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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS DEPARTAMENTO


DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – DCIS
CURSO BACHARELADO EM DIREITO

SINTIA NASCIMENTO FERREIRA

DIREITO AO TERRITÓRIO: UMA ANÁLISE JURÍDICA DOS CONFLITOS


POSSESSÓRIOS NA COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA DE
SANTIAGO DO IGUAPE.

Feira de Santana
2023
SINTIA NASCIMENTO FERREIRA

DIREITO AO TERRITÓRIO: UMA ANÁLISE JURÍDICA DOS CONFLITOS


POSSESSÓRIOS NA COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA DE
SANTIAGO DO IGUAPE.

Monografia apresentada ao curso de graduação


do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas
da Universidade Estadual de Feira de Santana,
como requisito para obtenção do título de Bacharel
em Direito.

Orientador: Professor Dr. Paulo Rosa Torres

Feira de Santana
2023
DIREITO AO TERRITÓRIO: UMA ANÁLISE JURÍDICA DOS CONFLITOS
POSSESSÓRIOS NA COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA DE SANTIAGO
DO IGUAPE.

Monografia apresentada como requisito necessário para a obtenção do grau de


Bacharel em Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS, pela
seguinte banca examinadora.

___________________________________________________________________
Prof. Dr .Paulo Rosa Torres - Orientador Universidade Estadual de Feira de
Santana - UEFS

___________________________________________________________________
Profa. Msc. Mirna Silva Oliveira - Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS

___________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Medrado Nascimento - Universidade Estadual de Feira de Santana
- UEFS

Resultado: __________________________

Feira de Santana
2023
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho aos meus pais, LUCIENE e ADEMIR, registro a minha
homenagem e agradecimento por tudo que fazem por mim. Vocês são os Melhores!

AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus, que me apresentou pessoas excelentes ao longo
desse percurso, onde em cada dificuldade vencida, eu entendesse que não seria
fácil, porém, valeria a pena acreditar e persistir. E vos digo, como essa persistência
valeu a pena! Acredito que nada nessa vida acontece sem a permissão de Deus,
pois ele nunca levou-me, onde a sua graça infinita, não pudesse me guiar.
GRATIDÃO.
Aos meus pais, LUCIENE e ADEMIR, alicerces da minha formação pessoal,
pois não há motivação maior do que seus exemplos de vida! E por não medir
esforços para contribuir para esse momento acontecer. A vocês minha imensa
Gratidão.
Aos meus irmãos com os quais compartilho o fruto de muita dedicação, o
qual não teria conseguido, ou não teria o mesmo sabor sem a presença e apoio de
vocês, amores eternos!
A minha sobrinha Isabella, que nos meus momentos de tensão, com a
escrita da dissertação, batia na porta do meu quarto e me perguntava se eu podia
ensinar-lá suas atividades da escola, e eu rapidamente respondia, não posso, estou
concentrada nas minhas leituras, e ela com seus sete aninhos e seu poder
persuasivo argumentava, mas eu nao sei fazer sozinha, e eu dava uma pausa no
meu tempo para ensiná la, porque conhecimento bom é conhecimento
compartilhado. E não tem nada mais gratificante em ensinar o pouco que se sabe
aqueles que querem aprender.
A minha comunidade remanescente de quilombo, Santiago do Iguape,
pautada numa história de luta e resistência que resistiu e resiste ao tempo! Portanto,
aos meus ancestrais que deram origem a minha linhagem e, assim, possibilitaram a
minha chegada até aqui. MINHA ETERNA GRATIDÃO!
Ao meu Orientador Paulo Rosa Torres, por sua larga experiência, paciência,
compreensão, correções, sugestões e direcionamento, fazendo desta pesquisa um
relevante trabalho. Deixo aqui registrado a minha GRATIDÃO.
Gratidão a Universidade Estadual de Feira de Santana, por me abrir as
portas do saber acadêmico.
Ao professor Pedro Diamantino pela cooperação com o material didático
sobre a comunidade, e que junto com os diversos outros materiais enviados pelo
meu orientador, ajudou de forma imprescindível para o desenvolvimento deste
trabalho. Muito Obrigada!
Não poderia deixar de agradecer aos colegas da minha eterna “equipe de
sempre”, por serem tão acolhedores, parceiros, solidários, pelas risadas e pelo
amparo nos momentos difíceis ao longo desses semestre.
Aos meus familiares, em especial minha tia Adenildes que acreditou e
amadureceu esse sonho, a minha avó Maria com sua vasta sabedoria, de suas
memórias históricas sobre o território do qual pertencemos, contribui e muito para os
esclarecimentos das dúvidas que surgiam no decorrer desse percurso.
A todos os amigos e colegas que me acompanharam durante essa trajetória,
deixado a mais leve.
“Por menos que conte a historia; Eu nao te
esqueço meu povo; Se palmares não existe
mais; Faremos Palmares de novo”. (Trecho
do poema de José Carlos Limeira).
RESUMO
O objetivo deste estudo é descrever o processo de construção identitária e a
formação política organizacional no autorreconhecimento da comunidade de
Santiago do Iguape, enquanto território quilombola. Aliada a uma história marcada
por lutas e resistência dos seus antepassados no período escravocrata, vivenciado
pela sociedade brasileira. Atualmente a comunidade enfrenta constantes ameaças
de desterritorialização, por meio de conflitos possessórios com fazendeiros locais
que detém o domínio de uma boa parcela de terras da região. O interesse do Estado
em nome dos grandes empreendimentos construídos nas proximidades do território
contribui para o processo moroso e burocrático na finalização da regularização
fundiária e a concessão do título à comunidade como remanescente de quilombo.

Palavras-chave: Território Tradicional. Remanescentes. Luta. Resistência.


Identidade.

ABSTRACT
The objective of this study is to describe the process of identity construction and
organizational political formation in the self-recognition of the community of Santiago
do Iguape, as a quilombola territory. Allied to a history marked by struggles and
resistance of their ancestors in the slavery period, experienced by Brazilian
society.The community currently faces constant threats of deterritorialization, through
possessory conflicts with local landowners who own a good portion of land in the
region. The State's interest in the name of large enterprises built in the vicinity of the
territory contributes to the lengthy and bureaucratic process in finalizing land
regularization and granting title to the community as a remnant of quilombo.

Keywords: Traditional Territory. Remnants. Fight. Resistance. Identity.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Imagem de satélite da comunidade de Santiago do Iguape Cachoeira,
Bahia...........................................................................................................................30
Figura 2 - Mapa das comunidades do vale do Iguape...............................................30
Figura 3 - Fotos da área da propriedade em litígio Judicial.......................................35
Figura 4 - Tabela elaborado pelo Incra sobre processos de RTID em aberto..........38

LISTA DE SIGLAS
AATR Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais
ABA Associação Brasileira de Antropologia
ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
CF Constituição Federal
CONAQ Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas
CRAS Centro de Referencia de Assistencia Social
FCP Fundação Cultural Palmares
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MDA Ministério de Desenvolvimento Agrário
OIT Organização Internacional do Trabalho
RESEX Reserva Extrativista
RTID Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFRB Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
UnB Universidade de Brasília
UPA Unidade de Pronto Atendimento
SNUC Sistema de Unidades de Conservação da Natureza

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................12
1.2 BREVE HISTÓRICO: SANTIAGO DO IGUAPE E O SEU RECONHECIMENTO
COMO COMUNIDADE QUILOMBOLA.....................................................................14
1.3 O que é ser quilombola: Identidade e Pertencimento.....................................13
1.4 Os caminhos percorridos no processo para o autorreconhecimento ,
reconhecimento e a demarcação do território.......................................................18
2. O DIREITO AO TERRITÓRIO TRADICIONAL COMO SÍMBOLO DE LIBERDADE.......21
2.1 Um Diálogo Normativo com os Artigos 231 CF e 68 ADCT............................22
2.2 É constitucional ou inconstitucional o Pagamento de Foro de Chão em
Território Quilombola?.............................................................................................24
2.3. A quem pertence o Território?........................................................................28
2.3.1 Reserva extrativista Baía do Iguape..............................................................32
3 ANÁLISES DAS AÇÕES POSSESSÓRIAS...........................................................33
3.1 O contexto da regularização fundiária na região............................................36
3.2 Conflitos Possessórios: Ameaças de Desterritorialização............................40
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................43
REFERÊNCIAS
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1 INTRODUÇÃO
“Pisando no meu chão, faço a Revolução”.
(AATR-BA, 2022)

O Território não apenas se define, mas se compreende à luz dos processos


históricos, políticos e socioespaciais. E por conta disso, o conceito fica exposto a
diferentes concepções autorais e dimensões constitutivas.
Haesbaert compreende o território como um processo de apropriação
simbólica do espaço como fenômeno territorial construtor de identidade.

O território envolve sempre, ao mesmo tempo (...), uma dimensão


simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída
pelos grupos sociais, como forma de controle simbólico sobre o
espaço onde vivem (Haesbaert, 1997, p. 42).

