito, também do desenvolvimento intelectual, científico e
tecnológico, deixando para trás o desenvolvimento moral e ético sem o
qual falha a garantia de êxito dos dois anteriores.
Porque as Nações (des)Unidas se esquecem constantemente da sua
Declaração Universal dos Direitos do Homem na qual afirmaram que to-
dos os homens, enquanto portadores da dignidade de seres humanos,
ainda antes da pertença a qualquer povo, raça, cultura ou religião, fazem
parte, em pé de igualdade e como irmãos, da mesma e única Família
Humana, e de que o advento do Mundo dos Valores constitui a “mais alta
aspiração do homem”, a “concepção comum” em que acreditam e o “ide-
al comum” “a atingir por todos os Povos e todas as Nações”, “pelo ensino
e educação”.
Nesta situação paradoxal, impõe-se questionar radicalmente, no úl-
timo capítulo, as três facetas do processo educativo: condições de vida,
dimensões do crescimento, universalidade dos valores.
E porque elas se encontram em relação com os três níveis de aprofun-
damento do espaço ecuménico, reduzimo-las a ecúmenas:

– Ecúmena I: assegurarmos a todos as condições de vida


– Ecúmena II: crescermos todos em todas as dimensões
– Ecúmena III: até nos realizarmos todos nos Valores.

1. Ecúmena I: assegurarmos a todos as condições de vida

A criação, manutenção e sustentabilidade das condições de vida para


que os seres humanos possam crescer e realizar-se constitui a primeira
dimensão do processo educativo.
O tema reconduz-nos aos problemas gravíssimos que hoje enfrenta-
mos sobre o futuro do Planeta Terra: a progressiva degradação das con-
dições de vida e as suas consequências, designadamente a perturbação
introduzida nos ecossistemas e o fenómeno do aquecimento global que
podem levar à sua morte lenta, bem como a necessidade de tomarmos
consciência das razões que se encontram na origem do processo e das
medidas a tomar para lhes pôr cobro.

302
A degradação das condições de vida e a morte lenta da Terra

A sucessão rápida de acontecimentos que se seguiram à II Guerra


Mundial (1939-1945), designadamente a corrida e proliferação dos ar-
mamentos com o risco de um holocausto nuclear e, por outro lado, o
início da conquista do espaço (1957), introduziu na geração da década
60 uma sensação de vertigem perante a alternativa entre a morte sú-
bita do planeta e o seu inesperado desenvolvimento à escala interplane-
tária, a que fizemos referência no Capítulo V, 2., ao mencionarmos a
Declaração da Conferência Mundial de Montreal sobre Educação de Adultos
e a ”Resolução” “A Educação de Adultos e a Paz do Mundo” (1960).
Paralelamente e na mesma década, o esforço empreendido pelas na-
ções que tinham ficado semi-destruídas pela guerra, com a ajuda do Plano
Marshal na Europa e de outras similares noutras partes do Mundo, culmi-
nou na recuperação económica ao nível da situação anterior à guerra (as
Nações Unidas proclamaram os anos 60 “Década do Desenvolvimento”).
Mas aconteceu que, ao mesmo tempo, começaram também a tornar-
se visíveis as consequências negativas deste desenvolvimento económico
acelerado com base na expansão da indústria, através dos fenómenos da
poluição e da progressiva degradação das condições de vida a indiciarem a
abertura do percurso de uma morte lenta do Planeta. O alerta geral é mes-
mo lançado pela Terceira Conferência Mundial sobre Educação de Adultos
(1972)413 e constitui objecto de atenção crescente até aos nossos dias.
O tipo de indústria, em causa, situado no último período da segunda
revolução industrial mas já em transição para o terceiro, caracteriza-se
pelo facto de recorrer a uma vastíssima gama de matérias primas, para a
produção de uma variadíssima gama de produtos, deixando pelo cami-
nho enormes quantidades de efluentes e resíduos em igual proporção.
Tais resíduos (restos, detritos, poeiras, derivados químicos, poluen-
tes radioactivos) vêm juntar-se aos resíduos (lixos) domésticos, mineiros,
agrícolas, comerciais, etc., e a sua acumulação começa a afectar a nossa
vida de todos os dias.
Os próprios produtos vão contribuir também, e em larga medida,
para a poluição geral, nos diversos espaços em que são transportados,

303
distribuídos, utilizados, abandonados:

– na agricultura, pesticidas que incluem compostos orgânicos


sintéticos, insecticidas que contêm hidrocarbonetos clorados,
pouco ou nada biodegradáveis, ou fosforados, do tipo de gases
que facilmente se espalham e levam a morte a grandes distân-
cias, bem como adubos químicos que, do solo, podem subir
às partes aéreas das plantas e/ou descer até inquinar os lençóis
freáticos;
– na vida urbana, emissões de fábricas, de veículos poluentes e
de equipamentos domésticos, sobretudo as portadoras de óxido
de carbono, enxofre e azoto, e ainda chumbo, hidrocarbonetos
incombustíveis, fuligem, aerossóis, etc.;
– nas correntes e concentrações de água, nitratos domésticos e/
ou industriais que, através da chuva e suas infiltrações, atingem
lençóis freáticos, cursos de água, lagos e mares fechados;
– nos mares abertos, extracção, transporte e derrame de hidrocar-
bonetos e limpeza de cisternas, fontes de poluição e de aciden-
tes graves como marés negras, etc.;
– na atmosfera, utilização de combustíveis fósseis e as consequen-
tes emissões de óxidos de enxofre e azoto que, ao combinarem-
se com a água atmosférica, formam os ácidos sulfúrico, nítri-
co, etc. que provocam os nevoeiros ou chuvas ácidas a afectar os
mundos vegetal, animal e humano;
– no planeta inteiro, gases que conduzem à degradação da cama-
da de ozono, poluentes radioactivos que afectam a vida em toda
a face da terra.

A partir de fins da década 60 e de algum modo ao ritmo de gra-


ves acidentes ambientais414, as vozes mais autorizadas de associações de
cientistas, de movimentos políticos e de organizações internacionais, vêm
alertando para o facto de a conjugação de todos aqueles factores estarem
a provocar a degradação das condições de vida na terra, em termos de
morte lenta do Planeta415.

304
Mas é nas últimas décadas que esta previsão passa a tornar-se concre-
ta, visível, inquestionável e alarmante.

A ecologia sectorial e as perturbações nos ecossistemas

Pretendemos apenas encontrar o caminho da reflexão sobre o proces-


so educacional, no que diz respeito às consequências das agressões aos
ecossistemas.
A educação é um atributo dos seres vivos.
O processo educacional desencadeia-se a partir do momento em que
o ser vivo dispõe, no meio ambiente em que se encontra, das condições
necessárias para se alimentar, crescer e se realizar.
A biosfera, do neologismo alemão biosphäre, criado pelo geógrafo aus-
tríaco E. Sueis (1888), designa o conjunto das áreas do planeta onde a
vida existe ou pode existir: terra emersa (litosfera), superfícies líquidas (hi-
drosfera), camada envolvente do ar (atmosfera).
A cada espaço da biosfera relativamente homogéneo e constante ou
biótopo (de bios, “vida” + topos, “lugar” = lugar de vida), acaba por corres-
ponder um conjunto de populações interdependentes dos reinos vegetal,
animal e humano que, de algum modo, constituem uma comunidade de
seres vivos ou biocenose (palavra composta de bios, “vida” + koinós, ē, ón,
originariamente com o sentido de “comum a várias pessoas”, donde vem
também cenóbio, cenobita, etc., e hoje no sentido de “comum a vários
seres vivos”).
Da ligação entre um biótopo e uma biocenose resulta um ecossistema, ou
seja, sistema que abarca uma “comunidade de seres vivos”, o “lugar de vida”
em que se encontra e as inter-relações que se estabelecem entre ambos.
A ecologia define-se como ciência que estuda os ecossistemas.

A relação fundamental que se estabelece entre o meio ambiente e a


comunidade dos seres vivos, ou entre o biótopo e a biocenose, dentro do
ecossistema, é a transferência e conversão de energia, desde a recolha de
energia exterior (trata-se de um sistema aberto) e ao longo da cadeia ali-
mentar, para assegurar a manutenção da biomassa (massa total dos seres

305
vivos que moram no biótopo), até à sua recondução às fontes originais.
A cadeia alimentar ou rede trófica desenvolve-se através de um percur-
so em que a energia é

– recebida do exterior (por exemplo, da luz do sol, do solo da


terra, etc.),
– captada e tratada pelos produtores primários (por exemplo os
vegetais verdes clorofilinos),
– predada, sucessivamente, pelos consumidores de primeira ordem
(animais herbívoros), de segunda ordem (carnívoros), de terceira
ordem (carnívoros de carnívoros) e, na globalidade, pelos consu-
midores omnívoros (seres humanos);
– na transição, tratada pelos decompositores (organismos que se
alimentam de matéria morta, fragmentando-a);
– no termo, degradada pelos mineralizadores (bactérias, fungos)
que libertam dos organismos em decomposição os sais minerais
e os devolvem à natureza,
– de onde poderão vir a ser reabsorvidos pelas plantas e assim
reentrar no processo da vida.

A meio caminho entre os ecossistemas sectoriais e o ecossistema glo-


bal, vem-se atribuindo hoje grande importância ao bioma (palavra com-
posta do gr. bios, “vida” + oma, pospositivo recebido do gr. ógkōma, atos,
“inchação, tumor”), que envolve o sentido de “grande comunidade está-
vel e desenvolvida” “geralmente caracterizada por um tipo principal de
vegetação”, existente num determinado biocoro (do gr. bios, “vida” + gr.
khōros, “região, espaço de terra”) e de cuja associação encontramos exem-
plo nos desertos, savanas, florestas, pradarias, etc.

Gerados ao longo dos acidentados períodos da evolução da Terra,


todos os actuais ecossistemas, mesmo os mais estáveis (que atingiram o
clímax), são extremamente sensíveis às perturbações externas (catástrofes,
destruições, mutações climáticas, agressões, explorações intensivas, etc.)
e facilmente podem derrapar, em evolução regressiva, para estados degra-

306
dados ou desérticos416.
Entretanto os inúmeros acordos internacionais, à escala mundial e re-
gional, não surtem o efeito desejado e a degradação das condições de vida
começa a pôr em causa o planeta inteiro.
É exactamente o risco de que passámos a aperceber-nos melhor nos
últimos anos.

A ecologia global e o “efeito estufa”

Podemos transportar tudo quanto acabamos de dizer dos ecossistemas


parcelares para o ecossistema terrestre visto como um todo: o biótopo é
o planeta Terra; a biocenose é agora o conjunto de todos os seres vivos
que nele habitam e em cujo topo nos encontramos nós próprios, como
membros da mesma Família Humana, a morar na mesma Casa e ainda,
enquanto seres conscientes e livres, como altos responsáveis pelo seu fun-
cionamento e manutenção.
Acontece que dispomos hoje da primeira fotografia da Terra, tirada do
espaço à distância de seis mil milhões de km pelos tripulantes da Apolo
8 (1968), algum tempo antes de os tripulantes da Apolo 11 terem feito a
primeira alunagem (1969). Dispomos também de outras fotos, obtidas
através de tratamento digital, que mostram os diversos continentes e, no
planisfério geral, as cores das suas várias regiões: branco dos gelos, verde
das planícies, amarela dos desertos.
No ecossistema, assim entendido, à escala global, importa atender ao
seu funcionamento em tudo o que diz respeito às condições, distorções
e agressões do que poderíamos chamar a nossa rede trófica no sentido
integral: os produtos que ingerimos, a água que bebemos, o ar que respi-
ramos, a temperatura que nos envolve, a saúde que obtemos, o bem estar
de que gozamos.
Mas à escala humana e planetária, o aumento da população (nos úl-
timos 50 anos passámos de 2.500 para 6.500 milhões), a concentração
urbana particularmente nas grandes megalópoles (Tóquio, Cidade do
México, S. Paulo, Nova York, Bombaim, Xangai, etc.), a aceleração do
processo civilizacional marcado pelas novas tecnologias (TICs, Web, te-

307
lemóveis) e pelas exigências dos novos estilos de vida, as devastações pro-
vocadas pelos processos de mineração e desflorestação, os desvios de rios
e secagem de lagos (Mar de Aral), a proliferação dos lixos (dos normais
aos tóxicos e aos nucleares), vêm pondo em causa o equilíbrio do Planeta
e começaram mesmo a provocar transtornos mortíferos nas condições e
qualidade de vida.
Entretanto, o problema maior incide sobre a atmosfera e tem a ver
com o fenómeno do aquecimento global e do efeito de estufa.
Se a dosagem de gases como o dióxido de carbono, metano e óxido
nitroso é necessária para manter o aquecimento global da Terra à tempe-
ratura média de 15º C (que, sem ela, desceria a -18º C), por outro lado
o seu aumento descontrolado, designadamente por parte do dióxido de
carbono (CO2) que vem sendo responsável por 80% desse descontrolo,
e do metano que recentemente vem sendo considerado ainda de algum
modo mais gravoso, provoca inexoravelmente a subida da temperatura
para níveis que ameaçam este equilíbrio e começam a provocar transtor-
nos mortíferos nas condições de vida e a pôr em risco todo o funciona-
mento do ecossistema global.
Por outro lado, o abate sistemático e intensivo da floresta (que absor-
ve durante o dia o dióxido de carbono), por exemplo da floresta tropical
da Amazónia, para além de, no próprio momento, libertar dióxido de
carbono, extingue para sempre a sua absorção por parte das mesmas ár-
vores abatidas.
De facto, a temperatura média da Terra que se manteve em certo
equilíbrio ao longo dos últimos 650.000 anos, cresceu lentamente desde
1860, acelerou desde 1980 (sendo 2005 o ano mais quente), e receia-se
que irá acelerar muito mais até 2050.
E se durante anos prevaleceram as dúvidas sobre a factualidade do
aquecimento global, nos últimos tempos vêm-se acumulando as provas
a ponto de a situação aparecer descrita em termos de “agonia da Terra”
e apresentada como “verdade inconveniente” mas também como cri-
se que envolve uma oportunidade a agarrar e aproveitar como “urgência
planetária”417:

308
– tendência para a diminuição até ao desaparecimento das antes
chamadas “neves eternas” (Monte Kilimanjaro, na Tanzânia)
e de glaciares (Parque de Montana, nos USA; Alpes e Países
Nórdicos, na UE; Patagónia, na Argentina) ou recessão de mas-
sas de gelo (na cordilheira dos Himalaias, sobre o oceano do
Árctico e sobre as terras da Antártida e da Gronelândia);
– tempestades do tipo furacões e tufões formados no mar, e de
tornados formados em Terra, cada vez mais numerosos, mais
violentos (ex. furacão Katrina, USA, 2005) e a atingir maiores
raios de acção no Planeta;
– inundações (Ásia, América, Europa) em número crescente (na
Ásia, de menos de 50 na década 50 passou para 325 na década
90) e que, por vezes, estranhamente, ocorrem ao lado de regiões
que suportam secas agravadas;
– incêndios (nas Américas e na década 90, o número quase
quintuplicou);
– aparecimento de zonas mortas nos mares devido à “fluorescên-
cia de algas” (por vezes tóxicas), causada pela falta de oxigénio
induzida pela poluição (Florida, nos USA; Mar Báltico, na UE)
e deterioração dos recifes de coral (Polinésia), com devastadoras
consequências para as espécies marinhas que deles dependem;
– proliferação e expansão de formas de vida transmissoras de do-
enças (parasitas, moscas e mosquitos, roedores, etc.);
– alterações nas estações do ano a provocar transtornos nas cultu-
ras agrícolas e na reprodução de aves migratórias.

Para além de tudo isto e do facto de já se notarem bastantes alterações


nas costas marítimas dos vários continentes, avoluma-se o receio de o de-
gelo provocado pelo aquecimento global nas regiões polares levar à subida
do nível dos mares e à submersão de regiões mais expostas (Bangladesh
na Ásia, Países Baixos na Europa) e afectar o “cinturão termohalino mun-
dial” das correntes quentes e frias que percorrem os oceanos.
O debate sobre o aquecimento global e os perigos que ele compor-
ta acaba de atingir o clímax neste final de 2007, décimo aniversário do

309
Protocolo de Kioto e Cimeira sobre o Ambiente em Bali.
Comentando as conclusões do último relatório (2006) do Painel
Intergovernamental sobre Alterações Climáticas, nas antevésperas da
Cimeira de Bali, o Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon, reconhece
que “os cientistas já cumpriram a sua missão. Agora compete aos políti-
cos agir”. Mas, apesar de nas difíceis negociações ter proposto “agarrem
este momento para o bem de toda a Humanidade”, a Cimeira não foi
além de estabelecer o mapa das bases em que será negociado um novo
acordo global a substituir o Acordo de Kioto418.
Mais uma vez constatamos a urgência de nos agarrarmos ao que é
essencial: perante a incerteza que afecta a nossa natureza física, biológi-
ca, intelectual e moral e a falta de coragem para a enfrentar através dos
aconselháveis “viáticos” (ecologia de acção, estratégia, aposta)419, importa
questionar-nos sobre até que ponto nós, os humanos, estamos conscientes
de sermos responsáveis pela deterioração do nosso Oikos e de nos caber
a missão e a tarefa de procurarmos crescer todos e em todas as dimensões,
a fim de nos tornarmos capazes de tomar as medidas adequadas para a
remediar no presente e a prevenir no futuro.

2. Ecúmena II: crescermos todos em todas as dimensões

A “agonia da Terra” tem a ver com a “agonia do Homem” resultante do


exercício de competitividade que, por sua vez, é alimentado pelo instinto
da areté no sentido que nos legou a paideia grega.
Do gr. agón , ônos, “reunião, assembleia, local onde se realizam jogos,
jogos sacros, jogos de luta, luta, contenda”, agonia envolve o mesmo sen-
tido de “luta nos jogos, exercício em geral, combate” e ainda a “agitação
da alma e angústia” que toma conta de nós nessa situação.

A luta desenvolve-se como exercício de competitividade.

Da raiz *IE Pete- que envolve a ideia geral de “precipitar-se para, ati-
rar-se a”, talvez aparentada com outra raiz *IE Pet-, Ped- que envolve a
ideia de “cair”, através do verbo compito, is, ěre, “ir dar ao mesmo ponto,

310
encontrar-se”, “concorrer com outro”, recebemos competir e competição,
no sentido de acto ou efeito de concorrência entre indivíduos ou grupos
em que uns procuram igualar ou superar os outros, e competitividade no
sentido de qualidade do que ou de quem é competitivo.
O exercício da competitividade é alimentado pelo instinto da “areté”.
Trata-se de uma palavra grega derivada da raiz *IE Are- ou Re- que
envolve a ideia geral de “ajustar, adaptar”, e que está relacionada com áris-
tos, ē, ón (superlativo de agathós, “bom”), “o melhor, excelente”, de onde
recebemos em português aristocracia420.
Areté, com o significado de procura da “adaptação perfeita, excelência,
virtude”, na história da educação grega, aparece associada a paideia, que
envolve a ideia originária de “criação” ou “processo trófico” de alimentar
a criança para assegurar o seu desenvolvimento em todas as dimensões e
que, mais tarde, na forma de “enkyklios paideia”, dará o nome à civiliza-
ção característica do brilhante período histórico do Helenismo.
A palavra areté, que não passou para a língua portuguesa, acrescenta
a paideia a intencionalidade de empregar toda a energia, força, ânimo e
vontade de vencer que arrasta, por exemplo o atleta dos Jogos Olímpicos,
a procurar ser o mais grande, ser o maior, ser o melhor, ser o primeiro.
Deste modo, areté influenciou toda a cultura ocidental através do mo-
delo da educação grega que envolve a ideia de procurar crescer (paídeusis)
no sentido de chegar a ser o melhor (áristos).
O melhor nos Jogos Olímpicos antigos e modernos, e nas Olimpíadas
de toda a nossa existência.
De facto, toda a nossa vida se desenvolve num “campo de jogos” ou
“campo de luta” ou de competitividade, no qual cada um de nós, à pró-
pria maneira, inconsciente, consciente e/ou esforçadamente mas sempre
numa perspectiva tendencialmente ego(cen)t(r)ista, procura ser o primei-
ro ou o melhor, nas coisa boas da força, da velocidade, da flexibilidade, da
ciência, da arte, da virtude, ou até nas coisas más do poder, da violência,
do conflito, do confronto, da guerra, do vício.
Em termos de educação, entendemos que enveredar pelo caminho
positivo corresponde a crescer (nas fases de adolescentes e de adultos) e en-
veredar pelo caminho negativo corresponde a decrescer.

311
Acontece ainda que quando enveredamos pelo caminho positivo e cres-
cemos nós próprios, queremos que cresçam também os nossos, os do nosso
grupo étnico, social, político, cultural e/ou religioso. Mas também aqui
prevalece o ego(cen)t(r)ismo fracturante, com a única diferença de em vez
de pessoal ser colectivo e, por isso, com a agravante de este tipo de competi-
tividade, dentro da Família Humana, provocar as mais graves fracturas que
estão na origem de todas as guerras, destruições e genocídios.
Torna-se, deste modo, mais necessário ainda que o natural e legítimo
esforço para que nós próprios e todos os membros do nosso grupo nos
tornemos os primeiros, os maiores, os melhores, se entenda na dimensão,
sublinhada no parágrafo anterior, do grupo completo que é a Família
Humana, atribuindo ainda a prioridade aos mais pequenos, fracos, po-
bres, desfavorecidos.
Só assim o natural exercício de competitividade, alimentado pelo ins-
tinto da areté à procura da “adaptação perfeita” e do nível de “excelência”,
até ao limite do esforço “agónico”, estará a metamorfosear-se no instinto
de solidariedade que visa promover o desenvolvimento pessoal de todos os
membros da Família Humana que habitamos o nicho comum do Planeta
Terra dentro do Oikos misterioso que é o universo.
Nesta perspectiva, impõe-se atender ao verdadeiro desenvolvimento
humano em todas as suas dimensões: a dimensão do desenvolvimento físi-
co a partir dos bens que podem proporcionar o crescimento e bem-estar
de cada um de nós; a dimensão do desenvolvimento mental através da
consciencialização e do conhecimento (científico e técnico) em ordem
a optimizarmos as relações de uns com os outros e com o Oikos em que
moramos; a dimensão do desenvolvimento moral pela assunção das nossas
responsabilidades, de ordem pessoal e colectiva, perante os Valores.
E impõe-se ainda mais: reconhecer o facto de cada uma destas dimen-
sões ser necessária mas não suficiente e depender da que vem a seguir
para se poder concretizar.
Passamos assim a abordar:

– o “mundo global” e o desenvolvimento sócio-económico


– o “mundo plano” e o desenvolvimento científico-sapiencial

312
– o “mundo axial” e o desenvolvimento moral e ético.

