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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Valmir dos Santos Batalha

Os rituais Pankararu: memória e resistência

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (ANTROPOLOGIA)

SÃO PAULO
2017
Valmir dos Santos Batalha

Os rituais Pankararu: memória e resistência

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (ANTROPOLOGIA)

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Ciências Sociais (Antropologia),
sob a orientação da professora Dra. Dorothea
Voegeli Passetti.

SÃO PAULO
2017
Banca Examinadora

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________
AGRADECIMENTOS

Só foi possível concluir este trabalho graças à colaboração de diversas e generosas


pessoas, em diversos momentos.
Agradeço ao povo Pankararu, de modo especial aos que habitam a aldeia do Brejo
dos Padres, pelo acolhimento. Principalmente ao cacique Zé Auto (José Auto dos Santos), à
Família Binga (em memória: Sr. Zé Binga e dona Verônica). Ao Major (José Antônio Felix
de Souza), Marco Souza e ao Povo Pipipã, da aldeia Pedra Tinideira, Cacique José Silvio, ao
pajé Genilson. Um obrigado muito especial à minha orientadora professora, Dra. Dorothea
Voegeli Passetti, que, com sua sapiência, guiou os rumos deste trabalho; às doutoras Sandra
Maria Cristiani de La Torre Lacerda Campos e Maria Helena Villas Boas Concone, com suas
valorosas e sábias palavras no Exame de Qualificação. Minha gratidão a Carla Cristina
Garcia, Mônica Caetano, Natam, Caetano Misael Caetano, Alaide Batalha, Lindomar
Caetano, José Caetano, Maria de Lourdes e Marconi. A minha gratidão ao Pe. Sergio
Henrique Nouh, pelo auxílio e acolhimento ao chegar em São Paulo. Minha intensa gratidão à
professora Maristela, que tanto me auxiliou. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro. À minha família mais próxima: minha
mãe, em memória, Maria José dos Santos Batalha; meu pai, Amarilho Vieira Batalha; meus
irmãos, que sempre me apoiaram nas minhas escolhas, Valdeni Batalha, Damião Batalha,
Valdirene Batalha, José Amauri Batalha e Marly Batalha. Ao padre José de Anchieta, que leu
os meus primeiros escritos. Aos meus amigos, que tanto me ajudaram: Luzia Estela Longhi,
Flávio Longhi, Aparecido Longhe, Gecione Longhe e todos os paroquianos da Paróquia
Nossa Senhora Aparecida de Ferraz de Vasconcelos - SP. À Katia Cristina da Silva Rafael
Diego Garcia, do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Aos
membros do núcleo INANNA.
RESUMO

Este estudo etnográfico, que ora apresento, dos rituais do Menino do Rancho, Mesa de Cura,
Corrida do Imbu, Penitência e Pagamento de Prato, da sociedade indígena Pankararu,
apresenta um alto valor cultural, social, religioso e político. A pesquisa de campo foi
direcionada à compreensão das representações e relações dos Encantados com os humanos,
que estabelecem contratos através de trocas. Esta Tese pretende colaborar na compreensão da
cultura ritualística complexa de um povo que estabeleceu no passado relação social com
outros povos indígenas para manter vivas suas tradições; perderam a língua materna, mas
mantiveram seus hábitos. Os Pankararu têm como aldeia mãe o Brejo dos Padres, no
município de Jatobá, no Estado de Pernambuco, na região do submédio do rio São Francisco.
Os Encantados têm poder de curar e agregar na vida social os membros dessa sociedade. Os
ritos Pankararu, aos poucos, vão absorvendo valores urbanos e da Igreja Católica.

Palavras-chaves: Pankararu. Etnologia indígena. Rituais. Resistência. Cosmologia.


ABSTRACT

This ethnographic study presented here about the “Menino do Rancho”, “Mesa de Cura”,
“Corrida do Imbu”, Penitência and “Pagamento de Prato” rituals from the native society
Pankararu, presents a high cultural, social, religious and political value. A field research was
conducted to the understanding of representations and relations between “Encantados” and
humans, who establish contracts through exchanges. This study intends to collaborate on the
understanding of the complex ritualistic culture of people who established in the past, social
relationship with other native people in order to keep alive their traditions; they lost their
mother tongue, but kept their customs. The Pankararu people have their first village at “Brejo
dos Padres”, in Jatobá town, in the state of Pernambuco, in the region of São Francisco river.
The “Encantados” have the power of healing and aggregating in the social life the members of
this society. The Pankararu rituals are gradually incorporating the urban values and the
Roman Catholic Church.

Keywords: Pankararu. Indigenous ethnology. Rituals. Resistance. Cosmology.


Praiás no Terreiro

Fonte: Matheus Levi (2015).


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 08
2 O MÉTODO DA PESQUISA ................................................................................... 12
2.1 Contextualização do Povo Pankararu ..................................................................... 16
2.2 Conflitos entre os Pankararu e os posseiros ........................................................... 30
2.3 A Usina Hidroelétrica de Itaparica e a violação dos direitos humanos ............... 31
2.4 Abordagem arqueológica ......................................................................................... 39
2.5 Povos indígenas que habitam o estado de Pernambuco ........................................ 45
3 O MENINO DO RANCHO: ALIANÇA COM OS ENCANTADOS ................... 50
3.1 Os Toantes ................................................................................................................. 63
3.2 O Maracá ................................................................................................................... 65
3.3 O Toré ........................................................................................................................ 66
4 A CORRIDA DO IMBU ........................................................................................... 70
4.1 Os ciclos da Corrida do Imbu: o fechamento ......................................................... 70
4.2 A abertura do terreiro .............................................................................................. 77
4.3 Oferta de cestos aos praiás ....................................................................................... 85
4.4 Organização da Corrida do Imbu ........................................................................... 87
4.5 Noite dos Passos ......................................................................................................... 87
4.6 Penitência ................................................................................................................... 91
5 OS PANKARARU E A DEVOÇÃO A NOSSA SENHORA DA SAÚDE ........... 95
5.1 Origens da devoção à Nossa Senhora da Saúde ................................................... 105
5.2 O Novenário dedicado à Nossa Senhora da Saúde ............................................... 109
5.3 A devoção à Nossa Senhora da Boa Morte ........................................................... 111
5.4 A estrutura do Rosário ........................................................................................... 114
6 A MESA DE CURA ................................................................................................ 121
6.1 O Catimbó ................................................................................................................ 130
6.2 A Jurema nos rituais ............................................................................................... 133
6.3 A influência dos orixás entre os Pankararu .......................................................... 134
6.4 Encantados e Obaluaê: a influência dos Exus ...................................................... 137
6.5 As plantas mais usadas pelos Pankararu .............................................................. 143
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 148
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 153
8

1 INTRODUÇÃO

A minha inquietação para com os povos Pankararu começou em dezembro de


2011, quando fui apresentado a algumas de suas lideranças. Na ocasião, fui convidado pelo
senhor Zé Binga a participar do ritual do Menino do Rancho e, assim, tive contato com as
forças Encantadas (índios que não morreram e, sim, que tiveram o poder do encantamento e
permanecem na aldeia para servir e ajudar a todos os que precisarem). Antes, os Encantados
habitavam as cachoeiras de Itaparica e Paulo Afonso, mas, com a construção do complexo
hidroelétrico de Paulo Afonso, os Encantados migraram para as serras da região.
O senhor Zé Binga, conhecedor da história, na ocasião falou que conheceu meu
avô e que eu também era índio e pertencia ao povo Pipipã. Curioso, busquei checar as
informações e descobri que meu avô já falecido, José Francisco da Silva, pertencia ao povo de
Serra Negra (Pipipã). Assim, começaram a surgir-me diversas perguntas sem respostas sobre
a organização dos Pankararu:
1) Como esse povo, apesar de tantas perseguições, continua unido?
2) Por que existem variações de cor de pele entre eles?
3) O que significam esses rituais?
4) Seu pensamento mitológico está baseado em quê?
5) Como eles continuam, ainda hoje, com os rituais, apesar de terem contato com
diversas outras culturas?
Assim, com o tempo, fui descobrindo que a vida social está organizada em torno
dos Encantados e da crença de que a unidade é capaz de vencer os obstáculos e conquistar
direitos antes distantes.
As pesquisas etnográficas do povo Pankararu — especificamente a aldeia do
Brejo dos Padres, próxima às margens do rio São Francisco, no sertão pernambucano — me
chamaram atenção na execução dos ritos e rituais vividos na atualidade, pois sobrevivem às
diversidades culturais e às transformações que ocorrem cotidianamente no Brasil. Ao longo da
pesquisa, busquei compreender a vida religiosa, política e social dos habitantes do Brejo dos
Padres.
O povo Pankararu também chamou a atenção do antropólogo Carlos Estevão, que,
em fevereiro de 1935, os visitou e, posteriormente, fez uma pequena etnografia dessa
sociedade, sendo publicada com o nome de “O ossuário da Gruta do Padre em Itaparica e
algumas notícias sobre remanescentes indígenas do Nordeste”. O material foi publicado no
Boletim do Museu Nacional do Rio de Janeiro (XIV - XVII - 1938 - 1941). Estevão ouviu do
9

velho índio Anselmo que ali havia uma gruta “na qual tinham sido queimados vivos um padre
e uma moça” (ESTEVÃO, 1943, p. 157).
Interessado na lenda, descobriu que o relato informava que o padre fugiu do Piauí
com uma moça. A família dela, não aceitando o fato, perseguiu os fugitivos, encontrou-os
nessa gruta e os matou asfixiados dentro da mesma. A lenda contada pelo índio Anselmo não
o convenceu. Ao chegar à gruta, viu, “logo à primeira vista, que a história do Padre que, aliás,
já havia servido para dar nome ao Serrote e à Gruta, não passava, efetivamente, de lenda”
(ESTEVÃO, 1943, p. 157).
Nos dias passados entre os Pankararu, Estevão pôde participar do cotidiano da
vida social e religiosa desse povo. Descobriu que não havia apenas Pankararu (Pancararús) na
aldeia, e sim remanescentes de diversas outras etnias: Macarús, Geripancós, Quaças ou
Ituaçás, Pipipões, e todos participavam das mesmas manifestações religiosas.
Carlos Estevão chegou à aldeia no período da realização do ritual da Corrida do
Imbu e foi possível participar e fazer uma descrição de parte do mesmo. Porém, como as
festividades se estendem durante o mês inteiro, não conseguiu acompanhar toda a sua
execução. Na ocasião, ele participou também do ritual do Ajucá (Jurema), hoje pouco
realizado entre os Pankararu, mas largamente realizado entre outros povos indígenas do
Nordeste, entre eles os Pipipã, que realizam constantemente o ritual da Jurema e mantêm o
segredo da confecção da bebida servida durante esse período.
A presente pesquisa parte do pressuposto de que cada povo, em qualquer época,
constrói a sua história partindo das suas necessidades e estabelecendo relações com o
ambiente em que vive, produzindo, assim, instrumentos que sirvam para o coletivo e que
instrumentalizem normas e formas para melhor viver nesse contexto. Não desenvolvem
apenas instrumentos de sobrevivência, mas também produzem cultura, política e religião.
Dominar a natureza ou adaptar-se a ela é um mecanismo de integração, superação
ou convívio pacífico com a mesma. Os povos Pankararu não estão desvinculados da natureza,
mas sim integrados a ela, utilizando-se dos meios naturais para melhor integrar-se com o
cosmo e suas crenças nos seus principais rituais, que agora são apresentados após sete meses
de observação e convivência na aldeia do Brejo dos Padres no município de Jatobá (PE).
Após esses meses, foi possível apresentar uma etnia com seus rituais, forma social e política
organizacional em torno de um pensamento mítico real para todos que vivem essa realidade.
As Ciências Sociais apresentam o Homem como sendo o agente de seus atos e,
enquanto são atos humanos, os leva à liberdade e a liberdade os leva a buscar a autonomia e
esta, por sua vez, o conduz a defrontar-se com os desafios da natureza e os de cunhos
10

sobrenaturais, levando-o ao desígnio da divindade, da humanidade e o homem ao


questionamento da ação e da existência dos mesmos. À luz desses pensamentos, vemos que o
homem, desde os tempos remotos, busca acalmar as divindades oferecendo algo em troca para
manter sua harmonia com a natureza. Hoje, vivendo num mundo “autossuficiente”, pode-se
compreender o sentido de sua existência, o sentido da história e o sentido de seus próprios
atos humanos. O Homem e o universo não são absolutos, ambos estão abertos ao
transcendente, à pluralidade e sujeitos às transformações.
Sabemos que a música é objeto de muita relevância nos rituais entre os Pankararu
e está dividida entre Toantes e Torés, e tem relação direta com os Encantados. Além disso, a
influência deles não se restringe apenas à religiosidade e, sim, a todo o contexto social e
político — afinal, a família que possui um maior número de Encantados ou é a dona do
Terreiro, tem mais direitos políticos. Os rituais de maior relevância para esse povo são: a
corrida do Imbu, o Toré, o Menino do Rancho e a Mesa de Cura. Estas celebrações não têm
datas fixas para acontecer: a corrida do Imbu, por exemplo, está atrelada a fenômenos da
natureza (chuva). O ritmo dos rituais Pankararu não está confinado a uma estrutura executada
em toda etnia, ou seja, pode haver variações do mesmo ritual em outras aldeias, conforme o
que Boas diz: “o ritmo não está confinado as unidades maiores, sendo aplicado como recursos
artísticos na estrutura detalhada” (BOAS, 2014, p. 301).
Há discurso social de pesquisador, que apresenta muitas vezes o seu imaginário e
este, somado a outros, produzem algo mais que o real da realidade vivida, deixando assim de
lado, os fatos que compõem o cenário pesquisado. Nesse contexto, a etnografia fica no
imaginário do pesquisador e se soma ao seu ideário social, deixando para trás os fatos reais
apresentados no dia a dia do povo pesquisado. Às vezes, o pesquisador é levado a contaminar
a cultura pesquisada com sua cultura.
Aqui podemos nos lembrar dos relatos dos viajantes que, muitas vezes,
descreviam suas experiências a desenhistas e estes imprimiam na tela o imaginário do que
observaram acrescido de fantasia e relatando desta forma o não real. É comum, nos relatos
dos europeus, no período colonial, a descrição de sereias, cobras gigantes e voadoras e
monstros marinhos que engoliam as embarcações. O Novo Mundo apresentava pessoas sem
alma, religião, moral, família, seres parecidos com homens selvagens que comiam os homens
civilizados... A imaginação levava a criar os habitantes das terras “recém-descobertas” e que
tinham cara de cachorro ou mesmo de outros animais.
Dentro de um contexto real, a etnografia deve ser apresentada como ela, de fato, é:
pessoas que vivem em uma sociedade pautada nos seus antepassados e que, apesar de terem
11

experiência com outras culturas, lutam para manterem vivos os hábitos, a história de luta e de
poucas conquistas que remetem aos seus ancestrais.
12

2 O MÉTODO DA PESQUISA

Figura 1 – Pagamento de prato

Fonte: arquivo pessoal do autor (2016).

A metodologia utilizada neste trabalho de pesquisa foi etnográfica, fazendo uso de


fontes orais, depoimentos, relatos de vida e a convivência com os Pankararu. O estudo, a
leitura e a pesquisa de muitos e variados documentos e livros sobre o assunto também foram
de suma importância para a obtenção de mais dados e informações, que agregaram mais
conhecimento e embasamento teórico. A escolha da metodologia foi sendo tecida a partir da
convivência e da participação no cotidiano da comunidade, sendo compreendido
gradativamente o processo organizacional, político, cultural e religioso. Além disso, a
observação, as entrevistas e a interação entre o pesquisador e o objeto pesquisado propiciaram
mais enriquecimento ao projeto, mostrando não somente a teoria (dados, documentos,
registros...), mas também a prática (visitas, obtenção de fotos, participação nos rituais...) e a
perfeita articulação entre ambas.
O processo de identidade foi sendo processado ao longo dos anos, tendo como
referência os antepassados, que guardam os seus feitos na memória do sujeito e são
externados nos rituais e nas manifestações coletivas ou privadas na aldeia Brejo dos Padres. A
convivência com os índios e a participação na vida cotidiana e nos rituais descritos foram de
grande auxílio para comprovar tudo o que é relatado no projeto, sendo mantida a visão dos
sujeitos pesquisados, como prova de sua cultura e costumes.
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O método etnográfico é utilizado nas ciências sociais por considerar-se um


instrumento que coloca a comunidade em evidência, dando voz e vez à forma de ser e de
viver numa comunidade à qual se pertence, reproduzindo desta forma a cultura. Assim, a
análise descritiva dos fatos ganha maior relevância na descrição e na apresentação dos
resultados obtidos. Nesse cenário, a etnografia é qualitativa, tendo sua origem na antropologia
cultural, que apresenta a cultura de uma sociedade como ela é, fazendo uso das variações
culturais em áreas específicas, estudando os grupos humanos em uma perspectiva social,
abordando a cultura, normas morais, valores e experiências de vida.
Franz Boas e Bronislaw Malinowski foram os primeiros a desenvolver o método
na antropologia, indo a campo com o objetivo de responder a perguntas antes não respondidas
ou compreendidas. Nessa perspectiva, propõem um estudo profundo e contínuo baseando-se
na observação e interação com o povo pesquisado.
No livro Os argonautas do Pacífico Ocidental, Bronislaw Malinowski (1922)
sistematiza o método etnográfico e mostra a função do “Kula”, que é o sistema de troca (sem
a ideia de posse permanente) dos nativos das Ilhas Trobriand, na Nova Guiné. O trabalho foi
realizado nos anos de 1914 e 1918. A abordagem é feita de forma que o leitor compreenda os
acontecimentos, sendo possível a descrição a partir da vivência do pesquisador entre os
nativos:

Antes de prosseguir com a descrição do Kula, será conveniente fazer uma descrição
dos métodos utilizados na recolha do material etnográfico. Em qualquer ramo do
conhecimento, os resultados de uma pesquisa científica devem ser apresentados de
maneira totalmente neutra e honesta. Não ocorreria a ninguém fazer uma
contribuição experimental no âmbito da ciência física ou química sem dar conta
detalhada de todos os passos das experiências que efetuou, uma descrição exata dos
instrumentos utilizados, da maneira como as observações foram conduzidas, do seu
número, da quantidade de tempo que lhe foi dedicado e do grau de aproximação
com o qual cada medida foi realizada. Nas ciências menos exatas, como na Biologia
ou na Geologia; isto não pode ser feito de forma tão rigorosa, mas qualquer
estudioso fará o seu melhor de maneira a fornecer ao leitor todas as condições em
que as experiências ou observações foram efetuadas (MALINOWSKI, 1922, p. 18).

Compreender a cultura a partir da sua essência é conviver e ouvir dos próprios


nativos as suas narrativas e explicações e a sua forma de ser e agir no meio em que vivem. É
uma ciência do concreto, tendo, como ponto de partida, a interação entre pesquisador e
pesquisado. O pesquisador deve despir-se e colocar-se na pessoa do outro. É deixar o seu
conforto para viver como o outro:

Imagine o leitor que, de repente, desembarca sozinho numa praia tropical, perto de
uma aldeia nativa, rodeado pelo seu material, enquanto a lancha ou pequena baleeira
14

que o trouxe navega até desaparecer de vista. Uma vez que se instalou na vizinhança
de um homem branco, comerciante ou missionário, não tem nada a fazer senão
começar imediatamente o seu trabalho etnográfico. Imagine ainda que é um
principiante sem experiência anterior, sem nada para guiá-lo e ninguém para ajudá-
lo, pois o homem branco está temporariamente ausente, ou então impossibilitado ou
sem interesse em perder tempo consigo. Isto descreve exatamente a minha primeira
iniciação no trabalho de campo na costa Sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das
longas visitas que efetuei às povoações durante as primeiras semanas e da sensação
de desânimo e desespero depois de muitas tentativas obstinadas, mas inúteis, com o
objetivo frustrado de estabelecimento de um contato real com os nativos ou da
obtenção de algum material. Atravessei períodos de desânimo, alturas em que me
refugiava na leitura de romances, tal como um homem levado a beber numa crise de
depressão e tédio tropical (MALINOWSKI, 1922, p. 19).

No desenvolvimento do trabalho de campo, é preciso escolher um grupo que


preserve sua cultura nativa, que viva o fenômeno e que procure transmitir às futuras gerações.
O etnólogo, com base em informações gerais, escolhe informações com informantes-chave
para elaborar o seu plano de trabalho e, assim, não correr o risco de imprimir seu pensamento,
mas, sim, o que foi vivido e observado no período no qual realizou a pesquisa. Para a escolha
de tais informações, o pesquisador precisa valer-se do tempo de observação e convivência,
que pode variar entre semanas, meses ou anos. Só assim seu trabalho se torna efetivo e
confiável, pois analisar o objeto pesquisado por um determinado período e em diversas
situações possibilita colher mais dados e informações importantes e indispensáveis à
realização do projeto.
A principal forma de coleta de dados é feita através da observação, entrevista,
conversa informal e análise de produção científica (se houver), bem como a história de vida:
os dados coletados serão verificados procurando obter respostas para as questões levantadas
anteriormente e buscando a compreensão dos fatos que cercam a sociedade estudada. A
análise dos dados obtidos será de extrema importância para extrair a compreensão dos valores
e crenças presentes no povo estudado.
O diário de campo foi um grande aliado na coleta das informações e na elaboração
deste trabalho. O olhar direcionado vai percebendo valores antes não vistos ou desprezados
em um primeiro momento. Com a convivência do pesquisador com o sujeito, vai sendo
revelado, aos poucos, o que, de fato, não é conhecido e que é praticado fora do olhar do outro.
Entrar na cultura do outro é descobrir valores antes não percebidos ou nem imaginados e, até
mesmo, no que não é externo e consciente, é possível ver fragmentos culturais e fazer ligações
com a memória que contribui para a manutenção do presente.
15

A memória1 é formativa de um coletivo que consegue preservar a cultura na forma


de celebração nas representações dos sujeitos e na constituição de novos membros que sempre
recorrem a fatos para preservar a maneira de ser de uma sociedade humana. Ela precisa do
testemunho do outro e, nesse processo de relacionar-se, é perpetuada a memória coletiva;
dentro desse coletivo, o ser humano faz a história. “Cada memória é única, tem a marca e é
constitutiva de nossa identidade, fazendo parte, simultaneamente, das comunidades restritas
ou ampliadas das quais participamos; ligando-nos também às memórias comuns, sócio-
históricas” (BRANDÃO, 2008, p. 16).
Quando o homem se esquece de esquecer algo, ele sempre terá em si o
acontecimento positivo ou negativo. Para conservar os acontecimentos, é preciso ter uma
relação afirmativa, seja ela positiva ou negativa. A escolha dos informantes da pesquisa aqui
apresentada foi feita observando-se alguns critérios preestabelecidos como:
a) pertencer ao tronco velho Pankararu;
b) morar em terras Pankararu;
c) exercer alguma liderança na aldeia.
Estabelecidos os critérios seletivos, busquei conversar com os selecionados e
explicar do que se tratava. Uma vez aceita a proposta, deveria assinar um termo de
compromisso, o qual especificava que não lhes traria nenhum prejuízo.
Eu buscava respostas para perguntas como:
1) Como surgiu a figura do Praiá?
2) Quais os rituais de maior relevância na aldeia do Brejo dos Padres e quando
eles eram realizados?
3) Como surgiram os índios Pankararu?
4) Como se dá a organização religiosa e política da aldeia?
5) Qual é o meio de sobrevivência deles no período de seca?
6) Como foi o processo de demarcação das terras tradicionais?
7) A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) presta assistência aos membros da
aldeia?
Depois de elaborados os critérios de perguntas aos informantes selecionados no
decorrer dos trabalhos, foi necessário também buscar informações fora da aldeia, mas não fora
do meio indígena. Havia informações não precisas dos aldeados no tocante aos conflitos
agrários — ocorridos na construção da usina hidroelétrica Luiz Gonzaga — e conflitos entre

1
A origem da palavra memória vem da mitologia greco-romana, precisamente à deusa Mnemósine:
personificação das lembranças (BRANDÃO,2008, p.8).
16

agricultores, granjeiros, índios e a Companhia hidroelétrica do São Francisco (CHESF). Com


a construção do Lago de Itaparica, grande parte das terras férteis foi inundada, afetando índios
e não índios. O projeto da CHESF era apresentado como algo muito positivo. No entanto,
após a sua construção, o que se observa é o não cumprimento de grande parte do que foi
prometido e a destruição de muitos planos e sonhos daqueles que viam na indenização uma
oportunidade de melhorar suas vidas.
No período da pesquisa, foi possível conviver com o sofrimento eminente e a
ausência de políticas públicas em todos os níveis. A luta pela sobrevivência é algo constante
na vida dos Pankararu. Tal luta não se restringe apenas às situações políticas, econômicas,
sociais e territoriais, mas também à preservação de sua identidade, cultura e origens. Observa-
se que, apesar das dificuldades e problemas enfrentados, eles não perdem seus costumes e
rituais e fazem questão de manter ao máximo o que aprenderam de seus antepassados,
garantindo, assim, a transmissão para as futuras gerações.
No trabalho de campo, os informantes não só falaram do que foi perguntado,
como também contaram seus problemas pessoais e suas memórias, as relações que tinham
para com as outras aldeias e culturas diversas, mostrando, assim, que o homem é constituído
de relações e de cultura; quando um povo deixa de realizar seus rituais, está deixando espaço
para o esquecimento ou à demência. Por isso, é importante reforçar e buscar cada vez mais
preservar as origens, a cultura, os conhecimentos e experiências que fazem parte do nosso
país, valorizando-os e divulgando-os para que permaneçam vivos na memória e no coração de
todos.

2.1 Contextualização do Povo Pankararu

O cenário sócio-político e cultural do Nordeste nos séculos XVII e XVIII foi


marcado por conflitos e lutas entre colonizadores e índios. Os colonizadores invadiram a
região do sertão nordestino usando as águas do rio São Francisco, com o objetivo de buscar
ouro e pedras preciosas (ARRUTTI, 1995, p. 63-65). Nessas buscas, os colonizadores foram
personagens de diversos massacres da população indígena do Nordeste. Quando não os
massacravam, os tomavam como escravos.
Muitos índios do sertão pernambucano foram obrigados a aderir a políticas de
interesses do governo da época. Quando isso não acontecia, eram executados. Carvalho
(2002, p. 84), afirma que “em 1824, uma aldeia sofreu um violento ataque das tropas do
governo liberal da Confederação do Equador”. O autor, citando Pereira Costa, percebeu que,
17

aqui habitavam antes de sua chegada, sem falar da população negra trazida da África e
vendida em feiras livres como se fossem animais de comércio. Não vamos nos ater aqui à
questão da escravidão dos africanos e, sim, à questão do índio.
A escravidão indígena se iniciou em São Paulo e se estendeu para as outras partes
do país. Desde 1600, os plantadores2 de trigo de São Paulo prendiam e escravizavam os índios
da região com a finalidade de suprir a escassez de mão de obra no campo, tendo em vista a
questão financeira. Para satisfazer as necessidades dos agricultores, foram organizadas as
grandes bandeiras para caçar os índios. Para ter maior sucesso nas buscas, atacavam as
missões, fazendo de muitos índios prisioneiros e matando outros tantos, destruindo, assim, a
missão atacada.3 Os feitos “heroicos” nada mais eram que mão de obra escrava: índios eram
retirados de suas terras com extrema violência. Os feitores da barbárie não viam o índio como
gente, mas, sim, como objetos a serem explorados. Os índios, não aceitando os fatos, reagiam,
fugindo para os sertões ou cometendo suicídio. Muitos povos foram dispersos por esses atos e
o grupo, tornando-se cada vez menor, ficava mais vulnerável a ataques dos bandeirantes.
Outro fator que contribuiu com a escravização dos índios do Sertão foi a criação
de gado no Nordeste, em meados do século XVI. Essa atividade colaborou com a
consolidação do poder colonial sob o domínio do governador geral Tomé de Sousa. O gado
era a moeda corrente para mover a economia dos engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste;
utilizavam-se bois como força para mover a maquina de moagem. Os engenhos de cana-de-
açúcar, inicialmente, estavam no litoral do Nordeste. Com o passar dos anos, os colonos
foram avançando para o interior. Os bois eram usados para transportar a cana-de-açúcar para
os engenhos e para a moagem da cana para, posteriormente, transformar o melaço em açúcar.
No início, o gado era criado próximo ao engenho, mas o rebanho bovino invadia
as plantações e, ao mesmo tempo, ocupava áreas que poderiam ser utilizadas pelo plantio da
cultura de cana. Com esses fatores, os senhores de engenho do Nordeste soltaram o gado em
áreas vizinhas, as chamadas terras do governo. Com a soltura do rebanho, aos poucos, os
animais foram penetrando no sertão, sendo acompanhados pelos vaqueiros, que seguiram o
curso do rio São Francisco. Ao longo do rio, eles foram construindo os chamados currais para
prender o rebanho e defendê-lo de possíveis ataques de animais ferozes. O ambiente
colaborava com o aumento do rebanho: dispunha de pasto farto e água em ambulância. Para

2
Pero de Magalhães Gândavo, na metade do século XVI, diz que na “capitania (São Vicente) se deu já trigo,
mas não querem semear por haver na terra outros mantimentos de menos custos” (GÂNDAVO, 2008, p. 49).
3
De 1628 a 1638, as bandeiras comandadas por Raposo Tavares destruíram as missões de Guiara no Estado do
Paraná, Itatim no Mato Grosso do Sul e a Missão de Tape no Rio Grande do Sul. Neste período, milhares de
Guaranis foram escravizados e mortos.
18

os colonos, o gado era a terceira fonte econômica, sendo a primeira a extração do pau-brasil e
a segunda a cana-de-açúcar.4
Em 1701, por Carta Régia, o governo português proibiu a criação de gado no
litoral nordestino, ficando as terras destinadas à plantação de cana-de-açúcar. Com essa
proibição, restaram de fato as terras do sertão, mas, com o avanço do gado no interior,
surgiram também os conflitos com os índios dessa região.
Povos como os Icó, Canindé, Surucu, Cariri, Janduíc e Paicu, não aceitando a
invasão, reagiram contra a criação de gado em suas terras. Isso gerou conflitos entre os índios
e os colonos, ficando conhecidos como Guerra dos Bárbaros, ocorrida entre 1683 e 1713. A
Guerra está dividida em dois atos: a Guerra do Açu e a Guerra do Recôncavo, ocorridas na
Bahia, gerando conflitos na Serra do Orobó,5 Aporá6 e no rio São Francisco. Esses conflitos
ocorreram nos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Piauí e Paraíba. Os conflitos
resultaram em um maior controle dos colonos sobre os índios do sertão, chegando ao
extermínio.
A Guerra dos Bárbaros teve como principal causa o avanço dos colonizadores nas
terras dos diversos povos do Nordeste brasileiro. A presença dos índios nas terras era um
grande problema para a expansão da criação do gado e do domínio territorial, causando
conflitos e resistência dos silvícolas. Os índios começaram a se organizar, adotando o uso de
cavalos: iniciaram uma ação não esperada pelos invasores e começaram a matar gado e
vaqueiros e a incendiar sedes de fazendas.
Os indígenas, antes pacíficos e amistosos descritos por Pero Vaz de Caminha,
mediante a agressão sofrida pelos invasores, tornaram-se violentos para defender seus
territórios. Povos como os Baicu, Tremembé, Anacé, Jaguaribara, Canindé, Jenipapos e
Acriús aderiram ao movimento. Os colonizadores tinham como objetivo matar os índios e
escravizar crianças e mulheres. Os silvícolas não dispunham de um comando único para
enfrentar a guerra; isto os deixava vulneráveis e sem estratégias de ataques. Muitas vezes, os
agressores dos índios os provocavam para que eles iniciassem o confronto e poderem declarar
que a guerra era justa. Sendo declarada guerra justa, eles tinham o respaldo da Coroa para
escravizar e vitimar. Como era de se esperar, os índios foram vencidos.

4
Progressivamente, a cana-de-açúcar foi substituindo a extração do pau-brasil, passando a ser a principal
atividade econômica da região do Nordeste.
5
Atualmente, Município de Ruy Barbosa, no Estado da Bahia. Hoje, a base da economia é a pecuária de corte.
Os bandeirantes paulistas, chefiados por Brás Rodrigo de Aragão, penetraram as terras de Orobó em busca de
índios que habitavam a região. Mais tarde, sem a presença dos índios, as terras foram integradas às terras de
Antônio Guedes de Brito, que logo iniciou a criação de gado na região.
6
Município do Estado da Bahia.
19

Nada se fez para regulamentar as relações com os índios, embora nesse mesmo
período a abertura de ferrovias através de mata, a navegação dos rios por barcos a
vapor, a travessia dos sertões por linhas telegráficas, houvessem aberto muitas
frentes de luta contra os índios, liquidando as últimas possibilidades de
sobrevivência autônoma de diversos grupos tribais até então independentes
(RIBEIRO, 1970, p. 127).

Com o extermínio dos índios, o governo distribuiu as terras aos colonos, que
continuaram a criação de gado e a explorar as terras. Como o escoamento da carne era
precário, eles começaram a fazer charques: a carne salgada poderia ser enviada para diversas
partes do território sem prejuízo. Dados do IBGE7 mostram que, desde 1530, o Brasil já tinha
registro da escravização dos índios. Esta prática começou a ser combatida pelos padres da
Companhia de Jesus, em 1549, com a implantação do processo de aldeamento. Neste
processo, os padres jesuítas combatiam a escravidão dos índios pelos exploradores europeus.
Já no século XVI, precisamente em 1570, foi editada a primeira lei contra o
cativeiro indígena. A lei permitia escravizar os índios através de alegação de “guerra justa”.
No ano de 1609, a Coroa portuguesa publicou a lei que reafirmava a liberdade dos índios do
Brasil, lei esta que tentava, mais uma vez, garantir a liberdade dos índios. Outra lei, de 1755,
proibia definitivamente a escravidão dos índios: ela procurava integrar os índios à vida social
da colônia. Com a secularização dos aldeamentos, os índios foram declarados vassalos da
Coroa Portuguesa. Em 1910, o Estado brasileiro tutelou os indígenas com a criação do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI). No ano de 1967, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI)
foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
O encontro dos europeus com os índios de Porto Seguro, da Ilha de Vera Cruz,8
assim descrito por Pero Vaz de Caminha, em 1º de maio de 1500, apresentou os índios como
pacíficos e acolhedores, não mostrando resistência, mas, ao contrário, receptivos aos que
estavam chegando. Em momento algum, o autor fez menção à agressividade para com os
portugueses, mas descreveu:

Neste dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao
som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que dos seus. Se
lhes a gente acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo
tal, que se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às
naus senão quatro ou cinco; a saber, o capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um
que já trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os que o Capitão
trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido à primeira vez
quando aqui chegamos – o qual veio hoje aqui vestido na minha camisa, e com ele

7
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística. Políticas indigenistas: do século XVI ao século XX.
Disponível em: <http://cod.ibge.gov.br/213C6>. Aceso em: 31 ago. 2014.
8
Em 23 de julho de 1883, a vila que pertencia a Porto Seguro foi emancipada, tornando-se município de Santa
Cruz Cabrália. Neste município habitam os índios Pataxós.
20

um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de
cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar (CAMINHA, 1500).

Certamente, os portugueses foram surpreendidos com o encontro, apesar de os


chamarem de selvagens. “Selvagens” estes que fixaram o olhar no colar do capitão e
acenaram para a terra, como que afirmando que ali também havia o material do qual o colar
era feito, ou seja, indicavam que nas terras havia ouro.
Acredito que os indígenas receberam os europeus de modo pacífico e amigável,
até porque, segundo o imaginário religioso de suas crenças, eles viam nos brancos europeus
alguma característica semelhante à realidade dos deuses que cultuavam através de seus ritos.
Porém, a convivência com os europeus levou os indígenas a perceberem que os europeus
eram homens tão mortais quanto eles. Descobriram pouco a pouco que eram pessoas
mesquinhas e que causavam problemas para eles, para a sua cultura e religião.
Segundo Oliveira (2004, p. 8), os Pankararu, como os demais índios do Nordeste,
passaram por um processo de interação social. Foram, inicialmente, agrupados em pequenas
povoações, como a Vila Canabrava, hoje Município de Tacaratu, localizada na região do
Médio São Francisco, distante 453 km da capital, a cidade de Recife. O registro mais antigo
da região é o da capela dedicada à Nossa Senhora da Saúde, de 1752. Isto significa que a Vila
de Tacaratu foi fundada anteriormente a essa data. A cidade foi emancipada do Município de
Petrolândia em 13 de maio de 1954. O nome tacaratu significa “serra de muitas pontas ou
muitas cabeças”.
A referência histórica que se tem com relação ao aldeamento dos Pankararu9 é do
século XVIII. Os índios foram submetidos às políticas de interesses dos colonizadores, cujo
objetivo era fazer uso das terras ocupadas pelos Pankararu. Os colonizadores queriam as
terras para a criação de gado. Com esses feitos, os índios foram dominados e silenciados,
vítimas de ideologia e opressão.
O povo Pankararu faz parte das tribos dos índios do sertão, conhecidos como
Tapuia (índios que ocupavam o sertão e o cerrado), designados desta forma pelos tupis que
ocuparam a Costa do Brasil. Posteriormente, os Pankararu foram aldeados na região do Brejo
dos Padres. O novo aldeamento se deu, provavelmente, no fim do século XVIII, com os

9
Os registros que se têm deste período nos remetem ao nome de Brancararu. No aldeamento de Canabrava,
faziam parte do grupo os Pancurrurús, os Umaus, os Vouves e os Geritacó. Cildo Meireles, citado por Estevão
Pinto (1958, p. 36), afirma que os Pancararu vieram unir-se aos Bogradá vindos de águas Belas (PE), e os
Tuaças, vindos da Serra Negra, hoje Serra Negra, pertence ao Município de Floresta. Encontramos, nas
pesquisas, duas palavras que fazem referência aos índios de Serra Negra Ítuaça e Tuaçá. Acreditamos que sejam
os mesmos povos (na época, cada um escrevia como ouvia; por isso que há variação de escrita). Hoje são os
Kambiwá que habitam os municípios do Estado de Pernambuco de Floresta, Inajá e Ibimirim.
21

padres de São Felipe Neri. O aldeamento na região do Brejo dos Padres ocorreu com a
expulsão dos indígenas da região da Canabrava (Tacaratu), antes ocupada por eles.
Os padres oratorianos, presentes no Brasil desde 1659, procuravam agrupar os
índios do Nordeste, de modo especial os do sertão, em aldeias, para melhor fazer a
catequização e a organização destes nativos (CARVALHO, 2002, p. 86). Relata-nos que,
entre 1671 e 1672, os Oratorianos fizeram o aldeamento de Ararobá (índios Xucuru),
construindo uma capela e, ao redor da capela, surgiu o povoado de Madre de Deus.
Estevão Pinto, citando Sebastião de Vasconcelos Galvão, (1958, p. 41), afirma
que a cidade de “Tacaratu foi, primitivamente, um ajuntamento ou maloca indígena, da qual
faziam parte os Pancururús, os Umaus, os Vouves e os Geritacó; mais tarde esses bugres,
segundo a tradição, vieram a ser aldeados nas encostas da Borborema por dois padres
oratorianos, dando assim, origem ao nome do Brejo dos Padres”.
Antes, a região do Brejo dos Padres era chamada de Jeripancó. Com a chegada
dos padres de São Felipe Neri, a localidade cristianizada deixou de ser Jeripancó e passou a
ser chamada de Brejo dos Padres. Com a sua chegada também ocorreram algumas mudanças
no cotidiano dos habitantes da região.
Há outro relato sobre a habitação e origem dos Pankararu no Brejo dos Padres: o
professor Carlos Estevão Oliveira (OLIVEIRA, 1935, p. 158), em visita ao Brejo dos Padres,
em 25 de fevereiro de 1935, menciona que alguns indígenas relataram que os primeiros índios
a habitar a região do Brejo dos Padres vieram do Curral dos Bois, região localizada no Estado
da Bahia. Com o passar dos anos, este local de referência passou a ser chamado Santo
Antônio da Glória, sede da missão Santo Antônio da Glória. Neste local estavam os povos
Pankararé, que hoje habitam a região do Raso da Catarina, no município de Glória (BA). A
cidade antiga desapareceu com a construção da Barragem e a enchente do lago do Moxotó
(PE), que faz parte do complexo das hidroelétricas de Paulo Afonso (BA). Com o passar dos
anos e fugindo dos “coronéis”, os Pankararé juntaram-se aos Pankararu e a outros povos
advindos de diversos locais como: “Serra Negra, Rodelas, Serra do Urubu, Águas Belas,
Colégio e Brejo do Burgo” (OLIVEIRA, 1935, p. 159). Os povos que habitavam essas regiões
eram os Ituaça, os Pipipã (parte dos Pipipã habitam as terras dos Kambiwá), os Maracanã, os
Funi-ô e outros povos do sertão.
A formação cultural dos Pankararu aconteceu dentro de um processo de interação
social com os povos Kambiwá da Serra Negra (PE), Funi-ô de águas Belas (PE), Tuxá de
Rodelas (BA), Kariri-xocó do Porto do Colégios (AL) e os Pankararé do Brejo do Burgo
(BA). Esse agrupamento de diversos povos acontece, segundo Oliveira (1935, p. 159), por
22

causa da Missão da Igreja Católica Apostólica Romana que existiu na região. Os Pankararu
receberam diversas influências cultuárias de outros povos do sertão, de modo especial os da
Serra Negra, naquele tempo chamados de Pipões, “Quaçás, Ituaças ou Tuaçás” e hoje
conhecidos como Kambiwá. Ainda hoje os Pankararu, Pipipã e os Kambiwá mantêm relações
de cultura semelhantes e participação nas festas das aldeias, as chamadas viagens religiosas. A
essas viagens o antropólogo José Maurício Andion Arrutti (1999, p. 10) chama de “circuito de
trocas entre as comunidades”, que ocorria de duas maneiras: “as viagens rituais e as de fuga”.
Nos deslocamentos religiosos, famílias inteiras percorriam outras regiões para
participar de rituais e festas, como acontece ainda hoje com os deslocamentos para outras
aldeias: para o Juazeiro do Norte (CE), com a finalidade de participar das comemorações e
festas em homenagem ao Padre Cícero Romão Batista; Santa Brígida (BA), onde se
reverenciam a Madrinha Dodô e o beato Pedro Batista; ou mesmo para participar do Toré,
juntamente com outros povos do sertão.
O intercâmbio de influências ajuda a perceber as semelhanças existentes entre os
povos indígenas do Nordeste. Através dos rituais e de suas vestes, estes povos dão forma
visível aos “Encantados” pela ação dos Praiás. Os Praiás apresentam grandes semelhanças
entre si, e os rituais são praticamente os mesmos. Os Praiás, que são os sacerdotes na crença
desses indígenas, apresentam semelhanças nas máscaras ritualísticas, todas elas tecidas de
caroá ou croá, e são divididas em duas partes. As cintas trazem figuras semelhantes, sempre
com estampas de santos, plantas, aves, animais ou sinais cristãos. A cinta é que identifica o
Praiá como “Encantado”, ou seja, se ele usa uma cinta vermelha, amarela ou de qualquer
outra cor ou estampa, é essa simbologia que identifica a que família pertence e a que força
Encantada ele representa.
Há, por exemplo, toantes iguais, como é o caso do Urubu de Serra Negra,
comumente cantado nos Terreiros dos Pankararu, Pipipã e Kambiwá, que reafirmam a
unidade entre esses três povos: cantado pelos antepassados, cuja letra reafirma as lutas e os
sofrimentos da época causados pelos invasores que ocuparam suas terras, queimando suas
malocas e destruindo as poucas roças existentes.