Neste sentido, a questão do território vai além do geógrafico por que ele é
também cultural, e aborda as dimensões simbólicas e a apropriação do espaço
através da identidade social. que nos leva a um olhar atento aos sujeitos que estão
envolvidos no seu processo de apropriação e o significado que este tem para eles.
De acordo com Haesbaert,

(...) o território e a territorialização devem ser trabalhados na


multiplicidade de suas manifestações – que é também e, sobretudo,
multiplicidade de poderes, neles incorporados através dos múltiplos
agentes/ sujeitos envolvidos. Assim, devemos primeiramente distinguir
os territórios de acordo com os sujeitos que os constroem, sejam eles
indivíduos, grupos sociais, o Estado, empresas, instituições como a
Igreja etc. As razões do controle social pelo espaço variam conforme a
sociedade ou cultura, o grupo e, muitas vezes, com o próprio
indivíduo. (HAESBAERT, 2004, p.3)

Na concepção de Little (1994), a expressão de territorialidade não se funda-


se apenas na figura de leis ou títulos, mas se mantém viva nos bastidores da
memória coletiva que compreende dimensões simbólicas e identitárias na relação do
grupo com sua área, dando profundidade e consistência temporal ao território.
É o que acontece com os territórios dos povos tradicionais, que se
fundamentam em décadas, em certos casos, séculos de ocupação efetiva. A longa
duração dessas ocupações fornece um peso histórico às suas reivindicações
movidas pela resistência em busca do direito ao acesso à terra de forma coletiva. As
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comunidades quilombolas auto identificam-se a partir de um território que expressa


uma maneira específica de organização da vida, traduzida na definição das áreas
para plantio, e de pesca, dotando o território de uma ordem jurídica particular e
intrínseca (CARDOSO, 2008; CARDOSO, SMITIZ e MOTTA, 2011). O território é,
portanto, reivindicado [...]. Compõem-se uma configuração espacial onde os
recursos da comunidade são explorados de forma organizada, em que os membros
de um determinado grupo têm direitos ao seu e controle. Esta apropriação é
construída no decorrer de gerações e está associada ao modo de vida, à cultura e à
identidade da comunidade. É o chão, aliado à identidade, que compõem o
sentimento de pertença.”Pertencer àquilo que nos pertence” é edificar “o lugar da
residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”(SANTOS;
SILVEIRA, 2001, p.19).
Compreender a organização histórica do território de Santiago do Iguape é
fundamental neste trabalho para construir uma compreensão de como se deu seu
processo de reconhecimento como comunidade quilombola e a sua manutenção do
direito à posse da terra através da demarcação do seu território e os seus laços
identitários desenvolvido ao longo do tempo, que preserva uma história e várias
relações. Explicar os conceitos de território tradicional trazidos por diversos autores
na busca de respostas para questões da burocratização dos procedimentos de
regularização fundiária e conflitos possessórios em terras ocupadas por
remanescentes quilombolas, buscando contribuir na preparação de cidadãos críticos
capazes de agir enquanto sujeitos na transformação da sociedade. O locus da
pesquisa busca descrever a história de luta dos remanescentes quilombolas pelo
direito coletivo ao acesso à terra e o domínio do território.
O texto está estruturado em três capítulos os quais estão expostas as
discussões sobre o objeto da pesquisa, análise e discussão da problemática. A
Introdução, apresenta o embasamento teórico conceitual da pesquisa, a
problemática e a justificativa, delineando os caminhos que levaram ao interesse por
estudar o tema em questão. No primeiro capítulo, aborda o contexto histórico da
organização territorial da comunidade de Santiago do Iguape, o seu processo para o
reconhecimento identitário e demarcação do território. No segundo capítulo, traz um
diálogo normativo com os artigos 231 e 68 ADCT/CF, o capítulo também destrincha
a inconstitucionalidade e a constitucionalidade da cobrança da taxa de foro em
território certificado pela Fundação Palmares.
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O terceiro capítulo trata da questão da regularização fundiária da região, os


conflitos que enfrentam pela posse da terra e a limitação de instrumentos políticos e
jurídicos à disposição frente a realidade de resistência 1 da comunidade. E por fim,
foram descritas as Considerações Finais.

1. 2 BREVE HISTÓRICO: Santiago do Iguape e o seu Reconhecimento como


Comunidade Quilombola

Santiago do Iguape está localizada no Vale do Iguape, município de


Cachoeira, Recôncavo da Bahia, cerca de 110 km da cidade de Salvador. A
comunidade quilombola fica às margens da Baía do Iguape, uma importante reserva
extrativista.

Santiago do Iguape era uns dos destinos para desembarque dos


escravos que, na África foram capturados e trazidos para o Brasil
com a finalidade de servir de mão de obra nas lavouras de cana-de-
açúcar, devido a quantidade de engenhos existentes na Bacia do
Iguape, a qualidade do açúcar produzido e a posição de destaque
frente a economia da Colônia (BARICKMAN, 2003).

Historicamente, Santiago do Iguape foi uma das freguesias mais importante


para a economia da província da Bahia, ao todo a região do vale do Iguape possuía
vinte e dois engenhos2 onde se produziu o cultivo da cana-de-açúcar, e que devido a

1 O significado de resistência, de organização política da comunidade em prol de sua efetiva


liberdade significa um grande passo em direção à autonomia e superação da relação de submissão a
que foi submetida desde aescravidão institucional e que, ao que parece, vem se tentando reproduzir.
"Com atividades fustigantes, os quilombos, se não vitoriosos, sempre se puseram a minar as forças
dos seus antigos senhores. Travaram uma guerra de desgaste e de longo tempo, com prolongamento
imprevisível. A Abolição formal da escravatura alcançou muitos quilombos. Com os desdobramentos
históricos e as novas instituições, os senhores de engenho foram lentamente se transformando em
latifundiários enquanto os quilombolas se tornaram camponeses pobres dos povoados rurais. Assim,
se outrora os quilombos se constituíram em instrumentos de desgaste do regime escravista, os
povoados rurais são também hoje um contraponto à expansão capitalista. A fidelidade às normas de
uso comum dos recursos naturais impede, por parte dos habitantes desses povoados, a repartição
das terras, inviabilizando novas terras como mercadoria sujeitas a atos de compra e venda. Em
outras palavras: são extensões de terras que não ingressam no mercado e permanecem, mobilizadas
pelos laços de coesão social que historicamente aproximam as famílias dos moradores. Os
quilombos não são assim ao contrário do que se poderia imaginar. transposições mecânicas de
hábitos tribais africanos. São, ao nosso ver, o resultado das próprias relações econômicas e sociais
que os criam.
2 Esses vinte e dois engenhos existentes no vale do Iguape, atualmente concentram-se as
comunidades quilombolas existentes na região são elas: Dendê, Kaonge, Calolé, Engenho da Ponte,
Calembá, Imbiara, Tabuleiro, São Francisco do Paraguaçu, Opalma, Caimbongo Velho, Tombo, Brejo
do Engenho da Guaíba, Engenho Novo do Vale do Iguape, Santiago do Iguape, Engenho da Vitória e
Engenho da Cruz. Sendo possível ainda, ver as ruínas do antigo engenho Central na comunidade,
vestígios do sistema escravocrata na região que remonta o período da ascensão açucareira.
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necessidade de mão-de-obra passou a receber um grande contingente de africanos


para o trabalho escravizado. Na epoca o número população de negros escravizados
passou a ser maior do que os de homens e mulheres brancos livres.

Embora os pardos e pretos livres e libertos compuseram, por ampla


margem, a maior parte dos moradores não-escravos do Iguape, os 37
senhores de engenho e lavradores abastados eram, com uma única
exceção, brancos, ou pelo menos assim classificados no censo
(BARICKMAN, 2003, p. 93)

Segundo Costa Machado (p.2, 2018), esses criaram e praticaram várias


estratégias de resistência, desde a queima de lavouras até aos encontros entre
fugitivos, que se reuniam e habitavam clandestinamente locais entre as fazendas.
Reis (1992) ainda acrescenta que “em Cachoeira, mais precisamente, no Iguape,
região onde se concentravam os grandes engenhos da Bahia, em 1814, houve
inúmeras revoltas de escravos”.
A promulgação da abolição da escravatura, em 1888, marca a decadência
decisiva da cultura da cana- de-açúcar na região, acompanhada da venda ou do
abandono de terras pelos senhores de engenho, como mostra Feijó (2003, p.23).
Em vez de grandes deslocamentos por parte dos escravos, houve a apropriação
efetiva de grandes propriedades que entraram em decadência ou faliram, assim
“aquilombando a casa grande” (LITTLE, 2002, p.5).
Sendo assim os então escravos recém libertos, passaram a habitar os
arredores das fazendas e engenhos, dando origem a formação e ocupação da
comunidade que hoje é reconhecida como remanescente de quilombo. Os então
moradores da comunidade são reconhecidos como quilombolas, mas isso não se
deve à condição de “negros fugidos” 3 que define o conceito de quilombo. Esse
conceito foi atribuído pelo conselho ultramarino português em 1740, que definiu
quilombo como toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte
desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles
(Leite, 2000). Portanto a definição de quilombo presente em Santiago do Iguape

3 Essa definição negros fungidoss encontra-se na Veja-se Lei Provincial nº 157 de 9 de Agosto de
1848, do Estado do Rio Grande do Sul e o artigo 12 da Lei n.o 236 de Agosto de 1847 da Assembléia
Provincial do Maranhão (ver Boletim... 1996).
16

tem a ver com a capacidade de grupos de negros da região de resistirem 4 ao tempo


e ao território permanecerem.

1.3 O que é ser Quilombola: Identidade e Pertencimento.

Na sociedade brasileira, a questão da identidade étnica tem se consolidado


em organizações de grupos que reivindicam o reconhecimento por meio da
demarcação e titularização do território que ocupam, como é o caso das populações
quilombolas, movimento que ganhou força e significação , com o Artigo 68 da ADCT.
Para Munanga (2015, p. 14):

Essa identidade é sempre um processo e nunca acabado, não é


construída no vazio, pois seus constitutivos são escolhidos entre os
elementos comuns aos membros do grupo: língua, história, território,
cultura, religião, situação social e etc. Esses elementos não precisam
estar concomitantemente reunidos para deflagrar o processo, pois as
culturas em diáspora têm de contar apenas com aqueles que
resistiram, ou que elas conquistaram em seus novos territórios.