O “mundo global” e o desenvolvimento socioeconómico

A globalização é hoje um dos conceitos mais invocados, discutidos e


sujeitos a contestação.
A começar pela atribuição da data da sua emergência: ocupação da
Terra pelos hominídeos no Paleolítico (Gamble, 1994), descobrimentos
do séc. XV (Robertson, 1992), finais do séc. XIX (Chase-Dunn, 1989),
décadas 50 (Rosenau, 1990) ou 70 (Harwey, 1989) do séc. XX, ou etapas
similares (Held e Outros 1999)421.
No que se refere à consciencialização do facto de todos os seres hu-
manos vivermos em relação dentro do mesmo nicho que é o globo ter-
restre, poderíamos mencionar as etapas da circum-navegação de Fernão
de Magalhães – El Cano (1519-1521), da formação dos grandes impérios
coloniais nos séculos seguintes, das previsões dos socialistas utópicos des-
de Saint Simon e das reivindicações de estudiosos como Max Weber e de
revolucionários como Karl Marx (séc. XIX), da criação da Sociedade das
Nações (1919) e da Organização das Nações Unidas (1945), da introdu-
ção progressiva de práticas conducentes à interdependência económica
e política das nações da OCDE (1961) e, mais recentemente, dos movi-
mentos que, a partir da década 70, de muitas formas e por múltiplos ca-
minhos, avançaram com os conceitos de “interdependência das nações”,
de “sistema mundial”, de “globalização”.
Mas é durante a década 80, com Margaret Thatcher na Inglaterra e
Ronald Reagan nos Estados Unidos, que a chamada “revolução neo-con-
servadora”, pela adopção do princípio “o mercado é o regulador funda-
mental da vida económica”, imprime ao movimento de “globalização”
um sentido determinado e marcado.
A nova orientação vê-se fortalecida no início da década 90, com a
implosão da URSS e a afirmação dos Estados Unidos como potência
hegemónica no plano político, militar, económico e mesmo cultural, e
ainda com a reforma das instituições económicas internacionais já exis-
tentes (FMI e Banco Mundial) e a criação da Organização Mundial do

313
Comércio (1995). Todos estes organismos apoiam a liberdade completa
dos fluxos de capitais, e a mobilidade total à escala planetária das empre-
sas da produção e do comércio, acabando por atribuir ao sector financei-
ro o poder dominante na economia mundial.
Embora mais lentamente, cresce também a circulação das pessoas
(viagens de negócios e de turismo, migração transcontinental, facilitação
da concessão de asilo político, etc.), a expansão das tecnologias da infor-
mação e comunicação (TICs) e da comunicação de massas, a abertura e
mesmo abolição de fronteiras, tudo se conjugando no sentido de favore-
cer a diminuição da autonomia dos antigos Estados nacionais e o reforço
da interdependência, em termos económicos, sociais e políticos.
O avanço do processo é acompanhado pela reflexão sobre as diversas
dimensões do fenómeno da globalização: os riscos que representa (U.
Beck, 1992), o fim dos Estados Nacionais (K. Ohmae, 1995), o choque
de civilizações (S. P. Huntington, 1996), as transformações económicas
(P. Dicken, 1998)422.
E enquanto autores como D. Held e A. McGrew, D. Goldblatt, J.
Perraton (1999) analisam o confronto de argumentos entre “globalistas”
que defendem a “globalização” como nova etapa da história exigida pela
actual incapacidade dos Estados nacionais para resolver os problemas,
e os “cépticos” que defendem ainda existir neles a capacidade de con-
trolar os próprios territórios e de assegurar o desenvolvimento das suas
populações, outros, como J. A. Shoolte (2000), verificam como a globa-
lização continua a abrir o seu caminho apresentando-se, por vezes, atra-
vés de sinónimos que exprimem dimensões específicas de objectividade
incontestável:

– internacionalização (progressiva interacção e interdependência


dos Estados),
– liberalização (progressiva e seleccionada supressão de entraves
à livre circulação de fluxos financeiros, de empresas, de pessoas,
de bens e de serviços),
– desterritorialização (encurtamento de distâncias e, por vezes, até
abolição de fronteiras entre territórios),

314
– ocidentalização (algum mimetismo inicial, aliás em queda, pe-
rante a cultura ocidental),
– planetização (aproximação tecnológica de formas, experiências
e modos de vida de vários regiões do Planeta)423.

É esta situação factual que hoje se impõe e cujo impacto sobre a educa-
ção, na dimensão comunitária, enquanto processo de crescimento de todos
os membros da Família Humana, se por um lado representa uma abertura
de excelentes oportunidades, por outro revela a existência de entraves e in-
justiças que adiam e dificultam ainda mais a resolução dos problemas.
A questão maior tem a ver com o facto de que, por ausência de coor-
denação política responsável, a economia, à escala mundial, padece das
mais graves disfunções na justa distribuição dos recursos por todos os
membros da Família Humana.
Analisemos os acontecimentos.
Dentro da complexidade que caracteriza o funcionamento da econo-
mia mundial nas últimas duas décadas, vem-se observando a existência de
três grandes blocos: a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Europeu (OCDE) já constituída desde 1961 pela generalidade dos países
da Europa Ocidental mais os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova
Zelândia, a que vieram juntar-se o Japão (1964) e, mais recentemente o
México (1994), a República Checa (1995), a Coreia do Sul, a Hungria e
a Polónia (1996), e dentro da qual emerge a Tríade da União Europeia,
Estados Unidos e Japão; as regiões em vias de desenvolvimento ligadas
às diversas áreas de influência da Tríade e a partir das quais se regista,
na transição do milénio, a emergência dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia,
China); as regiões consideradas economicamente pouco interessantes e
que vão ficando fora do processo (África Subsariana, países do Centro da
Ásia e de algumas zonas do Pacífico.
E porque, na generalidade, os países do primeiro grupo se situam mais
no hemisfério Norte e os do terceiro mais no hemisfério Sul, tornou-se
corrente falar do Norte rico e do Sul pobre.
Deste modo, no que respeita à primeira dimensão do processo educa-
tivo – criar condições de vida – verifica-se que o funcionamento da eco-

315
nomia cresceu até atingir a dimensão global, mas não melhorou em qua-
lidade e tornou-se mesmo ameaçadora para toda a família humana, na
medida em que as divisões entre os seus membros que antes proliferavam
dentro das fronteiras de cada nação entre zonas rurais e urbanas, ou entre
classes sociais e diferenças de género, emergem agora (à escala planetária)
a gerar permanentes conflitos entre regiões desenvolvidas e deprimidas,
ou mesmo a desencadear guerras entre etnias, culturas e religiões.
Com efeito, constata-se que:

– as corporações financeiras e empresas multinacionais do pri-


meiro bloco impõem-se aos outros dois blocos e aos próprios
Estados;
– mantém-se a divisão na indústria, agora à escala internacional:
no Norte, serviços e indústrias limpas e de alto valor acrescen-
tado, no Sul, matérias-primas e indústrias perigosas, à base de
processos mecânicos e rotineiros;
– prolonga-se a discriminação no comércio, através da imposição
de preços e de barreiras alfandegárias pelos países do Norte;
– falham, à escala global, os mecanismos de correcção de justiça
social, na medida em que se encontram mais ou menos desen-
volvidos no território das nações avançadas e funcionam para as
nações menos desenvolvidas apenas na forma de ajudas esporá-
dicas em casos de catástrofes naturais;
– falham os mecanismos de equilíbrio ambiental, na medida em
que são os países do Norte que mais poluem o planeta (USA
30,3 %, UE 27,7 %, Rússia 13,7 %, Índia e China 12,2 %),
acontecendo ainda que o primeiro de entre eles se tem negado
a assinar o Protocolo de Quioto porque “é contra os interesses
dos Estados Unidos”.
Em resumo, verifica-se que à escala planetária da Família Humana e
apesar de todo o maravilhoso progresso da ciência e da técnica ao longo
da segunda metade do século XX, tem continuado a dominar a injustiça,
a haver (quase) tudo para alguns, (mais ou menos) pouco para bastantes,
(quase) nada para muitos, sendo estes últimos os do Terceiro Mundo,

316
concentrados nos países em que grande parte da população é forçada a
viver com menos de 1 euro por dia, e os do Quarto Mundo que vivem
dispersos um pouco por todo a parte em condições ainda mais gravosas.
É este sentimento de gritante injustiça que, perante as consequências
da situação complexa e moralmente insustentável dessa faceta do proces-
so de globalização, na transição do Milénio começou a abalar consciên-
cias e a provocar reacções e manifestações, à escala mundial, por parte de
amplos sectores da Família Humana, de que mencionamos algumas das
mais significativas:

– I Dia de Acção Global, Birmingham, 1998


– II Dia de Acção Global, Mundo, 1999
– III Dia de Acção Global, Seattle, 1999
– IV Dia de Acção Global, Praga, 2000
– I Fórum Social Mundial, Porto Alegre, 2001
– II Fórum Social Mundial, Génova, 2001
– I Fórum Social Africano, Bamako, 2002
– IV Fórum Social Mundial, Bombaim, 2004
– V Fórum Social Mundial, Porto Alegre, 2005.

É também neste contexto que o Prémio Nobel de Economia Joseph


E. Stiglitz, depois de ao longo da última década do séc. XX ter realizado
a dupla rara experiência de exercer a função de Primeiro Vice-Presidente
do Banco Mundial e de contactar, através de numerosas viagens, com
ricos e pobres de todo o Mundo, depois de afirmar que acredita na globa-
lização e reconhece muitos dos seus benefícios, declara:

“Escrevi este livro, porque quando estava no Banco Mundial, verifi-


quei directamente o efeito devastador que a globalização pode ter nos
países em desenvolvimento e em especial na população pobre desses
países […]
Hoje em dia, a globalização é contestada em todo o mundo […] para
milhões de pessoas, a globalização não funcionou. Muitos ficaram
pior, quando perderam os seus empregos e a sua vida se tornou mais

317
insegura. Sentem-se cada vez mais impotentes perante forças que es-
capam ao seu controlo. Assistiram à destruição das suas democracias,
à erosão das suas culturas”424.

A gravidade da situação implica termos de ir mais além da atribui-


ção da culpa pela situação aos responsáveis políticos dos Estados nacio-
nais da Nação liderante após o fim da Guerra Fria ou das Organizações
Internacionais (Vários, 2004), por quanto se situa no facto de a lei da
força de natureza económico-financeira se ter imposto à força da lei polí-
tico-democrática (Robert Cooper, 2003), situação que permanece no re-
arranjo político tripolar que se opera hoje perante os nossos olhos (Parag
Khanna, 2008).
Com efeito segundo este último analista e no que se refere à “econo-
mia global”: “na melhor das hipóteses, a fase unipolar norte-americana
durou a década de 1990, que foi um período sem rumo”, na situação
emergente durante a primeira década do século XXI, a liderança está
sendo repartida pelas três potências do “primeiro mundo” (USA, UE
e China); os países do “segundo mundo” (“países-chave” de cada uma
das “cinco regiões estratégicas do planeta”, “na Europa de Leste, na Ásia
Central, na América, do Sul, no Médio Oriente e no Sudeste-Asiático”)
são “mercados emergentes” que funcionam como “Estados oscilantes”
ente as três superpotências no sentido de tirarem delas o melhor partido;
estes “países do segundo mundo distinguem-se dos do terceiro mundo
pelo seu potencial: a possibilidade de criarem capital a partir de um bem
valioso, uma liderança carismática ou um patrono generoso”.
Nesta situação verifica-se que

“a globalização resiste praticamente a qualquer tipo de centralização”


[…] “o que hoje temos, pela primeira vez na história, é uma batalha
multipolar, global e civilizacional” [entre as três superpotências do
primeiro mundo]. […] “A globalização é a arma escolhida. O princi-
pal campo de batalha é aquilo a que chamo ‘o segundo mundo’ ”425.

Nesta interpretação e utilizando o próprio vocabulário do Autor, po-

318
demos concluir que o “terceiro mundo” pura e simplesmente desaparece
de cena, deixando todo o terreno à luta entre as três superpotências do
“primeiro mundo”, no “campo de batalha do “segundo mundo”.
Por coincidência, acontece hoje perante os nossos olhos que o de-
clínio dos combustíveis fosseis vem provocando a corrida aos bio-com-
bustiveis, ao correspondente desvio para esse fim dos cereais e forragens
que, somado à redução de áreas de produção agrícola nos anos anteriores
por pressão dos mesmos poderes económico-financeiros, conduz agora à
diminuição drástica dos recursos alimentares e à propagação da fome que
mata populações do terceiro mundo e começa a atingir as do segundo e
do primeiro.
A este propósito, Stiglitz evoca uma recordação.

“Quando o mundo mergulhou na Grande Depressão [1929], os


adeptos do mercado livre disseram: ‘Não se preocupem. Os mercados
auto-regulam-se e, com o tempo, a prosperidade económica voltará’.
E ignoraram o sofrimento daqueles cujas vidas se foram destruindo
enquanto eles aguardavam esta eventualidade. Keynes argumentou
que os mercados não se auto-corrigiam, pelo menos dentro de um
prazo razoável. (É célebre a sua frase, ‘A longo prazo, estaremos todos
mortos’)”.426

A “geografia da fome” e dos cataclismos que ela ameaça provocar pode


ajudar-nos também a enxergar o que é básico e fundamental no processo
educativo, de acordo com o sentido originário do próprio verbo educar
anteriormente registado: alimentar, nutrir.
Toda a educação começa pela alimentação e assim como não é possível
criar uma floresta da África Subsariana no deserto do Sara, também não
é possível desencadear e sustentar um qualquer processo de educação no
deserto da miséria de algumas regiões da mesma África Subsariana e de
tantas outras regiões deste Mundo
Tal constatação apela para o nosso desenvolvimento pessoal noutra
dimensão.

319
O “mundo plano” e o desenvolvimento técnico, científico e
sapiencial

O verdadeiro desenvolvimento humano de ordem material, no âmbi-


to da subsistência e da esfera sócio-económica, pressupõe a existência do
desenvolvimento de ordem mental, no âmbito da consciência, do conheci-
mento, da inteligência e da sabedoria verdadeiramente humanas.
Uma primeira constatação desta realidade, penetrada aliás de elevada
dose de optimismo, foi apresentada recentemente por Thomas L. Friedman
no livro “O mundo é plano. Uma História Breve do Século XXI (2005).
Contrariando em certa medida a focagem da atenção no mundo “glo-
bal” e concentrando-se mais na vertigionosa aceleração que caracteriza
a mudança da “idade dos serviços”, o Autor faz notar como “a conver-
gência de dez acontecimentos políticos, inovações e empresas” “tornou
o mundo mais plano”: a queda do muro de Berlim (1989), “quando a
Netscape se tornou pública” (1995), o “software de sistematização dos flu-
xos de trabalho” (2004), Open-Sourcing – “Comunidades Cooperantes
Auto-Organizadas” (Déc. 90), Outsourcing-Y2K (passagem do milénio),
Offshoring (2001), “Encadeamento de abastecimento”, Insourcing, In-for-
ming, “Os esteróides – Digitais, Moveis, Pessoais e Virtuais”.
O Autor pretende extrair a conclusão de que o mundo global do mer-
cado aberto se tornou um mundo de extraordinárias oportunidades para
os pobres que nele se disponham a trabalhar e nele queiram concorrer.
E apresenta uma série de relatos sobre fenómenos observados nas regiões
em franco desenvolvimento (Índia, China, etc.), a comprovar a sua tese.
Trata-se de histórias interessantes, brilhantes e estimulantes427.
Acontece, no entanto, que o Autor fala de países pertencentes (empre-
gando já o vocabulário da Parag Khanna) ao Primeiro e Segundo Mundos e
esquece as populações pobres do Terceiro Mundo: estas, mesmo que queiram
não podem. E só lhes resta a alternativa de aqueles que possam e queiram aju-
dá-las a promover a rápida superação da “injustiça global” e a criação de con-
dições para que também elas possam sobreviver, desenvolver-se e realizar-se.
Em pé de igualdade. De igualdade de acesso e de possibilidade de
sucesso.

320
Para isso, a primeira condição a assegurar tem a ver com a aquisição e
difusão do conhecimento.
Ora os meios de informação e comunicação e os meios de comu-
nicação de massas, não chegam às populações de África Subsariana, da
Papua-Guiné e de grandes regiões da Ásia.
E mesmo que chegassem, a realidade social, cultural e política das
populações não lhes permitiria poder tirar qualquer proveito imediato
desses meios, na medida em que a par da miséria material continua a
prevalecer, nessas regiões, com uma deficiente rede escolar, uma elevada
taxa de iletrismo e de analfabetismo funcional.
E não vale apontar para as possibilidades do Futuro porquanto, como
vimos anteriormente, para esta geração de membros pobres da Família
Humana, não alfabetizados, esquecidos, marginalizados e excluídos,
como para tantas outras gerações semelhantes do Passado, o seu real
Futuro só pode ser o seu Presente. Que não lhes oferece condições de
vida mas sentenças de morte.
O modelo de ajuda aos “países menos desenvolvidos” (PMD) atra-
vés do fornecimento de bens materiais carece por isso de uma profunda
revisão: em vez de “desenvolvimento, a palavra chave deve passar a ser co-
nhecimento”. É esta a conclusão da Conferência das Nações Unidas para
o Comércio e Desenvolvimento (CNUCD) no Relatório com o título
Conhecimento, Aprendizagem, Tecnologia e Inovação (2007).
Sobretudo a partir da análise da evolução dos PMD no período 2000-
2005, marcado pela transição de países asiáticos para a categoria de países
em desenvolvimento e pela estabilização de países africanos na situação de
países menos desenvolvidos, verifica-se que “a concessão de mais ajuda ao
conhecimento, desde que dirigida para as áreas certas e nas modalidades
apropriadas, pode ser a chave” para a inovação nos processos tecnológicos
“independentemente de serem ou não novos para o resto do mundo”.
Mas o “novo modelo” deverá ter ainda em conta a atenção às caracte-
rísticas locais e ambientais da agricultura, indústria e serviços e, sobretu-
do, que o “esforço tecnológico não se limite apenas aos meios tecnológi-
cos mas também à compreensão tecnológica”428.
Para isso é vital a ligação destes países à rede internacional do conheci-

321
mento da qual até agora têm estado praticamente afastados, de tal modo
que ela não se faça por mera justaposição de partes, mas por verdadeiro
enxerto da cultura científica e tecnológica no tronco da cultura ancestral
das populações. E, mais do que tudo, importa que esta enxertia se faça
ressalvando o justo equilíbrio entre duas vertentes extremas: o natural
entusiasmo do ser humano pelo “prazer de descobrir coisas” que fun-
damentalmente caracteriza toda a História da Ciência, (John Gribbin,
2002) e o risco máximo que, no termo actual da mesma História da
Ciência, passou a representar para a sobrevivência das populações, da
Família Humana e do Planeta terra, o uso criminoso das modernas tec-
nologias por parte das organizações de terrorismo internacional, uma vez
que, ”nesta catástrofe múltipla, o pior que aconteceu foi o facto de a
tecnologia ter ultrapassado a maturidade política”, de tal modo que “o
novo século arrisca-se a ser dominado tanto pela anarquia como pela
tecnologia” (Robert Cooper, 2003)429.
Por razões históricas de diversa natureza, climáticas, económicas, sociais,
políticas, culturais, trata-se de países cujos cidadãos podem catalogar-se na
classe dos seres humanos “oprimidos” de que nos fala Paulo Freire.
Só a “revolução pedagógica” na dimensão planetária poderá constituir
para eles o caminho da “libertação”, lançando mão obviamente de to-
dos os recursos da tecnologia mas dentro das coordenadas propostas pela
pedagogia: criar condições de acesso e sucesso no processo de “conscien-
tização”, através do qual o ser humano se torne progressivamente capaz
de se movimentar dentro do universo (objecto) que o rodeia como pessoa
(sujeito) e de “dizer a sua própria palavra” no meio dos outros seres huma-
nos e ainda, através do “diálogo”, participar no processo de crescimento e
realização de toda a Família Terrestre.
Enquanto não avançarmos neste sentido e porque “não se pode afir-
mar que alguém liberta alguém ou que alguém se liberta sozinho, mas
que os homens se libertam em comunhão”, em vez de caminharmos para
a construção de um “mundo plano” de oportunidades iguais para todos,
continuaremos a cavar mais o fosso entre os membros das populações dos
diversos “mundos”.
Quer tudo isto dizer que a solução depende de todos nós. E é precisa-

322
mente neste ponto que reside a gravidade da situação: na raiz do analfa-
betismo funcional dos pobres constata-se a existência de outro ainda mais
preocupante, o analfabetismo funcional que prolifera em nós todos, fruto
da ignorância, distracção e/ou inconsciência quando não da falta de res-
peito ou mesmo desprezo pelo estatuto da nossa própria dignidade e da
dignidade inerente a todos os outros membros da Família Planetária.
É universalmente reconhecido, nos dias de hoje, que dispomos dos
meios financeiros necessários e suficientes para promover a educação à
escala mundial. Tem-se repetidamente feito notar que pequenas medidas
políticas de poupança, nas despesas militares e económicas e no lucro das
empresas multinacionais, são mais que suficientes para atingir essa meta.
Constata-se ainda que, à escala global, se encontram disponíveis os
recursos da ciência e da tecnologia para estimular o crescimento, não ape-
nas de alguns mas de todos, de acordo com as metodologias de educação
ao longo da vida, quer na fase de educação de adolescentes, quer na fase de
educação de adultos e em todas as dimensões envolvidas pela semântica do
verbo educar: alimentar, eduzir, conduzir, cuidar, medicar, pensar.
Nesta situação, o que é que nos falta? Falta-nos ir muito mais além
de todo o conhecimento especializado contido em todas as disciplinas
científicas do currículo escolar dos muitos cursos de formação dos di-
versos sectores profissionais (juristas, médicos, arquitectos, engenheiros,
etc.) e mesmo em todas as disciplinas de um curso de formação de edu-
cadores – História, Filosofia, Sociologia, Psicologia, Biologia, Economia,
Tecnologia, etc., da Educação. Falta-nos remontar até às disciplinas fun-
damentais que estudam o Ser Humano, a Família Humana de que ele se
considera membro, o Universo em que decorre a existência desde o seu
início até ao seu termo, em suma e porque existe “uma só atmosfera”,
“uma só economia”, “uma só lei”, e “uma só comunidade” (Peter Singer,
2003), as disciplinas que integram a Sabedoria ou Sapiência ou Sageza
Fundamental sobre o Homem, o seu Percurso e o seu Destino.
Em resumo, o processo exige de todos nós

– não apenas ciência, mas também sabedoria, para impedir os


abusos da pesquisa científica;

323
– não apenas tecnologia, mas também energia espiritual, para
manter sob controle os riscos imprevisíveis de uma tecnolo-
gia de alta eficiência;
– não apenas indústria, mas também ecologia, que numa era
de globalização possa fazer frente a uma economia sempre
em expansão;
– não apenas democracia, mas também uma ética, que seja ca-
paz de enfrentar os maciços interesses das pessoas e grupos
que detêm o poder: num mundo globalizado, uma ética glo-
bal, um etos comum da humanidade, uma ética mundial430.

Esta última exigência apela para um desenvolvimento mais


aprofundado.

O “mundo axial” e o desenvolvimento moral e ético.

