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Futuros da Educação: Saber reinventar a escola

sem a destruir, sem a diminuir


Jorge Ramos do Ó, José Pedro Serra, ambos da Universidade de Lisboa e Nina Stocco
Ranieri, da Universidade de São Paulo, refletem para o DN sobre os futuros da educação,
num exercício de antevisão da conferência que decorre esta sexta-feira em Lisboa.

Jorge Andrade
27 Outubro 2023 — 07:00

Jorge Ramos do Ó © DR
No âmbito dos trabalhos da Cátedra UNESCO - Futuros da Educação, decorre até maio de
2024 um ciclo de conferências que se propõe debater e refletir os caminhos para reinventar
a escola. Os encontros, de carácter mensal, no Instituto de Educação da Universidade de
Lisboa, contam esta sexta-feira com um novo momento e a presença de um trio de
palestrantes comprometidos com a reflexão sobre os desafios que se colocam à escola, aos
alunos e aos docentes neste século XXI.
Jorge Ramos do Ó e José Pedro Serra, da Universidade de Lisboa, e Nina Stocco Ranieri, da
Universidade de São Paulo, participam numa sessão coordenada por António Sampaio da
Nóvoa, doutor em Educação e em História. O também titular de uma Cátedra UNESCO sobre
os futuros da educação sintetiza o espírito que orienta o ciclo de conferências em apreço:
"gosto de imaginar um professor que, mesmo com o mundo prestes a acabar, continuaria a
educar os seus alunos até ao último segundo. A nossa profissão é diferente de todas as
outras. Também na ética, na solidariedade e na relação com o futuro. Talvez este ciclo de
conferências pudesse adoptar como lema uma frase de Vladimir Jankélévitch - "A liberdade
é mais do que livre, é libertadora"".

A anteceder o encontro Futuros da Educação, ao qual se associa o Diário de Notícias,


convidámos o trio de conferencistas a refletir sobre alguns dos temas que levarão ao
Anfiteatro I do IE-ULisboa, a partir das 15.00 (também em direto pelo canal Youtube da
UNESCO Brasil).

"Um novo pacto social para a educação e a transformação do modelo de ensino"


Jorge Ramos do Ó, Professor Catedrático do Instituto de Educação da Universidade de
Lisboa, enfatiza a imprevisibilidade do provir, "num tempo e numa geração que, pela primeira
vez na história da humanidade, admite que o futuro é incerto, imprevisível e que o mundo
está em risco de colapso total".

Face ao exposto, o docente recua a fita do tempo para nos recordar que "até não há muitas
décadas, a legitimidade da universalização da escolaridade - que se concretizou na
gigantesca operação de transformação de cada criança em aluno ao longo, sobretudo, do
século passado - residia justamente na perpetuação das instituições, num grau de grande
previsibilidade tanto da economia, como do trabalho ou da vida das populações no
território".

Neste contexto, o que significava aprender? perguntamos: "significava, tanto no plano da


aquisição de conhecimento, quanto da organização dos comportamentos, que o estado
presente e o próprio funcionamento do mundo fosse assimilado pelos mais novos, tal como
se apresentava em cada presente. Não raro se dizia que a escola devia ser uma sociedade
em miniatura, em que a vida era antecipada nas suas diferentes componentes de estudo, de
competição e seleção, da existência em comum ou mesmo da interiorização das regras
cívicas. Durante o percurso escolar cada um era encaminhado para encontrar o seu lugar
social e para nele se manter até ao fim dos seus dias. Os adultos diziam: "torna-te no que
deves ser", ou seja, "torna-te parecido comigo e com o que eu represento"".

Os tempos são outros, a realidade impõe novas respostas e soluções, caminhos que, para
Jorge Ramos do Ó, "implicam a necessidade de um novo pacto social para a educação e a
profunda transformação do modelo de ensino. Temos mesmo de perceber e de nos pormos
de acordo, enquanto sociedade, sobre quais as tarefas que temos pela frente perante os
atuais enigmas do mundo. Estamos numa situação que, aliás, me parece muito próxima da
que se viveu na Grécia Antiga, que se traduziu no nascimento da própria Filosofia e do
trabalho sobre a Razão como modo de existência. Esse espanto perante o cosmos, essa
necessidade nunca terminada de o decifrar que então os acompanhou constituem também
o nosso desafio hoje. A educação escolar joga aqui um papel determinante, não tanto para
alimentar uma narrativa dominante do crescimento exponencial, seja ele qual for, mas, antes,
para generalizar a democratização do gesto criativo e inventivo".