Urubu de Serra Negra, de gordo caiu às penas, de comer mangaba verde, olé coam
na baixa da jurema, olé coam. Olé coam na baixa da jurema. Olé coam na baixa da
jurema.
O urubu subiu a serra, pensando que era menino, o urubu não aguentou, o urubu se
encantou, Olé coam na baixa da jurema, olé coam na baixa da jurema, olé coam na
baixa da jurema (Toante cantado pelos Pankararu, Pipipã e Kambiwá).
23

A letra do Toante faz alusão aos índios guerreiros mortos nos constantes conflitos
com os “coronéis” dominadores. Mangaba verde simbolizava os corpos dos guerreiros mortos
nos confrontos e os urubus se alimentavam dos corpos jogados no sertão: eles engordavam e
caiam-lhes as penas.
Os moradores dessas localidades foram obrigados a abandonar suas propriedades,
roças, animais, religiosidade, cultura, costumes, família para não morrerem nas mãos de
invasores que viam em suas terras, lugares adequados para a criação de bois e o cultivo da
agricultura. O sertão foi sendo ocupado por uma pequena população de invasores e as terras
indígenas deram lugar à criação de bois. Os missionários, seguindo os caminhos do gado,
começaram a construir, próximo aos currais, aldeias para evangelizar os nativos, as chamadas
“catequização dos jesuítas”.
Os aldeamentos surgiram porque os índios foram expulsos de suas terras e depois
se juntavam aos grupos e perambulavam pelas fazendas procurando um local para habitar.
“No começo do século vários desses magotes de índios desajustados eram vistos nas margens
do são Francisco; alimentavam-se de peixe ou do produto de minúsculas roças” (RIBEIRO,
1979, p. 55).
Os remanescentes dos índios do sertão que chegaram ao século XX estavam
assimilados à língua, mas mantinham os costumes tribais e habitavam ao lado de cidades sem
pertencerem a elas. Assim aconteceu com os Funi-ô:10 mesmo estando presentes na cidade de
Águas Belas, em Pernambuco, mantêm os seus hábitos e costumes (no período da festa do
Aricuri, passam três meses isolados nas matas, para executar o ritual). O mesmo acontece com
os Xucurú, Kambiwá, Pipipã, Pankararu, Kapinawá, Pankará, todos em Pernambuco, os Xokó
e os Wakoná, no estado de Alagoas, os Tuxá na cidade de Rodelas (BA) e os Inajá (PE). Essas
sociedades adaptaram-se a uma nova forma de costumes, mas não abandonaram os seus ritos
e rituais para com os Encantados.
Para colaborar com a organização social e religiosa, os padres Oratorianos abrem
uma missão de catequização na região da Canabrava, hoje Tacaratu (PE). Felipe Neri fundou
uma sociedade de vida apostólica em 1565, em Roma. A fundação se deu para clérigos
seculares e é também conhecida por várias denominações, tais como: Congregação do
Oratório, Padres do Oratório, Ordem de São Felipe Neri ou Confederação do Oratório. Seus
membros são conhecidos como Oratorianos ou Filipinos. Vivem em comunidades, porém,

10
Dos povos indígenas do Nordeste, é a única sociedade que conserva a sua língua de origem.
24

sem votos de pobreza e obediência. Os oratorianos foram aprovados pelo Papa Gregório XIII
em 1575.
A sociedade de vida apostólica de São Felipe Neri chegou ao Brasil em 1662,
fixando-se no Estado de Pernambuco e desenvolvendo trabalhos missionários no sertão de
Pernambuco com os índios. Com o trabalho de catequização, alcançaram os Estados de
Alagoas e Ceará (MOURA, 2000, p. 73). Os primeiros padres oratorianos vindos de Portugal
para o Brasil foram João Duarte do Sacramento e João Rodrigues Vitória.
Moura (2000, p. 74), citando Ebion de Lima, diz que os Padres Oratorianos
“contribuíram para a mediação do conflito do Quilombo dos Palmares”, comunidade de
negros fugitivos das senzalas que se organizaram para lutar contra os maus-tratos recebidos
pelos senhores de engenho. Estes padres foram considerados mentores da “revolta dos
Mascates”, levante popular entre os trabalhadores e os aristocratas donos de engenho de cana-
de-açúcar de Olinda e Recife, ocorrido em 1710. “Eles contribuíram também com o que
conhecemos hoje como a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro” (Idem, Ibidem, p. 74).
O Brejo dos Padres é uma região fértil, com várias fontes d’água, próximas ao rio
São Francisco. A área é um vale situado entre serras e montanhas. A partir do Brejo dos
Padres, a população indígena se espalha para outras regiões da mesma localidade, formando
assim um pequeno povoado, permanecendo como referência para a etnia. Na região, há
algumas localidades de referência, como a igreja do padroeiro Santo Antônio, o cemitério
com particular importância, pois é aí onde se guarda o início da demarcação territorial da
aldeia e, por último, não menos importante, o posto da FUNAI, que funciona para tratar de
questões burocráticas da população indígena.
A etnia Pankararu, como os demais índios do Nordeste, com exceção dos Fulni-ô,
que habitam o município de Águas Belas, no estado de Pernambuco, comunica-se através da
sua língua própria, o Ya:thê. Os demais se comunicam através do português. Porém, é comum
ouvirmos nos toantes e músicas, palavras indígenas como “Reôver”, que não compreendemos
o significado.
À primeira vista, a área dos Pankararu, para com os moradores da região do Brejo
dos Padres, é tida como uma comunidade rural qualquer do sertão nordestino. Com um olhar
mais profundo, é possível ver que se trata de uma etnia indígena, cujos membros habitam os
municípios de Petrolândia, Tacaratu e Jatobá.11 A aldeia do Brejo dos Padres fica distante 421
km da capital, Recife.

11
Os Pankararu hoje estão presentes nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Alagoas e Rondônia.
25

A área Pankararu é composta pelas aldeias: Brejo dos Padres, Brejinho da Serra,
Bem Querer de Cima, Bem Querer de Baixo, Sítio Macaco, Folha Branca, Cacheado,
Espinheiro, Agreste Saco dos Barros, Serrinha, Pinhacó, Barrocão, Agreste, Logradouro,
Caldeirão, Barriguda, Mundo Novo, Carrapateira, Taoera, Lagoinha, Brejinho dos Correias,
Carira, Jitó e Entre Serras.12
A aldeia de referência sobrevive ainda hoje de pequenas criações de animais,
como vacas, ovelhas e cabras. Além de pequenas roças, quando é possível a plantação, a
região é de clima semiárido, as chuvas não são frequentes e a área indígena não é
contemplada com programas de irrigação. Sobrevivem, ainda, da produção de pequenos
artesanatos (abano, vassoura, chapéu, redes, colares, cerâmicas) e com a venda do excedente
de frutas típicas da região (manga, jaca, imbu, goiaba, graviola, caju, coco e murici). Aos
domingos, esses produtos são vendidos na feira livre, ao lado da igreja de Santo Antônio. A
aldeia ainda conta com um pequeno museu-escola que retrata a luta de sobrevivência da etnia,
mostrando um pouco da história dos conflitos, dificuldades e superações.
O processo de reconhecimento dos Pankararu como indígenas ocorreu através de
contatos com os índios Fulni-ô de Águas Belas, município pernambucano. As terras dos
Fulni-ô foram doadas pelo governo imperial através de Carta Régia nº 33, em 05 de junho de
1705. Os Fulni-ô são reconhecidos como índios, mas, até o momento, suas terras não foram
homologadas. Os Fulni-ô tiveram o Padre Alfredo Pinto Dâmaso como o iniciador do
processo de reconhecimento da sua etnia e a de grande parte dos índios do Nordeste.
O padre Alfredo Pinto Dâmaso (1881- 1964) teve grande influência nas lutas e
conquistas dos índios do Nordeste: lutou com os Fulni-ô pela posse da terra de Águas Belas e
hoje é venerado pelos índios que ele defendeu com sua força e coragem. Escreveu uma
história de lutas e conquistas contra os “coronéis” dominantes da época que não viam os
nativos como donos verdadeiros das terras (ARRUTTI, 1999, p. 4).
Na ocasião da morte de Dâmaso, o deputado federal Oséas Cardoso, pelo Estado
de Alagoas, fez um discurso no plenário da Câmara dos Deputados, dizendo:

Senhor presidente, senhores Deputados: Alagoas perdeu uma de suas vidas mais
preciosas, pois, no dia 28 de junho último (1964), na cidade de Bom Conselho, no
Estado de Pernambuco, com 83 anos, fechou os olhos para a eternidade o meu
ilustre e saudoso amigo Monsenhor Alfredo Pinto Dâmaso. Sacerdote cujo nome
projetou-se, pelos seus valiosíssimos serviços prestados à nossa Pátria, de maneira
incomum, no Brasil.[...] Embora em sua peculiar modéstia, lá no sertão
pernambucano, monsenhor Dâmaso, senhor presidente, tornou-se um ídolo daquela
gente humilde, à qual dedicava o seu coração todo cheio de bondade, que constituía

12
Os índios Pankararu de Entre Serras têm uma organização independente do Brejo dos Padres.
26

uma constante da sua formação cristã, aprimorada pelos sadios princípios em que se
inspirou para conduzir as suas ações em benefícios dos sacrificados de qualquer
natureza (OSÉAS CARDOSO, em discurso proferido na Câmara dos Deputados, em
1964) (GAZETA DE ALAGOAS).

Arrutti (1999), citando o próprio o religioso, diz que, em 1921, o padre Alfredo
Pinto Dâmaso partiu do sertão de Pernambuco, da cidade de Águas Belas, ao Rio de Janeiro
em busca de proteção para os índios Carijó.13 Chegando ao escritório do Serviço de Proteção
ao Índio (SPI), expôs as mazelas às quais os índios estavam expostos e solicitou um Posto de
Proteção. Em princípio, não foi compreendido e, por isso, o padre procurou argumentar,
dizendo:

[...] o órgão gasta inutilmente, 50 mil contos de réis nos últimos 21 anos, eles
ponderavam que aquele orçamento representava apenas 132 réis de diária para cada
índio assistido pelo órgão, enquanto na cadeia de Campos Sales, compara, cada
preso custava $1000 réis diários. Além disso, ele pergunta, quantas centenas de
milhar de contos teria gasto o governo para dar caça, inutilmente, aos heróis e
evencidos legionários de Luiz Carlos Prestes? ... E com a imigração estrangeira?
(ARRUTTI, 1999, p. 3).

Dâmaso tem argumentos para debater porque ele era capelão militar e tinha
conhecimento das duas realidades: a dos índios e o orçamento do Ministério da Guerra, a
quem o SPI estava subordinado. No seu pensamento, ele defendia que o posto deveria
proteger os índios e amenizar todo o sofrimento ao qual os mesmos estavam submetidos. O
órgão dá importância maior aos feitos dos militares e não colabora com os índios que sofrem
e não têm a quem recorrer.
Os Pankararu mais antigos recordam a história da colaboração do Padre Alfredo
na conquista dos seus direitos e demarcação das terras. Assim nos informa o senhor Zé Binga
ao ser perguntado sobre a demarcação das terras tradicionais Pankararu.

Como foi o processo de demarcação das Terras?] O branco colocou os caboclo para
correr de suas terras para eles criarem gado. Pe. Alfredo ficou sabendo, saiu de
Águas Belas e veio bater aqui para saber o que estava acontecendo. Juntou os índios
e disse: olhe as terras são de vocês, vocês não devem sair do que é de vocês para
viverem nas terras dos outros. Vocês têm direitos. Eu fui até a capital do Brasil (Rio
de Janeiro) para brigar por vocês. Voltem para as terras de vocês. O padre organizou
um monte de índios e foram para a FUNAI do Recife. Chegando lá falou o que
estava acontecendo. Os funcionários falaram que iriam tomar as providências e o
padre junto dizia: a terra é dos Pankararu, podem tirar os invasores de lá. O padre
não satisfeito foi a Brasília e os índios começaram a ver seus direitos.
Quando os índios começaram a trabalhar fazendo suas roças outra vez os brancos
vieram para tomar conta de suas terras. Muitos índios para não morrerem fugiram
para São Paulo, Minas e outros lugares. [E a seca não fez com que os índios

13
Antes os Fulni-ô eram conhecidos como Carijó.
27

deixassem o Brejo?] Sim, eu mesmo tive várias vezes em São Paulo trabalhando por
lá. Eu me lembro de que trabalhei muito na construção de pontes para passar os
carros. Mas trabalhei e sempre voltei porque aqui é o meu lugar. [Como foi
resolvido o problema da invasão?] risos ... O capitão Henrique, veio à aldeia.
Mandou chamar os índios no buzo e os índios logo vieram. E o capitão perguntou o
que estava acontecendo. Os índios falaram o que estava acontecendo. O capitão
imediatamente determinou a busca de alguns brancos para esclarecimentos. Muitos
falaram: “para o posto eu não vou”. Os índios laçaram o cabra, e ele veio amarrado
para o posto e entregamos ao capitão. O capitão lançou dentro do porão e mandou
buscar outras pessoas e levou todos para a delegacia de Petrolândia, lá passaram três
dias. A ordem era para levá-los vivos ou mortos. Depois o capitão disse:
“Aprenderam que aquelas terras são dos índios?” Os cabras não falavam nada.
Assim as terras voltaram para os Pankararu. Isso aconteceu em 1966.
[Depois de 1966 foi resolvido a questão?]. Não, os brancos entraram na justiça
dizendo que a terra era deles. Daí veio outro policial para ver a situação. A
demarcação foi feita em 1945. A demarcação original é pelo Rio São Francisco e
Rio Moxotó. A família Serafim tentou impedir a demarcação. Os índios foram
enganados por essa família e pelos topógrafos. Os posseiros ofereciam dinheiro ao
pessoal que estavam medindo as terras. E a FUNAI não administrou bem a situação
nem o dinheiro que vinha para os índios. Teve mês que vinha 60 mil, para Tacaratu,
Jatobá e Petrolândia. Quando o índio precisava não tinha assistência (Zé Binga77
anos, liderança Pankararu).

Houve uma grande luta pela demarcação e homologação das terras Pankararu e
entre Serras. No parecer do senhor Zé Binga, é muito clara a repercussão das lutas e os
enfrentamentos daí ocorridos entre a etnia e os posseiros. Ainda hoje a FUNAI, juntamente
com o INCRA, trabalha na desapropriação de terras, fazendo algumas indenizações e, aos
poucos, os índios vão tomando posse. A senhora Maria de Lourdes (índia Pankararu) nos
relata que as ameaças eram constantes e a violência não era apenas verbal. Assim, narra sua
experiência:

Eu ouvi muitas vezes o meu pai, falar, que para fugir dos confrontos com os brancos
ele levava os filhos para a mata e nos escondia nas locas (cavernas). Passávamos
dias escondidos com medo dos posseiros. Ali, faltava comida e água. Foram
momentos de muito sofrimento, dava pena quando a gente plantava alguma coisa e
depois eles vinham dizendo que aquelas terras eram deles e a gente tinha que sair se
não morria. Naquele tempo a gente não sabia dos nossos diretos. Eles tratavam os
índios como sendo bichos que não tinham conhecimento de nada. Eles tratavam os
índios como sendo animais, achavam que o índio não pensava. Hoje, a coisa não é
bem assim: temos índios professores, advogados, enfermeiros... até doutores nós já
temos. Quando eles viam os índios dançando Toré, diziam que eles estavam fazendo
coisa ruim. A luta foi grande, mas hoje, o índio está aí resistindo a todo sofrimento.

A violência e a falta de conhecimento fizeram parte da história da resistência desta


etnia. Acredita-se que a sobrevivência destes povos ocorreu por causa dos seus rituais, pois,
na condição de perseguidos, buscavam forças na relação com os Encantados, os quais davam
motivações para fazer resistência à dominação e à opressão. É comum ouvir que não temos
mais índios. No passado, foi criado um estereótipo que sobrevive ainda nos dias de hoje: o
28

indígena é visto, na maioria das vezes, como alguém que não tem cultura (homens de cor
parda, nus e com arcos em punho), não é letrado, é preguiçoso, está parado no tempo, não
teve evolução e é um ser simplesmente exótico e passível de pena e dominação.
Vejamos o que nos falou Pereira: “o indígena foi considerado ser indolente,
selvagem e incapaz. Assim, o Estado pode assumir suas terras para doar às famílias
tradicionais e colonizadoras, e legislar em função dos interesses dos dominantes” (2001, p.
95). Quem pensa assim esquece que este estereótipo caiu por terra há muitos anos. É comum
ouvirmos notícias de novos grupos que reivindicam o reconhecimento do governo de novas
etnias. São índios remanescentes que têm a colaboração de outras etnias e buscam o
reconhecimento e a demarcação de terras que antes pertenciam aos seus antepassados.
A violência para com os indígenas não é coisa do passado, ela está presente na
atualidade. Ainda hoje, são acusados de preguiçosos e incapazes. Com esse pensar, esvazia-se
a cultura, se menospreza a riqueza e a história de um povo que, antes do encontro com Cabral,
eram senhores de suas próprias terras e não meros “objetos vivos que embelezavam a
paisagem”.

Figura 2 – Cemitério Pankararu.

Fonte: arquivo pessoal do autor. Janeiro de 2014, marco de alvenaria que faz a demarcação das terras
Pankararu.
29

Originalmente, as terras foram doadas aos Pankararu, através de Carta Régia de


Dom Pedro II. A data da doação e a extensão territorial são imprecisas. Porém, acredita-se
que seja de “uma légua em quadrado”, sendo delimitada em 14.294 ha. Estes são os registros
do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). O Marco inicial das Terras Pankararu é o Brejo dos
Padres, tendo como referência o cemitério (ainda existente) onde se encontra um marco de
alvenaria.
No reinado de Dom Pedro II (1840 - 1889), o Brasil demonstrou interesse pela
causa do índio, promovendo estudos e compreensão das diversas culturas. “Essa fase
indianista, por intensidade e resultados SUPERIORES à precedente, encontrava o seu centro
catalisador e propulsor na realização por iniciativa de Januário da Cunha Barbosa, do Instituto
Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1838”
(CUCCAGNA, 2004, p. 15-16). A partir do reinado de Dom Pedro II, houve uma tímida
produção literária retratando o cotidiano indígena.
Segundo o Ministério da Justiça,14 o grupo foi reconhecido como indígena pelo
governo em 1937. A primeira demarcação das Terras Pankararu se deu em 1941, não
obedecendo à extensão territorial de 14.294 há, faltando 6.194 ha. No governo do presidente
João Figueiredo, através do Decreto nº 88.118, de 23 de fevereiro de 1983, foi dada a
autorização à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a fazer o estudo das áreas indígenas para
uma futura demarcação.
Vejamos o que diz o Art. 1º: “As terras indígenas, a que se refere o artigo 17 da
Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, serão administrativamente demarcadas por
iniciativa e sob a orientação da Fundação Nacional do Índio, de acordo com as normas deste
decreto”. No art. 2º § 1º: “A FUNAI, através dos seus técnicos e especialistas, procederá aos
levantamentos e estudos sobre a identificação e delimitação das áreas indígenas”.
Após estudos e pesquisas realizadas pelos técnicos da FUNAI nas terras
Pankararu, a homologação e demarcação da terra indígena ocorreu em dois períodos: a área
Pankararu foi homologada primeiro através do Decreto nº 94.603 de, 14 de julho de 1987. Já a
área de Entre Serras, também localizada nos municípios de Petrolândia, Tacaratu e Jatobá, no
estado de Pernambuco, só ocorreu no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
através de Decreto em 19 de dezembro de 2007.

14
Portal do Ministério da Justiça. Disponível em: <http://www.portal.mj.gov.br/main.asp?View={A63EBC0E-
BFBA-402ª-8497-F1BCAA07164E}&Team=&params=item.htm>. Acesso em: 05 jan. 2013.
30

2.2 Conflitos entre os Pankararu e os posseiros

Entre a sociedade Pankararu, como em qualquer outra sociedade, se fizeram


presentes os conflitos territoriais internos. Antes, o conflito se dava entre índios e posseiros.
Com a demarcação do território Entre Serras Pankararu ocorrido em 2007, a demarcação
trouxe conflitos não só territoriais, mas também de liderança, não sendo reconhecida pelas
velhas lideranças, dividindo assim a etnia. Os habitantes das terras Entre Serras reivindicavam
a independência dos serviços do posto da FUNAI do Brejo dos Padres, pedindo a instalação
de um novo posto de atendimento nas novas terras homologadas, alegando que ele, tendo uma
grande demanda, não atende suas necessidades.
Por outro lado, existem os conflitos históricos entre índios e posseiros que se
agravaram com a construção do lago de Itaparica, em 1979. Com o inicio da operação, em 13
de junho de 1988, muitos trabalhadores, tendo suas terras submersas pelo lago, migraram para
as terras indígenas. Muitos dos posseiros afirmam que são índios e as lideranças não os
reconhecem como sendo indígenas pertencentes aos Pankararu e, quando são reconhecidos
por parte de algumas lideranças, não é unânime. O Decreto nº 5.051, do Diário Oficial de 20
de abril de 2004, diz que “o critério para ser reconhecido como índio é a auto identificação, de
tal modo que, para fins legais, é indígena que se sente, se comporta ou se afirma como tal, de
acordo com os costumes, organização, usos, língua, crenças e tradições indígenas da
comunidade a que pertença” (INSTITUTO, 2013, p. 4).
Mesmo não sendo reconhecidos como indígenas pelas decisões judiciais
proferidas, os posseiros lutam para não desocuparem as terras, afirmando que “nasceram nas
terras eles e os pais e consideram-se índios e têm os mesmos direitos”15. O resultado dos
conflitos são assassinatos, destruição das pequenas roças, casas incendiadas e animais
abatidos. Por causa do não reconhecimento de pertença desse povo pelas suas lideranças, a
FUNAI também não pode reconhecê-los. Muitas vezes, o não reconhecimento acontece
também por interesses de famílias tradicionais. O fato se agrava mais quando não é
apresentado nenhum documento como Certidão de Nascimento, emitido pelo Posto da
FUNAI ou declaração do cacique. Neste caso, vemos que o critério de autoidentificação não é
aplicado, faltando o reconhecimento comunitário.

15
Informações dadas pelo sr. Zé Binga.
31

2.3 A Usina Hidroelétrica de Itaparica e a violação dos direitos humanos

O rio São Francisco de Assis é considerado o rio de unidade nacional e é o maior


rio totalmente presente no território nacional, ligando o Sudeste e o Nordeste. O São
Francisco aparece nos mapas desde o “descobrimento” do Brasil. Em 1910, o empresário
Delmiro Gouveia construiu no povoado da Pedra (hoje município de Delmiro Gouveia, em
Alagoas) uma fábrica de linha, gerando a energia necessária para a movimentação das
máquinas do São Francisco, que sempre foi visto como potencial para o desenvolvimento das
cidades cortadas por ele.
Em 1921, no governo de Epitácio Pessoa, começaram os estudos topográficos da
Cachoeira de Paulo Afonso. O estudo objetivava a possibilidade da construção de uma usina
hidroelétrica na região. Em nome do progresso, o homem promove mudanças no trajeto
natural das águas para atender seus interesses. Para isso, desvia o curso normal para
transformar o leito dos rios, favorecendo a irrigação, a navegação e o represamento de águas
para a geração de energia, e constrói barragens para abastecer cidades com água potável. Nem
sempre, a tecnologia leva em consideração os impactos ambientais, que não só mudam a
natureza, como também trazem muitos danos aos moradores da região transformada.
A construção das usinas hidrelétricas modifica a natureza e, muitas vezes, causa a
destruição de cidades por completo para a formação do reservatório. Não há dúvidas quanto à
necessidade da produção de eletricidade para o abastecimento das indústrias, comércios,
transportes, residências e tantas outras necessidades do homem. Porém, há diversas outras
maneiras de produzir a eletricidade que a sociedade necessita. O planejamento e execução de
grandes reservatórios de água é uma reafirmação do poder dos governos, aliados a grandes
empresas, que procuram adquirir maior capital, esquecendo homens e mulheres que habitam
as regiões afetadas. Nestes grandes empreendimentos, o que menos importa é a natureza e
seus habitantes.
O Complexo Hidroelétrico de Paulo Afonso forma um conjunto de usinas
hidroelétricas localizadas no município do mesmo nome. Paulo Afonso está geograficamente
situado na região mais pobre do estado da Bahia, fazendo divisa territorial com os estados de
Alagoas, Pernambuco e Sergipe. O complexo é formado pelas usinas Paulo Afonso I, II, III,
IV e Apolônio Sales (Moxotó), que está localizada no município de Delmiro Gouveia, no
estado de Alagoas. O início do complexo ocorreu em 1949. A primeira usina hidroelétrica
entrou em operação apenas com duas máquinas geradoras de eletricidade, fornecendo energia
32

para a capital do estado de Pernambuco (Recife) e para a capital do estado da Bahia


(Salvador). A inauguração ocorreu em 15 de janeiro de 1955, no governo de Café Filho.
O complexo hidroelétrico foi sendo construído nos anos posteriores, entre 1963 e
1968. Nos anos 1969 e 1079, edificou-se a Usina Paulo Afonso II, Paulo Afonso III e a Paulo
Afonso IV. Em 1983, surgiu a Apolônio Sales, que nasceu como Moxotó e passou a ser
chamada de Apolônio Sales, fazendo uma homenagem ao Ministro da Agricultura, Apolônio
Jorge de Farias Sales, do então governo Getúlio Vargas. Esta teve início em 1971, entrando
em operação em 1975.
Após a construção da Apolônio Sales, verificou-se a possibilidade de fazer-se
outra Usina Hidroelétrica. Desta vez, a Companhia Hidroelétrica do Vale do São Francisco
(CHESF), criada em 1944, por sugestão do ministro da Agricultura Apolônio Sales, cujo
objetivo era (e é) construir e administrar o complexo hidroelétrico de Paulo Afonso. Hoje, a
CHESF não atua somente no complexo das referidas usinas, mas também desenvolve estudos
para a construção da Usina Hidroelétrica de Itaparica, que, depois de pronta, recebeu o nome
de Luiz Gonzaga, fazendo, assim, uma homenagem a um grande músico nordestino do estado
de Pernambuco.
A construção da barragem teve início em 1979, causando grande impacto
ambiental na região, atingindo áreas indígenas dos municípios de Petrolândia, Itacuruba,
Floresta e Belém do São Francisco, no estado de Pernambuco, e os municípios de Rodelas,
Glória e Chorrochó, no estado da Bahia. O reservatório inundou os municípios de Rodelas,
Glória, Petrolândia, Itacuruba e o povoado de Barra do Tarrachil, formando um reservatório
de 834 Km2, cuja finalidade era gerar energia sem se preocupar com a população atingida. A
Usina de Itaparica entrou em funcionamento em 1988.
A Usina Luiz Gonzaga foi construída no leito do São Francisco, com área de
drenagem de 592.479 km2, bacia hidrográfica da ordem de 630.000 km2 e extensão de 3.200
km, desde sua nascente na Serra da Canastra, até sua foz, nos municípios de Piaçabuçu (AL) e
Brejo Grande (SE). A Usina funciona com seis unidades e sua potência de produção unitária é
de 246.600 KW, chegando a uma produção total de 1.479.600 KW (CHESF, 2015).
A Usina Hidroelétrica Luiz Gonzaga, segundo a Companhia Hidroelétrica do São
Francisco, é descrita assim:
33

Quadro 1 - Usina Hidroelétrica Luiz Gonzaga


CARACTERÍSTICAS
Proprietária CHESF
Inicio das obras Julho de 1979
Inicio de operação 13 de junho de 1988
Construção Rio São Francisco
Distância da Foz 312,50 Km
Município/Estado Petrolândia - Pernambuco
Turbinas 06
Inicio de operação das turbinas (geradores) 01G1 13/06/1988; 01G2 19/12/1989; 01G3 13/02/1990;
01G4 07/10/1988; 01G5 31/01/1989 e 01G6 13/06/1989.
Produção total 1.479.600 KW.
Fonte: CHESF, 2015.

Pesquisas realizadas por antropólogos nas áreas atingidas revelam que a região
possuía cemitério indígena com urnas mortuárias, pinturas rupestres, cerâmica e cachimbo de
barro. A pesquisa apontou que a região já era ocupada desde o século XVII por missionários,
para catequizar os índios que ali habitavam. As etnias que sobreviveram desta época são os
Tuxá, que atualmente residem nos municípios de Rodelas, no estado da Bahia, e Inajá, em
Pernambuco, e os Pankararu do município de Petrolândia, Tacaratu e Jatobá.
Um informante Tuxá nos relata que os responsáveis pela execução da barragem de
Itaparica nunca os consultou sobre a construção:

Ninguém do governo veio aqui nos perguntar nada: quem éramos, o que fazíamos e
o que desejávamos. Tivemos os nossos direitos violados. Perdemos parte das nossas
terras: a ilha de Sorobabel foi uma perda que não tem reparação. É triste saber que
os índios tinham terras para trabalhar, para viver e hoje não têm terra para viver,
vivem trabalhando para os outros, quando não vivem pelas ruas sem rumo. Índio
sem terra não é índio. Nós precisamos da terra para a nossa sobrevivência. Quando o
índio não é consultado, ele é simplesmente ignorado e isso é não admitir a presença
do índio no seu território.
Com a construção da Barragem de Itaparica, os Tuxá perdem sua identidade, era lá
na Ilha de Sorobabel que os nossos encantados, nossos Gentios habitavam; lá estava
a nossa ciência, a nossa sabedoria. Ali foram gerados os nossos antepassados, lá
tinha toda força, toda sabedoria da ciência. Quando o índio precisava, encontrava
força, cura e revelação lá. Acabou! Foi um grande dilúvio feito pelo branco que
matou grande parte dos Tuxá.

Os índios buscam conquistar seus direitos, mas a força e o poder do capitalismo


não consideram nem respeitam as necessidades das populações humanas; procuram apenas o
que proporciona lucro, buscando gerar riquezas às custas do sacrifício dos povos indígenas,
destruindo terra, cultura e tradição. Desta maneira, a natureza e a cultura humana são
destruídas pela ganância do poder capitalista.
Em nome do progresso, populações inteiras são dizimadas, deixando espaço para
o desejo dos poderosos. Em nome do progresso, se resolvem alguns problemas, mas criando
34

tantos outros para um futuro próximo. No entanto, o índio é chamado a lutar pelos seus
direitos que estão assegurados na Constituição Federal de 1988. A Constituição garante a
legitimidade de movimentos indígenas quando, no Artigo 232, diz que os índios, suas
comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo e em defesa de seus
direitos e interesses. O Ministério Público pode intervir em todo o processo.
Com a construção da barragem de Itaparica, as terras do povo Tuxá foram
cobertas pelas águas que geram energia. Grande parte do povo Tuxa foi obrigado a deixar
suas terras, sendo realocados em outras áreas. Os Tuxá vivem hoje praticamente da verba de
manutenção temporária da CHESF. As poucas terras destinadas aos Tuxá não são produtivas,
causando fome entre os indígenas, e as demais famílias não contempladas com o programa de
reassentamento. Houve diversos acordos com a Companhia Hidroelétrica do São Francisco,
porém, na sua maioria, o acordo firmado foi rompido.
Em 1979, índios e trabalhadores rurais se organizaram nas cidades atingidas pela
barragem de Itaparica e fizeram assembleias com as seguintes reivindicações: terra na
margem do lago que seria formado; águas nas casas e nos lotes; casa para morar, área de
sequeiro/criatório; indenização justa das benfeitorias (Polo sindical do Submédio São
Francisco PE/BA). (1987? p. 5).
Em abril de 1979, o sindicato organizou mais de duas mil pessoas na cidade de
Petrolândia. Nesta concentração, reafirmam a proposta aprovada nas assembleias realizadas
anteriormente e dão passos na fundação do Polo Sindical dos trabalhadores Rurais do
Submédio São Francisco. Em janeiro de 1980, na cidade de Petrolândia, houve a segunda
grande concentração dos trabalhadores rurais, tendo a participação de cinco mil trabalhadores.
Para eles, a Companhia Hidroelétrica do São Francisco trabalhava apenas na construção do
lago, esquecendo as reivindicações dos índios e dos demais trabalhadores rurais.
A CHESF não apresentava aos atingidos o mapa da criação do lago que se
formaria para alimentar as turbinas da futura Hidroelétrica Luiz Gonzaga. Em 30 de abril de
1980, através de pressão das lideranças dos sindicatos, a CHESF apresentou o mapa das áreas
que seriam submersas. Os trabalhadores organizados no dia 1º de maio de 1980 realizaram a
terceira concentração, que, desta vez, ocorreu no Riacho Salgado, para discutir os rumos que
seriam tomados a partir do conhecimento das áreas atingidas pelo lago de Itaparica.
A quarta concentração ocorreu em Itacuruba (PE). Nesta concentração, estavam
presentes quatro mil trabalhadores, quando foi feito um abaixo-assinado ao então presidente
da República General João Baptista de Oliveira Figueiredo, que exigia terras de boa qualidade
para o reassentamento. Para atender às reivindicações, a CHESF e o governo formaram, em
35

04 de dezembro de 1980, um grupo para estudar as exigências dos trabalhadores. O grupo de


estudo não avançou com as reivindicações dos trabalhadores rurais.
Em novembro de 1981, os trabalhadores organizados e fortalecidos, entregaram à
CHESF um levantamento de terras onde eles gostariam de ser reassentados. A CHESF não
levou em consideração as indicações dos trabalhadores (Polo Sindical do Submédio São
Francisco PE/BA). (1987? p. 7).
Como não havia respostas satisfatórias para as reivindicações feitas em 1982, os
trabalhadores do Caruru, Município de Glória, com o apoio dos demais trabalhadores dos
municípios de Petrolândia, Floresta, Itacuruba, Belém do São Francisco, Paulo Afonso,
Rodelas e Chorrochó ocuparam a entrada das máquinas da CHESF que removiam material do
Caruru. A ocupação durou 14 dias e os manifestantes foram retirados com extrema violência
pela polícia.
A cada nova concentração, o número de participantes atingidos aumentava. Em
janeiro de 1983, houve a quinta concentração, que contou com a participação de cinco mil
trabalhadores. Desta vez, ocorreu na cidade de Petrolândia. Na ocasião, os trabalhadores
protestaram contra a violência ocorrida em Caruru e a demora da CHESF em atender às
reivindicações dos trabalhadores rurais.
Os trabalhadores unidos reivindicavam os seus direitos negados pela Companhia
Hidroelétrica do São Francisco e exigiam que os mínimos das reivindicações fossem
atendidos. Na sexta concentração, realizada em janeiro de 1984, em Petrolândia, os
trabalhadores ofereceram à CHESF um documento chamado de Diretrizes Básicas. O
documento trazia as linhas principais para o reassentamento: áreas irrigadas de 6 ha; áreas
sequeiro/criatório; 25 ha para cada trabalhador; irrigação por aspersão; administração do
projeto pelos trabalhadores; casa para todos; estradas; melhor escolha de terras;
desapropriação das terras (Polo Sindical do Submédio São Francisco PE/BA.(1987? p. 10).
Como as reivindicações não estavam sendo atendidas, as lideranças do Polo
Sindical do Submédio São Francisco dirigiram-se aos governadores de Pernambuco e da
Bahia. O diálogo, porém, não trouxe nada de substancioso e concreto para os trabalhadores
com suas propostas e reivindicações. Em 15 de outubro, houve a sétima concentração, que
contou com a participação de seis mil trabalhadores, que ocuparam a Barragem, dando gritos
de ordem que diziam: “Se a CHESF não fizer o reassentamento imediatamente, voltaremos
para parar essa obra na lei ou na marra” (Polo Sindical do Submédio São Francisco PE/BA.
1987? p. 12).
36

Com as ameaças de paralisação da construção da Barragem, a CHESF começou a


dialogar melhor e a atender timidamente a algumas reivindicações sem, contudo, atender às
propostas de maior relevância, alegando que não havia dinheiro para atender aos
trabalhadores rurais nas suas reivindicações. Os trabalhadores, mediante as negativas da
CHESF, no dia 1º de dezembro de 1986, às 15h, ocuparam o canteiro de obras da barragem,
impedindo os trabalhos de construção por seis dias e exigindo o reassentamento. No acordo de
1986, exige-se “terras boas para irrigação, casa para morar, terra para o criatório, assistência
técnica, a quantia de 2,5 salários mínimos até o inicio da produção, indenização justa e a
participação efetiva nas decisões do reassentamento” (Polo Sindical do Submédio São
Francisco PE/BA (1987? p. 13).
Com a ocupação de 1986, a CHESF deu sinais de que iria atender às
reivindicações dos trabalhadores rurais, mas a luta continua até os dias de hoje, pois apenas
parte do contingente de trabalhadores foi atendida. É comum encontrarmos trabalhadores que
ainda esperam as indenizações e terras para trabalhar.
Conforme Salomão (2006, p. 3), o lago que alimenta a Hidroelétrica,

alterou profundamente todos os aspectos da vida social e cultural dos índios Tuxá e
os índios não tiveram seus direitos respeitados. Para os Tuxá, as terras submersas
escondem um local sagrado onde viveram seus antepassados, não podendo mais
realizar seus rituais sagrados ao lado dos que os precederam. A destruição da cultura
e da simbologia religiosa de uma etnia, em nome do progresso e às custas da morte
da natureza e dos massacres humanos é uma realidade que clama justiça.

A construção da Hidroelétrica não só trouxe danos materiais, mas também danos


morais e coletivos. É isso que se afirma em (SUASSUNA, 2008, p. 01):

O dano moral ambiental coletivo é uma espécie de dano de natureza


extrapatrimonial, que atinge uma coletividade em razão da ocorrência de um dano ao
patrimônio ambiental. Ocorre quando, além das lesões materiais ao patrimônio
ambiental, houver ofensa e sentimento coletivo, ou seja, quando a ofensa ambiental
constituir dor, sofrimento ou desgosto de uma comunidade. Não tem repercussão no
mundo físico e material, é de cunho subjetivo à semelhança do dano moral
individual.

O fato de a CHESF oferecer, quando acontece, uma recompensa financeira, não


traz esquecimento da dor nem a recuperação das relações de parentesco, amizade, cultura,
religião, sentimentos, antes existentes como referências sagrada da vida dos povos nativos,
hoje, muitos dos quais vivendo marginalizados nas periferias das grandes cidades ou mesmo
às margens das regiões atingidas.
37

Com a enchente do lago, diversas famílias não indígenas foram expulsas sem
receberem a indenização há mais de 26 anos prometida pela CHESF, fato que tem causado
miséria, revolta e indignação para os moradores das áreas atingidas. Nas cidades de Belém do
São Francisco e Floresta concentram-se a maioria dos moradores que esperam pela
indenização que já deveriam ter recebido.
O procurador da República Leandro Mitidieri protocolou na 1ª Vara da Justiça
Federal uma ação em 2013, exigindo que a Companhia Hidroelétrica do São Francisco
cumpra os acordos firmados anteriormente (1986), indenizando as famílias que foram
prejudicadas pela enchente. Segundo o procurador, das dez mil famílias que deveriam ser
indenizadas, apenas seis mil receberam a indenização, ficando quatro mil sem receber. Este
afirma que “Elas tiveram a ordem de desocupar a região... O Ministério Público Federal
acredita que o progresso deve respeitar os direitos humanos” (MPF, 2013p.1)16.
O programa de expansão do progresso no Nordeste, criado para amenizar o
sofrimento do sertanejo, na realidade trouxe mais sofrimento para os moradores da região
atingida pela barragem de Itaparica. A hidroelétrica, por sua vez, gera riquezas para alguns e
miséria para a maioria, que antes tirava o sustento da terra onde moravam e que hoje está
coberta pelas águas do rio São Francisco. As famílias foram submetidas a verdadeiras
misérias com a construção da barragem, que afogou projetos, desejos e realizações.
No programa de assentamento da CHESF, as chamadas agrovilas, as ruas
deveriam ser pavimentadas, como também ter infraestrutura sanitária e outros
empreendimentos em prol da população. Hoje, as agrovilas são pequenos povoados sem
nenhuma infraestrutura digna para seus moradores. As terras são pobres e não produzem sem
a utilização de grandes doses de aplicação de agrotóxicos e defensivos. A produção não estava
voltada para o consumo interno, pois toda a produção está sendo pensada e tratada de forma
capitalista.
Muitas vezes, o pequeno produtor, quando colhe um legume ou uma fruta e os
vende, já não lhe sobra quase nada em termos de valor econômico. O que ele recebe serve
apenas para pagar o material empregado. Anteriormente, o trabalhador trabalhava para a
família, vendendo o excedente. Hoje, não existe excedente, tudo é usado para pagar o que foi
comprado para o plantio e sua manutenção. Atualmente, é completamente diferente. Planta-se
para garantir o comércio na região e não há excedente, pois, toda a produção é para ser

16
Procuradoria da República na Bahia disponível em: http://www.prba.mpf.mp.br/mpf-noticias/direitos-do-
cidadao/mpf-aciona-chesf-para-reassentar-populacao-afetada-pela-barragem-de-itaparica-e-cumprir-pendencias-
nos-reassentamentos. Acessado em: 25 agos.2016.
38

vendida. Desta forma, Itaparica gerou um contingente de famílias que perambulam pelas ruas
sem esperança e sem futuro, são pessoas condenadas pelo progresso que causa injustiça, tudo
é visto e considerado sob a perspectiva capitalista. O dinheiro que passa pela mão do pequeno
produtor logo é entregue ao fornecedor, não lhe restando para praticamente nada para
investimento.
Suassuna (2008, p.5)17, citando Bittar, vê o dano moral como sendo “a injusta
lesão na esfera de uma dada comunidade, ou seja, violência antijurídica de um determinado
ciclo de valores coletivos”. Quando o coletivo não é respeitado, a cultura de um povo é
atingida, fazendo com que os membros percam a referência cultural e a dor se instale o meio
de uma cultura não só ambiental, mas também humana.

A dor em sua acepção coletiva é ligada a um valor equiparado ao sentimento moral


individual, mas não propriamente este, posto que concernente a um bem ambiental,
indivisível, de interesse comum, solidário e relativo a um direito fundamental de
toda coletividade. Trata-se de uma lesão que traz desvalorização imaterial ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado e concomitantemente a outros valores inter-
relacionados como a saúde e a qualidade da vida. A dor referida ao dano
extrapatrimonial ambiental, é predominantemente objetiva, pois se procura proteger
o bem ambiental em si (interesse objeto) e não o interesse particular subjetivo
(LEITE, 2003, p. 294).

O senhor M. T. C., 65 anos de idade, antes dono de uma granja na região da


Barreira, hoje área submersa pelas águas da Barragem de Itaparica, atualmente reassentado,
diz que:

Na época, algumas ONGs chamaram lideranças para discutir assuntos sobre terras
antes férteis cobertas pelas águas, como poderia o povo sobreviver em terras não
férteis em reuniões com diversas lideranças dos habitantes das terras que seriam
submersas o que seria melhor para essa resolução? Procurarem terras boas (férteis)
que tirassem de outras regiões para sobrepor em camadas finas em cima da terra não
fértil? Preparar a terra para um melhor aproveitamento o que amenizaria o
sofrimento que estava para vir. [e a proposta foi acatada?] Não fizeram vista grossa e
não foi aprovado. Colocaram outras coisas como o Calcário, porém é sabido que o
calcário é para corrigir acides da terra. Hoje temos uma baixa produtividade porque
as terras não oferecem condições necessárias. Os terrenos são forrados de pedra
“terra ruim não dá camisa a homem”. A terra é praticamente morta: as terras que
seríamos realocados em terras mortas. Os trabalhadores sabiam que as terras não
seriam boas e foram enganados pela CHESF. Em troca de uma promessa que até
hoje o povo não viu gerou miséria. /[Os Terrenos não férteis, como ficou a situação
do povo? O povo foi realocado? Foram outra vez indenizados?] Esse povo vive com
esses problemas vivendo apenas com a ajuda da Chesf; vive com a pequena
produção porque a terra não presta, coloca muito veneno na terra que o produtor
mesmo não consome, esse mesmo veneno que é espalhado na mesa e levada ao povo
que constantemente se envenena pensando que estão comendo um alimento sadio.
Muitos desses produtores não comem o que produz. Já se levanta uma suspeita de

17
Jornal Âmbito jurídico, Rio Grande, XI, n.51(2008).
39

caso de câncer na região. Isso provavelmente é o veneno colocado nas mesas do


povo. É presente o veneno nas águas da região, porque o veneno espalhado na
lavoura e depois com as chuvas cai nas águas contaminando tudo. A CHESF anda
lenta igual a boi ronceiro que só anda com ferrão. A CHESF explorou, explora e
explorará o povo que teve suas terras alagadas, seus sonhos sepultados e continua a
gerar miséria e violência. O povo vive na desgraça e ela gera lucro e riqueza para ela
mesma, ninguém venha me dizer que uma empresa que causa tanta miséria para
povo seja boa. Boa para quem? Para destruir a natureza e a vida do povo?(M. T.C).

2.4 Abordagem arqueológica

Em 1935, o etnólogo Carlos Estevão, em visita aos Pankararu do Brejo dos


Padres, em Tacaratu, no estado de Pernambuco, seguindo posteriormente em direção aos
Fulni-ô de Águas Belas, também em Pernambuco, estava na companhia do Dr. Liebig, que
trabalhava para a Companhia Industrial e Agrícola do Baixo São Francisco. Nesta visita,
encontrou o velho caboclo Anselmo, que perguntou a Carlos Estevão qual seria o seu destino.
Partiram para o Serrote do Padre e, no caminho, o caboclo informou que existia no Serrote
uma gruta, e disse que:

Na qual tinham sido queimados vivos um Padre e uma moça. Interessando-me o


assunto, perguntei-lhe se sabia onde ficava a gruta. Respondeu-me afirmativamente,
dizendo-me, até, que na última vez em que nela havia penetrado, vira os ossos do
Padre. Essa comunicação, aguçando-me ainda mais a curiosidade, obrigou-me a
pedir-lhe esclarecimentos sobre o caso. Satisfazendo-me o pedido contou-me que,
uma vez, há muitos anos passados, um padre no Piauí raptara uma moça.
Perseguidos pela família desta, fugiram para cá. Chegando a Itaparica, sempre
acompanhados pelos seus perseguidores, esconderam-se na gruta. Descoberto o
esconderijo, seus inimigos tamparam com lenha a entrada da gruta e tocaram fogo
na lenha. Não podendo fugir, morreram queimados o Padre e a moça (ESTEVÃO,
1937, p. 157).

Ao chegar à gruta e ao escavar superficialmente, encontrou ossos humanos e


percebeu que estava diante de um importante achado em Itaparica: um ossário de sociedade
indígena. Relata:

Do que até agora vi, somente posso concluir que a mencionada gruta, em tempos
remotos, foi aproveitada para um ossuário, e que sobre os ossos se faziam fogueiras.
Que muitas vezes aqueles eram quase inteiramente consumidos pelo fogo, também o
verifiquei. Ao que presumo, o esqueleto era levado para a gruta e posto lá,
juntamente com objetos de propriedade da pessoa a que pertencera. Sobre os objetos
e os esqueletos, fazia-se uma fogueira, colocando-se, depois, em cima de tudo uma
ou duas lajes, conforme o tamanho. Este sistema, se por um lado danificando, e,
mesmo, destruindo ossos e objetos grandes prejuízos causaram à ciência, parece que,
por outro, lhe foi favorável, pois talvez seja a causa determinante da conservação de
sementes e fragmentos de peças fabricadas com materiais extraídos da flora e que eu
encontrei nas escavações a que procedi.
40

A ausência de elementos da cultura europeia entre os objetos encontrados na “Gruta


do Padre” faz acreditar que o povo cujos ossos para ali foram conduzidos, não teve
contato com os colonizadores (ESTEVÃO, 1937, p.169-170).

Estevão, ao observar a gruta, concluiu que não seria possível a morte do padre e
da moça, porque o homem em busca da sobrevivência iria sair da gruta para salvar a sua vida.
“E ninguém, por certo, se deixaria ficar dentro dela para, assistindo todo o preparativo da
fogueira, se deixar queimar vivo. O instinto de conservação havia de impeli-lo para fora,
custasse o que custasse” (ESTEVÃO, 1937, p. 158). O autor afirma que o local foi usado
como ossário, e não como local de enterramento de corpos, sendo o local de armazenamento
de restos de cremação de ossos humanos. Os corpos eram queimados fora e depois
depositados no interior da gruta. O local seria um local de sepultamento secundário.
Nesta região, devido às missões dos padres Oratorianos,18 coabitavam vários
outros povos indígenas advindos de outras regiões como: “‘Serra Negra’, ‘Rodelas’, ‘Serra-
do-Urubá’, ‘Águas-Belas’, ‘Colégio e Brejo-do-Burgo’. [...] Além dos ‘Pancararús’, há, na
aldeia, reminiscência de índios chamados ‘Macarús’, ‘Geripancos’, e ‘Quaçás’ ou ‘Ituaçás’,
estes últimos vindos da ‘Serra-Negra’, segundo dizem” (ESTEVÃO, 1937, p. 159).
Mediante as informações de outros povos, Carlos Estevão, deduz que os ossos não
seriam dos povos pertencentes aos Tupis, porque estes tinham hábitos de sepultar seus mortos
em potes de barro; nem poderiam ser dos povos Jê, pois estes enterram os corpos dos mortos
no chão; e nem poderiam ser dos Cariri, que, segundo relatos, os corpos dos seus mortos eram
comidos.19

Como é sabido, Elias Herckmam diz que os “Carií” comiam seus mortos.
Entretanto, quando das minhas pesquisas àquela cidade 20, vim a saber, por
intermédio do velho “Chucuru” José Francelino de Melo, que antigamente, “quando
os “Chucurús” eram bravios e moravam no mato”, botavam os mortos dentro de
grandes potes e enterravam estes nas grutas das serras (ESTEVÃO, 1937, p. 175).