Trata-se muito simplesmente de agarrarmos o essencial da nossa


existência.
Cada um de nós, como pessoa única, vive num lugar concreto e num
tempo determinado (que normalmente não vai além do período de uma
geração), como membro da Família Humana, dentro do Universo de que
nada em definitivo conhecemos e se encontra em transformação.
Nesta situação de mudança omnipresente, perpétua, complexa e ace-
lerada, numa sociedade de risco e perante um futuro incerto, não é sufi-
ciente crescermos apenas na dimensão física. Nem basta crescermos na
dimensão do conhecimento. É necessário crescermos também e muito
mais na dimensão da moral e da ética.
Todo o crescimento pressupõe um rumo.
A exigir discernimento para ser encontrado.
Para já, não se afigura que o verdadeiro rumo possa ser encontrado na
linha do ter, resultante de uma visão curta, confinada ao mero interesse
individual, do grupo, do bairro, do clube de futebol, ou mesmo da al-
deia, cidade, país ou associação regional de Estados.
Porque estas entidades acabam por suscitar a desconfiança, a oposi-

324
ção, o conflito, o confronto, a guerra por parte das entidades concor-
rentes, como sempre foi e continua a ser patente na história das políticas
individuais, de grupos e de nações.
Também não se confirma que seja encontrado na linha do saber. Não
se obterá através de toda a classe de hipóteses científicas, ideias e ideolo-
gias, mitos e utopias, doutrinas e dogmas que, ao longo da História, se
vêm sucedendo em, por vezes, magníficas weltanschaungen ou mundi-
vidências de iluminados da inteligência que durante algum tempo nos
ofuscam e depois desaparecem no vórtice da história.
Em questão de tamanha dificuldade e delicadeza, o processo nunca
será o de “chegar, ver e vencer” (tarefa sempre impossível para além das
curvas da história), mas de caminhar e descobrir, de descobrir caminhan-
do (“el camino se hace al caminar”), a passo ou em corrida, mas sempre
exigindo a determinação, a persistência e o esforço, por vezes agónico, de
quem percorre a maratona.
Também não poderá ser encontrado na linha do poder. Não, eviden-
temente, na linha do poder oculto, ocultado e clandestino por parte das
associações de malfeitores, gangs e máfias que hoje, tirando também parti-
do da era da globalização, estendem os tentáculos pelo planeta inteiro. A
eterna luta entre o bem e o mal, com todo o seu cortejo de inconsciência,
irresponsabilidade, mentira, corrupção e crime, leva-os a excluirem-se
eles próprios da convivialidade natural da Família Humana.
Mas não também na procura do poder por parte das organizações se-
cretas que hoje ainda proliferam, desde as que reconhecem as origens nos
sindicatos dos pedreiros construtores das velhas catedrais da Idade Média
às fundadas no século XX, incluindo as constituídas por altos dirigentes
da política, da banca e dos meios de comunicação social, decididos a
monitorizar o decurso dos acontecimentos à escala mundial. As naturais
e óbvias desconfianças que provocam em organizações similares foram
sempre de molde a suscitar reacções defensivas ou atitudes persecutórias,
num círculo vicioso sem fim à vista.
Menos ainda poderá ser encontrado o verdadeiro rumo no baralha-
mento das três linhas do ter, do saber e do poder que se vem revelando na
crise de 2008-2009, de caracter sucessivamente financeiro, económico,

325
social, até científico e fundamentalmente ético, permitida ou provocada
por uma dinastia de gestores inconscientes, ignorantes, e nalguns casos,
criminosos.
Finalmente, e esta é a nova situação na História da Humanidade, para
podermos verdadeiramente abrir caminho no Mundo Global de hoje,
o rumo certo já não poderá ser encontrada no âmbito de cada um dos
Estados Nacionais, mesmo funcionando em sociedade democrática, mas
requer-se a participação da sociedade civil planetária, a funcionar não
apenas nos moldes fragmentários das cidadanias nacionais de hoje, mas
imbuída do espírito de corpo que caracteriza o conceito que acima desen-
volvemos de cidadania terrestre.
E a cidade planetária só poderá subsistir se compreendida e vivida em
termos de Família Humana.
Em resumo crescemos num mundo a mudar. Em aceleração da mu-
dança. A sua direccionalidade não é clara. Precisamos de descobrir a di-
recção certa. Mas ela não se encontra na linha do ter, do saber ou do
poder, nem apenas na linha do ser mas do dever ser. Para isso precisamos
encontrar o eixo da roda em que tudo se move de maneira ajustada: o
mundo axial da moral e da ética.
Da raiz *IE Aks- que envolve a ideia de “eixo”, através do gr. áksōn,
onos e do lat. axis, is, recebemos em português áxis e eixo, no sentido de
linha recta, real ou imaginária, que atravessa o centro de um corpo e em
torno da qual esse corpo faz o seu movimento de rotação.
Numa aplicação imediata, diríamos que o eixo essencial do funciona-
mento de cada ser humano é aquele que o atravessa no sentido que vai da
sua origem ao seu fim e em torno do qual se operam todas as rotações da
sua existência, em torno de si próprio e/ou das coisas, das pessoas e dos
Valores que elege como seu centro, no sistema de “gravitação universal
humana” em que se insere.
É neste sentido que falamos aqui de o mundo axial e o crescimento
moral e ético
Moral, do lat. mos, moris, envolve a ideia de “costume, maneira de
agir determinada pelo uso” (contraposto a lex, legis, “obrigação estabele-
cida por decreto”). Emprega-se também, ainda que menos, para designar

326
o “carácter” da pessoa. No plural mores, pode significar também ou os
velhos costumes (“Oh tempora! Oh mores!” de Cícero) ou os traços do
carácter de uma pessoa, de um povo ou de uma época.

Ética transporta igualmente os mesmos dois sentidos, a partir de duas


formas do grego: éthos, ous, “hábito, costume” e êthos, ous, “maneira de ser
habitual, carácter”, derivadas, respectivamente, da raiz *IE Swědh, “modo
de se comportar” e da sua variante Swēdh, “maneira de ser habitualmen-
te”431. Esta última, a partir das origens, significou sucessivamente gruta
(natural), covil (de animal), morada (de homem), carácter (da pessoa).

Entretanto o vocabulário dos especialistas de hoje tende a fixar a dis-


tinção entre a dimensão moral referente aos comportamentos, e a dimensão
ética relativa à clarificação dos princípios, regras, normas e orientações que
regem esses comportamentos.
Pois bem, particularmente desde que os diversos Povos do Mundo
ensaiaram falar a mesma linguagem através da Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948), vem crescendo o reconhecimento de que
existem princípios universais comuns de ética que correspondem a esses
direitos e constituem o eixo da roda capaz de pôr em andamento todo o
crescimento do Homem e o crescimento do Homem Todo.
Estes princípios éticos comuns encontram-se em relação directa com os
direitos constantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem, como
recorda Shirin Ebadi, Prémio Nobel da Paz de 2003.

“Por mais diferentes que sejam, todas as culturas incluem certos prin-
cípios comuns.
Nenhuma cultura tolera a exploração de seres humanos.
Nenhuma religião permite que se mate o inocente.
Nenhuma civilização aceita a violência ou o terror.
A tortura é repugnante para a consciência humana.
A brutalidade e a crueldade são horríveis em todas as tradições.
Em suma, estes princípios comuns, que são partilhados por todas as
civilizações, reflectem os nossos direitos humanos fundamentais. Estes

327
direitos são muito apreciados e acarinhados por toda a gente, em toda
a parte.
Assim, a relatividade cultural nunca devia ser usada como pretexto para
violar os direitos humanos, uma vez que estes direitos incorporam os
valores mais fundamentais das civilizações humanas.
É preciso que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja uni-
versal, aplicável tanto a Leste como a Oeste. É compatível com toda
a fé e religião. Fracassar no respeito pelos direitos humanos só mina a
nossa humanidade.
Não destruamos esta verdade fundamental; se o fizermos, os fracos
não terão uma alternativa”432.

Mais, fica posta em causa a paz e a sobrevivência da Humanidade


inteira, como resume Hans Küng, no livro recente Religiões do Mundo
– Em busca dos pontos comuns, no parágrafo final, sob o título “Não há
sobrevivência do mundo sem um etos mundial”.

“Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões.
Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as
religiões.
Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos
globais.
O nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um etos global, uma
ética para o mundo inteiro”433.

É este espírito que vem animando os grandes documentos das


Organizações Internacionais, desde a Declaração Universal dos Direitos do
Homem e os dois Pactos sobre os Direitos Civis e Políticos e os Direitos
Económicos e Sociais, aos Tratados regionais como a Convenção Europeia
para a Protecção dos Direitos Humanos, a Convenção Americana dos
Direitos Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, até
à Declaração do Milénio.
Todos eles vêm convergindo no reconhecimento dos cinco pontos
nucleares da ética mundial:

328
– equidade
– direitos humanos e responsabilidades
– democracia
– protecção de minorias
– resolução pacífica de conflitos e negociação justa434.

É ainda neste sentido que Edgar Morin, no livro “Os sete saberes para
a educação do futuro”, tudo faz convergir para o último capítulo “Ética do
género humano” em que, a partir da premissa de que “a concepção com-
plexa do género humano comporta a tríade individuo – sociedade – espé-
cie”, apresenta, como sétimo e último saber sobre a educação, a Ética do
Género Humano435.
Trata-se de continuar a abrir o caminho em que verdadeiramente po-
derá cumprir-se todo o ser humano, dentro da Família Humana e em
harmonia com a ordem do Universo.

3. Ecúmena III: até nos realizarmos todos nos Valores

Vimos anteriormente que tudo o que somos e, em consequência, tudo o


que temos de essencial na nossa existência (genoma, espírito, consciência,
liberdade) não é resultado da nossa iniciativa ou escolha, lucro ou ganho,
mérito ou conquista. A verdade é que tudo recebemos e nos recebemos, de
acordo com o sentido originário da raiz *IE Dek-, Dak-, “receber”, de
onde vem a palavra dignidade e tantas outras que fazem parte do vocabu-
lário essencial da educação.
Seguidamente fomos também tomando consciência de que nos rece-
bemos não já completos mas em gérmen, não já feitos mas para fazer-nos,
não já crescidos mas para crescermos, não já criados mas ainda crianças,
(*IE Kre-,) não já adultos mas adolescentes (*IE Al-, Ol-,).
Reconhecemos ainda que se trata de crescermos com um rumo defi-
nido: chegarmos a ser em plenitude aquilo que realmente começámos a
ser em gérmen, nos tornarmos em acto aquilo que somos em potência,
atingirmos a meta, cumprirmos o ideal, nos fazermos, nos efectivarmos,
nos concretizarmos, nos reificarmos, nos realizarmos.

329
Realização, enquanto acto ou efeito de realizar-se, vem de real (do lat.
res, rei, “coisa”), ou seja, o que é concreto, objectivo, sensível, autêntico,
contraposto a abstracto, subjectivo, artificial, ilusório.
No caso vertente do processo educativo e num sentido de algum
modo contraditório com as próprias palavras, trata-se de o movimento
de utilizar as coisas no sentido de criar condições para que as pessoas se
desenvolvam em todas as suas dimensões atinja, de facto, a sua meta de
realização das pessoas nos Valores.
Neste percurso a caminho da própria realização, marcada por etapas,
metas, finalidades, não se trata de as perspectivas, os desejos, os sonhos, os
ideais das pessoas se concretizarem em realidades materiais mas, pelo con-
trário, de as coisas materiais proporcionarem condições às pessoas para elas
se realizarem nos Valores. E esta realização não acontecerá, como por vezes
chegamos a pensar, atingindo realidades exteriores, mas identificando-nos
com os padrões de realidade que transportamos em nós próprios.
E tais padrões poderão proporcionar esse resultado precisamente por-
que têm peso, substância, consistência, importância, relevância, porque
têm valor.

Derivado do lat. văleo, ēs, uī, ĭtum, ēre, “estar de saúde”, ser saudável,
forte, vigoroso, corajoso no combate e, como cognato de valetudo, ĭnis,
“saúde”, o lexema português valor transporta o sentido originário de ca-
pacidade ou qualidade pessoal, padrão de excelência física e, por extensão,
também intelectual e moral, que impõe admiração e respeito. Encontra-se
também semanticamente ligado ao adjectivo grego áksios, a, on, “ponderá-
vel, que tem peso” donde nos vem axiologia, “ciência dos valores”.
Sempre tributário desta sua origem, o termo valor foi no entanto ad-
quirindo, ao longo da História e nos diversos campos da existência, ou-
tros significados:

– preço, propriedade do que pode contribuir para a satisfação das


necessidades do ser humano;
– qualidade de tudo aquilo que, numa escala comparativa, é váli-
do, legítimo, veraz, excelente;

330
– propriedade do que corresponde às normas ideais do seu tipo;
– na filosofia medieval e em correspondência com os conceitos
transcendentais (ser, uno, verdadeiro, bom e belo), “tudo aquilo
que é não apenas desejado mas desejável”;
– na filosofia moderna dos valores, em oposição a ser, “aquilo que
não apenas é mas deve ser”;
– na moral e na ética, tudo aquilo que pode proporcionar (valor
ideal) ou proporciona de facto (valor real) a realização da natu-
reza do ser humano.

É neste último sentido que falamos aqui de valores e atendendo parti-


cularmente a três dimensões:

– não correspondem a realidades que nós possuímos, mas que


nos possuem, não que dependem de nós, mas de que nós de-
pendemos, não que recebem algo de nós, mas de quem nós re-
cebemos tudo e nos recebemos a nós próprios (como dignidade,
excelência, grandeza, transcendência) e de cuja força e poder an-
damos convencidos pelos nossos sentimentos;
– não correspondem a resultados das nossas investigações ou a
objectos de justificação de tipo racional, mas sim a enunciados
indemonstráveis, princípios axiomáticos, factuais (como verda-
de, abertura do espírito, compreensão, tolerância) e que se encon-
tram na base dos nossos conhecimentos;
– não correspondem a princípios vagos ou não vinculativos,
mas a imperativos, normas e regras de tipo categórico (como
bem, bondade, justiça, amor) e que se impõem aos nossos
comportamentos.

Por outro lado e porque no eixo essencial da roda que monitoriza todo
o existir humano deparamos com alguns valores preponderantes na ori-
gem, no processo e no seu termo, importa prestar-lhes especial atenção.
Na origem, o valor (máximo e único) é a dignidade humana que to-
dos recebemos gratuitamente no início e mantemos inalterável até ao

331
termo das nossas vidas, em condições de absoluta igualdade com todos os
outros seres humanos.
Ao longo do processo de crescimento e de maturação humana, nas
condições, favoráveis ou desfavoráveis, do meio ambiente físico, intelec-
tual e moral em que se realiza e na medida em que são exercitadas a
consciência e a liberdade emergentes, vai-se gerando a configuração da
nossa verdade pessoal.
No termo, é feito (por vezes, visivelmente, já nos tribunais nacionais
ou no Tribunal Internacional da Haia) o exame ou avaliação ou julga-
mento desse percurso, à luz das coordenadas da dignidade recebida e da
responsabilidade exercida, em termos de justiça universal.
Por economia de espaço e tempo, passamos a considerar estes valores
fundamentais e integradores de todos os outros no caminho da educação:
a dignidade humana, a verdade pessoal, a justiça universal.

A dignidade humana

O sentimento de dignidade da pessoa humana é provavelmente o mais


enraizado no fundo de nós mesmos, a julgar pela dupla vivência de bem
estar quando a sentimos reconhecida e respeitada, e de cataclismo interior
quando a vemos esquecida e desprezada, em nós próprios ou nos outros.
No Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948),
detectamos este mesmo duplo sentimento à escala de uma geração inteira
que, tendo vivido num período histórico em que a desumanização, a
barbárie e o terror chegaram a situações-limite, e depois de assistir ao ter-
rível espectáculo da aniquilação da dignidade e dos direitos humanos de
muitos dos seus contemporâneos, adquiriu a convicção profunda de que
“o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da Família
Humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento
da liberdade, da justiça e da paz do mundo” ou, dito por outras palavras,
de que o valor da dignidade Humana constitui a pedra angular do mundo
de todos os valores.
Manifesta-se, por isso, a convicção de que, tendo em conta o resul-
tado contraditório daquela dupla experiência, “o advento de um mundo

332
onde os seres humanos tenham a liberdade de pensar e de crer, libertos
do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta aspiração do
homem”.
Do texto brotam assim duas implicações: que a dignidade é um dom
recebido por cada um de nós e que importa preservá-lo a todo o custo.
O facto de a dignidade ser vista como um dom recebido, consta na
afirmação “cada um pode usufruir de todos os direitos e de todas as liber-
dades proclamadas na presente Declaração, sem distinção alguma, tanto
de raça, como de cor, de sexo, de língua, de religião”, etc.436
Esta maneira de entender a dignidade condiz de todo, como tivemos
ocasião de referir anteriormente, com a raiz *IE Dek,- Dak-, “receber” de
que a palavra deriva.
Interessante é ainda e o facto de existir um apertado relacionamento
semântico entre, por um lado, o gr. áksios, a, on (ponderável, valioso,
digno, que merece; conveniente” e, por outro lado, o adjectivo lat. dig-
nus, a, um, “digno de, conveniente a; que merece; justo, honesto” e ainda
o verbo lat. decet, “convir, ser conveniente, decente, decoroso”. Ganha
assim consistência a aproximação entre axiologia, “ciência dos valores” e
dignidade, “valor fundamental”.
Por outro lado, se olharmos para a História da Humanidade, verifi-
camos que esta situação é reconhecida desde a antiguidade até ao nosso
tempo.
Encarando os Valores na sua dimensão de finalidades do nosso agir
e ao procurar a resposta à pergunta porque os procuramos, vem-se acen-
tuando o espanto de autores recentes perante um horizonte inesperado:
os valores não aparecem em resultado das nossas investigações nem são
passíveis de justificação racional, mas apresentam-se como realidades in-
demonstráveis, dados. Assim pensa H. Hannoun (1995) citando autores
antigos e recentes: “nós dizemos que queremos a felicidade, mas dizer que
nós escolhemos ser felizes não está de acordo com os factos” (Aristóteles);
“estes fins só podem ser dados” […] “nós os desejamos, os amamos, aspi-
ramos a possuí-los” […] “a função da inteligência limita-se a multiplicar
as vias que permitem alcançá-los” (E. Goblot)437.
Trata-se portanto de realidades que se afirmam não como conclusões

333
do conhecimento racional ou objectivos de um projecto pessoal ou co-
lectivo, mas como presenças, não previamente justificadas pela inteligên-
cia nem escolhidas pela liberdade, que se impõem ao sentimento do ser
humano. Trata-se, simplesmente, no plano racional de dados e no plano
moral de dons.
A segunda implicação tem a ver com a necessidade de defendermos a
todo o custo esta dignidade pessoal de cada um de nós.
Neste sentido, entre outros autores, Octávio Fullat, vem atribuindo
a máxima relevância às finalidades e valores na educação. E reivindican-
do sempre, contra a tendência dos políticos para considerarem apenas a
ficção do homem universal, que tenhamos em conta a situação de cada
homem concreto.
Já em “Las finalidades educativas em tiempo de crisis” (1982), procura
abrir caminho entre, por um lado, quanto se tem dito sobre o facto de a
política tentar sempre controlar a educação (Platão, Maquiavel, Hobbes,
Hegel) e, por outro, as propostas da “suspeita” (Nietzsche, Marx, Freud),
do “anarquismo” (Max Stirner), da “desescolarização” (I. Illich). Neste
sentido, através de um “tratamento irónico”, “para desbaratar um pou-
co a fome devoradora dos políticos de todos os quadrantes, mas prin-
cipalmente dos políticos descarados, isto é, dos totalitários”, através do
discurso filosófico, numa atitude moral e em jeito de franco atirador,
punha em confronto com os “fins formais” do “ser humano universal”
correntemente propostos pelos poderes políticos e aceites pelos cidadãos
– felicidade, paz, liberdade, democracia, justiça, criatividade, participa-
ção, fraternidade – os “fins materiais estilizados” de cada pessoa humana
propostos por ele próprio:

– prazer e ventura
– utopia; não ilustração
– morte e desenlace
– ser – para – outro
– a fuga artística
– Deus na esperança
– a dúvida criadora

334
– desde nada com ironia
– o saber da ignorância
– talante moral438.

Recentemente, em Valores y Narrativa. Axiologia educativa de


Occidente, (2005), cingindo-se escrupulosamente, entre outras metodo-
logias possíveis (histórica ou teológica e bíblica) à metodologia filosófi-
ca, mais Hegel que Kant, mais Gadamer que Habermas, procura fazer
a hermenêutica dos textos das grandes tradições que julga encontrar na
origem do pensamento Ocidental, designadamente no que diz respeito
à encarnação da transcendência do Jwh judaico na imanência do logos
helénico e da techné romana.

“Insisto a continuación en el valor de la dignidad de cada ser humano


y en los valores allegados a ella, porque se trata del valor primero y
hontanar, de fiarnos de la tradición occidental. Sólo a continuación,
el saber preciso y el hacer eficaz pueden or­ganizarnos axiológicamente
en vistas a lo mejor. Sin la dignidad de cada quien, resulta cómodo
reducir los seres humanos a El Hombre; la razón reduce los hombres
de carne y huesos a universales peligrosos” […]
“No disponemos de otra esperanza en vistas al siglo XXI que aquella
que nace de la dignidad humana. Con ésta todo es aún posible. Das
Prinzip Hoffnung -1959- de Ernest Bloch. Con la dignidad como uto-
pía resulta todavía factible pro­nunciar la palabra mañana”439.
O valor da dignidade humana, pedra angular de todos os outros va-
lores, atendendo à sua raiz (*IE Dek-, Dak-) receber, traz em si mesmo a
assinatura do próprio nome: é uma realidade simplesmente recebida.
Esta situação marca o rumo da compreensão dos outros valores.

A Verdade

Dada a nossa condição de seres conscientes e livres, os seres humanos


não podemos limitar-nos a conjugar o verbo receber que se encontra na
origem do valor dignidade, de todos os valores nela implicados – igualda-

335
de, fraternidade, consciência, liberdade – e de todos os valores dela deri-
vados: os direitos (e os deveres) à vida, à segurança, e a todas as condições
para sobrevivermos, crescermos e nos realizarmos.
É necessário que avancemos também na conjugação do verbo reconhe-
cer e que este reconhecimento

– seja universal e em dois sentidos: praticado por todos e a respei-


to de todos os membros da Família Humana;
– incida sobre o que é essencial: para além de todas as diferenças
“de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião po-
lítica ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou so-
cial, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”,
considere a unidade resultante de todos pertencermos à mesma
categoria de ser;
– aceite a riqueza de todas as diferenças: da docilidade da crian-
ça levada pela mão do deslumbramento de ver as coisas pela
primeira vez, da rebeldia dos adolescentes e jovens polarizados
pela fascinação dos puros ideais proclamados por toda a parte e
em nenhum lugar encontrados, do esforço agónico dos adultos
em abrir caminho a corta mato na selva do bem e do mal; da
desgraça dos deficientes físicos, mentais e morais e de todos os
oprimidos que não encontram o caminho ou dele são desviados
e/ou forçados a trilhar os caminhos dos outros; das tragédias
dos opressores que, sendo eles próprios tantas vezes vítimas das
deficientes condições em que foram criados ou da sua própria
inconsciência e voluntário desvio do reconhecimento e respeito
pela dignidade própria e alheia, seguem eles mesmos e arrastam
os outros por caminhos que conduzem a nenhuma parte;
– nunca se dê por vencido até encontrar a real e plena correspon-
dência entre a orientação que recebemos e o percurso que segui-
mos, entre a nossa dignidade e a nossa vida, correspondência que
recebe, em todos os vocabulários humanos, o nome de verdade.

