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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS

VICE-REITORIA DE PÓS GRADUAÇÃO E PESQUISA

INSTITUTO GOIANO DE PRÉ-HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA

EMPADÃO GOIANO: EXPRESSÃO DE VALORES E


PRÁTICAS TRADICIONAIS

Gláucia Tahis da Silva Campos Péclat

Orie ntador: Dra. Elle n F. Woort mann

Monografia de Mestrado
Mestrado Profissionalizante em Gestão do Patrimônio Cultura l
Área de Concentração: Antropologia

GOIÂNIA
2003
2

Empadão Goiano

(Marcelo Barra e Tavinho Daher)


Empadão Goiano tem história por trás
Tem que ter muito jeito
Pra não ter defeito
Só ela é que faz
Empadão Goiano é tão simples fazer
Se vai ficar bom
É outra conversa
Melhor aprender
Um fogão de lenha e a mão por lavar
E nem sombra de esmalte
E tem que ter sorte
Pra massa espalhar
A fôrma é de barro pra manteiga esquentar
O fermento e a farinha
Têm que andar juntos
Pra não separar
Depois disso lingüiça e tomate
Guariroba, salsinha e pimenta
A pimenta tem que ser de bode
Você sabe que outra não pode
Deus perdoe lombinho com frango
Batata mole, o pão é de ontem
Ovo cozido e muito cuidado
Ou então vai ser tudo queimado
3

Ao Luciano Péclat, meu esposo.


Aos meus pais, Manoel e Laura, pela simplicidade,
sabedoria com que incentivaram a minha formação.
Aos meus dois grandes amores, Tainá e João.
À Ellen F. Woortmann.
4

AGRADECIMENTOS

Durante toda a pesquisa, muitas pessoas colaboraram para que sua conclusão se
tornasse possível. Agradeço a todas, nomeando algumas em especial.

À Professora Dra. Ellen F. Woortmann além de orientadora, amiga. Devo a ela o


“gostinho pela Antropologia”.

À Professora Dra. Irmhild Wüst, por me mostrar os caminhos da “Tradição


Oral”, facilitando o meu desempenho durante as etapas de campo. Graças a ela e ao
“Projeto Guará” despertei o gosto pela pesquisa.

À comunidade da Cidade de Goiás, em especial, Dª Augusta Soares, Benedita


Siqueira, Brasilete Caiado, Dª Eva - ceramista, Sr. Emival-da pastelaria, Goiandira do
Couto, Sr. Jaime Nascimento, Dª Maria Martins, Dª Ondina Leite e Dª Silvia do alfenin.
Sem a memória destas pessoas o presente trabalho não se realizaria.

Aos colegas do Mestrado: Daura Rios, Leila Miguel Fraga, Maria Lúcia Pardi,
Paulo José, Rosaura Vargas e Silvio Bragato. A primeira, pelo empréstimo de livros. A
segunda, pela valiosa sugestão relativa à Folia do Divino, além de textos, livros e fotos
que gentilmente me cedeu. À Pardi, por mostrar o significado de Gestão. Ao quarto,
pela concessão do livro “Cozinha Goiana”. À Rosaura, pela incansável paciência e m
me ouvir. Ao último, pelas preciosas fotos do empadão.

Aos meus amigos, Kátia Lúcia e Márcio Antônio Telles, primeiro por me
incentivarem a prestar a seleção do Mestrado. Segundo, pelo empréstimo de livros e
textos. E por último, por terem me acompanhado na realização do trabalho de campo
relativo à documentação fotográfica.

Ao Pedro Diniz, por me conceder a foto extraída do Documentário “O Povo e


seu Lugar”.

Ao colega Ademar Fraga, pela revisão e formatação do texto.

Á Banca Examinadora: Heliane Prudente Nunes e Maurídes B. Macêdo F.


Oliveira, que apontaram valiosas sugestões para uma posterior Publicação.

Finalmente, ao meu esposo Luciano Péclat, que me ajudou na realização do


trabalho de campo, batendo nas portas dos velhos amigos de sua família. À Dona Cedi,
5

minha sogra, pela doação dos livros de História de Goiás. Aos meus filhos, Tainá
Azeredo e João Bosco pelo apoio e auxílio no computador. Aos meus familiares que
acreditaram no meu esforço, em especial à Ana Paula por ter realizado a pesquisa no
Jornal O Popular.

A todos aqueles que, direta ou indiretamente, me apoiaram nesta caminhada.


6

“ ...Vive dentro de mim


A mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro,
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
Toda pretinha...”

(Cora Coralina, Todas as Vidas, 1980).


7

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................9
INTRODUÇÃO...........................................................................................................12
Mudança/Continuidade: o significado de Tradição............................................12
Hábitos Alimentares e a Ação Globalizante.......................................................13
CAPÍTULO I...............................................................................................................21
O EMPADÃO E AS FAMÍLIAS DE GOIÁS..............................................................21
Relações de gênero: a mulher, a cozinha e o empadão.......................................21
A casa, a cozinha, o quintal: relações de empréstimos.......................................25
A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas..............................................................31
Memória, uma perspectiva teórica sobre o empadão.........................................42
CAPÍTULO II.............................................................................................................52
O EMPADÃO E AS FESTAS SOCIAIS E RELIGIOSAS..........................................52
O Empadão: “do profano ao mundo religioso”..................................................52
CAPÍTULO III............................................................................................................74
EMPADÃO E CERTOS ASPECTOS ECONÔMICOS E ECOLÓGICOS...................74
Disponibilidade de Gêneros Alimentícios no Século
XVIII................................74
Preferências e Consumo no Século XIX: O Empadão Goiano...........................78
Empadão Goiano: Continuidade e Alterações...................................................85
Empadão Goiano: resultado de uma simbiose entre homem e o
ambiente.......100
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................126
CENTRO DE REFERÊNCIA DO EMPADÃO GOIANO: DO USO SOCIAL À
PRESERVAÇÃO......................................................................................................129
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................134
ANEXOS..................................................................................................................142
8

Resumo

O presente trabalho pretende mostrar, num primeiro momento, como se dá a


relação entre o empadão, a cozinha e as relações de gêneros, na Cidade de Goiás, a
partir das três últimas décadas do século XIX. Ademais, visa fazer, também, a sua
leitura teórica enquanto produto da memória local, para, em seguida, analisar as práticas
e concepções dos vilaboenses com relação aos significados do empadão dentro do
contexto de festas sociais e religiosas. E, por último, contextualizar o conceito de
“tradição” dentro da perspectiva mudança/continuidade acordada entre os próprios
habitantes da região. A partir dos dados etnográficos e pesquisa bibliográfica, procurou-
se acompanhar a relação entre os sujeitos da comunidade em questão e o empadão
mediante as orientações familiares, sociais, econômicas e ecológicas que presidiram a
constituição deste como uma referência da culinária local.
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Abstract

This dissertation is based on research I carried out in the City of Goiás, the
former capital of the State of Goiás. Soon after I began this research, however, it
became clear my intention to show the relationship among the empadão-patty: big,
round, flattened cake of ground or chopped food-, the culinary art, and the function of
human genders in the City of Goiás in the last three decades of the nineteenth century.
Besides, one of the aims of this work is to examine the theorical reading on the
empadão, while it is seen as a product of local memory. Following the steps of this
research, I analyze the practices and conceptions of the vilaboenses in relation to the
meanings of empadão in the context of local religious and social functions. Finally, I
contextualize the concept of “tradition” in the perspective of change/continuity
according to the local residents. To start from the ethnographic data and the
bibliographic research, I tried to follow closely the relation between the individuals of
the community and the empadão, by means of the familiar, social, economic, and
ecological orientations that managed the organization of this research as a reference to
the local cookery.
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APRESENTAÇÃO

A grande satisfação que sinto por apresentar o presente trabalho sobre o


empadão goiano resulta não somente de poder contribuir para o processo de
reconhecimento deste, enquanto Patrimônio Cultural, tampouco se limita em discutir a
importância do modelo acadêmico, tendo como base, uma “descrição densa”
(Geertz,1975). Une-se a esses motivos a possibilidade de se registrar um produto da
memória vilaboense que se articula à história, hábitos alimentares e relações sociais,
expondo modos de viver e que, desenvolvidos em momentos temporais distintos,
traduzem comportamentos reveladores da especificidade de uma localidade tal como o é
Vila Boa de Goiás. É em consonância com esta preocupação que a referida pesquisa
tem, como temática inicial, uma curta discussão sobre o conceito de tradição e, além
disso, apresenta uma breve revisão sobre comida e Antropologia, visando a expor como
a alimentação pode romper barreiras e avançar para além dos seus limites regionais, sem
perder suas características tradicionais. Para tal fim, baseamo-nos em Mintz (2001), que
ilustra exemplos da introdução de novos hábitos alimentares em sociedades descritas
outrora como conservadoras.

A narrativa se desenvolve em três capítulos, mas antes, de enunciá-los, gostaria


de explanar o significado etimológico da palavra empadão, para situar melhor o leitor e,
em seguida, apresentar sucintamente o assunto a ser tratado em cada capítulo. A palavra
empada = abreviatura de empanada, originária do latim = panis = pão1. Portanto,
empada, para nós, significa iguaria de massa com recheio de carne, camarão, palmito,
entre outros, geralmente com tampa da própria massa, e assada em fôrmas ao forno e
que se aproxima do pie americano. Dentre os vários tipos de pie americano destaca-se o
chiciken pie.

No primeiro capítulo, mostramos o papel que representa a mulher no domínio


privado, quando exerce uma função preponderante relativa ao orçamento doméstico.
Ademais, mostramos também como ela se apresenta como construtora, emplementando
o habitus local. Além disso, evidenciamos as implicações relativas ao empadão
enquanto produto da memória regional, caracterizando-o como expressão do sistema do

1
Bueno, Francisco da S., 1974. “Grande Dicionário Etimológico” - Prosódico da Língua Portuguesa -
Vocábulos, Expressões da Língua Geral e Científica - Sinônimos contribuições do Tupi-Guarani. 3º vol.
E - F. Editora Brasília Limitada. Santos - São Paulo.
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lugar (Pietrafesa,1998) e introduzimos para uma reflexão teórica que nos possibilita
entender como o empadão combina memória e tradição na dimensão passado/presente.

O segundo capítulo refere-se à análise do empadão como um produto da cozinha


regional que “fala” de múltiplas e variadas formas; “fala” também de reuniões festivas
com conotação religiosa, política e social e, que, do mesmo modo, significa uma
variedade de experiências de um jeito de ser próprio daqueles que são originários da
Cidade de Goiás ou vivem no Estado de Goiás. Estes mesmos significados tem, além da
“marca original” tipificada por um conjunto de aspectos relativos ao “modo de fazer”
empadão, a expressão de identidade. Neste mesmo capítulo procurou-se mostrar como o
empadão está implicado num conjunto de situações relacionais que exprime por assim
dizer, uma culinária também, relacional. Além dessa dimensão, atentamos para o
significado do empadão goiano como um produto que combina traços de pluralidade e
integração. E ainda como a palavra empada, no seu sentido lato, denota pão e, assim,
carregada de significação social, expressa também comunhão. Finalmente como o
preparo e a confecção do empadão estão condicionados à forma e função do utensílio
que indica quem e em que situação o sujeito pode ali estar inserido.

No terceiro e último capítulo, a nossa atenção centrou-se em discutir a partir do


conceito de tradição, como o empadão goiano é produto tradicional da região e como,
por conseguinte está ligado à disponibilidades de gêneros alimentícios e preferências de
consumo em Goiás, a partir do século XVIII. Nesta perspectiva, atentamos, portanto,
para o ingresso, a “importação” de produtos ligados ao empadão goiano, com a
finalidade de compreender o processo de confecção e preparo atribuindo à
condicionante mudança/continuidade um fator relevante para o trabalho. Outra questão
que mereceu destaque na presente pesquisa foi a busca por dados significativos que
apresentaram “adaptações” no modo de fazer empadão - receitas que alcançaram o pós-
30 do século passado.

Os padrões de uma nova mentalidade relativa aos aspectos econômicos e


culturais presidiram por assim dizer, a mudança relativa ao modo de fazer empadão,
embora, nossa preocupação maior não tenha sido em afirmar estes fatores como sendo
preponderantes neste momento e, sim, relevantes para as conseqüentes mudanças a
partir das três últimas décadas do século passado.