Carlos Estevão, na companhia de alguns Chucuru, dirigiu-se à Serra do Goití, no


município de Palmeira dos Índios, em Alagoas, e determinou a um dos acompanhantes e
informante que escavasse um ponto não muito sólido. Ali “encontrou um pote e dentro

18
Os padres da sociedade de São Felipe Neri chegaram ao Brasil em 1662. (Congregaçãodo Oratorio disponível
em: http://dicionario.sensagent.com/Congrega%C3%A7%C3%A3o%20do%20Orat%C3%B3rio/pt-pt/ >.
Acessado em: 27 nov 2016.
19
Afirmação feita por Elias Heckman. Porém, há relatos de que eles não consumiam os corpos, mas enterravam
em potes de barro. A afirmação do consumo dos corpos dos mortos era justificando que não tinha lugar mais
sagrado para ser guardado, do que os corpos dos vivos (ESTEVÃO, 1937, p. 137).
20
A cidade à qual Carlos Estevão se refere é Palmeira dos Índios.
41

encontrou fragmentos de ossos humanos” (ESTEVÃO, 1937, p. 175). O etnólogo chega à


conclusão de que os índios que Herckman falava não eram cariris:

Do exposto, só podemos concluir pelo seguinte: Ou os índios a que se refere


Herckman não eram “Cariris”, ou nem todas as tribus desse grupo comiam os
mortos. Os “Chucurús”, pelo menos, conforme ficou demonstrado, tinham o hábito
de fazer enterramento dentro de potes, como os “Tupís”. Salvo, se os “Chucurús”,
ao contrário do que se consideram, não são “Carirís”. Devo, aliás, declarar que entre
os povos por mim estudados, não encontrei nenhum caracterizante “Carirí”
(ESTEVÃO, 1937, p. 157).

Os ossos humanos encontrados na Gruta do Padre estavam misturados com ossos


de animais, ficando claro que o local não era ambiente de ritual fúnebre. Havia uma grande
quantidade de ossos humanos e o depósito não estava organizado, dando a impressão que, de
fato, era um local de depósito de ossos. Havia também, entre os ossos, restos de pingentes e
contas de colares e conchas, certamente usadas pelos que tiveram seus ossos depositados no
ambiente.
Para Martin (1993, p. 33), “Na Gruta do Padre, o ritual funerário foi sempre
secundário, durante o longo período de utilização do sítio que pode ter atingido mil anos a
partir de 2000 anos BP aproximadamente”. Nas escavações no sítio, não foram encontradas
urnas funerárias, práticas comuns nas sociedades do Nordeste pré-histórico.
Os sepultamentos eram realizados em covas rasas individuais. Os corpos eram
sepultados com colares, pingentes, apitos, flautas e objetos de cerâmica; os corpos de crianças
eram envoltos em cestas de fibra de palhas trançadas. Não se tinha a prática de queimar os
corpos, porém havia o hábito de fazer uma fogueira em cima do túmulo, que tinha objetivo
purificador (MARTIN, 1994, p. 41).
Etchevarne (1999-2000, p. 119), citando Valentín Calderón, diz que, em 1976, em
escavação na Gruta do Padre, identificou que o local havia sido ocupado por quatro
sociedades humanas diferentes. “O primeiro aproximadamente com 7.600 anos e o último
com cerca de 2.300 anos, incluindo cerâmica”. O autor sugere, na sua leitura, que a gruta não
foi ocupada apenas por uma sociedade.
Houve uma interrupção cultural entre os primeiros homens a fazer uso do
ambiente e do último, “o que permite supor se tratar de uma passagem de sociedades de
caçadores-coletores para outras de ceramistas, provavelmente já conhecedores da agricultura”
(Idem, Ibidem, p. 119).
Muitas sociedades de diversas culturas povoaram as margens do Médio São
Francisco, tendo o curso de água permanente atravessando a caatinga e oferecendo
42

alimentação o ano todo. Quando não habitavam as margens, permaneciam próximos de rios
como o Moxotó, Riacho do Navio21 e o Pajeú; sociedades como: Avis, Brancararu
(Pankararu), Pankararé, Umã, Ituaçá, Pipipã, Shucuru, Jeritacó, Tuxá, Kapinawá e Atikum
habitavam as margens desses rios. Os registros desses povos indígenas são do século XVII.
De fato, Médio e o Baixo São Francisco foram povoados há séculos antes desses
povos que temos notícias, como relata Marques:

A hipótese mais aceita pelos pesquisadores, afirma que a chegada dos grupos
humanos na região do Submédio e Baixo São Francisco, deu-se há
aproximadamente 9.000 anos atrás, quando os povos mongoloide-asiático que
tinham atravessado o estreito de Bering, ocuparam principalmente as zonas inter e
subtropicais do território brasileiro em busca de condições naturais pelos afluentes
que compõem o rio São Francisco, ou advindo do planalto goiano. Os homens pré-
históricos chegaram à região do Vale do São Francisco, mais especificamente nas
regiões de Paulo Afonso/Xingó/Piranhas, atraídos por condições que permitiram o
seu desenvolvimento nesta área (MARQUES, 2006, p. 102).

Não podemos afirmar que a gruta tenha sido utilizada pelos índios Pankararu, uma
vez que não encontramos registro de cremação de corpos dos seus antepassados. Certamente,
foi outra sociedade anterior aos Pankararu que habitou a região, uma vez que, entre os
Pankararu, não existem evidências desse costume.
Porém, não se descarta a possibilidade, já que o homem, aos poucos, vai se
adaptado às novas realidades, e o povo Pankararu é uma sociedade aberta aos movimentos,
tendo poder de incorporação de novos hábitos. A exemplo dos atuais rituais, devido à
escassez de elementos que eram usados neles, acabaram sendo substituídos por outros.
A ocupação do território nordestino pelos portugueses causou mudanças
significativas, processo esse carregado de ideologia europeia, impondo o domínio do
território, apropriando-se dos recursos naturais, fazendo uso de tecnologias e transformando o
ambiente nas diversas ações antes não vistas pelos índios.

A ação colonizadora é de tal forma poderosa e instrutiva no universo indígena que


podemos dizer sem temor de nos enganar, que ela inaugura um novo momento, a
partir do qual as sociedades indígenas não serão mais as mesmas. [...] No interior do
Nordeste, grupos não Tupi, de diversas famílias linguísticas, dominavam os sertões
da caatinga. Indiscutivelmente, destacam-se aqueles pertencentes à grande família

21
É um riacho temporal que, no período de chuva, no Nordeste, atravessa o sertão de Pernambuco, desaguando
no rio Pajeú. Ficou eternizado na voz de Luiz Gonzaga, na música “Riacho do Navio”. O rio Moxotó nasce no
município de Sertania (PE) e serve de divisa entre os estados de Alagoas e Pernambuco, passando pelos
municípios de Ibimirim (PE), Inajá (PE), Tacaratu (PE), Mata Grande (AL), Água Branca (AL), Parigonha (AL),
fazendo foz entre Jatobá (PE) e Delmiro Gouveia (AL). É um rio temporal, possuindo diversas represas, sendo a
maior o açude Poço da Cruz em Ibimirim. O rio Pajeú nasce na Serra da Balança, na cidade de Brejinho, na
divisa de Pernambuco e Paraíba, passa por diversos municípios e deságua no rio São Francisco.
43

Kariri, que ocupavam os territórios interioranos desde o Ceará até Bahia


(ETCHEVARNE, 1999-2000, p. 129-130).

Os índios que habitavam o litoral foram os primeiros a sofrer as influências


europeias e a passar pelo processo de colonização e extinção. As sociedades que tinham maior
mobilidade fugiram para os sertões, buscando refúgio distante do litoral, mas, posteriormente,
foram alcançadas.
Os achados do etnólogo Carlos Estevão na Gruta do Padre de Itaparica fazem
parte da coleção cultural e material e se encontram no Museu do Estado de Pernambuco. O
acervo é composto de ossos humanos, ossos de animais, dentes furados, sementes, objetos de
adorno, conchas e material fotográfico feito na Gruta do Padre e de outros povos do Sertão da
região.
Como dissemos, ao longo das margens do rio São Francisco, habitavam diversas
sociedades indígenas, onde também foram estabelecidas missões. Em escavações nestas
regiões, de modo especial na Ilha de Sorobabel,22 foram encontrados restos da construção da
capela de Nossa Senhora do Ó, construída por volta de 1700 pelos jesuítas. Posteriormente,
chegaram à região os frades franciscanos (capuchinhos franceses e italianos); a capela foi
destruída por uma grande chuva em 1792.
No mesmo local, através de escavação realizada pela arqueóloga Gabriela Martin,
se encontrou um sepultamento dentro da igreja de uma criança de quatro a cinco anos de
idade. Na região, foram encontradas diversas urnas mortuárias e, dentro delas, havia ossos
humanos queimados, diferentes dos ossos da criança encontrados na igreja. Aparentemente,
os primeiros habitantes da região foram os índios Itacuruba. As urnas mortuárias não estavam
concentradas em um mesmo lugar. Com o enchimento do lago de Itaparica em 1988, a Ilha
ficou submersa nas águas do São Francisco, desaparecendo grandes riquezas arqueológicas.
O rio São Francisco tem uma extensão de 2586 km, sendo dividido em quatro
trechos: Alto São Francisco, com 702 km; Médio São Francisco, com 214 km; Submédio São
Francisco, com 440 km; e Baixo São Francisco, com 214 km. Índios excluídos do litoral
brasileiro buscaram refúgio nos sertões, estabelecendo-se nas margens ou próximos das águas,
fixando suas moradas e adaptando-se a uma nova realidade.
Se, no passado, foram perseguidos pelos colonizadores, hoje sofrem com as
interferências do Governo Federal com a construção de hidroelétricas e transposição de águas

22
Encontramos referência a Sorobabel como Sorobabé. A ilha de Sorobel está no município de Itacuruba (PE),
distante 30 km do centro da cidade.
44

do Velho Chico. Os povos indígenas atingidos de forma direta ou indireta pelas interferências
no rio são:

Quadro 2 - Povos indígenas atingidos pelas interferências no rio


ETNIA TERRA INDÍGENA SUB BACIA BIOMAS MUNICÍPIOS UF
XACRIABÁ Xacriabá Alto São Francisco Cerrado Itacarambi MG
PANKARARU Vargem Alto São Francisco Cerrado/Caatinga Serra do Ramalho/
Alegre ALTO Bom Jesus da Lapa BA
TEMBÉ Luiza do Valle Alto São Francisco Cerrado Rio Pardo de Minas MG
KAXIXÓ Kaxixó Alto São Francisco Cerrado Pompeu MG
PATAXÓ Pataxó Alto São Francisco Cerrado Itaperecica BA
XOCO Caiçara/Ilha de São Pedro Baixo São Francisco Caatinga Porto da Folha SE
KARIRI XOCÓ Kariri Xocó Baixo São Francisco Caatinga Porto Real AL
do Colégio
KARAPOTÓ Karapotó Baixo São Francisco Caatinga São Sebastião AL
GERIPANKO Geripankó Baixo São Francisco Caatinga Pariconha AL
KARUAZÚ Karuazu Baixo São Francisco Caatinga Pariconha AL
KOIUPANKÁ Koiupanká Baixo São Francisco Caatinga Inhapi AL
KATOKINN Katokinn Baixo São Francisco Caatinga Pariconha AL
KALANKÓ Kalancó Baixo São Francisco Caatinga Água Branca/ AL
Mata grande
XUHURU- Xuhuru-Kariri Baixo São Francisco Agreste Palmeira dos Índios AL
KARIRI
TINGUI-BOTÓ Tingui-Botó Baixo São Francisco Agreste Feira Grande AL
WASSÚ-COCAL Wassú Baixo São Francisco Agreste Joaquim Gomes AL
TINGUI BOTO/ Aconã Baixo São Francisco Caatinga Traipu AL
AKORÁ
KAXAGÓ Kaxagó Baixo São Francisco Caatinga Pacatuba SE
TUXÁ Ibotirama Médio São Francisco Caatinga Ibotirama BA
TUXÁ Tuxá Submédio São Francisco Caatinga Rodelas BA
TUXÁ Fazenda Funil Submédio São Francisco Caatinga Inajá PE
ATIKUM E Barra Médio São Francisco Caatinga Muquém de BA
KIRIRI São Francisco
TUMBALALÁ Tumbalalá Médio São Francisco Caatinga Curaçá BA
KIRIRI Kiriri Submédio São Francisco Caatinga Ribeira do Pombal BA
e Banzê
ATIKUM Atikum Submédio São Francisco Caatinga Curaçá BA
TRUKÁ Truká Submédio São Francisco Caatinga Sobradinho BA
XUCURU Quixaba Submédio São Francisco Caatinga Glória BA
KARIRI
PANKARARÉ Brejo do Burgo Submédio São Francisco Caatinga Glória e Paulo BA
Afonso
KAIMBÉ Massacará Submédio São Francisco Caatinga Euclides da Cunha BA
TRUKÁ Truká Submédio São Francisco Caatinga Cabrobó PE
PIPIPÃ Travessão do Ouro/Serra Submédio São Francisco Caatinga Floresta PE
Negra/Pedra da Tinideira
ATIKUM Atikum Submédio São Francisco Caatinga Carnaubeira da PE
Penha
PANKARÁ Pankará Submédio São Francisco Caatinga Carnaubeira PE
da Penha
KAMBIWÁ Kambiwá Submédio São Francisco Caatinga Ibimirim/Floresta PE
e Inajá
PANKARARU Pankararu/ Entre Serras Submédio São Francisco Caatinga Petrolândia/ PE
Pankararu Tacaratu/Jatobá
PANKARARU Pankararu Submédio São Francisco Caatinga Delmiro Gouveia AL
PANKAIUKÁ Pankaiuká/ SubmédioSão Francisco Caatinga Jatobá PE
Fazenda Cristo Rei
KAPINAWÁ Kapinawá Submédio São Francisco Agreste/Caatinga Buíque/ PE
Tupanatinga
e Ibimirim
XUCURU Xucuru SubmédioSão Francisco Agreste Pesqueira PE
FUNI-Ô Funi-ô Submédio São Francisco Agreste Águas Belas PE
KANTARURÉ Kantaturé Submédio São Francisco Caatinga Glória BA
TUPAN Tupan Submédio São Francisco Caatinga Paulo Afonso BA
45

TRUKÁ Truká Submédio São Francisco Caatinga Orocó PE


Fonte: Ministério do Médio Ambiente - MMA, 2007 - Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco - CBHSF,
2007. Atualização e adaptação do autor. Dados disponíveis em: <www.meioambiente.ba.gov.br/mapas/Terras
indígenas BHSF.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2015.

As interferências geram conflitos socioambientais, alagando terras, expulsando e


dividindo sociedades indígenas, como foi o caso dos Tuxá, que tiveram suas terras sagradas
cobertas pelo lago de Itaparica, sendo transferida parte das famílias para a fazenda Funil, no
município de Inajá, no estado de Pernambuco. O deslocamento de povos para outras regiões
traz sempre resultados negativos, não só com relação à identidade cultural, como também em
âmbito religioso e psicológico, que ocorrem, entre outros fatores, pela perda da
desterritorização. Os megaprojetos buscam favorecer concretamente a expansão do poder do
capitalismo, esquecendo os povos que estão nestas áreas. Muitos resistem, mas são vencidos
pela violência e o poder do capital, vendo a destruição dos bens físicos e culturais.

2.5 Povos indígenas que habitam o estado de Pernambuco

O estado de Pernambuco tem um número expressivo de povos indígenas, de


maneira particular no sertão pernambucano. Poderíamos afirmar, sem dúvida alguma, que são
etnias que resistem ao tempo e à violência sofrida por “coronéis” que sempre desejaram
ocupar suas terras e que não medem esforços para conquistar as terras habitadas pelas doze
etnias que sofrem com a ausência de água e de políticas públicas que ajudem a garantir
estabilidade na terra e a sobrevivência da cultura e de suas tradições.
Todas as etnias estão marcadas por expressivas manifestações religiosas e
culturais que oferecem elementos de resistência e persistência da maneira de ser indígena.
Cultura essa que oferece elementos de pertencimento. Para a antropóloga Carmem Junqueira,
“a cultura afirma-se como única, como a verdadeira, a detentora dos valores mais elevados e
dos melhores costumes” (JUNQUEIRA, 2008, p. 49). O conhecimento nas sociedades
indígenas é transmitido oralmente, gestualmente, e não através da escrita. Assim, muitas
coisas são perdidas, não sendo possível o resgate de muitos costumes, uma vez que os
mesmos são transmitidos desta forma de geração para geração.
Como aconteceu com os diversos povos indígenas, também aconteceu com os
Pankararu, que não tiveram o início de sua história escrita. A história primitiva dos Pankararu
não está registrada em papel e sim nos elementos da natureza, que são remetidos à memória
histórica que hoje fazem ligação do passado com o presente, sendo simbolizada por sinais
46

simbólicos, que pertencem não apenas ao passado distante, mas à sua atualidade. Toda e
qualquer sociedade é ancorada em vocabulário e outros sinais que os identificam como etnia.
Os Pankararu trazem símbolos ricos, que se comunicam o tempo todo, não só nos rituais, mas
no seu cotidiano. Estão presentes os rituais religiosos, a presença dos Praiás, as máscaras
ritualísticas, as pagas de promessas, as rezas e as curas.
Os mais velhos guardam verdadeiros tesouros culturais particulares, que, muitas
vezes, não são conhecidos pelos mais novos. Nos relatos dos mais velhos, a história ganha
voz e espaço. Os animais, muitas vezes, são relatados como integrantes e, muitas vezes, são
símbolos de um povo ou, até mesmo, nos animais habita um antepassado que, por castigo ou
por gratidão, foi transformado em um deles.
Para Carmen Junqueira, para a não vivência dessas riquezas culturais é decretada
a morte de um povo, o esquecimento. O esquecimento leva a cultura à morte; na memória está
o segredo da imortalidade do povo. “Ao perpetuar as lembranças, a memória mantém a união
do grupo” (JUNQUEIRA, 2008, p. 62). Muito se perdeu desses povos por não serem aceitos
pelos colonizadores e, aos poucos, foram abraçando novos valores, foram obrigados a
professarem uma nova fé, a abandonar a língua materna e a aprender uma nova língua. Entre
as diversas etnias, encontram-se os Pankararu, nosso objeto do estudo. Hoje, o estado de
Pernambuco abriga os seguintes povos indígenas:

Quadro 3 – Povos indígenas de Pernambuco


Etnia Habitam os municípios Terra Situação fund. Extensão Documento
Atikum Umã Canaubeira da Penha, Atikum Homologada 16.290 ha Decreto de
Mirandiba, Salgueiro e 05/01/1996
Belém do São Francisco

Funi-ô Águas Belas e Itatiba Funi-ô Dominial 11. 506 ha Portaria nº


245/PRES-
FUNAI, de
18/03/2009

Kambiwá Floresta, Inajá e Kambiwá Homologada 31.495ha Decreto de


Ibimirim Kambiwá 11/12/1998

Kapinawá Buíque, Ibimirim e Kampinawá Homologada 12.403 ha Decreto de


Tupanatinga 11/12/1998

Pancaiúka Jatobá Fazenda Em estudo Portaria nº


Cristo Rei 1299PRES/
FUNAI, de
29/10/2008

Pankará Carnaubeira da Penha Em identificação Portarias nº


e Itacuruba 1014/PRES/
FUNAI, de
04/09/2009 e
nº 413 PRES/
FUNAI, de
24/03/2010
47

Pankararu Jatobá, Petrolândia e Entre Serras e Homologada 7.750 ha Decreto de


Tacaratu Pankararu 8.100 há 19/12/2006
Decreto 94.603
de 14/07/1987

Quadro 3 – Povos indígenas de Pernambuco


Etnia Habitam os municípios Terra Situação fund. Extensão Documento
Pipipã Floresta Em identificação Portarias nº
802 PRES/
UNAI de
20/07/2005 e
nº 1177 PRES/
FUNAI
07/10/2008

Truká Cabrobó e Orocó Ilha Nossa Senhora Ilha de Nossa 5.769 ha Portaria/MJ
de Assunção, Ilhas Senhora da nº 26 de
da Tapera e São Assunção 28/01/2002
Félix declarada. Identificação
Ilhas da Tapera e port. 146 de
São Félix em 21/02/2008.
identificação Port. nº 264
PRES/FUNAI
de 20/03/2008

Tuxa Inajá Fazenda Funil Adquirida 164 ha

Xucuru Alagoinhas, Pedra, Xucuru Homologada 27.555 ha Decreto de


Venturosa e Pesqueira 30/04/2001

Xucuru de Pesqueira Xucuru de Reservada 1.666 há Decreto de


Cimbres Cimbres 05/06/2009
Fonte: FUNAI, 2014.

A nossa pesquisa está restrita a aldeia do Brejo dos Padres. Porém, tivemos
contato com outras aldeias participando de diversos rituais e comemorações, de modo especial
com os Kambiwá, que ainda hoje tem uma relação direta com os Pankararu. Neste período de
pesquisa, estivemos nas seguintes Aldeias Kambiwá: Faveleira, Barrocão, Riacho do Ouro,
Nazário, Serra Negra, Serra do Periquito e de modo especial na aldeia Pipipã Pedra da
Tinideira. Nesta, tivemos a oportunidade de participar diretamente de todos os rituais,
cerimônias e da vida cotidiana dos índios que habitam a aldeia.
Vizinho aos Kambiwá encontra-se o povo Pipipã. Até 1997, esse povo era
considerado extinto e vivia no anonimato entre os Kambiwá. Em 1998 ocorreu a separação.
Os Pipipã ocupam uma área de terra chamada Travessão do Ouro e Riacho do Ouro, ambos
no município de Floresta no Estado de Pernambuco pertencente à etnia Kambiwá. Parte do
grupo se deslocou para outra região conhecida como Baixa dos Caibros, no mesmo
município, fora das terras dos Kambiwá, formando uma nova aldeia. Essa por sua vez, recebe
o nome de aldeia Pipipã da Pedra da Tinideira ou retomada. Ambas as aldeias Pipipã esperam
a demarcação de suas terras.
48

Os indígenas da região do sertão, de modo especial os da caatinga, desenvolveram


estratégias de resistência e sobrevivência misturando-se uns com os outros para lutar pela
posse das terras e garantir a sobrevivência. A disputa das terras da Serra não acontecia
somente entre índios, mas também entre posseiros ou os chamados “coronéis” que desejavam
a terra para a criação de gado. Araújo (2003) citando Pereira da Costa (1953) nos mostra fatos
de extrema importância para a compreensão dos acontecimentos e os motivos que levaram a
união das etnias, como foi o caso dos Pipipã e os Kambiwá. Certamente temos outras etnias
que vivem ao lado de outras, que desconhecem a sua verdadeira história, ou têm medo de
reivindicar a independência étnica. Assim descreve Araújo:

Em 1823, José Francisco da Silva e Cipriano Nunes da Silva expulsaram, à mão


armada, os índios Pipipãs que habitavam a Serra Negra, situaram uma fazenda
pastoril, construíram casa e currais e fizeram grandes plantações. Abriram estradas,
e para sua garantia mantinham gente armada, prevenindo assim qualquer investida
dos índios espalhados das suas terras (ARAÚJO, 2003, p. 48).

Os membros dessa etnia, de modo especial, os pertencentes à Pedra da Tinideira


chegam ao século XXI vivendo situações adversas: sem demarcação de terras, assistência
adequada às moradias que são de taipas, sem alimentação suficiente, assistência médica, a
água é escassa e não há escola na aldeia. Vivem em extrema pobreza e vulnerabilidade,
muitos sobrevivem de programas de assistências como o Bolsa Família. A aldeia, hoje, é
composta de trinta famílias, e diversas outras fora da aldeia que migraram em busca de
melhores condições de vida. Uma vez por ano, a maioria das famílias retorna no mês de
novembro para celebrar o ritual do Aricuri, ritual de elevada importância.
As primeiras notícias que temos sobre os Pipipã são datadas de 1713, quando o
governador de Pernambuco escreveu ao capitão-mor João de Oliveira. Na carta, ele falou que
“chegou a notícia de que na ribeira do Pajeú se achava revolto o gentio Xocó e que este tinha
agregado os Guegue, Uman, Carateú e Pipipan” (ARAUJO, 2003, p. 39-40). Passados 89
anos, em 1802, os Pipapã foram aldeados no Sitio Jacaré, distante 18 km da Serra Negra, pelo
capuchinho italiano frei Vital Frescarolo. Em carta enviada ao bispo de Olinda e Recife, Dom
Jozé Joaquim de Azeredo Coutinho,23 o missionário franciscano fala ao seu superior:

[...] toda esta minha diligência tive o seu bom efeito, como esperava em Deus, com
os 78 gentios brabos Vouê e Umão, que adiei o anno passado no Olho d’água da
Gameleira, com esses 114 Pipipões, e com esses cincoenta e tantos Xocos, que cá
espero são perto de 300 gentios bravos, e que com a graça de Deus, tenho

23
Foi nomeado bispo de Pernambuco em 12 de setembro de 1794. Em 25 de fevereiro de 1882, foi transferido de
Pernambuco para a Diocese de Bragança e Miranda em Portugal.
49

conquistado ao serviço do mesmo Deus e de sua alteza real (FRESCAROLO, 1802,


p. 110).

O missionário italiano aldeou, em 1801, os índios Vouê e Umão e,


posteriormente, integrou a estes os índios Xocó, que se fixaram no Olho d’agua da Gameleira
na freguesia de Cabrobó. A princípio, os Xocós estavam com os Pipipã, e não se adaptando,
foram direcionados por Francarolo ao primeiro aldeamento na Gameleira.
A escolha da missão do Jacaré foi uma escolha da etnia, conforme relata
Frescarolo:

Acabo de dez dias, vendo que já estavão contentes e pacíficos, tratei com elles a
onde havíamos de fazer aldeia; e todos juntos responderão, que querião este logar do
Jacaré, porque há muito mel e bixo para comer, o plantarão mandioca na Serra do
periquito, distante d’este Jacaré três léguas boas, e já perto da Serra-negra: mas estas
terras estão em litígio entre os senhores da torre da Bahia e os Burgos, e já dei parte
aos senhores do governo para elles me determinarem o que hei de seguir, por isto
ainda não principiei a santa igreja (FRESCAROLO, 1802, p. 109).

O convívio com os indígenas continua ainda hoje de forma exploratória, não há


escravização declarada, porém, são vividas a cada momento as políticas públicas voltadas
para essa população não atingirem seus objetivos. A exploração continua não declarada, mas
mascarada. O agronegócio a pecuária a geração de energia elétrica, a exploração de metais e
pedras preciosas continuam fazendo suas vítimas iniciadas nos meados do século XVI
percorrendo um itinerário chegando aos nossos dias. Ainda somos obrigados a ouvirmos de
exploradores modernos a interrogação: “existem índios no Brasil”?
Reafirmo que a luta dos povos indígenas garante a unidade na busca das
conquistas de direitos assegurados e não executados. Muitas vezes, os órgãos de proteção dos
indígenas pouco fazem para oferecer condições dignas, ao contrário: perseguem e
criminalizam a luta dos povos indígenas, perseguindo e colocando-se ao lado dos interesses
de fazendeiros, madeireiros, exploradores de minérios e grandes cooperações do agronegócio
e assim, as terras tradicionais ficam a serviço do capitalismo, que mata em nome do
progresso. E quem tem o poder, sempre nega os seus direitos básicos como: Saúde, educação,
moradia, trabalho, religião, cultura, informação tirando o sonho de sonhar com um a manhã
melhor.
50

3 O MENINO DO RANCHO: ALIANÇA COM OS ENCANTADOS

Figura 3 – Crianças preparadas para o ritual do Menino do Rancho.

Fonte: Nara Alves (2016).

Ao se observar a humanidade, desde o seu início, verifica-se que ela tem a


necessidade de buscar formas de expressar seus sentimentos, desejos, crenças, religiões, ou
seja, o homem precisa explicar e entender, classificar tudo, separando o profano do sagrado, a
religião da magia e consequentemente, os ritos próprios de cada lugar e povo. Com a chegada
dos homens brancos, as diversas tribos brasileiras aos poucos foram perdendo sua língua,
cultura e costumes. Essa perda ocorre também na quantidade de nativos, pois, de inúmeras
tribos e milhares de índios que habitavam nossas terras, hoje se encontra um número bem
limitado de grupos indígenas, que ainda lutam para sobreviver e conservar alguns dos seus
rituais.
Cada povo se expressa segundo suas crenças e entendimentos no seu meio
conforme o seu tempo e necessidades, mostrando que a humanidade está integrada à natureza.
51

Na medida em que a ciência se expande vai revelando o comportamento do povo ao longo da


história. Para Hauser:
Os monumentos de arte primitiva que chegam até nós sugerem, porém, de maneira
muito clara e com força crescente, à medida que a pesquisa avança, que o
naturalismo faz jus à reivindicação de prioridade, pelo que se torna cada vez mais
difícil sustentar a teoria do primado de uma arte afastada da vida e da natureza
(HAUSER, 2000, p. 01).

Toda sociedade passa por etapas ou fases e, em cada uma delas, há uma festa, uma
cerimônia ou rito, que tem muitos objetivos: comemorar, proteger, ensinar, curar:

A vida individual, qualquer que seja o tipo de sociedade, consiste em passar


sucessivamente de uma idade a outra e de uma ocupação a outra. Nos lugares em
que as idades são separadas, e também as ocupações, esta passagem é acompanhada
por atos especiais, que, por exemplo, constituem, para os nossos ofícios, a
aprendizagem, e que entre os semicivilizados consistem em cerimônias, porque entre
eles nenhum ato é absolutamente independente do sagrado. Toda alteração na
situação de um indivíduo implica em ações e reações entre o profano e o sagrado,
ações e reações que devem ser regulamentadas e vigiadas, a fim de a sociedade geral
não sofrer nenhum constrangimento ou dano. É o próprio ato de viver que exige as
passagens sucessivas de uma sociedade especial à outra e de uma situação social a
outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas, tendo
por término e começo conjuntos da mesma natureza, a saber, nascimento, puberdade
social, casamento, paternidade, progressão de classes, especialização de ocupação,
morte. A cada um desses conjuntos acham-se relacionadas cerimônias cujo objetivo
é idêntico, fazer passar um indivíduo de uma situação determinada a outra situação
igualmente determinada (GENNEP, 2013, p. 24).

Enquanto, para uns, voltar às origens tem por finalidade a cura de algo, ou o
rejuvenescimento, ou ainda o ingresso à vida adulta, para os Pankararu, reviver os rituais
antigos é uma forma de manter viva a cultura dos seus antepassados. Na realização dos rituais,
os Encantados participam diretamente com os índios, é uma forma de relacionamento mais
íntima dos não encantados para com os Encantados.
Entre os diversos ritos observados na aldeia do Brejo dos Padres, há o Menino do
Rancho:

Essa festa representa a iniciação dos rapazes na comunidade dos “Praiás” sendo
estes, pode-se dizer, a encarnação dos espíritos protetores da aldeia, formam uma
espécie de sociedade secreta, a qual evita, quanto possível, o contato direto de seus
membros com outras pessoas, quando se encontram no “Poró”, que é o “Rancho”
em que se reúnem por ocasião das festas. Nessas condições, mister se faz que
tenham intermediários afim de lhes fornecer, quando preciso, água, fogo, fumo e
outras coisas, para cuja aquisição, muitas vezes, é necessário entrar em contato com
pessoas estranhas à sociedade.
Como bem se compreende, esses intermediários são obrigados a guardar inteiro
segredo a respeito de tudo quanto ocorre no “Poró” (ESTEVÃO, 1938, p. 163).
52

O “Menino do Rancho” é um rito que visa à cura ou à finalização de alguma


enfermidade grave sofrida por algum menino da aldeia: após buscarem a cura através da
medicina tradicional e de todos os recursos possíveis e não obterem sucesso, os pais acabam
recorrendo à ajuda dos “Encantados”.
Sobre os Encantados, pode-se dizer que:

Como as outras entidades, também os encantados são uma criação de Deus. De


maneira geral, são apresentados como índios encantados em vida, isto é, índios que
não passaram pela experiência da morte, mas por um processo de transformação,
tornando-se imortais. São também definidos como defensores, guerreiros, protetores,
protetores da aldeia, espíritos superiores, guias, encantos mestres, praias ou homens
(MURA, 2012, p. 150).

Os Encantados são muito importantes para os Pankararu, pois não só fazem os


trabalhos de cura, mas também ajudam no cotidiano, dando conselhos e intervindo nas
relações políticas, econômicas e familiares. Há uma hierarquia entre os Encantados, sendo o
Mestre Guia o mais importante, enquanto que os outros lhe devem obediência. Mas também
há encantados que levam nomes de animais, pássaros, plantas, reis e rainhas, príncipes e
princesas etc.
Os encantados são imortais e habitam lugares próximos da aldeia. “A moradia
depende da linha do encantado, que pode ser de água, terra ou fogo” (MURA, 2012, p. 152).
Há ainda os chamados encantados de mesa,24 que são pessoas da família que se destacaram
em vida por seus feitos, comportamentos e especiais poderes de cura e por isso, tiveram o
merecimento de tornarem-se encantados. O culto a tais encantados de mesa fica muitas vezes
restringido por muito tempo ao quadro familiar, pois, por sofrerem críticas, as famílias
dificilmente declaram em público que algum familiar foi encantado. Esses encantados são
chamados para ajudar nos rituais de cura domésticos, e também para dar conselhos, pois já
faziam isso quando estavam vivos.
Além dos Encantados que fazem o bem e são considerados de direita (devido à
sua reta conduta, poderes de cura ou aos seus feitos em vida), existem também os Encantados
que fazem o mal (de esquerda). Assim como os de direita obtiveram esse merecimento, os da
esquerda ou foram encantados contra a sua vontade ou por seus atos e comportamentos que
transgrediram alguma conduta moral ou regra.
Sobre os Encantados de esquerda, Barreto diz que: “Os Encantados maléficos ou
os trabalhos de feitiçaria ou de esquerda só podem interferir na saúde do indivíduo, ‘se a

24
Esses Encantados manifestam-se apenas em Mesa de cura, não participando das atividades nos Terreiros.
53

pessoa estiver no momento errado’, ou seja, se o indivíduo não estiver agindo de acordo com
as experiências morais e éticas da comunidade” (grifos no original) (BARRETO, 2010, p. 91).
Não se sabe quando se deu o início do ritual do Menino do Rancho. Os primeiros
registros escritos que temos conhecimento foram relatados por Carlos Estevão, em 1935.
Estevão estava na companhia do Dr. Max Liebig. A visita tinha como destino as cachoeiras de
Paulo Afonso e Itaparica, ambas no rio São Francisco (ESTEVÃO, 1942, p. 156).
A celebração do Menino do Rancho é um acontecimento de extrema relevância,
tanto para a sociedade Pankararu, quanto para o menino, os convidados e a família. O tempo
que precede o evento é marcado de expectativas, participação da comunidade local e de outras
aldeias que participam da preparação do acontecimento, que é um momento de agradecimento
às forças Encantadas. As lideranças tomam cuidado para não ocorrer mais de um ritual no
mesmo dia nos principais terreiros da aldeia, mas, excepcionalmente, podem acontecer até
três festas no mesmo fim de semana, desde que seja em terreiros de menores expressões.
O evento exige organização e recursos econômicos da família e da comunidade
local. As diversas aldeias (como também outros povos) são todas convidadas a participar da
festa de agradecimento. O ritual segue um rigoroso protocolo, porém cada ritual é considerado
pela comunidade melhor do que o outro.
O anuncio da festa ecoa no boca a boca entre os índios e não índios, o que torna a
festividade anunciada. Os organizadores são motivados a receber bem, todos os convidados.
Antes do acontecimento, o povo pergunta: “Quem vai ao rancho? Quanto tempo já se passou
da cura? De que tipo de doença o menino foi curado? Será que o menino foi pedido por algum
Encantado? Quem é o dono do menino?” (o Encantado que auxilia na cura do menino é
conhecido como seu dono). Outras interrogações também surgem, como por exemplo, as
previsões de quantas pessoas participarão do momento do agradecimento em público.
O povo Pankararu recorre às forças Encantadas quando não encontra a cura para
as doenças na medicina tradicional. Após o diagnóstico médico de que a doença não tem cura,
a família da criança procura um rezador (pai ou mãe de Praiá) para interceder às forças
Encantadas pela cura. Geralmente se apela ao Praiá25 protetor da família.26 Caso o auxílio não
venha da família ancestral é solicitado o auxilio de outro Encantado (tal solicitação pode ser
feita na mesa, no Toré, em sonhos, no Terreiro...). O Encantado que se propõe a realizar a
cura pede que a criança seja colocada no Rancho. Também podem ser pedidas outras coisas:

25
O termo dado ao Praiá é a indumentária ritual: máscara corporal dividida em duas partes que recobre o corpo
inteiro e é tecida manualmente em fibra de croá. Compõem a indumentários acessórios como: maracá, gaita ou
flauta e penacho.
26
As famílias pertencentes ao troco velho e têm Encantados que os protegem dos males.
54

“rodada” (dança de Toré), um prato, Toré ... Quem determina o que será feito é o mestre guia.
A família assume o compromisso e após a cura, os responsáveis vão preparando-se para a
paga da promessa feita ao Encantado.
O Ritual do “Menino do Rancho” não é exclusividade dos Pankararu, muitas
outras tribos o adotam, algumas com mais frequência e outras mais raramente:

O ritual do Menino do Rancho, entre os Karuazu, só é realizado em caso de extrema


necessidade. Só tendo ocorrido no terreiro do Mestre Kakararezinho uma vez, em
abril de 2008, sendo conduzido por várias lideranças Pankararu. Geralmente quando
se pergunta a uma mãe se algum dos seus filhos foi “colocado no rancho”, e ela diz
que não, a resposta é enfática: “graças a deus não!”. Afinal, ter tido um filho no
“rancho”, significa que ele passou por uma doença muito grave (BARRETO, 2010,
p. 104).

Os Praiás exercem grande poder de coação na vida do povo: eles exigem


fidelidade e “ameaçam punir os infratores com diversos castigos, entre os quais a dormida em
cama feita de urtiga ou quipá”27 (ESTEVÃO, 1938, p. 163). A boa conduta moral serve para o
bom relacionamento com os humanos e com os espíritos da natureza. Os Praiás ameaçavam
os humanos com a tomada dos meninos para eles: a família que não tinha uma boa conduta
corria o risco de perder os seus filhos para o mundo dos Encantados.

[...] a representação do rapto dos meninos que no passado, faziam os “Praiás”, para
ter, a princípio, servidores, e, depois futuros “irmão”. A festa processa-se do
seguinte modo: na orla de um terreiro é erguido um rancho, formado por folhas e
ramos de árvores. Dentro dele é posto um menino de 10 a 12 anos, todo pintado de
“Tauá-Branco”, tendo à cabeça um capacete de folhas de “Uricuri” e, a tiracolo, um
pedaço de fumo de rolo, a fora outros ornamentos. À porta do “Rancho” encontram-
se dois guardas, e pelas redondezas, diversos caboclos que são, também, defensores
ou como dizem, padrinhos do menino. Tanto uns como os outros, apresentam-se
ornados e munidos de cacetes (ESTEVÂO, 1938, p.164).

Quando se coloca o menino no Rancho, ele também está sendo iniciado nos
segredos dos Praiás, que formam uma associação secreta: todo Praiá tem um pai ou uma mãe.
A função dos pais é orientar o moço que representa a força Encantada, defumar as roupas, a
semente, rezar nas pessoas e zelar pelo ambiente sagrado. A mãe de Praiá não pode entrar no
Poró.28 Durante o ritual, os Praiás se alimentam dentro do Poró. Não é permitida de hipótese

27
Conhecida também como palmatória (copuntia palmadora), é facilmente encontrada na Caatinga, podendo
atingir até dois metros de altura, dependendo da superfície em que se encontra. (Desbravando Tudo,2012,p.4).
Disponível em: http://desbravandotudo.blogspot.com.br/2012/09/especialidade-de-cactos.html . Acessado em: 27
nov 2016.
28
Local geralmente feito de palhas de coqueiro ou de alvenaria, restrito às mulheres. No Poró, ficam os objetos
sagrados usados nos rituais. O espaço é usado também para o descanso dos Praiás que representam os
Encantados.
55

alguma os Praiás se alimentarem no meio do povo. Caso isso ocorresse, eles estariam
revelando a identidade de quem o representa. Só quem pode penetrar no Poró são os homens
iniciados nos segredos dos Encantados.
O fato de se ter um lugar especial no qual ficam os objetos sagrados ou até mesmo
os Praiás não é algo exclusivo dos Pankararu: muitos outros povos, não somente brasileiros,
mas também de outros países, adotam essa prática de construir um local sagrado para que nele
sejam realizados rituais, ou mesmo que tenham como função ser um lugar de descanso das
divindades, ou ainda simplesmente funcionar como um depósito de instrumentos e objetos
tidos como sagrados. Esses lugares especiais podem ser próximos ou distantes e têm uma
gama de tipos: construções em madeira, palha, pedra, cabanas ou simplesmente altares ao ar
livre:

Voltemos aos ritos de investidura do Kanongesha dos ndembus. O componente


liminar de tais ritos começa com a construção de um pequeno abrigo de folhas,
distante mais ou menos um quilômetro e meio da aldeia principal. Esta cabana é
conhecida por kafu ou kafivi, termo ndembu derivado de ku-fwa, “morrer”, porque é
aí que o chefe eleito morre para o seu estado de homem comum (TURNER, 1969, p.
101).

Na Bíblia Sagrada, também se observam várias citações nas quais muitos


personagens bíblicos construíram altares para mostrar que os lugares onde eles estavam
deveriam ser separados dos demais, pois era um local sagrado: Noé (Gênesis 8,20.1994, p.35),
Abraão (Gênesis 7,12.1994, p.33; Gênesis 7,8.1994, p.33 Gênesis 13,18.1994, p.43 e Gênesis
22,9. 1994.p.43), Isaque, (Gênesis 26,25.1994, p.58), Jacó (Gênesis 28, 16-19.1994. p.61;
Gênesis 33,19.1994. p.69; Gênesis 35,7.13-15.1994. p.71), Moisés (Êxodo 3,5.1994, p.102;
Êxodo 17,15.1994, p.123; Êxodo 24,4.1994, p.132), Josué (Josué 8,30.1994, p.336).
Assim como os Pankararu, que colocam o menino no Poró, os Ndembus também
têm algo parecido, pois “o lugar secreto e sagrado onde os noviços são circuncisados é
conhecido como ifwili ou chifwilu, termo derivado de ku-fwa” (grifos no original) (TURNER,
1969, p. 101).
As mulheres Pankararu são proibidas de terem acesso aos segredos dos Praiás.
Existe uma separação rigorosa de funções nos rituais. As mulheres não têm acesso às
revelações últimas, ou seja, para elas existe sempre uma cortina que as impede de ver a
totalidade da verdade. Embora a mulher não tenha acesso ao portal de comunicação no
Terreiro com os Encantados, são elas na maioria das vezes, responsáveis pela orientação dos
56

Praiás. São elas responsáveis também, pela boa conduta do núcleo sacerdotal, não permitindo
excesso de práticas inconvenientes29 para aqueles que representam os Encantados. Além
disso, elas também preparam os pratos e as comidas que serão servidas durante todo o ritual,
não só para os praiás, mas para todos os participantes e convidados.
Não há datas estabelecidas para o acontecimento, pois só ocorrem de acordo com
a necessidade. Ele é realizado em três etapas: quando a criança é acometida por uma doença e
os responsáveis procuram o rezador; seções ou trabalhos de cura e a última etapa é o ápice do
ritual, quando a criança já curada, será entregue ao Encantado. A festa acontece sempre na
noite de sábado para o domingo e a comunidade se reúne para participar da entrega do menino
ao Encantado que o curou.
A sociedade secreta dos Praiás consiste em um grupo fechado formando uma
comunidade secreta na aldeia. Essa sociedade é composta somente por homens iniciados nos
segredos dos Encantados. O ritual do menino do rancho é a iniciação em tais segredos:

Desde o momento em que os Praiás se apossam do menino, este passa a lhes


pertencer, frequentando o “Poró”, para servi-los por ocasião das festas, e passando,
por fim, quando já homens, a fazer parte do “grêmio”. De modo que naquela festa,
como já disse, é, nem mais nem menos, a iniciação do neófito na sociedade dos
“Praiás” ou dos “Encantados”, como são, também, conhecidos aqueles (ESTEVÃO,
1938, p. 165).

Os Praiás não são identificados para os demais membros da aldeia e eles usam
máscaras ritualísticas que representam os Encantados. Observa-se que muitas tribos e povos
utilizam máscaras para esconder o rosto dos envolvidos ou representar alguma divindade, ser
ou animal. Também em sociedades africanas, verifica-se o uso de máscaras em seus rituais de
iniciação:

O povo Ndembu pertence a um grande aglomerado de culturas da África Central e


Ocidental, que associam considerável habilidades na escultura em madeiras e nas
artes plásticas a um complicado desenvolvimento do simbolismo ritual. Muitos
desses povos têm ritos complexos de iniciação, com longos períodos de reclusão na
floresta para treinamento de noviços em costumes exotéricos, frequentemente
associados à presença de dançarinos mascarados, que retratam espíritos dos
ancestrais ou deidades. Os Ndembus, justamente com seus vizinhos do norte e do
oeste, os Lundas de Katanga, os Luvales, os Chokwes e os Luchazis, dão grande
importância ao ritual (TURNER, 2013, p. 22).