Assim, pode-se compreender que a identidade étnica dos remanescentes de


quilombos é recriada pela memória das lutas de seus antepassados, “marca de uma
conjuntura histórica e forma primeira do seu processo de construção social e de
diferenciação face aos outros, que estruturou de forma complexa, as resistências à
dominação no presente século”. (ACEVEDO e CASTRO, 1998, p.161). No âmbito
jurídico o decreto nº 4887/2003 reforça a luta pelo reconhecimento identitário
defendendo como estratégia de sua legitimação a auto-identificação como
remanescentes das comunidades de quilombos, que são grupos étnicos raciais
segundo critérios de autoatribuição, com trajetória própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2003).
As comunidades quilombolas “conjugam a construção material ‘funcional’ do
território como abrigo e base de ‘recursos’ com uma profunda identificação que
recheia o espaço fundamental à manutenção de sua cultura” (HAESBAERT, 2004, p.
5). Assim a identidade5 quilombola é construída por meio do sentimento de

4 A noção de resistência é apresentada como um processo histórico e contínuo da preservação da


existência, das comunidades quilombolas.
5 O principal argumento de legitimação da identidade étnica quilombola é a existência de um
território, conquistado no passado e perpetuado ao longo do tempo pelas sucessivas gerações de
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pertencimento com o território. No tocante contexto, Siglia Dória (1995) salienta que
a identidade de grupos rurais negros se constrói sempre numa correlação profunda
com o seu território e é, precisamente, esta relação que cria e informam o seu direito
a terra. Assim, a terra como condição de território étnico, vem garantido ao longo
dos anos o sentimento de pertencimento indenitário de determinado grupo com o
lugar onde vive. Uma herança cultural 6 e material que lhe confere uma referência
presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar específico e a um processo
histórico de resistência, deflagrado no passado, é evocado para constituir resistência
hoje (SCHIMITT; TURATTI; CARVALHO, 2002, p. 5). Na medida em que, é nele que
se produz e reproduz a vida material da comunidade, no sentido de que as relações
sociais entre os membros do próprio grupo ou entre outros grupos, são
reconstruídas. Pois, são estas relações que criam e informam o seu direito à terra e
é no território que se cria e recria a identidade quilombola. (MALCHER, 2008). A
relação de identidade é ínsita à vida cultural.
Quando a constituição prestigia o modo de viver, fazer e sentir desses
grupos e as suas formas de expressão está dando em absoluto a esses grupos a
capacidade de autodefinição, de dizerem o que são. Cabe certamente ao judiciário
verificar, mas jamais cabe ao judiciário, ao administrador ou a qualquer um de um
grupo diverso dizer o que aquele grupo é (PEREIRA, Deborah Duprat de Brito.
Seminário Internacional - As Minorias e o Direito. Série Cadernos do CEJ, 24, p.240
-249).
Portanto, a identidade é compreendida como um processo de construções
de caráter simbólico e de domínio da luta política para assegurar a diferença do
grupo, com interesse de garantir a continuidade de seus valores e modo de vida. A
vista disso, o território é uma condição imprescindível, para distinção de quem ou o
que são as “comunidades negras”, onde estão e porque se mantêm naquele lugar.

1.4 Quais os Caminhos Percorridos no Processo para o Autorreconhecimento,


Reconhecimento e a Demarcação do Território.

famílias, ligadas pela consanguinidade e pela manutenção de seus hábitos nos mesmos locais que
seus antepassados.
6 Essa herança Cultural é preservada e cultivada pela comunidade através dos grupos de samba de
roda, dança afro, dos festejos do dia da Consciência Negra, do grupo de capoeira e nos terreiros de
Candomblé.
18

A Constituição Federal de 1988 reconhece o domínio das comunidades


remanescentes de quilombos sobre suas terras; a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) confere o direito de auto-reconhecimento e,
finalmente, o Decreto 4.887/2003 regulamenta o procedimento que confere eficácia
social do direito ao território. Segundo Leite (2000, p. 2):

Nos últimos vinte anos, os descendentes de africanos, chamados negros, em


todo o território nacional, organizados em associações quilombolas,
reivindicam o direito à permanência e ao reconhecimento legal de posse das
terras ocupadas e cultivadas para moradia e sustento, bem como o livre
exercício de suas práticas, crenças e valores considerados em sua
especificidade.

Diante deste contexto, é cabivel aos grupos negros resgatar o esforço


organizativo implantado através de conexões comunitárias de autoproteção e a
criação de normas fundamentadas nas mesmas estratégias. Sendo assim, Leite
(2000) traz que, a reconstrução do espírito da lei, pelos procedimentos
administrativos de sua implementação, vem requerer uma extensão da cidadania a
todas as comunidades negras cuja resistência remonta a uma memória da
escravidão passível de ser reconstituída pelos traços culturais, ocupação ancestral e
as redes de parentesco e afinidades que conformam a malha do grupo com o
territorio reivindicado. Torres7 (2020. p,144 ) trás com seu entendimento que, o
reconhecimento da existência de remanescentes de quilombos significa admitir a
diversidade e fazer justiça efetiva, que extrapola a igualdade formal, uma vez que,
no caso brasileiro se está diante de um país indiscutivelmente pluriétnico, em que
povos e comunidades tradicionais são portadores de história, cultura, e modo de
vida com vínculo com a terra onde esta não é simplesmente “meio de produção” ou
de “renda”, mas a garantia de produção e reprodução da vida, em uma relação de
pertencimento.
No caso das comunidades tradicionais esses procedimentos se iniciam por
meio do autoconhecimento que é feito pela própria comunidade, através da

7 Paulo Rosa Torres. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (1974), Especialista
em Direito Processual Civil (1992), Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social pela
UCSAL (2011).Doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social pela UCSAL (2020).
Sócio-fundador da AATR. Professor Adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
Autor dos livros: Terra e Territorialidade das Áreas de Fundos de Pasto no Semiárido baiano e
Remanescentes de Quilombos: escravatura, disputas territoriais e racismo institucional. É organizador
do livro Distopias e utopias entre os escombros do nosso tempo. Atua como consultor na área de
Direito Fundiário rural e urbano.
19

autodefinição como “remanescente de quilombo”. É através do autorreconhecimento


que a comunidade solicita junto a Fundação Cultural Palmares, a emissão da
certidão8, para iniciar o processo de reconhecimento, demarcação e titulação do
território quilombola no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria
(INCRA).
O INCRA realiza um estudo do território para construção do Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) 9, formado pelo relatório antropológico,
pelo levantamento fundiário, elaboração do mapa territorial e o cadastramento das
famílias. Depois da conclusão do documento, este será publicado, podendo
aparecer contestação de entidades e órgãos, que deverá ser julgada pelo Incra,
caso não haja proveniência na contestação, será iniciada a demarcação e em
seguida a titulação do território.
Almeida (2002) traz que, os procedimentos de classificação que interessam
são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não
necessariamente, aqueles que são produto de classificações externas, muitas vezes
estigmatizantes.
No ano de 2006, membros da comunidade de Santiago do Iguape
integraram a formação do Conselho Quilombola do Vale e Bacia do Iguape, aliança
de comunidades negras rurais, que destituídos de instrumentos políticos capazes de
viabilizar uma interlocução maior com os poderes públicos, mobilizaram-se e
fundaram uma articulação de associações. Este conselho facilitou a busca, junto a
Fundação Cultural Palmares, de certidões de autorreconhecimento de comunidades
quilombolas da região.
Nesse mesmo ano é fundada associação dos remanescentes quilombolas
de Santiago do Iguape, direcionando seus interesses para busca da reconstrução
das narrativas sobre a história local, lutando pela ocupação e manutenção da posse
de terras abandonadas e improdutivas dos antigos engenhos e de um terreno baldio
de forma pacífica e mansa por cerca de sessenta associados e divididas em lotes
para famílias com a destinação para o plantio de roças e moradia, e neste mesmo
período, decidem pela recusa coletiva do pagamento de taxa de foro de chão

8 Em 2007 a comunidade foi certificada pela Fundação Cultural Palmares


9 A comunidade Remanescente Quilombola de Santiago do Iguape, inicia o Processo de
Identificação; Demarcação e Titulação do Território junto ao INCRA,(RTID) no ano de 2008 sob o n º
SEI 54160.001702_2008_62.
20

imposta pelos donos de terras, como forma de libertação das amarras de um


passado escravista na região.
21

2 O DIREITO AO TERRITÓRIO TRADICIONAL COMO SÍMBOLO DE LIBERDADE

Quase um terço do território nacional é formado por Terras Indígenas,


quilombos, parques e reservas. Fruto da luta da sociedade civil, dos povos indígenas
e tradicionais, grupos sociais e políticos que lutam por seus direitos territoriais,
sendo o território parte fundamental da manutenção da identidade sociocultural.
Neste sentido, é de extrema importância entendermos o conceito de
tradicional, porque este não se reduz à história, nem tampouco a laços primordiais
que amparam unidades afetivas e sim incorpora as territorialidades coletivas
redefinidas numa mobilização continuada, assinalando que as unidades sociais em
jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização “representada por uma
aliança pontual e/ou circunstancial contra um inimigo comum, onde suas práticas
alteram padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com as
instâncias de legitimação” (ALMEIDA, 2006, p.18). O Decreto nº 6.040, de 7 de
fevereiro de 2007, definiu territórios tradicionais, por espaços necessários à
reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais,
utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos
povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da
Constituição e art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais
regulamentações.
O decreto reconheceu o território como um dos pilares para o
desenvolvimento dos povos e comunidades tradicionais. Já as disputas quanto a sua
aplicabilidade nas políticas públicas brasileiras é um procedimento em
desenvolvimento, como pontua Wagner Almeida (2004).