Ao longo do percurso da vida, todos encontramos ocasião de verificar

336
se existe ou não existe em nós esta correspondência, através dos processos
de experiência, conhecimento, investigação, abertura no sentido amplo da
serendipidade e sabedoria.
Mas acontece ainda que a nossa existência, exactamente devido a esta
nossa condição de seres conscientes e livres, decorre na corda bamba do
bem e do mal, podendo seguir o caminho recto da correspondência – ver-
dade – entre o que recebemos e o que fazemos, ou descambar para outros
quaisquer caminhos, falhando assim na verdade e caindo na mentira.
Merece por isso a pena, antes de abordarmos os métodos para atingir
a verdade, deter-nos no significado da mentira.

Da raiz *IE Men-, que envolve a ideia geral de “movimento do espíri-


to”, recebemos, através do grego, Musa, música, matemática, mania, etc.
e, através do latim, um outro grande número de lexemas:

– de monere, “fazer pensar, advertir, avisar”, recebemos monição e


monitor, monumento (que faz recordar), Moneta (sobrenome da
deusa Juno, a Avisadora) donde vem moeda, monetário, etc;
– de monstrare, “fazer ver”, recebemos mostrar, demonstrar e mons-
tro (aviso celeste) etc;
– de mens, mentis, “actividade do espírito, intenção, pensamen-
to, inteligência”, recebemos mente, mental, demente, veemen-
te, menção, comentário, reminiscência, etc., e também mentir e
mentira440.
A mentira acontece quando a actividade do espírito ou da mente, em
forma de reminiscência, menção ou monição, comentário ou demonstração,
não corresponde, por falha natural ou por intenção deliberada, à realida-
de objectiva.
Trata-se, no vocabulário tradicional, de uma falta de correspondência,
de uma inverdade ou não verdade.
Hoje distinguimos, no campo da moral, entre engano e mentira, se-
gundo a falta de correspondência seja devida a falha natural ou a intenção
pessoal deliberada.
Em assunto de tamanha importância como é a educação, importa

337
acautelar, por todos os meios, a correspondência entre a nossa dignidade
e a nossa vida.
E o método-base para a verificação da correspondência que chama-
mos verdade situa-se na experiência.
A dignidade da pessoa humana abriga, no seu cerne de consciência e
liberdade, a capacidade de verdade e de mentira, de bem e de mal.
A estrutura pessoal de cada um de nós, integrada pela inteligência ou
capacidade de verdade e de erro, e pela liberdade ou capacidade de bem e de
mal, encontra-se naturalmente sujeita a todas as ilusões e tentações e muitas
vezes é, de facto, utilizada nos sentidos mais divergentes, a atingirem níveis
máximos de erro, mentira, violência e crueldade. Em resultado disso, este
mundo tornou-se absolutamente perigoso e nele a pessoa, sujeita a todos os
riscos, é posta à prova e chamada a realizar ensaios e tentativas para os ultra-
passar e, no limite, alcançar a sabedoria necessária para abrir o seu caminho.
Este encadeamento das fases do processo que vai do perigo, prova, ten-
tativa, até ao saber de aí resultante, revela o percurso da experiência ou ha-
bilidade adquirida que, desde sempre constituiu o método fundamental
da existência humana.

– No âmbito do ante-positivo empir-, do grego peira, as, “prova,


tentativa” e empeiría, as, “experiência”, recebemos empíreo, em-
pírico e pirata, “aquele que tenta um golpe”.
– No âmbito do ante-positivo perig-, do lat. antigo periri, rece-
bemos perigo e periclitante, perícia e imperícia, perito “que sabe
por experiência, instruído” e peritagem, experto (não “esperto”),
“experimentado, que deu provas” e experiência, no sentido de co-
nhecimento adquirido e ampliado através de tentativa, ensaio,
prova e comprovação441.

Um bom exemplo deste método da experiência é apresentado no iní-


cio do Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem em
três tempos: fase de experiência positiva, fase de experiência negativa, o
resultado síntese desta dupla experiência:

338
“O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
Família Humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo” […].
“o desconhecimento e desprezo dos direitos do homem conduziram a
actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade” […]
“o advento de um mundo onde os seres humanos tenham a liberdade
de pensar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado
como a mais alta aspiração do homem”442.

É sobre esta base da experiência envolvente e permanente de todas


as dimensões conscientes e inconscientes da vida, que desenvolvemos os
outros métodos de procura da verdade, numa linha ascendente.

– conhecimento, da raiz *IE Gen-, no sentido de “(re)connhecimento”,


donde nos vem conhecer e ignorar, diagnóstico e prognóstico, noção
e notar, noticiar e narrar, nota e notário, notável e nobre, etc.
– ciência e consciência, do *IE Skei-, “cortar, fender, rachar”, don-
de nos vem cônscio e néscio, ciência e (in)consciência, e também
cisão e cisma, precisão e concisão, decisão e rescisão, César e Czar, e
ainda esquina, esquizofrenia e esquife, etc.
– investigação, no sentido de seguir os vestígios, pisadas, pegadas,
marcas, rastos, deixados seja pelo que ou por quem avança ao
longo dos caminhos, no sentido de (re)encontrar a unidade do
real, quer por se considerar que ele anda pulverizado pela es-
pecialização científica (“pensamento complexo” de E. Morin)
quer por se desejar prosseguir a caminhada no intuito de nos
“aproximar-mos do que está longínquo” (o “saber” na definição
de M. Heidegger);
– serendipidade, no sentido que encontrámos anteriormente ao
falar dos métodos, como a forma mais sofisticada, elegante e
alegre de pesquisa, ao jeito dos Três Príncipes de Serendip que
“faziam sempre descobertas, acidentalmente ou por sagacidade,
de coisas que não procuravam”.

339
A este nível da serendipidade, é interessante constatar que a maior e
primeira grande descoberta que todos nós, ao longo da vida, acabamos
por fazer, é a da nossa própria existência e da dignidade que a envolve, em
nós e também em todos os outros.
Esta descoberta vem sempre acompanhada pelo sentimento de que a
nossa dignidade foi de facto recebida como puro dom, até porque, ante-
riormente a existirmos, a nossa inexistência não nos permitia procurá-la.
Mas a dupla experiência básica do reconhecimento e desconhecimento
da dignidade humana evocada no Preâmbulo da Declaração Universal dos
Direito do Homem permite-nos também aceder ao elo mais elevado da ca-
deia de métodos para atingir a verdade, nos termos da continuação do texto:

“que na Carta, os povos das Nações Unidas proclamaram de novo a


sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da
pessoa humana […]
que os Estados Membros se comprometeram a assegurar, em coope-
ração com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e
efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais […]
que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta im-
portância para que seja plenamente cumprido este compromisso”443.

De facto, o mundo dos valores “onde os seres humanos tenham a liber-


dade de falar e de crer”, cujo “advento” constitui “a mais alta aspiração do
homem”, ainda não existe em plenitude mas já se encontra antecipado na
comunidade constituída por todos aqueles que nele acreditamos.
Que, por sinal, somos muitos.

“Todas as culturas partilham um conjunto de valores básicos que são


o fundamento da ética mundial. O facto de as pessoas poderem ter
identidades múltiplas e complementares sugere que podem encontrar
esse conjunto de valores.
A ética mundial não é a imposição de valores “ocidentais” ao resto do
mundo. Pensar assim seria tanto uma restrição artificial do âmbito da
ética mundial, como um insulto a outras culturas, religiões e comuni-

340
dades. A principal fonte da ética mundial é a ideia de vulnerabilidade
humana e o desejo de aliviar o sofrimento de todas as pessoas, na
medida do pos­sível. Outra fonte é a crença na igualdade moral básica
de todos os seres humanos. A injunção para tratarmos os outros como
gostaríamos de ser tratados encontra menção explícita no budismo,
cristianismo, confucionismo, hinduísmo, islamismo, judaísmo, taois-
mo e no zoroastrismo e está implícita na prática das outras fés”444.

Neste contexto, podemos dizer que todo o processo de clarificação da


verdade nas nossas vidas depende da aceitação, do reconhecimento, do
respeito, da fé na dignidade humana.
Podemos mesmo acrescentar que a fé (da raiz *IE Bheid-, “ter con-
fiança”) na dignidade humana é a porta de acesso ao mais elevado grau de
sabedoria que nos permite contemplar o esplendor da verdade.
E ainda, recorrendo à riqueza do vocabulário que, a par da dignidade,
deriva também da raiz *IE. Dek-, Dak-, “receber”, podemos concluir que
a verdade alcançará todo o seu esplendor no processo educativo na medi-
da em que a dignidade humana seja apresentada como o
– documento-base de toda a bibliografia pertinente,
– o dogma ou axioma ponto de partida de toda a demonstração,
– a doutrina ou conteúdo a ser transmitido na prática docente por
todos os doutos, doutores e docentes, e a ser aprendido na prática
discente por todos os discentes em todas as disciplinas do currícu-
lo pessoal e comunitário da escola da vida.

E se tudo se fizer de acordo com este critério, será de esperar que, no


fim, também seja feita uma avaliação positiva do (per)curso pessoal de
cada um de nós, em termos de justiça.

A Justiça

Situámo-nos, uma vez mais, no eixo da roda que nos atravessa do


princípio ao fim da existência e marca a rotação ajustada de toda a nossa
vida.

341
Se os nossos sentimentos mais delicados e profundos emergem da
nossa dignidade (recebida) e os nossos conhecimentos mais subtis e ela-
borados perseguem a verdade (ou correspondência entre o que somos e o
que pensamos), os nossos comportamentos tornam-se coerentes e ajusta-
dos na medida em que prosseguem o caminho do direito e da justiça.
Admite-se que a palavra latina jūs, jūris, “direito, justiça”, corresponde
originariamente a uma fórmula religiosa, ainda sobrevivente nas expres-
sões latinas jūra legesque “os direitos (recebidos) e as leis (escritas)” e jūs
jūrandum, “juramento”. Mas já no latim clássico, aparece mais no sentido
laico de “direito, justiça”, envolvendo tudo o que diz respeito:

– na linha do próprio étimo jūs, jūris, à função de os legisladores,


na feitura das leis, abrirem a todos os cidadãos o caminho direi-
to, certo e seguro dos seus comportamentos;
– na linha da raiz *IE Reg-, “movimento em linha recta”, ao dever
de todos os responsáveis pela execução das leis (reis e regentes,
reitores e regedores, directores e dirigentes) seguirem e obrigarem a
seguir o mesmo caminho recto, directo, direito;
– na linha da raiz *IE Deik-, Dak-, “mostrar”, ao dever de to-
dos os juízes (ju+dices, “mostradores do direito”) cumprirem a
sua missão de dizer, ditar e pregar este paradigma, promover a
sindicância e o julgamento de todos, abençoar os que seguem o
caminho recto, amaldiçoar os que o renegam e assim vingar o
direito e a justiça enquanto partes integrantes da espinha dorsal
da ordem do universo.

Neste contexto, em termos de educação e acerca do nosso caminho


pessoal, emergem três questões: de onde parte? qual a natureza do seu per-
curso? para onde se dirige?
Relativamente à primeira pergunta, não parece possível evitar ou la-
dear a resposta de que o início do nosso caminho se encontra relacionado
com a categoria do dom que se recebe.
O nosso caminho pessoal iniciou-se no momento em que nos rece-
bemos a nós próprios, recebemos todos os outros membros da Família

342
Humana, como nossos irmãos (incluindo nesta categoria antropológica
os nossos pais) e recebemos todas as coisas do Universo como recursos para
empreender a caminhada.
Se recebemos tudo isto, tudo isto se integra na categoria de dom.
No que diz respeito à segunda questão, importa recordar que o dom
fundamental que recebemos, a dignidade humana, caracteriza-se essen-
cialmente pela liberdade.
Mas a liberdade consiste, não em “escolhermos” entre o bem e o mal,
entre os valores e os pseudo ou contra-valores, mas em fazermos o que
realmente queremos (o bem), em procurarmos o que está de acordo com
o mundo dos valores, objecto de “a mais alta aspiração do homem”.
A liberdade consiste ainda na capacidade de, neste mundo semeado
de perigos, seduções e forças do mal, após eventuais cedências, falhas e
quedas, reagir, lutar, retornar ao e refazer o caminho direito da justiça.
Mas a liberdade consiste ainda em muito mais. Porque todos os outros
membros da Família Humana receberam igualmente a liberdade e a cor-
respondente capacidade do seu bom e mau uso, a nossa própria liberdade
consiste ainda em procurarmos contribuir para que todos a utilizem bem
e, no caso de a utilizarem mal, de recorrermos a todos os meios legítimos
para defendermos o caminho direito comum, mas com total respeito pela
dignidade de todos os seres humanos.
Em directo confronto com o “caminho torto” do mundo da miséria,
da mentira e do terror, a nossa liberdade consiste, afinal, em manter-nos
invariavelmente no caminho direito e defendê-lo por todos os meios legí-
timos e, ao mesmo tempo, aceitar que este dom da liberdade concedido a
todos nós seja utilizado por muitos no sentido mais negativo possível, e
suportar as eventuais terríveis consequências.
Entre pessoas, seres conscientes e livres, a primeira resposta positiva ao
verbo receber consiste no verbo aceitar.
Levanta-se aqui o problema crucial, no percurso da existência huma-
na, que tem a ver com a alternativa entre a aceitação do dom da liberdade
concedido a todos os seres humanos e a revolta pessoal que afecta grande
parte dos membros da comunidade humana perante as consequências de
ele ser mal utilizado pelos ouros ou até por eles próprios.

343
Trata-se, assim, de aceitarmos simultaneamente (ou não e, neste caso,
de nos revoltarmos) a liberdade, nossa e alheia e todas as consequências
resultantes do seu bom ou mau uso: por um lado, beneficiarmos de tudo
o que há de digno, verdadeiro, bom e belo, o mundo da abundância,
da justiça, da solidariedade, da compreensão, da bondade, da felicidade;
por outro lado, suportarmos e resistirmos a tudo o que há de indigno,
falso, mau e feio, ao mundo da miséria, da ignorância, da violência, do
terror e do crime, sem no entanto cairmos na revolta contra a Ordem do
Universo que permite e existência de seres conscientes e livres causadores
de todos estes males e, menos ainda, sem pretendermos arrogar-nos o
direito de os atacar ou destruir ou “fazer justiça pelas nossas mãos”.
Porque esta é a realidade do Mundo. Porque este é o Mundo real em
que vivemos e no qual podemos, livremente, ou inserir-nos, participar
e crescer ou revoltar-nos passando a negá-lo, combatê-lo, destruí-lo, se-
guindo caminhos que conduzem a nenhuma parte.
Parece mesmo que, ao longo da História da Humanidade, tem pre-
valecido a segunda alternativa e que, na economia geral do Universo,
deverá acabar por prevalecer a primeira. Pelo menos é esta “a mais alta
aspiração do Homem”.
De qualquer modo, só o ser humano totalmente consciente de toda a
verdade do Universo e verdadeiramente livre no sentido de aceitar todo
o bem e resistir a todo o mal, se encontra no caminho direito e em condi-
ções de se tornar arauto da justiça.
Resta-nos a última questão: para onde se dirige o caminho direito?
Humanamente simples de compreender é o facto de que tendo arran-
cado, na sua origem, do dom, o caminho direito só pode conduzir, no seu
termo, ao dom.
Por outras palavras, a quem está a receber, o caminho da justiça natu-
ralmente impõe dar.
Dar, verbo directamente derivado do verbo latino dō, ās, dědi, dātum,
dăre, “dar, oferecer, presentear, entregar, ceder, etc.”, encontra-se relacio-
nado com a raiz *IE Dhe- que envolve a ideia geral de “colocar”, pôr algo
em aras de o deixar à disposição de alguém sem exigir contrapartida, no
sentido aprofundado de dom.

344
De facto, ao longo da História, a justiça aparece sempre estreitamente
ligada à conjugação do verbo dar.
E em duas linhas claramente definidas: a linha horizontal das relações
entre os membros da Família Humana e a linha vertical das relações da
Família Humana com o Universo Transcendente.
Na linha horizontal das relações entre os membros da Família Humana,
ao longo da História, encontramos três tipos fundamentais de justiça dis-
cerníveis através das correspondentes significações atribuídas ao verbo dar.

– Durante os primeiros milénios da História da Humanidade,


em que prevalece o realismo moral, a justiça manifesta-se na
igualdade material de tratamento conhecida por pena de Talião,
nos termos do código de Hamurabi: “dar dente por dente, olho
por olho”.
– Já na época clássica, o amadurecimento geral da Humanidade
que se revela na intervenção de poetas, pensadores e políticos,
faz emergir na avaliação dos comportamentos o peso da inten-
cionalidade moral e introduz na cidade grega o novo conceito
de justiça que irá fixar-se no Direito Romano e prevalece ainda
hoje nos nossos sistemas judiciais: “jus suum cuique”, “dar a
cada um o que lhe pertence”, “dar a cada um o que merece”.
– Com o advento e expansão das culturas marcadas pelas grandes
religiões e de maneira mais evidenciada a partir da mundializa-
ção dos mecanismos da economia e das suas consequências na
proletarização das massas humanas a partir do séc. XIX, emerge
uma terceira concepção: a “justiça social” sintetizada na fórmula
“dar a cada um o que precisa”.

É esta última ideia de justiça que, ficando ainda muito longe das neces-
sidades reais de todos os membros da Família Humana como acabamos
de ver nos parágrafos anteriores, já vem prevalecendo nos documentos
das Organizações Internacionais e se vem afirmando nas preocupações de
muitos responsáveis políticos.
É também nesta linha de pensamento que, ao longo deste livro, vie-

345
mos insistindo no contexto-chave de Família Humana. Dentro de uma
família a funcionar normalmente, não se dá a cada membro, criança ou
idoso, são ou doente, normal ou deficiente, “o que merece” ou “o que
lhe pertence” no sentido da justiça romana, mas “o que precisa”, ou seja,
tudo aquilo de que tem necessidade naquele momento e naquelas con-
dições ou, se quisermos ainda, “o que merece” ou “o que lhe pertence”
como membro da mesma e única família.
Trata-se afinal de, sempre e em tudo, dar a cada um o que precisa de
receber.
Mas vendo agora as coisas na linha vertical da relação entre quem rece-
be e quem dá, dentro de todo este Universo que nos envolve e transcende,
a justiça desvenda-nos outro horizonte novo e deslumbrante.
Se receber pressupõe a situação de carência, dar é sempre resultado da
abundância. Só dá quem pode, ou seja quem, para além de ser, não se
deixa dominar pelas coisas nem se fecha em si próprio, mas se abre aos
outros e ao Outro.
Por outro lado, o verbo dar pode ser conjugado em muito diversas
medidas. E a medida do verdadeiro dar não tem a ver com a quantidade
da abundância mas com a qualidade do dom.

– Dando muito, estou a dar pouco se dou somente do que me


sobra.
– Dando pouco, estou a dar muito se dou daquilo que me faz
falta.
– Dando quase nada, estou a dar mais do que todos, se dou tudo
quanto tenho.
– Dou muito mais, se me dou a mim próprio.
– Dou mesmo tudo, se dou a minha vida.
– E dou, se é possível, mais do que tudo, se dou a minha vida por
aqueles que não dão nada ou até se apoderam do pouco ou
muito que os outros têm.

Neste sentido, o verbo dar revela o horizonte da plenitude onde si-


multaneamente reina a justiça e se abre o caminho direito da educação nas

346
dimensões da educação ao longo da vida, da educação comunitária e da
educação ecossistémica.

Em termos de educação ao longo da vida, ao recebermos tudo, (o que


vem significado na raiz da palavra dignidade) e ao aceitarmos tudo, (o que
vem postulado no exercício da nossa liberdade), não passamos por isso a
ser donos do ser que recebemos e aceitamos, mas a termos de nos deso-
brigar dos deveres de o agradecer, de o retribuir e acaso, porque o Dom é
total, de o restituir. Porque recebemos (a dignidade), impõe-se-nos o dever
de retribuir (vivendo-a responsavelmente) e mesmo restituir (produzindo
os frutos correspondentes).
Dar, em sentido pleno, é Amar.
Retribuir é também Dar e, portanto, Amar.
Receber e Retribuir correspondem às duas fases de sístole e diástole do
movimento completo do Amor.
Receber-se e Restituir-se representam as pétalas do Amor Perfeito.
É isto que se impõe também no processo de educação comunitária de
todos nós ao entrarmos na conjugação do verbo amar, entendido como
ágape dentro da Família Humana.
Ao procurarmos, cada um de nós,

– rentabilizar todas as coisas (meios), do Universo na criação de


condições
– para que todas as pessoas (fins) membros da Família Humana
possamos crescer
– andamos na procura da plena realização nos Valores, a procurar
dar e dar-nos uns aos outros, no que temos e no que somos, e as-
sim, verdadeiramente, a “todos nos educarmos em comunhão”.

E é ainda o que se impõe no processo de educação ecossistémica dentro


da Ordem que rege todo o Universo.
Receber-se e Restituir-se: é este o conceito de Justiça no sentido mais
profundo e dinâmico do processo educativo.

347
– Aceitar receber tudo o que implica a dignidade-liberdade, pró-
pria e alheia, é já entrar no processo.
– Retribuir com o esforço de criar as melhores condições para
crescermos todos, é participar nele em força.
– Restituir-se é jogar em plenitude este jogo real da Vida e do
Universo.

É deste modo que criamos condições para que se cumpra toda a


Justiça.
Trata-se de, através da Educação, nos unirmos todos para que todos
nos realizemos e Tudo se realize na simbiose do Amor.

348

CONCLUSÃO

Quando estamos convencidos da importância de uma realidade que a


todos nos afecta, procuramos em conjunto, a partir da experiência, abrir
caminho na investigação sobre o que nela há de essencial e sobre as impli-
cações que pode ter no desenrolar da nossa vida.
No caso vertente e de acordo com o tipo de abordagem que nos pro-
pusemos fazer, tratou-se de questionar a função do processo educativo no
percurso da nossa existência pessoal e comunitária, dentro do universo
em que nos movimentamos, em ordem a estabelecer, no âmbito da fi-
losofia e política de aí resultantes, as bases de uma estratégia e de um
programa de acção.
No termo do trabalho e à maneira de síntese, podemos agora recapi-
tular os tópicos essenciais deste livro.

1. O primeiro tem a ver com a metodologia geral adoptada e que ape-


la à reflexão crítica sobre a nossa experiência educacional e as metamorfo-
ses sofridas pelo conceito de educação a partir do momento histórico em
que os diferentes povos da Terra, depois da experiência traumática da II
Guerra Mundial, ao tomarem consciência de que fazem parte da mesma
e única Família Humana e da sua unidade de origem e de destino, ensaia-
ram falar a mesma linguagem com o propósito de se entenderem sobre o
essencial da existência comum e das coordenadas do caminho a seguir.
O confronto, posto em relevo no Preâmbulo da Declaração Universal
dos Direitos do Homem (1948), entre a longa e terrível experiência dos
“actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade” cometidos

349
durante a II Guerra Mundial e a experiência paralela de que “o reconhe-
cimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e
dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberda-
de, da justiça e da paz no mundo”, conduziu inevitavelmente à conclusão
de “que o advento de um mundo em que os seres humanos tenham a
liberdade de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado
como a mais alta aspiração do homem”.
A progressiva consciencialização desta experiência global que inte-
gra o reconhecimento das piores falhas, dos mais elevados sentimentos
e das mais profundas aspirações do Homem, vai obrigar a rever tudo na
História da Humanidade e em três dimensões:

– latitude: o que está em causa é toda a Família Humana,


– longitude: há que ter em conta a sua origem e o seu destino,
– altitude: o essencial não são as coisas, mas as pessoas e mais
ainda os Valores.