29
São consideradas práticas inconvenientes para os que representam os Praiás, atos que firam a moral dos
Pankararu.
57

A celebração do Menino do Rancho é um cerimonial individual, diferenciando-se


assim, de outros povos que realizam o ritual de iniciação de forma coletiva com outras
crianças.
Para ingressar na sociedade há duas maneiras apenas: na primeira, a família
promete entregar o filho a um Encantado, ou seja, deseja colocar o menino no Rancho e a
outra é quando o menino apresenta uma doença grave e os pais após participarem do trabalho,
fazem uma promessa para a cura do filho: prometem ao Praiá que se o menino for curado, eles
o colocam no rancho.
Não se coloca mulher no Rancho, isto significa que não há lugar na sociedade
secreta para a mulher. No entanto, há a “dança do cansanção”, na qual a mulher pode
participar. Assim sendo, eles dividem da seguinte maneira: se a cura acontece a uma pessoa
do sexo masculino, ele é colocado no rancho, mas se é do sexo feminino, é feita a “dança do
cansanção”.
Passada a paga da promessa, o menino auxilia os Praiás nas suas atividades, no
Poró: serve água, fumo, campiô, arruma os pertences dos moços e cuida para não entrar no
ambiente sagrado quem não pertence à irmandade. Assim, tendo acesso ao universo secreto,
jura fidelidade aos Encantados e aos Praiás. Acredita-se que haja canais específicos de
comunicação entre os Praiás e os Encantados. As mulheres exercem funções no ritual, porém,
lhes é vetada a entrada no Poró, pois o segredo dos encantos está reservado somente aos
homens.
No período de estudo participei de quatro rituais de iniciação ou Menino do
Rancho: os Pankararu não chamam de iniciação e sim de Menino do Rancho. As idades
variavam de quatro a vinte anos. O ritual foi realizado em três Terreiros diferentes (Fonte
Grande, Ouro e no Terreiro da família Binga). No caso do rapaz mais velho, o ritual tardio
não ocorreu antes por causa da saída da aldeia: a família em busca de condições de vida
melhor deixou a zona rural e estabeleceu residência em São Paulo. Sabendo do compromisso,
mesmo se passando vários anos, a família voltou à aldeia para pagar a promessa que fora feita
pelos pais após uma grave doença do filho.
Os Encantados não se esquecem do que foi prometido: enquanto não se paga a
promessa, eles aparecem de diversas formas para fazer a cobrança. O mais comum é aparecer
em sonhos. Um exemplo disso nos dá o cacique Zé Auto, da aldeia do Brejo dos Padres. Em
entrevista feita no dia 20 de janeiro de 2016, ele nos contou o caso do Tarcísio, um menino
que foi prometido aos Encantados, mesmo antes de nascer (nem sempre o menino tem que
estar doente para ser pedido pelos Encantados):
58

Inclusive, vou explicá sobre o Menino do Rancho. O Menino do Rancho é assim: é...
o Menino do Rancho é como se fosse o final de uma cura, né? De uma cura, porque
no final de cura tem Menino do Rancho, tem a dança do cansanção, né?, que é
também um final de cura, porque essas curas e aí vai, quando não dá venção na
batalha inimiga e o inimigo tá sempre ganhando... aí termina o guia chegando e
dizendo que tá com o trabalho na cabeça, né?... dizendo : “quer que o menino fique
bom? Ele só vai fica bom se fizer isso assim, assim, assim...” Aí determina o rancho,
sabe? Mais num é a gente que vota, não, eles que vem e diz: “ele só vai fica bom se
fizer isso aqui” (...) Mais aí é um dos pontos pedido deles. Agora quando é
prometido pelo pai, pela mãe, às veze eles pede pra... assim.... sem tá muito doente,
sabe? Mais tem uns que é obrigatório mesmo: ir para o rancho solicitado pelo guia,
entendeu? (...) Que nem a Xanda, ói, tem ela aqui, ói, tá vendo? (mostra uma foto
de uma mulher que era a esposa dele), faleceu... Aí tem ele aqui, ói, ele também
faleceu, ói (e mostra outro retrato do filho dele). Ele foi o primeiro filho que a gente
teve e então, ele ainda na barriga, o praiá veio solicitá... e ela era da Amazona, não
conhecia Pankararu e nem sabia o que era praia, e nós no Rio de Janeiro. Aí ele foi e
apareceu pra ela, aquele home vestido de roupa de uricuri (...) aí ele disse: “ eu vim a
mando do capitão. Vai nascê um filho home e ele mandou dizer que é dele, que é
dele.” A Xanda: “O que? Eu, dá meu filho? Não, não dou não!” ... “Aí eu num sei,
eu vim a mando do capitão.” Aí voltou né? Aí ela me contou: “Zé, ói, tá passando
assim, assim, assim. Esquisito, né? Que eu nunca vi! Aí disse que eu ia ter um filho
e era dele. Veio a mando do capitão.” E aí foi, foi (...) aí eu fiquei calado, porque eu
num tinha ainda assim... explicado aqui pra ela como era, porque ela era do
Amazona (...) aí eu fiquei calado (...) e aí no caso que eu tava contando do Tarcísio...
eu tô dando o exemplo do Tarcisio, né? Ele veio três veze, mas ela não queria dar
não! Aí, quando veio na segunda... daí foi: “pois, olhe, tô voltando sem resposta,
mas a terceira vez que eu vim, ou você dá, ou nós leva ele.” Aí a Xanda ficou meia
assombrada, né? Sem saber o que era e aí ela me contou, né? ...Eu disse: “ Xanda,
quando ele vim dê, dê porque esses home não brinca, não! Isso é costume da aldeia,
nossa aldeia é assim, assim e falei, né? Quando eles pede assim, é pra proteger do
que vai acontecer e a partir daquela data, ele vai ser dono dele, tudo o que vim ele
vai defender!” E aí quando ele veio, ela deu, né? Aí pronto... aí tive que botá no
rancho. Aí ele viveu até os vinte dois ano e aí morreu, morreu afogado, né? Porque
ele vinha determinado pra ser curador, a partir dos doze ano, né? Mais aí
broquearam a corrente dele, aí num chegô a trabaiá e aí morreu...

O ritual é sagrado e a promessa feita tem que ser paga. Além disso, o
compromisso firmado não fica no anonimato: sempre tem alguém que sabe do ocorrido; por
isso a cobrança acontece não só pelos Encantados, mas também pelo ciclo de amizades:

Uma vez feita a promessa e a graça alcançada, os pais da criança adquirem uma
dívida com o Encantado prometido, tendo que pagar no terreiro ao qual a entidade
está ligada. Muitas vezes essa retribuição não acontece de forma imediata, visto que
o custo para se financiar uma celebração dessas é alto. Daí os pais esperam até que
tenham o dinheiro, adiando a realização do ritual até a idade adulta do rapaz.
Existem casos em que o trabalho só acontece após as entidades se manifestarem
cobrando o pagamento (BARRETO, 2010, p. 105).

Se, por acaso, a mãe ou o pai que fez a promessa falece antes de pagar, o falecido
aparece em sonho pedindo para que se pague a promessa. Enquanto o ato não for realizado, o
59

falecido não segue a sua direção e fica na aldeia assombrando o povo e ameaçando matar o
menino.
No passado, os Encantados escolhiam as crianças para compor o grupo. Quando
um menino era “flechado” (escolhido) por um espírito ruim, um Encantado assumia a
responsabilidade de curar o menino tomando-o do espírito que queria o menino para si, e
então começava uma disputa entre o espírito mal e o Encantado. Ele curava o menino, porém
exigia da família que o colocasse no rancho, ou seja, que oferecesse a criança ao Encantado
que o curou.
Ao fazer parte do grupo dos Encantados, o menino curado acaba fortalecendo o
batalhão dos praiás, pois o Encantado que tem o maior número de seguidores é mais forte e
tem mais prestigio entre os Pankararu. Acredita-se que haja disputa entre entidades espirituais
pela criança e o sinal dessa disputa é a manifestação de doenças constantes (flechamento). A
disputa serve para o fortalecimento de quem o atrai. A cura pelo Encantado evita o rapto do
menino pelas entidades espirituais que a todo custo desejam aumentar os seus membros.
Quando a criança morre, o Encantado perdeu a disputa. Quando ocorre a cura, o
Encantado é vencedor e a criança passa a pertencer a ele, que a salvou da morte,
estabelecendo uma relação perpetua: o menino exerce funções de fidelidade para com o
Encantado e o Encantado cuida da vida do menino por toda a vida, sendo a relação mutua
entre ambos.
Pertencer ao grupo dos Praiás é uma grande honraria e isso gera prestigio na
família: embora seja um grupo secreto, não é sabido de fato quem usa as máscaras, há
desconfiança e quando se tem a certeza é prudente não revelar a ninguém sobre a pertença ao
grupo sacerdotal. Os membros da aldeia até sabem quem pertence ao grupo, porém, não
sabem quem usa a máscara ritualística ou o roupão que representa o seu protetor. O segredo
faz parte do complexo ritual. Quando a família não tem um praiá, ela estabelece relação com
outra família, fortalecendo suas relações religiosas e sociais. Na sua maioria os grupos têm
membros na sociedade sacerdotal secreta.
Para usar a máscara do Encantado é preciso ter vigor físico, porque os rituais
exigem resistência psicológica e física (talvez seja por esse motivo que não se tenha mulheres
no grupo), já que têm que correr, movimentar-se e utilizar bastante força e resistência. Os
Pankararu acreditam que as máscaras são sagradas e oferecem as condições necessárias para a
resistência. Dorothea Passetti diz que “as máscaras podem ser concebidas como seres vivos.
[...] Máscaras cuja natureza divina não pode ser atestada, não deixam de construir o meio
através do qual o homem se relaciona com o sobrenatural” (PASSETTI, 2008, p. 258). A
60

máscara Pankararu, não revela a verdadeira identidade do Encantado e de quem o representa


nos rituais.
Na realização do ritual existem dois grupos principais que representam a disputa
do menino no Terreiro: de um lado está o grupo dos Praiás que representam os Encantados
(entre eles está o Encantado que curou o menino). E do outro lado está o grupo de padrinhos
(escolhidos pelos pais do menino), que de corpos pintados de tawá30 branca e sem camisa, têm
a função de defender o menino na disputa final.
Geralmente é escolhido um número maior de padrinhos do que de praiás, mas
antigamente, o número de praiás era sempre da mesma quantidade de padrinhos, ou seja, se
havia vinte padrinhos, deveria haver vinte praiás, formando assim, um grupo de moços de um
lado e outro grupo de outro.
Há então uma espécie de pega-pega, uma competição entre praiás e padrinhos e se
um praiá toca em qualquer parte do corpo do menino, o jogo acaba. Apesar de existir a
disputa de quem vai pegar o menino, seu dono será sempre o praiá a quem foi recorrido pelos
pais na promessa. Nessa disputa, sempre o grupo dos Encantados sai vencedor aumentando
assim o seu batalhão. É uma espécie de batalha espiritual.
Durante a dança do Toré, em um determinado momento, o Praiá Cinta Vermelha,
dança no Terreiro do lado contrário dos outros praiás, para fechar assim o círculo e impedir a
entrada dos inimigos. Antigamente, o “traseiro” era sempre o Cinta Vermelha, mas pelo fato
do ritual ter crescido muito e ele não poder estar em todos os Terreiros, atualmente esta
função pode ser feita por outros substitutos.
No mesmo ritual estão presentes o menino com seus familiares, os puxadores dos
toantes, a noiva e a madrinha (pode haver até duas madrinhas). A noiva, a madrinha e o
menino sempre estão na dianteira puxando o ritual. A noiva geralmente é uma adolescente e
tem o corpo pintado de tawá, veste saia, blusa e na cabeça carrega uma tiara feita de várias
fitas coloridas de papel crepom, que servem para adornar e diferenciá-la dos demais. Na
utilização das cores, o preto é ausente, pois para os Pankararu esta cor representa a esquerda
espiritual (a força espiritual negativa) que “flechou” o menino e por isso não pode ser usada.
Assim como os padrinhos, a noiva e a madrinha também têm como função a
proteção do menino. A madrinha também é responsável pelo café que é servido para todos os
convidados e participantes. A comida (almoço ou jantar), no entanto, é de responsabilidade
dos pais da criança.

30
Uma espécie de pedra mole de coloração branca, que quando triturada, serve para pintar os corpos dos
participantes dos rituais.
61

Um item importante que não pode faltar no ritual é o fumo, que serve para
purificar o ambiente, o menino, as outras pessoas e até as roupas dos praiás, retirando assim
todo o mal e afastando o inimigo. Zé Auto, explica sua função através da comparação do
fumo e do cachimbo, com uma arma de fogo de longo alcance e suas balas:

(...) aquele fumo ali, geralmente eles mede um certo tamanho e bota ali, é pra
proteger, porque o fumo ele é uma arma principal da tradição. Porque se a gente faz
uma cura, tem que ter o fumo. Outra coisa pode até não ter, mas fumo tem que ter.
Porque é através da fumaça que meu pai dizia, que o fumo, junto com o cachimbo, o
cachimbo seria o bacamarte e o fumo seria as balas, o carrego do bacamarte, sabe? É
através daquilo ali, daquele fumo que ele bota o inimigo, ele alcança o inimigo. E
ele dizia mais! Ele dizia que o cachimbo e o fumo são armas de longa distância,
como se fosse um “míssil”, ou pior do que um “míssil”, porque o “míssil” a gente vê
a distância e parece que não vai muita distância lá não, né? E o cachimbo ele pode
atingir daqui até no Rio de Janeiro, na França, na Alemanha, aonde tiver. E se pegar
o cachimbo e der a fumaçada ela vai pra casa do fulano e pode atingir lá, sabe? É
como se fosse um “míssil”...

Assim sendo, o fumo ajuda a combater as forças inimigas que tentam levar o
menino ou mesmo prejudicar os praiás: “Também para despregnar o inimigo que tá grudado”,
segundo Zé Auto.

Figura 3 – O menino do Rancho sendo conduzido ao Terreiro, ao lado do Praia Cinta


Vermelha, protetor do menino.

Fonte: Nara Alves (2014).


62

Figura 4 – A noiva na dianteira ao lado dos Praiás e dos padrinhos.

Fonte: arquivo pessoal do autor (2014).

Figura 5 – A madrinha com os padrinhos no Terreiro.

Fonte: arquivo pessoal do autor (2014).


63

3.1 Os Toantes

Ouvir música não serve apenas como uma forma de entretenimento, mas também
relaxa, acalma, alivia dores (ao cantar a pessoa muda o foco, ou seja, começa a pensar na
música que está ouvindo ou cantando e se distrai, parando de pensar ou dar atenção à dor ou
ao problema), auxilia na melhoria da memória (estimula novos caminhos e conexões no
cérebro), estimula à prática de atividades físicas (induz ao movimento), melhora a
comunicação (propõe uma forma alternativa de organizar as ideias, porque tem tempos e
cadências diferentes da fala), cria vínculos (um exemplo típico é quando uma mulher canta
para seu bebê – antes ou depois do nascimento – e este começa a memorizar a voz da mãe,
criando assim, um vínculo afetivo), promove o autoconhecimento (faz com que a pessoa
descubra sentimentos, sensações e emoções próprias) e funciona como “remédio” para vários
problemas. Por ativar o centro de prazer do cérebro, a música libera a dopamina31, causando
assim, uma sensação de bem-estar e é por isso que está sendo cada vez mais usada por
médicos e terapeutas. Dorothea Passetti afirma que a música “excita, aguça a percepção”
(PASSETTI, 2008, p. 297).
Em relação aos rituais praticados pelos diversos povos indígenas no mundo
inteiro, verifica-se que a música está sempre presente nas suas diversas cerimônias: de morte
ou nascimento, de matrimonio, de iniciação, de envio, de guerra, de agradecimento ou de
comemoração.
As músicas cantadas nos trabalhos ou rituais Pankararu são chamadas de toantes e
são executadas para chamar um Encantado ou alguns Encantados. A musicalidade preenche
todo o espaço dos cerimoniais em andamento. Os toantes ou torés utilizados, não só servem
como forma de representação das crenças religiosas (é através delas que os Pankararu entram
em contato com os Encantados), como também mostram muito sobre a organização social,
política e cultural do povo em questão. Apesar de não falar mais seu idioma original, os
Pankararu mantêm manifestações culturais próprias de suas origens, preservando desta forma,
o pouco que ainda possuem sobre sua cultura e identidade de grupo.
Na maioria das vezes, os toantes são cantados por cantadeiras e cantadores e
dançados em grande parte do tempo pelos Praiás. Os toantes são as identidades individuais de
cada Encantado, ou seja, cada Encantado tem o seu próprio toante, podendo ter até três

31
Neurotransmissor, percussor natural da adrenalina e da noradrenalina. Tem como função a atividade
estimulante do sistema nervosos central. (Minha saúde, 2013). Disponível em:
<https://www.minhasaudeonline.com.br/br/artigo/58/100461/dopamina-e-suas-funcoes-psiquicas-organicas-
comportamentais-e-obtencao >. Acessado em: 28 Nov. 2016.
64

toantes e três torés. Não há uma precisão do número exato dos toantes de cada Encantado. Às
vezes, ele revela-se em uma aldeia com um nome e dá outro nome em outra aldeia. Por isso,
nem sempre se sabe do seu passado. Os toantes são considerados como dons, e por isso não
podem ser “criados”, mas sim revelados, sendo que é através dele, que o encantado é
chamado para aparecer.
Dependendo do momento, os toantes são cantados de maneira diferente. Quando a
cerimônia é aberta a qualquer pessoa, as músicas são cantadas em versões transmitidas
oralmente. Em casos privados os toantes são cantados muitas vezes pelo próprio Encantado
que sem medo comunica-se melhor com aqueles que o chamaram.
O toante, como identidade, é dado ao pai ou mãe de Praiá no momento da
revelação. Antes desse acontecimento ocorrem diversas comunicações e ensinamentos:
quando o pai ou a mãe estão prontos para receber a confirmação de que de fato foram
escolhidos por um Encantado, ele ou ela oferece a semente e com ela vem também a
identidade da cor da cinta e o toante que é dado somente a quem está recebendo a missão de
zelar pelo Encantado.
Há uma certeza de toantes para o Mestre Guia: o Mestre Guia é o chefe dos
Encantados, não existe toré pra ele. São cantados apenas três toantes no dia da sua festa (que
acontece no final da corrida do imbu) que geralmente ocorre no domingo de páscoa. A festa é
conhecida como a saída do Mestre Guia, que acontece sempre no Terreiro da aldeia da
Serrinha. Os toantes do Mestre Guia são cantados apenas por um ou por dois cantadores.
Esses cantadores são escolhidos rigorosamente para essa celebração.
Nos rituais particulares os toantes possuem características próprias do Encantado,
fazendo até menção aos santos da igreja católica. Nos terreiros, a abertura dos trabalhos só
pode ser feita com o toante do dono do Terreiro e o mesmo acontece para fazer o fechamento.
Os toantes invocam a presença do Encantado que vem para auxiliar o povo nas suas
dificuldades.
A origem dos toantes está ligada ao levantamento do Praiá: o levantamento é a
apresentação pública de um novo Encantado em uma aldeia e que acontece após diversos
testes para ver se de fato é um Encantado ou se é um impostor na figura de um Encantado.
Cada toante é dado pelo Encantado e não existe uma pessoa que faça a composição da letra ou
da melodia. Para o povo Pankararu os toantes são sagrados não sendo permitido ser cantado
em qualquer lugar ou em qualquer ocasião.
O toante, cantado ao som do maracá, tem um dono e cabe ao pai ou à mãe de
Praiá zelar por aquilo que lhe foi confiado, pois se foi dado é porque é merecedor. No
65

percurso da vida, se o pai ou a mãe não cuidar direito da semente, se procura outra pessoa
digna para ser a zeladora.

3.2 O Maracá

A matéria prima para a confecção dos instrumentos indígenas é bem diversificada:


são utilizadas madeiras, sementes, fibras, pedras, barro, ossos, ovos, chifres, peles, unhas,
dentes e cascos de animais, conchas, búzios e outros. Entre os inúmeros instrumentos
indígenas, há o maracá: um instrumento musical sagrado para os Pankararu nos seus rituais e
que tem a função de acompanhar a execução dos toantes no chamamento e na permanência
dos Encantados nas celebrações.
A confecção do maracá dos Pankararu é feita de coco seco ou de cabaça (coité).
Na cabaça é feito um corte, retira-se o seu interior (miolo) e inserem-se sementes pequenas,
cujo atrito das mesmas nas laterais internas produz o som. Em sua confecção é usado um
pequeno pedaço de madeira, cera de abelha e pena de galinha ou de outra ave. Também
podem ser utilizados (além de sementes) caroços, grãos, areia grossa, coquinhos, arroz, feijão,
pedras ou outro material que produza som com o atrito na cabaça. Dependendo do que se foi
utilizado no interior da cabaça, o som produzido é diferente. O viajante alemão Hans Staden,
descreve no seu diário de bordo a função do maracá e como é confeccionado:

Eles acreditam em uma coisa que cresce como uma abóbora e é do tamanho de um
meio pote. É oco por dentro e lhe atravessam um pau. Fazem, depois, um buraco em
forma de boquinha e põem pedrinhas dentro, para que chocalhem. Chocalham com
isso quando cantam e dançam, e chamam-no tammaraka (STADEN, 1557, p. 142).

Na simplicidade do instrumento musical, ele é visto como sendo o centro do


universo e é através do maracá que se tem o contato do mundo dos humanos com o mundo
dos Encantados. Acredita-se que o som que ele produz vem da terra e dentro dele vive um
espírito que, quando tocado, protege os homens dos espíritos maus.
Jean de Lery, nos seus relatos sobre o Brasil também fala sobre o maracá e suas
funções e afirma que:

Existe também no país uma árvore que dá frutos do tamanho e da forma do ovo de
avestruz. Os selvagens os furam no centro como as crianças francesas furam as
nozes grandes para fazer molinetes; esvaziam-nos depois, colocando dentro
pedrinhas redondas ou grão de milho, e atravessam-nos com um pau de pé meio de
cumprimento. Tem assim o instrumento a que chamam maracá e que faz mais
barulho do que uma bexiga de porco cheia de ervilha. Os brasileiros os trazem em
66

geral na mão. [...] enfeitados com lindas plumas e empregados em determinadas


cerimônias (LERY, 1961[1578], p. 97).

O maracá, sendo um instrumento sagrado, não pode ficar exposto e nem pode ser
tocado por qualquer pessoa. Cada Encantado tem o seu maracá próprio, não sendo permitida à
pessoa considerada impura tocar no instrumento sagrado, pois este guarda a ciência da cura e
da libertação dos males da humanidade. O instrumento é individual e consagrado à divindade
específica, não é um instrumento de brincadeira ou utilizado de qualquer forma e para
qualquer finalidade. Por sua beleza e som, o maracá se transformou em um instrumento
famoso e muito utilizado não apenas por índios, mas também por bandas, músicos e até como
brinquedo infantil.

Figura 6 – Maracá.

Fonte: arquivo pessoal do autor (2014).

3.3 O Toré

A dança é uma expressão corporal que está presente na vida do homem desde os
tempos mais remotos e ainda hoje é utilizada, pois sempre teve, tem e terá várias funções:
expressar sentimentos, ajudar no bem estar do corpo e da mente, representar acontecimentos e
fatos históricos e religiosos. A dança “reflete-se com extrema clareza na relação entre o gesto
e a magia nas danças religiosas de povos primitivos. Assim como nessas danças o prazer da
67

simulação e da imitação funde-se com a ação religiosamente...” (HAUSER, 2000, p. 7). Além
disso, serve de entretenimento, ajuda a combater o estresse, ansiedade e outros males.
Por ser uma atividade que envolve o corpo todo (inclusive a respiração), a dança
traz muitos benefícios para o corpo: além de aprimorar a coordenação motora e ser um grande
influenciador na perda de peso, auxilia com a flexibilidade e melhora o condicionamento
aeróbico. Também pode ser considerada uma terapia para a alma, pois os resultados obtidos
por ela superam o bem-estar físico: socialização, combate à depressão e à timidez, alegria,
autoestima elevada e disposição para encarar as dificuldades do dia-a-dia: ao ensaiar os
primeiros passos, a pessoa se desprende dos medos e preconceitos e vê seu estilo de vida ser
transformado pouco a pouco.
Sendo um fator marcante na história de todos os povos, na dança vemos uma
linguagem universal e nos gestos corporais, se exprimem expressões não verbais. Na maioria
das vezes, nos tempos remotos, a dança acompanhada pela música, era sagrada e executada
em forma de agradecimento a Deus. Exemplos não faltam na Bíblia, como os hebreus e os
egípcios.
Os povos desde os tempos remotos encontravam na dança e na música espaço de
louvação e agradecimento pelos seus feitos. “Que eles louvem seu nome pela dança; que
toquem tambor e cítara para ele” (Salmo 149,3. 1994, p. 1162). A dança, praticada de modo
especial pelos hebreus, tem um cunho litúrgico, acompanhada por músicas de louvor
exaltando a Deus pela vitória. A ação muitas vezes era realizada por pessoas do mesmo sexo,
como é o caso da profetisa Miriâm. “A profetisa Miriâm, irmã de Aarão, pegou o tamborim.
As mulheres todas a seguiram dançando e tocando os tamborins” (Êxodo 15,20. 1994, p.
120).
Observa-se também na Bíblia que, depois da vitória, também se confraternizavam
com cânticos e danças. Foi assim que aconteceu com David depois de vencer os filisteus (1
Samuel 18.1994, p. 405). Após vencer a batalha, David é apresentado ao rei Saul, recebendo
as devidas homenagens, as mulheres chegavam de diversas regiões prestando homenagem ao
vencedor:

Por ocasião de sua volta, quando David retornou após ter abatido o filisteu, as
mulheres vinham de todas as cidades de Israel ao encontro do rei Saul, cantando e
dançando ao som de tamborins, de gritos de alegria e de sistros. E as mulheres,
tocando e dançando, cantavam em coro: “Saul matou milhares, mas David, dezenas
de milhares”. Saul ficou muito irritado. A coisa lhe desagradou. Ele disse: “atribuem
a David dezenas de milhares, e a mim, apenas milhares. Só lhe falta a realiza!” a
partir desse dia, Saul não olhava mais David com bons olhos (1Samuel 18,6-9. 1994,
p. 431-432).
68

O próprio Rei Davi também dançou para celebrar a chegada da Arca de Javé em
sua cidade:

Davi dançava com todo o entusiasmo diante de Javé e vestia um efod e linho. Desse
modo, Davi e toda a casa de Israel conduziram a arca de Javé, com aclamações e
toques de trombeta. Quando a arca de Javé entrou na cidade de Davi, Micol, filha de
Saul, estava olhando pela janela e viu o rei Davi pulando e dançando diante de Javé,
por isso, o desprezou no seu íntimo (2 Samuel 6,14-16.1994, p. 459).

Todos os grupos indígenas do mundo inteiro utilizam-se da dança para representar


ou celebrar algo. Dentre os indígenas do Nordeste do Brasil, está o Toré, uma manifestação
cultural de caráter coletivo, na qual os índios cantam e dançam. Cada etnia tem os seus torés
próprios (alguns são compartilhados por muitos), diferenciando-se entre ela não apenas na
forma como dançam, mas também por que dançam, como dançam, quem, quando e onde
dançam.
Jean de Lery, ao falar das danças dos índios do Brasil, afirma que os índios:

Unidos uns aos outros, mas de mãos soltas e fixos no lugar, formam rodas, curvados
para frente e movendo apenas a perna e o pé direito; cada qual com a mão direita na
cintura e o braço e a mão esquerda pendentes, suspendem um tanto o corpo e assim
cantam e dançam. Como eram numerosos, formavam três rodas no meio das quais se
mantinham três ou quatro caraíbas ricamente adornados de plumas, cocares, maracás
e braceletes de diversas cores, cada qual com um maracá em cada mão (LERY,
1961[1578] p. 169).

Os Pankararu dançam o Toré para celebrar realizações, conquistas, fatos


relacionados à vida e ao cotidiano da aldeia. O Toré é também dançado para pedir proteção
contra doenças, violência, como forma de agradecimento ou de pedidos. O ritual do Toré é o
símbolo de resistência dos índios do Nordeste.
Após a abertura do Terreiro, ao som da gaita e do maracá, homens, crianças e
mulheres em pares formam um grande círculo que gira em torno do centro e com o passar do
tempo gira em torno de si mesmo, pisando forte no chão e fazendo levantar uma cortina de
poeira. Nos versos, nem sempre é possível compreender o que está sendo cantado e às vezes o
cantador solta os versos e o povo repete. No fechamento do ritual são dançados três torés: um
para a entrega do menino, outro para a noiva, outro para a madrinha: cada entrega é uma
rodada.
O Toré tem na sua essência a comunicação com os Encantados que estão nos
palácios encantados. É um ritual sagrado, no qual através das vozes e do som do maracá a
69

comunicação acontece. A ação faz com que a consciência cósmica e política estejam
presentes na vida social da aldeia.

O Toré em si não é apenas dança, música ou religião, é um espaço político, de


atualização étnica. É também, e por isso mesmo, um espaço de experiência cultural
coletiva, e como espaço público é patrimônio da cultura. O torécoco passou a ser o
espaço de atualização permanente da tradição; um lugar novo, para responder a
novas experiências políticas, culturais, religiosa, e claramente musicais
(ALBURQUERQUE, 2005, p. 158).

Se visto por pessoas leigas, o toré talvez não tenha o valor e a importância que
realmente merece, pois não é apenas mais uma das inúmeras danças indígenas, é mais do que
isso: simboliza e representa toda a cultura, riqueza e sentimentos de um grupo, se transforma
em uma “marca registrada” de um povo que luta pela sua sobrevivência física, econômica,
social e cultural e é isso que o torna tão belo aos olhos dos que conhecem o seu valor.
70

4 A CORRIDA DO IMBU

Figura 6 – Umbuzeiro.

Fonte: arquivo pessoal do autor (2014).

4.1 Os ciclos da Corrida do Imbu: o fechamento

O ritual da corrida do imbu é dividido em diversos quadros e é celebrado em


vários terreiros no mesmo dia: geralmente, o cerimonial acontece em três terreiros, tendo a
participação dos encantados e indígenas. O ritual é um conjunto de rituais dentro de um
determinado espaço temporal, no qual por quatro domingos consecutivos ele é realizado,
sendo cercado de mistério, encanto, fé e muito respeito às forças Encantadas.
Não se sabe quando e como se iniciou esta grande celebração, que começa com o
flechamento do imbu e termina um domingo antes do domingo de páscoa, ou próximo a ele.
Não se tem uma data fixa, porque depende muito de fatores climáticos da caatinga, afinal,
para que haja o ritual, é necessário que se tenha o fruto.
71

Figura 7 – Fruto do umbu.

Fonte: arquivo pessoal do autor (2016).

Durante este tempo de festa ritualística que coincide com o período da quaresma e
finda com a festa da ressurreição de Jesus, o ciclo dos festejos termina com a saída do Mestre
Guia que é a autoridade no reino dos Encantados. O ritual da Corrida do Imbu 32 inicia a partir
do momento que se encontra o primeiro fruto do imbuzeiro. O índio que encontra o primeiro
fruto deve anunciar à aldeia a descoberta do mesmo. A aldeia começa a se preparar para o
início da festa que acontece assim que o fruto amadurecer.
Dá-se inicio à festa com o flechamento do fruto maduro, sendo que esse não pode
ser consumido e sim levado ao dono do Terreiro33 Poente34 para em seguida ser levado ao

32
Anacardiaceae, conhecido popularmente como: umbu, imbu, ambu. A planta já foi muito comum no Nordeste
do Brasil: devido a escassez de água na região, a raiz foi muito usada na alimentação do sertanejo. Muitos
sertanejos conhecem a planta como sagrada por seu poder de armazenar água em suas raízes. Sua frutificação
geralmente ocorre entre os meses de dezembro a março. Do pé do umbu se aproveita tudo. O fruto tem um
caroço coberto por uma polpa, que quando madura é doce e traz na sua superfície uma película de tonalidade de
esverdeada para amarelada. Sua forma arredondada mede em média de três a quatro centímetros. O tamanho do
fruto varia muito dependendo do clima chuvoso. Normalmente é consumido in natura e das folhas e casca se faz
remédio. A árvore, de porte médio, quando adulta chega a seis metros de altura e sua copa pode medir
aproximadamente catorze metros. Sua sombra é muito usada por animais e homens durante o sol do dia. O
imbuzeiro está relacionado à fartura e está ligado diretamente com o surgimento dos Encantados Pankararu.
(Informações colhidas em campo).
33
O Terreiro é uma área limpa de terra, local sagrado destinado à dança do Toré e intimamente ligado aos
Encantados. Em media mede de 35 a 40 m², mas não existe um padrão que regulamente o tamanho. Geralmente
a casa do dono ou zelador de Terreiro está próxima: essa aproximação é necessária para o cuidado do Terreiro
tendo a função de defumar e espantar as forças negativas do recinto. Com a defumação, toda força maléfica é
afugentada, não permitindo a presença de espíritos falsos.
34
Existe uma disputa política entre os Pankararu do Brejo dos Padres e os Pankararu Entre Serras na organização
dos festejos da Corrida do Imbu. Essa disputa ficou acirrada com a homologação das Terras Entre Serras
gerando disputas internas das lideranças, disputa essa não só com os rituais, mas também com toda organização
política e territorial.
72

Terreiro Muricizinho, onde se dá o flechamento. Este fato ocorre entre os meses de fevereiro e
março nos diversos terreiros dos Pankararu, não ficando restrito a apenas um, havendo assim,
uma integração entre as diversas aldeias do povo Pankararu, com a presença dos Praiás que
não precisam de convites para participar dessa grande festividade considerada de fertilidade e
de agradecimento aos Encantados.
No Terreiro, o imbu é colocado preso a um fino fio, é esticado e amarrado a uma
haste sobre duas forquilhas e assim começa o flechamento com arco e flecha. O participante
que acerta o alvo recebe um cipó e em seguida convida outros competidores para fazer o
puxamento do mesmo, formando desta maneira dois grupos: um grupo se posiciona para o
nascente e o outro para o poente. Se o grupo do nascente for vitorioso, significa que a
colheita será farta, caso o grupo no poente seja o vencedor, o ano será de seca e não terá
colheita suficiente para a alimentação de todos.
Para os Pankararu, o pé do imbuzeiro é sagrado e faz parte do surgimento dos
Praiás na aldeia. As festividades da corrida do Imbu são uma referência aos antepassados que
realizavam esse ritual agradecendo às divindades pelo fruto, pela sombra da árvore e também
pela sua raiz que armazena água.

É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias
amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora
sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto – e veio descaído ouco a pouco,
numa intercadência de estios flamívomos e invernos torrenciais, modificando-se à
feição do meio, desinvoluindo, até se preparar para a resistência e reagindo, por fim,
desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da
energia vital que economiza nas estações benéficas, das reservas guardadas em
grande cópia nas raízes.
E reparte-as com o homem. Se não existisse o umbuzeiro aquele trato de sertão, tão
estéril que nele escasseiam os carnaubais tão providencialmente espalhados os que o
convizinham até ao Ceará, estaria despovoado. O umbu é para o infeliz do matuto
que ali vive o mesmo que a mauritia, para os garaúnos dos llanos.
Alimenta-o e mitiga-lhe a sede. Abre o seio arcariador e amigo, onde os ramos
recursos e entrelaçados parecem de propósito feito para a armação das redes
bamboantes. E ao chegarem os tempos felizes dá-lhe os frutos de sabor esquisito
para o preparo da umbuzada tradicional.
O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das suas folhas
realça-se-lhe, então, o porte, levantada, em recorte firme, a copa arredondada, num
plano perfeito sobre o chão, à altura atingida pelos bois, mais altos, ao modo de
plantas ornamentais entregues à solicitude de práticos jardineiros. Assim decotadas
semelham grandes calotas esféricas. Domina a flora sertaneja nos tempos felizes
como os cereus melancólicos nos próximos estivais (CUNHA, 2002[1905], p. 128-
129).

Euclydes da Cunha, ao falar da importância da árvore e do seu fruto, mostra o


diferencial do umbuzeiro na caatinga, não só para os humanos, mas para toda espécie de vida
que habita o sertão. Hoje o umbuzeiro está escasso devido ao consumo em grande escala. Do
73

fruto, não se faz somente a umbuzada, mas também o suco, que é industrializado e consumido
nos grandes centros urbanos. A folha e o caule são usados nas garrafadas medicinais e a raiz,
que armazena água, é usada para fazer cocada. Com a retirada das raízes sem uma seleção, a
árvore acaba morrendo e como é nativa da caatinga, não existe uma conscientização de um
consumo responsável.
O inicio da Corrida do Imbu acontece em dias de sábado à noite, com a Noite dos
Passos, logo após o novenário dedicado a Nossa Senhora da Saúde, realizado no Santuário da
Mãe de Jesus. Após a meia noite, no terreiro da Bia, acontecem os passos, que geralmente
terminam por volta das 05h da manhã. Ao terminar essa fase, os participantes dirigem-se à
suas casas para descansar um pouco, porque logo mais retornarão para dar prosseguimento às
suas atividades. Partes do ritual acontecem antes dos primeiros raios do sol, buscando-se neste
gesto, a força e a vitalidade dos raios que energizam e fortalecem os participantes na força dos
Encantados.
Por volta das onze horas, algumas pessoas se reúnem no Terreiro para preparar o
almoço. A cada domingo, os participantes, em media, consomem a carne de um boi. O
almoço é servido em pratos de barro a todos os participantes ou curiosos, não sendo permitido
o uso de talheres. A alimentação é composta de carne, arroz, pirão e garapa.35
A garapa oferecida ao Mestre Guia é diferente da que é servida aos praiás e a
todos os participantes e convidados: ela passa por um processo de fermentação da cana-de-
açúcar, que fica “descansando” por três dias em um pote de barro para ficar um caldo fino e
azedo.
Esse ritual acontece no período de quatro semanas antes da quaresma e se conclui
com a saída do Mestre Guia após a Páscoa. Há anos em que o Mestre Guia não sai, saindo
apenas em outra oportunidade. Se ele não sai é porque talvez considere que os participantes
não demonstraram o respeito que era devido. Assim sendo, o ritual não é finalizado e é feita
outra tentativa nas semanas posteriores para que haja realmente o encerramento deste ritual.

A saída do Mestre Guia é a coisa mais linda! Todos que estão no Terreno sentem a
força do Mestre Guia. Tu sabe que o Mestre Guia é o chefe dos Encantados! Pois
bem... Eu fiquei radiada, depois eu tive um sonho com ele que dizia que o que
aconteceu no Terreiro foi apenas uma fumacinha. Tu sabe que as manifestações são
assim mesmo. Eu pretendo no próximo ano acompanhar o mês todo as Corridas do
Imbu, oiá é uma coisa linda.
O Mestre Guia saiu às duas horas da manhã. Antes da saída, tudo fica no silêncio e
no mistério. Depois saiu um moço radiado, pedindo pra todo mundo ficar calado; de
repente sai o Mestre Guia acompanhado de muitos Praiás. Ele é o último a sair. Ele

35
Quando não é possível servir o caldo de cana, se compra rapadura, dissolvem-na em água e a servem ao povo.
Também é possível dissolver melado de cana em água e servir.
74

ao passar no Terreiro abençoa todo mundo, dá a forças pra todos... É uma coisa
linda! Às quatro horas acabou tudo e todos vão para suas casas com muita força.
Quando ele sai do Porô em silêncio, os Praiás vêm só na pisada do maracá, apenas
uma pessoa canta o toante. O mestre Guia vem com uma roupa diferente de licurí, os
outros vem no caruá. Vem um atrás do outro, lindo, lindo, lindo dá três voltas e volta
para o Poró.
A minha experiência sempre é maravilhosa com o mestre Guia. A cada ano que
venho à Serrinha a minha vida é abençoada. Eu fico tão feliz que não tem como
escrever. O mestre Guia é a força dos Pankararu. Não tem quem não sinta a força
que Ele transmite no Terreiro.
Cada vez que venho aqui é como dar comida... É como se fosse um alimento
espiritual que me fortalece nos rituais e em tudo que faço. A comida dele é uma
delicia, é como se fosse a coisa mais gostosa do mundo. Tinha umas quinhentas
pessoas e todo mundo come à vontade. A Santa Mãe de Deus abençoa a todos nós. É
lindo, lindo, lindo, lindo. Nesse dia vem muitos Praiás de todas as aldeias e de fora,
isso é força espiritual e ninguém pode negar (Maria de Lourdes 67 anos).

Outro informante descreve a sua experiência com o Mestre Guia não tão diferente
da primeira informante que exalta a força espiritual que é transmitida pelo chefe dos
Encantados.

Rapaz, a saída do Mestre Guia é muito forte e bonita! É uma coisa linda! É uma
pena que o povo não tem conhecimento da beleza que é. É tanta força que o cabra se
não se segurar cai na terra. Quando ele saí, ninguém pode tá de zuada, ou dando
risada se não, ele não vem pra trazer a cura e a força. A ciência é muito forte e é
muito pura. A maioria dos Praiás estão manifestadas, todos os pais e mães de Praiás
estavam manifestados. De onde o Mestre Guia tá faz as curas; o que importa é a fé;
tendo fé, tudo vale. É muito bonito, na hora da saída ninguém pode gravar ou filmar.
Todo mundo tem que prestar atenção no que está acontecendo e não ficar com
curiosidade, tenha fé e você vai ter tudo o que aconteceu na cabeça, na memória
guarda o que não presta... tem que guardar também o que presta.
As três Corridas do Imbu e a Queima do Cansanção não é pra qualquer um oi: isso é
pra quem tem fé e confia nos Encantados. Vai se meter sem ter ciência ou não pedir
licença pra vê o que acontece! Ninguém é besta de fazer isso de brincadeira. O
Cansanção e a Corrida dos Praiás pra quem não entende é um ritual sagrado e nem
todo mundo pode tá presente, o ritual é pra ser feito no Terreiro do Mestre Guia
dentro das matas na aldeia. É uma coisa tão linda que muitas vezes a emoção
atrapalha a nossa compreensão, eu ti digo, é muita força! A saída é o fechamento de
todo ritual da Corrida do Imbu. A saída é a coisa mais linda que meus olhos já viu,
não tem como falar tudo porque tem muita ciência. Quando se fala também da mãe
de Deus é muito bom. É maravilhoso participar da pisada do maracá, não tem
espírito do mal que não seja derrubado (José da Silva, 52 anos).

Para a saída do Mestre Guia há um toante específico e o momento que ele sai é
aguardado por todos com muito silêncio e respeito. Os que estavam deitados (muitos até
dormem enquanto esperam sua saída) ou sentados se levantam, fazem fila e se ajoelham com
a cabeça para baixo, esperando que a benção seja dada. O Mestre Guia benze a todos com as
mãos, passando pela fila e abençoando um por um.
Considerado o “chefe do batalhão” dos Praiás, o Mestre Guia é o defensor dos
Pankararu e participa geralmente apenas da Corrida do Imbu, do ritual do Menino do Rancho
75

e nas Três Rodas, sendo invocado apenas em casos extremos (se a pessoa está entre a vida e a
morte, por exemplo). Ele pode participar de rituais duas vezes ao ano, mas com intervalos de
seis meses.
Nas três primeiras semanas acontece a dança com a queima (nome dado fazendo
referencia a ação da planta que causa urticaria) do cansanção36 e na última semana, só há a
dança não sendo realizada a queima. Ao terminar a dança, se coloca o cansanção no centro do
terreiro e algumas pessoas dirigem-se a esse local (todas descalças), onde pisam nas folhas da
planta. No segundo domingo da Corrida do Imbu, as moças oferecem cestos cheios de
produtos a um Encantado (Praiás).
Na dança do cansanção, homens e mulheres pintados de argila branca, dançam
com galhos de cansanção sem nenhuma proteção, para mais tarde queimá-los. Tal ação é
considerada um ato de coragem, agradecimento e purificação. Quem carrega os galhos da
planta são sempre os homens e as mulheres, nunca os praiás.
Os motivos pelos quais os homens participam da dança do cansanção são muitos,
ou seja, alguns dançam porque gostam; outros porque estão pagando promessas e há ainda os
que são convidados a comprarem os cestos ou foram pagos para dançar (as moças “botadoras
de cestos” convidam um parceiro para dançar e se ele não aceitar ou não tiver coragem, tem
que pagar o cesto além de pagar alguém para dançar no seu lugar).
Na última semana acontece a Saída do Mestre Guia: o acontecimento ocorre na
aldeia Serrinha, na casa de Joaquim Serafim. As corridas ocorrem simultaneamente nas terras
Pankararu e no Brejo, mas com a divisão da aldeia Entre Serras, o número de participantes
tem diminuído.
As festividades ritualísticas transcorrem num período de quatro semanas, não
tendo dia certo para o inicio, porque dependem de fatores climáticos na produção do imbu. O
certo é que a celebração ocorre no período que coincide com o carnaval e as comemorações
da Semana Santa (evento celebrado pela Igreja Católica). O ciclo celebrativo termina com a
presença dos Praiás no Terreiro da Serrinha e com a saída do Mestre Guia que é o “superior
dos Praiás”

36
O Cansanção é o nome vulgar dado a várias espécies de vegetais pertencentes às famílias Euphorbiaceae,
Loasaceae e Urticaceae. A planta usada nos rituais dos Pankararu é um arbusto coberto de pelos urticantes que
provoca a sensação de queimadura ao tocar a pele humana. O seu efeito causa bolhas e é conhecida também
como: urtiga-brava, urtiga mansa, urtiga-maior, urtigão, urtiga-vermelha. A família Euphorbiaceae tem cerca de
220 gêneros. (Fabaceae). Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fabaceae>. Acessado em: 25 nov
2016.
76

O rito da corrida do Imbu é complexo, não sendo possível a sua compreensão na


sua totalidade. É um rito aberto a toda população Pankararu e não Pankararu. Neste tempo,
muitos Pankararu desaldeados retornam às suas origens para participar do ciclo litúrgico e do
fortalecimento com os vínculos não só parental, mas também a aproximação com as forças
Encantadas. Os Pais de Praiás se fazem presente no terreiro com seu batalhão 37 e juntos
confraternizam no Terreiro com muitos Toantes, Toré, bebidas e muita comida.
É o zelador (ou pai de praia) quem cuida de tudo que envolve os Encantados que
estão sob sua responsabilidade, principalmente o roupante. O zelador também escolhe os
moços de praiá, os cantadores e as cozinheiras dos rituais. Sua família também o ajuda e
colabora. Quando o zelador falece, quem o substitui geralmente é alguém da família que der
indício de possuir dons e qualidades específicas (de cura ou qualidades morais). Todo o
processo de aprendizagem pelo qual passam é na maioria das vezes transmitido em sonhos ou
então por outros “donos de praiás”.
O ritual da corrida do Imbu é uma manifestação coletiva que solidifica a cultura
dos Pankararu proporcionando condições de unidade essa entre os membros dessa sociedade.
Em situações como essa Durkheim diz: “os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente
no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou refazer certos estados
mentais desses grupos” (DURKHEIM, 2008, p. 38).