O chamado “tradicional”, antes de aparecer como referência


histórica do passado, aparece como reivindicação
contemporânea em forma de autodefinição coletiva. Antes de
serem interpretadas como “povos ou comunidades
tradicionais” aparecem hoje envolvidos num processo de
construção do próprio “tradicional” a partir de mobilizações e
conflitos. Deste ponto de vista, além de ser do tempo presente,
o “tradicional” é, portanto, social e politicamente construído a
partir de uma classificação empírica fruto da existência
localizada desses novos movimentos sociais.

O tensionamento provocado pela participação de diferentes segmentos na


luta por direitos sociais, promoveu ampliação de significado e conceito, ganhou
22

maior densidade, abrangência e potencialidade. Albagli (2004, p.27), traz o conceito


de território tradicional, como aquele que está além da Geografia física, uma vez que
“[...] vinculam-se a uma variedade de dimensões, tais como: dimensão física,
dimensão econômica, dimensão simbólica, dimensão sociopolítica".
A história da produção da definição do termo revela o quanto foi disputada a
construção desse conceito, entre Estado e Sociedade Civil. Os avanços foram
significativos e aportaram dimensões necessárias para o acolhimento da diferença
presente entre os segmentos de povos e comunidades tradicionais (THUM, 2017).
Gusmão (1999, p.144) trás que: “[...] a história de cada grupo é só sua, mas é,
também, a de muitos outros grupos, pelo Brasil afora, que lutam por direitos e, em
particular, lutam pelo direito à terra em que habitam, trabalham e constroem a vida”.
O entrelace das comunidades ao território se caracteriza como fator essencial da
estrutura social do grupo que constrói a existência da terra com o seu território
étnico.

A auto atribuição do rótulo quilombola é a construção da


mediação entre as experiências locais e a categoria jurídica, o
código do Direito e a língua do Estado, e a auto atribuição
étnica é resultante de interações horizontais e contrastantes
entre grupos em interação. (ARRUTI, 2006, p.48).

Sendo assim, a propriedade coletiva da terra é de crucial importância para a


garantia e manutenção dos territórios tradicionais, em um país multicultural
(MALCHER, 2017). Não são tão visíveis para o Estado brasileiro, uma vez que,
historicamente seus órgãos vêm negando o reconhecimento necessário às
comunidades tradicionais. Assim, ao negar a existência, por extensão, se está
negando a diversidade histórica, étnica e cultural desses povos (TORRES, 2020, p.
147).

2.1. Um Diálogo Normativo com os Artigos 231 CF e 68 ADCT

Destarte, o primeiro ponto a ser observado é que há previsão expressa da


defesa dos povos indígenas e quilombolas, na Constituição e no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Segundo Leite (2010, p.20) “o
artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal de 1988 foi objeto de discussão parlamentar, jurídica, científica e popular” e
23

sua aprovação se deu no campo de muitas tensões e disputas. Neste período,


vários atores e movimentos sociais estiveram envolvidos na mobilização política e
na militância pelo reconhecimento de diversos grupos étnicos e sociais presentes na
formação sócio-histórica brasileira, tendo em vista a relevância da Carta Magna e o
reconhecimento por parte do Estado das comunidades remanescentes de quilombo,
que constituem um fator de historicidade e territorialidade contemporâneas
(MACHADO, 2015).
Esse reconhecimento está firmado no campo jurídico com o surgimento e
incorporação da instrução normativa Nº 57, de 20 de outubro de 2009, e o Decreto
Nº 5.051, de 19 de abril de 2004, que promulga a convenção n.º 169 da Organização
Internacional do Trabalho – (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. Pelos
respectivos artigos constitucionais 215, 216, 217 e 231, e o Decreto Nº 48879 , de
20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes de comunidades quilombolas.
A Constituição Federal prevê nos artigos 215 e 216 que as manifestações
afro-descendentes pertencem ao nosso patrimônio histórico-cultural, material e
imaterial, integrando a nossa civilização e, portanto, interessa a toda a coletividade a
sua proteção. A propriedade privada, destarte, em conflito com essas manifestações
culturais, que compõem nossa civilização, exsurgindo como verdadeiro direito
difuso, deve ceder em virtude do interesse público envolvido. É a aplicação do
princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. (CITAÇÃO DA UNIÃO
FEDERAL. Proc. 2007.33.00.019009-9 JF-SJ/BA).
A questão dos remanescentes de quilombo não difere em nada da questão
indígena. A propriedade, as terras conferidas a esses grupos são dadas
efetivamente na perspectiva de um território cultural, onde se faça possível
exatamente a existência desse grupo nessa perspectiva de vida de acordo com os
padrões culturais próprios de uma vida plasmada, gestada e definida pelo próprio
grupo. Trata-se, na verdade, de uma propriedade, de uma terra que revela como
condição de existência desse grupo na sua singularidade e não no aspecto
patrimonial. (PEREIRA, Deborah Duprat de Brito. Seminário Internacional - As
Minorias e o Direito. Série Cadernos do CEJ, 24, p.240 -249).
No que diz respeito à questão do direito ao território, o texto constitucional
traz diferenças expressivas quando trata que, as populações tradicionais indígenas
24

têm assegurada a posse permanente de seus territórios tradicionalmente ocupados,


o que se afigura uma situação de tutela, conforme disposto no art. 231, § 2º da
Constituição10.
No que concerne aos remanescentes das comunidades dos quilombos é
garantido o direito de propriedade definitiva, nos termos do art. 68 do ADCT 11
(ALMEIDA, 2004). Esse dispositivo é norma de natureza constitucional e visa a
garantia de direitos fundamentais, sendo, portanto, de aplicação imediata, como
determina o parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição. Apesar de haver o
reconhecimento jurídico, Almeida (2004), chama atenção que isso não significa um
acatamento das demandas dessas populações tradicionais que precisam lutar
constantemente pelo seu território. O andamento dos processos continua lento e
não há previsão de que o cenário de baixa efetividade na garantia dos direitos
territoriais das comunidades quilombolas possa ser revertido a médio prazo (Conaq,
2023). De acordo com Centeno (2009, p. 116), a política nacional de titulação dos
territórios quilombolas transformou-se em uma ‘máquina de produzir procedimentos
e avaliações sobre os mesmos, multiplicando cada vez mais as exigências e as
instâncias de consulta, tornando a titulação algo longe de ser concretizado’.
Observa-se, que, se por um lado a emergência do artigo 68 da Constituição
Federal de 1988 indica um avanço na aquisição e garantia de direitos quilombolas,
por outro, a efetivação de tais direitos – incluindo a implementação das políticas
destinadas para territórios quilombolas – está em permanente situação de ameaça
(MALCHER, 2017). Enquanto as titulações não acontecem, os quilombolas ficam
mais vulneráveis à sua existência, ao seu modo de vida e seu território.
A burocratização na execução dessas disposições constitucionais, mostram
obstáculos reais de difícil superação, sobretudo ao que se refere na demarcação de
terras indígenas e na titulação das terras das comunidades remanescentes de
quilombo.

2.2 É constitucional ou inconstitucional o Pagamento de Foro de Chão em


Território Quilombola?

10 As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-
lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (BRASIL, 2023).

11 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos (BRASIL,
2023).
25

Para entendermos como funciona a prática da cobrança de taxa de foro em


terras consideradas foreiras, principalmente em territórios em disputa considerados
quilombolas, será necessário um aprofundamento no assunto por meio de
documentos e recortes de relatos orais, de como surgiu, qual a sua finalidade e seu
amparo legal, para aí sim, discutir a questão da constitucionalidade e
inconstitucionalidade do pagamento pelos moradores remanescentes de
comunidades quilombolas com enfoque voltado para o caso de Santiago do Iguape.
A sua implantação é uma herança do processo de colonização do Brasil, da
época em que as colônias se instalaram no País, surgiu assim, a necessidade de se
criar esse tipo de modalidade como forma de proteger o território das invasões
estrangeiras. Era uma forma de impulsionar o desenvolvimento das cidades e de
ocupar a maior quantidade possível de espaço em torno da região dessas colônias.
O aforamento era uma forma de doar aos habitantes recém chegados o direito à
posse, uso e gozo de uma propriedade, essa prática assegurava a coroa a garantia
de continuar sendo dona dos terrenos mesmo cedendo a terceiros. Esses
donatários tinha a prerrogativa de alienar ou transmitir a outra pessoa por meio de
herança12.
Diante disso é pertinente falar de forma breve sobre o laudêmio, que tem por
finalidade a cobrança de um valor em cima de cada ato de transferência de
propriedade, situados em áreas particulares ou públicas mediante regime de
aforamento. Isso ocorre quando a enfiteuse decide vender o imóvel devendo
consultar o senhorio direto, considerando que este tem a preferência na compra do
imóvel/terra, caso ele renuncie a taxa de laudêmio é cobrada. Segundo Rodrigues
(2016) o laudêmio é devido somente nas transações 'onerosas', sendo assim, nas
transações ‘não onerosas’ inexiste a obrigação do pagamento de laudêmio.
O aforamento é um direito real limitado que cede a outra pessoa poderes
inerentes ao domínio útil de terras adquiridas, existindo uma relação de obrigação e
manutenção da propriedade, mesmo possuindo o domínio sobre o imóvel o
donatário tem que se submeter a obrigação de senhorio que é o dono direto da
propriedade, esse direito real tem como objeto, as terras não cultivadas e os
terrenos voltados para edificação13.

12 Apesar da expressa disposição legal, o código civil de 2002, a qual proíbe a constituição de novos
aforamentos em relação a terras particulares, ainda se encontra presente nos dias atuais.
13 Terrenos com destinação para construção de casas.
26

[...] a transformação do foro em aluguel seria conversão da natureza e


a causa de cada qual não comportam. De fato, o foro tem por fim
afirmar o reconhecimento do domínio direto de compensar o
proprietário da privação de seu prédio [...]. (GOMES, 2009, p. 307).