Ainda nesse mesmo capítulo, voltamos nossa atenção para a relação entre o
empadão e o meio ambiente, contribuindo, então, com a historiografia regional no que
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se refere à conexão entre comida; meio ambiente e cultura para, enfim, mostrar como o
produto em questão está relacionado à cadeia operatória que, associada aos padrões
ecológicos, determina de maneira considerável a imbricação entre esses elementos que
denotam expressiva e significativa importância para a compreensão do “modo de fazer”
empadão goiano com a cultura local. Nos preocupamos também em estabelecer relação
deste produto, enquanto patrimônio de natureza imaterial, com todo o corpo de
informações relativo ao seu significado simbólico com a perspectiva de referência
cultural, sendo, portanto, primeiramente importante conhecê-lo para, em seguida, ser
preservado ou até mesmo Registrado. Neste sentido, sugerimos o projeto de criação do
“Centro de Referência do Empadão Goiano”, agregado a um espaço a ser ainda
sugerido, que além de expressar a importância deste patrimônio como produto da
memória local, possa dar significado de agregação e integração tanto à comunidade
vilaboense quanto ao turista que a visita.
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INTRODUÇÃO

Mudança/Continuidade: o significado de Tradição

Antes de iniciar a análise, pretendemos discutir o que significa mudança-


continuidade de padrões tradicionais, assim como discutir o conceito de “tradição”. De
acordo com as sondagens e entrevistas realizadas em trabalho de campo, pudemos
concluir que o empadão goiano é tradição. Afirmar que o empadão é um produto da
tradição não implica, como poder-se-ia supor, que ele tenha permanecido da mesma
forma no decorrer do tempo, ou que as mudanças ocorridas não estejam registradas na
memória do grupo. Ao contrário, como será possível observar, certas modificações são
claramente reconhecidas pela maioria da população local, mas nem por isso
necessariamente ameaçam a tradição. Em comum, todos podem se lembrar de detalhes
que não são mais como eram no passado. Na verdade, os membros da comunidade
vilaboense ao falar de tradição, falam de algo que é dinâmico, que pode mudar até certo
ponto, sem ter com isso sua continuidade comprometida. Neste sentido, a presente
pesquisa tem por objetivo tratar o empadão não apenas como um produto da atualidade,
mas também dos discursos construídos em torno da imagem do produto no passado.

Para Hobsbawn e Ranger (1984) In: “As Tradições Inventadas”, a tradição pode
até mesmo remeter a um passado recente. E nas suas palavras por “tradição inventada”
entende-se “um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente; uma continuidade em relação ao passado” (Hobsbawn & Ranger;
1984: 09). A tradição precisa apresentar duas características: “ser, simultaneamente,
flexível o suficiente para conseguir responder às modificações inevitavelmente
ocorridas no grupo, e capaz de manter uma idéia de continuidade que sustente o vínculo
do presente com o passado” (Porto,1997). Ademais, “os hábitos alimentares
constituem um domínio em que a tradição e a inovação têm a mesma importância, em
que o presente e o passado se entrelaçam para satisfazer a necessidade do momento,
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trazer a alegria de um instante e convir às circunstâncias” (Giard;1998:212). É essa


dinâmica, mudança-continuidade que proponho como diálogo na construção do texto,
tendo em vista o conjunto de adaptações determinantes no processo de reconhecimento
do empadão goiano como tradição regional. Entretanto, para que isto se torne possível,
faz-se necessário apresentar um breve histórico sobre comida e antropologia visando a
mostrar como sociedades tradicionais romperam barreiras e avançaram os limites de
fronteiras, não comprometendo, assi m, a tradição.

Hábitos Alimentares e a Ação Globalizante

Desde o início de sua formação, a antropologia, em diálogo com disciplinas


como a história, a sociologia, a história natural, mostrou grande interesse pela comida e
pelo ato de comer. Dificilmente outro comportamento atrai tão rapidamente atenção de
um estranho quanto maneira que se come: o quê, onde, como e com que freqüência
comemos, e como nos sentimos em relação à comida. Mintz (2001), ao escrever o texto
“Comida e Antropologia: uma breve revisão” considera que:

“o comportamento relativo à comida liga-se diretamente ao


sentido de nós mesmos e à nossa identidade social. Não é de
surpreender, portanto, que o comportamento comparado relativo à
comida tenha sempre nos interessado e documentado a grande
diversidade social. Portanto, o que aprendemos sobre comida está
inserido em um corpo substantivo de materiais culturais
historicamente derivados. A comida e o comer assumem, assim, uma
posição central no aprendizado social por sua natureza vital e
essencial, embora rotineira. O comportamento relativo à comida
revela repetidamente a cultura em que cada um está inserido” (Mintz;
2001: 31).

Este foi um dos trabalhos que muito nos provocou inquietações e que, sobretudo,
utilizamos como fio condutor para justificar o trabalho em questão. Em seu texto, Mintz
(2001), faz uma breve revisão acerca da comida em vários locais do globo. Assinala
“que a comida torna-se algo muito mais próximo daquilo que consideramos universal,
quando entendemos que a mesma pode representar um diálogo diplomático entre os
15

povos, através de sua inserção no mercado como intercâmbio cultural” (idem). Mintz
inicia sua discussão a partir da difusão mundial de certos alimentos, tais como o milho,
a batata, o tomate, a pimenta-do-reino, a mandioca, o pimentão, o amendoim, a castanha
que se propagaram tanto no Novo Mundo quanto no Velho Mundo. Segundo este
mesmo autor, “estes elementos são algumas lembranças da transformação
revolucionária dos hábitos alimentares, para o leste e para o oeste, há cinco séculos”
(Mintz; 2001:33). Neste sentido, cabe-nos concluir que a comida foi (...) um capítulo
vital na história ainda antes do capitalismo, muito antes dos dias de hoje: como
alimentar pessoas, e como fazer dinheiro alimentando-as. Entretanto, a despeito dessas
grandes mudanças, é verdade que as últimas duas décadas assistiram a uma difusão se m
precedentes de novos alimentos e novos sistemas de distribuição em todo o globo. A
invasão da Ásia pela fast food norte-americana é um importante exemplo dessa
mudança (ver Watson, 1997).

Nesta perspectiva, Mintz cita um exemplo de como o capitalismo opera. “No


caso das comidas asiáticas na América do Norte, milhares de famílias da China, da
Malásia, da Tailândia, do Vietnã, do Camboja, das Filipinas e de outros lugares,
arriscaram suas economias abrindo pequenos cafés, sendo assim, os americanos tiveram
oportunidade de experimentar novos conceitos de refeição, novas idéias sobre a relação
entre a proteína animal e outras comidas” (Mintz; 2001:34).

Desses empreendimentos, muitos fracassaram no primeiro ano, segundo o


referido autor. Em contrapartida, a difusão dos restaurantes norte-americanos fast food
na Ásia tem uma aparência corporativa: “apenas os acionistas arriscam”. “Na China, por
exemplo, comer no McDonald’s é sinal de mobilidade ascendente e de amor pelos
filhos. Onde quer que o McDonald’s se instale na Ásia, as pessoas parecem admirar a
iluminação feérica, os banheiros limpos, o serviço rápido, a liberdade de escolha e o
entretenimento oferecido às crianças. Mas também percebe-se que eles gostam mais
dessas coisas do que propriamente da comida!” (Mintz; 2001:34). Quanto ao Brasil, o
Mc Donald’s, é um espaço para jovens e crianças da classe média.

“Mas o fast-food, de inspiração norte-americana, não aparece na Europa


ocidental antes do final dos anos 70, inclusive no início dos anos 80. Tinha-se difundido
nos Estados Unidos desde os anos 50, sob a forma de grandes redes em sistema de
franchising, ao longo dos eixos rodoviários, na periferia das cidades, centros comerciais
e, depois, cada vez mais nos malls, que se tornaram o âmago da vida comercial das
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grandes conturbações americanas, sob forma de food courts. Tendo partido da América
para conquistar o mundo, o fast-food é aplicação do taylorismo, ou seja, da divisão e
racionalização do trabalho, à preparação de refeições servidas em restaurante” ( Fichler;
1998: 851).

Fichler (1998), ao escrever sobre A “Mc Donaldização” dos costumes, tece os


seguintes comentários sobre a relação entre alimentação e a época contemporânea dos
séculos XIX e XX:

“A alimentação deixa o lar” e “no momento em que a


alimentação torna-se um mercado de consumo de massa, as refeições
servidas em restaurantes passam por uma evolução, em parte,
comparáveis. Enquanto ao longo da evolução histórica a casa foi
associada ao lar - isto é, à cozinha -, na proximidade do terceiro
milênio a alimentação se identifica cada vez menos necessariamente
com o universo doméstico. Os modos de vida foram modificados
profundamente pela urbanização, pela industrialização dos anos
1950-1960, pela profissionalização das mulheres, pela elevação do
nível de vida e da educação, pela generalização do uso do carro, pelo
acesso mais amplo da população ao lazer, férias e viagens. Aumenta
regularmente o número de refeições tomadas fora de casa” (p. 850).

Aprendemos, portanto, que as pessoas em sociedades outrora descritas como


extremamente conservadoras estão prontas a experimentar comidas radicalmente
diferentes. Isto sugere que “os comportamentos relativos à comida podem, às vezes
simultaneamente, ser os mais flexíveis e os mais arraigados de todos os hábitos” (...)
“Como as comidas são associadas a povos em particular, e muitas delas são
consideradas inequivocadamente nacionais, lidamos freqüentemente com questões
relativas à identidade” (Mintz: 2001:34). No nosso caso em especial, o empadão goiano
é característico do Estado de Goiás. Em outras palavras, lugar de empadão é Goiás, a
forma mais característica, pois, expressa a identidade da região.

Molina, (2001), considera que a cozinha se reveste de importância, posto que as


práticas culinárias, como expressão cultural e comunitária, são vistas como formas
identitárias de pertencimento a um grupo fazendo parte das apresentações folclóricas e
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regionais - quando emergem as peculiaridades e as tradições são reapropriadas. Chama


a atenção, ainda, para a seguinte afirmação: “Lançar um olhar sobre a cozinha, como tal
ela é percebida hoje e também no passado, dá margem, ainda, a uma compreensão mais
ampla de nós mesmos, na medida que estaremos fazendo uma ligeira incursão na
história da nossa cultura, repensando a ordem cotidiana no tempo e no espaço social”
(Molina; 2001:126).

Nesta mesma percepção temos o trabalho de Weismantel (1988), que analisa em


conjunto as mudanças na economia do Equador, ao destacar o fluxo dos homens do
campo para a cidade, o conseqüente aumento do número de mulheres na miséria e a
nova dieta dos trabalhadores andinos. “Weismantel nos permite ver como a comida da
cidade adquire um significado especial por ser da cidade” (Weismantel apud Mintz;
2001:35). Outro trabalho o de Çaglar (1999), “oferece um quadro criativo de como os
alemães se tornaram apreciadores do prato turco dõner kebap, e das relações antes não
reveladas entre essa humilde comida de imigrantes, produzida para os anfitriões
alemães, e questões maiores de imigração e preconceito étnico” (Çaglar,1999 apud
Mintz; 2001:36).

O referido artigo acrescenta dados à nossa compreensão etnográfica de como os


hábitos alimentares estão se modificando na Europa e, por conseguinte, revelando, uma
nova experiência da vida humana antes não destacada pelos registros históricos. Além
dessa literatura, temos o trabalho de Woortmann (1978), que apresenta referenciais de
como as mudanças nos hábitos alimentares estão ligadas a impactos ecológicos que, por
sua vez, provocam rupturas nas ideologias alimentares tradicionais.

Hoje temos uma vasta literatura dedicada à comida. Equaciona-se a isto a


relação da comida e gênero em que a relação da comida e a imagem do corpo são
analisadas e a domesticidade e liberação das mulheres é considerada; e ainda a ligação
entre a comida e auto-identificação com gênero são, portanto, avaliadas.

Muito mais poderia ser dito sobre esse assunto, muitos outros exemplos
poderiam ser citados. Entretanto, verticalizaremos nossa atenção, agora, para um breve
histórico da comida brasileira, para, em seguida, como uma proposta útil, lançar um
olhar sobre o pão de queijo de Minas Gerais, como experiência da promoção do produto
em novas fronteiras.
18

“A cada garfada, o brasileiro come o resultado de um longo processo de


combinação de alimentos” 2. Sabe-se que os portugueses puseram sal na carne e na
cozinha brasileira, pois, a mandioca era o principal alimento dos índios quando os
europeus chegaram, dando início à formação de uma nova culinária. “Da mandioca,
fazia-se a farinha, a tapioca, o beiju, bebidas alcoólicas. Comia-se mandioca na forma
de farinha pura, misturada com carnes, frutas, vegetais. A macaxeira (mandioca doce)
também servia de alimento, assada ou cozida” (Sereza; 2000:02). 3

Os índios tinham outros cultivos, como o da batata doce, do milho e do


amendoim. Também não se pode negligenciar o papel de frutos como o caju e o pinhão
na alimentação indígena. “Mas nenhum outro alimento era tão importante quanto a
mandioca e seus “pratos”: pirão, mingau e paçoca são alguns dos vocábulos deixados
por essa cultura”.4

“Em suas viagens, os portugueses trazem para o Brasil e daqui levam toda a
sorte de alimentos. A mandioca e o amendoim conquistaram a África, e os coqueiros e
novos bananais passaram a fazer parte da paisagem da América. Para o Brasil, també m
trouxeram novas fontes de proteínas: galinha, carneiro, gado bovino, pato, porcos e
gansos. Os índios não se adaptariam de pronto a todas elas. Criavam, por exemplo, as
galinhas, mas apenas para vender ovos e animais ao engenho, e não para comê-las. A
ave continuaria sendo considerada como iguaria dominical ou de festa, como indica
uma estrofe satírica, registrada em 1821 e cantada no Recife contra o governador: “A
mulher de Luís do Rego/ Não comia senão galinha; / Inda não era princesa/ Já queria ser
rainha”. 5

É no tempero, entretanto, que o português dá sua principal contribuição à


culinária da Colônia. Impõe o gosto pelo sal, quase não utilizado pelos índios e pelos
africanos, e ensina a salgar a carne para preservá-la. Cozinhar bem era e é “ter boa mão
de sal”. Outras especiarias tornaram-se presentes, como o cravo-da-índia, a erva-doce, a
canela e o alecrim6.

2
Folha de São Paulo. “O Tabuleiro do Brasil 500”. Especial 1. Domingo, 2 de abril de 2000.
3
Folha de São Paulo.2000. “Os Portugueses puseram sal na carne e na cozinha brasileira”. p.02.
4
idem.