4.2 A abertura do terreiro

Ao anoitecer do dia (o primeiro da semana no Terreiro Poente), cercado de


mistérios, Encantados, serras, coqueiros, mangueiras e outras árvores e com o chão batido, se
ecoa o som de maracás, gaitas, toantes, rabo de tatu e vozes dos cantadores que
incessantemente elevam suas vozes em cantorias (as músicas na sua maioria são cantadas em
língua própria, apesar de não se falar mais a língua nativa), agradecendo aos Encantados por
mais esse momento de tamanha dádiva aos índios que tiveram o privilegio do encantamento e
que colaboraram nas realizações de curas e tantas outras graças alcançadas através dos
mestres e capitães Encantados. Durante a realização do ritual há um praiá (guardião do
Terreiro) que dança por muito tempo sozinho, fazendo roda ao contrário do fluxo normal dos

37
Geralmente, o batalhão de Praiá é composto de doze praiás levantados, isso significa que o dono tem poder de
decisão nas questões políticas da aldeia. O batalhão geralmente pertence ao tronco velho.
77

demais praiás. Como o Cinta Vermelha, que dança sempre na traseira ou do coiço38
protegendo os demais, é ele que tem o poder de deter as forças negativas no Terreiro.
O Cinta Vermelha, ao executar o Toré em sentido horário, protege o portal aberto,
não permitindo a entrada de forças negativas ou contrárias a dos Encantados que encontram-
se no Terreiro. O conceito de Encantado entre os Pankararu forje do que já é conhecido por
muitos antropólogos, teólogos e cientistas da religião. Os Encantados na compreensão
Pankararu forjem de diversas crenças afro-indígenas. Para esse povo, o Encantado não é um
espírito de um ancestral morto que perdeu seu corpo físico e adquiriu outro em outra forma
dentro da natureza (Fumaça, planta, animal...), mas foi Deus quem deu o poder do
encantamento, não permitindo a morte.
Entre os Encantados, existem homens, mulheres e crianças. Não são chamados de
entidades ou espíritos e sim, Encantos de luz: apresentam identidade própria com memória e
até o momento que se encantou. Após o encantamento não é possível uma memória futura. É
comum ouvirmos nas mesas de curas palavras não usuais no dia a dia (ouro para referir-se a
dinheiro, por exemplo), porém isso não significa que não tenham conhecimento do que
acontece com os que os procuram para aconselhamentos ou curas.
No início dos trabalhos ritualísticos o cantador39 no Terreiro invoca os protetores
com os Praiás. Não é permitida a passagem de pedestres pelo Terreiro para não atrapalhar o
desenvolvimento do ritual. Também não se permite que alguém vire as costas para o Terreiro:
o fato é visto como um grande desrespeito para com as forças Encantadas. Além disso, o
gesto de ficar de costas para o Terreiro significa atrair forças negativas durante o cerimonial
que se estende horas a fio e sem interrupção. Também não é possível participar do ritual
mulher que esteja no período menstrual.
O Terreiro é um local sagrado, no qual os Encantados veem ao encontro dos
índios para realizar os rituais do Toré e da paga de promessas. Não pode ser realizada
nenhuma outra atividade no terreiro, apenas a Corrida do Imbu e outros ritos. O terreiro não é
usado para a realização de curas, ficando esse evento restrito à Mesa de cura, que acontece em
casas de orações ou em ambiente familiar.
Após a execução do toante inicial, os praiás fazem uma espécie de
reconhecimento da área invocando os protetores com voz e com o som da gaita e isto é a
abertura do Terreiro. Com o campiô (espécie de cachimbo em forma de cone usado para

38
Para os Pankararu o coiço é o último no sentido ante relógio que tem a função de proteger o terreiro.
39
O cantador sempre está vestido de camisa, calça comprida, porta um aiô (uma pequena bolsa feita de fibra de
croá. No aiô há um capiô, fumo e uma gaita), usa geralmente um boné ou chapéu e calça sandálias de dedo.
78

defumar o ambiente) se defuma o ambiente. Neste momento, o cantador fica na lateral do


Terreiro comandando a abertura dos trabalhos e do Terreiro. É um momento de profundo
respeito e os poucos participantes ainda no ambiente, que ficam à margem do Terreiro, são até
determinado momento, os únicos espectadores. Com o passar das horas vão chegando outros
praiás vindos de suas casas, alguns já chegam com suas fardas (máscaras) outros se dirigem
ao Poró para lá paramentar-se e juntar-se aos demais moços de croá.

Figura 8 – Campiô.

Fonte: arquivo pessoal do autor (2016).

O moço de croá, quando usa suas vestes, não pode ser reconhecido pelos índios no
período em que está vestindo o roupante do Encantado. Se por qualquer motivo alguém
reconhecê-lo, não deve chamá-lo pelo nome e sim pela cinta do roupante do praiá, por que o
moço representa o Encantado. O moço cede o seu corpo completo para que o Encantado, o
qual ele representa, se manifeste e o Encantado não pode se desfazer do seu encanto. Se por
acaso alguém o reconheça e o chame pelo nome, certamente ficará doente ou poderá até
morrer. Há uma segunda opção de punição que é ser levado pelos Encantados a uma gruta e lá
ficar preso por alguns dias dormindo em cima de uma cama de cansanção ou quipá. No tempo
da prisão, a pessoa alimenta-se apenas de insetos existentes na gruta.

Os moços que vestem os praiás têm que seguir determinados valores de condutas
morais, ter muito respeito pelos homens e pelos seres sobrenaturais; precisam estar
preparados, realizar banhos de ervas com um determinado período de antecedência
dos momentos rituais, não devendo manter relações sexuais e, tão pouco, ter contato
com bebidas alcoólicas. Caso não sigam essas prescrições que fazem parte do
79

processo de preparação e purificação do moço que vestirá o praiá, estarão expostos a


situações que pode levar até a morte, em resposta dos próprios encantados a essa
“falta de respeito” e de preparo (MATTA, 2005, p. 84).

Figura 9 – Quipá (Opuntia inamoema).

Fonte: arquivo pessoal do autor (2016).

Figura 10 – Cansanção (Cnidoscolus urens).

Fonte: arquivo pessoal do autor (2016).

O Encantado, apesar de ter vivido fisicamente, visivelmente recebeu o poder para


se encantar. Como não é possível ser visto fisicamente, se materializa no humano, mas com
reservas, pois o encanto não pode ser desfeito e não pode ser reconhecido por homens.
80

Aos poucos, populares índios e não índios se juntam aos praiás, formando uma
grande multidão que assiste a evolução do ritual e este é feito com muita fé nos Encantados.
Além das máscaras rituais, há ainda uma cinta de tecido e esta é presa no cocar com estampas
de santos, aves, cruzeiros, animais ou plantas. É a cinta que identifica quem é o Praiá e a que
família pertence. Os desenhos nas cintas remetem à simbologia do nome do Praiá. As famílias
tradicionais geralmente são possuidoras de Praiás e batalhões, ou seja, cada família tem um
protetor Encantado ou protetores. Se a família é possuidora de terreiro significa que tem poder
nas tomadas nas decisões políticas da aldeia.
No tempo da “performance” (dança) há determinados momentos em que o som do
maracá muda de ritmo e com essa mudança, se muda também os movimentos dos passos dos
moços. Em terminados momentos fazem rodas entre si; em seguida seguem o curso da
coreografia gritando palavras não compreendidas pelos presentes e há momentos em que os
praiás fazem reverência ao puxador dos Toantes.
Paralelamente, em uma pequena cozinha improvisada, homens e mulheres
preparam o prato que será oferecido aos praiás e aos participantes, obedecendo a um ritual
para a confecção do mesmo, pois existe a maneira correta para o corte da carne, como
também os condimentos que irão ao prato, sendo comum o sal e o coentro. Grandes panelas
de carne de boi ou de ovelha estão no fogo sendo preparados em cima de trempes.40 O arroz, o
pirão e a garapa acompanham o prato. A alimentação é servida em pratos de barro,
dispensando-se o uso de talheres.
No momento da refeição é oferecido primeiramente o prato mestre 41 que é levado
ao Poró.42 Os praiás, formando uma grande fila e dançando, dirigem-se à cozinha. Ao
pegarem o prato, eles fazem uma grande roda no Terreiro e dirigindo-se ao Poró fazem a
refeição na ausência dos demais participantes do ritual.
Dias antes da festa da queima do cansanção, homens e mulheres são submetidos a
outro ritual doméstico, afastando-se de bebida alcoólica, sexo, brigas, palavrões e de atos não
convenientes para o momento. Neste período tomam banho com diversas ervas de cheiro para
afugentar os espíritos do mau. É uma preparação espiritual e emocional para não sentir os

40
Trempes são três pedras para sustentar a panela e embaixo dela a lenha é colocada para cozinhar os alimentos.
41
O prato mestre é grande, bem servido, farto e pode alimentar cinco índios que estão desde cedo no Terreiro
dançando o ritual.
42
O Poró é um local feito de palhas de coqueiro próximo ao Terreiro restrito apenas aos iniciados nos segredos
dos Encantados e é proibida a entrada de mulheres, crianças e pessoas de fora. É no Poró que no período dos
rituais, os praiás descansam, fazem suas orações particulares e usam o campiô para defumar o ambiente e
afugentar os males do recinto.
81

efeitos urticantes do cansanção. O ritual é feito como se fosse um trabalho e deve ser
realizado com muito cuidado e carinho.
Quando se abre o Terreiro vêm forças negativas de outros Terreiros ou de outras
aldeias, ou mesmo de alguém presente que quer fazer alguma entrega negativa (e se acontecer
qualquer coisa negativa com um participante o mal atinge a todos). O trabalho é feito em
corrente. Há pessoas que participam do ritual geralmente para pagar uma promessa, outros
fazem por prazer e por gostar de participar. As promessas são feitas ao Mestre Cansanção e
geralmente são para curar um filho ou alguém querido.
Já os Praiás, são recolhidos no Poró, ausentando-se da família, trabalho e
informações externas, como televisão, telefone, celular e outros meios de comunicação. No
período que passam recolhidos no Poró são submetidos a banhos de ervas para o fechamento
do corpo e a defumação.
No dia da cerimônia no Terreiro antes da execução, homens e mulheres se pintam
de tawá branco (argila branca, que já foi antes cruzada ou abençoada), fazendo cruzes na
fronte e na face, seguidas de desenho de pequenas bolinhas e linhas diagonais no corpo
exposto. Os homens ficam sem camisas e as mulheres se vestem como no dia a dia (roupas
sempre compostas). Nas mãos, trazem vastos pés ou partes do cansanção que erguem para o
alto e com o pisado forte acompanham o compasso do Toante e dos instrumentos musicais.
Os participantes que levam o cansanção não fazem uso de outro instrumento, cabendo
somente aos Praiás e aos puxadores usarem o maracá e a gaita.
Homens e mulheres, não tendo medo do efeito da urticária, em fila circunferencial
ocupam todo o Terreiro na execução do ritual. O círculo é formado sempre da seguinte
maneira: um Praiá e um participante, ou seja, na frente de cada participante há um praiá para
melhor executar o rito do cansanção. A formação também serve para proteger os participantes
de possíveis ataques ou flechadas de espíritos do mal.
82

Figura 11 – A dança do cansanção no Terreiro.

Fonte: Adriano Edezio (2015).

Figura 12 – A dança do cansanção no Terreiro.

Fonte: Adriano Edezio (2015).

Com o passo firme da dança, se levanta uma intensa poeira que é espalhada
rapidamente através da ação do vento em todo o terreiro. Acredita-se que a ação do vento (que
transporta a poeira) ao tocar nos presentes, realiza através da fé, a cura dos males, não só
83

físicos, mas também espirituais. O levantamento da poeira acontece através da ação do


homem com a presença física dos Encantados.
Os Praiás, representando os Encantados, convidam os participantes43 a dançar
junto com eles no Terreiro: todos descalços e de corpos pintados realizam o ritual. Os
participantes, ou os moços com as máscaras dos Praiás, invocam os protetores para a
realização do compromisso firmado com a tradição e a comunidade. Os praiás, vestidos com
suas máscaras ritualísticas, de maracá em punho e de posse da gaita dançam em círculo
ocupando todo o ambiente denominado de Terreiro.
Em certo momento, os praiás em círculo, fazem reverencia aos puxadores
inclinando a cabeça, tocando forte o maracá e cantando em alta voz, demonstrando assim,
certa submissão ao canto. Ao terminar o canto soltam gritos em forma de alegria ou
agradecimento porque o momento não sofreu nenhuma interferência negativa.
Após um longo tempo de dança, os participantes formam pares compondo um
grande círculo e com mais força, pisam firme no chão levantando poeira e marcando o passo
firme, conforme o toque do maracá e da gaita. Os toantes são sempre puxados pelos
cantadores, que com o passar das horas vão sendo substituídos. Os cantadores assumem uma
posição de destaque, sempre puxando o grupo na dianteira com a proteção dos Encantados
que os guiam no período do ritual exaustivo.
Os participantes, em pares e em círculo erguem as hastes do cansanção já murcho
em direção ao centro do terreiro (alguns passam as hastes de cansanção no próprio corpo sem
camisa e não apresentam nenhuma irritação corporal). Com o movimento, galhos se
desprendem das hastes caindo no chão, sendo pisados pelos participantes. Ao término da roda,
o cansanção é lançado ao centro do Terreiro e então é dado início ao Toré: é nesse momento
que todos participantes (homens, mulheres e crianças), iniciados ou não, entram no Terreiro e
dançam três rodas de Toré.
Há participantes, que após a colocação do cansanção no centro do Terreiro, pisam
a planta furiosamente, demonstrando que as dificuldades foram vencidas. O gesto de pisar as
plantadas existentes no centro do terreiro demonstra a tamanha fé depositada nos protetores e
no mestre Cansanção. Quem não tem fé, não pega e nem pisa no cansanção.
O senhor Zé Binga relata que para participar do ritual é preciso obedecer à
tradição:

43
Os que se prepararam para este momento abstendo-se de sexo, bebidas de condutas não corretas, obedecendo à
tradição ou a preparação para a dança e queima do cansanção. Neste momento, só entram no ritual, os que de
fato fizeram essa preparação, para executá-lo com os Praiás.
84

Sem fé não acontece a queima do cansanção. O caboclo que se mete a fazer isso sem
antes obedecer ao que se pede é pedir para sofrer e sofrer muito; você já pensou o
que é ser queimado por cansanção? Sem camisa? E o pelo da planta? Eu mesmo
uma vez não fiz o que devia fazer direito e fiquei todo queimado com bolas no
corpo; os espinhos do cansanção estavam na pele; me deu febre! Aí um Encantado
me falou que foi eu que não tinha feito o que deveria ter feito. Eu não fiz direito, não
obedeci tudo. A gente precisa ter muita fé e fazer tudo conforme os Encantados
pedem. Só quem é Pankararu compreende o que significa a queima do cansanção,
não tem truque, tudo é aquilo mesmo o que se vê; a força dos Encantados está ali
presente, todo mundo sabe o poder do cansanção, por isso não se pode duvidar no
que acontece e feliz daquele que acredita sem ver os mistérios.

Ao participar deste ritual se percebe claramente que existe uma confiança total no
que é realizado e é comum ouvirmos falar “primeiramente Deus, depois a força encantada que
nos protege de todos os males”. Os índios não separam os rituais do homem e da natureza,
tudo é obra de Deus e Ele criou também os índios e deu o poder de Encantamento aos
Pankararu. O cansanção tem um significado místico usado para os espíritos maus, que muitas
vezes estão presentes no corpo do índio.
Outro depoimento, dado pelo zelador de praiá Francisco de
Assis, nos diz que:

A queima do cansanção é uma forma de aliviar alguma dor, é uma disciplina muito
fina que só dançando a gente consegue explicar. Não sei como a gente aguenta, é
uma erva perigosa, se acerta em partes finas é perigoso. Se acerta no olho pode
cegar, se o espinho penetra no corpo pode aleijar. É tipo o espinho da cobra, se uma
cobra perdeu o espinho dela em seu corpo; você vai caminhando na mata, se você
pega e se espinha com o espinho da cobra, não encontra o espinho em seu corpo
mais; ali vai lhe aleijando, vai secando sua carne, secando sua pele, você fica
paralítico. É igualmente o espinho da faveleira é do cansanção. É purificação e
penitência, tem que cumprir a penitência para continuar em um regime de libertação.
Se você está com seu corpo pesado, perdeu o equilíbrio da vida, faz uma promessa,
dança o cansanção e fica bom. É uma erva que queima e dói, e na hora que se pinta
com a tinta você não sente (Francisco de Assis S. Silva, 25 anos, zelador de praiá,
março de 2014).

O Toré dos Pankararu é sempre executado em pares (masculino e feminino) às


vezes é possível ver meninas dançando junto, o que não é algo comum, porém é aceitável pela
comunidade. Às vezes o mesmo acontece entre meninos. Já entre os adultos, isso não é aceito
pela comunidade.
Há sempre uma autoridade no terreiro de toda comunidade. Quando não é vista
essa autoridade ou quando ela não se faz presente, algumas pessoas criam modas e isso não é
bom, pois o ritual deve ser preservado. Quando isso não acontece aos poucos vai se acabando
a tradição.
85

4.3 Oferta de cestos aos Praiás

Durante o tempo da celebração, aos poucos, as mulheres vão chegando ao


Terreiro com cestos cobertos com panos bordados ou pintados, trazendo no interior deles
frutas, doces, queijos, bebidas, biscoitos, pão, bolo e outros produtos típicos da região. A
apresentação dos cestos é uma forma de agradecimento aos Praiás pelas curas recebidas. O
fato de ofertar os produtos é uma maneira singela de pagar suas promessas aos Encantados.
Os cestos são colocados um ao lado do outro formando uma grande fila e cada um que está no
Terreiro recebe a colaboração de outra pessoa para levá-los. A mulher que leva o cesto fica
atrás dele, que logo mais será ofertado às forças encantadas que se fazem presente no terreiro
e estão sendo representados pelos moços que representam cada encantado.
As moças que colocam os cestos — são também chamadas “botadoras de cestos”
— são escolhidas de acordo com as promessas que foram feitas e que foram determinadas
pelos Encantados. Podem “botar o cesto” anualmente ou por alguns anos seguidos,
dependendo do tipo de promessa. Essas escolhidas também dançam na Noite dos Passos e
suas posições podem ser indicadas pelos praiás ou pelos cantadores.
No cesto são colocados também (na derradeira corrida) os imbus que serão
utilizados para preparar-se a imbuzada. Na derradeira corrida, geralmente são colocados
imbu, rapadura e açúcar no cesto. Deveria ter também mocó, mas esta caça é pouco
encontrada atualmente.
Cada ofertante tem o direito de ofertar os cestos (a cada fim de semana) para um
encantado ou para um outro, podendo ser oferecido ao mesmo, de acordo com a sua promessa
ou a sua fé. No terceiro terreiro se oferta o cesto ao Encantado: o Encantado recebe a oferta
encruza (benze), agradece e o cesto é levado o terreiro ao qual pertence o praiá.
A oferta é um pagamento ou um pacto feito antes com um Encantado, ou seja, foi
pedido algo e agora está sendo pago. Marcel Mauss, na sua obra “Ensaio sobre a dádiva”,
chama atenção à questão da troca entre os humanos e as divindades e afirma que:

As relações desses contratos e trocas entre homens, e desses contratos e trocas entre
homens e desuses, esclarece todo um aspecto da teoria do Sacrifício. Em primeiro
lugar, compreende-se perfeitamente que elas existam, sobretudo em sociedades nas
quais esses rituais contratuais e econômicos se praticam entre homens, mas homens
que são encarnações mascaradas, geralmente xamanísticas, possuídas do espirito do
qual têm o nome: na verdade, eles agem apenas enquanto representações dos
espíritos. Sendo assim, essas trocas e esses contratos arrastam em seu turbilhão não
apenas homens e coisas, mas os seres sagrados que estão mais ou menos associados
a eles. [...] As oferendas aos homens e aos deuses têm também por objetivo obter a
paz com uns e outros. Afastam-se assim os maus espíritos e, de maneira mais geral,
86

as más influencias, mesmo não personalizadas: pois uma maldição de homem


permite que espíritos ciumentos penetrem em nós e nos matem, que influências más
atuem, e as faltas contra os homens tornam o culpado fraco diante dos espíritos e das
coisas sinistras (MAUSS, 2013, p. 30).

O ritual é realizado no período de quatro semanas, obedecendo a uma ordem


cronológica pré-estabelecida pelos pais de terreiro no momento do flechamento do imbu. É
neste dia que acontece uma reunião para definir a programação do ano em curso, sempre
obedecendo à tradição, não abrindo espaço para outros terreiros (a cada ano surgem novos e
são visto com desconfiança pelas velhas lideranças). Quando surge um novo batalhão, o pai
ou a mãe de praiá tem que trabalhar incessantemente para provar que não é um impostor e que
de fato são verdadeiros, surgidos nas terras Pankararu e estão habilitados para realizar os
trabalhos de curas e defender o povo. As forças Encantadas estão atreladas aos terreiros de
expressões nas terras demarcadas pela FUNAI e gozam de relevantes prestígios, não só entre
os indígenas, mas também entre os encantados.
Entre os batalhões de força Encantada encontra-se o Mestre Guia, que comanda
toda a ordenança de força, ou seja, em uma escala hierárquica, o Mestre Guia é o superior dos
demais. O capitão Dandaruré – outro Encantado – é um padre que tem uma função bem
definida: deve batizar os índios e cuidar da parte sacramental44 e orientar espiritualmente.
Existem outros Encantados de posição de destaque como: Lavandeira que lavou as roupas do
Menino Jesus quando ele ainda era criança (esse Encantado gosta de ficar nas laterais das
fontes ou na beira do Rio São Francisco), Xupunhum (tem um grande poder de cura), Cinta
Vermelha (é um grande guerreiro que guarda o Terreiro das forças maléficas e afugenta os
impostores), entre outros.
A Corrida do imbu é um ritual aberto para toda comunidade e para visitantes.
Nesta época45 muitos índios de outras etnias e aldeias participam das festividades. Muitos
Pankararu desaldeados retornam à suas aldeias de origem para participarem dos diversos
rituais que ocorrem conjuntamente com a Corrida do Imbu. Muitos pagam promessas,
celebram a vida, agradecem por curas, emprego e bens adquiridos. Neste período são comuns
os não índios presentes nas aldeias, como pesquisadores observando a maneira de ser
Pankararu.

44
Os Pankararu dispõem de um padre que atende as necessidades da aldeia, sendo ele responsável para celebrar
missa e administrar os sacramentos de: batismo, confissão, matrimônio e a unção dos enfermos.
45
Em fevereiro a calmaria da aldeia é quebrada por pesquisadores, turistas e familiares vindos de diversas partes
do Brasil para agradecer aos Encantados e participar das Celebrações de cunho tradicional, que conservadas,
romperam barreiras e chegaram aos nossos dias.
87

4.4 Organização da Corrida do Imbu

Os principais acontecimentos ou fases do ritual são bem definidos: são quatros


finais de semanas. No primeiro sábado que antecede à quarta feira de cinzas, na aldeia do
Brejo dos Padres à noite acontece a Noite dos Passos e no domingo a Queima do Cansanção.
A Noite dos Passos ocorre nos quatro sábados à noite. A Queima do Cansanção ocorre em
três domingos durante o dia, sendo o primeiro domingo o que precede a quarta feira de Cinzas
e os demais, os dois seguintes. No quarto domingo durante o dia, é realizada a Corrida do
Mocó e é servida a imbuzada.46 No quarto domingo, ainda de madrugada na aldeia Serrinha, é
a saída do Mestre Guia.
Na quarta feira de Cinzas à noite, no Brejo dos Padres, inicia-se a Penitência47 do
grupo dos homens e das mulheres que visitam cruzeiros e cruzes. No domingo de Ramos o
grupo das penitentes sobe a serra para visitar o cruzeiro. Na quinta feira depois do domingo de
Ramos, sobem à aldeia Serrinha para visitar o Cruzeiro. À noite, no Santuário de Santo
Antônio, acontece o encontro dos penitentes e das penitentes. Na Sexta-feira Santa ocorre a
morte do Judas e no domingo celebra-se o Domingo de Páscoa.

4.5 Noite dos Passos

No primeiro sábado à noite, antes da quarta feira de Cinzas48inicia-se a Noite dos


Passos. Ao cair da tarde em direção do Terreiro das Calu49 os Praiás, munidos de maracá e
gaita, dirigem-se ao Poró50 onde acontece a concentração. Nas laterais do Terreiro encontram-

46
A imbuzada ou umbuzada é feita da seguinte maneira: se pega o fruto do imbu não muito maduro e se cozinha
em água. Após cozido, o fruto é retirado da água e esmagado, peneirando-se para tirar a pele e em seguida é
acrescentado açúcar, leite de vaca, leite de coco e uma pitada de sal. Por fim, é servida fria em prato ou em
copo. Algumas pessoas acrescentam no prato ou no copo farinha de mandioca na imbuzada.
47
Os grupos masculino e feminino da penitência refletem sobre a brevidade da vida humana e na quarta feira de
cinzas é o dia propicio para a reflexão da fragilidade do homem que caminha para a morte futura, fazendo
referencia à Nossa Senhora da Boa Morte e à Cruz que é símbolo de sofrimento.
48
A Quarta Feira de Cinzas é celebrada pela Igreja Católica: na celebração da missa impõem-se cinzas nas
cabeças dos fieis e se pronuncia a seguinte frase: “Convertei-vos e credes no Evangelho”. Essa locução tem
como objetivo levar o fiel a fazer uma análise de seu comportamento moral. É um momento que antecipa a
Páscoa e a ressurreição de Jesus Cristo que é a centralidade da fé: “ se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é
vazia, e vazia também é nossa fé” (1Cor 15,14). Vemos que os Pankararu agregaram nos seus rituais a cultura
cristã que se faz presente nos dias de hoje. Paulo, escrevendo à Comunidade de Coríntios diz: “Eu vos lembro,
irmãos, o Evangelho que vos anunciei e que recebestes, no qual estais firmes, e pelo qual sereis salvos se o
conservardes tal qual vo-lo anunciei; caso contrário, teríeis crido em vão. Eu mesmo vos transmiti, em primeiro
lugar, o que eu mesmo recebera: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado,
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, depois aos Doze” (1Cor 15,1-5).
49
Terreiro Poente.
50
O Poró é um local restrito para ao não índio. É o local sagrado onde os Praiás conversam, descansam, e
defumam suas fardas. Há Poró que mesmo a mulher índia é proibida de entrar.
88

se os espectadores e pequenos comerciantes de balas, pipocas, bolos, doces, salgadinhos,


refrigerantes, sorvetes de massa e palito, que aproveitam a ocasião para ganhar alguns
“trocados”.
Os personagens que se destacam nesse ritual são os cantadores, cantadoras, os
praiás, as moças que dançam os Passos e os expectadores, sendo que a posição dos cantadores
não muda. Já a coreografia (das moças e praiás) é transmitida de geração em geração.
Na Noite dos Passos, as moças que dançam com os praiás podem ter suas
posições fixas e permanentes, ou serem convidadas pelo cantador na abertura do terreiro.
Assim, firmam um compromisso de participar em todas as noites. A primeira e a última
posição são herdadas e são de muita responsabilidade e destaque, pois são elas que comandam
e ordenam a fila das moças.
Já os cantadores, são vinculados aos terreiros e são escolhidos pelo zelador de
praiá daquele terreiro. Pode haver muitos cantadores e todos são preparados através de sonhos
ou por cantadores e pessoas que participam das mesas de cura.
É grande a expectativa para o início da primeira Noite dos Passos. Por volta das
20h30min surgem os cantadores pertencentes ao Terreiro, cantando o Toante com o seus
vibrantes maracás. Ao pisar no solo sagrado do Terreiro abrem-se os trabalhos da noite. Feito
a abertura inicia-se um canal de comunicação entre os Praiás e os Encantados.
Após a direção da concentração, surgem sons fortes vindo do Poró e sente-se um
leve odor de ervas perfumadas que pairam no Terreiro. Da direção do Poró surgem os Praiás
em fila única com um passo firme e por igual passam pelo Terreiro levantando poeira. Seus
passos são perfeitos, levando os presentes a pensarem que os Praiás estão deslizando em uma
superfície, pois tamanha perfeição é a sincronia entre eles. O ritual continua sob o olhar dos
índios e dos curiosos, que admirados com a beleza, não sentem o cansaço. A música é
intensa, não sendo compreendida pelos curiosos que às vezes procuram repetir o refrão, sem
saber o que significa o que está sendo verbalizado. A magia toma conta dos participantes e
todos contemplam a execução da Noite dos Passos.
Os Praiás, de maracá e gaita nas laterais do Terreiro, milimetricamente executam
parte do Ritual da Corrida do Imbu, tendo na frente o puxador, formando-se um grande
círculo e dançando em sentido anti-horário e depois formam duplas (que eles chamam de
pareia). Neste momento há a participação das mulheres que dançam na companhia dos praiás.
Em certa hora, cruzam o Terreiro e esse movimento é realizado diversas vezes.
Existe entre os Praiás uma hierarquia que é possível contemplar no Terreiro: a
organização hierárquica tem como objetivo a proteção dos Encantados contra os espíritos do
89

mal que podem prejudicar a evolução do rito ou até mesmo um impostor assumir o papel de
uma força encantada do bem. O praiá de frente é sempre o dono do Terreiro e é chamado
também de “cabeceiro”, ou seja, é aquele que está sempre próximo do cantador e é o primeiro
na frente dos demais Praiás.
Cada Terreiro tem um dono, no Terreiro Poente ou das Calu, o dono é o Capitão
Zé Fogaz. Ele sempre no seu Terreiro é o cabeceiro. Na posição final é preciso ter outro que
não permita a penetração de outras forças negativa. Ocupando essa posição fica o Cinta
Vermelha: é um Encantado de força que está sempre pronto para defender não só os demais,
como também todo o Terreiro. Na maioria do tempo do ritual Encantado, o Cinta Vermelha
dança no sentido contrário dos demais, fazendo ronda e protegendo de fato as demais forças
Encantadas, ou seja, na frente temos o dono do Terreiro que é o Cabeceiro e no fim da fila
temos o Praiá traseiro que é o Cinta Vermelha.
Não se pode deixar brecha no círculo, pois caso isso ocorra, a porta das forças do
mal flecha e joga doenças ou desafetos entre os encantados e o povo que ali está. Às vezes,
uma pessoa mal intencionada aproveita o momento para mandar desordem para os moços,51
para os pais ou mães de praiás e até mesmo para alguém que está ali participando. É possível
que haja cobrança neste momento pelos encantados de alguma coisa que alguém pediu e que
foi válido, mas não se pagou o que prometeu ao encantado. Outras vezes, o encantado
também pede alguma coisa a alguém que está ali participando. Se ele se agrada de alguém faz
o pedido. O pedido vai de uma simples garapa à colaboração de um animal em outro ritual.
Para as posses dos índios, nem sempre é possível oferecer um carneiro ou um
bode, por isso há a necessidade da colaboração dos demais. Os encantados não pedem nada a
ninguém que não possa oferecer e também não obriga ninguém a tirar nada da sua família
para oferecer no ritual. Quando se pede, a finalidade não é sacrificial e sim, de comemoração
à graças alcançadas; é uma festa em que todos os presentes participam do almoço de
confraternização e louvação.
Os Passos (nome dado ao ritual da dança que imita os animais) são a ação
evolutiva de cada noite, na qual pela coreografia, os participantes imitam gestos de animais:
para cada passo é cantado um toante (música) que representa os Praiás na companhia de uma
mulher e os presentes participam deste momento. Atribui-se ao passo o nome do animal no
qual está sendo representado no terreiro. É um momento de distração provocando os
participantes e convidando-os a participar diretamente da evolução.

51
Os moços são os rapazes que estão vestidos com as fardas e estão no terreiro executando o ritual.
90

Nos Passos são apresentados movimentos de diversos animais como: cachorro,


boi, sapo, peixe, abelha, papagaio, mocó, andorinha, urubu, macaco e outros que fazem parte
da história desse povo. A noite dos passos é uma dança em forma de brincadeira, que prepara
os participantes para o dia seguinte que começa ao nascer do sol.
Os Passos são uma forma de representar os animais da aldeia. Por exemplo: no
momento são representados movimentos da colheita do mel e do cachorro. Quando se faz os
movimentos do cachorro os Praiás se escondem no meio do povo e o que está executando os
movimentos deve rastejar, farejar e encontrar os Praiás que estão escondidos. Ao encontrá-los,
o cachorro deve conduzi-los ao terreiro sob a orientação do dono do cachorro. Para cada
dança, há um toante próprio que na sua letra faz alusão ao animal que está sendo representado
através de movimentos em forma de dança. Em cada toante os Praiás são acompanhados por
uma índia jovem.

Há brincadeiras como na dança da tubiba que a “zaropa”, imitando uma abelha


persegue as moças. Praiás dão uma volta no terreiro; depois é a vez das moças.
Então as moças vão à frente, passando a mão no cabelo e limpando na saia.
Intercalam, tirando mel de abelha do cabelo e correndo; um praiá, que chamam de
“zaropa”, corre atrás das moças para bater, em tom de brincadeira, com o maracá no
traseiro. Os participantes dão risadas e se divertem. A cantadora incentiva os praiás a
correrem atrás das moças.
No passo do sapo, a cantadora emite um som imitando coaxar dos sapos; faz brumm,
e os sapos/praiás respondem brumm; dão uma volta no terreiro e as mulheres
dançam de frente para os homens; bailam para frente e trás e abaixam de um lado e
de outro – a cantadora é abastecida com o campiô.
Imitam o piar dos pássaros, no Passo do papagaio. Juntam-se e vão fazendo um
amontoado de gente, como nuvem de papagaios. Dançam por todo o terreiro, em
fila, um em frente do outro. Fazem piu, piu, piu. Dançam colados, em fila lateral; as
mulheres de braços dados, sem sequência lateral, e os homens também de braços
dados (MATTA, 2005, p. 103).

Os Passos são realizados em uma sequência: ao terminar um, o outro começa ao


som da voz do puxador. Entre os Pankararu do Brejo dos padres, somente a pessoa que
recebeu a missão de cantar os Toantes dos Passos sabe, ou seja, apenas uma pessoa sabe de
todos os Toantes dos Passos. Essa missão é recebida por alguém que sabe e ao chegar a uma
idade avançada escolhe alguém para ser ensinado (OLIVEIRA, 2004, p. 16). O segredo dos
Pankararu existe entre os próprios Pankararu que veem em cada um, o responsável por
alguma coisa.
Na evolução do ritual encenado com seu significado mítico expressa uma
verdadeira arte entre o povo Pankararu, tendo o Terreiro como grande palco e as luzes uma
pequena fogueira acesa que ilumina cada cena apresentada ao público. Aqui me chama
atenção a professora Dorothea Passetti, que ao fazer uma referência ao caçador e o feiticeiro
91

de Lévi-Strauss, diz que: “os significados míticos, expressos direta ou indiretamente na arte,
obrigam-no a uma relação de cuidado e respeito perante seu próprio ofício e os seres que quer
significa no objeto” (PASSETTI, 2008, p. 278).

4.6 Penitência

O grupo reúne-se com frequência no Santuário Santo Antônio ou na casa de


pessoas que solicitam um momento de oração nas suas residências. O grupo tem uma
visibilidade maior no período da quaresma, tempo litúrgico celebrado na Igreja Católica
anterior a Páscoa. No período quaresmal são realizadas penitências e visitação a cruzeiros,
tendo como ápice celebrativo a sexta feira da paixão aonde é vivido intensamente o
sofrimento de Jesus pregado na Cruz.
O grupo das penitentes é composto de mulheres casadas ou solteiras que se
dedicam a fazer o bem. Elas se vestem de branco, sempre de saia e camiseta branca ou
vestido, lenço branco na cabeça, sandálias brancas e rosário no pescoço. Na sua maioria são
senhoras de idade, que ao anoitecer costumam se reunir no Santuário de Santo Antônio na
aldeia do Brejo dos Padres para realizar suas orações e benditos.
O grupo é organizado em torno da Santa Cruz e sua atual coordenadora, a senhora
Amélia Gomes Julião, (76 anos) nos diz:

Nossa chefa fundadora é madrinha Dodô.52 Com a morte dela ficou a Ana, que rezou
40 anos e hoje está acamada (86 anos). O nosso papel é fazer a penitência: no mês
de agosto a gente passa a noite em guarda à Nossa Senhora da Boa Morte.
Colocamos a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte no centro da Igreja de Santo
Antônio, colocamos a cruz aos pés dela e passamos a noite em oração. Isso acontece
no mês de agosto.
No período da quaresma rezamos as rezas de penitências, de arrependimento,
visitamos as cruzes, o cruzeiro e em cada lugar se reza um pouco. No Domingo de
Ramos fazemos a procissão e o padre acompanha os penitentes. O padre que assiste
as aldeias do sertão acompanha os dois grupos, o masculino e o feminino. O grupo
dos homens vive no anonimato, contudo eles se reúnem para fazer as orações. A
reunião dos homens é sempre fechada para o público e só participa membros da
confraria. Eles se reúnem no segredo, não querem aparecer nem serem vistos em
oração. O grupo das penitentes vai permanecer até quando Deus quiser e a força
Encantada. Eu acredito primeiramente em Deus e depois nos Encantados.

52
Maria das Dores dos Santos nascida aos 08 de setembro de 1902, no povoado Moreira Município de Água
Branca no Estado de Alagoas. Chegou ao Município de Santa Brígida no Estado da Bahia em 1946 atraída pelos
ensinamentos do beato Pedro Batista que na crença popular acredita ser a reencarnação do padre Cícero Romão
Batista.
92

As rezas são transmitidas oralmente; não existe um manual ou algo escrito; todas
as orações são de memória: “quando os padres vieram amansar os índios ensinaram as rezas e
os benditos; isso foi a muito tempo atrás. Os mais velhos aprenderam tudo de cabeça e
passaram para os outros.” (Amélia Julião). Os ensinamentos para eles são dados por Deus e
comunicado aos índios através de sonhos pelos Encantados. Os Encantados escolhem pessoas
para transmitir aos outros o que eles querem.
A informante nos diz:

Madrinha Dodô era uma grande conselheira não só dos índios, ela aprendeu tudo de
cabeça. Ela dizia que era o Divino Espírito Santo e os Encantados que ensinava
tudo a ela. Quando ela ia morrer, veio uma voz dizer que já era hora de partir. Ela
vivia entre o Juazeiro e Santa Brígida, acolhendo os romeiros do meu padrinho
Cícero e do meu padrinho Pedro Batista. Em vida pediu que gostaria que seu corpo
fosse enterrado em Santa Brígida e não no Juazeiro. Morreu no Juazeiro, mas foi
atendido o pedido, sendo enterrada aonde ela queria.

A beata madrinha Dodô, faleceu com 96 anos no município do Juazeiro do Norte


no Estado do Ceará no dia 28 de agosto de 1998. Relatos dos populares afirmam que ao
morrer, ficou de olhos abertos, morreu sentada na sua rede onde costumava ficar. Mulher
simples que não estava voltada para vaidades e sim para as necessidades dos que lhe pediam
conselhos e comida, vivia de esmolas e dizia que não precisava de dinheiro para si, porque o
que precisava para viver tinha. Quando os romeiros lhes davam algo ela sempre repartia com
os outros.

Madrinha Dodô não se alimentava de carne e nem feijão, a dieta alimentar era
frutas, legumes, arroz e farinha de mandioca, comia uma papinha muito fina. Ela
cuidava de doente de pessoas que passava necessidades. Quando era mais nova,
trabalhava na terra como qualquer outra pessoa. A luta dela era com moças velhas
que não tinha vaidade; era muito simples, estava pronta para colaborar com quem
precisava.
Uma coisa que ela não gostava era quando as pessoas iam casar e pediam a sua
opinião, ela não dava opinião e dizia que cada um devia fazer o que achava certo. Se
quiser casar case eu não vou dizer que casa ou não case.
Ela não era contra o casamento, apenas não queria ser responsabilizada por
problemas futuros. Porque se o casamento não desse certo o povo poderia culpar
madrinha Dodô. Ela era muito justa e temente a Deus. Acreditava também muito nas
forças Encantadas.
A casa que ela construiu é muito grande para acolher os Romeiros. O sonho dela
era de acolher bem os romeiros que visitava o meu padrinho Cícero. Queria que os
romeiro ficassem todos juntos, não ficassem separados. Antes, os romeiros
dormiam no meio do tempo. Todos iam para o Juazeiro do Norte pela fé, levavam
apenas alguma coisa para comer e muita fé em Deus, no meu padrinho Cícero e nos
Encantados. La no Juazeiro, a casa dela acolhe a todos. Ela não pedia esmola, por
que o povo dava. Ela começou fazendo a casa com papelão, panos de saco para os
romeiros não ficar relento.
No mês de outubro nós vamos para o Juazeiro; só vai o grupo das mulheres. No dia
28 de agosto estamos em Santa Brígida. Ela morreu no dia de sexta feira. A gente
93

vai lá rezar os benditos, os rosários de Santo Antônio, do Divino Espírito Santo,


Nossa Senhora da Boa morte, o rosário de meu padrinho Cícero, da Santa Cruz, de
Nossa Senhora da Agonia, Nossa Senhora da Conceição e esse é o rosário grande:
são 15 mistérios e são 3 terços.
No sábado se reza o oficio de Nossa Senhora. Ela dizia que uma do grupo rezando,
reza por todas, quando vamos rezar no sábado, e no domingo é do Divino Espírito
Santo. Quando o povo nos chama para rezar nas suas casas, a gente tem o prazer de
levar o bem aos homens. Muitas vezes a gente percebe que nas casas existem coisas
não boas e a nossa função é pedir a Deus e aos Encantados para livrar todos de todas
as coisas ruins (Julia Julião).

Os dois grupos de penitentes têm líderes diferentes, porém o objetivo é o mesmo:


a devoção à Santa Cruz e à Nossa Senhora da Boa Morte. Os dois grupos têm uma cruz
(denominada de Santa Cruz) ornamentadas de fitas de diversas cores que acompanha os
penitentes nas viagens penitências. As duas cruzes fazem partes dos rituais de velórios e
sepultamentos dos índios. O grupo dos homens é um grupo fechado, que guarda segredos que
não são revelados nem partilhados fora dos seus participantes. Eles fazem as mesmas coisas
que o grupo das mulheres, apenas tem algumas reservas para com pessoas que não pertencem
ao grupo.53
Os cantadores, tocadores, zeladores de praiás e todos os envolvidos diretamente
com os Encantados participam da Penitência e da Corrida do Imbu, pois os dois rituais se
intercalam e se complementam.
Entre os Pankararu há os penitentes, tanto do sexo masculino, quanto feminino.
Eles realizam suas peregrinações junto com a Corrida do Imbu, que coincide com a
Quaresma, mostrando assim a junção do Catolicismo popular e das crenças indígenas. É um
ritual noturno, iniciado entre a Quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Páscoa. Eles cultuam
duas cruzes de madeira, que são zeladas pelos penitentes e pelas penitentes. Tais cruzes ficam
no altar da Igreja de Santo Antônio, no Brejo dos Padres.

53
É um grupo apenas para iniciados. É neste grupo que está uma espécie de grupo sacerdotal secreto,
participando pais de praiás e moços.
94

Figura 13 – Os penitentes.

Foto: Google, 2016.


95

5 OS PANKARARU E A DEVOÇÃO A NOSSA SENHORA DA SAÚDE

Figura 14 – Santuário de Nossa Senhora da Saúde – Tacaratu (PE).

Fonte: arquivo pessoal do autor.

Nos seus primórdios, a cidade de Tacaratu era conhecida como Cana Brava e era
habitada pelos povos Vouvêa, Geriticó, Pankararu e Umaú. Há indicios de que Cana Brava
surgiu em meados de 1650 com a chegada dos índios acima mencionados. Em 1670, os
padres seculares de São Felipe Neri chegaram ao Brasil e, posteriormente, dirigiram-se à Cana
Brava para dar início à missão catequética que acabou se tornando uma missão permanente.
Posteriormente, os padres missionários transferiram os Pankararu de Cana Brava para um vale
de nome Geripancó, o qual, mais tarde, receberia o nome de Brejo dos Padres, ainda hoje,
sede da aldeia mãe dos Pankararu.
Em 1752, já havia um curato (residência do vigário da aldeia) entre os Pankararu.
Há um documento que relata que em Cana Brava existia uma capela dedicada à devoção a
Nossa Senhora da Saúde. A história da cidade não começou nos anos de 1954 como indicam
96

algumas literaturas. Sabe-se que esta cidade é o município mais antigo da região do Sertão
Pernambucano, criada primeiramente em 1849, supressa em 1892, voltando a ser cidade em
1926, extinta outra vez em 1938 e emancipada politicamente em 1953 (SILVA, 2014, p. 60).
É de suma importância não nos esquecermos da construção do curato e da atuação do padre
missionário que já se fazia presente entre os indígenas, pois foi em torno da capela dedicada a
Nossa Senhora da Saúde que surgiu a futura cidade de Tacaratu.
Quando Tacaratu deixou de ser sede municipal, ela passou a pertencer ao
Município de Jatobá. Em 1926, através da Lei estadual nº 1830, a cidade de Jatobá passou a
ser vila pertencente ao município de Tacaratu, a qual, por sua vez, foi elevada a município54.
[...] “Art. 1º Fica transferida da cidade de Jatobá para a vila de Tacaratu, a sede do município
de Jatobá de Tacaratu. Art.2º Fica elevada à categoria de cidade a atual vila de Tacaratu,
passando a atual cidade de Jatobá a ter a categoria de vila” (SILVA, 2014, p. 46).
Em 1752 o curato de Tacaratu já era uma povoação desenvolvida e ali existia
uma capela na fazenda do tenente João Teixeira do Pinho e Silva, dedicada a Nossa Senhora
da Saúde, que provavelmente foi construída sob a orientação dos padres da congregação de
São Felipe Neri (SILVA, 2014, p. 111).
Assim, com base nas informações de Silva podemos apontar os municípios
próximos de Tacaratu com as respectivas datas de fundação (SILVA, 2014, p. 58-59).