Essa compensação dá-se mediante um pagamento anual de uma taxa que


corresponde a 0,6% do valor total da propriedade ou imovel construído até 1988. No
que concerne ao direito à condição de foreiro, traremos o entendimento de Orlando
Gomes (2009, p. 309), para uma melhor explanação, que pontua que, "os direitos do
enfiteuta são tão amplos quanto os do proprietário. Tem, com efeito, o jus utendi,
fruendi e disponendi. Usa a coisa alheia e lhe fruir as utilidades, em toda plenitude.”
Sendo assim, o foreiro pode gozar do imovel, conquistar direitos reais em
defesa do bem, como o usufruto e recorrer a ações possessórias para proteger o
bem aforado. A doutrina expressa ainda, que além desses direitos, o foreiro tem
preferência no caso do senhorio resolver vender o domínio direto sobre a terra.
Caso haja inadimplência na relação da obrigação entre as partes é facultado
ao dono direto pleitear ação executiva, perante a sua permanência na terra, por um
intervalo de três anos, podendo o proprietário da terra reaver o imovel por meio de
sentença judicial.
Diante disto, a realidade vivenciada pelos moradores da comunidade
remanescente quilombola de Santiago do Iguape não se difere da questão aqui em
discussão. A maior parte das terras da comunidade é considerada área foreira, a
família que detém o domínio direto da área que está localizada a comunidade
continua pagando uma taxa anual ao INCRA e a Receita Federal pela terra segundo
relatos obtidos por meio de conversas informais com um dos descendentes de
Pedro Paulo Rangel, um senhor de terras da região, que adquiriu o antigo engenho
central no período do declínio da produção açucareira e alguns lotes de terras na
mão de Elvira Novis, compra essa feita mediante escritura 14 pública de compra e
venda no tabelionato de contas em 12 de maio de 1933.
Essa terra na época tinha como finalidade o sistema de parceria, o
proprietário emprestava alguns lotes de terras a um arrendatário mediante divisão
dos lucros de tudo que fosse produzido.

14 Fórum da cidade de Cachoeira, Cartório de Registro de imóveis, livro 2º 3E nº 1.485 (pg. 92).
27

Historicamente seus integrantes, estes escravos recém libertos


usufruem dos recursos naturais dos espaços outrora pertencentes às
grandes fazendas e engenhos de cana de açúcar em decorrência
dos acordos informais com os proprietários, herdeiros destas terras.
Talvez essa prática constitui uma estratégia de manutenção dessa
mão de obra na região, a fim de que continuasse prestando serviços
sem necessariamente receber qualquer tipo de remuneração, mesmo
após a abolição do regime de trabalho escravocrata.(CARVALHO 15,
2016)

Com o tempo, o dono das terras começou a vender a maior parte da


propriedade com a destinação para a construção de edificações na comunidade.
Essa é uma questão que merece uma maior atenção, porque? A venda desses
pequenos lotes de terras na época era feita sem o documento de compra e venda, a
única garantia dada a quem comprou é que seu nome ficaria registrado no livro,
constituído a obrigação de pagamento anual de taxa de foro ao dono direto da
propriedade. Em Santiago são poucos os moradores que têm o registro imobiliário
de domínio real de suas casas.

16
‘Não me sinto segura, tenho a sensação de que a qualquer
momento chegará uma ordem judicial para me retirar de um imóvel
que eu paguei por ele, um valor em espécie, na época, a moeda era
o cruzeiro, onde hoje está erguida a minha moradia! Sempre paguei,
mas desde do ano de 2006 que não pago, aqui é uma comunidade
quilombola, certificada, meus antepassados trabalharam tanto na
condição de escravo nessas terras, não pagarem mais nada por um
território que é nosso por direito o que nos falta é só a titulação’.

Essa questão nos leva a refletir, será que estamos diante de velhos hábitos
do passado camuflados por novas práticas de exploração? O que se observa com a
fala da moradora entrevistada em trabalho de campo, é que, mesmo nos dias atuais,
com os avanços de direitos garantidos aos remanescentes de comunidades
quilombolas trazidos pelos dispositivos constitucionais, é que, os moradores da
comunidade continuam submetidos a pagar o forro da terra que ocupam de forma
ininterrupta a séculos para os herdeiros da família Rangel, mesmo que de forma
diversificada de pagamentos ou com intensidade diferente. Para os moradores esse

15 Professora adjunta de Antropologia do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da


Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e docente permanente do Programa de Pós
Graduação em Ciências Sociais (PPGSC) da UFRB e de Antropologia da Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Líder do grupo de pesquisa Memória, processos identitários e territorialidades no
Recôncavo da Bahia.
16 Entrevista feita com a moradora Maria José de Almeida em 05/04/2023.
28

processo de libertação só virá após a titulação do território como área de quilombo


pelo INCRA.

2.3 A quem pertence o Território?

O direito dos remanescentes quilombolas à terra está diretamente ligado


ao direito à preservação da cultura e de sua organização social. Esses direitos são
reafirmados, segundo Almeida (2006), na medida em que esses agentes sociais se
investem de identidades étnicas para retratar a si mesmo e às terras que
historicamente ocupam, mobilizando-se coletivamente para fins de interação e
manutenção dos recursos necessários para sua reprodução física e social. Por esta
razão, o espaço físico da vivência coletiva não é apenas um pedaço de terra
delimitado, demarcado por esta ou aquela regra, este ou aquele aspecto da lei. A
terra é, antes de mais nada, um território e como tal: “A terra é um ente vivo que
reage ante a conduta dos homens; por isso, a relação com ela é puramente
mecânica senão que se estabelece simbolicamente através de inumeráveis ritos e
se expressa em mitos lendas” (BATALLA apud GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de.
Terra de uso comum: oralidade e escrita em confronto.[s.i;s.d], 2012).

A forma de ocupação das terras em todo o Brasil se deu por meio da


lógica da expulsão dos indígenas e dos negros, da exploração da
mão de obra compulsória dos africanos e seus descendentes. A
territorialidade negra, portanto, foi desde o início engendrada pelas e
nas situações de tensão e conflito. Essa constatação reintroduz, na
atualidade, um debate sobre questões persistentes e que nos incitam
a exercitar um olhar retrospectivo e comparativo, capaz de revelar
nitidamente, os aspectos constitutivos das situações com as quais
nos defrontamos no presente. Neste sentido, tornam-se
fundamentais os exemplos provenientes das realidades locais (...). E
é sob esse prisma que a territorialidade negra pode ser referida não
a uma realidade equívoca e distante, mas se reportando a uma
dimensão simbólica da identidade, na qual os negros se organizam
enquanto coletividade nacional e articulações de grande
complexidade(...). (LEITE, 2008. p.967-968)

É nesta perspectiva que a associação brasileira de antropologia (ABA), traz


um conceito novo de remanescente de quilombo, que reforça essa forma
organizativa das comunidades. Esse conceito buscou desfazer os equívocos
referentes à suposta condição de remanescente trazida por alguns autores, ao
afirmar que “contemporaneamente, o termo não se refere a resíduos arqueológicos
29

de ocupação temporal ou de comprovação biológica”. A nova conceituação trazida,


também tratou de desfazer a ideia de população homogênea isolada que se tinha
sobre as comunidades remanescentes de quilombo, evidenciando seu aspecto
contemporâneo, organizacional, relacional e dinâmico, bem como a variabilidade das
experiências capazes de serem amplamente abarcadas pela ressemantização do
quilombo na atualidade.
A noção de quilombo que o texto constitucional se refere tem de ser
compreendida com certa largueza metodológica para abranger não a ocupação
efetiva senão também o universo das características culturais, ideológicas e
axiológicas dessas comunidades em que os remanescentes dos quilombos (no
sentido lato) se reproduziram e se apresentam modernamente como titulares das
prerrogativas que a Constituição lhes garante. É Impróprio, assinala o autor citado,
lidar nesse processo como 'sobrevivência' ou 'remanescente como sobra ou
resíduo', quando pelo contrário o que o texto sugere é justamente o oposto (UNIÃO
FEDERAL, 2007).
A comunidade de Santiago do Iguape se auto reconhece como
remanescente de quilombo desde do ano de 2006, e abriga atualmente uma
população17 estimada em torno de 5.054 habitantes, a comunidade é formada por
pequenos agricultores, pescadores artesanais, marisqueiras e comerciantes locais.
A estrutura organizacional da comunidade remete a um formato de vila, com ruas
pavimentadas com paralelepípedo, a distribuição sócio-espacial das casas revela
elementos de sociabilidade presentes em Santiago, assim como a constituição das
relações de parentesco e afinidades (Machado, 2016). Atualmente metade dos
moradores vive da atividade laboral da pesca, extração de mariscos e da plantação
de pequenas lavouras de subsistência.
Santiago é constituída de posto de saúde, três escolas sendo uma estadual
e duas municipais, UPA 24 horas, 18CRAS, água encanada, energia elétrica, torre de
telefonia, rede de internet, cartório, farmácia e um barco comunitário de moeda
social, essa moeda circula pelo comércio local gerando uma teia de
desenvolvimento. A foto a seguir mostra a organização do território da comunidade.

17 Informações adquiridas informalmente a partir de uma roda de conversa promovida pelo Curso
Resiliências Climáticas oferecido à comunidade em 06/05/2023, pela Organização Não-
Governamental Italiana (COSPE - Cooperação para o Desenvolvimento dos Países Emergentes).
Diante da indisponibilidade dos dados oficiais das comunidades quilombolas do município de
Cachoeira/BA, no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE.
18 Centro de Referência de Assistência Social
30

Figura 2: Imagem de Satélite da comunidade de Santiago do Iguape - Cachoeira,


Bahia.

Fonte: Satélite Google Earth. Acesso em 21 de Maio de 2023.