5
idem.
6
idem.
19

“De ordens e gostos europeus, de mãos e conhecimentos indígenas (e africanos


posteriormente) e de alimentos de todos os cantos do mundo: assim começa a história
da cozinha brasileira” (Sereza; 2000:02). Vejamos, à luz de nosso propósito, como a
indústria de alimentação no Brasil, que surgiu no começo do século XX, nasce com
força, sendo o segundo ramo mais importante, atrás apenas do setor têxtil. “Para o
brasileiro médio, surge nesta época a comida de trabalho, pratos leves como sanduíches
e marmita. Nas mesas mais ricas, o contato com outras culturas propiciou um
incremento do cardápio, principalmente a adoção de molhos, temperos, novos tipos de
sopas e massas. De lá pra cá, o mercado de alimentação só fez aumentar. As indústrias
alimentícias sofreram um crescimento vertiginoso, com o aumento do mercado
consumidor em todo o país, principalmente nas grandes capitais. Com a criação dos
supermercados, já na década de 70, o acesso aos mais diferentes gêneros alimentícios se
popularizou ainda mais. Hoje, nos grandes centros, pode-se encontrar comidas do
mundo todo” (Lima; 2000:07) 7.

Outro indicador da rápida expansão da indústria alimentícia no mercado é o


desempenho da Casa do Pão de Queijo. “Estabelecida em 1997, a empresa é hoje a
segunda maior franquia em número de lojas do Brasil, perdendo apenas para a
multinacional McDonalds. A Casa do Pão de Queijo é líder de mercado no segmento”. 8

A propósito, o pão de queijo está para Minas como o empadão está para Goiás.
Ao pesquisar sobre o pão de queijo9, confesso que fiquei impressionada ao saber que,
embora tenha sua origem secular, somente passa a ser produzido em escala nacional a
cerca de uma década. Sendo muito recente, o mais curioso é saber que, hoje, aos
poucos, vai ganhando o mundo. O produto já é comercializado nos Estados Unidos,
Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Portugal, Espanha, Japão e Argentina.

Segundo a mesma fonte (p.59), estima-se que existam hoje cerca de 500
indústrias de pão de queijo no Brasil, 70% delas em Minas. Entre as empresas
responsáveis pela expansão do mercado, nacional e internacional, encontramos a Forno
de Minas. Esta chegou a ter 10 mil pontos de venda espalhados pelo Brasil e a produção
alcançou respeitáveis 2,8 milhões de unidades por dia. O negócio chegou a faturar R$
65 milhões por ano. Segundo a fonte de pesquisa, o sucesso foi tanto que chamou a

7
Lima, Andrea. “Ciclo”. Folha de São Paulo.Domingo, 2 de abril de 2000. Especial.p.07
8
idem.
9
Fonte extraída da Revista Sebrae nº4-Maio/Junho 2002.,pp.59.
20

atenção de uma multinacional do ramo de bebidas e fast food. Em 1999, a Forno de


Minas foi vendida para a americana Pillsbury, que viu grande potencial de venda do
produto no Brasil e no exterior.

Após este quadro de exposição, pretende-se apresentar, neste momento, as


razões que me levaram à sugestão de criação do “Centro de Referência do Empadão
Goiano”. Tendo em vista o objetivo geral mais amplo e que se justificará a médio e
longo prazo, é a difusão do empadão goiano como produto da memória vilaboense,
como produto da identidade, como produto da cultura e como produto da tradição local.
Neste espaço a que se destina o referido projeto, a comunidade poderá encontrar -se em
uma relação dinâmica entre passado e presente, inserida em valores e expressões
construídos historicamente.

Bariani Ortencio (2000), autor do livro “Cozinha Goiana”, um dos consideráveis


pesquisadores sobre a nossa comida regional, faz referência sobre a nossa culinária a
partir do século XVI:

“A Cozinha Goiana é oriunda de três civilizações: a indígena,


dos nativos da terra; a africana, dos escravos negros; e a européia,
com a chegada das famílias portuguesas. As receitas, os ingredientes
para comporem as iguarias culinárias, eram executadas de
conformidade com os produtos alimentícios existentes na região e,
também, com as substituições desses produtos: não havia a batatinha
inglesa, mas havia a mandioca e o inhame nativos; a serralha entrava
no lugar do almeirão, a taioba substituindo a couve...Os bandeirantes
trouxeram algumas sementes e foram fazendo roças.
(...) Assim, as primeiras mulheres que cozinharam cereais, tubérculos, frutos culinários, em
Goiás, foram as goiases, ao tempo em que os Bandeirantes vieram fa zer a preagem e buscar ouro de
aluvião. Depois, as mulheres negras, quando chegaram com escravos para explorarem a mineração. As
mulheres indígenas abandonaram as panelas dos brancos para dar lugar às escravas negras. Mais tarde
cuidaram da cozinha as mulheres portuguesas, utilizando e instruindo as negras escravas. (...).

(...) De início tudo se deu às margens do rio Vermelho, onde se


[instalou] o Arraial de Sant’Anna, Vila Boa (Buena, em homenagem a
Bartolomeu Bueno) , depois Goyas, capital do Estado, hoje Cidade de
Goiás, além de ex-capital do Estado, mantém o cetro de Capital da
Cultura Goiana.
21

(...) Pratos que enriquecem a história da alimentação brasileira, do trivial ao requinte, nas
reuniões familiares e nas festas tradicionais, como a Empada Goiana (empadão) , o Peixe na Telha
(Prêmio Cheques Cardápio) , a Pamonhada, a Galinhada, o Bolo de Arroz, o Arroz com Pequi, a
Tigelada de Guariroba, o Alfenim, o Licor de Jenipapo, para citar apenas uma dezena destas maravilhas
gustativas, que constituem a cabeça, o carro chefe da culinária goiana (...) ” (Ortencio; 2000:369).

O alimento é algo “representado”, isto é, apreendido cognitiva e


ideologicamente. Nem tudo que pode ser comido, ou que possa constituir alimento, é
percebido como tal. Ademais, o comer não satisfaz apenas as necessidades biológicas,
mas preenche também funções simbólicas e sociais (Woortmann,1978). Sem dúvida,
comidas cotidianas, prosaicas, que tendemos a considerar comuns, escondem histórias
sociais e econômicas complexas (Mintz,2001). No nosso caso em específico, o empadão
goiano fala de aspectos de família; aspectos de festas sociais e religiosas; aspectos
econômicos e ecológicos.
22

CAPÍTULO I

O EMPADÃO E AS FAMÍLIAS DE GOIÁS

Relações de gênero: a mulher, a cozinha e o empadão

Durante as etapas de campo, pude perceber nas narrativas uma série de casos
relacionados ao empadão ligados ao aspecto de família. Maria José Goulart Bittar
(2002) , em seu romance As Três Faces de Eva na Cidade de Goiás, por exemplo, nos
trouxe à luz de sua pesquisa alguns elementos que estão em consonância com os dados
coletados por mim na Cidade de Goiás. Segundo a autora, as famílias vilaboenses que
se instalaram no local, seja pelo concubinato ou por raras exceções legitimadas pelo
santo matrimônio, viveram as mais adversas condições de vida do início da colonização,
passando por um certo período de opulência até as três últimas décadas do século XIX.

“Começaram a se estruturar as primeiras famílias vilaboenses na segunda


metade do século XVIII, quando chegam para radicar-se ali, portugueses, paulistas e
nordestinos. Dentre os primeiros, contamos: Rodrigues Jardim, Vieira, Veiga, Caiado e
Guedes Amorim; já no final do século XIX chegaram os italianos Perillo, Viggiano e
Rizzo e também o suíço-francês Henrique Alfred Péclat. As famílias nordestinas
também constituíram troncos vilaboenses, como os cearenses Rocha Lima e os
pernambucanos Loyola” (Rodrigues; 1982:18).

Um aspecto significativo e que deve ser levado em conta na constituição dessas


relações mais adversas sobre o contexto sócio-econômico da época, é que, muitas vezes,
a historiografia tradicional tem “considerado que as mulheres foram impelidas
passivamente à esfera feminina, sendo retratadas como vítimas sujeitas à dominação do
homem” (Souza; 2000:57). Ao contrário, as mulheres exerceram papéis fundamentais,
principalmente quando assumiram a posição de matriarcas, liderando as esferas de
23

relações ligadas à decisão e iniciativa comercial ou produtiva, o que ocorria,


notoriamente nos casos de viuvez.

Paulo Rodrigues Ribeiro (2001) , que escreveu o artigo “Sombras no silêncio da


noite: Imagens da mulher goiana no século XIX”, nos alerta para a seguinte dimensão:
“Nas relações culturais, a mulher se apresenta, então, não só como a metade necessária,
mas como a metade perigosa que precisa ser vigiada e regulada” (Ribeiro; 2001: 30).

Interessante se notar que, na cidade de Goiás, a mulher detinha sólido império,


competindo-lhe a gerência das atividades domésticas. Nas relações exteriores, os
homens travavam planos, discutiam todos os ângulos de um problema sem, contudo,
chegar à solução final, pois, no domínio do privado, cabia a elas, com ponderações
sensatas, participar da definição da última palavra. O que nos faz pensar que a separação
de esferas em especial na antiga Vila Boa, se dava da seguinte forma: no plano público
visibilizado, o homem representava a família, e, no plano privado, a mulher vilaboense
detinha o “domínio”.

Rodrigues (1982), considera que a participação da mulher vilaboense foi


realmente digna de nota, e conta que, “mesmo Victor Coelho de Almeida, que era,
acostumado a viagens pelo Brasil e exterior, se surpreendeu com a condição e posição
de Rainha do lar. Era ela quem dava a palavra final nos negócios, era quem control ava
as despesas domésticas e quem procurava aumentar as reservas econômicas com seu
trabalho de costura, doces, etc” (Rodrigues; 1982:36). Célia de Brito (1982) , em A
mulher, A história e Goiás , tece considerações sobre D.Joaquina (1855-1936) “senhora
de valor, vibrante e sumamente operosa, de natureza independente, mesmo assorbebada
com o crescente número de filhos, era incansável colaboradora do marido nas
economias domésticas. Contribuía ativamente para o equilíbrio das finanças do lar,
visando a uma vida mais suave para sua numerosa família. Aceitava, então, encomenda
de doces, bolos, biscoitos e costuras” (Brito; 1982:179).

Brito, (1982), se refere à mães que, enviuvadas, muitas vezes passavam por
sérias privações, indo para a cozinha da casa da família fazer quitandas “para fora”.
Segue sua narrativa:

“D. Ritoca, com alma torturada, vê-se viúva e mãe, e sente


sobre os ombros a responsabilidade de tornar aquele querido filho
póstumo uma criatura cristã e digna do nome que recebera. (...) Mas
24

a irrisória pensão de D. Ricota não lhe permitia manter o filho fora


em seus estudos superiores. E, então, no lar onde viviam avós, filha e
neto, desenrolava-se a luta em prol de um ideal. Foi quando D.Ricota
passou à confecção de doces, bolos e biscoitos, que eram vendidos em
tabuleiros, forrados e cobertos por alvíssimas toalhas, nas ruas de
Goiás. Tais gulodices tornaram-se famosas e disputadas, chegando
várias delas a ser incluídas na seleção culinária vilaboense” (Brito;
1982:187/188).

Uma questão se torna pertinente discutir aqui. Primeiro, a mulher quando ligada
à comercialização do empadão em especial, implanta sua pequena “empresa” de
maneira informal dentro de casa, onde contribui com o orçamento do lar, ou então,
assume diretamente o papel de sustento da casa. O homem, ao contrário, quando
envolve com o comércio de iguarias, quitandas, empadão etc, usa a cozinha como
espaço profissional, constituindo geralmente fora do recinto familiar uma empresa,
adquirindo assim, um caráter formal.

A Cidade de Goiás apresenta-se, no final do século XIX, como uma cidade de


escassos recursos econômicos, impossibilitando maiores condições de trabalho e
estimulando o êxodo da população masculina. As oportunidades de trabalho mais
freqüentes surgem no serviço público ou através de viagens ao norte do Estado ou
mesmo ao Pará, em carros de bois ou pelos rios, passando por todo tipo de dificuldades,
na esperança de se estabelecer uma atividade comercial rentável. Poucos lucros daí
advêm, e os dissabores são certos, ocasionando um grande número de mortes e
aumentando o rol das mulheres viúvas.

“Esse fator a viuvez- além de outros, contribui para o desenvolvimento da


identidade matriarcal da mulher vilaboense” (Bittar; 2002:49). Neste contexto surge m
três atividades operantes relativas ao papel sócio-econômico feminino: a lavadeira; a
carregadeira d’água e a quitandeira. Segundo Rodrigues (1982) , as viúvas das classes
dominantes que, raras exceções, são também pobres e matriarcas, vão “para a cozinha
fazer quitandas e empadões de Goiás, que são vendidos pelas ruas em tabuleiros
25

cobertos por alvas e bordadas toalhas brancas, para obter o sustento do diploma de seus
filhos no Rio ou São Paulo”. 10

Alguns depoimentos também apresentaram características de participação da


mulher no orçamento doméstico após os anos 30 do século passado:

“Meu pai faleceu em 1944. Minha mãe colocou todo mundo


para trabalhar em casa ajudando-a nas despesas da casa. Me lembro,
quando minha mãe acordava duas horas da manhã para fazer
quitutes e empadão para entregar por encomenda. Todo mundo
ajudava, não tinha esse negócio de criança não trabalhar não!” ( Dª
S.C. 70 anos, doceira).