Quadro 4 - Municípios próximos de Tacaratu


Município/Freguesia Ano de Fundação Estado
Tacaratu 1761 Pernambuco
Jeremoabo 1778 Bahia
Porto da Folha 1821 Sergipe
Mata Grande 1837 Alagoas
Glória 1886 Bahia
Petrolândia 1887 Pernambuco
Fonte: elaborado pelo autor.

Em 08 de Setembro de 1761, foi criada a Freguesia de Tacaratu por dom


Francisco Xavier Aranha. O território foi desmembrado da Freguesia de Nossa Senhora do Ó

54
O retorno de Jatobá para Tacaratu ocorreu por causa de enchentes do rio São Francisco, ocorridas em 1906 e
1919. Em 1935 através da Lei estadual 12, de 11 de setembro, se determina que a vila de Jatobá, passe a ser
chamada de Itaparica. Em 1939, Tacaratu passa a pertencer ao Município de Itaparica através de Decreto lei nº.
235, de 09 de dezembro. Em 1948, Itaparica passa a ser chamar Petrolândia. Em 1988, a cidade de Petrolândia
foi transferida para a Nova Petrolândia, sendo a velha cidade submersa nas águas do rio São Francisco formando
o Lago da Barragem da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga. Em 1995, através da Lei estadual nº. 11 256, foi
emancipada a Cidade Livre que abrigava os trabalhadores da construção da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga,
que pertencia ao município de Petrolândia.
97

do Porto da Folha,55 no Estado de Alagoas, sendo instalado oficialmente em 1764 (SILVA,


2014, p. 28) pelo padre Antônio Teixeira de Lima. Neste período, a capela passa por reformas
para tornar-se Matriz. Desde sempre, o santuário foi erigido sob a proteção de Nossa Senhora
da Saúde. Em 1930, a matriz foi destruída e a atual foi erguida e concluída a obra em 1939.
A arquitetura do atual Santuário é de estilo neogótico, com cores externas
amarelas e vinho56. Uma particularidade desta construção é a técnica da pintura externa que
foi feita misturando-se na própria massa do reboco. Com o passar dos anos, houve uma
tentativa de fazer uma nova pintura, mas quando choveu, a tinta espalhou-se pelas paredes,
voltando à cor original.
No interior do santuário, a cor predominante é o branco gelo, com detalhes de
chumbo claro nos arcos e acabamentos. O piso é de granito nas cores verde, vermelho e
amarelo. No altar principal acima do Sacrário existe um nicho ornado de flores onde se
encontram à direita as imagens de Nossa Senhora da Saúde e de São José, esposo de Maria, e
à esquerda a imagem do Sagrado Coração de Jesus. Ao lado do Sacrário encontram-se seis
castiçais, sendo três à direita e três à esquerda com seis velas em cada castiçal.
A elevação da Paróquia de Nossa Senhora da Saúde à condição de Santuário
Diocesano57 pelo bispo dom Adriano Ciocca Vazino aconteceu em 25 de dezembro de 1999.
O Santuário é, por excelência, o lugar de culto dedicado a Deus. Neste caso, o culto a Deus se
faz sob a proteção de Maria que recebe o título de Nossa Senhora da Saúde. É na celebração
do culto a Deus que o homem se põe em comunhão com a divindade, firmando assim, uma
aliança entre os dois sujeitos.
Nos eventos celebrativos, Maria ocupa um lugar de destaque, porém não chega a
substituir Jesus, pois ela está associada a sua vida e a sua história. Na liturgia, não se faz
adoração à Maria, mas se venera. A adoração é feita somente a Deus. Quando o anjo vem até
Maria diz: “Alegra-te, pois tu tens o favor de Deus, o Senhor está contigo” (Lucas 1,28,
p.1968); por isso, ela tem lugar de destaque nas celebrações. Na liturgia Eucarística, Maria é
lembrada e invocada com veneração:

Em comunhão como toda a Igreja, veneramos a sempre Virgem Maria, Mãe de


nosso Deus e Senhor Jesus Cristo; e também São José, esposo de Maria, os santos
apóstolos e Mártires... (Missal Romano, Oração Eucarística I p. 470).

55
Hoje é o município de Traipu – AL.
56
A tinta em pó foi misturada com o produto do reboco. Procurando a algumas pessoas em torno do Santuário
sobre a cor e a técnica empregadas, ouvi de alguns informantes que a tinta utilizada foi a xadrez, usada por muito
tempo pelos moradores para dar cor ao piso das residências. A técnica era a mesma: misturava-se o pó da tinta
no cimento e aplicava-se o produto no chão, formando assim o piso das residências.
57
Diocese de Floresta – Pernambuco.
98

Figura 15 – Imagem de Nossa Senhora da Saúde. Santuário de Nossa Senhora da


Saúde - Tacaratu (PE).

Fonte: arquivo pessoal do autor (fev.2015).

Não se sabe sobre a origem da imagem da padroeira. Interroga-se se não foram os


padres seculares de São Felipe Neri que a introduziram entre os Pankararu. Em conversa com
o reitor do Santuário, padre Domingos Sá filho (2015), ele diz que “já ouviu de paroquianos a
afirmação de que a imagem tem sua origem no Sirilanka”. Porém, isso é apenas especulação
sem provas. O fato é que a origem da imagem é incerta, e é cultuada não só pelos Pankararu,
mas também por tantos outros devotos.
O Distrito de Tacaratu foi criado em 24 de maio de 1808, sendo posteriormente
elevado à Vila em 16 de junho de 1849, através da Lei Provincial nº 248; a Comarca foi
erigida em 13 de maio de 1854. Através da Lei Estadual nº 1819, de 30 de dezembro de 1953,
a Vila de Tacaratu, foi elevada a Município, separando-se de Petrolândia. Sua extensão
territorial consta de 1.264,530 Km², contando com uma população de 22.068 habitantes. O
seu bioma é caatinga.
O território da Paróquia é bastante extenso, formado por 33 capelas as quais, na
sua maioria, estão localizadas em terras indígenas demarcadas ou em processo de
demarcação.
99

Quadro 5 - Municípios próximos de Tacaratu


Capela Localidade Município/Distrito
Santo Antônio Salgado Caraibeiras
São José São José/antigo Sítio do Padre Tacaratu
São José Salgadinho Tacaratu
São João Batista Carrapateira - aldeia Tacaratu
São Cristovão Boa Esperança/Rodrigues Tacaratu
Santo Antonio Vieira Caraibeiras
Santa Cruz Caraibeiras - aldeia Caraibeiras
Nossa Senhora de Fátima Olho d’água do Julião Tacaratu
São Sebastião Espinheiro - aldeia Tacaratu
Santa Clara Barrocão - aldeia Petrolândia
Senhora Santana Baixa da Quixaba Caraibeiras
Santo Antonio Barrocão - aldeia Petrolândia
Nossa Senhora Aparecida Olho d’água do Bruno Caraibeiras
São Pedro Olho d’água do Bruno Caraibeiras
Nossa Senhora Aparecida Altinho - aldeia Tacaratu
Nossa Senhora Aparecida Baixa do Capim Caraibeira
Nossa Senhora Aparecida Macaco - aldeia Tacaratu
Nossa Senhora da Conceição Taicó Tacaratu
Nossa Senhora das Graças Lajinha Tacaratu
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro Barra Caraibeiras
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro Tacaratuzinho Tacaratu
Nossa Senhora dos Navegantes Alto da Boa Vista Tacaratu
Sagrada Família Pingos Caraibeiras
Sagrado Coração de Jesus Ouricuri Caraibeiras
Sagrado Coração de Jesus Tapera - aldeia Tacaratu
Santa Luzia Curralinho Tacaratu
Santa Luzia Taicó Caraibeiras
Santa Quitéria Lúcio Caraibeiras
Santa Quitéria Lagoa Tacaratu
Santa Rita de Cássia Morcego Tacaratu
Santa Terezinha Agreste - aldeia Tacaratu
Santo Antonio Coelhos Caraibeiras
Santo Antonio Salgado Tacaratu
Fonte: dados fornecidos pela secretaria paroquial do Santuário de Nossa Senhora da Saúde, em 2015.

O título dado à Mãe de Jesus de “Nossa Senhora da Saúde” tem uma profunda
relação na veneração dos Pankararu que a invocam em auxílio na cura de suas doenças. Ela,
juntamente com os Encantos de luz, não só cura, como também os defende de todos os males.
O catolicismo praticado por esse povo vem pautado pelo sincretismo e pela simbologia de
santos e pela força58 da natureza (poder espiritual). Esta prática fica mais evidente nos
acontecimentos celebrativos quando são invocados os santos católicos e as forças encantadas
(poder da magia) cultuadas nos Terreiros, casas de orações e nas residências particulares.
Nestes momentos, as forças da natureza e os santos católicos vivem em plena harmonia.

58
Poder de cura dos Encantados.
100

O catolicismo popular se mescla com o catolicismo romano gerando um novo


seguimento religioso entre diversos povos. O catolicismo romano não conseguiu substituir as
práticas religiosas dos índios, deixando espaço para o surgimento de uma prática católica
adaptada ao culto já praticado entre os Pankararu. Assim, o cenário religioso das aldeias do
sertão do Estado de Pernambuco, como os demais Estados do Nordeste está marcado por
devoções a santos e a outros cultos sincréticos de influências indígenas e africanas.
A devoção popular faz parte da formação do povo brasileiro, e às vezes
chamamos essa prática de piedade popular, sobretudo em se tratando de Maria quando o povo
desenvolve ações e liturgias próprias. A Igreja Católica ensina aos seus fieis que procurem
olhar para Maria como modelo de mulher, mãe, auxiliadora e ela não deve ser vista como uma
deusa. Maria é sinal de esperança e não pode ser considerada a autora da salvação. Maria não
oferece a salvação, mas foi por meio dela que Deus deu aos cristãos a possibilidade da
salvação, que acontece através de Jesus.
Os devotos de Maria, invocada com seus inúmeros títulos de carinho e respeito,
revelam seu amor pela humanidade da mulher, que foi escolhida para gestar e dar a luz ao
Filho de Deus que se fez humano para que, nesta sua condição, pudesse resgatar a pessoa
humana. O povo desenvolve sua devoção à Maria de acordo com a sua cultura e crença
religiosa. Na maioria, são pessoas simples que desenvolvem sua piedade simples, mas são
portadoras de grande fé. É uma devoção autêntica, de respeito e zelo por uma mulher igual a
tantas outras mulheres que soube dizer sim a Deus com a sua maternidade.
Podemos dizer que o povo que a invoca busca, no mundo capitalista e
secularizado, sinais de esperança, procurando viver a fé em meio a situações muitas vezes
precárias e sofridas. Ciências como a sociologia, psicologia, antropologia, história e etnologia,
buscam compreender por que o catolicismo popular ou devocional transforma a vida de tantas
pessoas que vivem a crença popular sem se preocupar com uma fé intelectualizada e
aprendida nos púlpitos das igrejas e nas suas diversas doutrinas, ensinadas nos bancos das
universidades.
As práticas religiosas de cunho popular não se fazem presentes apenas em uma
classe social, e muito menos ainda estão atreladas à cor da pele. A devoção está presente em
todas as classes sociais. Gilberto Freyre retrata muito bem essa questão, mostrando que,
apesar das diferenças sociais, a fé era a mesma no período colonial.

No século XVII e mesmo no XVIII, não houve senhor branco, por mais indolente,
que se furtasse ao sagrado esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos; às vezes,
rezas quase sem fim, tiradas por negros e mulatos. O terço, a coroa de Cristo, as
101

ladainhas. Saltava-se das redes para rezar nos oratórios: era obrigação. Andava-se de
rosário na mão, bentos, relicários, patuás, Santo Antônio, pendurados no pescoço,
todo o material necessário às devoções e às rezas... Dentro de casa, rezava-se de
manhã, à hora das refeições, ao meio dia-dia e de noite, no quarto dos santos; os
escravos acompanhavam os brancos no terço e na salve-rainha. Havendo capelão,
cantava-se: Mater puríssima, ora pro nobis... Ao jantar, diz-nos um cronistas que o
patriarca benzia a mesa e cada qual deitava a farinha no prato em forma de cruz.
Outros benziam a água ou o vinho fazendo antes no ar uma cruz com o copo. No fim
davam-se graças em latim... Ao deitar-se, rezavam os brancos da casa-grande e, na
senzala, os negros veteranos: Com Deus me deito, com Deus me levanto, com graça
de Deus e do Espírito Santo, se dormir muito, acordai-me, se eu morrer, alumiai-me
com as tochas da vossa Trindade na mansão da Eternidade.... Quando trovejava
forte, brancos e escravos reuniam-se na capela ou no quarto do santuário para cantar
o bendito, rezar o magnificat, a oração de São Brás, de São Jerônimo, de Santa
Bárbara. Acendiam-se velas, queimavam-se ramos bentos (FREYRE, 1998, p. 431-
432).

O catolicismo popular no Brasil sempre foi praticado nas diversas camadas


sociais, muitas vezes não tendo a orientação dos padres que poderiam oferecer as diretrizes
vindas do catolicismo de Roma. Isso ocorreu por causa da existência de poucos padres no
Brasil durante o período colonial e pós-colonial. Daí a permanência até hoje de muitas
práticas sobreviverem e se fazerem presentes em grandes partes e diversas regiões brasileiras.
Exemplos do catolicismo popular são encontrados em todas as regiões do Brasil.
Na obra “O Quinze”, de Rachel de Queiroz, a autora dá inicio aos seus escritos com as
seguintes palavras: “Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José,
dona Inácia concluiu: Dignai-vos ouvi nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria,
e alcançai o que rogamos. Amém” (QUEIROZ, 2004, p. 11).
A devoção aos santos e de uma forma especial, à mãe de Jesus, se faz presente nas
diversas classes sociais e etnias, sobretudo em situações em que o povo encontra-se
desprotegido e desamparado. A figura feminina se mostra como mediadora e intercessora
entre o humano e o divino, pois ela é sentida como a ponte que leva as necessidades dos
humanos ao Criador.
Acreditamos que no caso específico dos Pankararu, os padres seculares de São
Felipe Neri introduziram elementos do catolicismo nas práticas ritualísticas dos índios,
juntando elementos cristãos às práticas tribais. Se antes entre os indígenas existia a figura dos
Encantados, representados pelos Praiás, os missionários introduzem as imagens dos Santos
entre eles, como é o caso das imagens de Nossa Senhora da Saúde e Santo Antônio. A história
nos mostra que houve uma troca de experiência e de vivência das práticas religiosas, criando-
se assim uma forma de convivência pacífica nas crenças religiosas. Com esta linha de
pensamento compreendemos que os portugueses, chegados ao Brasil, não tinham como
objetivo primário impor o catolicismo, mas sim obter o domínio das novas terras. Embora
102

houvesse tentativas, por parte dos missionários, de fazer com que índios e negros abraçassem
a fé católica, não podemos deixar de reconhecer que a religião contribuiu no controle e
imposição do domínio estrangeiro sobre os povos indígenas, mas as crenças sobreviveram e
se fazem presentes nos dias de hoje. Os missionários perceberam que para catequizar os
índios era necessário adaptar-se aos costumes de cada povo. Assim, foram desenvolvidos
rituais de fácil aceitação entre os nativos, sendo incorporados elementos próprios como é o
caso do novenário dedicado a Nossa Senhora da Saúde.
No novenário dedicado à mãe de Jesus há uma participação efetiva das pessoas na
liturgia e em todos os momentos litúrgicos que envolvem as celebrações dedicadas a Nossa
Senhora da Saúde.
Os Pankararu estão envolvidos na liturgia da preparação das missas, novenas e da
festa social. A presença mais visível da sociedade Pankararu é na primeira noite da Novena,
que acontece sempre no dia 24 de janeiro de cada ano: os grupos dos penitentes e das
penitentes Pankararu se fazem presentes na companhia dos Praiás que juntos, participam de
modo especial da cerimônia. Após as orações e invocações das forças Encantadas, os
participantes saem do Poró,59 em silêncio, em direção ao Santuário dedicado à mãe de Deus60
e, contando com a presença do padre, entram na Igreja e participam da celebração da Missa.
Após a benção do sacerdote é realizado, ainda no templo, o “Toré Sagrado”.
A Santa Cruz, símbolo dos grupos penitenciais masculinos e femininos, ornada de
fitas nas mãos de um Pankararu, seguido pelos penitentes e Praiás, adentram na nave central
do Santuário. Os penitentes ocupam os primeiros acentos da Igreja e os Praiás ficam em pé
em torno do altar.

59
Espaço feito de palhas de coqueiro restrito aos índios iniciados nos rituais.
60
Em 431 o Concílio de Éfeso proclamou Maria verdadeira “ Mãe de Deus pela concepção humana do Filho de
Deus em seu seio: “Mãe de Deus não porque o Verbo de Deus tirou dela sua natureza divina, mas porque é dela
que ele tem o corpo sagrado dotado de uma alma racional, único ao qual, na sua pessoa, se diz que o Verbo
nasceu segundo a carne” (Catecismo da Igreja Católica 1998, n.466, p.131).
Em Éfeso se assegura a união hipostática de Jesus e Maria é designada Mãe de Deus: Theotókos, Dei Genetrix,
genitora de Deus. (Dicionário de conceitos fundamentais de Teologia 1993, p. 526).
103

Figura 16 – Praiás no presbitério do Santuário de Nossa Senhora da Saúde Tacaratu


(PE). Festa de 2015.

Foto: Pe. Domingos.

Figura 17 – Entrada dos Praiás no Santuário de Nossa Senhora da Saúde. Festa


em 2015.

Foto: Pe. Domingos.


104

Segundo a concepção cristã e católica, o Culto à Maria remonta a uma profecia da


Igreja primitiva, e se encontra fundamentada no evangelista Lucas que descreve: “Todas as
gerações me chamaram bem-aventurada” (Lucas 1,48, p. 1969). O evangelista Lucas mostra
Maria como sendo uma mulher que está atenta às necessidades do seu tempo e aberta às
questões que a rodeia. Mulher de iniciativa propõe-se a colaborar com o outro e, modo
particular, com o projeto do seu Filho. Ela coloca-se diante de Deus como aquela que serve
não só ao projeto, mas a todos, sendo uma mulher solidária para com os que a invocam.

[...] A Santíssima Virgem é legitimamente honrada com um culto especial pela


Igreja. Com efeito, desde remotíssimos tempos, a bem-aventurada Virgem é
venerada sob o título de “Mãe de Deus”, sob cuja proteção os fiéis se refugiam
suplicantes em todos os seus perigos e necessidades (...). Este culto (...) embora
inteiramente singular, difere essencialmente do culto de adoração que se presta ao
Verbo encarnado e igualmente ao Pai e ao Espírito Santo, mas o favorece
poderosamente, este culto encontra sua expressão nas festas litúrgicas dedicadas à
Mãe de Deus e na oração mariana, tal como o Santo Rosário (CATECISMO, n. 971,
p. 274).

Maria é cultuada por aqueles que sentem a necessidade de uma advogada


(intercessora) ou então, de proteção, consolo e de tantas outras necessidades. Os Pankararu
veneram Nossa Senhora da Saúde desde a chegada dos missionários oratorianos à Cana
Brava, incluindo em seus cultos a novena à mãe de Jesus que a tem também como mãe dos
índios. Diante das necessidades das populações ela está sempre ao lado dos sofridos e
excluídos de toda e qualquer sociedade.

[...] as pessoas excluídas encontram na religião a melhor solução. Para essas pessoas
Deus não é mistério, é evidencia; não é enigma, é luz. Religião não é problema, mas
solução. Tal prática exige que se respeite o direito que elas têm de viver a religião
como fator fundamental de sentido e de resposta às consequências da exclusão que
pesa sobre essas massas (BOFF, 2007, p. 85).

O padre Antônio Vieira, no Sermão do Nascimento da Virgem Maria proferido


em 1657 em São Luís do Maranhão, apresenta Maria como sendo a luz que se faz presente
entre os povos rompendo as trevas, sendo a chama de luz divina. Vieira no Sermão faz
referencia ao convite de núpcias para a qual Jesus e sua mãe foram convidados. Ao perceber
que faltava vinho, Maria apela para o seu filho, com a intenção de livrar a família de um
vexame social junto aos convidados. Como faltasse vinho, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não
têm vinho”. Mas Jesus lhe respondeu: “Que queres de mim mulher? Minha hora ainda não
105

chegou”. Sua mãe disse aos que serviam: “Fazei tudo o que ele vos disser” (João 2,3-6, p.
2047).

[...] Quis a piedosa Mãe acudir à falta, falou ao Filho, mas respondeu o senhor tão
secamente como se negara sê-lo: [...] Que há de mim para ti, mulher? Ainda não
chegou a minha hora. – Aqui reparo esta hora não era de fazer bem? Não era de
encobrir e acudir a uma falta? Não era de remediar uma necessidade? Pois como
responde, Cristo que não era chegada a sua hora? [...] E se não era chegada a sua
hora, como trata a Senhora do remédio? Era chegada a hora de Maria, e não era
chegada a hora de Cristo? Sim, que Maria é luz e Cristo é sol, e a hora do sol sempre
vem depois da hora da luz. [...] Por isso disse Cristo à sua mãe com grande energia
[...] Como se dissera: Reparai Senhora na diferença que há de mim a vós na matéria
de socorrer aos homens, como agora quereis que eu faça. Vós os socorreis, e eu os
socorro; vós lhes acudis, e eu lhes acudo; vós os remediais, e eu os remedeio, mas
vós primeiro, e eu depois; vós logo, e eu mais devagar; vós na vossa hora, que é
antes da minha, e eu na minha, que é depois da vossa [...] (VIEIRA, 1657, p. 121-
122).

Antonio Vieira utiliza da passagem bíblica para elevar Maria como sendo aquela
que está atenta às necessidades do povo, sempre pronta a auxiliá-los quando é invocada. Na
festa de casamento na qual se fazia presente, Maria percebe a falta de vinho e suplica ao filho
para que fizesse algo para livrar os donos da festa de um verdadeiro vexame. Ao ouvir o
pedido da mãe simplesmente responde “a minha hora ainda não chegou”. Mas ela confiante
no seu filho diz aos que serviam “façam tudo que ele mandar”. Na confiança temos o grande
sinal: a transformação de água em vinho (João 2,1-12, p.2047). O primeiro sinal realizado por
Jesus teve a participação de sua mãe. O povo acredita que da mesma forma que o filho
atendeu ao pedido da mãe, continua pronta para atender as solicitações de todos aqueles que a
invoca.
Os Pankararu a invocam constantemente como Santa Maria, Nossa Senhora da
Saúde e outros títulos. No Toré sagrado, como nas romarias ou aberturas de trabalhos, sempre
é invocada com o nome de Santa Maria Mãe de Deus.

5.1 Origens da devoção à Nossa Senhora da Saúde

A Igreja Católica tendo Maria como modelo de mulher atribui a ela diversos
títulos. Estes estão ligados a acontecimentos dentro da história da humanidade. Sempre
exaltando a sua maternidade, os cristãos a chamam de Nossa Senhora. A devoção tem cunho
popular entre o povo que absorve as manifestações em seu tempo. No decorrer da história
observamos que há manifestações marianas não só nos cultos litúrgicos, como também nas
artes e literaturas.
106

A Europa no século XVI foi marcada com a “peste negra”, atingindo muitos
países europeus, de modo especial Portugal. Em 1569 Portugal viu grande parte de sua
população ser atingida por esse mal. Os hospitais não dispunham de leitos para receber
tamanha demanda de doentes, como também não tinham profissionais suficientes para atender
a demanda. O rei de Portugal, Dom Sebastião, buscou ajuda de profissionais da saúde na
Espanha, para combater o mal que atingia a população portuguesa.
Diante da peste a população de Lisboa recorrera a Mãe de Jesus para interceder ao
seu filho pelo povo. Começaram a organizar procissões em honra à Maria, pedindo que
libertasse o povo de tamanho mal que afligia a todos. Tendo diminuído as mortes, os devotos,
em forma de agradecimento, uma vez por ano, após a realização de uma missa, realizavam
uma procissão sob a invocação de Nossa Senhora da Saúde. A imagem que representava a
virgem Maria foi colocada na Igreja do Colégio de Jesus. No ano de 1662, foi construída uma
pequena capela dedicada a Nossa Senhora da Saúde, sendo a imagem transferida da Igreja do
Colégio, para este local dedicado a ela e a São Sebastião (BISINOTO, 2011.p.105).
O povo português, atingido pela peste negra, acreditava que a epidemia era uma
manifestação da ira divina, resultado das graves ofensas cometidas contra Deus. A peste seria
a consequência dos pecados praticados pela humanidade. Segundo esta concepção, os homens
deveriam observar as leis divinas e reafirmar uma aliança com Deus.

[...] Em Portugal ao longo dos séculos XIV ao XVI, com base na análise das
crônicas monásticas e de uma narrativa do surto que atingiu o Reino em 1569, de
autoria de um frade dominicano anônimo, sob a ótica cristã, a doença fomentou a
abordagem no pecado, da culpa, do arrependimento e da redenção, ressaltando o
papel social da caridade e, em extremo, a fundamental observância das leis que
regulam o pacto entre Deus e os homens (BASTOS, 1997, p. 183).

Nos cortejos penitenciais homens e mulheres pediam perdão coletivo dos seus
pecados e o fim do grande mal que atingia a população. As procissões atravessavam as ruas
pedindo clemência a Deus. A grande epidemia fortaleceu o culto e a crença em Nossa
Senhora da Saúde.
No ano de 1599, a peste negra voltou a atormentar a vida do povo de Portugal e o
povo mais uma vez recorreu a Nossa Senhora da Saúde pedindo a proteção e a cura do grande
mal que os atingia. Diante das necessidades, o povo recorre à proteção de Maria e, uma vez
atendido, lhe atribui títulos e a veneram através de diversos nomes. Os devotos de Nossa
Senhora da Saúde em Portugal celebram o seu dia em 20 de abril em cada ano. A devoção
107

começou em Portugal e se espalhou por diversos países, sendo introduzido o culto entre os
Pankararu com os padres de São Felipe Neri.
A devoção a Nossa Senhora da Saúde ganha força na região em 1919 quando a
gripe espanhola atinge o município de Água Branca, no Estado de Alagoas. A professora
Joana da Silva afirma que:

Em todos os Estados, muitas pessoas morreram da doença. Os alagoanos se


lembraram de chamar por sua Mãe da Saúde, padroeira de Tacaratu, e vieram a
cavalo buscar a imagem, levando-a a todos os lugares onde a gripe estivesse
atacando a população. Um grande milagre começou a acontecer durante a
peregrinação. Contam que depois que a imagem chegou à Serra de Água Branca não
morreu mais ninguém e a doença acabou. Os alagoanos da região de Água Branca
tornaram-se os maiores devotos de Nossa Senhora da Saúde. Atualmente todos os
anos, no mês de dezembro eles vêm buscar a imagem para levá-la a todos os
recantos do município, em peregrinação. O retorno da imagem ocorre no dia 23 de
janeiro, e com a chegada dos Peregrinos alagoanos tem inicio a festa de Nossa
Senhora da Saúde que termina no dia 02 de fevereiro (SILVA, 2014, p. 46).

Olhando a vida da humanidade veremos que na pré-história não há relatos de


epidemias entre a população mundial. Isso, porém, não significa que não existia doença.
Quando o homem começa a se relacionar com outros povos de outras regiões as doenças são
também socializadas. Na pré-história os homens viviam em pequenos grupos.

O homem das cavernas vivia em pequenos bandos, e o número de pessoas que


compunham um bando não era suficiente para a ocorrência de epidemias, pois para
que elas aconteçam é necessário um grande número de pessoas morando juntas ou
próximas, como acontece hoje nas cidades (TELAROLLI, 1995, p. 10).

No passado remoto, as doenças foram socializadas por comerciantes que


formavam caravanas, que se deslocavam para vender seus produtos e com eles as doenças
eram levadas para outras regiões. Assim ocorreu no século XIV: a epidemia da peste que
matou grande parte da população da Europa. Mas a história das pestes ocorre bem antes da era
cristã, basta olhar para os relatos de epidemias descritas na Bíblia.

O Senhor disse a Moisés e a Arão: “Tomai dois punhados de cinza de fogão. Moisés
deverá lançá-la ao ar diante de Faraó. Espalhando-se como pó sobre toda a terra do
Egito, provocará furúnculos cheios de pus nos homens e nos animais de toda a terra
do Egito”... Moisés lançou-a ao ar e ela provocou furúnculos cheios de pus nos
homens e nos animais (Êxodo 9,8-10, 1994, p. 110).
108

No livro de Samuel, encontramos relatos que Deus manda doenças61 transmitidas


por ratos para castigar os filisteus. “Os habitantes que não estavam mortos tinham sido
afligidos com tumores, e o grito de consternação da cidade subia até o céu” (Êxodo 5, 6. 1994,
p. 105). O castigo ocorre porque os filisteus tomaram posse da Arca 62 do Senhor e foram
castigados por este ato. A Arca guardava no seu interior as Tabuas dos Dez Mandamentos e
outros objetos sagrados. Tementes a Deus, eles procuram meios de devolver a Arca aos
hebreus que permaneceu entre os filisteus sete meses. Eles apelaram para os sacerdotes e
adivinhos, buscando meios para devolver a Arca aos seus proprietários e eles,

Disseram se quereis devolver a arca do Deus de Israel, não mandeis sem nada. Ao
contrario, tende todo cuidado de lhe oferecer uma reparação. Então sereis curados e
sabereis por que sua mão se apartava de vos. Eles responderam: “Que espécie de
reparação devemos oferecer?” Eles disseram: “De acordo com o número dos
príncipes dos filisteus, cinco tumores de ouro e cinco ratos de ouro, porque é uma
mesma praga que os atingiu a todos como também aos vossos príncipes...” (1Samuel
6, 1-5.1994, p. 441).

Após o recebimento da arca, o povo hebreu foi vitimado pela peste que recaiu
sobre eles, o que nos leva a crer que os ratos estavam contaminados e transmitiram a doença
ao povo hebreu. Ao olharmos para o Novo Testamento, encontramos no livro de Apocalipse
relatos de epidemias mandadas por Deus para castigar a humanidade, que não vive de acordo
com os seus mandamentos. Daí surge a crença que as epidemias são formas de purificação
dos homens e das mulheres que vivem no pecado e devem voltar para Deus.
Outra forma da transmissão de doenças é o contato com outros povos, como foi o
caso de um israelita que introduziu uma mulher midianita entre os hebreus. Os israelitas, que
foram mortos por causa da peste introduzida pela mulher foram de vinte e quatro mil israelitas
(Números 25, 6-9, 1994, p. 246).
Com a globalização, as doenças também são socializadas com uma maior rapidez,
podendo-se dizer que, com o pós-período industrial e o deslocamento da humanidade para as
diversas regiões do mundo, as relações sociais são intensificadas e com as pessoas vão
também as epidemias. Com as viagens frequentes acontece não só a expansão do mercado,
como também a cultura, doenças, conhecimentos, trabalho e tecnologia. O mundo hoje está

61
“Os filisteus foram atingidos com disenteria: segundo os comentários rabínicos, tratava-se de hemorroidas; os
exegetas modernos pensaram na peste bubônica (propagada pelos ratos)” (TEB, 1994, p.411).
62
“Farão uma arca em madeira de acácia, com dois côvados e meio de largura e um côvado e meio de largura e
um côvado e meio de altura. Resvestilá-las com placas de ouro puro por dentro e por fora, envolvendo-a numa
moldura dourada. Forjarás quatro argolas de ouro e as fixarás nos quatro pés da arca: duas de um lado e duas de
outro. Farás barras de madeiras de acácia, revestirás as barras, que servirão para carregar a arca. As barras
permanecerão fixas nas argolas, sem serem retiradas. Na arca porás o Documento que eu te darei” (Êxodo 25,10-
16, p. 133).
109

interligado, não sendo mais exclusividade de determinado povo só seu. O Brasil entra nesta
rota com a chegada do europeu, que trouxe as doenças antes não existentes por aqui.
O Brasil passa por uma epidemia em 1889 e 1890 com a gripe espanhola, surgido
na Rússia, atingindo todo o continente europeu. A gripe era transmitida através de viajantes
que transitavam de um local para outro disseminando assim a gripe.

Embarcações a vapor circularam o vírus com maior frequência. Pessoas doentes


embarcaram em um paquete na cidade de Hamburgo. Desembarcaram em Salvador
suas tosses e corizas, transferiram o vírus para quase metade dos habitantes da
cidade. A doença alastrou-se pelo litoral nordestino e alcançou o Rio de Janeiro.
(UJVARI, 2011, p. 143).

Neste período, o vírus da gripe atinge grande parte da população brasileira, mas o
pior está por vir: com a Primeira Guerra Mundial (1914 -1918), foi desencadeada na Europa
uma pandemia de gripe. O alastramento da doença se deu com a ajuda do deslocamento dos
soldados contaminados. O ápice da gripe ocorreu em 1918. O vírus era “transmitido de pessoa
para pessoa” (UJVARI, 2011, p. 143).
Rodolpho Telarolli (1995, p. 23) relata que, em 1899, houve no Brasil, uma
epidemia de peste; esta atingiu a cidade de Santos e outros municípios portuários. Passando
pelo litoral, a peste estalou-se no sertão nordestino fazendo inúmeras vítimas, de modo
especial nas zonas rurais dos Estados de Pernambuco, Ceará, Bahia, Paraíba e Rio Grande do
Norte. O bacilo da doença encontra-se em roedores silvestres, mesmo não tendo a
manifestação da doença, o bacilo (barcilio yersínia) está presente nos ratos silvestres,
podendo se manifestar a qualquer tempo.

5.2 O Novenário dedicado à Nossa Senhora da Saúde

Dias da Festa de Nossa Senhora da Saúde no município de Tacaratu no Estado de


Pernambuco:
110

Quadro 6 - Dias da Festa de Nossa Senhora da Saúde no município de Tacaratu


Dia Acontecimento Horas Participação
23/01 Acolhida dos Romeiros e da Imagem de 15h00min Comunidade e romeiros
Nossa Senhora da Saúde vinda da cidade 19h00min
de Água Branca, AL. 19h30min
Procissão de abertura.
Celebração de Missa e hasteamento da
Bandeira. Procissão saindo da Casa da
família Duque.

24/01 Missa dos índios Pankararu 10h00min Aldeias e comunidades/Espinheiro,


1ª Noite da novena, noite dos índios com 19h30min Macaco, Agreste, Barrocão, Folha
Toré Branca, Baixa do Leiro e Porteirão.

25/01 Missa dos Motoristas, Motoqueiros e 10h00min Aldeias e comunidades/Caraibeiras.


Ciclistas. 19h30min
2ª Noite da Novena

26/01 Missa dos Romeiros 10h00min Aldeias e comunidades/Morcego,


3º Noite da Novena 19h30min Taícó, Lajinha, Tacaratuzinhao,
Curralinho, Lagoa, Coito,
Boa Esperança/Rodrigues e Barra.

27/01 Missa com os Doentes 10h00min Aldeias e comunidades.


4º Dia de Novena 19h30min

28/01 Missa com os artesãos 10h00min Aldeias e comunidades/Pingos,


5º Dia de Novena 19h30min Ouricuri, Lúcio e Baixa da
Quixaba.

29/01 Missa com as comunidades indígenas 10h00min Aldeias e Comunidades/


6º Dia de Novena 19h30min Olho D’Água do Bruno,
Lages, Serra do Coelho, Tiririca,
Salgadinho, Brejo dos Coqueiros,
Lagoa do Riacho, Malhada do
Saco, Tiririca, Baixa do Capim,
Ilha Grande e Salgado.

30/01 Missa com os devotos e indígenas 10h00min Aldeias e comunidades/


7º Dia de Novena 19h30min Olho D’Água do Julião,
Carrapateira, Tapera e
Vieira do Moxotó.

31/01 Missa com as comunidades indígenas 10h00min Aldeias e comunidades/Altinho,


8º Dia de Novena 19h30min Salobro, Areinha, Gameleiras,
Cumbre e Bebedouro.

01/02 Missa com as comunidades indígenas 10h00min Aldeias e comunidades


9º Dia de Novena 19h30min

02/02 Encerramento das festividades em honra 05h30min Aldeias, devotos e


à Nossa Senhora da Saúde com: Alvorada; às Comunidade urbana.
Oficio de Nossa Senhora e Missa; Missa 17h00min
com os Romeiros e devotos: Ângelus:
Procissão com a imagem de Nossa
Senhora da Saúde, bênção com o
111

Santíssimo Sacramento.
Cronograma das festividades do Santuário Nossa Senhora da Saúde do ano de 2016

O novenário em honra a Nossa Senhora da Saúde, ao contrário dos rituais nas


aldeias, tem datas fixas tendo início no dia 23 de janeiro e terminando no dia 02 de fevereiro.
Geralmente quando terminam as festividades da padroeira começam as Corridas do Imbu,
ritual que tem início com a flechada do imbu, que geralmente ocorre no mês de janeiro antes
do início da novena de Nossa Senhora da Saúde.

5.3 A devoção à Nossa Senhora da Boa Morte

O grupo da penitência, além das diversas devoções, dedica o mês de agosto a


contemplação e veneração a Nossa Senhora da Boa Morte; devoção essa, entre os índios de
idade avançada da aldeia do Brejo dos Padres. O início do culto ocorre sempre no dia 01 de
agosto estendendo-se até o dia 31 do mesmo mês.63 O ritual é realizado no pequeno Santuário
dedicado a Santo Antônio na aldeia mãe, no Brejo dos Padres, com exceção do último dia do
mês de agosto, que ocorre na cidade baiana de Santa Brígida O último encontro realizado fora
da aldeia é chamado de entrega de trabalho. No culto de entrega de trabalho são reverenciados
os beatos Pedro Batista, Madrinha Dodó e o Padre Cícero Romão Batista, figura ilustre do
Juazeiro do Norte.
No culto busca-se compreender que a vida humana é temporal e que todo nascido,
um dia chegará ao seu fim terreno e que o criador criou a humanidade para cumprir uma
missão na Terra. Homem e mulher devem ter a dimensão que o humano é finito e deve
cumprir os desígnios do criador. “Para quem teme o Senhor, tudo irá bem no fim, no dia de
sua morte será abençoado”64 (Sirácida/Eclesiástico 1,131994, p. 1718).
A veneração a Nossa Senhora da Boa Morte nos remete à humanidade de Maria
que viveu na Terra como qualquer humano, sendo escolhida por Deus para gestar aquele que
viria vencer a morte por primeiro. Reza a tradição que Maria teve sua vida cessada na terra:

Por volta do ano 42 d.C., com aproximadamente 60 anos ou mais. Seu corpo foi
colocado num sepulcro novo, no Getsêmani, sobre o qual, posteriormente, foi
edificada uma pequena igreja. Após três dias, os apóstolos, que foram visitar o

63
Essa devoção está ligada diretamente com a família Binga.
64
Em nota de rodapé diz que o texto visa normalmente à esperança de um fim de vida feliz sobre a terra. O
tradutor entendeu como visando à benção divina no dia da morte, é possível que tenha subentendido a
expectativa de uma retribuição na outra vida. (BÍBLIA de tradução ecumênica - TEB, 1994, p. 1718).
112

túmulo, encontraram-no vazio e perceberam um suave perfume de flores que


exalava dali.
Por causa de seu desfecho de vida, Nossa Senhora da Boa Morte tem sido invocada
como a protetora dos agonizantes. Nos últimos instantes de vida, os devotos
recorrem ao auxilio dela, suplicam-lhe uma morte serena e a salvação eterna
(BISINOTO, 2010, p. 27).

Até aonde se tem noticias, o culto devocional a Nossa Senhora da Boa Morte65 foi
introduzido no Brasil pelos portugueses desde a chegada ao Brasil aonde foi fundada as
irmandades que se encarregaram de divulgar a devoção mariana e prestar assistência social e
religiosa. Com o passar dos anos, as irmandades atingiram também os negros, que souberam
fazer do movimento mariano, não só religioso como também político, a exemplo da
irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira na Bahia, a irmandade acolhia e
escondia os negros fujões, e trabalhava para comprar a alforria deles e de tantos outros.
A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira atravessa séculos com
seus rituais, que ano a ano, são realizados no dia 13 de agosto, renovando assim o
compromisso firmado com a mãe de Jesus para que lhe desse a vitória da libertação dos seus
senhores e juntas propagassem o seu nome aqui na Terra. Hoje a festa da Boa Morte é um
patrimônio imaterial que resistiu as perseguições, o ritual congrega diversos credos religiosos.
Essa resistência encontramos também entre os Pankararu, que através da unidade
em torno da fé, lutaram e lutam pelo direito às suas terras e assistência dos governantes. No
período que é realizado o ritual, faz-se referência à Nossa Senhora da Boa Morte através de
sacrifícios, tendo a esperança de um dia contemplar a face de Deus. Através do sacrifício se
renova a esperança de uma vida feliz, não só na terra como também na eternidade. O ritual de
agosto é longo e cercado de sacrifícios: homens, mulheres e crianças exaustivamente realizam
a reza do Rosário acompanhado de benditos e ladainhas longas, tendo sempre na letra dos
louvores e invocações a Nossa Senhora da Boa Morte, pedindo que na hora chegada, ofereça
uma santa morte e os conduza para a eternidade na casa do Pai.
No Oficio Divino ou Oração das Horas da Igreja Católica, se termina as orações
do dia pedindo a Deus uma morte Santa: “O senhor todo-poderoso nos conceda uma noite
tranqüila e, no fim da vida uma morte Santa” (Oração das Horas, 2000, p. 754). No final das
completas, se termina com uma Antífona de Nossa Senhora que diz: “À vossa proteção
recorremos santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades,

65
Em 1661, na freguesia da Ponta do Pargo, Portugal, Francisco Homem de Couto, constrói uma capela e
dedica a Nossa Senhora da Boa Morte. Em Portugal, é a primeira capela que se tem informações, dedicada à
veneração a Nossa Senhora com esse título.
113

mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó virgem gloriosa e bendita” (Oração das Horas,
2000, p. 755). A devoção para com a Mãe de Jesus está presente em todos os seguimentos do
catolicismo, seja ele popular ou clássico, sendo invocada de diversas formas e maneiras, cada
um segundo as suas necessidades.
A imagem de Nossa Senhora da Boa Morte geralmente é apresentada deitada em
um caixão ou em cima de uma cama, sendo o seu “corpo” vestido de um longo vestido branco
e suas mãos sempre estão cruzadas sobre o peito, em posição de morte, pronta para ser
sepultada. A Imagem de Nossa Senhora da Boa Morte presente no Santuário de Tacaratu,
está dentro de um nicho de vidro, vestida de noiva, porta um rosário nas mãos e está descalça.

Figura 17 – Imagem de Nossa Senhora da Boa Morte no Santuário de Nossa


Senhora da Saúde - Tacaratu (PE).

Fonte: arquivo pessoal do autor (2015).

O ritual Pankararu, chamado do Rosário66 de Nossa Senhora da Boa Morte é


realizado no Santuário dedicado a Santo Antônio,67 localizado na Aldeia do Brejo dos Padres.
Consiste em recitar 200 Ave-Marias, 200 Santa-Marias e 20 Pai-Nossos, sendo que cada Ave
Maria é recitada de joelho e Santa Maria de pé. A participação do ritual exige disponibilidade
e veneração a Maria. Esse evento é dividido entre as diversas famílias pertencentes ao tronco
velho, ou seja, trinta e uma famílias tradicionais são responsáveis pela reza do Rosário de
Nossa Senhora da Boa Morte.

66
A expressão Rosário significa Coroa de Rosas. Na tradição mariana se diz que Maria revelou que cada vez que
se recita uma Ave- Maria, é entregue a ela uma rosa e a cada Rosário rezado, uma coroa de rosas.
67
Hoje o Santuário pertence à matriz de Nossa Senhora Aparecida do Município de Jatobá .
114

5.4 A estrutura do Rosário

A estrutura do Rosário está baseada em vários elementos teológicos


fundamentados em passagens bíblicas nas quais fazem referência a Jesus e sua mãe Maria.
Até o ano de 2001, a contemplação do Rosário não tinha os Mistérios Luminosos ou da Luz,
sendo introduzido pelo Papa João Paulo II em 2002, através da carta apostólica Rosarium
Virginis Mariae (Rosário da Virgem Maria). Assim, o Rosário passa a ter a seguinte estrutura:

Quadro 7 - Estrutura do Rosário


Mistérios Gozosos ou Mistérios da Alegria
Mistérios Passagem bíblica

1º A anunciação do Anjo Gabriel à Virgem Maria; “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus
a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma jovem,
prometida em casamento a um homem chamado José, da
família de David; e essa jovem se chamava Maria...”
(Lucas 1,26-38).

2º A visita de Maria à Isabel; “Naquele tempo, Maria partiu às pressas, rumo à região
montanhosa, para uma cidade de Judá. Ela entrou na casa
de Zacarias e saudou Isabel Ora, quando Isabel ouviu a
saudação de Maria, a criança pulou em seu seio...”.
(Lucas 1,39-45).

3º O nascimento de Jesus em Belém; “Ora, naquele tempo, foi publicado um edito de César
Augusto, mandando recensear o mundo inteiro. [...] José
também subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, à cidade
de David, que se chamava Belém, na Judéia, porque era da
família e da descendência de David, para se fazer
recensear com Maria, sua esposa, que estava grávida. Ora,
enquanto lá estava, chegou o dia em que ela devia dar à
luz; ela deu à luz o seu filho primogênito...” (Lucas 2,1-
20).

4º A apresentação de Jesus ao Templo; “Depois, quando veio o dia que, segundo a lei de Moisés,
deviam ser purificados. Eles o conduziram a Jerusalém
para apresentá-los ao Senhor – como está escrito na lei do
Senhor: todo menino primogênito será consagrado ao
Senhor...” (Lucas 2,22-33).