Para Jorge Ramos do Ó, "uma escola digna do nosso tempo deve ser aquela que inventa o
tempo da espera, quero dizer, o do trabalho intenso no aqui e no agora, na concentração em
torno das possibilidades que se jogam entre uma pergunta e uma resposta. Os alunos terão
de ser convidados a mergulhar em problemas cujas respostas ainda não conhecem nem
estão postas no programa ou no manual escolar, a fim de, desde cedo, poderem construir
pontes com o desconhecido".

O docente do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa conclui o pensamento


anterior a afirmar que "temos urgentemente de construir uma escola da pesquisa e da
procura, de ir envolvendo todos os estudantes em tarefas que impliquem várias
possibilidades e escolhas, em processos de interligação e de mistura, processos estes que a
cada movimento se tornem mais desafiantes, exigentes e aprofundados. Certamente que
esta seria uma escola da disciplina e do trabalho, longe da vertigem e da aceleração da vida
actual. Aprender a desejar o desconhecido e a pensar sobre ele antecipadamente é a
condição primeira para não ter um medo existencial do futuro, enfrentando-o. O tema
pedagógico por excelência é o de trabalhar com os estudantes para desenvolver uma prática
da atenção que suspenda o tempo, se assim posso falar, e se centre no presente, nas
possibilidades que nele se abrem. Implica saber parar, suspender, refletir antes de avançar".

Sobre o papel do professor nestes novos contextos, o especialista em história da educação


e da pedagogia recorda que "pode parecer paradoxal, mas o nosso desafio hoje é o mesmo
de há cerca de 2.500 anos. O professor do futuro será aquele que se aproxima de Sócrates e
assume o seu legado, isto é, aquele que representa a pergunta e não a resposta certa.
Aquele que escuta o pensamento à medida que ele vai aparecendo na voz e na escrita do
seu estudante, incitando-o a cada momento a pensar mais sobre o que pensa".

"Os pilares fundamentais da educação são as ciências e as humanidades"


Também a José Pedro Serra, Professor Catedrático no Departamento de Estudos Clássicos
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, deixamos a questão sobre o futuro da
educação não a destituindo do contexto atual de incerteza, imprevisibilidade e de grande
avanço tecnológico: "Prever o futuro é sempre matéria difícil e horizonte de muitos enganos.
Sobretudo numa época, como a nossa, de aceleradas mudanças, de incertezas políticas, de
um prodigioso avanço tecnológico, de graves questões ambientais e de desorientação da
inteligência e da cultura - se quiser usar este termo. A confusão e a desorientação são tais
que não seria difícil encontrar alguns traços apocalípticos na poeira levantada. Mas a
educação não deve seguir as poeiras do momento, nem os estilhaços de um tempo. E seria
grave erro supor ou imaginar um futuro de perfil muito definido - sempre ilusório - em vista
do qual se forjasse a adequada educação. Educar não é dar certezas de futuro; educar é
orientar a inteligência, sem a domar; é acordar e fomentar a atitude crítica, sem cair no logro
da permissividade do indiferentismo opinativo. Educar, creio, é, em última análise, devolver a
cada um a aventura inalienável do seu pensamento e da sua vida. Com a mestria de quem
sabe apontar caminhos - não mais do que isso - e colocar perguntas e aporias. A melhor
preparação para um futuro incerto é estimular inteligências livres e críticas. E, nesse sentido,
educar é um ato amoroso..."

José Pedro Serra © DR


Na intervenção que leva à conferência de hoje, José Pedro Serra, propõe-se abordar, entre
outros, o tópico: "orientar e promover a inteligência mais do que a erudição ou a estrita
competência técnica". Cabe-nos a pergunta: Promovemos um modelo de educação que não
convida a refletir, relacionar e a questionar? "Tenho profundo respeito pela erudição, isto é,
pelo duro trabalho "de secretária", pela imensa exigência da seriedade do saber, trabalho que
ocorre ora em profunda solidão, ora na comunhão austera de um grupo. Mas a erudição não
chega. Tal como não chega a estrita competência técnica. A erudição só se transforma em
saber e sabedoria no diálogo vivo com a realidade que nos acolhe e nos convoca. Sem isso,
a erudição é um pomposo discurso estéril que nos distrai. Só uma inteligência livre, reflexiva
e crítica é capaz desse diálogo com a realidade".

Que papel cabe aos professores neste contexto? Diz-nos o docente: "Aos professores cabe
fomentar a inteligência livre, reflexiva e crítica; despojando-se de falsas autoridades, sem
perder a autoridade da sua orientação, sem a qual não há educação. Nem sempre é fácil,
reconheço. Na universidade, um dos maiores perigos atuais é a pressa, a falta de tempo de
maturação e a burocracia. É necessário dar tempo a que cada um vá percorrendo o seu
caminho e vá encontrando as pedras que o habitam. Mas a urgência da "aquisição de
competências", a pressão do emprego futuro e do mercado de trabalho, a necessidade de
publicar o mais cedo que se puder e na maior quantidade possível; tudo isto é deformador".