De acordo com o levantamento, pude constatar que, a partir da segunda metade


do século XIX, diante da nova realidade sócio-econômica, algumas das mulheres viúvas
vilaboenses viram-se obrigadas aceitar encomendas de quitandas 11 e “empadões de
Goiás” como registra Maria Augusta Calado de Saloma Rodrigues (1982) em seu livro
“A Modinha em Vila Boa de Goiás”. Conforme a referida autora, um novo momento
provocado pela libertação dos escravos leva a elite dominante a fazer “o possível para se
manter em seu nível, pois se fraquejasse um pouco, cairia na indigência”. Por contenção
de despesas, as casas tornam-se auto-suficientes, “dependendo da compra somente o
consumo não produzido em casa” (Rodrigues; 1982:42-43). Cora Coralina, que foi
geração ponte conta em seu livro “Vintém de Cobre - meias confissões de Aninha”, que
essa época, a venda de quitandas carreadas em tabuleiros, era a salvação, trazendo,
valiosos vinténs (Coralina; 1987:54).

Direcionando agora os olhares para dentro da casa, percebe-se que os trabalhos


das mulheres foram de grande importância para a manutenção e reprodução do habitus
goiano. Além de preparar alimentos e cuidar de sua distribuição, “em casa, no decorrer

10
Rodrigues, Maria Augusta Calado de Saloma. 1982. A Modinha em Vila Boa de Goiás.
Goiânia:UFG.p.36.
11
A expressão “quitanda” deriva de um dialeto africano, o quimbundo, se refere ao tabuleiro em que se
expõem mercadorias nas feiras livres (Lancelloti, apud Abdala;1997:01). Segundo Rodrigues (1982,42),
“quitandas” em Goiás é dado à série de bolachas caseiras de sal e doce. Supõe-se que “as mulheres” ora
mencionadas vendendo quitandas fossem escravas domésticas que saíam às ruas para vender as empadas.
26

dos dias, nas festas íntimas, durante visitas, como também na rua, no comércio
ambulante ou das vendas, cabia à mulher toda a função relacionada à comida” (Abdala;
1997:71). “No comércio que se estabelecia nas ocasiões especiais de visitas ou festas
em casa, as mulheres de família, sobretudo aquelas que tinham alguma posse, eram
responsáveis por verdadeiros rituais que se iniciavam na cozinha, na confecção de
pratos, especialmente os doces, e culminavam no arranjo de mesas fartas. Tais rituais
operavam uma transição de fora para dentro da casa, acolhendo aqueles que vinham da
rua - visitas, hóspedes, convidados - através de um código herdado da tradição reinol”
(Abdala; 1997:72).

A casa, a cozinha e o quintal: relações de empréstimos

Para Gustavo Neiva Coelho (1995) , autor do livro Arquitetura da Mineração em


Goiás, as casas do século XVIII, “são basicamente edificações elaboradas em plantas
geradas a partir da própria configuração dos terrenos, tendo um corredor paralelo a um
dos limites do terreno como eixo longitudinal e que ia da rua ao quintal. Na frente
situava-se a sala, no centro os quartos (ou alcovas) , ao fundo uma espécie de ‘sala de
família’ correspondente ao ‘estar íntimo’ de hoje onde preferencialmente ficavam as
mulheres. Seguiam-se puxados para a cozinha e a senzala e depois o quintal. No caso de
famílias maiores, geralmente era feito um simples ‘rebatimento’ (ou duplicação) da
planta usual, passando o corredor, então a ser central” (Coelho; 1995:39).

“As casas coloniais enfileiradas ou os solares isolados, geralmente obedeciam a


um tipo de distribuição de cômodos; enorme corredor incumbido da ventilação interior,
que vai da porta da rua à varanda (sala de jantar). A porta da rua permanecia sempr e
aberta; só a que dava para a varanda, chamada porta do meio, é que permanecia
fechada; à esquerda deste corredor, salão de visitas e uma sala própria para negócios; à
direita, camarinhas; da varanda passava-se à dispensa e à enorme cozinha. O quintal
possuía três repartições: a varanda dava para o primeiro quintal que era um jardim, onde
exalavam os perfumes dos jasmins, bugarins, resedás, angélicas, boninas, baunilhas e
manacás. Depois deste, a cozinha passava ao segundo quintal onde estava a horta e
algumas vezes tinham o poço d’água e também um tanque de pedra, à maneira romana,
para que em tardes quentes se tomassem agradáveis banhos. Finalmente, no terceiro
quintal, o pomar, onde também criavam galinhas e suínos (sendo que alguns tinha m
uma vaca para suprir de leite a casa) e o pequeno pasto para animais de sela. Este último
27

quintal terminava num beco, num córrego ou no rio” (Rodrigues; 1982:20). ( ver foto
nº01 do quintal atual)

Na cozinha, encontramos “o fogão a lenha (ver foto nº02) ou a carvão, chamado


de ‘econômico’, para o preparo de refeições mais elaboradas, e a espiriteira, para fazer
comidas rápidas e para esquentar água” (Lima, 1999 apud Molina; 2001:131).
“Observando-se o espaço destinado à cozinha, podemos verificar, ainda, a existência de
casas com duas cozinhas: a “limpa”, dentro da casa 12, e a “suja”, do lado de fora, onde
se cozinhavam os doces e eram preparados os alimentos mais demorados, uma tarefa
que envolvia um tempo maior de preparo. Essas eram as moradias das pessoas de maior
poder aquisitivo e a justificativa é que o europeu, acostumado ao fogão como o centro
de interesse da casa, aqui nos trópicos não suportou o calor da cozinha e deslocou-a para
fora. Ali eram realizados os trabalhos mais pesados e menos higiênicos, como derreter
toucinho, clarear açúcar mascavo, cozinhar tachadas de doces e etc.” (Lemos,1993 apud
Molina; 2001:131).

No quintal também temos o registro do forno de barro, feito em formato oval -


tipo uma casa de joão-de-barro, com aproximadamente um metro na base inferior e que
vai se afunilando gradativamente até o topo do seu suspiro localizado na parte de trás do
forno. O forno, geralmente era construído em cima de uma base de adobe, onde era
depositada a lenha que seria posteriormente inserida dentro do forno e queimada até se
transformar em brasa. Após este processo, limpa-se a parte interna do forno com uma
“vassourinha” de palha- feita em casa. “Para medir a temperatura, jogue uma palha
dentro do forno. Se ela queima até ficar cinza, é porque está boa a temperatura. Agora
se ela empretejar é porque está muito quente! Ai tem que jogar um pouco de água para
ele esfriar (...) a temperatura tem que ser branda, forno brando”13. Segundo a mes ma
informante, após o processo de limpeza do forno e verificação da temperatura, pode
inserir os biscoitos; pão-de-queijo; bolachas, etc. “A minha mãe usava mais para fazer
pão. E, muitas vezes, ela aproveitava14 o forno ainda para torrar amendoim. Aquilo

12
Vale ressaltar que, na cozinha “limpa”, se costumava cozinhar arroz, “verdurinha”, comida rápida.
Quanto a cozinha “suja”, se costumava cozinhar feijão, feijão com pele e como foi exposto acima,
funcionava para cozimentos mais demorados.
13
Informante: Srª Laís Munhoz, 62 anos, do lar. Local de nascimento: Arinos-MG. Entrevista realizada
em 11/12/02. Goiânia-Go.
14
Grifo meu. Este forno era reaproveitado. Isto nos sugere, a parcimônia e maximização, cerne da
economia doméstica.
28

durava horas... AH! Ela tampava o suspiro com um pano úmido...” (L.M. 62 anos, do
lar).

Na cozinha atual, deparamos geralmente com um armário de madeira antigo,


tipo cristaleira, (ver foto nº 03) onde são guardados os utensílios domésticos. Além
disso, em algumas casas, encontrou-se também uma paneleira presa no teto da cozinha,
onde é pendurado todo tipo de vasilhame usado no preparo da alimentação,
brilhantemente areados (ver foto nº 04). A mesa na cozinha é habitualmente para seis
pessoas e sempre forrada, constando também uma bandeja com uma garrafa de café e
xícaras, além do fogão a gás. Outro aspecto notório na cozinha são os panos de pratos
sempre mencionados nas narrativas, que chegam a impressionar pelo fato de serem tão
alvejados (brancos) e cuidadosamente expostos.

A partir da descrição da casa, percebemos que os quintais nos revelam a


possibilidade de descoberta das estratégias que definiram o comportamento da mulher
vilaboense como revelador de um habitus, onde se inserem relações de empréstimos de
ingredientes. Élis, (1998) , afirma que, na maioria das casas, existia um portão que dava
acesso a terrenos vagos e que possibilitava o acesso entre uma casa e outra. Nas suas
palavras: “Era uma casa de frente relativamente modesta, mas pelo lado do beco (...)
prosseguia extensa e por fim vinha o portão que dava entrada para o pátio interior”
(p.61). Assim, como poderia supor, é que grande número dessas mulheres envolvidas
com o modo de fazer empadão faziam uso deste portão para a relação de empréstimos
com a vizinha, o que poderíamos chamar de “circuitos de reciprocidade feminina”,
como, por exemplo, um prato de farinha de trigo, que vai, cheiro verde, que vem,
pimenta que vai e etc.(ver desenho planta baixa em anexo)

Neste sentido, este comportamento baseado em costumes e tradições inerentes às


mulheres vilaboenses, acaba por revelar o que, Bourdieu (1994) chamou de modus
operandi, que apreendido empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um
meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições, que designa,
uma maneira de ser, um estado habitual (op cit).

Segundo Rodrigues (1982) , com a abolição da escravatura, “a casa teve que se


tornar auto-suficiente, distribuindo em equipes o trabalho do sustento diário, como foi
visto anteriormente. Havia um princípio rígido de educação: - “Aprende minha filha, se
você um dia puder, saberá mandar e se não puder, saberá fazer”. Ocupavam as filhas,
parentes e aderentes da casa, em trabalho como doces finos e quitandas. Desenvolveram
29

a indústria caseira de doces cristalizados e em calda. Cada família se esmerava e ficava


famosa numa determinada receita. Não contavam nunca a maneira de fazê-la a
ninguém; era um segredo que passava a ser da família. Quando alguém pedia a receita,
dissimulavam, ofereciam-se para fazer, e quando davam, faltava o detalhe, de maneira
que nunca outra pessoa a fazia igual” (Rodrigues; 1982:43).

A narrativa acima enfatiza dois aspectos que gostaria de discutir neste momento
visando, a uma relação com o empadão: 1º) “cada família se esmerava e ficava famosa
numa determinada receita” como, por exemplo: Dª Sílvia Curado que, a qualquer
recinto que se chega, todos citam-na como referência do empadão, além é claro, do
alfenin. E Dª Antônia - doceira, uma das Irmãs Martins, que na Cidade de Goiás é
famosa pelos “docinhos de limão, recheado com doce de leite”. 2º) “um segredo que
passava a ser da família” como, por exemplo: o miolo de pão que é salpicado no molho
para que fique grosso.

Durante as etapas de campo, pude perceber que, no que se refere ao empadão,


existe uma infinidade de receitas, como poderemos ver mais adiante, que acaba por
eleger certas famílias como especialistas. No entanto, na constituição de cada uma
dessas famílias, há uma mulher especialista em fazer o empadão, que a própria família
delega a ela autonomia e responsabilidade sobre o “modo de fazer”, o que nos
possibilita compreender melhor a condicionante mudança-continuidade que veremos
nos aspectos econômicos.

Quanto ao segundo item, notei que muitas das empadeiras guardam consigo “um
segredinho”, que não é passado para qualquer pessoa, principalmente quando é de
“fora”. É o exemplo de uma descendente de família tradicional, que se negou a repassar
a receita, temendo que eu fosse uma concorrente. Interessante ressaltar que esta receita é
uma das poucas referências sobre a massa folhada. Neste caso, pude, então, concluir que
a receita somente é “doada” no âmbito da família, o que significa uma “herança”
passada de mãe para filha. A “nora” somente recebe a receita e o “segredinho” quando
também é vista como mais uma filha que foi agregada ao núcleo familiar. A justificativa
encontrada para tal questão é sempre a mesma: “Ah! ela não serve para fazer isso não.
(...) Não se interessa...”.

Maria Martins (ver foto nº 05) chama atenção para a vocação e o amor. Segundo
ela, “não adianta, se a pessoa não tiver amor”. Conta, também, que muitas pessoas
reclamam que ela fornece a receita errada. “Várias pessoas falam para mim assim:
30

‘você não me deu a receita certa’. E eu respondo que dei sim. Mas se não tem vocação
e amor, não faz o empadão correto!” (M.M.,52 anos, cozinheira, casada).

A relação entre vocação, amor e segredos culinários, no meu ponto de vista, são
muito próximos. Ao afirmar isso, quero dizer que, à medida que a pessoa se dedica,
aperfeiçoa no processo de combinações alimentares, ela vai criando novos códigos que
são, muitas vezes, guardados com o intuito de ganhar mais prestígio sobre aquela
iguaria. No nosso caso, em especial o empadão, pude constatar tal fato a partir dos
dados levantados em campo. Além disso, a narrativa a seguir confirma esta projeção:
“A cada dia que você vai fazendo o empadão, você aprende um novo ‘segredinho’ e faz
sucesso!” (R.M.P. 48 anos, salgadeira).