2. Nesta perspectiva e apesar de tudo o que de mau aos nossos olhos


continua a acontecer, podemos constatar que vivemos hoje os melhores
tempos da História e que há razões para mantermos o optimismo: conti-
nua a haver miséria, mas cresceram perante ela os rebates da consciência
de toda a Família Humana; continua a existir a violência e a praticar-se a
escravatura, mas ninguém se atreve a gabar-se disso em voz alta; continua
a ser votada ao desprezo a hierarquia dos valores, mas a reacção geral da
Humanidade é cada vez mais ampla e consistente.
Com efeito, um dos avanços mais significativos dos tempos novos tem
a ver com a terapia do gene do racismo, presente na origem da maior parte
dos conflitos étnicos e civilizacionais e dos genocídios praticados no passado
e ainda, na sua expressão mais virulenta e pornográfica, durante a II Guerra
Mundial. A proclamação da unidade da Família Humana, para além de ser
confirmada pela ciência, vem produzindo os melhores frutos na progressi-
va consciencialização da Comunidade Mundial e da Cidadania Terrestre
e ainda na aceitação dos movimentos que têm a ver com a tolerância, a
inclusão cultural, a assistência, o voluntariado, o espírito de serviço.

350
Outro factor de carácter transcendente diz respeito ao sentimento de,
porque pertencemos à mesma Família Humana, nos sentirmos obrigados
a encarar melhor a gestão da Casa (Oikos) em que habitamos, o Planeta
Terra. Esta obrigação vem sendo mais sentida a partir do momento em
que tomámos consciência aprofundada, para além da nossa unidade de
origem, também da nossa unidade de destino (“ou sobrevivemos juntos
ou perecemos juntos”) perante as ameaças ao Planeta, quer de “morte sú-
bita” a partir de um holocausto nuclear (década 60), quer de “morte len-
ta” por força da degradação crescente das condições de vida (década 70).
Mas o factor decisivo vai ligado ao ponto de vista mais elevado e
abrangente (“vê mais longe a gaivota que voa mais alto”, Richard Bach)
entretanto adoptado pela Comunidade Planetária na adopção do crité-
rio para discernir o essencial: não passa tanto pela nossa relação com as
coisas, mas pela relação entre as pessoas e, sobretudo, pela relação que
mantemos com o Mundo dos Valores.
De facto, o Mundo Novo cujo advento responde à nossa “mais
alta aspiração” e de que nos falam os documentos das Organizações
Internacionais:

– não é o mundo material das coisas que, desde sempre, moveu os


povos e as civilizações dos tempos das diásporas, das conquistas
e das colonizações, não é o mundo das terras férteis, das minas
de metais e de carvão, dos poços petrolíferos, das reservas de
ouro e da posse e dos lucros que podem proporcionar,
– mas o mundo dos seres humanos, não propriamente quando se
deixam levar por razões de natureza material e se fazem agrupar
em facções e corpos de exércitos movidos apenas pelos próprios
interesses e ambições, ideologias e utopias,
– mas quando, levados pelos movimentos do espírito (spir-), as-
pirações, concepções e ideais comuns, visam encontrar a pró-
pria realização no mais além deles que é o Mundo dos Valores da
dignidade humana, da verdade, da justiça.

3. É inegável que todos nós, desde sempre e no mais íntimo de nós

351
mesmos, queremos passar do mundo em que habitamos e que bem co-
nhecemos, onde campeia a pobreza e a miséria, o engano e a mentira, o
terror e a violência, para o mundo em que pretendemos habitar, o mun-
do do bem-estar e da abundância, da transparência e da verdade, do aco-
lhimento e do amor. Este Mundo Novo é hoje objecto da “mais alta aspi-
ração” de todos nós, da “fé” e da procura de uma “concepção comum” de
todos os povos, do “ideal comum” de todas as Nações (Unidas).
Mas levanta-se o problema: qual é o caminho para lá chegar?
E, mais uma vez, impõe-se a constatação já feita noutras épocas da
História, desde a Corte Imperial da China de Confúcio até à polis da
Atenas dos Sofistas e de Sócrates: o caminho entre esses dois mundos é a
educação.
Só que agora o problema adquiriu novas dimensões: trata-se da educa-
ção de toda a Família Humana, a morar em toda a superfície do Planeta
Terra e cada vez mais consciente de que o essencial não se reduz às coisas
mas passa pelas pessoas na sua relação com os Valores.
Em consequência de tudo isto, o conceito de educação aparece pro-
fundamente modificado.
A partir destas novas exigências, perdem força algumas coordenadas
da educação tradicional:

– não se trata (apenas) da educação veiculada pela instituição


escola (scholé), quer no sentido originário de “tempo livre” de
ocupações servis, quer no sentido subsequente de “tempo ocu-
pado” nos estudos próprios de “homens livres”, na medida em
que, nestas situações, a educação não era ou não era igualmente
para todos e acabava por ser colocada ao serviço da economia;
– não se circunscreve (apenas) aos processos de ensinar e apren-
der, na medida em que, para além de favorecer a imposição dos
conhecimentos e das regras aos ignorantes e fracos por parte
dos sábios e fortes com eventuais consequências de violência
e de opressão, o ensino pode visar apenas o enchimento e não
o desenvolvimento da capacidade intelectual e, no melhor dos
casos, assegurar apenas o desenvolvimento da dimensão intelec-

352
tual deixando de parte as outras dimensões e assim, no limite,
assegurar apenas a informação e não a formação do homem;
– não pode entender-se no sentido de formação exógena, à manei-
ra do artista que introduz uma forma numa matéria, mas sim
no sentido de formação endógena, própria dos seres vivos, em
que a forma brota da matéria quando ao ser vivo são criadas as
condições para que se desenvolva e, por isso mesmo, não basta
a formação profissional para lidar com as coisas e/ou os aconte-
cimentos, nem mesmo a formação social para saber integrar-se
nas comunidades, mas exige-se a formação pessoal que ajude o
ser humano, com todo o respeito pela sua dignidade, a procurar
e encontrar a própria realização nos Valores.
É esta formação integral que, ao longo das últimas décadas, se veio
clarificando através de fórmulas como a formação inicial e a formação con-
tínua, correspondentes às duas fases, educação de adolescentes e educação
de adultos, do processo de educação ao longo da vida.

4. A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), com os documen-


tos anexos subscritos, em 1990, por 181 Estados, representa o marco de-
cisivo da evolução do actual sistema educativo ao distinguir, no conceito
de educação ao longo da vida, as duas fases de educação de adolescentes
(que crescem) e educação de adultos (crescidos) e ao apontar as diferenças
entre elas, de forma explícita para a primeira e de forma implícita para a
segunda.
Na fase da educação de adolescentes:

– o tempo, até aos 18 anos, da menoridade, imaturidade, não


autonomia;
– o lugar central da família e os lugares complementares e subor-
dinados, a começar pela escola;
– o conceito de educar nas três dimensões de alimentar (edūco)
no sentido pleno de que o adolescente precisa de ser alimentado
não apenas no corpo mas também em todas as dimensões do
espírito, de eduzir (edūco) no sentido de criar condições para o

353
florescimento de toda a criatividade que lhe é própria enquan-
to ser vivo, de conduzir (dūco) no sentido de procurar que ele
avance pelo “caminho direito” dos Valores, correspondente ao
conceito originário de justiça;
– a metodologia, no sentido de a necessária “orientação” exercida
pelos pais e/ou outros educadores se processar sempre de acor-
do com o ritmo de desenvolvimento dos adolescentes, através
da conjugação dos verbos complementares de cuidar, medicar,
“pensar”;
– o critério último de sempre agir de acordo com o interesse supe-
rior do adolescente.

Na fase da educação de adultos:

– o tempo a abranger todo o período da maioridade, maturidade,


autonomia, até à mais provecta idade;
– o lugar do universo enquanto morada (oikos) de toda a Família
Humana, tendo em conta a função nuclear da universidade;
– o conceito de educar como processo de cooperação intersub-
jectiva no sentido de procurar resposta para as necessidades e
aspirações de todos e de cada um;
– a metodologia integrada a partir das contribuições do trabalho
de especialistas e generalistas e destas duas dimensões da persona-
lidade de cada um de nós;
– o critério supremo de ter em conta que a nossa “mais alta aspi-
ração” visa a própria realização no Mundo dos Valores.

5. Tudo isto vem confirmar que o percurso da educação ao longo da


vida de cada um de nós se realiza dentro da Família Humana de que faze-
mos parte e no contexto do Universo em que existimos.
Em termos de educação comunitária, na dimensão da Família
Humana, sempre invocada nos documentos das Organizações Mundiais,
importa, em coerência com o actual estádio de desenvolvimento
humano:

354
– superarmos, de uma vez por todas, quanto há de negativo nas
perspectivas de vistas curtas confinadas aos pequenos ou gran-
des nichos do Planeta ocupados nos tempos da diáspora origi-
nária pelos diversos grupos humanos (estepes da Ásia Central
ou montanhas dos Andes, gelos das regiões polares ou ilhas dos
Mares do Sul, desertos do Sara ou selva da Amazónia) e nas
civilizações e culturas delas resultantes, responsáveis ainda hoje
pela construção de muros, fabrico de armas e proliferação de
guerras cuja tecnologia avançada passou a pôr em risco a pró-
pria sobrevivência da Humanidade;
– não adiarmos mais o processo da tomada de consciência, aliás
apoiado pelo progresso espantoso dos meios de comunicação
(TICs, telemóveis, Internet), de que o Planeta Terra é verda-
deiramente a nossa Pátria (terra dos nossos Pais), a nossa Nação
(Terra em que todos nascemos), e de que somos portadores da
“cidadania terrestre” e, como tais, “livres e iguais em dignidade
e direitos”;
– interiorizarmos definitivamente o facto, hoje reconhecido pela
ciência, de todos fazermos parte da mesma e única Família
Humana e de a verdadeira relação existente entre nós ser, não de
camaradas, companheiros, sócios ou colegas, mas de irmãos;
– contribuirmos todos para a gestão correcta dos bens da herança
comum, colocando os valores materiais ao serviço das pessoas,
reconhecendo os valores pessoais decorrentes “da dignidade ine-
rente a todos os membros da Família Humana e dos seus direi-
tos iguais e inalienáveis” e a necessária inclusão de todos (mino-
rias, imigrantes, estrangeiros, etc.) na vida normal da Família,
e respeitando os valores transcendentes que incitam a atribuir
“prioridade” aos mais carenciados e desfavorecidos.

Em termos de educação ecossistémica, nas várias dimensões do Universo


que nos rodeia, cumpre ter na devida conta:
– que este Universo, enquanto Morada (casa, oikos) misteriosa em

355
que a Família Humana habita, não se reduz à dimensão física
que mal conhecemos e só até onde chegam os nossos instru-
mentos de pesquisa, mas continua na dimensão gnoseológica
das nossas extrapolações, hipóteses, teorias, sonhos e utopias,
e ainda mais além na dimensão axiológica das nossas angús-
tias acerca das razões do ser e do saber, dos ideais e dos valores,
das origens e dos fins e, por tudo isto, assume o estatuto do
Transcendente e do Sagrado;
– que o Planeta Terra, enquanto compartimento minúsculo que
ocupamos dentro desta Morada, merece todo o respeito e exige
todo o cuidado para não o deixarmos destruir, quer por obra de
um holocausto nuclear indutor da sua “morte súbita”, quer pela
degradação das condições de vida dos ecossistemas sectoriais ou
pela agressão ao frágil equilíbrio do ecossistema global, suscep-
tíveis de lhe provocar a “morte lenta”;
– que se impõe colocar todos os recursos da Terra, dos mais
abundantes aos mais escassos, ao serviço de todos os membros
da Família Humana, tendo presente que a fome se encontra nos
antípodas da educação (lat. “educare” = alimentar, nutrir);
– que importa desenvolver ao máximo o potencial do conhecimen-
to e da ciência para o bem da Humanidade, acautelando sempre
que nunca a tecnologia ultrapasse a maturidade política;
– que todos os comportamentos devem reconhecer o primado da
ética e o culto dos valores, da dignidade, da verdade e da justiça.

6. Verificamos que, nestas condições, a educação é o verdadeiro cami-


nho para o “advento de um Mundo” em que todos possamos encontrar a
realização pessoal, comunitária e mesmo ecossistémica.
Mas levanta-se uma nova questão: quais são as coordenadas do caminho?
Mais concretamente, que vem descobrindo a ciência acerca delas?
Com a humildade que se impõe nesta resposta, poderíamos reduzi-las
a quatro: a certeza de que já estamos a caminhar, a importância de discer-
nirmos as veredas, a necessidade de acertarmos no destino, a decisão de
prosseguirmos sem parar.

356
A reflexão aprofundada leva-nos a reconhecer que, perante a alterna-
tiva da dialéctica clássica, ser ou não ser, situámo-nos a meio: movemo-nos
entre os dois extremos, crescemos, desenvolvemo-nos.
De facto, a constatação radical da nossa existência é que, verdadeira-
mente, nem somos (< lat. sedēre, “estar sentado” < * IE Es-, “ser”) nem es-
tamos (< lat. stare, < * IE Sta-, “estar de pé”), mas caminhamos, andamos,
passamos, vamos.
Sobre este ponto, torna-se imperativo e urgente ultrapassar a nossa
mentalidade estática que paira à superfície das coisas, pousa o olhar nas
suas aparências ou estados sem tomar consciência de que no interior das
próprias realidades materiais, segundo a moderna ciência, é tudo energia,
movimento e dinamismo.
No limite, poderíamos dizer que não há substantivos mas apenas verbos.
O problema é que todos os verbos mencionados ao longo deste livro, no
sentido de esclarecer a semântica do verbo caminhar, aparecem tolhidos por
outros significados envolventes, discrepantes, sub-reptícios e até contradi-
tórios, a reflectir exactamente a selva que prevalece no mundo da educação
humana em que seguimos caminhos paralelos, divergentes, afastados, trun-
cados, cruzados ou opostos, em forma de vias, rampas, estradas e alamedas,
mas também de sendas, veredas, trilhos, picadas, carreiros, atalhos, desvios,
quelhas, vielas, becos, betesgas (que conduzem a nenhuma parte).
E é, muitas vezes, a educação que leva a esses caminhos, e são esses
caminhos que, tantas vezes, destroem a educação.
Vejamos mais concretamente.

– Caminhar: do lat. vulgar camminus, de origem celta, dele rece-


bemos caminho e descaminho, caminhar, encaminhar e também
desencaminhar.
– Andar: do lat. ambĭo, is, īre, “ir em volta de, fazer a roda”, re-
cebemos ambiente, ambição, etc.; do lat. ambŭlo, as, āre, “ir em
torno, dar uma volta”, recebemos ambular, deambular e preâm-
bulo, ambulatório e ambulância, etc.; do grego amphi, “em volta
de ambos os lados”, recebemos anfiteatro, anfíbio, etc.
– Passar: do lat. pando, is, pandi, passum, panděre, “estender, des-

357
dobrar, desenrolar…mostrar…revelar”, recebemos, por um
lado, expandir e expansão, etc. e, por outro lado, passo e compas-
so, passar e passado, passear e passeio, etc.
– Mover: do lat. movēo, es, movi, motum, ēre, “pôr(-se) em mo-
vimento, mover(-se), agitar(-se)”, recebemos indiscriminada-
mente mover, amover e demover, comover e emocionar-se, mobili-
zar e desmobilizar, momento e motivo, motim e amotinar, móvel e
imobiliário, motor e motriz, promoção e remoção, etc.
– Desenvolver(-se): da raiz * IE Wel-, Welw-, “rolar, rodar”, rece-
bemos, através de numerosos lexemas latinos, voluta e volume,
volúvel e vulva, voltar e emborcar, circunvolução e devolução, en-
volver e desenvolver, revolver e revolução e, directamente de vocá-
bulos de outras línguas modernas, evolução, arquivolta, desenvol-
to, revólver, válvula, vale, valsa, etc.
– Verter: da raiz * IE Wer-, “tornar, girar, torcer”, através do lat.
vērgo, is, ēre, “voltar, virar, vergar”, recebemos convergir e diver-
gir, e através do lat. verto, is, ěre e dos seus compostos, rece-
bemos verter e inverter, adverso e aversão, converter e conversão,
investir e inversão, perverter e perversão, retroverter e reverter, revés
e revesar, subverter e subversão, transverter e transversão, travessa e
travesseiro, travessia e travessura, etc.
– Ir: do verbo lat. eo, īs, ĭi ou īvī, ītum, ire, para além de recebermos,
do particípio passado, íter e itinerário, etc. herdamos, através dos
verbos latinos formados de diversas preposições + eo, inúmeros e
contraditórios semantemas em cujo cerne encontramos incrusta-
do o mesmo i do verbo ir: ádito, âmbito, início, intróito, circuito,
coito, êxito, súbito, pretérito, rédito, trânsito, óbito, etc.

Deste modo, como podemos apreciar pela amostra, o número dos


caminhos que pode seguir a educação não tem limites.
Todos eles fazem parte do percurso mais ou menos acidentado das nos-
sas vidas, são mencionados na linguagem corrente através da qual comuni-
camos e são atentamente vigiados pelos responsáveis da condução, defesa e
administração da justiça nas sociedades civís em que nos integramos.

358
E todos eles têm sido e continuam, legitimamente, a ser objecto de
investigação e estudo nas diferentes áreas científicas das universidades e
centros de investigação do mundo inteiro.
Por outro lado, todos compreendemos que a verdadeira sabedoria do
ser humano não consiste em descobrir compreender e seleccionar as vere-
das, muitas das quais podem conduzir a nenhuma parte, mas em acertar
com o destino. Ou pelo menos com o caminho que a ele conduz.

7. É neste sentido que chegámos à conclusão de que o caminho da


Família Humana não se reduz aos conhecimentos, no âmbito da Ciência,
mas se estende aos comportamentos, no campo da Ética.
Não basta descobrir um caminho e segui-lo, importa encontrar e se-
guir o caminho recto.
Aportámos assim ao semantema latino jūs, juris, que envolve o signifi-
cado de “caminho recto, directo, direito” ou “caminho da justiça” e à respon-
sabilidade que têm, a respeito dele,

– os legisladores, ao abrigo da fórmula jura legesque, de proclamá-


-lo,
– os executores (reis e regentes, reitores e regedores, directores e
dirigentes), à luz do sentido da raiz * IE Reg-, “movimento em
linha recta”, de o seguir e fazer seguir,
– os juízes, de acordo com o sentido da raiz* IE Deik-, Dik-,
“mostrar”, de julgar e sancionar os cidadãos acerca do seu com-
portamento ou percurso no caminho do Bem ou no descami-
nho do Mal.

O mistério que envolve a nossa liberdade, se por um lado nos permite


seguir qualquer rumo, por outro lado, carrega sobre os nossos ombros
a responsabilidade de procurar descobrir e só percorrer o caminho recto,
directo, direito.
A responsabilidade vem da liberdade. A liberdade é expressão da nossa
dignidade. E a dignidade (<* IE Dek-, Dak-, “receber”) abarca tudo quan-
to recebemos: o que temos e o que somos. Neste contexto, o caminho direito

359
da educação parece exigir que, pelo comportamento ético, todos nós pro-
curemos também restituir tudo, o que temos e o que somos, uns aos outros
e em homenagem à Ordem da Família Humana dentro do Universo.
Do lat. ordo, ĭnis, “ordem (dos fios na trama); fila, fileira, alinhamen-
to”, recebemos ordem e desordem, ordinal e ordeiro, ordenhar e ordenança,
contra-ordem e subordinação, ordinário e extraordinário, etc.
E também coordenar e coordenada.
Podemos dizer que esta subordinação à Ordem geral do Universo, co-
ordenando todas as dimensões da nossa vida, de acordo com a hierarquia
dos Valores da Dignidade, da Verdade e da Justiça, constitui a Coordenada
essencial do Caminho.

8. Finalmente, responder ao receber tudo e receber-se todo com retribuir


tudo e retribuir-se todo é entrar no jogo do Amor – Ágape.
E fazê-lo no sentido de criarmos uns aos outros as melhores condições
para que todos cresçamos no sentido de atingirmos a plena realização nos
valores, é a Educação.
Como se vem tornando claro já desde Platão, nos dois últimos discur-
sos, o do mestre e o do discípulo, no diálogo O Banquete.
É este o Caminho que conduz à Nova Humanidade: levarmos pela frente
(< * IE Ag-, “empurrar”) todas as coisas, indo à frente (< * IE Deuk-, Duk-
“conduzir”), pelo exemplo, de todos os seres humanos e todos inspirados e as-
pirados (lat. < Spirare, “soprar, respirar”), neste mundo de capelas imperfeitas,
pela força da Excelência, da Plenitude, da Perfeição que reside nos Valores.
Mas, como aliás acontece em tudo o que é humano, o Mistério envol-
ve o horizonte desta caminhada. Algumas coisas sabemos, outras apren-
demos, outras permanecem ocultas.
Sabemos, por exemplo, a partir de testemunhos que reflectem a tradi-
ção activista do Ocidente:

– que não há outra saída: “A vida é um país estrangeiro […] Temos


de ir. Para onde? Não sei, mas temos de ir” (Jack Kerouac);
– que é tarde para recuar: “Não sei para onde vou, mas já vou a
caminho” (Carl Sandburg);
– que temos companhia: “Não sei para onde vou, mas sei com
quem vou” (Edit Stein);
– que a maneira de avançar é só uma: “El camino se hace cami-
nando” (António Machado);
– e é só um, também, o rumo a seguir: “Aproximar-nos do que
está longínquo” (Martin Heidegger).

Aprendemos, com os Mestres do Oriente, a partir da própria experiên-


cia pessoal, vivida e reflectida, que é para todos nós, um caminho pessoal:

– o Caminho do Meio, na “Audição” (Hinduismo), ou na


Iluminação (Budismo);
– o Caminho dos Deuses (Xintoismo);
– simplesmente, O Caminho (Taoismo).

E aprendemos ainda, com os Grandes Mestres de ao redor do


Crescente Fértil, através da experiência da história, vivida e sofrida, que é
o Caminho dos Povos:

– o Caminho do Êxodo, da Diáspora, do Retorno (Judaísmo);


– o Caminho Certo no Deserto (oração Salat, Islamismo);
– outra vez, simplesmente, O Caminho (primeiro nome histórico
do Cristianismo).

Mas, ao longo da História, para além dessas coisas que sabemos e


aprendemos, outras aparecem diluídas na penumbra do horizonte do
Mistério em que o próprio Caminho se esvai:

– É para quem? Para todos: afinal o Mundo Novo é a Nova


Humanidade.
– Até quando? Até sempre: Futuro na Educação é simplesmente
o Futuro.
– Até onde? Não sabemos: ainda ninguém nos disse onde acaba
a Perfeição.