Além da associação quilombola, presente na comunidade, Santiago conta


ainda com mais três instituições: colônia de pescadores artesanais e marisqueira,
uma representação comunitária de moradores e uma outra de mulheres quilombolas
e marisqueiras do vale do Iguape. Todas essas associações buscam a garantia de
direitos e a reafirmação da identidade com o território ao qual pertence.
O acesso até a comunidade é feito através de transporte coletivo e vans
alternativas, o embarque é feito no município vizinho Santo Amaro da Purificação
ou na sede Cachoeira. Percorrendo o caminho até chegar a Santiago tem-se uma
visão da entrada das comunidades remanescentes de quilombo circunvizinhas que
integram o Conselho quilombola do Vale do Iguape.

Figura - 3: Mapa das comunidades do Vale do Iguape

Fonte: Acervo particular de Ivan Faria


31

Ao longo do percurso é nítida a observação da forte presença de inúmeros


hectares de terras improdutivas que compõem o sistema latifundiário presente na
região. E algumas dessas terras improdutivas, são alvos atualmente de disputa na
esfera judicial pelos remanescentes da comunidade e os então fazendeiros locais,
porém aprofundaremos essa questão no capítulo seguinte.
Segundo informações obtidas por meio da análise de documentos a respeito
do processo de elaboração do RTID de Santiago do Iguape, se encontra concluindo,
mas até o atual momento não foi publicado no diário oficial pelo Incra, sendo notório
os entraves enfrentados pela comunidade no procedimento administrativo de
identificação, delimitação, demarcação e titulação de seu território por meio da
burocratização e lentidão do Estado, retardando os processos de desenvolvimento e
efetivação deste direito constitucional, como mostra um trecho retirado da Nota dos
Servidores do Incra publicada em 14 de agosto de 2013 (INCRA, 2009).

Da mesma forma, o poder Judiciário, frequentemente, tem atuado na


contramão dos interesses destes grupos. Igualmente, no Executivo
existe forte oposição à política por parte das Forças Armadas, que
violam os direitos de comunidades quilombolas cujos territórios se
sobrepõem a áreas ou interesses militares e ainda atuam no sentido
de impedir o andamento de processos no INCRA. Percebemos que o
Governo tem sucumbido a esta ofensiva dos setores governamentais
e da sociedade que controlam a malha fundiária no Brasil contra os
direitos de populações tradicionais de diversas maneiras. No INCRA
foram instituídas rotinas administrativas excessivas cujo objetivo é a
intencional protelação dos processos. Em 2008, o INCRA publica a
Instrução Normativa nº 49, elaborada pela Advocacia Geral da União
- AGU, que levou ao alongamento do tempo de tramitação dos
processos em razão de sua excessiva burocratização. Está IN cria
etapas desnecessárias e repetitivas, aumentando o já longo tempo
de tramitação das peças técnicas do processo administrativo. A
acentuada queda no cumprimento das metas pelo órgão, após a
aprovação da IN. (CNASI, 2013).

Por todo o exposto salientamos que a proteção e afirmação dos direitos das
comunidades remanescentes de quilombos passam necessariamente pela
regularização fundiária dos territórios ocupados. Neste sentido, Machado (2016) traz
que, a trajetória de Santiago carrega elementos de violência em todas as dimensões
da vida, desde o período de escravização até a atualidade. Podemos perceber que
as diversas opressões sofridas pelos seus antepassados não são distintas das
vivenciadas na contemporaneidade. São inúmeras situações de negligência estatal,
32

violações de direitos, ameaças de desterritorialização, e os impactos


socioambientais no território tradicional.

2.3.1 Reserva extrativista Baía do Iguape

O decreto 98.897 de 1990 que criou as reservas extrativistas, o SNUC (lei


9.985/00) tem no art.18º a nova definição de reserva extrativista:

É uma área utilizada por populações tradicionais, cuja subsistência


baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de
subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como
objetivos básicos proteger os modos de vida e a cultura dessas
populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da
unidade (BRASIL, 2000).

No ano de 2000 a região de Santiago passa a ser reconhecida como área de


reserva Extrativista Marinha da Baía do Iguape (RESEX), que têm como objetivos
principais a conservação e o desenvolvimento do uso sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e
garantia dos seus direitos territoriais, ambientais, sociais, econômicos e culturais,
com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas
instituições (IBAMA, 2000). Os modos de vida das populações da resex
caracterizam o todo. As relações de trabalho em torno da agricultura familiar, e da
pesca artesanal de subsistência identificam as comunidades quilombolas da região
(SANTOS, 2007). Sendo assim, a resex não se refere apenas à proteção da
biodiversidade, contemplam também as ações de conservação do patrimônio natural
através dos laços de territorialidade afetiva com o espaço, e o lugar.
33

3 ANÁLISE DAS AÇÕES POSSESSÓRIAS

Os conflitos agrários pela posse da propriedade não se limitam


simplesmente aos posseiros e ocupantes de terras contra os fazendeiros, amplia-se
aos povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas e remanescentes quilombolas, que
lutam pelo acesso à terra para moradia e sua subsistência. Um dos motivos
fundantes que gera a ocorrência desses conflitos habita na inviolável estrutura
fundiária e sua concentração nas mãos da minoria dos grandes proprietários de
terra, que consequentemente levam à exclusão dos pequenos produtores e as
comunidades tradicionais do país (NEVES et al,2016). E é nesse cenário, que as
ações possessórias entram como instrumentos de acesso à ordem jurídica como
forma de solução de divergências. No direito agrário a posse expressa o meio
principal no que se refere ao acesso à terra, e simultaneamente torna-se legitimador
da propriedade. E é através da intervenção da posse agrária, ligação direta com o
imóvel rural que a função social da propriedade manifesta-se.
Sobre a temática Carvalho (2010, p. 93), pontua que, a função social é
intrínseca à propriedade privada, de modo que não basta apenas o título aquisitivo
para conferir-lhe legitimidade. Exige-se que seu titular, ao utilizar o feixe dos poderes
ínsitos ao direito de propriedade, esteja em conformidade com o dever social
imposto pela Constituição Federal.
Reforçando o posicionamento acima, a decisão do Supremo Tribunal
Federal traz:

RELEVÂNCIA DA QUESTÃO FUNDIÁRIA - O CARÁTER RELATIVO


DO DIREITO DE PROPRIEDADE - A FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE - IMPORTÂNCIA DO PROCESSO DE REFORMA
AGRÁRIA – (...) – A PRIMAZIA DAS LEIS E DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. - O direito
de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre
ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a
função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a
intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo,
para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na
própria Constituição da República. - O acesso a terra, a solução dos
conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel
rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a
preservação do meio ambiente constituem elementos de realização
da função social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto -
enquanto sanção constitucional imponível ao descumprimento da
função social da propriedade -, reflete importante instrumento
34

destinado a dar conseqüência aos compromissos assumidos pelo


Estado na ordem econômica e social. - Incumbe, ao proprietário da
terra, o dever jurídico-social de cultivá-la e de explorá-la
adequadamente, sob pena de incidir nas disposições constitucionais
e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não
cultivados e/ou improdutivos, pois só se tem por atendida a função
social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o
titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar
dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de
produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais;
e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas
relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que
cultivam a propriedade.(....) (ADI 2.213/DF - Relator(a): Min. CELSO
DE MELLO - Publicação:DJ DATA-23- 04-04).

Diante do exposto acima será feita uma análise das principais ações
possessórias envolvendo a comunidade objeto deste estudo. A primeira peça judicial
a ser analisada trata-se de uma ação de reintegração de posses com pedido de
liminar, cumulada com perdas e danos contra a associação quilombola de Santiago
do Iguape, o objeto da lide é uma área classificada pelo requerente como sendo de
pequena propriedade, medido 59 hectares, fazendo limites com a reserva extrativista
baía do Iguape. Propriedade essa que vem sendo cultivada com pequenos roçados
por posseiros que residem no local e exercem a posse mansa, pacífica e de boa-fé.
No dia 30 de outubro de 2006, o suposto proprietário com objetivo de
deslegitimar o movimento, registra uma queixa crime na delegacia da cidade de
Cachoeira na tentativa de criminalizar a luta da comunidade pela terra, denominado
como ‘facções do movimento auto-intitulado quilombola, como mostra trecho retirado
do processo de nº 2007.33.00.019009-8, “a proteção que vem sendo dada à questão
quilombola acaba por subjugar outros direitos, como gerar possibilidade de
reconhecimento de quilombola a quem não é descendente de quilombola”.
Um outro ponto a ser analisado é a fragilidade das provas carreadas aos
autos pelo autor. Algumas imagens foram anexadas em preto e branco, o que as
torna pouco nítidas, sendo impossível de se verificar a existência de área desmatada
e sua respectiva autoria.
35

Figura 3 - Fotos da área em litígio anexada nos autos.