Nas palavras de Rodrigues (1982) , “a vilaboense tem prazer em preparar suas


comidas; ela cozinha com amor. Na antiga capital, se usa predominantemente a carne de
porco frita, seca ou em bife; arroz com pequi; frango com pequi e o famoso “empadão
goiano”. O recheio deste empadão consta: pedaços de pão, queijo fresqüinho, batata,
carne de porco frita, de vaca15, pedaço de frango, lingüiça, azeitona inteira, guariroba,
‘petit-pois’ e muito molho de tomate acebolado” (1982:44).

A impressão que tenho das mulheres vilaboenses que atuam com o “modo de
fazer” empadão é que, maioria, são de origem “tradicional”. A história objetivada de
cada uma dessas mulheres nos dá sustentação para evidenciar uma conjuntura específica
para cada caso que se segue. Todas as entrevistadas que participam deste processo
foram e são ponto de apoio e referência para atitudes importantes nos momentos
decisivos. Elas consolidam, ao longo de décadas, uma função de protagonistas que
dirigem muito mais que a cozinha. Considere-se, inclusive, que “a própria cozinha,
numa cidade típica do interior de Goiás, já exerce um papel fundamental na vida social,
posto que nas casa é que ocorrem as reuniões políticas” (Ribeiro; 1998:306).

Segundo Bittar (2002) , “o entrelaçamento de fatores econômicos, sociais,


culturais e políticos, aliados ao isolamento, marca indelével da Cidade de Goiás,
estabelece - durante o século XIX e início do XX - uma problemática da qual emerge o
destaque de um fragmento: a mulher no papel de matriarca” (p.111). A palavra

15
Chamo atenção para a carne bovina, porque este é o primeiro dado encontrado entre as narrativas que
apresenta o ingresso deste produto no empadão goiano. Subentende-se, portanto, que pelo fato de o
empadão ser um prato para dias especiais, ou seja, característico de um ritual, isto pode siginificar a
combinação dos ingredientes como símbolo de fartura.
31

matriarca vem do latim - mater - e significa mãe, aquela a quem é socialmente atribuído
o papel de mãe, pessoa muito boa, dedicada, desvelada. Neste sentido, considera-se
matriarca, a mulher/mãe que exerce autoridade significativa na família. Na interpretação
de Bittar, o contexto que origina a vilaboense-matriarca - a economia de subsistência -
também intensifica e consolida esse papel, uma vez que leva o homem a ausentar-se de
casa e das decisões do dia-a-dia, forçando-o a buscar trabalho como tropeiro, boiadeiro
ou soldado.

À Matriarca vilaboense passa a caber a responsabilidade de manutenção da


família, arcando sozinha com esse encargo e tornando-se senhora de seu espaço. “Na
luta pela sobrevivência, a mulher representa a força produtiva da qual o homem não
pode abrir mão” (Bittar; 2002:113). Entretanto, mesmo com o advento deste novo
modelo que se instala na Cidade de Goiás, até meados do século XX, não foi possível
perceber alterações substanciais em relação ao papel da cozinha e da mulher, agente
privilegiada nesse domínio. A cozinha continua sendo o centro polarizador da
intimidade da casa. E é nesse domínio que a mulher vilaboense atuou e atua preparando
o empadão como pretexto de convívio e de reprodução de relações sócio-econômicas.

O papel central que a cozinha assume aqui neste trabalho torna-se possível pelo
fato de a cozinha materna na Cidade de Goiás, permanecer viva, constituindo elemento
importante na pauta da identidade local. A cozinha é investida da responsabilidade de
resgatar a identidade local. Portanto, ela aparece como elemento agregador, mesmo
daqueles que vivem fora da sociedade em questão.

Ademais, a cozinha materna a que me proponho comentar, agora, expressa uma


categoria simbólica significativa, quando percebemos o seu significado enquanto
elemento agregador de valores atribuídos à boa cozinha e à boa mãe. É o exemplo do
filho que sai para estudar, trabalhar, casar e que, na ausência do lar, sente saudade da
comida, do empadão da “mamãe”. Este sentimento é que possibilita identificar a
cozinha vilaboense como sendo essencialmente familiar. Seguem alguns dos
depoimentos:

“Para mim, quem faz o melhor empadão é a minha mãe. Porque


é a única que eu conheço que faz o empadão gostoso é ela” (L.A.P. 41
anos, técnico em telecomunicações).
32

“Eu não sei de nenhum empadão mais gostoso que o da minha


mãe aqui na Cidade de Goiás” ( A.C. 38 anos, professora).

“Quem faz o melhor empadão aqui é minha sogra. Toda vez que
a gente vem para Goiás, ela faz um especial” (I.R.L. 40 anos,
publicitário).

Vimos, portanto, que a cozinha materna representa uma referência viva mesmo
na memória daqueles que migraram. À seguir, veremos como esta cozinha materna, em
consonância com concepções vilaboenses, traduz em si histórias de vida que expressam
práticas e valores tradicionais.

A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas:

A maioria das interlocutoras, no momento da pesquisa, revelou como a cozinha


representa, para elas, uma ordem do mundo. Para Giard (1998) , In A Invenção do
Cotidiano, “os hábitos alimentares de uma determinada sociedade num dado tempo
estão ligadas por coerências internas, invisíveis, mas reais” (p.245). Para Lévi-Strauss, a
cozinha[ no sentido de comida] constitui “uma linguagem na qual cada sociedade
codifica mensagens que lhe permitam significar pelo menos uma parte do que ela é”,
isto é, “uma linguagem na qual ela traduz inconscientemente sua estrutura” (Lévi-
Strauss, 1967/1968 apud Giard; 1998:246).

Todos os exemplos que se seguem sobre mulheres vilaboenses que, de certa


maneira, estão inseridas no mundo da cozinha, têm, em particular, uma história de vida
que nos permite entender o empadão goiano como uma expressão de práticas e valores
culturais que foram passados de geração a geração.

No ato de cada entrevista, identificaram-se memórias16, ligadas aos hábitos da


infância, juventude e fase adulta. É o caso de Benedita Siqueira- “nené Gonzaga”, 89
anos, do lar, viúva, que se lembra do forno de barro, localizado no “terreiro” de sua casa
na fazenda, geralmente usado para assar o empadão. No ato da entrevista, notei que
aquele forno de barro parecia representar algo tão importante para a informante que ela,
sem nenhum constrangimento, suspirou lembrança. Ela conta ainda que, quando
criança, era em casa que se produzia de tudo: “comia-se o que se criava e o que se

16
A respeito do debate teórico sobre memória, ver Halbwachs(1990).
33

plantava no quintal. Somente no final de semana ou em dia de festa, que variavam os


pratos. E fazia empadão, geralmente nestes dias só para a família”.

Ao se referir à produção realizada no quintal da fazenda, a informante enfatizou,


além da produção de subsistência, a distinção entre o prato do dia-a-dia e os pratos
especiais que necessitavam de maior rigor de mercadorias advindas de “fora”. No caso
dos quintais da Cidade de Goiás, como já vimos, o que se cultivava e criava era para o
consumo interno que acabava por estabelecer um elo entre a economia doméstica e os
produtos originários da fazenda e estabelecimentos comerciais 17.

A entrevistada revela que, aos dez anos de idade, se lembra de uma “morena
muito antiga” e que entregava empadão em casa, para seu avô, por encomenda. “Ela
chamava Maria Nazaré. Ela morava lá na rua Boa Vista, ela fazia um tabuleiro grande,
que as empadas era desse tamanho18. E não era fôrma de barro não porque a fôrma de
barro é muito pesada, era de lata”.

O trecho acima reproduzido dá indícios de que a encomenda do empadão


assumiu papel primordial, feita de acordo com o gosto de cada família. Em outras
narrativas, percebe-se que a encomenda agrega, além do gosto em especial, a
possibilidade de criação. O empadão goiano é o feliz resultado da criatividade das
empadeiras que, para agradar com um único prato ao paladar do “freguês”,
desenvolveram esta espécie de iguaria. Isso o que faz acreditar na perspectiva de
mudança/continuidade que veremos posteriormente.

Dª Benedita Siqueira conta que, quando se casou, morou cinqüenta anos na


fazenda, no Município de Mossâmedes-GO. Segundo seu relato: “Lá eu comecei a fazer
empadão. Antes eu não fazia, pois, nessa época, eu não tinha casado ainda. Voltei para
a Cidade de Goiás, fiquei viúva, os filhos se casaram e aí parei de fazer empadão. Já a
Eva, minha filha faz...” Assim, constatou-se que sua filha aprendeu e, hoje, além de ser
proprietária de uma cantina escolar em Goiânia-GO, faz empadão para a mãe quando
sente vontade de comer. Quanto às netas, afirma: “só pega na caneta e nada mais. Eu
vou falar, não tenho uma neta que me puxou. Não querem nada com nada! São duas
formadas em Direito, uma em Administração e outra em Pedagogia”.

17
Sobre esta questão, tratarei mais adiante com maior propriedade mostrando a relação entre os produtos
da natureza/quintal/fazenda/comércio.
18
Quando questionei sobre o tamanho do empadão, ela mencionou cerca de 20cm. A informante disse
ainda que as fôrmas eram feitas no latoeiro.
34

Sobre a geração de mulheres mais velhas que não se casaram e não tiveram
filhos - as celibatárias-, constatou-se que muitas não fazem empadão. “Sabem de cor a
receita”, mas não o fazem devido a algumas razões que merecem análise. Primeiro, não
constituíram famílias. Segundo, ocuparam-se com outras especialidades culinárias,
como, por exemplo, os doces. Terceiro e último, porque ac ham que não são pessoas
“apropriadas”. Entretanto, há aquelas que o fazem, e assessoram diretamente a vida
escolar dos sobrinhos e sobrinhos-netos, com parte do lucro proveniente da venda do
empadão.

Essas justificativas nos parecem procedentes, mas pensamos que é preciso situá-
las, com algumas peculiaridades, em relação ao fato dos não-casamentos na Cidade de
Goiás até meados do século XX. Em geral, alguns argumentos nos permite m
compreender as razões que definiram este aspecto: “a) a falta de rapazes di sponíveis; b)
dedicação aos pais na velhice; c) dedicação aos irmãos e sobrinhos; d) inexpressividade
dos pretendentes; e) fidelidade a um namorado distante; f) temperamento inadequado ao
casamento” (Ribeiro; 1998:304).

Para Nunes (2001) 19, “também em Goiás, o conceito de casamento subordinava


o indivíduo aos interesses da família; as asas do cupido estavam amarradas pelas
limitações sociais. Até o final do século XIX, a maioria dos casamentos realizados, nas
classes sociais mais abastadas, representavam mais um contrato de política e de
fortalecimento dos grupos de parentesco do que uma interação amorosa. Casamentos
entre parentes eram ideais porque garantiriam a preservação do status e dos bens
econômicos numa sociedade cheia de etnias misturadas e de aventureiros”.

Goiandira do Couto, 86 anos, celibatária, (ver foto nº 06) não faz empadão.
“Sabe de cor a receita”, porque presenciou várias vezes sua avó fazê-lo. No entanto,
observei, no seu depoimento a crença de que a mulher não pode comer empadão quando
está de resguardo. Vejamos, portanto, o seu relato:

“Não se comia empadão no período do resguardo20, porque


tinha muito tomate. Não lavava a cabeça. Na época do resguardo

19
Nunes, Heliane Prudente. 2001. “Histórias da Família no Brasil e em Goiás: Tendências e Debates”.
In: Goiás: Identidade, paisagem e tradição/ Nasr Fayad Chaul; Paulo Rodrigues Ribeiro(Orgs.). Goiânia:
Ed. da UCG. p.69.
20
“É durante o resguardo, período de reintegração simbólica e de restabelecimento do equilíbrio
orgânico, que são seguidas uma série de restrições alimentares. Durante o resgurado cumpre restabelecer
o equilíbrio. Por isso são interditados os alimentos definidos como “quentes”. Igualmente não deve a
35

(quarenta dias) comia só macarrão com queijo. Não havia gordura,


não havia tomate, não havia tempero. Por isso que antigamente o
povo vivia mais” (G.C. 86 anos, artísta plástica).

Com menor freqüência, observei que muitas das mulheres vilaboenses não
fazem empadão quando de resguardo. A causa é sempre explicada como um período em
que o corpo está em convalescença e que não deve haver contato com fogo, forno, fazer
esforço para abrir a massa. Com maior freqüência, não comem o empadão, justificando
que é uma comida “quente” e “reimosa”. Transcrevo outro exemplo:

“Minha mãe não deixava comer... eu não comi. Minha mãe


dizia que era por causa da carne de porco e o extrato de tomate. Em
muitas casas ainda é seguida essa tradição. Hoje, ainda muita gente
não come porque fala que é reimoso” (M.M.52 anos, cozinheira).

Para Brandão (1981), “divergências de versões a respeito de quente/reimoso vão


desde o uso comum das duas palavras para traduzir os mesmos atributos nos mesmos
alimentos (“quente e reimoso é tudo uma natureza só”) ” (p.123). Segundo o referido
autor, o que se pode concluir das tentativas locais21 de classificação é o seguinte:

1. Todo o alimento “reimoso” é também um alimento “quente”;


2. Todo o alimento “muito quente” é também “reimoso” ou “muito reimoso”;
3. Todo o alimento “quente” é, no máximo, “reimoso”, nunca “muito reimoso”.