NOTAS

Capítulo I

1 ONU (1948). Declaração Universal dos Direitos do Homem.


Preâmbulo.
2 Faure, E. e Outros (1972). Apprendre à être, Paris: Fayard –
Unesco. Trad. port. (1974). Aprender a Ser. Lisboa: Bertrand, p.
55.
3 De entre as muitas publicações sobre o fenómeno, ter em conta
Roszak, Theodoro (1968). The Making of Counter-culture. Trad.
esp. (1973). El nacimiento de una contracultura. Barcelona. No
original, o livro trazia o subtítulo “Reflexões sobre a sociedade tec-
nocrática e a sua oposição juvenil”.
4 Coombs, Ph. H. (1968). La crise mondiale de l’ éducation. Paris:
Presses Universitaires de France.
5 Illich, I. (1971). Deschooling society. New York: Harper and
Row Publishers. Trad. esp. (1975). La sociedad desescolarizada,
Barcelona: Barral Edit.
6 Faure, E. Op. cit. Esta primeira reflexão abarca todo o texto do
documento.
7 Fondation Européene de la Culture. Fragnière, G.
(Relator) (1975). L’Éducation crèatrice. Paris-Bruxelles: Ed.
Elsevier-Sequoia.
8 Clausse, A. (1975). La relativité educationelle. Bruxelles:
Labor. Trad. port. (1976). A relalividade educativa. Coimbra:
Almedina.
9 Piaget, J. (1948 e 1972). Ou va l’Éducation? Paris: Unesco. Trad.
port. (1978). Para onde vai a Educação? Lisboa: Livros Horizonte,
p. 65.
10 ONU (1989). Convenção sobre os Direitos da Criança, Artº 1º.

363
11 UNESCO, Rapport Sommaire de la Conférence Internationale de
l’Éducation des Adultes, Elseneur, Danemark, 16-25 Juin, 1949.
Paris.
UNESCO. World Conference on Adult Education, Montreal, Canada,
21-31 August, 1960. Final Report. Paris.
UNESCO. Congrès Mondial des Ministres de l’Éducation sur
l’élimination del’analphabétisme. Tehéran, 8-10 Septembre, 1965.
Rapport final. Unesco/ED/2l7.
UNESCO. Rapport Final, Troisième Conférence Internationale sur
l’éducation des adultes réunie par l’Unesco, Tokio, 25 Juillet - 7
Août, 1972. Paris.
UNESCO. International Symposium for literacy. Persepolis, 3-8
September, 1975, Declaration of Persepolis. Paris.
UNESCO. Recommendation on the development of adult educa-
tion adopted by the General Conference at its nineteenth session,
Nairobi, 26 November, 1976. Paris. Trad. port. da UM, Braga,
1977 e da DGEP, Lisboa, 1978.
12 Rogers, Carl R. (1961). On becoming a Person. Trad. port. (6ª ed;

1983) Tornar-se pessoa. Lisboa: Moraes Editores.


13 Freire, Paulo (1970). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz

e Terra (6ª ed. 1976).


14 McLuhan, M. (1967). The Gutemberg Galaxy. Toronto.
15 Toffler, Alvin (1970). Future shock, by A. Toffler. Trad. port. (s/

d). O choque do Futuro. Lisboa: Bertrand.


16 Dias, J. Ribeiro (1979). Educação de Adultos. Educação

Permanente. Evolução do Conceito de Educação. Braga:


Universidade do Minho. / Dias, J. Ribeiro (1999). “Educação
Permanente” in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura,
Lisboa-São Paulo: Editora Verbo, 9, Col. s 1248-1250.
17 Fondation Européene de la Culture. Fragnière, G. (Relator).

Op. cit., p. 133-152.


18 ONU (1989). Convenção sobre os Direitos da Criança. Artº. 1.
19 UNESCO (1960). World Conference on Adult Education.

Montreal. Canada, 21-31 August, 1960. Final Report. Paris, p. 8.

364
20 UMDP, UNESCO, UNICEF, World Bank (1990). World
Declaration on Education for All and Framework for Action to
Meet Basic Learning Needs, Jomtien, Thailandy, 5-9 Mars, 1990.
New York: UNICEF – House.
21 Dias, J. Ribeiro (1979). A Educação de Adultos. A Pessoa e a
Comunidade. Braga: Universidade do Minho. Dias J. Ribeiro (1999).
“Educação Comunitária” in Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de
Cultura. Lisboa-São Paulo: Editora Verbo, 9, Cols. 1241-1244.
22 UNESCO. Rapport Final. Troisième Conférence Internationale
sur l’éducation des adultes réunie par l’Unesco. Tokio, 25 juillet-7
août, 1972. Paris.
23 Maheu, R., in UNESCO, Rapport Final…Tokio, p. 74.
24 Estulin, Daniel (2005). The road to tyranny–-Total Enslavement.
Trad. port. (2005). Clube Bilderberg. Os Senhores do Mundo.
Lisboa: Círculo de Leitores.
25 Ver o desenvolvimento deste projecto em Commission on
Global Governance (1995). Our Global Neighborhood. The
Report of the Commission on Global Governance. Oxford: Oxford
University Press.
26 Bach, Richard (1970). Jonathan Livingston Seagull, a story. N.Y.
Trad. port. A História de Fernão Capelo Gaivota. Rio de Janeiro:
Nórdica, pp. 15-17.
27 Citado por Dottrens, R., in Gilbert, R. (1973). Les idées actuelles
en Pédagogie. Paris: Éd. Centurion. Trad. port. (1976). Lisboa:
Moraes Ed., p. 7.
28 Freire, Paulo (1970). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz
e Terra (6ª ed., 1976), p. 155.
29 Saint-Exupery, Antoine de (1943). Le Petit Prince. Paris: Éditions
Gallimard. Trad. port. (1987). O Principezinho. Lisboa: Círculo
de Leitores, XXI, pp. 66-74 e VII, pp. 30.
30 António Gedeão (1956). Poesias Completas (1956-1967). Lisboa:
Portugália Editora (1975), pp. 35-37.
31 Morin, Edgar (1999). La tête bien faite. Paris: Éditions du Seuil.
Trad. port. (2002). Repensar a Reforma. Reformar o pensamento.

365
A Cabeça Bem Feita. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 24-25.
32 Sagan, C. e Druyan, A. (1992). Shadows of Forgotten Ancestors.
Trad. port. (1994). A Sombra dos nossos antepassados esquecidos.
Lisboa: Círculo de Leitores, pp. 371 e 10.
33 Gomes, Álvaro (2000). “A ciência é inconsutil”, in Diário do
Minho Cultural, Braga, 4 de Outubro de 2000, pp. 5-7.
34 Morin, Edgar (1990). Introduction à la Pensée Complexe. Trad.
port. (3ª ed., 2001). Introdução ao pensamento complexo. Lisboa:
Instituto Piaget, pp. 26-80.
35 Morazé, Ch., in UNESCO (1994). History of Humanity. Trad.
port. (1996). A História da Humanidade.Vol. I. Considerações
prévias. Lisboa: Verbo, p. XII, 1-2.
36 Sagan, C. e Druyan, A. Op.cit., p. 90.
37 Morin, Edgar. Op.cit., pp.13-14.
38 Morin, Edgar. Op.cit., pp. 106-109.
39 Morin, Edgar (1999). La tête bien faite. Paris: Éditions du Seuil.
Trad. port. (2002). Repensar a Reforma. Reformar o Pensamento.
A Cabeça Bem Feita. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 23-80. Ver ain-
da Morin, Edgar (1999). Relier les connaissonces, Paris: Editions
du Seuil. Trad. port. (2001). O desafio do Século XXI. Religar os
conhecimentos. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 491-497.
40 Morin, Edgar (1999). Les sept savoirs nécessaires à l’éducation du
futur. Paris: UNESCO. Trad. port. (2002). Os sete saberes para a
educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 23-123.
41 Heidegger (1959). Gelassenheit. Pfullingen: Günther Neske.
42 Droit, Roger-Pol (1995). Philosophie et Démocratie dans le
Monde. Paris: Editions Unesco. Prefácio do então Director-
-Geral da Unesco, Federico Mayor.
43 Medeiros, Emanuel (2005). A Filosofia como centro do currículo
na educação ao longo da vida. Lisboa: Instituto Piaget. Na parte
final da obra, o Autor procede a um amplo desenvolvimento da
relação entre Unesco, Filosofia e Educação, pp. 378-396. Com
Prefácio do Autor deste livro, que foi modificado e adaptado no
presente parágrafo.

366
44 Platão, O Banquete. Sobretudo II Parte (198, b – 212, c) e III
Parte (212, c – 223, d).
45 Ver o conjunto das obras mais representativas: Rorty, Richard
(1979). Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton: Princeton
University Press. / Rorty, Richard (1989). Contingency, Irony and
Solidarity. Cambridge: Cambridge University Press. / Rorty,
Richard (1990). Objectivity, Relativism and Truth. Cambridge:
Cambridge University Press. / Rorty, Richard (1991). Essays on
Heidegger and Others. Philosophical Papers (2 vols). Cambridge:
Cambridge University Press. / Sobre incidências das teses de
Rorty na educação, ver Antunes, Mª da C. Pinto (2001). Teoria
e prática pedagógica. Lisboa: Instituto Piaget.
46 Bloom, Harold (1994). The Western canon. Trad. port. (1997). O
Cânone Ocidental. Lisboa: Círculo de Leitores.
47 Hadj Garm ’Oren. Texto citado como “manuscrito inédito” por
Morin, Edgar (1999). La tête bien faite. Paris: Editions du Seuil.
Trad. port. (2002). Repensar a Reforma. Reformar o Pensamento.
A Cabeça Bem Feita. Lisboa: Instituto Piaget, p. 47.
48 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa: Círculo de
Leitores (2002). Dadas as características deste dicionário recente
e muito completo, será objecto de frequente recurso, designa-
damente no que diz respeito à origem e cognações de vocábulos
com maior relevância para o tema deste livro.
49 Morin, Edgar. Op. cit., pp. 24-25.
50 Mallory, J. P., “O Fenómeno Indo-Europeu: Linguística e
Arqueologia”, in UNESCO (1996). History of Humanity. Trad.
port. (1997). História da Humanidade. Vol II. Do Terceiro
Milénio ao Século VII a.C. Lisboa: Verbo, 8.3, pp. 81-93, p.
93.
51 Gomes, Álvaro (2000). Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia
das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora. O Autor identifica as raízes nas pp. 216-246
e 387-459 e procede a variadíssimos desenvolvimentos em todo
o texto. Ver ainda Gomes, Álvaro (2003). A Aula. Porto: Porto

367
Editora. Identificação de raízes nas pp. 89-105 e desenvolvimen-
tos em todo o texto.
Porque grande parte dos problemas nas diversas áreas científicas,
com particular incidência nas Ciências Humanas, na Filosofia e
na Educação, procedem de deficiente utilização da linguagem,
nesta linha metodológica da serendipidade e sempre na medida
em que se justificar, procuraremos o esclarecimento inicial dos
conceitos e das correspondentes palavras-chave pelo recurso ao
respectivo étimo que, em grego, etimon, ou, significa “o verdadei-
ro sentido da palavra segundo a sua origem”. Frequentemente,
para além de esclarecer o termo em causa, o seu étimo lança luz
sobre toda a família de outros lexemas dele derivados. De aqui
o recurso frequente que faremos a estudiosos e dicionaristas que
melhor exploram este filão semântico.
52 Gusdorf, G. (1963). Pourquoi les professeurs? Paris: Payot. Trad.

port. Lisboa: Moraes Edit.


53 Nas páginas seguintes, resumo o meu texto anterior: Dias,

José Ribeiro, com o título “O Mistério do Mestre. O Cânone


Literário. De Walt Whitman a Fernando Pessoa”, publicado em
Araújo, A. e Magalhães, J. (Organizadores) (1999). História,
Educação e Imaginário (Actas do 111 Encontro). Braga: CEEP, pp.
11-28 e, posteriormente incluído, com o título “O Mestre. O
Cânone Literário, in Dias, José Ribeiro (2000). A Realização
do Ser Humano. Para a História das Ideias da Educação e da
Pedagogia, Lisboa: Didáctica Editora, pp. 121-136.
54 Tema amplamente desenvolvido por Azevedo, Mª. da

Conceição (1996). Fernando Pessoa Educador. Encontro de Si


Próprio. Consciência da Missão. Fidelidade ao Ser. Braga: Edições
APPACDM.
55 Fernando Pessoa (1979). Obra poética e em prosa. Introdução,

organização, bibliografia e notas de António Quadros e Dalila


Pereira da Costa. Porto: Lello e Irmão Editores, lI, p. 341.
56 Id., Ib., IlI, p. 1327, nota.
57 Fernando Pessoa (s. d). Páginas íntimas e de Auto-interpretação.

368
Textos estabelecidos e prefaci ados por Georg Rudolph Lind e
Jacinto do Prado Coelho, pp. 63-64.
58 Fernando Pessoa (1979). Obra poética e em prosa, II, pp.
176-177.
59 Fernando Pessoa (1990). Cartas de amor de …Organização, pos-
fácio e notas de David Mourão-Ferreira. Preâmbulo e estabele-
cimento do texto de Maria da Graça Queiroz (1ª ed., 1978), p.
131.
60 Citação em Azevedo, Mª. da Conceição, Op. cit., extraída de
uma anotação de Fernando Pessoa no livro, existente na sua bi-
blioteca pessoal, de Mead, G.R. S. (1913). Quests Old and New.
London, p. 36.
61 Fernando Pessoa (1988). Moral, Regras de Vida, Condições de
Iniciação. Textos estabelecidos e comentados por Pedro Teixeira
da Mota. Lisboa: Edições Lencastre, p. 71.
62 Fernando Pessoa (1979). Obra poética e em prosa, III, p. 730.
63 Id., Ib., p. 445.
64 Atlan, H. (1991). Tout, non, peut-être. Paris: Le Seuil.
Goblot, E. (1954). Traité de Logique. Paris: Armand Colin.
Hannoun, H. (1995). Compreendre l’éducation. Introduction à la
philosophie de l’éducation, Paris: Editions Nathan.
Fullat, O. (2005). Valores y Narrativa. Axiologia educativa de
Occidente: Barcelona: Publicacions i Edicions de la Universitat
de Barcelona.
65 “As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia lusitana,
Por mares nunca d’ antes navegados,
Passaram inda além da Taprobana
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que permitia a força humana,
Entre gente remota edificaram
Novo Reino que tanto sublimaram”.
Camões, L. de, Os Lusíadas, Livro I, 1.

369
Capítulo II

66 ONU (1948). Declaração Universal dos Direitos do Homem.


67 ONU (1966). Pacto Internacional Relativo aos Direitos
Económicas, Sociais e Culturais. Pacto Internacional Relativo aos
Direitos Civís e Políticos.
68 Conferência de Bandung (1955).
69 UNESCO (1994). History of Humanity.Trad. port. (1996).
História da Humanidade. Vol. I. A Pré-História e o Início da
Civilização, pp. IX- XIV.
70 Kerouak , Jack (1957). On The Road.
71 Plotino (1960). Ennéads (Texte établi et traduit par Émile
Bréhier). Paris: Société d’édition “Les Belles Lettres”.
72 Morin, Edgar (1999). Les sept savoirs nécessaires à l’ éducation du
futur. Paris: UNESCO. Trad.port. (2002). Os sete saberes para a
educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 85-98.
73 Gomes, A. (2000). Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia das
Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa: Didáctica
Editora, p. 392.
74 Id. Ib., pp. 438 e 389.
75 Mourão – Ferreira, D. (1970). Imagens da Poesia Europeia.
Lisboa: Artis, pp. 91-92.
76 Kant, E. (1924). Fondement de la métaphysique des mœurs, II
(Trad. Delbos, 5e éd.). Paris: Delagrave, p. 151.
77 Lacroix, J. (1951). La Sociologie d’ Auguste Comte, pp. 27-28.
78 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2002). Lisboa: Círculo
de Leitores.
79 Foulquié, P. (1962). Dictionnaire de la langue philosophique.
Paris: PUF.
80 Academia das Ciências de Lisboa (2001). Dicionário da Língua
Portuguesa Comtemporânea. Lisboa: Verbo.
81 Gomes, Álvaro. Op. cit., p. 396.

370
Capítulo III

82 Faure, E. e Outros (1972). Apprendre à être. Paris: Fayard –


Unesco. Trad. port. (1974). Aprender a ser. Lisboa: Bertrand.
83 Op .cit., p. 55.
84 Op. cit., p. 57.
85 Op. cit., p. 56.
86 Gomes, Álvaro (2003). A Aula. Porto: Porto Editora.
87 Faure, E. e Outros, Op.cit., pp. 43-54.
88 Clausse, A. (1975). La Relativité Educationnelle. Bruxelles:
Éditions Labor. Trad. port. (1976). A Relatividade Educativa.
Coimbra: Livraria Almedina, pp. 162-167.
89 Id. Ib., pp. 103-116.
90 Magalhães, Justino (2004). Tecendo Nexos. História das
Instituições Educativas. Campinas: Ed. Univ. S. Francisco, p.
21-27.
91 Sobre a sorte da Reforma Langevin – Wallon é interessan-
te recolher, 25 anos depois, o comentário do Group Français
d’Éducation Nouvelle ao qual os seus autores tinham pertencido:
“Etrange destin que celui du Plan LANGEVIN-WALLON qui
devait susciter tant d’espoirs et réserver tant de déceptions, ver-
balement honoré depuis comme référence ordinaire des vœux
pieux officiels mais soigneusement écarté de toute prise véritable
sur le réel, ce qu’il est convenu d’appeler rénovation pédagogi-
que ne consistant guère jusqu’ici qu’en opérations de colmatage,
à la surface des choses”. (Vários (1972). In Les mouvements de
rénovation pédagogique par eux-mêmes. Paris: Les Éditions E S
F, pp. 123-124). Sobre o Education Act, ver Ferreira Gomes, J.
F., in (1968) Brotéria, vol. 87, Lisboa, pp. 454-478 e também
in (1977) Dez estudos pedagógicos. Coimbra: Almedina, pp. 145-
170. Sobre o conjunto das reformas, ver Thomas, Jean (1975).
Les grands problémes de l’éducation dans le monde, Paris: Unesco e
PUF, pp. 13 ss.
92 Faure, E. e Outros, Op. cit., p. 55.

371
93 Hobsbawm, Eric (1994). Age of extremes. The Short Twentieth
Century: 1914–1991. Trad. port. (1996). A Era dos Extremos.
História Breve do Séc. XX, 1914–1991. Lisboa: Edit. Presença, pp.
17-18.
94 Toffler Alvin (1970). Future shock. By A. Toffler. Trad. port. (s/
d.). O choque do futuro. Lisboa: Livros do Brasil.
95 McLuhan, M. (1967). The Gutemberg Galaxy. Toronto.
96 Feixa Pàmpols, Carles. “Os novos modelos culturais”, in (2005).
História Universal. Vol. 20. Fim de século. Os grandes temas do
século XXI. Editorial Salvat – Público, pp. 103-104.
97 Hobsbawm, Eric. Op. cit., p. 321, pp. 316-338.
98 Gomes, Álvaro (2000). Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia
das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora. p. 394.
99 Kerouac, Jack (1957). On the road.
100 Roszack, Th. (1968). The making of counter culture. Trad. esp.
(1973). El nacimiento de una contracultura. Barcelona.
101 Jung Chang (1991). Cisnes Selvagens./ O filme Xiu Xiu, Chen,
1998. / Jung Chang e Jon Halliday (2005). Mao. A História
Desconhecida. Lisboa: Círculo de Leitores.
102 Bob Dylan, The Times They Are A-Changing.
103 Mao Tsé Tung. (1967). O Livro Vermelho. Pequim: Edições em
línguas estrangeiras, p. 313.
104 Feixa Pàmpols, Carles. Op. cit., p. 122.
105 The Sex Pistols (1977). “God Save the Queen”.
106 UNESCO (1983). A juventude na década 80 (Relatório).
107 Expresso, Pública. 06-05-28, pp. 24-30.
108 Maffesoli, Michel (1990). El tiempo de las tribus. Barcelona.
109 Tapscott, D. (1998). Growing Up digital. The rise of the new gene-
ration. New York.
110 Castells, M. (2002). A era da informação. Lisboa.
111 Himannen, Pekka (2001). A ética dos Hackers e o Espírito da era
da informação. Editora Campus.
112 http://www.cibersociedad.org. (Observatório para a cibersociedade)

372
113 Prévost, Claude (1968). Les étudiants et le gauchisme. Trad.
Port. (1975). Os estudantes e o esquerdismo. Lisboa: Círculo de
Leitores.
114 Ver Roger, Gilbert (1973). Les Idées Actuelles en Pédagogie. Paris:
Éditions du Centurion. Trad. Port. (3ª ed. 1976). As ideias actu-
ais em pedagogia. Lisboa: Moraes Editores.
115 Coombs, Ph. H. (1968). La crise mondiale de l’éducation. Paris:
Presses Universitaires de France.
116 Mead, M. (1970). Culture and commitment. Trad. esp. (1977).
Cultura y compromisso. El mensage a la nueva generacion.
Barcelona.
117 Illich, Ivan (1971). Deschooling society, New York: Harper and
Row Publishers. Trad. esp. (1975). La sociedad desescolarizada.
Barcelona: Barral Edit. / Reimer, Everett (1975). School is dead:
alternatives in education. New York: Doubleday and Company.
Trad. port. (1979). A escola está morta. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves Editora, SA.
118 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001). Lisboa: Círculo
de Leitores.
119 Gomes Álvaro (2000). Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia
das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora, p. 412.
120 Fukuyama, Francis (1992). The end of History and the last man.
Trad. port. (1992). O fim da História e o Último Homem. Lisboa:
Círculo de Leitores. / Hobsbawm, Eric. Op. cit. / Huntington,
Samuel P. (1996). The Clash of Civilizations – Remaking of World
Order. Trad. port. (1999). O Choque das Civilizações e a Mudança
na Ordem Mundial. Lisboa: Gradiva.
121 Goodman, P. e Outros (1972). Pour ou contre Summerhill. Paris:
Ed. Payot. / Vincent, B. (1976). Paul Goodman, el la reconquête
du present. Paris: Ed. du Seuil.
122 As ideias a seguir apresentadas são desenvolvidas pelo au-
tor no conjunto da sua obra, particularmente em Illich, Ivan
(1971). Deschooling Society (ver acima, nota 36) e em Illich,

373
Ivan (1973). Tools for Conviviality. New York: Harper and Row
Publishers. Trad. port. (1976). A convivencialidade. Lisboa:
Europa-América.
123 Id., Tools for Conviviality, pp. 37, ss.
124 Id., Ib., p. 7, ss.
125 Id., Ib., p. 34, ss.
126 Id., Deschooling Society, p. 13.
127 Id., Tools for Conviviality, p. 38, pp. 55, ss.
128 Id., Ib., pp. 69, ss.
129 Id., Deschooling Society, p. 11.
130 Id., Tools for Conviviality, p. 42, p. 49, p. 68.
131 Id., Ib., p. 39, p. 51, p. 102, ss.
132 Id., Ib., p. 87, ss. Deschooling Society, pp. 135, ss.
133 Id., lb., pp. 101, ss.
134 Id., lb., pp. 54, ss.
135 Id., lb., pp. 102, ss. / Deschooling Society, p. 12.
136 Jutglar, Antoni. “Esforços pacifistas e alianças políticas no fim
do século”, in (2005). História Universal, Editorial Salvat, S.L.
- Público, VoI. 19, pp. 156-212.
137 Foulquié, Paul (1962). Dictionaire de la Langue Philosophique,
Paris: Presses Universitaires de France, Idéologie, p. 337, 2.
138 Le Monde, Maio de 1968.
139 Gomes, Álvaro (2000). Op. cit., p. 392.
140 “Os princípios inscritos na Declaração. Universal dos Direitos da
Homem constituem uma ética comum a todos os membros da
comunidade internacional” e “a juventude deve conhecer, respei-
tar e desenvolver tudo o que a humanidade realizou, até agora,
de positivo, para reforçar o respeito do ser humano”. Conferência
lnternacional sobre os direitos do homem (1968, Teerão). “Resolução
sobre a educação da juventude no respeito pelos direitos do homem e
das liberdades fundamentais”. Preâmbulo. Sublinhado nosso.