Fonte: Processo nº 2007.33.00.019009-8

E para firmar uma pensada data do esbulho, o autor vale-se de uma


ocorrência policial que, como é sabido, tem natureza meramente declaratória e
unilateral. O então presumível dono do imóvel fundamenta a ação, tão somente num
suposto domínio, alegando praticar no local apenas o aluguel de pastos, prática
típica de senhores absenteístas de terras, porém, tal alegação, sequer vem
comprovada nos autos.
O outro fato são as distorções da veracidade dos documentos apresentados,
onde consta que o autor diz ser proprietário de bem imóvel adquirido por doação em
julho de 2006 e que cerca de dois meses depois a mesma teria sido "invadida" por
integrantes do movimento quilombola. Tais distorções nas informações, comprovam
que o autor jamais esteve na posse do imóvel, sendo que a escritura pública não
comprova a posse, nem há posse legítima na região que não pertença a seus
moradores agricultores e pescadores. Em se tratando de ações possessórias, a
legislação processual diz que é requisito essencial provar que a posse é exercida
por quem maneja a ação e que se encontra ameaçada ou prejudicada por terceiros
(OLIVEIRA. 2017, p.15). Diante desse contexto é importante salientar que a luta
jurídica pelo domínio do território tradicional por essas comunidades quilombolas,
traz um histórico de luta coletiva, visando garantir a conquista da titulação do
território que ocupam.
36

3.1. O contexto da Questão da Regularização Fundiária na Região

Os procedimentos de regularização fundiária dos territórios das


comunidades quilombolas tem como égide a instrução normativa nº 57/2009 do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que determina os processos
para a elaboração dos relatórios técnicos de identificação destes territórios. O
mapeamento do território é a base destes estudos, considerando o processo de
identificação étnica e a autodefinição das comunidades remanescentes de quilombo,
descrito anteriormente.
Deste modo, entende-se que delimitar um território quilombola, provoca na
maior parte dos casos, a necessidade de reorganizar um espaço coletivo de vida
que foi sendo desfeito ao longo da história por diversas formas de expropriação e
esbulho ou, em outros casos, de atribuir um novo território necessário à reprodução
do grupo (nos casos dos grupos que foram totalmente desterritorializados). É por
essas razões que a delimitação dos territórios quilombolas não se restringe à
categoria normalmente operada pelo Estado para efetivar as obtenções
(desapropriação ou compra) de terra e as regularizações fundiárias: o imóvel rural,
este diretamente ligado à noção de propriedade individual e que tem seus limites
juridicamente determinados.

Até recentemente, a diversidade fundiária do Brasil foi pouco


conhecida no país e, mais ainda, pouco reconhecida oficialmente
pelo Estado brasileiro. [...] A questão fundiária no Brasil vai além do
tema da redistribuição e se torna uma problemática centrada nos
processos de ocupação e afirmação territorial, os quais remetem,
dentro do marco legal do Estado, às políticas de ordenamento e
reconhecimento territorial. Essa mudança de enfoque não surge de
um mero interesse acadêmico, mas radica também em mudanças no
cenário político do país ocorrido nos últimos vinte anos. (LITTLE,
2002, p. 5).

No caso das comunidades quilombolas, a categoria fundamental para a


regularização fundiária é o território, noção que não se refere a qualquer terra, mas
àquela terra tradicionalmente ocupada coletivamente por indivíduos ligados por
relações de parentesco e/ou de solidariedade que se reconhecem numa
ancestralidade comum e numa territorialidade específica (SANTOS, 2014, p. 5).
O problema da questão quilombola se insere no bojo da questão agrária à
medida que envolve disputas políticas e territoriais motivadas pela desigual estrutura
37

fundiária brasileira capitaneada “[...] pelos interesses antagônicos entre os agentes


hegemônicos do capital, o Estado, as organizações e os movimentos sociais de luta
pela/na terra” (GERMANI, 2010, p. 269). Podemos entender tal questão, com o
processo de exclusão do acesso à terra e a priorização da imigração estrangeira, já
referido com a edição da Lei no 601, de 1850, se aprofunda com a abolição formal
da escravatura e a chegada em massa de trabalhadores estrangeiros, cuja vinda se
dá com financiamento de recursos públicos, como se verifica das citações acima.
Enquanto isso, nenhuma política de inserção dos ex-escravos foi planejada ou
colocada em prática (TORRES, 2020, p.158). No entanto, a transformação da terra
em propriedade privada, que pudesse ser comprada pelo fazendeiro, antes de se
converter em renda territorial capitalizada, era objeto de outro empreendimento
econômico – o do grileiro, às vezes verdadeiras empresas. No processo de
transformação do capital em renda capitalizada, o grileiro substitui o antigo traficante
de escravos (MARTINS, 1979, p. 69).
Se por um lado é crescente a demanda pela regularização fundiária dos
territórios quilombolas em todo o país, especialmente na Bahia, onde há o maior
número de comunidades quilombolas identificadas e reconhecidas pelo Governo
Federal, por outro, o confronto dessa política com os diversos interesses do capital,
sobretudo no campo, explica a excessiva burocratização dos procedimentos da
regularização e suas dificuldades operacionais, políticas e financeiras. Isto faz com
que o tempo entre a abertura de um processo e a outorga do título a uma
comunidade seja demasiadamente demorado, podendo chegar a mais de 20 anos
em alguns casos (SANTOS, 2014).
Atualmente em todo o país tramitam 171519 processos de regularização
fundiária junto ao INCRA, sendo que 292 procedimentos se encontram no estado da
Bahia, muitos destes inacabados, porém no caso da comunidade de Santiago do
Iguape, são 15 anos lutando contra a burocratização do estado como mostra a figura
a seguir:

Figura 3 - Tabela elaborada pelo Incra: relação de processos abertos.


19 Informações obtidas no site do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária e Coordenação Geral de Regularização de
Territórios Quilombolas - DFQ.
38

Fonte: Incra

Fazendo uma análise dos processos de regularização fundiária dos


territórios quilombolas na região, terras reivindicadas por um conjunto de 16 20
comunidades remanescente de escravo sendo que nenhuma dessas possuem o
título de suas terras e poucas tem o RTID concluído e publicado, São Francisco do
Paraguaçú é a única comunidade que se aproxima da titularização definitiva como
mostra o quadro abaixo:

Quadro 121 - Comunidades remanescentes quilombola do Vale do Iguape em


processo de regularização fundiária.

Nome Ano de certificação Ano de abertura do Fase da


pela FCP processo no regularização
INCRA fundiária

calolé, Imbiara, 2004 2009 RTID publicado


Engenho da Vitória,
Caimbongo Velho

Kaonge, Calembá, 2004 2011 RTID publicado


Dendê, Engenho da
Ponte e Engenho da
Praia

20 No total existem 16 comunidades certificadas pela FCP, porém existem mais duas comunidades
em processo de autoreconhecimento (Palmeiras e Acutinga) totalizando 18 comunidades que se
reconhecem como remanescentes de quilombo.
21 Fontes site da Fundação Cultural Palmares
39

Engenho da Cruz 2007 2011 Apenas processo


aberto

Engenho Novo Vale 2005 2012 Relatório


do Iguape Antropológico

São Francisco do 2005 2006 Portaria de


Paraguaçu Reconhecimento
Publicada

Santiago do Iguape 2006 2008 Relatório


Antropológico, (RTID
concluído porém não
foi publicado pelo
INCRA)22

Brejo do Engenho 2006 2012 Apenas processo


da Guaíba aberto

Tabuleiro da Vitória 2013 2013 Apenas processo


aberto
Fonte: FERREIRA, 2023.

A grande demora e a pouca materialização na emissão dos títulos das


terras das comunidades fomenta as tensões nos territórios e nos contextos políticos
mais amplos. Essa demora potencializa o conflito entre os vários sujeitos envolvidos
e oxigena os embates e a organização daqueles que se opõem à efetivação dos
direitos das comunidades. Como resultado disso, se estende a insegurança da
garantia do território e a exposição da comunidade aos conflitos (SOUZA, 2018) 23.
O que podemos perceber é que, a morosidade no procedimento de
demarcação e regularização fundiária do território, faz com que os remanescentes
dessas comunidades quilombolas não lutem simplesmente pelo definitivo título de
suas terras, mas também pela conscientização da necessidade de atualização dos
mecanismos de garantia de direitos de maneira que se tornem efetivos para a
principal demanda coletiva presente no território.

3.2 Conflitos Possessórios: Ameaças de Desterritorialização

22 De acordo com informações levantadas do Relatório de Gestão do Exercício do ano de 2013, da


Superintendência Regional do Incra na Bahia, foram elaborados 27 (vinte e sete) RTID, dos doze
previstos, porém nenhum chegou a ser publicado pelo Órgão no Diário Oficial. Disponível em:
https://www.gov.br/incra/pt-br> acesso em: 20 de maio de 2023.
23 Barbara Oliveira Souza. Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília (2005), Mestre em
Antropologia pela UnB (2008), Graduada em Ciências Sociais (Licenciatura) em Antropologia Social
(Bacharelado) (2005), pela UnB.
40

Os conflitos de terras que envolvem as comunidades quilombolas não se


distinguem por localidade, nível de articulação e organização política ou
características do território. Em todas as regiões, nas mais diferentes conjunturas, se
apresentam graves conflitos fundiários. Os principais fatores dessa situação se
relacionam à sobreposição dos interesses territoriais das comunidades, contra o do
sistema, os grandes empreendimentos latifundiários, o chamado mercado de terras
das elites políticas civis regionais e nacionais (SOUZA. 2018). [...] As terras de preto
encontram-se assentadas sob regimes alternativos de posse e propriedade que
como diz Berno de Almeida, hoje, se confrontam com a propriedade privada,
institucional e capitalista. Trata-se de uma terra que o capital reivindica como
propriedade privada e particular, que se investe de outra natureza: uma terra-
mercadoria. A terra se transforma e, com ela, a vida dos homens (GUSMÃO, 1999,
p.344).
Os conflitos possessórios vivenciados no Iguape, está plasmada nas
disputas do território onde se encontra erguida comunidade, que sem garantias na
efetivação de direitos destinados à proteção da terra por parte dos órgãos
governamentais por meio do título de reconhecimento como território quilombola, se
vê frente a ameaça de desterritorialização 24, seja por meio de ações expropriatórias
que se efetuem por ordens judiciais de reintegração de posse ou deslocamento
forçado levando a iminência da perda da posse da terra pela comunidade.
Outro fator elementar na caracterização dos conflitos é o impacto causado
com a implantação da hidrelétrica da barragem pedra do cavalo.

Quadro 2.