O exemplo acima se aproxima da concepção que a comunidade vilaboense tem


sobre o empadão. O par quente/reimoso no empadão se classifica em: carne de porco;
guariroba; tomate. Com alguma reima: frango e ovo.

Woortmann (1978) , considera que “em muitas culturas, se não em todas, o ciclo
fisiológico da mulher é apreendido simbolicamente e tornado critério definidor de sua
posição nas respectivas sociedades. A menarca 22, a menopausa, a menstruação, a
gravidez e o puerpério são mais do que momentos ou estados fisiológicos - ‘são

mulher comer alimentos “fortes”, pois seu organismo está fraco, e o resguardo é análogo a uma
convalescença. Ademais, são-lhes interditados quaisquer alimentos ‘reimosos’” (Woortmann;1978:164).
21
Vale lembrar que Brandão (1981) realizou sua pesquisa em Mossâmede-GO, cidade vizinha a Cidade
de Goiás, portanto, o seu estudo se aproxima da realidade regional.
22
Primeira menstruação
36

passagens’ e, como tais, marcados de perigos e de cuidados rituais. Tais cuidados,


particularmente as prescrições e proibições alimentares, revelam, de um lado,
concepções sobre a relação entre o organismo e a alimentação. Mas, de outro lado,
constituem uma linguagem ‘econômica’, como o é a linguagem ritual e o simbolismo
em geral, pelo qual se fala da mulher enquanto ser social” (Woortmann; 1978:155).

No que se refere ao preparo do empadão, observou-se no relato de Dª Augusta


Soares, 62 anos, celibatária e empadeira ( ver foto nº 07), a crença que a mão quente não
é muito favorável para a confecção do empadão: “desanda um pouco”. Para evitar este
tipo de problema, sugere que seja rápido no processo de abertura da massa ou use a
linha de lã ou rolo para abrir. “Esse povo de hoje que é cheio de coisa. Mas não tem
esses problemas não... mas eu não fico muito em contato com a massa não”.

“No Brasil, como em muitas outras sociedades, a mulher é percebida como um


ser ambíguo, que transita entre a natureza e a cultura. Ela é um ser liminal e, por isso
poluída e perigosa (Cf. Douglas, 1970; Campbell 1964; Leach,1964 apud
Woortmann,1978: 156). Em certos estados agudos ela deve ser cercada de uma série de
tabus. Tais concepções relativas à mulher são parte de um modelo ideológico de
dominação em sociedades onde o poder é masculino” (Woortmann; 1978:156). Mas são
também interiorizadas pelas próprias mulheres, conforme o depoimento abaixo de
Maria Martins, 52 anos:

“A mão quente realmente não serve porque a massa fica mole


na mão. Não sei se é superstição mas realmente funciona. A pessoa
não consegue abrir a massa. A pessoa que tem a mão quente nem um
“empadãozinho” ela consegue fazer. A massa estoura...”

Para Giard (1998), o ato de cozinhar exige um “alto grau de ritualização e


investimento afetivo. As atividades culinárias são para grande parte das mulheres de
todas as idades um lugar de felicidade, de prazer e de invenção” (p.212). Neste sentido,
constituem de fato um dos aspectos fundamentais da cultura comum. Este é o caso da
história de família de Dª Sílvia Curado, 70 anos, viúva, doceira, (ver foto nº08) de uma
das mais tradicionais famílias vilaboenses que, ao relatar algumas peculiaridades da
família, nos informou o seguinte:
37

“...É... minha vó fazia empadão goiano... e aí tinha aquela


tradição de fazer especial pra cada um dos genros e noras. Quem
gostava de “especial” tinha as vasilhas maiores, que ela preparava. E
dentro dessa vasilha ela colocava então um pedaço de frango que a
pessoa gostava. O genro, por exemplo, gostava de “coxa chata”23, ela
colocava coxa chata dentro do empadão pra ele. E registrava uma
marca. Colocava a marca inicial dele em cima, na hora de fechar,
para saber depois, qual era a do fulano e a do siclano” ( Dª S. 70
anos, doceira)

Observou-se, nesta narrativa, a atenção especial que é dada a cada membro do


núcleo em questão, sobretudo quando faz referência aos empadões personalizados. Esta
peculiaridade acaba por evidenciar, mais uma vez, como o empadão em domínio
privado está ligado ao que podemos chamar de integração familiar.

Ademais, aqui, torna-se pertinente apontar uma questão ainda não dimensionada
anteriormente: a distinção entre empadão especial/familiar; empadão familiar e
empadão. O primeiro se refere, ao que tudo indica, à uma ocasião especial, quando a
matriarca vilaboense prepara o empadão de acordo com o gosto de cada filho ou
membro da família no âmbito do privado e que tem uma conotação de “ritual” de
comensalidade.

Quanto ao empadão familiar, este conota uma questão de “agregação”;


“integração” e que sobremaneira, também, está relacionado ao âmbito privado e
também à uma ocasião especial, como por exemplo, reunião de família ou almoço
dominical, o que implica também “ritual” de comensalidade.

O empadão/ “empadão comercial”, ele também tem esta propriedade especial


mas com uma outra conotação que é, além da comercial, a do plano público. Ou seja, a
empadeira, no preparo e confecção, cria meios de distinção que o caracteriza como um
empadão comercial, porém, voltado para uma porção individual que atende à
preferência do “freguês”. Os meios de distinção relativos a este empadão podem ser
vistos da seguinte forma: para o empadão com guariroba coloca-se uma bolinha feita
com a própria massa em cima dele. Para o empadão com ovo, coloca-se uma cruzinha

23
Coxa chata = sobrecoxa do frango.
38

ou um “X” em cima para o diferenciar dos demais. Percebe-se, então, uma certa
“linguagem de sinais” que é criada para estabelecer certas diferenças entre os empadões.

Em sua trajetória de vida, Sílvia Curado conta a morte de seu pai, em 1944.
“Meu pai morreu cedo, em 44. Ele cozinhava divinamente bem”. Isto sugere que, antes
da década de 40, há registro de homens na cozinha, o que desconstrói toda concepção
naturalizada de que somente as mulheres cozinhavam na Cidade de Goiás. Nesta mesma
direção, constatei que, quanto ao empadão, os homens também participaram da tarefa de
buscar e cortar lenha, buscar guariroba, contribuindo, então, com a divisão de tarefas.

O que vale destacar aqui são dois aspectos importantes: 1º) a relação entre
história e cotidiano; 2º) a divisão de tarefas. Ao longo da história, foi naturalizado que o
homem esteve sempre vinculado à esfera de produção, da vida pública e em “chefes de
família”, ao contrário das mulheres, fixadas à esfera doméstica enq uanto mães de
família. No entanto, após o levantamento dos dados, observei que, diferentemente deste
posicionamento, alguns homens; estiveram, sim, ligados às tarefas domésticas,
principalmente em dias de festa ou em ocasiões excepcionais. O que sugere estabelecer,
aqui, uma distinta comparação entre a mulher que cozinha cotidianamente, em oposição
ao homem que cozinha em dias especiais, em uma reunião familiar ou de amigos ou aos
domingos. Tal fato nos permite considerar que há uma imbricação com relação à divisão
de tarefas, sobretudo quando este imenso campo da vida privada e cotidiana se define
como um lugar derivado de historicidade, mas, principalmente, espaço produtor de
história- história do homem que sai para lenhar, buscar a guariroba, carregar a argila
entre outras atividades em relação ao “modo de fazer” empadão.

Mary Del Priore (1997), autora do artigo História do Cotidiano e da Vida


Privada, considera que, “ (...) as relações entre as duas esferas - pública e privada - não
se dão mais num senso único de dominação de uma esfera por outra, realizam-se numa
relação de articulação entre dois pólos entre os quais existe uma dialética constante”
(Del Priore; 1997:268). Neste sentido, como podemos perceber o fato de o pai de Dª
Sílvia Curado, “cozinhar divinamente bem” não significa, como poderia supor, que ele
esteve sempre ligado à esfera pública; o que temos ai é um contrato entre ambas as
partes, como poderemos ver mais adiante em relação ao exemplo do homem que
domina a cozinha/empresa (mas é o proprietário do estabelecimento) e a mulher que
administra as finanças.
39

Dª Sílvia Curado conclui sua entrevista, afirmando que todas as


suas filhas sabem fazer o empadão, mas, no entanto: “Todo mundo
sabe fazer. Mas elas não importam, porque quando querem comer,
vêm comer aqui em casa. Você sabe quantos empadões eu faço de
cada vez? 110 a 120 empadas. Só para a família. Eles comem aqui e
levam para casa24. Para os mais comilões eu faço grande” (DªS.C.,70
anos, doceira)25.

Nesta narrativa, encontramos a dimensão de “replicação/extensão” de agregação


familiar, para a casa dos filhos da matriarca Silvia Curado. Assim sendo, podemos
considerar que, este é um caso específico, onde o empadão sai do plano estritamente
matriarcal e, numa dimensão de “replicação/extensão”, estabelece a idéia de
manutenção do “ritual” de comensalidade. É o processo de continuidade inserido na
dinâmica da tradição relativa ao empadão goiano.

As histórias de vida das mulheres que participaram dessa pesquisa comprova m


de maneira inequívoca a sua contribuição para a sobrevivência e manutenção das
famílias e, conseqüentemente, para a economia da região. A história de vida de Maria
Martins, por exemplo, não se resumiu somente em cozinhar, lavar e passar. Sua história
começa aos sete anos, auxiliando sua mãe no preparo do empadão. Com dez anos
segundo seu depoimento, “já fazia tudinho o empadão sozinha”. Deu início ao processo
de comercialização do empadão aos dezoito anos: “Eu fui para Goiânia, trabalhar
como doméstica. Lá eu fazia e todo mundo gostava. As amigas da minha patroa
comiam e pediam que eu fizesse em suas casas. Não tinha folga”. Completa ainda sua
narrativa: “Era para completar o salário. Voltei para Goiás e continuei fazendo para as
famílias em dia especial26. Até hoje ele é usado assim...” (M.M.,51 anos, cozinheira).

O empadão, no plano do privado, caracteriza-se como “empadão especial em dia


especial”. Entretanto, devo ressaltar que o empadão ganha a dimensão de especial por
revelar algumas peculiaridades, também especiais, como, por exemplo, fazê-lo de uma
maneira especial, com ingredientes especiais para uma ocasião especial para pessoas
especiais. E estas propriedades especiais, o difere do empadão familiar em determinadas

24
Grifo meu.
25
Dª Sílvia Curado é doceira reconhecida internacionalmente e só faz empadão para a família.

26
Grifo meu.
40

situações, porque, aqui, ele tem a especificidade de combinar a mão-de-obra especial


com a manutenção da tradição em especial.

Essa mesma imagem de mulher dinâmica é encontrada no depoimento de


Ondina Leite, 47 anos, recentemente viúva. Ela relata que o período de transferência da
capital para Goiânia, em 1937, foi marcado por transformações no estilo de vida e pelo
surgimento de uma nova realidade que regulava as vivências familiares:

“Éramos onze, então era muito filho, pra minha mãe cuidar e
meu pai. Ele era muito rico e quebrou. Então ele ficou meio
desequilibrado, não se conformou com nada. Então minha mãe que
pegou o peso da casa... É, ela vendia empada, eu comecei a fazer
empada com sete anos. Eu comecei a fechar. Ela colocava os menores
pra ir fechando. Ela mandava a gente fazer com o dedo. Modelando a
empada pra ficar bonita. (...) Então com sete anos, a minha mãe
colocava eu e a minha outra irmã de seis... cinco anos, pra gente
aprender primeiro a modelar. (...) ” (Dª O. L. 47 anos, comerciante).

Além da referência à nova conduta, o depoimento apresenta algo fundamental: o


processo de ensino-aprendizagem. Em maioria, os relatos apresentaram esta perspectiva
como uma condicionante ligada ao processo saber fazer. “Eu sei fazer porque aprendi
com minha avô... minha mãe”. Não obstante, percebeu-se que os processos cognitivos
inseridos no saber fazer empadão estão condicionados a dois fatores. Primeiro: que uma
informação nova só é recebida e assimilada quando quem a adquire consegue configurá-
la, adaptá-la à sua maneira; e segundo, que o processo ensino-aprendizagem depende
também da maneira e da situação em que é repassado. Geralmente, conforme exposto
até aqui, em situações em que a família é o principal agente.