374
Capítulo IV

141 Gomes, Álvaro (2000). Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia


das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora, pp. 413, 388, 427.
142 Néraudau, Jean-Pierre (1984). Être enfant à Rome. Paris (1996),
p. 202.
143 DeMause, Lloyd (1974). The History of Childhood. Trad. esp.
(1982). Historia de la infancia. Madrid: Alianza Editorial, pp.
47-48.
144 Reis Monteiro, A. (2002). A Revolução dos Direitos da Criança.
Porto: Campo das Letras, p. 31. O Autor desenvolve amplamen-
te o tema que, por economia geral do conteúdo deste livro, nós
aqui simplesmente afloramos.
145 DeMause. Op. cit., p. 51.
146 Id. Ib., pp. 48-49.
147 Marrou, Henri-Iréné (1975) “Le droit à l’éducation dans
l’antiquité greco-romaine”. In Recueil de la societé Jean Bodin
pour l’histoire comparative des institutions, XXXIX – L’enfant
– Cinquième partie: Le droit à l’éducation. Bruxelles: Éditions de
la Librairie Encyclopédique, p.83.
148 Denis, H. (1978). História do pensamento económico, Vol. I.
Lisboa: Círculo de Leitores, p. 12.
149 Platão, República, 410, a.
150 Aristóteles. Política, Livro VII, cap. 16. 15.
151 Eurípedes. Ion.
152 Néraudau. Op. cit., p. 190.
153 Reis Monteiro. Op. cit., p. 30.
154 Id. Ib., p. 41.
155 Id. Ib., pp. 51-53.
156 DeMause. Op. cit., p. 59.
157 Reis Monteiro. Op. cit., p. 32.
158 Id. Ib., p. 33.
159 Id. Ib., p. 35.

375
160 DeMause. Op. cit., pp. 449-450.
161 Badinter, Elisabeth (1980). L’Amour en plus – Histoire de l’amour
maternel (XVIII e – XX e siècle). Paris: Flammarion, p.133.
162 Reis Monteiro. Op. cit., p. 50.
163 Id. Ib., pp. 39-40.
164 Ariès, Philipe (1960). L’ enfant et la vie familiale sous l’ Ancien
Régime. Paris: Ed. Seuil, pp. 7, 176-179, 62-67, 153-154.
165 Badinter, E. Op. cit., pp. 154-155, 218.
166 Murat, Pierre (1989). “La Puissance paternelle et la Révolution
française: essai de régénération de l’autorité des pères”. In Irène
Théry et Christian Biet (Textes reúnis et présentés par). La fa-
mille, la loi, l’État – de la Révolution au Code civil. Paris: Éditions
du Centre Georges Pompidou/ Imprimerie Nationale-Éditions,
p. 393.
167 Lascoumes, Pierre (1989). “L’Émergence de la famille comme
intérêt protégé par le droit penal, 1791-1810”. In Irène Théry et
Christian Biet (Textes réunis et présentés par). La famille, la loi,
l’État – de la Révolution au Code civil. Paris, Éditions du Centre
Georges Pompidou/ Imprimerie Nationale-Éditions, p. 344.
168 Rosenczveig, Jean-Pierre (en collaboration avec Annie Bouyx,
chargée de mission à L’IDEF) (1990). Les Droits des Enfats en
France - État d ‘un débat et perspectives. Paris: Éditions Condot-
-Bourgery/lnstitut de l’Enfance et de la Famille (IDEF), pp.
69-70.
169 Grant, James P. (1990). UNICEF., pp. 27-28, 47.
170 Id., Ib.
171 Gonelle, Michel (1975). “Le Droit à l’éducation, de l’époque
de la 3.e dynastie d’Ur à celle de la dynastie de Hammurabi”.
In Recueil de la Société Jean Bodin pour l’histoire comparative des
institutions, XXXIX – L’enfant – Cinquième partie: Le Droit à
l’éducation. Bruxelles, Éditions de la Librairie Encyclopédique,
p.75.
172 Marrou, Henri-Iréné (1948). Histoire de l’éducation dans l’ anti-
quité. Paris: Éditions du Seuil (7e éd., 1965), p. 24.

376
173 Marrou. Op. cit., p. 240.
174 Néraudau. Op. cit., pp. 117, 165-166.
175 Marrou. Op. cit., pp. 397-398.
176 Néraudau. Op. cit., pp. 314-316.
177 S. Agostinho, Confessiones.
178 S. Agostinho, De Civitate Dei.
179 DeMause. Op. cit., p. 34.
180 Reis Monteiro. Op. cit., pp. 73.
181 DeMause. Op. cit., pp. 42, 73-76, 456.
182 Klecker. In Conseil de l’Europe (1980). Requêtes nº 7511/76 et
7743/76: Grace Campbell et Jane Cosans contre Royaume-Uni –
Rapport de la Comission. Strasbourg: Commission Européenne
des Droits de l’Homme, p. 47.
183 Miller Alice (1980). Am Anfang war Erziehung. Trad. fr. (1984).
C’est pour ton bien – Racines de la violence dans l’éducation de
l’enfant. Paris: Éditions Aubier Montaigne, pp. 21-22, 83-85,
107, 266, 283.
184 Cooper, David (1971). The death of the family. Trad. fr. (1972).
Mort de la famille. Paris: Éditions du Seuil, p. 13.
185 Laing, Ronald (1967). The Politics of Experience and Bird of
Paradise. Trad. fr. (1980). La politique de l’expérience. Paris:
Éditions Stock, p. 46.
186 Reis Monteiro. Op. cit., pp. 65-68.
187 Bloch, M. A. (1973). Philosophie de l’éducation nouvelle, Paris:
Presses Universitaires de France.
188 Clausse, A. (1975). La relativité educationnelle. Bruxelles:
Labor. Trad. port. (1976). A Relatividade educativa. Coimbra:
Almedina.
189 Araújo, Alberto Filipe (2004). Educação e Imaginário. Da
Criança Mítica às Imagens da Infância. Maia: Publismai.
190 Reis Monteiro. Op. cit., pp. 111-112.
191 Citado em Néraudau. Op. cit., p. 122.

377
Capítulo V

192 A primeira parte do presente capítulo corresponde a uma


condensação de alguns textos anteriores: Dias, J. R. (1979). A
Educação de Adultos. Introdução Histórica. Braga: U. M. – PEA .
/ Dias, J. R. (1979). A Educação de Adultos. Educação Permanente.
Evolução do conceito de educação. Braga: U. M. – PEA. / Dias,
J. R. “Da Educação Escolar à Educação de Adultos”, in Dias, J.
R. (Coord.) (1983). Curso de Iniciação à Educação de Adultos.
Braga: U. M. / UEA, pp. 13-50. / Para a história do novo con-
ceito, ver Hummel, Ch. (1977). L’ éducation d’aujourd’ hui face
au monde de demain. Paris: Unesco – PUF, pp. 32 ss.
193 UNESCO. Rapport Sommaire de la Conférence Internationale de
l’éducation des adultes, Elseneur, Danemark, 16-25 Juin, 1949.
Paris.
194 Ib., p. 4.
195 Ib., p. 11.
196 Ib., p. 5 e p. 17. Sublinhado nosso.
197 Ib. Sublinhado nosso.
198 Ib., p. 5.
199 UNESCO (1976). Alphabétization. 1972-1976. Progrés de
l’alphabétization dans les divers continents. Paris.
200 Ib., p. 6.
201 Ib., pp. 6-7.
202 UNESCO. World Conference on Adult Education, Montreal,
Canada, 21-31 August, 1960. Final Report. Paris. Ter ainda em
conta a “Declaration of the Montreal World Conference on Adult
Education”, proposta pelo Presidente da Conferência, Dr. Kidd,
e adoptada por unanimidade, seguida da “Resolution” “Adult
education and World peace”, também adoptada pelo Plenário.
203 Ib., p. 8. Sublinhado nosso.
204 Ib., p. 27.
205 Magalhães, J. P. de (1996). Ler e escrever no mundo rural do
Antigo Regime. Um contributo para a história da alfabetização

378
e da escolarização em Portugal. Braga: Universidade do Minho,
Instituto de Educação. / Id. (2001). Alquimias da escrita: alfabe-
tização, história, desenvolvimento no mundo ocidental do Antigo
Regime. Bragança Paulista: Editora da Univ. de S. Fransisco.
206 UNESCO, World Conference Montreal […], p. 8.
207 UNESCO, Congrès Mondial des Ministres de l’Éducation sur l’
élimination de l’analphabétisme. Téhéran, 8-10 sept. 1965. Rapport
Final. Paris: Unesco/Ed/217, s.d.
208 UNESCO (1976). Programme expérimental mondial
d’alphabétization: évaluation critique. Paris, pp. 223 ss.
209 Toffler, Alvin (1970). Future shok, by A. Toffler. Trad. port. (s/d).
O Choque do Futuro. Lisboa: Livros do Brasil, pp. 391 e ss.
210 UNESCO, Rapport Final. Troisième Conférence Internationale
sur l’éducation des adultes réunie por l’Unesco. Tokyo, 25 Juillet – 7
août 1972. Paris: Unesco, nº 8, p.24.
211 Id., Ib., p. 24, nºs 9-11. Sublinhado nosso.
212 Id., Ib., p. 24, nº 12.
213 Id., Ib., p. 21, nº 23.
214 Id., Ib., p. 13, nº 21-22; p. 24, nº 12; pp. 43-45, Recom. 3-6; p.
54, Recom. 22.
215 Id., Ib., p. 21, nº 21.
216 Id., Ib., pp. 75-76. Sublinhado nosso.
217 Id., Ib., p. 16, nº 50; nºs 48-49.
218 Id., Ib., p. 16, nº49 e nºs 52-53; p. 20, nº10; p. 49, Recom. 11.
Sublinhado nosso.
219 Id., Ib., Annexe II, p. 70; p. 49, Recom. 11. Sublinhado nosso.
220 Id., Ib., Annexe IV, p. 82.
221 Id., Ib., Annexe II, p. 70. Sublinhado nosso.
222 Id., Ib., p. 20, nº 7. Sublinhado nosso.
223 Id., Ib., Annexe IV, p. 82. Sublinhado nosso.
224 Thomas, J. (1975). Les grands problèmes de l’éducation dans le
monde. Essay d’analise et de synthèse. Paris: Unesco – PUF.
225 UNESCO. International Symposium for Literacy. Persepolis, 3-8 sep-
tember, 1975. Declaration of Persepolis. Paris, s/d. Sublinhado nosso.

379
226 UNESCO. (1976). Alphabétization. 1972-1976. Progrés de
l’alphabétization dans les divers continents. Paris. / PNUD (1976).
Programme Expérimental Mondial d’ Alfphabétization. Évaluation
critique. Paris: Presses de l’Unesco.
227 Id., Ib., p. 23.
228 Illich, I. (1971). Deschooling society. New York: Harper and Row.
Trad. esp. (1975). La sociedad desescolarizada. Barcelona: Barral
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229 UNESCO. Recommendation on the development of adult educa-
tion adopted by the General Conference at its nineteenth session.
Nairobi, 26 November 1976. Paris, s/d. Trad. port. (1977). Braga:
Universidade do Minho; (1978). Lisboa: DGEP.
230 Id., Ib., nº. 1.
231 Id., Ib., nº. 4, a).
232 Id., Ib., nº. 3, a).
233 Id., Ib., nº. 4, a).
234 Id., Ib., nº. 7.
235 Id., Ib., nºs. 49-53.
236 Id., Ib., nºs. 46-48.
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239 Id., Ib., nºs. 61-67.
240 Id., Ib., nºs. 41-45.
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247 UNESCO, Rapport Final… Tókio, p. 14, nº 28.
248 Norbeck, J. (1981). Formas e métodos de Educação de Adultos.
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249 Coménio, J. A. (1957) Didáctica Magna. Tratado da Arte
Universal de Ensinar Tudo a Todos. Trad. port. de J. Ferreira

380
Gomes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
250 UNESCO. International Symposium for Literacy. Persepolis, 3-8 sep-
tember, 1975. Declaration of Persepolis. Paris, s/d. Sublinhado nosso.
251 UNESCO. Recommendation on the development of adult educa-
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Nairobi 26 November 1976. Paris, s/d. Trad. port. (1977). Braga:
Universidade do Minho (1978), 4. a), 4. d). Sublinhado nosso.
252 Freire, Paulo (1965). Educação como prática da Liberdade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. (ed. 1976). / Freire, Paulo (1970). Pedagogia
do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra (ed. 1975).
253 Id., Pedagogia do Oprimido, p. 29, ss.; pp. 86, 201, 171, 181.
254 Id., Ib., pp. 159, ss.
255 Id., Ib., pp. 153, ss.
256 Id., Ib.
257 Id., Ib., pp. 21, ss.
258 Id., Ib., pp. 22, ss.
259 Id., Ib., p. 155, pp. 58, ss. Sublinhado nosso.
260 Id., Ib., pp. 63, ss.
261 Id., Ib., pp. 58 e 89, ss.
262 Id., Ib., pp. 36, ss.
263 Id., Ib., pp. 33, ss.
264 Id., Educação como prática da liberdade, pp. 101, ss.
265 Id., Ib., p. 118.
266 Id., Pedagogia do Oprimido, pp. 101, ss.
267 Id., Ib., p. 79.
268 UNESCO (1976). Alphabétization. 1972-1976. Progrés de
l’alphabétization dans les divers continents. Paris. / PNUD (1976).
Programme Expérimental Mondial d’ Alfphabétization. Évaluation
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269 UNESCO (1986). Quarta Conferência Internacional de Educação
de Adultos, Paris, 1985. Lisboa: MEC / DGEA. / UNESCO
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Hamburgo. 1997. Declaração Final e Agenda para o Futuro.,
Lisboa: ME/SEEI.

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Economic Co-operation and Development - Statistics Canada.
272 David Neice and Margaret Adsett, “Direct Versus Proxy
Measures of Adult Functional Literacy: A Preliminary Re-
Examination”, in (1990). Functional Literacy in Eastern and
Western Europe. Hamburg: UIE-UNESCO/CE/OECD-CERI
Seminar. / Ana Benavente (Coord.) e Outros (1996). A Literacia
em Portugal. Resultados de uma pesquisa intensiva e monográfica.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – CNE.
273 Conselho Nacional de Educação (CNE) (1996). “A Educação
de Adultos em Portugal no contexto da educação ao longo da
vida. Situação. Alternativas. Recomendações. Parecer nº 1/96
do CNE”. In (1996) Diário da República, II Série, nº 208 de
7-9-1996, 10, pp. 12653-12673, p. 12663. In CNE, Pareceres e
Recomendações 1996, 10, pp. 11-117; pp. 64-65.
274 Id., Ib., p. 12663; p. 65-66. / The National Commission on
Excellence in Education (1984). A Nation at Risk. USA,
Cambridge (Mass.).
275 UNESCO. Recommendation on the development of adult educa-

382
tion adopted by the General Conference at its nineteenth session,
Nairobi, 26 November, 1976. Paris. Trad. port. Braga: U. M.
(1977) e Lisboa: DGEP (1978), pp. 9-10.
276 Conselho Nacional de Educação (CNE). Op. cit., nº 15,
Recomendações, 8. 4. Sublinhado nosso.

CapítuloVI

277 Estas duas expressões são equivalentes. Correspondem a tradu-


ções, para a língua portuguesa, dos textos originais dos Relatórios
das várias Conferências Mundiais sobre Educação de Adultos
em língua francesa (éducation permanente) e em língua inglesa
(life long education). No presente texto passaremos a utilizar cor-
rentemente a expressão traduzida da versão em língua inglesa,
educação ao longo da vida.
278 UNESCO, Rapport Sommaire de la Conférence Internationale
de l’éducation des adultes, Elseneur, Danemark, 16-25 Juin, 1949.
Paris. Rapport Sommaire, Elseneur, p. 11.
279 Ib., p. 24, p. 36, p. 39.
280 Ib., p. 9, p. 13.
281 Ib., p. 5, p. 17. Sublinhado nosso.
282 Ib., p. 9.
283 Ib., p. 9, p. 12.
284 Ib., p. 13.
285 Ib., p. 15.
286 Ib., p. 16.
287 Ib., pp. 16-17.
288 Ib., p. 17. Este ponto será reconhecido como prioritário na
Conferência de Montreal.
289 Ib., p. 14. Sublinhado nosso.
290 UNESCO.World Conference on Adult Education, Montreal,
Canada, 21-31 August, 1960. Final Report. Paris, p. 2,
291 Ib., p. 2.
292 Ib., p. 29.

383
293 Ib., p. 9.
294 Ib., p. 29.
295 Ib., pp. 8-9.
296 Ver Faure, E. (1972). Apprendre à être. Paris: Unesco. Trad. port.
(1974). Aprender a ser. Lisboa: Bertrand, pp. 108-110.
297 UNESCO. Congrès Mondial des Ministres de l’Éducation sur
l’élimination del’analphabétisme. Tehéran, 8-10 Septembre, 1965.
Rapport final. Unesco/ED/2l7, pp.7-9.
298 Ib., Faure, E., Op. cit., pp. 64 e ss.
299 UNESCO. Rapport Final, Troisième Conférence Internationale
sur l’éducation des adultes réunie par l’Unesco, Tokio, 25 Juillet - 7
Août, 1972. Paris, pp. 24-25.
300 Toffler, Alvin (1970). Future Shock, by A. Toffler.Trad. port. (s/
d). O Choque do Futuro. Lisboa: Bertrand. O Autor conta como
lhe ocorreu a expressão “Choque do Futuro” em 1965 (p. 8) e
como investigou o seu conceito nos anos seguintes (pp. 479-
480). Dedica ao nosso tema o cap. XVIII – Ensino no Futuro
do Indicativo (pp. 391-419).
301 UNESCO. Rapport Final, Troisième Conférence Internationale
sur l’éducation des adultes réunie par l’Unesco, Tokio, 25 Juillet - 7
Août, 1972. Paris, p. 11, nº 6. Sublinhados nossos.
302 Ib., pp. 76-77. Sublinhado nosso.
303 Ib., p. 17, nº 59.
304 Ib., p. 28, nº 57.
305 Ib., p. 41, Recom. 1. 2. Sublinhado nosso.
306 Ib., pp. 47-48, Recom. 8. 1. Sublinhado nosso.
307 Ib., p. 17, nº59. Sublinhado nosso.
308 Ib., p. 17, nº 58.
309 Ib., p. 17, nº 59; p. 44, Recom. 5, nºs 1-2. Sublinhado nosso.
310 Ib., p. 17, nº 60; p. 41, Recom. 1, nº 2. Sublinhado nosso.
311 Ib., p. 17, nº 62.
312 Ib., p. 17, nº 61. Sublinhado nosso.
313 Ib., p. 17, nº 55. Sublinhado nosso.
314 Ib., p. 21, nº 21. Sublinhado nosso.

384
315 Ib., p. 11, nº 4. Sublinhado nosso.
316 Ib., p. 23, nº 5. Sublinhado nosso.
317 Thomas, Jean (1975). Les grands problémes de l’ education dans le
monde. Paris: Unesco e P. U. F.
318 Maheu, René, in UNESCO. Rapport Final, Troisième Conférence
Internationale sur l’éducation des adultes réunie par l’Unesco,
Tokio, 25 Juillet - 7 Août, 1972. Paris. Annexe III, pp. 74-75.
Sublinhado nosso.
319 Ib., p. 17, nº 55. Sublinhados nossos.
320 Ib., p.17, nº 56. Sublinhado nosso.
321 Ib., Recom. 13, nºs 1-3. Sublinhados nossos. Ver também
Recom. 8, nºs 4-6 (à Unesco); Recom. 4, nºs 1-4 (à Unesco);
Recom. 15, nºs 1-2; Recom. 16-18, 28-29, 33, etc.
322 Faure, E. e outros (1972). Apprendre à être, Paris: Fayard –
Unesco. Trad. port. (1974). Aprender a Ser. Lisboa: Bertrand, p.
10. Sublinhado nosso.
323 Id., Ib., p. 33-34. Sublinhado nosso.
324 Fondation Européene de la Culture. Fragnière, G. (1975).
L’Éducation crèatrice. Paris-Bruxelles: Ed. Elsevier. Sequoia.
325 UNESCO. Recommendation on the development of adult educa-
tion adopted by the General Conference at its nineteenth session,
Nairobi, 26 November, 1976. Paris. Trad. port. da UM, Braga
(1977), I, 1, pp. 10-11. Sublinhado nosso.
326 Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 1.
327 Gomes, Álvaro (2000). Héuresis. Por uma Genealogia/Arqueologia
das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora, p. 419.
328 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mag-, 2 mega-, maior,
maioridade.
329 Ib., man(a)-, manh(ã)-, 1maduro, maturidade.
330 Reboul, O. (1980). Qu ‘est-ce qu ‘apprendre? Pour une philosophie de
l’ enseignement. Paris: Presses Universitaires de France, pp. 9-12.
331 Id., Ib., p. 126.
332 Gomes, Álvaro. Op. cit., p.398.

385
333 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, - duz-, educ-, educar.
334 Gomes, Álvaro. Op. cit., pp. 413 e 388.
335 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, cuid-, cuidar.
336 Ib., med-, medus(i)-.
337 Ib., pend-, pens-.
338 Reis Monteiro, A. (2002). A Revolução dos Direitos da Criança.
Porto: Campo das Letras, pp. 145-156.
339 António Gedeão. Poesias completas (1956-1967). Lisboa:
Portugália Editora (1975), pp. 67-69.
340 UNESCO. Recommendation on the development of adult education
adopted by the General Conference at its nineteenth session, Nairobi,
26 November, 1976. Paris. Trad. port. da UM, Braga, (1977).
341 Id., Ib., VII. 48. A expressão “jovens adultos” aparece no texto
das versões espanhola e francesa.
342 Id., Ib., VII. 46.
343 Dias, J. Ribeiro. Este parágrafo e os dois que seguem cor-
respondem a uma adaptação do texto do Autor “A for-
mação pedagógica dos professores do ensino superior”,
in Reimão, Cassiano (Coord.) (2001). A formação peda-
gógica dos professores do ensino superior. Lisboa: Edições
Colibri, pp. 63-72.
344 Freire, P. (1970). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
Terra (Ed. 1975), pp. 63, ss.
345 Ortega y Gasset, “ Meditaciones deI Quijote”, in Obras comple-
tas, 1., p. 335.
346 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, espec-.
347 Gomes, Álvaro. Op., cit., p. 404.
348 Morin, Edgar (1990). Introduction à la Pensée Complexe. Trad.
port. (3ª ed., 2001). Introdução ao pensamento complexo. Lisboa:
Instituto Piaget, pp. 26-80.
349 União Europeia (1994). Livro Branco sobre Crescimento,
Competitividade, Emprego. Os desafios e as Pistas para entrar no
séc. XXI. Luxemburgo: UE.
350 ERT (1995). Uma Educação Europeia. A Caminho de uma

386
Sociedade que Aprende, Relatório da Mesa-Redonda dos Industriais
Europeus.Bruxelas: ERT.
351 Delors, J. et Al. (1996). Rapport à l’UNESCO de la Comission
Internationale sur l’éducation pour le vingt et unième siècle, pré-
sidée par Jacques Delors. Un tresor est caché dedans. Paris: Ed.
UNESCO – Ed. Odile Jacob, p.113.
352 Conselho Nacional de Educação (CNE) (1996). “A Educação
de Adultos em Portugal no contexto da educação ao longo da
vida. Situação. Alternativas. Recomendações. Parecer nº 1/96 do
CNE”. In (1996) Diário da República, II Série, nº 208 de 7-9-
1996, 10, pp. 12653-12673. In CNE, Pareceres e Recomendações
1996, 10, pp. 12664-12665 / pp 73-74.
353 Ver testemunhos de diversa origem à escala internacional em
Castro, R. V.; Sancho, A. V.; Guimarães, P. (Editors) (2006).
Adult Education. New routes in a new landscape. Braga: University
of Minho. Unit for Adult Education.