Ganharia a escola em reencontrar os caminhos de uma educação clássica e humanística?


Responde-nos José Pedro Serra: "Mesmo num mundo altamente tecnológico, os pilares
fundamentais da educação são as ciências e as humanidades. E estas não estão sujeitas a
finalidades pragmáticas ou utilidades. É esta a sua força. Afirmar isto não é já inocente
quanto à compreensão da nossa existência. Dito isto, não tenho dúvidas em afirmar a
importância das humanidades e da tradição. A tradição não é deixarmo-nos congelar num
passado petrificante. A tradição é estar consciente de um testemunho que se recebe e abrir-
se a um tempo futuro. Esquecer isto, esquecer esta memória, é uma ingénua infantilidade.
As humanidades acolhem um diálogo insubstituível e irredutível do homem com a realidade,
sem o qual sairíamos mutilados. E nesse sentido é o mais vivo sopro que as anima. E por
isso reclamam, exigem, uma autenticidade que ultrapassa os jogos de aparência "culta" e as
habilidades meramente mentais e descarnadas".

"Da escola espera-se que forme indivíduos e cidadãos que tenham habilidades cognitivas e
emocionais"
Face a uma intervenção que tocará em temas como o "ensino de qualidade, universalizado e
gratuito para todos", Nina Stocco Ranieri, Professora Associada do Departamento de Direito
do Estado, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, adianta que a "educação
básica de 11 anos, pública, gratuita e universalizada é uma meta já alcançada em vários
lugares do mundo, inclusive no Brasil, onde é garantia constitucional desde 1988. A
qualidade da educação básica, em todos os níveis - infantil, fundamental e médio - depende
de vários fatores internos e externos à escola. Entre eles, são essenciais a formação e treino
de professores, fortalecimento da carreira docente, políticas pedagógicas e material didático
adequado, profissionalização da gestão escolar. Para avançar a qualidade em escala é ainda
necessária a modernização da gestão dos sistemas educacionais - no Brasil, são mais de
5.000, considerados os sistemas estaduais e municipais, além do federal - o financiamento
adequado, o investimento na primeira infância, com atendimento integral da criança;
colaboração entre estados e municípios para melhoria da alfabetização, mudanças no
ensino médio. São políticas de longo prazo, que transcendem mandatos eleitorais e exigem
continuidade", sublinha a docente.
Nina Stocco Ranieri © DR
Presentemente vivemos num mundo de situações inéditas, onde podemos incluir, entre
outras, a crise climática, os desafios da inteligência artificial, questões ligadas à identidade
de género. Face a isso, podemos perguntar o que esperar da escola enquanto formadora de
cidadãos capazes de assimilar e enfrentar estes contextos? "Para além das questões que
refere, incluo outras que ainda não conhecemos, particularmente em face do contínuo e
acelerado desenvolvimento das tecnologias digitais. Da escola espera-se que seja capaz de
formar indivíduos e cidadãos que tenham habilidades cognitivas e emocionais para aprender
a conhecer, o que implica combinar cultura geral com assuntos mais específicos. Também
indivíduos capazes de fazer, possivelmente com mais de uma qualificação profissional; e a
conviver, desenvolvendo a compreensão do outro e os valores do pluralismo. Acresce o agir
com autonomia. Além disso, é necessário investir na educação para a cidadania global, algo
enfatizado pela UNESCO, que compreende a educação para a paz, os direitos humanos e a
democracia".

Sobre que professores procuramos face aos horizontes expostos anteriormente, diz-nos
Nina Stocco Ranieri que "a formação de docentes nessa direção é um dos grandes desafios
do momento, mas não apenas. Eles são afetados pelas mudanças, pelos desafios, deles se
exigindo contínua atualização de conhecimentos e competências. É essencial a valorização
da carreira e a remuneração condigna, com estratégias que lhes permitam atualizar-se. A
UNESCO já anunciou que em 2030 haverá uma falta de cerca de 69 milhões de professores
em todo o mundo, impedindo a universalização da educação básica. No Brasil, a estimativa
para 2024 é de um défice de cerca de 235.000 professores licenciados. Salários baixos, falta
de estrutura e desvalorização social têm sido apontados como os principais fatores que
prejudicam o interesse pela carreira docente".

O Ciclo de Conferências: Futuros da Educação prosseguirá depois a 24 de novembro, com a


presença de Leonardo Garnier, conselheiro especial do Secretário-Geral das Nações Unidas
para a Cimeira para a Transformação Educacional.
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