5º O encontro de Jesus entre os Doutores da Lei; “Os seus pais iam cada ano a Jerusalém para a festa da
Páscoa. Quando ele fez doze anos, tendo eles subido para
lá segundo o costume da festa, e quando no fim dos dias de
festa eles voltaram, o menino Jesus ficou em Jerusalém
sem que os seus pais se apercebessem [...] Foi no fim de
três dias que o encontraram no Templo, sentado em meio
aos mestres, ouvindo-os e interrogando-os [...] Vendo-o,
eles ficaram tomados de grande surpresa e a sua mãe lhe
disse: “Meu filho por que agistes assim conosco? Vê, o teu
pai e eu, nós te procuramos cheios de angustia”. Ele lhes
115

disse: “Por que me procuráveis? Não sabeis que devo estar


junto do meu Pai?”... (Lucas 2,41-50).

Quadro 7 - Estrutura do Rosário


Mistérios Luminosos ou Mistérios da Luz
Mistérios Passagem bíblica

1º Jesus sendo batizado por João Batista; “Então chega Jesus, vindo da Galileia ao Jordão, João quis
opor-se a isto: “Eu é que preciso ser batizado por ti”, dizia,
“e és tu que vens a mim?”. Mas Jesus replicou-lhe: “Deixa,
agora é assim que nos convém cumprir toda a justiça.”
Então, ele o deixa fazer. Logo que foi batizado, Jesus saiu
da água. Eis que os céus se abriram, e ele viu o Espírito de
Deus descer como uma pomba e pairar sobre ele.” (Mateus
3,13-16).

2º Jesus nas Boldas de Caná transforma água “Ora, no terceiro dia, houve núpcias em Caná da Galileia,
em vinho a pedido de sua mãe; e a mãe de Jesus estava lá. Jesus também foi convidado às
núpcias, como também os seus discípulos. Como faltasse
vinho, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm vinho”. Mas
Jesus lhe respondeu: “Que queres de mim, mulher? A
minha hora ainda não chegou”. Sua mãe disse aos que
serviam: “Fazei tudo o que ele vos disser”. [...] (João 2,1-
12).

3º Jesus anuncia o Reino de Deus convidando à “Depois que João fora entregue, Jesus veio para a
conversão; a Galileia. Ele proclamava o Evangelho de Deus e dizia:
“Cumpriu-se o tempo, e o Reino de Deus aproximou-se:
convertei-vos e credes no Evangelho” (Marcos 1,14-15).

4º A transfiguração de Jesus no Monte Tabor; “Ora, cerca de oito dias depois dessas palavras, Jesus
tomou consigo Pedro, João e Tiago e subiu à montanha
para rezar. Enquanto rezava, o aspecto do seu rosto mudou
a sua roupa se tornou de uma brancura fulgurante. E eis
que os dois homens conversavam com ele; eram Moisés e
Elias, aparecendo na glória, falavam da partida de Jesus
que ia se realizar em Jerusalém [...]”.(Lucas 9,28-33).

5º Jesus institui a Eucaristia na sua última Ceia; “Durante a refeição, Jesus tomou o pão e, depois de ter
pronunciado a benção, ele o partiu; depois, dando-o aos
discípulos, disse: “Tomai, comei, isto é o meu corpo”. A
seguir, tomou uma taça e, depois de ter dado graças, deu-a
a eles, dizendo: “Bebei dela todos, pois isto é o meu
sangue, o sangue da Aliança, derramado em prol da
multidão, para o perdão dos pecados. Eu vos digo;
doravante, não beberei deste fruto da videira até o dia em
que o beber, de novo, convosco no Reino do meu Pai”.
(Mateus 26,26-29).
116

Quadro 7 - Estrutura do Rosário


Mistérios Dolorosos ou Mistérios da Dor
Mistérios Passagem bíblica
1º Jesus é condenado à morte; “Ora, quando Jesus terminou todas essas instruções, disse
a seus discípulos: “vos sabeis que, daqui a dois dias, será a
Páscoa: o Filho do Homem vai ser entregue para ser
crucificado”. Então os sumos sacerdotes e os anciãos do
povo reuniram-se no palácio do Sumo Sacerdote, que se
chamava Caifás. Eles concordaram em prender Jesus, por
um ardil, e matá-lo. Conduto, diziam: “não durante a festa,
para evitar tumulto no meio do povo”. (Mateus 26-5).

2º Jesus é açoitado numa coluna; “Jesus compareceu perante o governador. O governador


o interrogou: “És tu o rei dos judeus”? Jesus declarou: “Tu
o dizes”; às acusações que os sumos sacerdotes e os
anciões aduziam contra ele, porém, ele nada respondeu.
Então Pilatos lhe disse: “Não ouves todos esses
testemunhos contra ti?”. [...] Todo o povo respondeu:
“Caia o seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos!”.
Então ele lhes soltou Barrabás. Quanto a Jesus, depois de o
ter mandado flagelar, entregou-o para ser crucificado.”
(Mateus 27, 11-26).

3º Jesus é coroado de espinho; “Então os soldados do governador, levando Jesus para o


pretório, reuniram em torno dele toda a corte. Eles o
despiram e lhe puseram uma capa escarlate. Com espinhos,
traçaram uma coroa que lhe puseram sobre a cabeça, bem
como um caniço na mão direita; ajoelhando-se diante dele,
caçoavam dele, dizendo: “salve, rei dos judeus!” Cuspiram
nele e, tomando o caniço, batiam-lhe na cabeça. Depois de
terem zombado dele, tiram-lhe a capa e tornaram a pôr-lhe
suas vestes. A seguir, eles o levaram para o crucificar.”
(Mateus, 27,27-31).

4º Jesus é crucificado no Monte Calvário; “Ao saírem, encontraram um homem de Cirene, chamado
Simão; eles o requisitaram para levar a cruz de Jesus.
Tendo chegado ao lugar chamado Gólgota, isto é, lugar do
Crânio. Deram-lhe de beber vinho misturado com fel. Ele,
tendo-o provado, não quis beber. Depois de o terem
crucificado, repartiram suas vestes lançando a sorte [...].
Com ele, foram crucificados dois bandidos, um à direita, o
outro à esquerda.” (Mateus 27,32-38).

5º A morte de Jesus na cruz e seu sepultamento; “A partir do meio dia, trevas cobriram toda a terra até as
três horas. Por volta das três horas, Jesus exclamou com
voz forte: “Eli, Eli, lema sabactáni”, isto é, “Meu Deus,
Meus Deus, por que me abandonaste...?” Alguns dos que
ali estavam diziam, ao ouvi-lo: “ei-lo que chama Elias!”
[...] Mas Jesus, gritando novamente com voz forte, rendeu
o espírito.” (Mateus 27,45-50).
117

Quadro 7 - Estrutura do Rosário


Mistérios Gloriosos ou Mistérios da Glória
Mistérios Passagem bíblica

1º A gloriosa ressurreição de Jesus; “Após o sábado, no inicio do primeiro dia da semana,


Maria de Magdala e a outra Maria foram ver o sepulcro. E
eis que se produziu um grande terremoto: o anjo do Senhor
desceu do céu, veio rolar a pedra, e sentou-se em cima.
Seu aspecto era o do relâmpago e sua vestimenta branca
como neve. [...] Mas o anjo tomou a palavra e disse às
mulheres: “Não temais, vós. Eu sei que procurais Jesus, o
crucificado. Ele não está aqui, pois ressuscitou, como
havia dito, vinde ver o lugar onde jazia. Depois, ide
depressa dizer a seus discípulos: Ele ressuscitou dos
mortos e eis que vos precede na Galileia; lá é que o vereis.
Eis que eu vo-lo disse”. Deixando às pressas o sepulcro,
com medo e grande alegria, elas correram a levar a notícia
a seus discípulos.” (Mateus 28,1-8).

2º A ascensão de Jesus ao céu; “Depois ele os conduziu até perto de Betânia e, erguendo
as mãos, os abençoou. Ora, enquanto os abençoava, Jesus
se apartou deles, sendo arrebatado ao céu. Quanto a eles,
após se terem prostrado diante dele voltaram para
Jerusalém, cheios de alegria, e estavam sem cessar no
Templo, bendizendo a Deus.” (Lucas 24,50-53).

3º A vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos e “Quando chegou o dia de Pentecostes, eles se achavam
Maria no cenáculo junto com as outras mulheres; reunidos todos juntos. De repente, veio do céu um ruído
como de violento vendaval que encheu toda a casa onde
eles estavam; então lhes apareceu algo como línguas de
fogo, que se repartiam, e pousou uma sobre cada um deles.
Todos ficaram repletos do Espírito Santo, e se puseram a
falar outras línguas, conforme o Espírito lhe concedia
exprimirem-se.” (Atos dos Apóstolos 2, 1-4).

4º A assunção de Maria ao céu em corpo e alma; Dogma de fé. Em 1950 o Papa Pio XII declara que Maria
foi “assunta em corpo e alma à glória celestial"
(Munificentissimus Deus n. 44).

5º A coroação de Nossa Senhora como Rainha do Tradição da Igreja.


céu e da terra.
Mistérios recitados pelos Pankararu. Copiado de uma xerocopia usada na reza do Rosário.

O Rosário foi introduzido nas orações da Igreja por São Bento, forma encontrada
pelo monge para com os que não sabiam ler. Os monges sem leituras foram orientados para
recitar 150 Pai Nossos em substituição aos 150 Salmos. Para a recitação, foi desenvolvido um
cordão com 150 grãos para auxiliar os recitadores. Nos séculos X e XI, a prática tornou-se
comum entre os Católicos. O Rosário, como tal, surge por volta do ano 1150, sendo
popularizado pelos frades dominicanos. O papa dominicano Pio V, através da Carta
118

Apostólica Consueveunt romani Pontifices, determinou a quantidade de Pai Nossos e Ave


Marias. Com o passar dos anos, a Igreja orientou o povo a rezar um terço do rosário que é: 05
Pai Nossos e 50 Ave Marias.
A Igreja, em 1950, através do Papa Pio XII, institui um dogma de fé no qual
afirma que Maria foi assunta ao Céu. Neste dogma o papa através de estudos diz que:

[...] A augustíssima Mãe de Deus, associada a Jesus Cristo de modo insondável


desde toda a eternidade "com um único decreto" de predestinação, imaculada na sua
concepção, sempre virgem, na sua maternidade divina, generosa companheira do
divino Redentor que obteve triunfo completo sobre o pecado e suas consequências,
alcançou por fim, como suprema coroa dos seus privilégios, que fosse preservada da
corrupção do sepulcro, e que, à semelhança do seu divino Filho, vencida a morte,
fosse levada em corpo e alma ao céu, onde refulge como Rainha à direita do seu
Filho, Rei imortal dos séculos 1Timotio 1,17, p. 2324). (Munificentissimus Deus, n.
40).

A igreja, com esse dogma, proclama que Maria não conheceu a corrupção da
Carne, foi levada aos seus de corpo e alma pelos anjos de Deus e o seu filho subiu com os
seus próprios poderes. [...] “Cristo com a própria morte venceu a morte e o pecado, e todo
aquele que pelo batismo de novo é gerado, sobrenaturalmente, pela graça, vence também o
pecado e a morte” (Munificentissimus Deus, n. 4). A tradição católica evita afirmar que Maria
tenha morrido e procura substituir a palavra morte por “doemitio” (dormição). A devoção a
Nossa Senhora da Boa Morte continua presente na Igreja, porém a Igreja afirma:

Pelo que, depois de termos dirigido a Deus repetidas súplicas, e de termos invocado
a paz do Espírito de verdade, para glória de Deus onipotente que à virgem Maria
concedeu a sua especial benevolência, para honra do seu Filho, Rei imortal dos
séculos e triunfador do pecado e da morte, para aumento da glória da sua augusta
mãe, e para gozo e júbilo de toda a Igreja, com a autoridade de nosso Senhor Jesus
Cristo, dos bem-aventurados apóstolos S. Pedro e S. Paulo e com a nossa,
pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que: a
imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida
terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial" (Munificentissimus
Deusn.44).

A fé da humanidade faz com que o homem creia, e crer no poder de divino é não
ter dúvidas no seu infinito poder. Paulo, escrevendo aos coríntios, fala: “vou dar-vos a
conhecer um mistério. Nós não morreremos todos, mas todos seremos transformados” (1
Coríntios 15,51.1994, p. 2226). Não há porque duvidar do poder do criador e da fé dos
homens. Maria no seu tempo já fora reconhecida como sendo a mãe do Senhor. Na visita
realizada a Isabel já houve da sua parenta: “Tu és bendita mais do que todas as mulheres;
119

bendito é também o fruto do teu ventre” (Lucas 1, 42.1994, p. 1969). Por que não pode ser
possível a Assunção de Maria?
Cristo foi o primeiro a vencer rompendo a escravidão da morte. “Cristo
ressuscitou dos mortos, primícias dos que morreram. Com efeito, visto que a morte veio por
um homem, é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos [...] cada um em sua
ordem: em primeiro lugar, as primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por
ocasião de sua vinda” (1 Coríntios 15,20-24. 1994, p. 2225).
A Sagrada Escritura nos apresenta outros personagens que pelas suas virtudes
tiveram a graça do arrebatamento ao céu como Moisés, Henoc e Elias. A Epístola de Judas
relata a disputa do demônio com o anjo Miguel sob a posse do corpo de Moisés, “No entanto,
até o Arcanjo Miguel, quando contestava com o diabo e disputava a respeito do corpo de
Moisés, não se atreveu a lançar contra ele um juízo ofensivo, mas lhe disse: “Que o Senhor te
castigue!” (Epistola de Judas 1,9. 1994, p. 2418).
Pela fé de Henoc, Deus o levou para a eternidade. “Pela fé, Honoc foi levado, a
fim de escapar à morte e não foi mais encontrado, porque Deus o leva: de fato, antes de ser
arrebatado, recebera o testemunho de que agradara a Deus. Ora, sem a fé, é impossível
agradar a Deus, pois quem se aproxima de Deus deve crer que ele existe e recompensa os que
procuram” (Hebreus 11,5-6. 1994, p. 2362).
Deus, com o seu poder, levou Elias de corpo e alma ao céu em meio de uma
tempestade. Elias em conversa com Eliseu disse:

[...] “Pede o que desejas que faça por ti, antes que eu seja arrebatado para longe de
ti!” Elias respondeu: “Seja-me concedida uma dupla parte de teu espírito!” [...]. E
aconteceu que, enquanto prosseguiam o caminho a conversar, um carro de fogo e
cavalos de fogo os separaram um do outro; e Elias subiu ao céu em meio à
tempestade.”( 2 Reis 2,9-11. 1994, p. 544).

Conforme acabamos de ver na Bíblia, que Deus arrebatou Elias ao céu, tendo Ele
escolhido Maria para ser a mãe de Jesus, não teria Ele realizado o arrebatamento dela
também? Uma vez que o anjo diz que ela foi escolhida entre todas as mulheres para ser a mãe
de Jesus. (Lucas 1,26-38. 1994, p. 1968-1969).
Os Pankararu como tantos outros devotos rendem glórias ao Criador por ter dado
Maria com diversos títulos, que quando invocada com fé, vem em auxilio dos que a invocam
e recitam a oração de Nossa Senhora da Boa Morte.

Ó Maria, concebida sem mácula, orai por nós que a Vós recorremos.
120

Ó Refúgio dos pecadores, Mãe dos agonizantes, não nos desampareis na hora da
nossa morte, mas alcançai-nos uma dor perfeita, uma contrição sincera, a remissão
dos nossos pecados, uma digna recepção do Santíssimo Viático, a fortaleza, do
Sacramento da Unção dos enfermos, para que possamos seguros apresentar-nos ante
o trono do justo mas também misericordioso Juiz, Deus e Redentor nosso. Amém.

O povo, diante de suas necessidades, busca na mãe de Jesus soluções para os seus
problemas e atribui nomes fazendo homenagens àquela que se acredita que está próxima do
povo e de seu filho Jesus. E se perguntarmos aos que mais padecem as suas misérias, todos
nos dirão este para quê: Perguntai aos enfermos para que nasce esta celestial Menina: dir-vos-
ão que nasce para Senhora da Saúde; perguntai aos pobres: dirão que nasce para Senhora dos
Remédios; perguntai aos desamparados: dirão que nasce para Senhora do Amparo: perguntai
desconsolados: dirão que nasce para Senhora da Consolação; perguntai aos tristes: dirão que
nasce para a Senhora dos Prazeres; perguntai aos desanimados, dirão que nasce para Senhora
da Esperança. Os cegos dirão que nasce para a Senhora da Luz, os discordes para Senhora da
Paz, os desconfiados da vida para Senhora da Boa Morte, os pecadores todos para a Senhora
da Graça e todos os seus devotos para Senhora da Glória. E se todas essas vozes se uniram em
uma só voz, todas estas perguntas em uma só pergunta, e todas estas respostas em uma só
resposta, ou mais abreviadamente, todos estes nomes em um só nome, dirão nasce Maria para
ser Maria, e para ser Mãe de Jesus (VIEIRA, 1998, p. 198-199).
A figura de Maria se popularizou no meio dos povos Pankararu, a ponto de
afirmarem que ela ao fugir do poder do rei Herodes para salvar o seu filho, cansada, passou
pela aldeia do Brejo dos padres e descansou em baixo de um pé de jurema. O anjo do Senhor
apareceu em sonho a José e lhe diz: “Levanta-te, toma contigo o menino e sua mãe e foge
para o Egito; fica lá até a nova ordem, pois Herodes vai procurar o menino para fazê-lo
perecer” (Mateus 2,13-15. 1994, p. 1858-1859).
As lideranças da Igreja evitam a valorização das superstições e demonstram
preocupações para com essas atitudes; buscam purificar as manifestações populares
mostrando que há um magistério e uma tradição cristã, a qual não remete para esse
acontecimento. Não fomentando elementos para essa crença.
121

6 A MESA DE CURA

Figura 17 – Mesa de cura Pankararu.

Fonte: arquivo pessoal do autor (jan.2016).

O complexo sistema ritualístico da sociedade Pankararu é marcado por atividades


voltadas aos Encantados representados pelos Praiás. Entre os diversos rituais, realizam
sessões de cura, que dão o nome de “Mesa de cura”, na qual os Encantados são chamados a
restaurar a saúde. Além das curas, no evento são feitas prescrições de fatos e acontecimentos:
a Mesa é também o espaço para consultar os Encantados sobre diversos assuntos particulares
ou coletivos.
No ritual de Mesa de cura, os Encantados exigem fidelidade de seus participantes
e quando não recebem o que foi prometido na sessão, podem provocar problemas maiores do
que aqueles que foram resolvidos, às vezes até provocando outros tipos de doenças ou
perturbações espirituais. O descumprimento de preceitos como: banhos de ervas, defumações,
abstinência de bebidas alcoólicas e sexuais no período dos rituais de maior importância
122

(Corrida do Imbu e Menino do Rancho), podem causar temporariamente problemas de perda


de memória, fadigas, dores de cabeça, falta de libido, dormência. Os problemas passam
quando for restabelecido o compromisso (aliança) firmado entre Encantado e participante.
O ritual de Mesa de cura está dividido em duas partes: benzimento e a Mesa
propriamente dita, que é um ritual mais elaborado com um prosseguimento litúrgico pré
determinado, respeitando o Encantado que trabalha com o pai ou a mãe do Praiá68. O
momento exige toantes (músicas) apropriados para a realização do ritual, ou seja, os toantes
servem para chamar o Encantado. A cura é realizada com o simples benzimento ou não,
depende do estado de quem a procura. “Ambos guardam a finalidade de curar pessoas
acometidas por males espirituais que se manifestam por meio de características físicas, mas
são utilizados em contextos e intensidade distinta” (LOPES, 2011, p. 65).
Existem também na aldeia pessoas que benzem, não precisando ir à Mesa de cura
para se libertar de pequenos problemas. Essas pessoas são conhecidas como benzedeiros,
rezadeiros e curadores, podendo ser tanto do sexo masculino, quanto feminino. Essas práticas
não estão presentes apenas nas aldeias ou zonas rurais: são encontradas também nas zonas
urbanas, através de índios que deixam a aldeia, mas mantém as práticas xamanicas caboclas,
que com suas ciências, auxiliam na cura e libertação de homens, mulheres e crianças.
As invocações dos Encantados são sempre acompanhadas de Ave Maria e Pai
Nosso no simples benzimento; às vezes, as palavras são acompanhadas com pequenos galhos
de plantas perfumadas ou não. O rezador ou benzedor os passa sob o corpo da pessoa
simbolizando que está arrancando o mal que a aflige. Ao término da reza as folhas estão
murchas ou não: quanto mais desidratadas, mais problemas espirituais há.
Não é o pai de Praiá que faz a cura do doente, ele é apenas o agente corpóreo: o
Encantado se utiliza do corpo físico para libertar a pessoa da doença ou de outros males nos
rituais de cura. O ritual indígena traz influência do catolicismo popular, prática comum entre
os sertanejos. Os Encantados curam doenças tidas como naturais e as mandadas (doenças
consideradas provocadas por outras pessoas que buscam vingança por atos realizados pela
vítima ou por inveja). Quando uma pessoa faz uma promessa e não paga, as cobranças são
feitas de diversas formas, sendo a mais comum, através de doenças.
A água benta e os ramos podem ser de ervas aromáticas ou não. Os pedidos não
são feitos apenas para os humanos, são estendidos também para pedir a cura de animais ou a
proteção dos Encantados contra os males.

68
Pessoa que foi escolhida para zelar de um Encantado. A escolha se dá pelo próprio Encantado.
123

O atendimento se dá em uma pequena sala, na qual há um altar com diversas


imagens de santos, entre elas o Padre Cícero, Cosme e Damião, Santa Terezinha do Menino
Jesus, São Jorge, Santa Catarina, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Saúde, São
Jorge, frei Damião, Nossa Senhora da Boa Morte, Santa Rosa de Lima e outros.
Com essas práticas religiosas vemos que o homem busca no sobrenatural auxilio,
desenvolvendo meios para atingir o que não é possível fisicamente, e o que não se tem
explicação é atribuído a divindade e assim podemos atribuir ao desconhecido ações que antes
não eram possível aos humanos. Marina Souza (2006), afirma que

Se a força criadora de tudo era inatingível, isto é, estava fora do alcance das pessoas
e dos espíritos, o mesmo não acontecia com as outras forças sobrenaturais, que eram
constantes chamadas para resolver os mais diversos problemas.
Mesmo quando não eram chamados, para o que eram necessários conhecimentos e
objetos apropriados, essas forças mantinham contato com as pessoas por meio de
sonhos e de sinais que podiam ser facilmente reconhecidos por qualquer membro do
grupo. Porém, “os contatos mais importantes precisavam de intermediação de um
especialista – o sacerdote religioso” (SOUZA, 2006, p. 45).

Relatarei um benzimento no qual eu estava presente: para a abertura dos trabalhos,


a mãe de Praiá estava vestida de branco (tipo guarda pó ou jaleco branco) e acendeu uma vela
branca, usou seiva de alfazema nas mãos e ofereceu aos presentes a embalagem com o líquido
para inalar o suave perfume. Rezou um Pai Nosso, uma Ave Maria e após a invocação da
Santa Cruz traçada na testa, o Encantado chegou e saudou o povo dizendo “Louvado seja
nosso Senhor Jesus Cristo”, imediatamente o povo respondeu: “para sempre seja louvado”. As
palavras pronunciadas eram em um português bem arcaico e de difícil compreensão. Em
seguida, começou a falar sobre os problemas dos presentes e a relatar o que estava
acontecendo com a pessoa e o que a levou a esse estado. Se a pessoa estiver doente e se
houver como curá-la, ele fala qual é o remédio que deve ser usado, na forma de chás e banho
com ervas aromáticas.
Após o término do trabalho perguntei à mãe de Praiá como isso acontecia e ela
simplesmente respondeu: “Tudo vai pela fé, aqui não é nada de macumba, tudo é
transparente; aqui não tem história de coisa ruim, Deus e os Encantados agem, mas agem no
meio de quem tem fé. Tem pessoas que chegam aqui amarrada e louca e pela fé em Deus fica
curada”. A senhora que acabara de fazer o atendimento não quis se identificar.

Entre os Pankararu o ato de benzer é bastante disseminado e trata-se de um pedido,


como uma oração, para que um Encantado intervenha na doença de uma pessoa.
Nesse caso, quem reza – o rezador ou a própria pessoa – está presente e é o
responsável pela intermediação entre o mundo “espiritual” e o “material”,
124

procedimento que só é aplicado em casos que podem ser solucionados com


intervenções mais superficiais (LOPES, 2011, p. 65).

O trabalho de Mesa é bem distinto do benzimento: são encaminhados à Mesa de


cura os casos complexos que exigem uma concentração maior e requer mais tempo do
curador. Na abertura da Mesa de cura sempre são invocadas as forças protetoras dos
Pankararu69 que se misturam a invocações do catolicismo ao catimbó. É na mesa que os
“curadores” fazem o chamamento dos Encantados para dar instruções para a cura dos doentes.
Normalmente as curas acontecem em dia de sábado, porém não há dia específico para fazer a
cura, depende da necessidade de quem procura.
A Mesa é formada por um, dois ou três pais de Praiá (“curadores”) na casa mesmo
ou na casa de oração. Uma cinta (um pedaço de tecido) de Praiá é estendida no chão e cada
um pega o seu campiô (cachimbo tubular feito da raiz da jurema). Uma cruz de alho é feita no
tecido e em cada bico da cinta se coloca um dente de alho e outro no centro do tecido.

Figura 18 – Posição imaginária da Mesa de cura.

Fonte: arquivo pessoal do autor (jan.2016).

69
As forças protetoras são os Encantados, além de alguns santos da Igreja Católica.
125

Figura 19 – Mesa de Cura.

Fonte: Monica Caetano (jan.2015).

Uma cruz imaginária é feita três vezes com o maracá e depois é feito o mesmo
com o campiô; em seguida salda-se as forças encantadas chamando Santa Maria (Santa Maria
Mãe de Deus e mãe do ajucá. Aqui o ajucá é a própria jurema). Cada “curador” chama o seu
Encantado cantando três toantes (música do Encantado). Após a execução do toante, o
Encantado pode chegar ou não. Quando um membro da Mesa termina de cantar o toante é
passado para o próximo, que executa a mesma coisa chamando os seus Encantados de
trabalho.
Em busca de uma compreensão melhor sobre os trabalhos de Mesa me dirigi à
casa da Senhora Maria de Lourdes (67 anos) e ao chegar fui recebido pela própria. Ela me
conduziu a um quarto que continha um pequeno altar com as imagens de Nossa Senhora
Aparecida, a Imaculada Conceição, Nossa Senhora da Saúde, um pequeno crucifixo e uma
vela acesa. O altar estava ornamentado com uma toalha branca, tinha um copo de água, alguns
dentes de alho roxo, um pequeno pilão, vários campiôs e diversas sementes.
No referido ambiente, estavam em repouso maracás, raízes e folhas de ervas
usadas para chá, banho e defumação; cada erva tinha um leve perfume característico. A
senhora, sempre bem receptiva, começou a explicar em que consiste a Mesa: ela é
basicamente composta por uma toalha, com símbolos cristãos. No centro da toalha branca está
uma cruz desenhada e nas laterais, seis castiçais com seis velas. A senhora Lourdes sempre
126

abre a Mesa com as orações do Pai Nosso e da Ave Maria. Ela trajava uma saia composta,
abaixo do joelho, e uma blusa de manga; fumando o campiô, ela defuma a Mesa e em
seguida passa o campiô aos presentes, que ao recebê-lo, fazem o sinal da cruz com o objeto
sagrado e em seguida fumam, obedecendo as normas ritualísticas. O Ato de fumar e partilhar,
é uma forma de proteção no decorrer dos trabalhos. Tal ato não é obrigatório, porém faz parte
do ritual. Aquele que não deseja fazer uso do campiô deve pelo menos fazer o sinal da cruz e
passar para quem está ao seu lado.
A Mesa é formada em círculos sempre no chão. No período em que estive no
Brejo dos Padres foi possível observar que há duas situações de abertura de Mesa: na Mesa
em espécie de toalha estendida no chão, os participantes têm participação circular e em
sentido horário, todos devem está descalços e sentados no chão. Essa Mesa pode ser
deslocada para outro ambiente, desde que se obedeçam todos os critérios do ritual. Já a Mesa
fixa está em um ambiente determinado e apropriado para esse fim. Nela os participantes ficam
de pé, seguindo as orientações de vestimentas e com os pés sem calçados.
Os participantes ficam sempre de frente para a Mesa em sinal de respeito e
confiança para com as forças Encantadas. A mulher, quando está no período “vermelho”
(período fértil), fica impedida de participar de qualquer ritual: não pode participar dos
trabalhos, submete-se a banhos de limpeza espiritual e não pode sequer cruzar o ambiente
sagrado da Mesa ou do Terreiro. Caso isso ocorra, a mulher corre o risco de sofrer
hemorragia.
Obedecidos aos protocolos litúrgicos, a mãe de Praiá descalça, fez o chamado do
seu Encantado com um toante próprio invocando o mestre Andorinha. A Mesa é sempre
aberta para pedir proteção, cura, orientação para tomada de decisão profissional, pessoal,
viagem, entre outros. A Mesa pode orientar e acompanhar os Pankararu na formação ou na
iniciação das ciências recebidas através dos Encantados. Há comunicação dos Encantados que
orientam os índios e não índios. Após a comunicação seguida por defumação, os trabalhos são
fechados com o canto de outro toante. Os versos dos toantes invocam sempre o nome de
santos católicos como, por exemplo Santa Terezinha e a virgem Maria. Após participar do
ritual, eu perguntei à senhora Lourdes o que significava fazer o ritual da Mesa de cura e ela
disse:

É o que você acabou de presenciar aqui. O ritual da Mesa é uma coisa sagrada; é
quando a gente tem o contato direto com os Encantados. É uma sensação muito boa:
a gente fica em um estado de dormência no corpo inteiro, a radiação (incorporação)
acontece e a gente fica como se estivesse dormindo e os Encantados agem através do
corpo e da mente que se comunica com os presentes, que geralmente estão em busca
127

de uma resposta para os seus problemas. Geralmente vem em busca de fazer a cura.
Muitas vezes os participantes após a cura por livre e espontânea vontade oferecem
alguma coisa para os Encantados, pode ser um pagamento de prato, que é o
oferecimento de um animal como: carneiro, boi ou galinha para a comunidade no
terreiro. A paga do prato pode ser com a presença dos Praiás no terreiro ou não.
Pode ser também somente com os participantes que receberam a graça (a cura), com
seus familiares e mais doze homens que participam dos pratos. A alimentação
sempre é feita obedecendo-se as normas da aldeia, não pode ser feita de qualquer
maneira, pois há a forma correta de matar os animais ou aves, tirar o couro do
animal e cortar a carne que será servida aos participantes. A carne é servida com
pirão e arroz, fazendo-se uso do sal virgem, corante e coentro. O arroz é feito
somente na água e no sal. O prato é servido em prato de barro e para acompanhar é
servida a garapa com pão. Após o preparo dos pratos, a alimentação é levada ao
poró, para ser feito a entrega do prato ao dono, que é um Encantado: aquele que
auxiliou na cura de quem pediu. No poró os pratos são colocados em forma de cruz
para depois serem servidos aos participantes. Depois da entrega do prato, é feita a
abertura de Mesa, para dar início aos trabalhos daquele momento. A abertura da
mesa ocorre em forma de agradecimento pela graça alcançada, não tendo hora para
encerrar os trabalhos de mesa. Ao fazer o fechamento da mesa, é dado início ao toré
até o raiar do sol. Com o raiar do sol se fecha os trabalhos do toré, finalizando-se e
dando graças a Deus e aos encantados da mãe de Deus por esse momento. Quem
abre a Mesa é sempre o dono do salão, que pode ser homem ou mulher, o que
importa é ter a capacidade de administrar dignamente o ritual, pois não é para
qualquer um, precisa seguir rigorosamente os princípios estabelecidos pelos
Encantados. Quem vem auxiliar na mesa? Há muitos mestres que vêm em auxilio de
quem está chamando para fazer os trabalhos de cura. Há uma variação de quem
busca a cura e quem auxilia na cura realizada pelos índios. Sempre se chama Santa
Maria, que é a mãe de Jesus. Na ocasião se fazem presentes diversos Encantados de
luz que auxiliam na cura. Após os trabalhos propostos, termina-se com o
levantamento da mesa para os bons mestres descansarem dos trabalhos prestados a
quem procura. A procura sempre é feita por pessoas que já buscaram diversos outros
meios e não encontraram a cura para os seus males, mas é na mesa que a pessoa com
fé, encontra a cura para a sua doença. Sempre precisamos pedir discernimento,
sabedoria e ciência. (Maria de Lourdes, 67 anos).

Figura 20 – Adolescente indígena com prato.

Fonte: arquivo pessoal do autor (jan.2016).


128

TOANTE DE ABERTURA DE MESA DE CURA

“Ô São Vicente ele é curador, ô São Vicente ele é curador,


Cura o inocente e também cura os pecador.
Ô São Vicente ele é curador, ô São Vicente ele é curador,
Cura o inocente e também cura os pecador.
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená

Ô Mestre Guia nos dê licença eu chamar, o batalhão.


Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená

Eu tô chamando o capitão Dandadoré,


Eu tô chamando o capitão Fernando.
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená

Eu tô chamando o mestre Xucunhum,


Eu tô chamando o mestre Mangangá.
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená

Eu tô chamando o mestre Capriá,


Eu tô chamando Jacuricibinha.
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Eu tô chamando os homens das flores,
Tô chamando o mestres das primeiras águas.
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená.
Eu tô chamando a rainha das águas,
Eu tô chamando a rainha da mata virgem,
Eu tô chamando toda força encantada.
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
Ourreovê ourreovê ourrevê ouverreovê ourreovê ourreovaê ourrevená
E viva Deus e viva a força encantada e viva todos os pontos de luz e viva os filhos
de Deus, que Deus proteja a todos nós” (Cacique Zé Auto. Setembro de 2016).

Nesse processo ritualístico são realizadas as curas e o espírito causador da doença


pode incorporar no doente tentando não sair. Quando isso ocorre, o rezador tem o poder de
suspender e, seguindo a orientação do Encantado, dar a garrafada para bloquear o canal de
entrada do espírito do mal. Esse ritual é realizado em três dias. Se não conseguir a cura nesses
três dias, o Encantado vai determinar o que deve ser feito: pode ser que o Encantado peça para
colocar o menino no Rancho, no Terreiro ou na queima do Cansanção. Os casos que não são
resolvidos na Mesa de cura e que são encaminhados são os mais pesados.
129

Para as curas na Mesa não se cobra nada, apenas se pede que a família do doente
leve três pacotes de fumo (cada pacote pesa 30g), três quilos de açúcar e três cabeças de alho,
ou seja, o material usado nas curas são nove pacotes de fumo, nove cabeças de alhos e nove
quilos de açúcar. O alho é para cruzar a Mesa, o açúcar é para fazer garapa e o fumo é para
defumar e curar o doente. “O fumo é a planta sagrada e é sua fumaça que cura as doenças,
proporciona o êxtase, dá poderes sobrenaturais, põe o pajé em comunicação com os espíritos”
(BASTIDE, 1945, p. 202).
Após os trabalhos de Mesa, ela se fecha, sendo invocado o mesmo Encantado
chamado durante a sua abertura; nesta abertura de Mesa foi pedida a ajuda do capitão
Dandaruré.

TOANTE DE FECHAMENTO DE MESA

Vamo, vamo vamo-nos embora


Vamo vamo, vamo-nos embora, com Deus na frente e Nossa Senhora,
E vamo, vamo, vamo-nos embora,
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo, vamo-nos embora, com Deus na frente e Nossa Senhora
E vamo, vamo, vamo-nos embora
Ô Mestre Guia nos dê licença
Ô Mestre Guia nos dê licença
Que nós já vamo, vamo-nos embora
Com Deus na frente e Nossa Senhora
E vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo capitão Dandaduré
E vamo, vamo capitão Fernando
Vamo, vamo, vamos-nos embora
Vamo, vamo Mestre Chucunhum
E vamo, vamo Mestre Manuel Brabo
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Com Deus na frente e Nossa Senhora
E vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo Mestre Capriar
Vamo, vamo, Jacuriciba
Vamo, vamo, mestre Chofreu
Vamo, vamo, Mestre Vivim
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Com Deus na frente e Nossa Senhora
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo, mestre das flores
Vamo, mestre das primeiras águas
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Com Deus na frente e Nossa Senhora
Vamo, vamo, rainha das águas
Vamo, rainha da mata virgem
Vamo toda força encantada
Vamo, vamo, vamo-nos embora
130

Vamo, vamo, vamo-nos embora


Com Deus na frente e Nossa Senhora
Vamo, vamo, vamo-nos embora
Vamo, vamo pra aldeia mestre
Vamo, vamo pra Jerusalém
Vamo pra igrejinha de Nazaré.

6.1 O Catimbó

O catimbó popularmente é visto como um seguimento religioso voltado para a


prática do mal. No entanto, a ignorância prevalece no que se refere a esse seguimento. Roger
Bastide define muito bem o que é o catimbó e sua origem.

O catimbó é de origem índia. Sem voltar às descrições antigas da pajelança e aos


primeiros contatos o catolicismo e a religião dos índios, inclusive àqueles
fenômenos de “santidade” que conhecemos tão bem através das informações do
Tribunal do Santo Oficio, sem tentar traçar a genealogia histórica do catimbó,
encontramos ainda hoje entre o puro índio e o homem do Nordeste toda a gradação
que nos conduz pouco a pouco do paganismo ao catimbó da Paraíba (BASTIDE,
1945, p. 202).

O catimbó é a fusão das práticas de pajelança com o catolicismo. A atividade


xamanica aos poucos vai sendo diluída em outras práticas religiosas impostas aos indígenas,
sendo preservado o uso do tabaco, raízes, folhas e sementes. Um dos elementos principais do
catimbó é o uso da defumação nas curas, uma prática comum entre os Pankararu: quando não
se usa o fumo, usa-se as folhas do alecrim de caboclo, com sementes de umburana de cheiro
e a raiz da jurema. Esse conjunto de ervas auxilia no estado de transe do “curador”, que
recebe o Encantado para realizar as curas na Mesa.
Para a realização do ritual, não é necessário um grande espaço; muitas vezes é
feito no quarto, ou em um canto da sala da casa do “rezador, curador ou catimbozeiro”: é
instalado um pequeno altar composto por algumas estátuas de santos, caboclos, moedas,
cocar, alho, crucifixo enfeitado de fitas de diversas cores, água benta, cordão de São
Francisco, velas, maracá, terços, praiás, fumo, cachimbo, garrafadas (garrafas de cachaça ou
vinho com raízes, sementes, folhas de ervas) usadas na cura dos frequentadores da casa do
“rezador”.
Se uma pessoa que não é índio procura a Mesa de cura, é porque foi indicada por
alguém que já recebeu a cura de doença ou de outros males, ou até mesmo procura para uma
orientação nas tomadas de decisões. Há pessoas, possuídas por espíritos maus, que chegam
amarradas e trazidas por familiares. Muitos desses espíritos maus são entidades desconhecidas
131

para os índios ou não se identificam no trabalho de cura. Muitos são violentos, causam
desordem, cospem nos presentes, pronunciam palavras ofensivas, exalam odor forte (às vezes
com cheiro de carne podre, fezes, pólvora, enxofre, ou outros odores), pedem álcool, cigarro
ou até mesmo sangue, agridem quem está próximo e fazem de tudo para não libertar o
sofredor. Esses acontecimentos ocorrem normalmente com os que não são índios, mas isso
não significa que não ocorra também com os índios: muitos homens e mulheres canalizam
esses seres invisíveis, que tomam formas e agem de maneiras maldosas.
Em trabalhos de cura na aldeia do Brejo dos Padres, foi possível acompanhar a
cura de uma mulher, que segundo informações dos familiares, já havia buscado alívio para os
sofrimentos em diversos outros lugares e não havia conseguido nenhuma mudança. A família
já tinha levado a doente em diversos médicos e psiquiatras de diversas regiões do Brasil.
Ao chegar à aldeia, ela foi conduzida a um pai de Praiá, que buscando respostas
para o sofrimento, logo interrogou: “por que só agora que vocês estão procurando alívio para
essa pobre sofredora? Aqui não tem nada de médico. Vamos cuidar meu povo! Aqui a coisa
está complicada!”
Imediatamente, o pai de Praiá, pegou o campiô, uma cinta (um pedaço de tecido
que faz parte da farda do Praiá e que representa o Encantado), uma cabeça de alho roxo,
fumo, maracá e algumas ervas próprias para o ritual. A mulher começou a ficar agressiva:
chutava os presentes, cuspia, falava palavrões e tentava morder. O “curador” com firmeza
pediu à “possuída” que falasse quem era. Soltando gritos, a mulher partiu para a agressão,
tentando morder e chutando; em seguida caiu no chão e ficou ofegante por um tempo, mas
depois o ambiente foi ficando calmo. O pai de Praiá, com os seus auxiliares, continuou com
os seus campiôs, maracás e cânticos. Em certo momento, o silêncio tomou conta do ambiente
e a mulher, que antes estava caída, se levantou calmamente e perguntou o que estava
acontecendo e que lugar era aquele.
O cacique Pankararu, José Auto dos Santos relata um caso bem semelhante a esse:

Olhe, chegou aqui uma mulher que já tinha passado por Maceió, Recife, Salvador,
Juazeiro da Bahia, Santa Brígida, São Paulo, Aracaju e por diversos médicos,
terreiros, curadores, rezadores e outras coisas. A mulher dava porrada em todo
mundo; quatro homens não segurava ela. Quando chegou aqui, ela tentou me dar um
tapa; aí o braço dela ficou duro; tentou me dar um chute, ficou com a perna
suspensa; tentou me morder e ficou com a boca aberta. Eu falei imediatamente: “em
nome de Deus eu ordeno que diga seu nome”. Ela falou: “nos outros lugares que
passei, enganei a todo mundo, mas aqui não posso enganar; aqui estão me obrigando
a me dizer. Aí disse quem era. Eu fiz o trabalho porque o homem do comando tinha
me dito: “pegue o trabalho, eu estou ao teu lado;” por isso que eu peguei. Foram três
dias de trabalho, mas foi resolvido.
132

O espírito era tão manhoso que repetia as mesmas orações que fazíamos. Por
exemplo: Quando eu rezava o Credo ele rezava junto, quando cantei a oração de
Nossa Senhora, ele cantou também. Tudo isso para enganar. E ainda dizia: “eu
também sei cantar e rezar” e ficava mangando.

O mesmo informante relata uma experiência vivenciada na sua juventude, que


presenciou e que teve participação direta no acontecimento e somou às suas experiências de
vida e de liderança na aldeia:

Estávamos estudando. Ao terminar a aula, cada índio foi para as suas casas. Saímos
todos juntos. Ao passar em uma encruzilhada, uma moça caiu de todo corpo no
chão, caiu emborcada. Aí pegamos ela, levamos para a casa de um curador. O
curador tentou, tentou e não conseguiu curar. Eu fiquei lá um pouco, depois fui
embora pra casa. Quando eu cheguei na minha casa, aí chegou o encantado e me
disse: “vá lá com esse toante cantando até a casa dela e volte cantando de volta, aí
você vai conseguir”. O curador, que tinha tentado a cura, puxou pra ele a coisa ruim.
Imediatamente o curador caiu no chão e começou a sangrar: passou três dias
evacuando sangue. Aí eu fui lá e puxei novamente e ela ficou boa. Depois disso,
tivemos que fazer o trabalho de mesa com ela. Aí o coisa ruim chegava, ficava rindo
pegava na minha mão e ficava alisando, como fosse uma mulher, mas na verdade era
um espírito do mal, porque um espírito bom não causa sofrimento; quando vem,
vem para ajudar e não para fazer o que fez.

Os Encantados estão organizados em estruturas militares ganhando títulos de


capitão. Em outros momentos, outros recebem o nome de mestres70 e nessa organização, se
tem os superiores e os subordinados: há quem manda e quem obedece. Não se sabe como essa
organização foi formada e sim como eles agem quando são chamados.
Dandaruré tem um batalhão de cura especializado: diante da necessidade o
membro do batalhão que tem a capacidade para resolver aquela demanda entra em ação. Cada
chefe só entra em ação quando os seus subordinados não conseguem. Por exemplo: o zelador
que cuida do Capitão Dandaruré na Mesa de cura recebe as coordenadas para o trabalho,
porém quem está no comando é o capitão. Os movimentos do corpo, gesto, fala e ações são
usadas para a cura. O pai de Praiá ou zelador obedece apenas às ordens que recebem, ou seja,
cada índio escolhido tem o mestre de frente de cura. Outro exemplo é o Encantado Beija Flor,
que manda no caboclo chamado Meia Noite:71 ele dá autorização limitada para Meia Noite
curar, caso ele ultrapasse os limites, o chefe lhe tira o poder de cura.

70
O título de mestre é usualmente visto nos rituais de catimbó.
71
Na Umbanda há um Exu de nome Meia Noite que pertence à Linha das almas que está a serviço de Xangô.
Esse Exu trabalha muito com as Pombas Giras. É conhecido também como grande feiticeiro, abrindo e fechando
caminhos. Acumula também o título de guerreiro.
133

6.2 A Jurema nos rituais

O ritual da Jurema é realizando para auxiliar o pai de Praiá ou a mãe de Praiá a ter
um contato direto com os Encantados e caboclos.72 Através da bebida é possível o contato
imediato. Para fazer a jurema, é preciso ter conhecimento, obedecer e respeitar a ciência certa
utilizada para a sua produção, pois não é feita de qualquer forma. A jurema é sagrada e ajuda
o caboclo a ter um contato mais próximo dos Encantados. Para fazer o ritual da jurema73, é
necessário pedir licença para colher a raiz ou a casca. Deve-se obedecer a forma correta de
fazer a coleta para preparar a bebida.
A raiz da jurema apresenta uma coloração avermelhada de sabor travento
(travoso, ácido). Ao colher-se a casca ou a raiz, é preciso saber qual é o objetivo: se é para
ficar de pé com forças ou se é para cair. Para cada ocasião há um ritual correto a ser realizado.
A descrição da forma correta da colheita não foi permitida relatar, apesar de ter participado de
todo processo da colheita, confecção e consumo da bebida.
Após a bebida pronta, ela passa pelo ritual do batismo, que é feito com palavras
próprias para o momento e é defumada com os campiôs cruzados com os maracás e em
seguida é servida para os mestres participantes do ritual em coité.74 Primeiramente, o mestre
da Mesa ou do Terreiro se serve, e em seguida, serve os presentes. A defumação é feita com
ervas como alecrim de caboclo, sementes de umburana de cheiro, quebra faca (conhecido
como pitó) e a catinguinha de cheiro, também se usa a semente de umburana de cheiro,
semente de alfazema e alecrim de vaqueiro. Todas essas ervas são utilizadas juntas no campiô
para a defumação.75
No batismo da bebida da jurema, se encruzam os campiôs e os maracás, neles
estão a força e a ciência para o desenvolvimento dos trabalhos para os bons mestres
trabalharem. Os presentes são os acompanhantes do trabalho que está sendo realizado. Podem
participar apenas pessoas iniciadas na ciência do conhecimento da jurema, ou seja, o ritual
não é aberto para qualquer pessoa.