O depoimento a seguir conta a história do Sr. Emival Alcântara de Almeida, 41


anos (ver foto nº 09), atual proprietário de uma lanchonete no Mercado Municipal da
Cidade de Goiás. Este depoimento foi escolhido entre os vários exemplos de homens na
cozinha/empresa (ver foto nº 10), com a finalidade de mostrar como neste
estabelecimento se configura uma dimensão em que o chefe da cozinha é o próprio
informante e a administradora das finanças do caixa é a mulher.
41

A cozinha neste local é masculina, ou seja, todos os membros da cozinha do


estabelecimento são homens. No entanto, observei também que na lanchonete o
predomínio é feminino, exceto o jovem que frita os pastéis, mas que, ao mesmo tempo,
não fica exposto ao público. Ao conceder a entrevista, o informante declarou que
prefere sua esposa à frente do estabelecimento “porque mulher atende melhor”. Como a
cozinha fica aproximadamente a uns trinta metros de distância da lanchonete, que m
chega de fora e não conhece pensa que a propriedade é das mulheres que lá se
encontram. Somente depois de muita observação, é que se verifica que, na verdade o
“dono da cozinha” e do estabelecimento comercial é homem. Segue seu depoimento:

“Nascido em 3 do 10 de 1960. Tradicional de Goiás. Comecei a


trabalhar no mercado com 10 anos. Eu era vendedor de ovo, abacate
e banana na rua. Vendia para meu avô. Na falta dele, trabalhei com
um rapaz... Depois fui pra lanchonete “Tainára de Deus”... trabalhei
bons anos... Depois no supermercado... tudo assalariado. Em 81, fui
para São Paulo trabalhar de bóia-fria. Eu voltei em 82. Em 85 eu
casei: ‘Com uma mão na frente e outra atrás’. Montei um lanchinho...
eu e a minha esposa. Começamos a fazer pastel, pão de queijo e bolo
de arroz ... Cada dia, inventava um pão de queijo, um bolo de arroz.
Parti para empada, enroladinho... fui crescendo. Hoje estou com 18
variedades de salgados. (...) Só vocal, não tenho nada anotado. Hoje
eu uso os meus conhecimento... não tenho uma receita aqui. (...)
Continuo minha vida do mesmo padrão... em busca de qualidades de
vida” (E.A.A.41 anos, comerciante).

Como foi mencionado, existe ai uma inversão simbólica em relação à casa: o


homem cozinha e a mulher, além de administrar as finanças, é encarregada de atender
os fregueses. O empadão, aqui neste contexto, recebe a conotação comercial, o que
veremos mais adiante no aspecto econômico.

Na medida em que conduzi o problema norteador da nossa pesquisa em questão,


procurei mostrar as formas de adequação da mulher à vida privada, sua interseção com a
esfera pública, através de uma rede de sociabilidade, colocando-nos diante da sua
42

identidade social e dos mecanismos de seu enquadramento. Para Ribeiro (2001) o


conceito de identidade “está relacionado ao conceito de memória. Chamamos de
identidade os mecanismos de enquadramento da memória, isto é, os mecanismos de seu
reconhecimento social (...) A identidade está relacionada ao processo de singularização
de uma formação social, revelando a sua distinta maneira de existir, criando as
referências que a tornam única, singular”. 27

Memória: uma perspectiva teórica sobre o empadão

Considerando que a análise que me proponho a fazer neste momento está


relacionada ao empadão como produto da memória vilaboense, a questão agora é a
seguinte: como foi transmitida e conservada a memória sobre o empadão? Como a
comunidade local, através de gerações, conservou a memória do saber fazer ? E como
essa memória foi inserida na cozinha como uma expressão de saberes e práticas
tradicionais? O que nos leva a pensar sobre esta dimensão entre passado e presente além
da perspectiva de tradição é a memória.

Quando cheguei em campo, notei uma construção de memória sobre o empadão


relacionada ao antes e o depois do título de “Patrimônio da Humanidade” 28. O antes é
repassado como algo mais ‘tradicional’ e, o depois, como mercadoria. Agora, pergunto:
como é transmitida esta memória e como é conservada pelo grupo 29, se estamos diante

27
Ribeiro, Paulo Rodrigues. 2001. Sombras no Silêncio da Noite: Imagens da Mulher Goiana no Século
XIX. In: Goiás: identidade, paisagem e tradição/Nasr Fayad Chaul; Paulo Rodrigues Ribeiro (Orgs.). -
Goiânia: Ed. da UCG. p. 46.

28
Foi necessário instituir este termo ‘Patrimônio da Humanidade’ aqui neste momento, para estabelecer
um referencial do antes e depois. Apesar de como veremos nos aspectos econômicos, a
mudança/continuidade relativa ao modo de fazer empadão se acentua a partir dos anos 70 no século
passado.
29
O termo grupo é aqui utilizado num sentido generosamente lato e com alguma flexibilidade de
significado, de forma a incluir tanto as pequenas sociedades, em que todos se conhecem, como as
sociedades territorialmente extensas, em que a maior parte dos seus membros não se pode conhecer
pessoalmente (Connerton;1999:01). Devo lembrar que a Cidade de Goiás vive hoje esta flexibilidade,
dado à complexidade alcançada pelo título de Patrimônio da Humanidade.
43

de uma distinção de tempo? A resposta pode ser atribuída ao conjunto de memória


inserida ao longo dos anos, repassada a este grupo através de gerações:

“A minha avó nasceu em1889. A minha mãe nasceu em 1904.


Eu nasci em1934. Minha filha nasceu em 1967 e minha neta nasceu
agora em 1998. A minha avó fazia empadão, a minha mãe fazia,
agora não faz mais, porque está com noventa e oito anos... não dá
mais conta. Eu sei fazer, ainda do jeito que mamãe ensinou, mas acho
muito demorado, prefiro fazer do jeito mais prático. A minha filha
sabe, mas não gosta de fazer não, porque dá trabalho e ela não tem
muito tempo. A minha neta come com a gente aqui em casa. A minha
avó usava folha de bananeira para separar a massa... Naquela época,
a massa era diferente, não tinha esse fermento que a gente usa hoje
não!... Minha avó fazia ela crescer de um dia para outro... No tempo
da minha mãe a receita era a mesma. A minha receita já é mais
comum, não leva leite... só água...poucas horas pode abrir que já tá
pronta! É muito simples, mais sei fazer do modo da minha mãe
também” (S.C.70 anos, doceira)

Sendo a memória um fenômeno construído, percebe-se, segundo o depoimento


que, ao longo de gerações, ocorrem diferentes formas de constr ução da memória.
Podemos chamar esta categoria de memória seletiva. Em vários momentos, Maurice
Halbwachs não fala apenas da seletividade da memória, mas também de um processo de
“negociação” para conciliar memória seletiva e memórias individuais: “Para que nossa
memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é
preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja
suficientes pontos de contato entre ela e as outras para a lembrança que os outros nos
trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum” ( Halbwachs, apud Pollak;
1989:03).

Em particular, quanto à memória seletiva, percebe-se que, “não existe memória


desinteressada”, cabe selecionar aquilo que é mais importante. É importante perceber
como nós retrabalhamos a memória para que gerações seguintes lembrem dela. No caso
do empadão em Goiás, nota-se que os informantes se lembram do modo como fazer
empadão de acordo com a sua vivência no tempo e no espaço. A cada geração, a
seletividade da memória torna-se algo determinante. “Antigamente” ou de “primeiro”
44

são referenciais fundamentais para a inferência da noção de tempo; entretanto, ambas


podem representar tanto informações distantes como recentes.

Conway (1998), considera que as gerações são transformadas em unidades


sociais devido às experiências compartilhadas. Neste sentido, podemos identificar a
geração de um indivíduo através de um exercício de memória e uma boa base para essa
identificação são suas datas de nascimento. Uma geração sempre compartilha uma
identidade comum, pois compartilham experiências e conhecimentos conceituais,
próprios de sua linha do tempo. Na Cidade de Goiás, observa-se que diferentes gerações
compartilham um modo distinto de fazer empadão. Mesmo que este processo tenha e m
si a condicionante tradição, é a partir da memória de cada grupo de idade que se percebe
a mudança/continuidade no que se refere ao “modo de fazer” empadão e do que é
definido como empadão em si. Um exemplo, relativo à esta categoria apontada pelo
autor é a empada à Patricinha, pois, a esta que a geração mais nova irá se referir quando
mais velha, ou seja, é este o modelo de empadão que esta nova geração tem como
referência.

Pollak (1992), em seu artigo Memória e Identidade Social, define o conceito de


memória da seguinte forma: “memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa
ou de um grupo em sua reconstrução de si” (PollaK; 1992:204). Pretende-se assinalar
que as narrações sobre o “modo de fazer” o empadão não se encontram no domínio da
construção mítica puramente, nem no da história, mas na interseção de ambos. O que se
assiste aqui é um caminho da história em direção ao mito através do trabalho da
memória ( Pietrafesa,1998).

O empadão, como expressão do sistema do lugar, (op. cit) simboliza a porção do


ambiente vilaboense transformada pelo uso e, sobretudo, preenche de significação
social, que indica quem e em que situações pode estar ali inserido dentro de um
complexo a que exprime categorias familiares, festas sociais, religiosas, aspectos
econômicos e ecológicos. O sistema do lugar, visto pelo ponto de vista do empadão,
implica a solidariedade, o respeito à honra e hierarquia, mas se refere também a um
conjunto de direitos combinados sobre o empadão. É esse o ponto que interessa aqui: a
relação entre memória e tradição.
45

Na relação entre tradição e memória, cabe mostrar que há uma aproximação


intrínseca entre os dois elementos. Uma vez que, se tomarmos como exemplo a tradição
em si, logo chegamos passo a passo à memória. Assim, a memória fundamenta a
tradição (Porto,1997). Entretanto, devo explicar que, embora tradição e memória sejam
próximas, não se confundem. Visto que a primeira possui, para a comunidade, uma
concretude que a distancia da segunda. Tradição é algo vivo e memória é lembrar do
passado. Além disso, memória e tradição são fundamentais para se pensar a identidade
de um grupo. Neste sentido, a memória é reconstruída e inventada para dar sentido às
reivindicações de um grupo (in Porto,1997).

Assim sendo, a tradição interfere na memória. Para Porto (1997) , esta


interferência se dá na medida em que estabelece o que se entende como representando a
continuidade com relação ao passado e, ao mesmo tempo, em seus conteúdos e na forma
que adota no presente. Segundo a mesma autora, ambas, contudo, têm uma ligação clara
com o passado, e é este o ponto que faz com que a reflexão sobre memória seja capaz de
fornecer pistas para lidar com a tradição. Tradição e memória extraem seu sentido do
presente e dos interesses da comunidade que as coloca em jogo. Ademais, um fato é
preciso, ao lidar com a tradição, lida-se também com a “memória da tradição”
(Porto,1997). Neste sentido a presente pesquisa tem por objetivo tratar o empadão não
apenas como um produto da atualidade, mas também dos discursos construídos em
torno da imagem do produto no passado.

No que se refere à memória em geral, podemos observar que a nossa experiência


do presente depende, em grande medida, do nosso conhecimento do passado. Daí a
dificuldade de extrair o nosso passado do nosso presente: não só porque os fatores
presentes tendem a influenciar alguns diriam mesmo distorcer as nossas recordações do
passado, mas também porque os fatores passados tendem a influenciar, ou a distorcer, a
nossa vivência do presente (Connerton,1999). Segundo Halbwachs, o que nos faz
lembrar é justamente esta aproximação entre um elemento e outro. Não tão somente o
autor nos faz refletir também sobre o elo existente entre o indivíduo e o grupo. Cabe
aqui melhor esclarecer, pois, se eu me lembro de algo é por que me o fazem lembrar.
Portanto, se a lembrança é algo do passado, ela só permanece viva por que está presente
na memória de outro alguém. Para Bergson (1990) , através da memória, o passado não
só vem à tona das águas presentes, mas também empurra, “desloca “estas últimas,
ocupando o espaço todo da consciência (Bergson,1990).
46

O depoimentos a seguir aponta para a dinâmica passado e presente:

“... eu faço o empadão tradicional somente para a família,


porque minha avó ensinou para minha mãe e ela repassou o modo
certo para as filhas. Hoje, as pessoas fazem empadão somente para
vender para os turistas. Claro que tem gente como eu que ainda faz
em casa para a família, mas no comércio, o povo faz diferente.
Antigamente, a gente procurava seguir a receita da avó, mas o tempo
hoje está muito difícil para todo mundo... todo mundo está correndo e
não dá mais tempo de fazer o verdadeiro empadão de Goiás, não! ...
A massa era folhada, tinha toda uma preparação antes. Era de
véspera!... A família se reunia nos finais de semana para comer
empadão. A gente fazia no forno a lenha, tem gente que tinha até
forno de barro em casa. Agora, as pessoas faz em forno de gás,
porque é mais prático e econômico. Eu mesma raramente faço porque
dá muito trabalho. Esses dias minha filha pediu para fazer, fiz só que
com uma massa prática que eu mesma inventei 30...” (O.L.,47 anos,
comerciante)

A narrativa indica a incorporação de elementos novos, modernos na tradição.


Para Porto (1997) , “mudanças na tradição” são extremamente circunstanciais, e entram
em jogo de acordo com os interesses particulares das pessoas que as expressam. Assim,
por exemplo, quando a narrativa tem em si uma propriedade de mudança/continuidade,
isto sugere que o discurso adquire o formato definido pelos interesses pessoais daquele
que o elabora.

No que diz respeito à memória social, constatamos que as imagens do passado


legitimam geralmente uma ordem social presente. É uma regra implícita pressupor uma
memória partilhada entre os participantes em qualquer ordem social. Se as memórias
que têm do passado da sociedade divergem, os seus membros não podem partilhar
experiências ou opiniões. (Connerton; 1999:03). O autor ainda completa que embora as
diferentes gerações estejam fisicamente presentes, umas perante as outras, num
determinado cenário, podem permanecer mental e emocionalmente isoladas, como se as
30
Grifo meu.
47

memórias de uma geração estivessem, por assim dizer, irremediavelmente encerradas


nos cérebros e nos corpos dos indivíduos dessa geração.

A questão, em torno da continuidade do empadão no tempo presente, gera, por


assim dizer, uma indagação que considero pertinente: por que o empadão perdeu e m
parte a sua caracterização familiar e passa a ter, crescentemente uma expressão
comercial? Embora seja uma pergunta complexa, e a sua resposta virá mais adiante, no
entanto, pode-se indicar, desde já, algumas pistas para resposta.