Região Conflitos Grupo Agressores Apoio/parceria


Atingido

Santiago do Disputas de terras quilombolas/ Estado, grupo Universidade


Iguape. e o impacto da pescadores Votorantim. Federal da Bahia
implantação da artesanais. (Programa Direito
hidrelétrica pedra e Relações
do cavalo. Raciais - UFBA).
Fonte: FERREIRA, 2023 - Projeto mapeamento do Racismo Ambiental na Bahia25

24 A desterritorialização é conceituado como um processo de perda ou eliminação do vínculo ou


limite territorial.
25 Disponível em: http://www.racismoambiental.ufba.br/.
41

No ano de 2005 o Grupo Votorantim Energia instalou a Usina Hidrelétrica


Pedra do Cavalo, localizada na Barragem. A obra é objeto da Embasa e Governo do
Estado da Bahia. Segundo os relatórios, os impactos ambientais vêm sendo
sentidos pelas comunidades que têm seu sustento associado ao extrativismo.
Diante disso, a qualidade e garantia do ecossistema é decisivo para a sobrevivência
das comunidades locais. Esses impactos vêm sendo sentido com a retenção da
água, impedindo o seu fluxo natural, alterações nas condições de salinidade do
estuário e agravando o assoreamento do rio.
Tanto os moradores de Santiago, como os, das demais comunidades
vizinhas, dependem do território em que vivem para o plantio de pequenas roças de
subsistência, do mar, e dos mangues para exercerem a atividade da pesca e da
mariscagem.
O agravo na situação dos conflitos vivenciado na comunidade tem relação
com expansão de empreendimentos, legalizado tanto pelo governo Estadual quanto
pelo poder judiciário, privilegiando os interesses do capital, e mitigando garantias
efetivas trazidas pelo texto constitucional na proteção do território tradicionalmente
ocupados pelos remanescentes quilombolas, como explica Alfredo Wagner de
Almeida:

A engenharia política conservadora e racista tenta reeditar a velha


fórmula das forças anti abolicionistas que, encasteladas nas
plantations cafeeiras e açucareiras, mobilizaram militares e
mandatários e impediram a aprovação de um instrumento legal que
facultasse o acesso dos ex-escravos à terra. A pedra no sapato
desses conservadores, que transforma em farsa esta tentativa de
montar uma frente anti-direitos quilombolas, é que, um século depois,
a correlação de forças mudou, está sendo construída uma sociedade
democrática e pluriétnica, os direitos das comunidades quilombolas
estão constitucionalmente reconhecidos e há uma identidade coletiva
objetivada em movimento social em condições de travar uma luta
política. [...] Os antagonismos sociais em jogo transcendem, nesse
sentido, os fatores meramente econômicos e trazem a questão à
cena política constituída. Mediante obstáculos desta ordem, a
titulação definitiva das comunidades remanescentes de quilombos se
mostra mais que essencial, posto que, historicamente, as famílias
destas comunidades têm sido mantidas como “posseiros” e assim
parecem pretender mantê-las aqueles interesses contrários ao seu
reconhecimento. Mantidas como eternos “posseiros” ou com terras
tituladas sem formal de partilha, como no caso das chamadas terras
de preto, que foram doadas a famílias de ex-escravos ou que foram
adquiridas por elas, sempre são mais factíveis de serem usurpadas.
Negar o fator étnico, portanto, além de despolitizar a questão, facilita
42

os atos ilegítimos de usurpação e de violação dos dispositivos


constitucionais. (ALMEIDA, 2011, p. 161).

A construção da hidrelétrica pedra do cavalo, apresenta-se como a


materialização na operação de um modelo de gestão capitalista por parte do Estado,
que se utiliza de variadas estratégias para controlar e demonstrar poder sobre o
território, atuando em favor dos interesses das classes hegemônicas, de forma direta
ou indireta (SANTOS, 2006). A negação desses direitos às comunidades, pelo
Estado, provoca a estimulação da expansão de empreendimentos e a expropriação
de suas terras, ajudando a desfazer os vínculos identitários que se constituíram no
decorrer do tempo com território.
43

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Território é a referência na construção da identidade étnica, se tornado o


processo mais importante da estrutura social de uma comunidade constituída de
povos tradicionais. A permanência na terra não está pautada por categorias formais
de propriedade e sim, pelo próprio grupo que determina, através do “direito
costumeiro”, as normas que orientam todas as estratégias da vida social . As formas
de acesso à terra, incluem as dimensões simbólicas e as relações sociais. A estreita
relação do grupo com a terra representa uma relação social bastante complexa e
aponta para a existência da terra como território (MALCHER.2006, p.8).
A pesquisa teve como objetivo descrever o processo de organização político,
social e indenitária no fortalecimento da luta pelo território da comunidade, nota-se
aqui, que a construção da identidade dos sujeitos está intimamente ligada à história
do território, buscando afirmar a diferença do grupo, a fim de garantir a continuidade
de seus valores e modo de vida. É através da memória, que a história dessas
comunidades estão "contadas". Essa história é marcada pelo lugar, lugar esse tão
importante, ‘pois é o que define o negro não como um sujeito genérico, mas sim o
negro de uma comunidade ou grupo que ocupa um determinado território, uma terra
que lhe pertence’. (GUSMÃO, 1999, p.145). memórias essas sobre o território, de
sua formação, de sinais que possam reafirmar a antiga ocupação e dar sentido a
questões contemporâneas. O processo em curso de re-conscientização sobre as
raízes históricas do grupo recoloca a problemática da terra e sua interação com a
possibilidade de ação comunicativa como sujeito.
A problemática da terra vivenciada por essas comunidades aparece em meio
a conflitos seja pelo processo de negação de direitos pelo estado com sua
burocratização com os entraves na conclusão das peças administrativas necessárias
para o processo de regularização fundiária da comunidade com sua titulação
definitiva. A questão da morosidade nos procedimentos judiciais em que a
comunidade está envolvida é explicada através da constituição do direito na
sociedade burguesa, onde proprietários de terra exercem dominação sobre a criação
e a aplicação de normas na sociedade brasileira, na qual o Estado se assume
patrimonialista.
As questões territoriais na Comunidade Quilombola de Santiago do Iguape,
pesar de não se mostrar em evidência aos primeiros olhares, são deveras
44

complexas, e apresentam-se enraizadas, pois parte da Comunidade ainda é


obrigada, periodicamente, a realizar o pagamento do Foro pela terra que utiliza e
mora. Esse fato foi comprovado através de consulta a documentos.
É importante ressaltar, que, por se tratar de uma comunidade quilombola,
legalmente reconhecida pela Fundação Palmares, e estar esperando apenas a
certificação do INCRA, o território é um direito dos habitantes, conquistado
historicamente, o que mostra a necessidade de um debate acerca do pagamento da
taxa de Foro da terra em questão.
45

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48

TORRES, Paulo Rosa. Comunidades remanescentes de quilombos: da escravatura


à disputa contemporânea por seus territórios / Paulo Rosa Torres. – Salvador, 2020.
49

APÊNDICE A – FORMULÁRIO DE INFORMAÇÕES SOBRE A COMUNIDADE


QUILOMBOLA DE SANTIAGO DO IGUAPE

1. UF
2. CÓDIGO DO IBGE
3. MUNICÍPIO
4. NOME DA ASSOCIAÇÃO
5. NOME DA COMUNIDADE
6. COORDENADAS GEOGRÁFICAS
7. CNPJ DA ASSOCIAÇÃO
8. DATA DE FUNDAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO
9. PROCESSO DE TITULAÇÃO ( ) INCRA ( ) ITERPA ( )SEM PROCESSO
10. TITULADA ( ) SIM ( ) NÃO
11. Nº DO PROCESSO
12. ÁREA/HA DA COMUNIDADE
13. NÚMERO DE FAMÍLIAS
14. EDITAL RTID NO DOU
15. PORTARIA NO DOU
16. DECRETO NO DOU
17. DATA DE TITULAÇÃO
18. CERTIFICADA ( ) SIM ( ) NÃO
19. NÚMERO DO PROCESSO
20. DATA DA ABERTURA DO PROCESSO
21. DATA DE EMISSÃO DO D.O.U.
50

APÊNDICE B - ROTEIRO DE ENTREVISTA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS - DCIS
BACHARELADO EM DIREITO

Nome da Comunidade:_________________________________Data:____/_____/_______
Nome do Entrevistado:_____________________________________Apelido: Idade:
___________Sexo: ___Masc___Fem. Escolaridade:______Profissão: Caso o entrevistado
(a) não seja o(a) responsável pela família informe a posição familiar: 1 - Local de origem dos
formadores da família: Homem______________Mulher__________ 2 - Sua Família sempre
trabalhou na terra: ( )sim ( ) Não. Se a resposta for não. Desde quando está na terra?
_________ Chegou vindo de uma Zona__Rural __Urbana. 3 - Modalidade de acesso à terra
antes da emissão do título quilombola: ( )compra ( )ocupação ( )concessão de uso ( )
herança ( ) arrendamento ( ) 4 - Modalidade de acesso à casa: ( ) Própria ( ) Alugada ( )
Cedida 5 - Quantas pessoas moram na residência: 6 - Com quem aprendeu a trabalhar com
a terra? ( ) Avós () Pai ( ) Mãe () Parentes () Amigos () Técnicos 7 - Participa de alguma
organização ou grupo comunitário? Cooperativa ( ) Sindicato ( ) Igreja Católica ( ) Igreja
Evangélica (___________) ( ) Outros: Especificar: 8 - Na sua opinião qual o grau de
importância da organização? ( ) Fundamental ( ) Importante ( ) Pouco importante ( ) Não é
necessária 9 - Na sua opinião quais os principais problemas da comunidade ( ) Problemas
Econômicos ( ) Problemas Sociais ( ) outros 10 - Atividade agrícola: Tem roça ( ) sim ( ) não
Porque: Quantos participam da atividade agrícola? M( ) F( ) 11- Atividades coletivas na
comunidade: Qual a importância da terra para você? O que produzem? Comercialização
como é feita?

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