72
Esse personagem no universo ritualístico é a presentado como feiticeiro conhecedor da cura através das ervas,
índio flecheiro que defende quem o invoca.
73
Segundo Luiz Assunção o culto da jurema, o índio representa o primeiro habitante da terra brasileira, um
morto ancestral. É uma imagem de um personagem distante e abstrato, identificado pela ideia de “selvagem e
forte” (ASSUNÇÃO, 2011, p. 183).
74
O coité pode ser feito com casca de coco, que em algumas aldeias é conhecido como quenga, ou em cuias de
pequenas cabaças.
75
O conjunto das ervas ganha o nome de braia.
134

Para realizar-se o ritual, se inicia com o toante da jurema, todos os mestres da


jurema e todas as linhas são chamadas através do toante da jurema, que faz parte do Juremar
(o Juremar é uma força encantada). O ritual é feito com orações próprias permitidas por Deus:
é ele quem dá permissão para iniciar os trabalhos de curas, libertando os homens e mulheres
de males acometidos e de doenças que possam ser curadas pelos encantos de luz, tendo
sempre presente a força maior de Deus.
Não existe um tempo determinado para a realização da jurema, porém o ritual é
praticado para dar forças aos Mestres Guia que oferecem a força e a passagem de luz e de
sabedoria para fazer com quer o trabalho tenha sucesso. Quando os mestres chegam à Mesa
acontece a cura espiritual e material. Com a presença dos mestres é possível saber quais as
plantas medicinais que devem ser usadas para a cura dos males que afligem aquele que
necessita.
Geralmente os mestres da jurema que vêm em auxilio são caboclos das matas, que
têm o conhecimento das plantas medicinais e que podem curar quem procura e tem fé. Sem fé
não existe cura alguma: não adianta ninguém buscar a cura sem a fé; quem age assim está
perdendo tempo, e às vezes, é motivo de descrenças para outras pessoas.

Toante da Jurema Cantado no ritual:

No reinado da jurema, às 6 horas acende a luz, valei-me Nossa Senhora e o coração


de Jesus.
Valei-me Nossa Senhora e o coração de Jesus. Reina, reina naô.
Reina, reina ou,
No reinado da jurema, às 6 horas acende a luz valei-me Nossa Senhora e o coração
de Jesus.
No reinado da jurema, às 6 horas acende a luz valei-me Nossa Senhora e o coração
de Jesus
Reina, reina, reina naô.
Reina, reina, reina naô.
Ou La no mato ou tem um pau que ele se chama seu juremeira, tem a flor branca e a
semente preta é o pau da ciência
oulêtirar ou tiralandoa , ou tiralandoa
oulêtirar ou tiralandoa , ou tiralandoa
oulêtirar ou tiralandoa , ou tiralandoa.

6.3 A influência dos orixás entre os Pankararu

No universo sincrético brasileiro transitam diversas divindades, com suas


variações, funções e poderes e que se juntam ao imaginário de seus seguidores. Além do que
já é conhecido por muitos (orixás, baianos, pretos velhos, marinheiros, encantados, ciganos,
135

boiadeiro76, caboclos, exus), surgem no cenário regional do Nordeste alguns cangaceiros do


bando de Lampião. As manifestações destes ocorrem mais em terreiros da zona rural do
Sertão de Pernambuco, Alagoas, Bahia e nas casas de Catimbó de caboclo.

A matriz cabocla foi inteiramente absorvida pela umbanda, que na forma é um


candomblé de caboclo, mas que contem uma elaboração ética da vida que separa o
bem do mal nos moldes kardecista, completamente ausente na tradição cabocla e que
fez da umbanda uma religião diferente e autônoma (PRANDI, 2011, p. 123).

Na crença das religiões de matriz africana existem divisões nas funções ou


correntes de trabalho dos Orixás e de seus auxiliares. Assim, encontramos Caboclos,
Boiadeiros, Marinheiros, Ciganas, Pombagiras, Exus, além das divindades africanas.
Os Caboclos pertencentes à linha de Oxossi trabalham fazendo o bem. Eles são
representados pela falange de São Sebastião e São Jorge, mas isso depende da região
geográfica brasileira: há região em que Oxossi é conhecido na figura do mártir São Sebastião
ou do guerreiro São Jorge. Na linha das águas, temos Iemanjá, Oxum e Marinheiros. Nas
águas salgadas imperam Iemanjá, Marinheiros e Oxum,77 é a senhora das águas doces.
Mamãe Oxum “pelo sincretismo religioso formado no Brasil, desde a escravidão negra,
envolvendo cultos africanos e o catolicismo, é representada por Nossa Senhora da Conceição
e por outras variações de Nossa Senhora” (SILVA, 2014, p. 29).
Sendo o Brasil de grandes extensões territoriais, Oxum é conhecida por outros
títulos atribuídos a Nossa Senhora. Nesta grande gama sincrética, muitos Orixás receberam
nomes de santos católicos, para não ter problemas com a religião oficial do Brasil Colonial.
Os escravos, nas senzalas, cultuavam os seus orixás deixados no continente africano usando a
imagem do santo de devoção do seu dono ou de outra pessoa que fora colocada na Senzala
para ser cultuada.
Sabiamente, os africanos desconhecendo os feitos do santo, se voltavam para os
seus ancestrais que conheciam e o reverenciavam nos momentos de orações. Com isso, não
abandonaram as suas crenças. Assim, assimilaram alguns orixás aos santos católicos como:

76
Na visão da professora Maria Helena Concone o boiadeiro seria uma variante sertaneja do caboclo
(CONCONE, 2011, p. 283 apud PRANDI, 2016).
77
Oxum é um dos orixás femininos de grande destaque na umbanda e no candomblé. Ela representa a grande
mãe fecunda e é a divindade do cobre e do ouro. Ela é filha de Iemanjá, que é rainha dos oceanos.
136

Quadro 8 – Santos católicos e orixás


Santo Católico Orixá
Sant’Ana Nanã
Deus Pai, Jesus Cristo (Senhor do Bom Fim). Oxalá
Moisés, Santo Antônio, São Jerônimo, São Pedro, São Francisco, São João Batista, Xangô
São Pedro e São José.
Santa Bárbara e Santa Joana d’Arc. Iansã
São Jorge e São Sebastião Oxóssi
Santo Antônio e São Jorge Ogum
São Lázaro e São Roque Obaluaiê
Santa Catarina, Santa Joana D’Arc e Santa Marta Obá
São Miguel Arcanjo e Santo Expedito Logum
Virgem Maria, com seus diversos títulos, principalmente Nossa Senhora da Conceição, Iemanjá
Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora dos Navegantes.
São Cosme e Damião, Santos Crispim e Crispiniano Ibejis
São Bartolomeu Oxumaré
Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora das Cabeças, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Oxum
Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Lourdes e Nossa Senhora de Nazaré.
Fonte: informações recolhidas de Ademir Barbosa Júnior (2013, p. 28-40). Tabela adaptada pelo autor.

Xangô tem a função de promover a justiça entre os homens. Há momentos em que


não se deve pedir o auxilio de Xangô para alguns problemas porque ele, sendo justo, pode
tomar decisões que desagradem o pedinte, isso porque a justiça deve sempre prevalecer. A
cada pedido há uma análise imparcial chegando à conclusão justa. Evitar o pedido a Xangô é
melhor do que submeter-se à sua justiça, porque nem sempre quem pede está com a razão.
Os Baianos são ótimos para a execução de trabalhos: trabalhos como arrumar
emprego, namoro e tantos outros. Os Baianos trabalham pela direita e pela a esquerda, são
especialistas em promover encontros amorosos levando futuramente ao casamento, como
também podem desmanchá-lo. Ao contrário de alguns Exus sem consciência, eles fazem uso
plenamente da consciência, ou seja, eles sabem perfeitamente o que estão fazendo.
Os caboclos atendem as solicitações dos seus discípulos sempre sem fazer
cobrança alguma de oferendas. Eles trabalham com ervas medicinais na forma de chá e
banhos. Há terreiros que não prescrevem chá, somente os banhos. Isso pode ocorrer por medo
das pessoas não compreenderem a língua dos caboclos, que é uma linguagem arcaica e tribal,
deixando essa função para os pretos velhos, que têm origem africana, mas a camboni 78 exerce
essa função servindo os Orixás e prescrevendo os remédios.
A linha de Boiadeiros está pautada para a linha de descarrego do Terreiro, dos
filhos do terreiro e dos visitantes. O Boiadeiro é o homem forte do sertão capaz de viver nas

78
Pessoa habilitada e conhecedora da língua dos Caboclos. Esse cuidado ocorre para evitar erros de remédios.
Nos Terreiros não se admitem erros. Cada Terreiro está ligado a uma federação que fiscaliza o andamento dos
Terreiros. Nos Terreiros há livros de atas e ponto, assinados pelo Babalorixá ou Ialorixá seguido pelos médiuns e
visitantes.
137

diversidades climáticas e cuidar do rebanho bovino, por isso, no Terreiro, faz essa função
devido a experiência vivenciada na caatinga do Nordeste.
Os Orixás, na sua maioria, têm uma comunicação verbal com os filhos do
Terreiro, e também para com os frequentadores que buscam soluções para os seus problemas.
Há Orixás que não falam, mas têm sua função no Terreiro, a exemplo do Obaluaê:79 quando
ele chega ao Terreiro pode até tocar no doente e realizar a cura em silencio e não revelar a sua
identidade, pois sempre está de rosto coberto. Ele é representado no sincretismo por São
Lázaro.

Obaluaê era um menino muito desobediente. Um dia, ele estava brincando perto de
um lindo jardim repleto de pequenas flores brancas.
Sua mãe lhe havia dito que ele não deveria pisar as flores, mas Obaluaê desobedeceu
à sua mãe e pisou as flores de propósito. Ela não disse nada, mas quando Obaluaê
deu-se conta, estava ficando com o corpo todo coberto por pequenas flores brancas,
que foram se transformando em pústulas, bolhas horríveis.
Obaluaê ficou com muito medo.
Gritava pedindo à sua mãe que o livrasse daquela peste, a varíola.
A mãe de Obaluaê lhe disse que aquilo acontecera como castigo porque ele havia
sido desobediente, mas ela iria ajudá-lo.
Ela pegou um punhado de pipocas e jogou no corpo dele e, como por encanto, as
feridas foram desaparecendo.
Obaluaê saiu do jardim tão bom como quando havia entrado (PRANDI, 2016, p.
204).

O Senhor Omulu é o rei do Cemitério: tem a função de proteger o cemitério e os


que nele habitam. Quando o visitante ao entrar neste ambiente, se não pedir a permissão, ao
sair do cemitério pode sair na companhia de um Egum (morto), podendo causar doenças e
discórdias na família. Um Egum pode atingir muita gente com suas atitudes, inclusive
podendo causar a morte de pessoas, de modo especial se a morte dele foi causada por acidente
ou suicídio.

6.4 Encantados e Obaluaê: a influência dos Exus

Entre os Pankararu existe quem trabalhe com a força Encantada e com Exu,80
embora essa prática não seja aceita pelas famílias tradicionais que detém a liderança na

79
Reginaldo Prandi, no seu livro “Mitologia dos Orixás” (2016), mostra Obaluaê como : Omulu, Xapanã e
Sapatá.
80
Exu foi confundido com Satanás ou Lúcifer, o Anjo Caído. No panteão iorubano, essa associação, além de
ofensiva, é absurda, pois Exu não está em oposição a Deus, nem é personificação do mal; pelo contrário, reger a
materialidade garante o equilíbrio entre o mundo físico e o espiritual (CORRAL, 2010, p. 38).
138

comunidade. A imagem do Exu 81 não é exposta como fica a dos Praiás e as imagens dos
santos reverenciados entre eles. Interrogando um pai de Praiá sobre a imagem de um Exu na
sua Mesa, ele é categórico a afirmar que “se faz necessário o trabalho da esquerda para dar
firmeza no trabalho. Existe trabalho que é preciso a colaboração de um Exu”. Ao perguntar ao
informante se o Exu faz parte dos Encantados ele respondeu que “não, isso é coisa dos
africanos. Sei que os nossos Encantados são índios que não morreram e estão perto de nós,
mas precisamos do Exu pra fazer o trabalho que os Encantados não fazem”. A prática do
trabalho com o auxilio do Exu não é comum entre os membros da etnia, sendo rejeitado pelos
membros do tronco velho (família tradicional).
O fato de afirmar que não se trabalha com espírito de mortos distancia-se da
crença da Umbanda e do Candomblé, reafirmando uma crença nos seus ancestrais. Os
Encantados estão ligados à família ancestral e quando invocado, vem para auxiliar na cura ou
em qualquer outra necessidade. Às vezes, nas sessões de cura, o pai de Praiá recebe o espírito
de um familiar falecido, que vem para transmitir uma palavra de conforto e consolo. O fato é
aceito porque reconhece quem é e não tem objetivo de fazer o mal a ninguém e às vezes
realiza cura no momento da manifestação. As entidades enriquecem o imaginário Pankararu
com os espíritos dos mortos, alimentando assim, o culto doméstico nas aldeias. Para Claudia
Mura, (2012, p. 161), “os espíritos dos mortos são classificados dicotomicamente entre os do
bem e os do mal”.

Os Encantados não são forças desencarnadas – cujas propriedades os índios


associam aos cultos de matiz africana – mas índios que descobriram o segredo de se
encantar; portanto, seriam os próprios ancestrais. [...] Os índios afirmam que os
Encantados, por estarem vivos, são quentes, diversamente dos espíritos, que são
frios. Esta distinção a forma em que se desenvolve o trabalho ritual, pois os
Encantados não podem ser incorporados. A possessão é um fenômeno que se
manifesta apenas com os espíritos e o especialista se encarrega de dominá-los.
Diferentes em poder e natureza, o discurso construído com base na dicotomia
encantada/espírito do morto reforça as fronteiras entre trabalho de índio/trabalho de
negro ou branco. Os Encantados tornam-se, assim, as entidades por excelência para
os indígenas quando demarcam a própria identidade, mesmo que não se excluam a
presença e a eficácia das outras até durante os trabalhos de cura (MURA, 2012, p.
166).

Entre as famílias do tronco e da ponta de rama existe uma discussão sob a ótica de
novos valores, deixando espaço para a discussão entre Encantados e Orixás. O tronco velho
afasta-se da possibilidade do culto ou invocação dos Orixás ou espírito dos mortos. Tal
distanciamento ocorre para não serem “contaminados” com espíritos dos mortos, que podem

81
Os Exus de Umbanda são espíritos de diversos níveis de evolução espiritual, que incorporam nos médiuns e
interagem de diversas formas com os seres humanos (Ibidem).
139

fazer o bem ou o mal. Para o tronco velho nem sempre o “médium” tem o domínio completo
do espírito do morto, que na maioria das vezes vem para enganar nos trabalhos da cura de
mesa.
A identificação do falso Encantado é feita através da linguagem, dos gestos e das
ervas no momento da cura. Entre os Pankararu, existe um padrão para as ervas usadas nos
banhos, nos chás e na purificação do ambiente. O falso encantado é identificado também pela
maneira que prescreve o tipo de ervas e como as ervas devem ser usadas. Quando o pedido é
identificado de forma diferente do habitual, não é executado. Compreende-se que é a força do
mal que está ali para enganar as pessoas. Entre os Pankararu existe a crença em uma jovem
conhecida como Lianô, que representa os Encantados de esquerda. Segundo a crença, o pai de
Lianô saiu para caçar. Na caçada matou uma juriti (pássaro pertencente à família das
Columbidae). A jovem estava no período menstrual, sendo proibida pela mãe de comer o
pássaro. Contrariando as orientações da genitora, Lianô, escondida, comeu a ave. Após o
consumo nasceu no corpo da moça penas da cor da juriti; ela começa a correr e gritar,
desenvolvendo sinais de loucura. Lianô, por desobedecer normas morais da etnia, ficou
louca. Os familiares a levaram a diversos rezadores, não sendo curada por nenhum.
No período em que se encontrava impura, não deveria ter comido a juriti, porque
um Encantado conhecido por Juriti não pode ser contaminado com o período fértil da mulher
e o mal que atingira a moça poderia atingir a outras mulheres. Para que a contaminação não
ocorresse era necessário tirar a contaminada da aldeia. Lianô, foi levada a Serra do Morcego,
sendo deixada lá. Desorientada, não retornou à aldeia, mas se ouvia apenas os gritos e
gemidos da transgressora, que se tornou um Encantado (de esquerda), atuando na esquerda e
fazendo o mal aos índios. O local antes conhecido como Serra do Morcego, hoje é conhecido
como Serra de Lianô e sua desobediência levou os Encantados de luz a punir exemplarmente
a jovem, e transmitindo aos demais índios um grande exemplo. A transgressão às normas
morais não são bem vistas pelos índios: mesmo que o Encantado de Lianô apareça na Mesa de
cura, não é aceito, porque a finalidade é transgredir as normas estabelecidas na aldeia, às
vezes ela aparece disfarçada, mas quando é descoberta, seus pedidos não são atendidos porque
estão direcionados à esquerda.

Toante de Lianô

Soi ei uma moça de grande valor


Soi ei uma moça de grande valor
Mas eu venho chegando eu sou a Lianô
Mas eu venho chegando, eu sou a Lianô
140

Também pode ser invocada por algumas pessoas com a finalidade de fazer o mal a
outras, mas quem trabalha com esse Encantado não tem prosperidade. Porém, não é fácil
saber quem vem para fazer o bem ou o mal. A principio, todos procuram fazer o bem. Não se
pode esquecer que, no relato do surgimento dos Encantados, a negação e a desobediência se
fazem presentes desde o seu principio: dizem que uma vez, quando o fumo foi negado a um
Encantado, por castigo, ele transformou o casal em um pé de imbuzeiro e em uma raposa.
O grupo tradicional luta para manter a identidade pura dos ancestrais, porém “a
contaminação” de outras culturas religiosas é inevitável. A começar pelo catolicismo popular,
que desenvolveu forte devoção para com Santo Antônio, Nossa Senhora da Saúde, Nossa
Senhora da Boa Morte e recentemente ao Padre Cícero. Parte das famílias do Brejo dos
Padres desenvolveu devoção também a Pedro Batista e a madrinha Dodô: eles foram beatos
seguidores do Padre Cícero.
É possível pensar que tenha havido um encontro cultural entre a cultura Pankararu
e rituais religiosos africanos. Tal pensamento parte da ideia de que os Encantados Parankararu
têm uma vestimenta própria, que não revela a sua face. Revela-se o nome, porém o rosto não
pode ser visto. Tais semelhanças são encontradas no Orixá Omulu ou Obaluaiê. No
Candomblé, o Orixá se cobre de palhas para esconder suas cicatrizes corporais e na Umbanda,
quando incorporado, cobre a cabeça com uma toalha ou lençol.

Figura 21 – Obaluaê.

Fonte: Google.
141

Figura 22 - Praiá Pankararu.

Fonte: arquivo pessoal do autor.

Os Encantados sempre estão cobertos com uma roupa tecida manualmente de


fibra de croá para não revelar também o seu rosto, sendo identificados pela cinta que trazem
sobre os ombros, cobrindo parte das costas do praiá. Há um batalhão de Praiás que são
identificados por nomes de plantas da região, pássaros, animais e metais. Todos têm a função
de auxiliar os índios que necessitam. Todos esses Encantados tiveram o poder do
encantamento, ou seja, não passaram pela morte; entre eles há o que cuida do cemitério e dos
corpos (almas), que pra lá foram levados para receber a recompensa dos seus atos.
O Brasil, sendo rico em cultura e religião, possui uma infinidade de entidades
espirituais que estabelecem relações mágicas e religiosas através de rituais. Essas entidades
são apresentadas através de incorporações e transes nos médiuns que realizam curas,
conselhos, entre outros trabalhos. Esses acontecimentos são realizados através de Orixás,
Pretos velhos, Marinheiros, Guias de Luz, Caboclos, Espíritos das trevas, Vodus, Ciganos,
Príncipes e Encantados.
142

Em cada lugar há certa devoção, ritual ou costumes seguidos por alguns ou pela
maioria. Nosso país possui uma mescla de religiões, ritos e culturas, pois aqui convivem
muitos povos diferentes, que podem dar muita ou pouca importância à religião.

O mundo sobrenatural é das religiões, da magia, ao qual os homens só têm acesso


parcial, por meio de determinados ritos e cerimônias. Ele é mais ou menos
importante, dependendo da sociedade. Numa sociedade como a nossa, na qual quase
tudo é explicado pela ciência e pelo pensamento lógico e racional, o espaço do
sobrenatural é bastante limitado” (SOUZA, 2006, p. 44).

A devoção ou relação de troca para com esses seres espirituais são estabelecidas
através de promessas ou barganhas: o homem, para ter o seu pedido atendido, oferece sempre
algo à entidade em troca do bem que deseja conquistar. Para os pedidos serem atendidos na
Umbanda, os Exus exercem papel fundamental para a realização desses pedidos, pois são eles
que levam a demanda para o Orixá: ao oferecer uma oferenda ao Orixá é o Exu que lhe
apresenta o presente, ou seja, o Exu82 é o mensageiro que faz a mediação entre os espíritos e
os homens.
Entre os índios Pankararu existe a paga de prato83, que consiste muitas vezes no
oferecimento de um almoço à comunidade local ou pode ser oferecido um cesto de frutas ao
Encantado que colaborou na recuperação de uma pessoa. A paga de prato pode ser também
em forma de agradecimento pelo ano que passou, por não ter tido problemas familiares ou
pela colheita da roça, o que não falta são os motivos para o agradecimento.
De acordo com os relatos mitológicos da umbanda,84 a origem dos Orixás deriva
da mãe d’água mais velha, Nanã85 (Nanã Burucu ou Anamburucu) que é considerada a mãe
de todos os Orixás. Nanã, está associada à Santa Ana, a mãe de Maria, mãe de Jesus. Santa
Ana é reverenciada na umbanda sendo comemorado o seu dia em 26 de junho.
Nanã, sendo a mãe de todos os Orixás, não poderia deixar de ser também de
Obaluaê. Na tradição umbandista, Nanã teve um filho muito doente e coberto de feridas,
sendo posteriormente abandonado pela mãe e acolhido por sua irmã Iemanjá, que o cuidou
82
É responsável pelo transporte das oferendas aos Orixás e também pela comunicação dos mesmos, sendo,
portanto, seu intermediário. Como reza antigo provérbio,“sem Exu não se faz nada”(BARBOSA JÚNIOR, 2013,
p. 45).
83
A paga de prato é o pagamento de uma promessa feita a um determinado Encantado. As promessas são feitas
de diversas formas e diversos valores: vai desde o oferecimento de um almoço para os membros da aldeia e das
outras, como também pode ser o oferecimento de um pequeno pedaço de fita ou vela acesa para iluminar a vida
do Encantado escolhido para realizar a solicitação.
84
A mensagem de Umbanda estende-se pela terra e pelo mar, abençoando e orientanda pelos Orixás trilha
espiritual e religião ecológica, ela valoriza a magia e o poder dos elementos em favor do equilíbrio e da evolução
de cada um do planeta (BARBOSA JÚNIOR, 2013, p. 19).
85
Nanã é um Orixá feminino da pré-história, é a senhora da sabedoria, considerada na Umbanda, a matriarca. O
nome Nanã significa raiz, aquela que se encontra no centro da terra e é o Orixá mais antigo do mundo.
143

com muito carinho e proteção. O filho desprezado era Omulu ou Obaluaiê. Com o passar do
tempo, a criança chagada crescia e tinha compreensão do seu estado físico: percebia que era
diferente dos demais, tinha vergonha das outras pessoas e procurava esconder-se nas matas.
Mediante o comportamento de Omulu, Iemanjá cansada de o procurar nas matas e para
facilitar a busca do menino fujão, amarrou nas roupas dele alguns guizos que produziam
barulhos, facilitando assim a busca.
Com o passar dos tempos, na Umbanda, os Orixás foram assimilados aos santos
da igreja Católica, assim Omulu ou Abaluaiê, foi associado a três santos: São Lázaro, São
Roque e São Brás. Para a igreja Católica, esses santos foram contaminados pela lepra. Na
visão da Umbanda, o Orixá Omulu é o senhor dos cemitérios (Calunga pequena), é o médico
dos pobres e o responsável pela varíola. Antigamente, as doenças de pele eram comumente
chamadas de lepra, porém em 1871, Hansen descobriu o bacilo causador da doença e a lepra
passou a ser chamada de hanseníase. Olhando para o livro de Levítico, vemos que ele reúne
um conjunto complexo de prescrições religiosas, entre elas está prescrito que cabe ao
sacerdote dar o diagnóstico de quem está contaminado pela doença. A tradição buscava a
pureza para o povo e acreditavam que quem estava acometido pela doença tinha praticado
grandes pecados e estava impuro, por isso devia ser excluído da sociedade. A partir dessa
leitura vemos que a religião regula a vida social de uma sociedade.
Na história da humanidade, a lepra é vista como sendo um grande castigo: o
doente era condenado à morte pela sociedade, que não queria ser contaminada pela doença e
pela maldição que poderia recair sobre ela. Omulu, sendo considerado o médico dos pobres,
está subordinado a Oxalá e a ele está subordinado dois poderosos Exus que são: Exu Caveira
e Exu da Meia-noite. O primeiro transmite as ordens de Omulu a mais sete Exus que são: Exu
Tata Caveira, Exu brasa, Exu Pemba, Exu Marê, Exu Carangola, Exu Arranca Tôco e Exu
Pagão. Já o segundo Exu, também repassa as ordens de Omulú a mais sete outros Exus que
são eles: Exu Mirim, Exu Pimenta, Exu Malê, Exu das Sete Montanhas, Exu Ganga, Exu
Kaminaloá e Exu Quirombô. O Exu da Meia-noite ainda comanda o Exu Curador. Cada Exu
tem sua especialidade dentro de uma hierarquia (TEIXEIRA, 2009, p. 27).

6.5 As plantas mais usadas pelos Pankararu

Os Pankararu como tantos outros povos, utilizam as plantas medicinais dentro e


fora dos seus rituais. O homem, em contato direto com as plantas, começou a ingeri-las e
com a ingestão, percebeu que certas espécies causavam alguns efeitos positivos ou negativos,
144

trazendo um bem estar ou mal estar. Com esse experimento, ele foi selecionando o que era
benéfico e maléfico para o seu corpo, tirando da flora o medicamento que precisava. Outras
plantas também foram descobertas como remédio através da observações dos animais:
animais machucados procuravam determinado tipo de planta para se esfregar nas folhas ou
cascas de algumas espécies de plantas; é o caso de alguns animais que machucados, se
esfregavam no pé da copaibeira. Tais animais tinham uma cicatrização mais rápida. Outro
exemplo é quando um cachorro está com problema intestinal e alimenta-se de determinado
tipo de capim.
Com a evolução da história, a sociedade humana foi criando seus especialistas em
remédios, surgindo assim os pajés, bruxos, feiticeiros homens e mulheres, detentores do
conhecimento e da magia do medicamento subtraído das plantas que têm o poder da cura, da
prevenção e de afugentar os males espirituais. O que se sabe, é que pela própria necessidade,
buscou-se nas plantas a cura para as doenças, sendo impossível precisar o início desta busca,
sendo ela atrelada a história da humanidade. Para Amorozo, “o uso das plantas para fins
terapêuticos está inserido em um contexto social e ecológico que vai, de muitas formas,
moldá-lo, de modo que muitas das peculiaridades deste emprego não podem ser entendidas se
não se levar em consideração fatores culturais envolvidos, além do ambiente físico onde ele
ocorre (AMOROZO, 1996, p. 50).
As plantas são usadas com fins terapêuticos e alimentares desde os primórdios
pelas diversas sociedades, evoluindo com o passar dos tempos, chegando à atualidade e
despertando o interesse da ciência para pesquisar seus efeitos, seus princípios ativos e eficazes
no tratamento de doenças. Os colonizadores, ao chegar aqui observavam a relação dos índios
para com as plantas e como eram usadas. As observações foram relatadas na Carta de Pero
Vaz de Caminha,86 enviada ao rei Dom Manuel.87 Na carta ele descreve que os índios se
alimentavam de sementes e raízes e não conhecem o sistema de agricultura porque tudo era
abundante.

Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos... Eles não lavram
nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro
animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste
inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de
si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto,
com quanto trigo e legumes comemos (CAMINHA, 1500, p. 9).

86
A Carta é o documento no qual se tem o primeiro registro escrito das impressões do Brasil, datada de 01 de
maio de 1500.
87
A conhecida Carta a El Rei D. Manuel.
145

Depois dessa descrição o padre José de Anchieta, através das suas observações,
descreve ao superior geral da Companhia de Jesus:

Ha diversas árvores de frutos excelentes para comer-se, muitos de suavíssimo


cheiro, e de mui deleitável sabor. Uteis à medicina não há só muitas árvores, como
raízes de plantas: direi, porém, alguma cousa, maximè das que são proveitosas como
purgantes.
Há uma certa árvore, de cuja casca cortada com faca, ou do galho quebrado, corre
um líquido branco como leite, porém mais denso, o qual, se bebe em pequena
porção, relaxa o ventre e limpa o estômago por violentos vômitos: por pouco, porém
que exceda na dose, mata. Deve-se, em fim, tomar dele tanto quanto caiba em uma
unha e isso mesmo diluído em muita água: se não se fizer assim, incomoda
extraordinariamente, queima a garganta e mata... Há, além destas, várias outras que
servem muito para soltar o ventre, quanto para o prender. Exceto os frutos de certas
árvores, quase que nenhum remédio eficaz se encontra (ANCHIETA, 1560, p. 15-
16).

As plantas medicinais são usadas de várias formas, sejam elas de usos externos ou
internos, nas formas de chás, garrafadas, emplastos, banhos, lambedores, extratos, tinturas ou
óleos. No Brasil, temos a junção de diversos conhecimentos dos índios, portugueses e negros.
A contribuição de cada cultura foi somando um vasto conhecimento popular presente em todo
o território nacional, não sendo possível afirmar com certeza a quem de fato pertença a
determinada prática curativa.
Nas Mesas de curas dos Pankararu, ou nos seus diversos rituais, é visível o uso de
várias plantas utilizadas nos trabalhos, seja no Terreiro, nos salões, ou casas de orações. As
plantas, divididas em flor, semente, raiz, casca, folha e caule são utilizadas para a cura não só
física, mas também espiritual. O rezador, antes de colher as ervas, pede licença aos espíritos
protetores da natureza para a coleta, porque para ele, tudo tem dono e ninguém deve pegar
nada de ninguém sem a permissão. Às vezes, o rezador na hora da cura verbaliza onde está a
planta que deve ser colhida, pois só pode ser usada aquela planta que foi falada na hora do
pedido da cura. Muitas vezes, determina que um familiar dirija-se ao local indicado ou o
próprio rezador vai à busca do remédio que foi mostrado pelo Encantado que está realizando a
cura. Os Encantados são sensíveis às necessidades dos humanos e os auxiliam nas curas e nas
tomadas de decisões. Para Simoni (2014, p. 47), os índios da terra, também chamados de
caboclos de pena, os destemidos e vigorosos, representam a agilidade, a força da natureza e
estão ligados à cura através das plantas.
Entre os Pankararu, há além dos Encantados, a presença de Marinheiros
Boiadeiros e crianças, que são personagens típicos da região. “A ação do boiadeiro é a
146

representação típica da resistência do sertanejo do Nordeste, homem forte, valente e de força,


que resiste à seca do sertão nordestino” (SIMONI, 2014, p. 49).
Na cosmovisão Pankararu, as forças Encantadas estão próximas das aldeias; Deus
os fez para permanecer de prontidão, defendendo e curando. As forças Encantadas não são
apenas seres que curam, são guerreiros lutadores que não abandonam os índios.
Os rituais não seguem um padrão rígido, há a mesma essência voltada para os
Encantados, as rezas, os toantes próprios para cada Encantado as ervas de cheiro, o fumo, o
campiô, a água, o maracá, a cruz, a semente e a saudação. Cada pai de Praiá tem o seu
Encantado de trabalho, mas isso não significa que não tenha o auxílio de outras forças
Encantadas. Em algumas seções de curas foi possível observa a presença do Preto Velho e
Exu, prática não comum entre os Pankararu.
Os índios do Brasil, no período colonial, além de terem sido prisioneiros
escravizados, foram também obrigados a professar uma nova fé: deveriam deixar os espíritos
das matas, das florestas, das águas e da natureza para abraçar o Deus pregado pelos europeus
e os santos, que representam o modelo de vida para os católicos. Mesmos convertidos, não
abandonaram suas crenças e tradições, mas procuraram adaptar a nova fé às suas divindades.
Com a chegada do africano, nos engenhos de cana-de-açúcar, o encontro cultural e de crenças
religiosas foram inevitáveis. Esse encontro trouxe novas formas de cultos e de protetores. Daí
há a presença de divindades africanas entre os Pankararu, não só seguindo apenas os espíritos
da natureza, mas também as divindades africanas, os santos católicos e o Deus monoteísta.
Muitos índios, após abraçar a fé cristã, adotaram nomes comuns entre os
praticantes do catolicismo vindos de Portugal, como foi o caso de Isabel Dias, filha do
cacique Tibiriçá da sociedade Guaianases (a aldeia ficava na região central da cidade de São
Paulo onde hoje fica o Foro João Mendes), a índia M’bicy, conhecida também como Bartira88:
ela recebeu o batismo católico e adotou o nome cristão de Isabel Dias, casou com o português
João Ramalho e exerceu grande influência na fundação de vilas próximas de São Paulo a
exemplo de Santo André e São Bernardo (RAMOS, 2010, p. 22-23).
A igreja católica presente na nova terra tinha a missão de tornar os nativos em
cristão católicos. Através da catequese recebiam o primeiro sacramento, para depois participar
dos demais. A igreja, por desconhecer o sentido das práticas religiosas, considerava seus
rituais ações que ofendiam a Deus. Aos poucos, os índios vão adotando os ensinamentos e
abraçando a nova cultura, não abandonando por completo os seus hábitos já praticados.

88
Bartira significa plantas com cheiro agradável e de cor exuberante.
147

Muitos Caboclos de penas, ao manifestar-se nas Mesas de cura, falam um


português arcaico, que muitas vezes precisa de uma tradução para uma melhor compreensão.
Muitos são extremamente católicos e expressam ainda as orações e pensamentos do período
colonial trazendo presente, ensinamentos, orações e músicas do tempo da sua catequese,
significando que não há evolução pessoal após o encantamento ou morte. Nos terreiros, casa
de oração ou salão de cura, entre os Pankararu não se usa instrumento de percussão,
instrumento comumente usado pela Umbanda, Candomblé e outras denominações religiosas
de matriz africana. O maracá é o instrumento sagrado para os Pankararu que acompanha o
toré e as curas.
Nas seções de abertura de Terreiro, Mesa, ou qualquer trabalho, se usa o tabaco,
pois sua fumaça purifica o ambiente e o ar, neutralizando o ambiente, afugentando os espíritos
do mal, ou desamarrando qualquer má intenção de outro Terreiro ou casa que queira
prejudicar o andamento dos trabalhos. Não é comum, mas também é praticada a queima de
outras ervas como a palha de alho seca com folha e semente de erva doce.
148

Figura 23 – Criança indígena na aldeia.

Fonte: arquivo pessoal do autor (jan.2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algo há que se dizer sobre o povo Pankararu: é indispensável ao olhar


investigativo perceber o quão há ainda por se fazer enxergar, contudo o jeito de viver e
integrar a natureza com a realidade local desta etnia traz consigo todo um cenário espetacular.
Aos olhares curiosos e atentos torna-se impossível não ser envolvido com seus adornos,
danças e rituais. Apesar de ariscos em sua personalidade, este povo traz a essência dos seus
antepassados, desde o jeito de se vestir e servir a mesa, até o externar suas ideias de ser uma
sociedade acolhedora. Essa sociedade indígena carrega consigo toda uma ideia do que foi no
ontem e “deve ser” no presente, entretanto, para o jovem inserido neste contexto, denota-se
uma crescente renegação das suas origens, vindo à tona o descomprometimento com a
tradição dos seus ancestrais, que por ser um povo rico em sua cultura, sempre despertou
interesse por parte de estudiosos e pesquisadores, trazendo assim sua parcela de contribuição
para a sociedade, com seus costumes, crenças e rituais.
149

Cada indivíduo em si, carrega em seu “eu” um tanto de índio: declaremos nós,
sejamos indígenas ou não, que fazemos parte de uma sociedade que nutre crenças e credos
provenientes da cultura indígena. Trazemos no peito um quê de sou descendente de índio,
valendo ressaltar que todos nós brasileiros somos índios, pois somos frutos desta terra.
Por muito tempo, a ciência pensava que as sociedades sem escrita não possuíam
cultura, mas com o tempo foi possível desfazer-se desse equívoco e desse pensamento que
buscava valorizar apenas as tidas sociedades “evoluídas”. Atualmente, as diversas sociedades
reconhecem os valores transmitidos oralmente e o saber preservado e transmitido por homens
e mulheres, que através da oralidade, transmitem sua cultura a outros, reafirmando a
importância da oralidade e os rituais, as técnicas, os saberes aos poucos são reconhecidos por
outras sociedades que transmitem a história de um povo.
Entre o povo Pankararu há os guardadores dos conhecimentos herdados dos seus
ancestrais que guardam o segredo das técnicas agrícolas, o uso correto das folhas, frutos,
raízes e sementes na cura de todos os males. O velho Pankararu é o conhecedor e capaz de
transmitir às novas gerações o conhecimento não escrito, que transmite suas memórias aos
jovens, perpetuando assim o ser Pankararu. Um exemplo disso é o ponto alto no ritual da
entrega de prato, no qual há a obediência às regras para que tudo ocorra como determina o
próprio ritual e o Encantado ao qual fora prometido; outro destaque se faz necessário: a
diferenciação entre os gêneros neste cerimonial é algo importante a ser dito, pois os homens
são servidos primeiro e as mulheres e as crianças por último, não havendo igualdade entre os
participantes, além da disciplina apresentada. Contudo, o princípio a ser de fato observado é a
renovação da fé nos Encantados e na força encantada.
Em princípio, as manifestações dos Encantados ocorrem através de sonhos, nos
quais comunicam o seu desejo de ter um índio agraciado pela escolha de ser um zelador de
Praiá. Caso esses contatos persistam, o Encantado vai dando as coordenadas ao escolhido, até
que em certo dia, ele revele a semente da ciência e onde ele a encontrará. Depois dessa
revelação, o Encantado ensinará ao futuro pai de Praiá a sua música, que é a sua identidade e
que será cantada na hora do levantamento do Praiá, momento no qual o novo membro é
apresentado à sociedade indígena, que é o chamado batizado de Praíá.
René Descartes (1637) colabora na compreensão do homem no uso do imaginário
para entender os acontecimentos ocorridos ao seu redor aos que buscam a verdade através da
razão pode não encontrar como sendo o único meio de resultados positivos.
150

Parece-me todos aqueles que querem usar a imaginação para compreendê-la


procedem da mesma natureza que se, para ouvir os sons ou sentir os odores,
quisessem utilizar-se de seus olhos, mas com essa diferença, isto é, que o sentido da
visão não nos assegura menos a verdade desses objetos do que aqueles do olfato ou
da audição, ao passo que nossa imaginação ou nossos sentidos nunca podem
garantir-nos coisa alguma, se nosso entendimento não interviesse (DESCARTES,
2009[1637], p. 45).

A razão que leva o homem a entrar na pertença cultural de outra sociedade não é
pelo simples fato de curiosidade, mais é a busca de instrução que somará ao seu aprendizado
que por sua vez contribuirá com a coletividade somando aos seus.

em relação aos costumes, as vezes é necessário seguir opiniões, que sabemos serem
muito incertas, como se fossem indubitáveis [...] a partir do momento, porém, em
que desejava dedicar-me exclusivamente à pesquisa da verdade, pensei que deveria
agir exatamente ao contrário e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que
pudessem supor a menor dúvida, com a intenção de verificar se, depois disso, não
restaria algo em minha direção que fosse intimamente indubitável (DESCARTES,
2009[1637], p. 41).

As forças sobrenaturais presentes na cultura dos Pankararu servem para organizar


a vida social, política, religiosa e cultural. Esses elementos ajudam a compreender a força
organizacional da etnia baseada nos Encantados, que são índios que tiveram o poder de
encantamento para colaborar mediante pedido de socorro. Solicitações essas que são feitas de
diversas formas, seja coletiva, ou individual. Na coletividade, são chamados os batalhões de
Encantados que tomam forma através dos rituais da Corrida do Imbu, do Menino do Rancho,
da Penitência, da Mesa de Cura e do Toré. Os Encantados são regidos pelo Mestre Guia, que
uma vez por ano se faz presente no Terreiro da Serrinha finalizando a Corrida do Imbu; vem
para curar e abençoar a sociedade indígena, que se faz presente na finalização do ritual.
No ritual do Menino do Rancho, a satisfação em poder cumprir a “promessa”
envolve todos, desde os pais, padrinhos, madrinha até o Pai ou Mãe de Praiá. A luta no
Terreiro é um momento de bastante emoção, capaz de trazer para a torcida todos os presentes,
inclusive os visitantes curiosos.
O povo Pankararu é depositário da força dos Encantados, tendo zelo pela cultura
mantendo e viva uma tradição pautada no respeito ao homem e à natureza, uma vez que eles
não separam homem e natureza, fazendo com que a falência dos costumes não venha a
acontecer. Para que isso não ocorra, as crianças são iniciadas nos rituais desde muito cedo,
fazendo com que sejam integradas não só na comunidade, mas na natureza, na qual a tem
como grande mãe e mestra. Os líderes se esforçam para preservar e manter viva toda a
tradição Pankararu, embora já tenham perdido a língua e alguns rituais.
151

A preservação da identidade cultural acontece nos atos de celebração diária em


cada aldeia fazendo com que não sejam obscuros das gerações presentes ,mas oferecendo
assim o legado das ciências da etnia às futuras e preservando a identidade cultural e religiosa.
Se os Pankararu deixarem de acreditar nas forças dos Encantados é decretar a falência de um
povo.
Não se pode de hipótese alguma pensar os rituais na ótica da ciência e negar o
ritual como de fato ele é. A realização obedece uma sequência mágica, colocando os
participantes em um estado de conforto e de realização momentânea. Tal fato acontece no
meio das relações entre os humanos e as forças Encantadas, que tomam formas nos objetos
sagrados, nos gestos, nas vestes, na dança e na música, fazendo com que a magia esteja
presente entre os humanos. É o reino encantado que se faz presente visivelmente nos meios
dos que não comtemplam o reino mágico de abundância e de completas realizações.
Pensar os rituais somente na visão cientifica é não compreender um povo que
centraliza o seu ser nas forças Encantadas e que oferecem as condições necessárias de um
bem viver que encontra as realizações nestas forças capazes de oferecer orientações e
direcionamentos. A não leitura mágica faz com que não se entenda os significados e as
significações, não só ritualísticas, mas também socioeconômico de um povo que preserva as
suas tradições.
Podemos dizer que mesmo tentando compreender os significados e a força
mágica, somente eles podem compreender os valores culturais. Aqui chamamos atenção para
os leitores, pois nem tudo que foi observado e vivenciado está relatado, respeitando a
confiança e os segredos presentes em alguns rituais secretos também não relatados, porém
confiados à minha pessoa. Respeitar as crenças, é respeitar um povo que mesmo com
assimilação de cultura, preserva o encanto da magia que o faz ser um povo unido pelas
crenças e ritos e que juntos, lutam pelos seus direitos e pela sua identidade indígena.
Em busca da cura física, mental e espiritual, o Pankararu se faz valer dos frutos
que o rodeia, utilizando como instrumento de cura e o que os seus “mestres” mandam fazer,
colocando em prática os ensinamentos passados pelos ancestrais e anciões da Aldeia. Em todo
e qualquer ritual, as ervas estão presentes em forma de folhas verdes ou secas, mas curam
também em forma de defumação. O queimar as folhas é tipicamente presente nos rituais do
Catimbó presente entre os índios do Nordeste. Compreendemos que o pesquisador em campo
deve despir-se dos seus conceitos pré-formados e partir para a observação do sujeito a ser
pesquisado, garantindo assim um resultado digno de confiança.
152

A hipótese foi confirmada: os Pankararu encontram nos rituais uma forma de


resistência, pois agregaram valores nos rituais, elementos do cristianismo e de religião de
matriz africana. No entanto não se fala abertamente sobre orixás, mas há a incorporação nos
rituais e nas mesas de curas. Não usam linguagem do Candomblé ou da umbanda, mas os
elementos estão presentes entre eles.
Algo muito visível são os Praiás com suas máscaras e que não podem ser
revelados. O mesmo acontece com o Orixá Omolum ou Obaluaé, que se veste de palhas e não
revela sua face. Algo em comum são os banhos e os pratos oferecidos aos Encantados, ou
seja, muitos valores encontrados na Umbanda estão presentes na cultural dos Pankararu, entre
eles a valorização para com a natureza: homem e natureza integram o cosmo e um não se
desvincula do outro. Assim, no crer da sociedade Pankararu, após um grande diluvio no
sertão, as águas do rio São Francisco alagaram diversas outras terras e com as águas se foram
os peixes. Mais tarde, Deus transformou os peixes em homens e mulheres, nascendo então os
Pankararu. Observa-se assim, o grande poder e importância que tem a natureza na vida deste
povo, pois até para descrever suas origens se utilizam dela para explicar o seu surgimento.
Valorizar a natureza e suas origens é muito importante para todos os povos e culturas, pois
assim se mantém vivos; esquecer é deixar morrer algo muito precioso: sua identidade.
153

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