CapítuloVII

354 Freire, P. (1970). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e


Terra (ed. 1975), p. 155, pp. 58 ss.
355 UNESCO. World Conference on Adult Education, Montreal,
Canada, 21-31 August, 1960. Final Report. Paris, Annex II, p. 3,
nºs 12-13; ver também pp. 8-9.
356 UNESCO. Rapport Final, Troisième Conférence Internationale
sur l’éducation des adultes réunie par l’Unesco, Tokio, 25 Juillet - 7
Août, 1972. Paris, p. 21, nº 33.
357 Dicionário Houaiss da Línguan Portuguesa, mei-.
358 Convenção sobre dos Direitos da Criança, Artº 27, 2.
359 Freire, P. Op. cit., p. 79.
360 Este parágrafo e o seguinte constituem uma adaptação actualiza-
da do texto do Autor, “Educação Comunitária”, in Cormary, H.
(Direcção) (1980). Dicionário de Pedagogia. Lisboa/São Paulo:
Verbo. In (1999). Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura.

387
Edição Século XXI, Vol. 9. Lisboa/São Paulo: Edit. Verbo.
361 Hiemstra, R. (1972). The educative community. Lincoln
(Nebrasca). / Van Voorhees, C. “Let’s understand communi-
ty education”, in Community Education Journal, May, 1972. /
Minzey, J. and Letarte, C. (1973). Community education. From
program to process. Midlan (Michigan)./National Community
Education Symposium (1973). Gelting research and evaluation
underway at all levels of community education. Flint (Michigan).
/ Seay, M.F. et Al. (1974). Community education. A developing
concept. Midland (Michigan).
362 Faure, E. et Al. (1972). Apprendre à être. Paris: Fayard – Unesco.
Trad. port. (1974). Aprender a ser. Lisboa: Bertrand e São Paulo:
Difusão Europeia do Livro, pp. 245-251.
363 Id., Ib., Terceira parte. Para uma Cidade Educativa, pp. 253 ss.
364 Fondation Européene de la Culture. Fragnière, G. (1975).
L’Éducation crèatrice. Paris-Bruxelles: Elsevier Sequoia.
365 Conseil de l’ Europe (1987). Éducation des adultes et développe-
ment communautaire: Défis et réponses. Estrasburg.
366 União Europeia (1994). Livro Branco sobre Crescimento, Competi­
tividade, Emprego. Os Desafios e as Pistas para Entrar no Século
XXI. Luxemburgo: UE. / União Europeia (1995). Livro Branco
sobre a Educação e a Forma­ção. Ensinar e Aprender Rumo à
Sociedade Cognitiva. Luxemburgo: Serviço de Publicações
Oficiais das Comunidades Europeias.
367 UMDP, UNESCO, UNlCEF, World Bank (1990). World
Declara­tion on Education for All and Framework for Action to
Meet Basic Learning Needs. Jomtien, Thailandy, 5-9, Mars, 1990.
New York: UNICEF-House.
368 Delors, J., et Al. (1996). Rapport à I’UNESCO de la Comission in­
ternationale sur I’éducation pour le vingt et unième siècle, présidée
par Jacques Delors. L’ éducation. Un tresor est caché dedans. Pa­ris:
Ed. UNESCO - Ed. Odile Jacob.
369 Courrier Internacional (2005). Atlas da História Mundial. Vol.
I. Barcelona: Editorial Sol 90, pp.11-12.

388
370 Ib., pp. 13-23.
371 Gomes, Álvaro (2000) Heúresis. Por uma Genealogia/Arqueologia
das Ciências da Educação. Ensaio de Metadidáctica. Lisboa:
Didáctica Editora, p. 414.
372 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, -cola, colon-, culto.
373 Ib., mei-.
374 Madeira, C. F. in Sol, Tabu, 04-11-2006.
375 Faure, E. et Al. Op. cit., pp. 54-55.
376 Suau Puig, J. “Guerras e conflitos armados, 1980-2004”. In
(2005). História Universal. Vol. 20. Fim de século. Os Grandes
temas do século XXI. Editorial Salvat-Público, p. 72.
377 Gresh, Alain et Al. (2003). Atlas da Globalização (Le Monde di-
phomatique). Lisboa: Campo da Comunicação SA, p. 87. No
que diz respeito á URSS, China e Cambodja, ver ainda “Special.
Archives inédites. Les crimes cachés du communisme. De
Lenine à Pol Pot”. In L’Histoire (Paris: Société d’ éditions scien-
tifiques), nº 324. Octobre 2007, pp. 32-80.
378 UNESCO. World Conference on Adult Education, Montreal,
Canada, 21-31 August, 1960. Final Report. Paris. Annex II, nº 4,
nºs 1-11, pp. 1-2.
379 Ib., Annex II, nº 11, p. 2.
380 Ib., p. 8.
381 Ib.
382 Ib., p. 12; Annex II, nºs 15- 20, p. 3.
383 Ib., Annex II, nº 13; nºs 12-14.
384 Ib., p. 27.
385 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, fi(a)-.
386 Ib., jact-.
387 Toffler, Alvin (1970). Future Shock, by A. Toffler.Trad. port. (s/
d). O Choque do Futuro. Lisboa: Bertrand. O Autor conta como
lhe ocorreu a expressão “Choque do Futuro” em 1965 (p. 8) e
como investigou o seu conceito nos anos seguintes (pp. 479-
480). Dedica ao nosso tema o cap. XVIII – Ensino no Futuro
do Indicativo (pp. 391-419).

389
388 Friedman, Th. L. (2005). The world is flat. A Brief History of
the Twenty-First Century. Trad. port. (2006). O Mundo é Plano.
Uma História Breve do Séc. XXI. Lisboa: Actual Editora.
389 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, hum-, homini(i)-,
human(i)-.
390 Gomes, Álvaro. Op.cit., p. 416.
391 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, soci-, pan(i)-, camer-.
392 Ib., mei-.
393 PNUD (2004). Relatório do Desenvolvimento Humano 2004.
Liberdade num Mundo Diversificado. Queluz: Mensagem –
Serviço de Recursos Editoriais, p. 129.
394 Arizpe, L. “Cultural Heritage and Globalization”. In Erica
Avrami, Randall Mason, and Marta De La Torre (Ed.s)
(2000). Values and Heritage Conservation. Los Angeles: Getty
Conservation Institute.
395 PNUD, Op.cit., p. 89.
396 UNESCO (2001). Declaração Universal sobre Diversidade
Cultural, Artº. 144.
397 PNUD, Op.cit., p. 1.
398 Ib., p. 82.
399 Ib., pp. 67-69.
400 Ib., p. 63.
401 Ib., pp. 60-65.
402 Ib., p. 57.
403 Ib., p. 48.
404 Ib., pp. 49-50.
405 Ib., pp. 52-55.
406 Comissão Mundial para a Cultura e Desenvolvimento (1995).
In Ib., p. 91.
407 Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas (2003).
In Ib., p. 91.
408 Mahatma Gandhi (1921). In PNUD, Op. cit., p. 85.
409 ONU (1989). Convenção sobre os Direitos da Criança, Preâmbulo.
410 UNESCO. Recommendation on the development of adult educa-

390
tion adopted by the General Conference at its nineteenth session,
Nairobi, 26 November, 1976. Paris. Trad. port. Braga: U. M.
(1977) e Lisboa: DGEP (1978), 3, a); 4, a) -d).
411 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mei-.
412 Nelson Mandela. “Diversidade – de divisiva a inclusiva”. In
PNUD (2004). Op. cit., p. 43.

CapítuloVIII

413 UNESCO. World Conference on Adult Education, Montreal,


Canada, 21-31 August, 1960. Final Report. Paris.
UNESCO Rapport Final, Troisième Conférence Internationale sur
l’éducation des adultes réunie par l’Unesco, Tokio, 25 Juillet - 7
Août, 1972. Paris, pp. 11-12, p. 17.
414 Entre outros, ficaram célebres as marés negras de Torrey Canyon,

em 1967, de Amoco Cadiz em 1978 e do Alasca em 1989; a fuga


de produtos tóxicos em Bhopal, 1984; o desastre da central nu-
clear de Chernobil, 1986.
415 De algum modo ligado ao Programa da ONU para o Ambiente

(PONUA), elaborado em cooperação com a UNESCO, a OMS,


a FAO, a OMM (Organização Meteorológica Internacional), o
Banco Mundial, Governos e Organizações Internacionais, que
se tornou responsável pelo Plano Vigia do Ambiente, tem sur-
gido um grande número de Convenções, Acordos e Protocolos
sobre a defesa do ambiente à escala regional e mundial, de entre
os quais cumpre salientar o Protocolo de Kioto.
416 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, biocoro, bioma.
417 Al Gore (2006). An Inconvenient Truth. The Crisis of Global

Warming. Trad. port. (2007). Uma verdade inconveniente. A crise


do aquecimento global. Lisboa: Gradiva. Ver também os quatro
relatórios globais de recolha, interpretação e avaliação de toda a
produção científica sobre as alterações climáticas (1990, 1995,
2001, 2006) produzidas pelo Painel Intergovernamental para
as Alterações Climáticas (na sigla em inglês, IPCC). A atribui-

391
ção do Prémio Nobel da Paz de 2007, que acaba de ser feita
a Al Gore, em paridade com o IPCC, testemunha o reconhe-
cimento da Comunidade Planetária pelo esforço realizado na
apresentação de provas acerca do aquecimento global e das suas
consequências.
418 Ban Ki-Moon, in Público, 9 Dez. 2007, p. 47; 16 Dez. 2007, p.
16.
419 Morin, E. (1999). La tête bien faite. Paris: Éditions du Seuil.
Trad. port. (2002). Repensar a Reforma. Reformar o pensamento.
A Cabeça Bem Feita. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 61-69.
420 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, agonia, agon(o)-, ped-.
421 Sasot Mateus, A. “O processo da globalização”. In (2005)
História Universal. 20. Fim de Século. Os grandes temas do século
XXI. Barcelona: Edit. Salvat-Público, p. 174.
422 Beck, U. (1992). World Risk Society. Cambridge. / Ohmae, K.
(1995). The End of the Nation State. N.Y. / Huntington, S. P.
(1996). The Clash of Civilizations and the Remaking of World
Order. N.Y. / Dicken, P. (1998). Golbal Shift: Transforming the
World Economy. Londres.
423 Held, D.; Mcgrew, A.; Goldblatt, D.; Perraton, J. (1999). Global
Transformations. London. / Shoolte, J. A. (2000). Globalization.
A Critical Introdution, London.
424 Stiglitz, Joseph E. (2002). Globalization and its Discontents.
New York. Trad. port. (2002). Globalização. A grande desilusão.
Lisboa: Terramar, p. 23, pp. 298-299.
425 Cooper, Robert (2003). The breaking of Nations. Grove Atlantic,
Ltd. Trad. port. Ordem e Caos no séc. XXI. Lisboa: Editorial
Presença. / Suau J., Tugores, J.; Vilanova P.; Sasot, A.; Gil, M.
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Resumo, feito pelo Autor e publicado em The New York Times,
27-01-2008. Trad. port. In Courrier Internacional, Abril 2008,
pp. 36-44, ver pp. 37 e 43.

392
426 Stiglitz, Joseph E., Op. cit., pp. 299-300.
427 Friedman, Th. L. (2005). The World is Flat. A Brief History of
the Twenty - First Century. N. Y. Trad. port. (2005). O Mundo é
Plano. Uma História Breve do Século XXI. Lisboa: Actual Editora;
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428 Conferência das Nações Unidas para o Comércio e
Desenvolvimento (CNUCD). Relatório 2007.
429 Gribbin, J. (2002). Science – A history 1543-2001. John and
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Cooper, R. (2003). Op. cit., p. 10.
430 Küng, Hans (2004). Spurensuche. Die Weltreligionen anf dem
Weg. Verus Edit. Trad. port. (2005). Religiões do Mundo. Em
busca dos pontos comuns. Lisboa: Multinova, p. 179
431 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mor-, éthos, êthos, et(o)-.
432 Shirin Ebadi. “Os direitos humanos incorporam os valores fun-
damentais das civilizações humanas”. In PNUD. Relatório do
Desenvolvimento Humano 2004. Lisboa: Mensagem, p. 23.
433 Küng, Hans. Op. cit., p. 280.
434 ONU. World Comission on Culture and Development, 1995.
435 Morin, Edgar (1999). Les sept savoirs nécessaires à l’éducation du
futur. Paris: UNESCO. Trad. port. (2002). Os sete saberes para a
educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 113-123.
436 Declaração Universal dos Direitos do Homem, Preâmbulo e art. 2º.
437 Hannoun, H. (1995). Comprendre l’Éducation. Introduction à la
philosophie de l’éducation. Paris: Éditions Nathan, pp. 227-228.
438 Fullat, Octavi (2005). Valores y Narrativa. Axiologia educativa de
Occidente. Barcelona: Universitat de Barcelona: Publicacions i
Edicions, p. 500.
439 Id., Ib., p. 501.
440 Gomes, A., Op. cit., p. 421.
441 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, empir-, perig-.
442 ONU (1948). Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Preâmbulo.

393
443 Id., Ib.
444 PNUD, Relatório do Desenvolvimento Humano 2004. Liberdade
Cultural num Mundo Diversificado. Lisboa: Mensagem, p. 90.

394
Índice

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 7

CAP. I
Educação: transformações, problemas, questões
metodológicas

1. As transformações do sistema educativo................................ 13


Atribuição de prioridade estratégica à educação.......................................................... 14
Reformas, contestação e crise da educação escolar....................................................... 14
Desenvolvimento da revolução da educação de infância............................................. 16
Educação de adultos e “revolução pedagógica”............................................................ 17
O novo paradigma da educação ao longo da vida....................................................... 18
O enquadramento: educação comunitária................................................................. 20
O contexto: educação ecossistémica............................................................................ 21
Coordenadas do novo conceito de Educação............................................................. 23

2. Os problemas: do ensino à educação........................................... 24


As grandes decepções................................................................................................. 24
A responsabilidade da condução do processo............................................................. 27
Escola: as “coisas” e o binómio educação e economia................................................ 30
Ensino: as pessoas e a relação entre educação e comunidade...................................... 36
Formação: os valores e o rumo do processo educativo............................................... 40

3. Questões metodológicas................................................................... 43
Experiência: curiosidade-dúvida-reflexão-espírito crítico........................................... 44
Pensamento complexo................................................................................................45
Atitude questionadora............................................................................................... 48
A “mêtis”................................................................................................................... 49
A serendipidade..........................................................................................................52
À guisa de conclusão sobre o Método ou Caminho....................................................57
CAP. II
Declaração Universal dos Direitos do Homem. O Caminho
entre dois Mundos

1. O “Advento do Mundo” dos Valores............................................. 60


Experiência da “mais alta aspiração do Homem”........................................................61
“Fé-compromisso” à procura de uma “concepção comum”........................................ 64
A meta do “ideal comum” e o caminho do “ensino e educação”................................ 69

2. O ser humano a caminho..................................................................... 72


Estar e Passar..............................................................................................................74
Saber e Crer............................................................................................................... 75
Agir e Seguir...............................................................................................................76

3. Coordenadas essenciais do Cam. da Educação........................... 78


O Grande Teatro do mundo das coisas...................................................................... 78
O estatuto das Pessoas membros da Família Humana................................................ 79
A Dignidade Humana fonte de Direitos e Deveres.....................................................83
A “Polis” dos Valores como Meta a alcançar pelo regime de Direito.......................86
A Educação como Caminho a seguir......................................................................... 88

CAP. III
Educação escolar: reformas, contestação e crise

1. As “reformas educativas” de meados do séc. XX..................... 96


Génese e desenvolvimento da instituição escolar....................................................... 96
As grandes reformas do século XX............................................................................. 98

2. A contestação: cultura, contraculturas e subculturas..


.................................................................................................................................100
A nova “classe social” da juventude e a deslocação da cultura...................................102
A “era de ouro” e as contra-culturas.......................................................................... 105
A crise económica e as subculturas, tribos e redes.....................................................108
O tempo das ciberculturas.........................................................................................110
3. “A crise mundial da educação” nas suas diversas dimen-
sões.............................................................................................................................. 111
Os sintomas gerais da crise......................................................................................... 111
Economia: as coisas ao serviço das pessoas.................................................................117
Sociedade: as condições para que as pessoas cresçam................................................ 120
Cultura: a realização das pessoas nos valores............................................................. 123
Do subsistema escolar ao sistema educativo.............................................................. 126

CAP. IV
Educação da infância ou da adolescência? Uma revolução em
marcha

1. As crianças tratadas como “coisas...............................................130

2. O reconhecimento da dignidade e dos direitos da


criança...............................................................................................................136
Da criança “objecto” à criança “sujeito” de direitos...................................................136
A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).................................................... 139

3. A longa revolução da educação de infância


A educação antiga pela violência............................................................................... 143
A Revolução da “Escola Nova” e o” Século da Criança”............................................ 147
A Nova Revolução da Educação e o “Século do Adolescente”................................... 150

CAP. V
Educação de Adultos. A “revolução pedagógica

1. A formação contínua........................................................................... 165


2. A alfabetização e as suas metamorfoses..................................168
Alfabetização …....................................................................................................... 170
… funcional …........................................................................................................ 171
... em função do desenvolvimento integrado ….......................................................172
… em função do crescimento do Homem ….......................................................... 175
… alfabetização e iniciação aos códigos....................................................................179

3. O que é a Educação de Adultos (Nairobi, 1976).........................181


Definição.................................................................................................................. 182
Objectivos................................................................................................................ 182
Conteúdos ............................................................................................................... 183
Organização..............................................................................................................184
Métodos................................................................................................................... 185

4. Relação intrageracional: ética e “revolução pedagógi-


ca” (P. Freire)..................................................................................................... 187
Revolução violenta e revolução não violenta............................................................. 189
Pedagogia bancária e pedagogia problematizadora....................................................190
A “revolução pedagógica”...........................................................................................191

5. Relação intergeracional: a caminho da “revolução


paradigmática................................................................................................ 192
Educação de adultos de tipo supletivo...................................................................... 193
Educação de adultos de tipo funcional.....................................................................194
Educação de adultos de tipo preventivo....................................................................196

CAP. VII
Educação ao Longo da Vida: o desenvolvimento de cada ser
humano

1. Emergência do novo conceito de educação ao longo


da vida............................................................................................................... 202
Até 1950: a educação (escolar) como processo de preparação para a vida................. 203
Década 50: a educação de adultos como “novo sector” da educação.....................204
Década 60: a educação de adultos como “a outra parte” do sistema educativo................206
Década 70: a educação de adultos como “a outra fase” do processo da educação ao
longo da vida........................................................................................................... 208
2. Educação ao longo da vida: transição, definição e
fases..............................................................................................................210
“Processo global e contínuo” (Conferência Mundial de Tóquio, 1972)......................211
”Noção fundamental” (Relatório da UNESCO, 1972)............................................. 212
Ensaio de faseamento (Fundação Europeia da Cultura, 1975)..................................213
A definição (“Recomendação” de Nairobi, 1976)......................................................214
As duas fases do processo (Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989)..............216

3. Fase da Educação de Adolescentes (0-18 anos):


a família e a escola......................................................................................217
O tempo: da menoridade à maioridade....................................................................218
O lugar: a família e a escola..................................................................................... 222
O conceito de educação de adolescentes e as suas dimensões . ................................ 228
Metodologia: “de forma compatível com o desenvolvimento”, “a orientação e os con-
selhos adequados”.....................................................................................................233
Critério supremo: “o superior interesse da criança”( adolescente)..................................237

4. Fase da educação de Adultos: a vida e a universidade 240


O tempo: da juventude à senectude......................................................................... 240
O lugar: a Família Humana e a Universidade.......................................................... 243
O conceito de educação de adultos e a investigação universitária..................................245
Metodologia: a relação especialista/generalista......................................................... 248
Critério último: a realização pessoal do adulto..........................................................250

5. A educação ao longo da vida como processo de desen-


volvimento pessoal.................................................................................... 251

CAP. VIII
Educação Comunitária: o desenvolvimento da Família
Humana

1. Sentido, emergência e actualidade do conceito............... 260


O sentido de educação comunitária......................................................................... 260
Emergência do conceito ao nível das comunidades-base.......................................... 263
Expansão do conceito ao nível nacional, regional e mundial................................... 265

2. A condição humana e a utilização das coisas.................... 267


Diáspora planetária, civilizações e culturas............................................................... 267
Muros, armas e guerras............................................................................................ 270
A sobrevivência da Humanidade............................................................................. 273

3. A Cidadania Terrestre e a relação entre as Pessoas............... 276


Os desafios............................................................................................................... 277
Os projectos............................................................................................................. 278
A Cidadania Terrestre.............................................................................................. 280
Os níveis de relação entre as pessoas........................................................................ 283

4. A Família Humana e a Comunhão nos Valores...................... 286


Valores materiais ao serviço das pessoas................................................................... 287
Valores pessoais e inclusão cultural.......................................................................... 289
Valores transcendentes e prioridade aos mais desfavorecidos.................................... 294

CAP. VIII
Educação ecossistémica: a realização do Homem no Universo

1. Ecúmena I: assegurarmos a todos as condições de vida......


302
A degradação das condições de vida e a morte lenta da Terra................................... 303
A ecologia sectorial e as perturbações nos ecossistemas............................................ 305
A ecologia global e o “efeito estufa”.......................................................................... 307

2. Ecúmena II: crescermos todos em todas as dimensões.........310


O “mundo global” e o desenvolvimento socioeconómico..................................................313
O “mundo plano” e o desenvolvimento técnico, científico e sapiencial............................ 320
O “mundo axial” e o desenvolvimento moral e ético........................................................ 324
3. Ecúmena III: até nos realizarmos todos nos Valores..... 329
A dignidade humana................................................................................................332
A Verdade ................................................................................................................335
A Justiça................................................................................................................... 344

CONCLUSÃO................................................................................................................ 349
NOTAS............................................................................................................................ 363
EDUCAÇÃO

O Caminho da Nova Humanidade: das Coisas às Pessoas e aos Valores – José Ribeiro Dias

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