Neste sentido, como tratarei o empadão como um dos grandes demarcadores da


identidade vilaboense, pressuponho que alguns fatores nos permitem responder a esta
questão agora: primeiro, por ser o empadão uma das iguarias típicas do local, é
permissível considerar que a cada geração possa, então, incorporar um novo “modo de
fazer” sendo, portanto, transformado em atrativo para um grande número de visitantes.
Se por um lado todo o “modo de fazer” se aproxima, por outro cada um deles apresenta
características peculiares. São incrementados por diferentes modos de saber fazer e, por
conseguinte, diferentes memórias vinculadas diretamente às gerações que o fazem.
Enfim, creio que a certeza que trago neste momento é que a perda da tradição em
relação ao empadão familiar está relacionada ao processo de “adaptações” que cada
geração, através do conjunto de memória, tem para si. Assim sendo, a este conjunto
cabe a responsabilidade de dar ou não o sentido de mercadoria.

Esta discussão nos remete à distinção temporal relacionada ao “modo de fazer”


empadão. Gerações diferentes convivendo no mesmo espaço físico, porém, com
concepções “diferentes” sobre o mesmo produto. Entretanto, devo esclarecer que
estamos diante de um acordo firmado entre os membros da comunidade local, o que
vimos anteriormente perante a discussão sobre tradição. Acredito que a Cidade de Goiás
vive, hoje, o que Pietrafesa chama de ‘memória mundo’. Segundo a autora, ‘memória
mundo’ não se trata de se apreender a si mesmo dentro de um passado pessoal, mas de
se situar em uma ordem geral, de estabelecer, em todos os planos, a continuidade entre
si e o mundo, ligando sistematicamente a vida presente ao conjunto do tempo
(Pietrafesa,1998).

Para Connerton (1999), toda recordação, por muito pessoal que possa ser,
mesmo a de acontecimentos que só nós presenciamos, ou a de pensamentos que ficaram
por exprimir, existe em relação com todo um conjunto de idéias que muitos outros
possuem: com pessoas, lugares, datas, palavras, formas de linguagem, isto é, com toda
48

vida material e moral das sociedades de que fazemos parte, ou das quais fizemos parte 31.
Isto, aplica-se diz Halbwachs, tanto às memórias recentes como às distantes, pois aquilo
que une as primeiras não é o fato de serem contíguas no tempo, mas antes o fazere m
parte de um conjunto de pensamentos comuns a um grupo. Para evocar essas memórias
é suficiente, mais uma vez, orientarmos a nossa atenção para as recordações que
ocupam um lugar principal nos pensamentos do grupo (Halbwachs,1990).

* * *

O meu objetivo, agora, é mostrar precisamente as virtuosidades culinárias


herdadas pela linguagem da memória. Ao me referir à linguagem da memória quero
mostrar, a partir dos dados coletados em campo, como as pessoas se relacionam com a
memória no tempo e no espaço. Com respeito ao tempo, notou-se uma busca da
lembrança da infância, da juventude, da tarefa de dona de casa. “Quando nos lembramos
de uma viagem, mesmo não nos lembrando da data exata, há, entretanto, todo um
quadro de dados temporais aos quais essa lembrança está de qualquer maneira
relacionada: foi antes ou depois da guerra, eu era criança, jovem, ou homem feito, na
pujança da idade; eu estava com tal amigo que era mais ou menos velho; em que estação
estávamos; eu preparava tal trabalho; aconteceu tal coisa. É graças a uma série de
reflexões desse gênero que, com muita freqüência, uma lembrança toma corpo e se
completa” (Halbwachs; 1990:100).

Como bem retrata o autor, não reconstituímos o quadro temporal da lembrança,


a não ser que ela seja restabelecida. Neste sentido, somos obrigados a localizar a noção
de tempo e não tão-somente a data dos acontecimentos, para, a partir de então, examinar
em detalhes todas as partes. Tal perspectiva é muito pertinente e condiz com os dados
da pesquisa.

Bergson (1990) fala que existem duas memórias distintas: a memória-hábito e


imagem-lembrança. Ele chama atenção para a conservação do passado e sua atuação,
entretanto, não de forma homogênea. Memória-hábito está relacionada ao esforço de
atenção e, de maneira continuada: a repetição através de gestos ou palavras. Trata-se de
um exercício de fixação que, de forma natural, se transforma em hábito. Este, por sua
vez, faz parte de todo nosso adestramento cultural. Por tal razão, lembrar-se do modo de

31
Connerton, Paul. 1999. Como as sociedades se recordam. 2ª edição, Ed. Celta.
49

fazer, comer segundo as regras da etiqueta, é um mecanismo habitual do cotidiano


(Bergson,1990). Do outro lado, encontramos a imagem-lembrança; esta por sua vez,
tem data certa, refere-se a uma situação definida, individualizada, ao passo que a
memória-hábito já se incorporou às práticas do dia-a-dia.

Quando uma informante relata que o empadão é um marco da identidade local,


ela começa a se lembrar de todo um processo de “memória detalhada” atribuindo a este
produto memórias marcantes com percepções físicas. Maria Martins, 52 anos,
cozinheira, ao fazer referência ao aniversário da Cidade de Goiás, realizado em 26 de
julho de 2001, contou que, naquele momento, foi servido para a população vilaboense
um “empadão gigante” com um metro de diâmetro e 600 quilos . Segundo o seu
depoimento, naquele dia ensolarado, a comunidade, se reunira para receber o então
governador do Estado, Marconi Perillo. O tumulto, tensão da espera, o calor, não foram
motivos de desistência; todos esperavam, com afinco, pelo festejo. A fila que se
formara, em função de poder ali receber um pedaço do empadão, era enorme. “Gente de
todas as classes. Veio a televisão. Esse empadão foi a maior dificuldade do mundo!
Gastei vinte sacos de carvão. Juntou seis homens e não tirou ele do lugar. Era para
colocá-lo em cima do caminhão, mas não teve jeito. Ele foi fotografado embaixo
mesmo. O povo estava aflito, porque queriam comer... cheirava demais!!” (M.M.52
anos, cozinheira).

A “memória detalhada” está relacionada como mencionado, às percepções


físicas. Assim, o momento de espera, o cheiro do empadão, a impossibilidade para
retirá-lo do lugar, foram momentos marcantes que ficaram retidos na memória da
informante em especial. Atribui-se à “memória detalhada” aquilo que marcou o
indivíduo e quando se sente em uma situação que o aproxima aquele acontecimento do
passado, ele sente as mesmas sensações físicas relativas ao que ficou guardado na sua
memória.

Como afirma Conway (1998) , a memória detalhada significa a forma de:

“expresar la idea de ciertos tipos de memorias vividas que


preservan el conocimiento de un evento de una manera casi
indiscriminada, más bien, como uma fotografía preserva todos los
detalles de una escena. Las memorias destello son inisuales en el
sentido de que retienen detalles que no están a menudo presentes en
recuerdos de actividades diarias, son diferentes porque tienen lo que
50

Brown y Kulik (1977) llamaron calidad ‘primaria’ o


‘viva’...Obviamente la mayoría de las memorias destello son sobre
eventos que tienen una alta importancia personal para un individuo
específico.Y, por consiguient, los eventos reales codificados en la
memoria a largo plazo varían de un individuo a otro” (Conway;
1998:69).

O “empadão gigante”, como um produto memorial, é um exemplo típico da


memória detalhada que assume neste momento a caracterização de suporte físico da
memória local. A população vilaboense e, em especial a informante, retiveram este
quadro da memória destello por se tratar de um evento importante. O empadão do
“governador” passou, assim, a ser entendido tanto como uma representação memorável,
bem como uma significação da comunidade como um todo.

A memória ocupa lugar no espaço, cria vínculo que une o espaço privado ao
espaço público. Neste sentido, os domínios da rua se diferenciam dos domínios da
cozinha. Na rua se faz o empadão no estabelecimento da esquina, no mercado, no posto
da “patricinha”, na praça. Na cozinha se faz o empadão no fogão de barro construído
pelo seu Francisco ou pelo seu Du, se faz no tacho de cobre da vovó, com a colher de
pau feita pelo “negão ”, se faz com o mesmo carinho e dedicação da avó que
personalizava os seus empadões, se faz com a panela de ferro herdada pela mãe, se faz a
massa na mesma mesa secular fabricada por seu pai, se guarda a farinha de tr igo na
prateleira da mãe. Entretanto, o domínio privado se abre para o público. É na cozinha
que se trocam receitas, é na cozinha que acontecem as reuniões, é neste espaço que a
neta aprende com a avó, com a mãe e assim sucessivamente. Pois é através deste espaço
que a vizinhança fica sabendo quem melhor faz o empadão.

O estudo sobre memória, neste trabalho, remete-se às seguintes conclusões: -


primeiro, que a memória coletiva pode ser vista como um agregado de memórias
individuais em que a peculiaridade pessoal decorre do lugar que o intérprete ocupa na
sociedade - como seu “lugar de fala”. Lembranças individuais são registradas na
“consciência coletiva” ou na “memória coletiva”, à medida que o registro é
compartilhado por uma “comunidade de memória”. Segundo, quando se fala de
memória, fala-se de coisas distintas sob um mesmo rótulo. O que o pesquisador ouve
não são memórias, mas narrativas, e narrativas são sempre estruturadas. A memória dá
presença ao passado para dar significado ao presente. Toda memória é construída.
51

Ademais, o esboço teórico acima nos possibilita, portanto, perceber como as noções de
tradição, memória e identidade se interrelacionam. E mais: “se memória é um discurso,
este se dá num espaço específico. Esses espaços possibilitam memórias distintas”
(Woortmann; 1998:106).
52

CAPÍTULO II

O Empadão e as Festas Sociais e Religiosas


Pergunta e resposta:
- Na sua casa vocês rezam antes das refeições?
-Não senhora: a minha mãe é uma ótima cozinheira”

O Empadão: “do profano ao mundo religioso”

Na maioria dos casos estudados, a palavra “alimento” refere-se a uma


propriedade da comida, ou do mantimento: aqui estarei-me referindo a algo relacionado
a uma expressão de reciprocidade. Para falar de reciprocidade devemos pensar mais na
forma de dons recíprocos do que em transações.

Conforme afirma DaMatta, “... o mundo das comidas nos leva para casa, para os
nossos parentes e amigos, para os nossos companheiros de teto e de mesa. Essas pessoas
que compartilham intensivamente da nossa vida e intimidade. Intimidade que se faz na
casa e na mesa, onde somos sempre e necessariamente tratados como alguém e temos
direitos perpétuos de cidadania” ( DaMatta; 1986:53-54). Nesse sentido entende-se que
a alimentação humana é um ato social e cultural (Molina,2001).

Em Goiás, como em outras partes do Brasil, a cozinha foi - e ainda continua a


ser - um espaço de receber os parentes e os amigos próximos, diferente da sala onde se
recebe os estranhos 32. Na Cidade de Goiás, em especial, a cozinha sempre se
caracterizou como parte da intimidade. Na intimidade, o hábito de servir alimentos
desempenhou um papel central, pois, neste espaço se estabelecem vínculos familiares.
Ao contrário da sala que se caracteriza por espaço público. No convívio da cozinha é
que se serve o empadão tamanho família. A composição da mesa destina-se àqueles
mais próximos. Somente em ocasiões especiais de visitas ou festas em casa que há uma
certa abertura da intimidade para os estranhos. A cozinha é grande porque é importante.

32
“ A copa e a sala de jantar usada somente nas festas aparecem nas primeiras décadas do século XX.
Até meados desse século, portanto, os espaços onde se preparavam ou se comiam alimentos
permaneceram centrais, aglutinadores da intimidade e da vida doméstica. Nesses espaços, a mulher
permaneceu sendo a agente principal, coordenando as atividades centradas na cozinha, no cuidado com a
casa e com as crianças, quando não sua responsável direta”(Abdala;1997:104).
53

“Situada na parte de trás da casa, ali se prepara e se serve a comida. Além disso, mesmo
fora dos horários das refeições, é um local de descontração, onde a conversa deixa
transparecer intimidade e se desenrolam inúmeros “causos”” (Molina; 2001:130). Não
por acaso, Bariani Ortencio (2000) chama atenção:

“A cozinha deveria ser a parte principal da casa. A área mais


ampla, tudo mais cômodo. É na cozinha que a boa dona de casa faz a
parte mais agradável do lar: a comida. É com a cozinha que a esposa
cativa o seu marido. Em toda a casa o lugar que mais se trabalha é na
cozinha. Antigamente até a política se tramava ali. Os antigos
resolviam todos os seus problemas na mesa grande da cozinha.
Muitas vezes um fulano vem em casa da gente tomar satisfações (...)
então a gente dá um rodeio, leva o homem pra cozinha, manda passar
um cafezinho gostoso, e pronto: fumou-se o cachimbo da paz. Levar
alguém para a cozinha significa amizade confiada, segura (...) ”
(Ortencio; 2000:387).

Neste sentido, “compreendemos a cozinha goiana num contexto mais amplo, não
somente como um conjunto de hábitos alimentares como também de um importante
espaço onde se desenvolve o convívio e as relações sociais” (Molina,2001:130).
Continua a autora:

“Quando um grupo decide fazer uma galinhada ou pamonhada,


sabe-se, de antemão, que o “fazer” não é o preparo dessas iguarias e
sim a criação de um momento e de um espaço de relacionamento
social. Situadas fora do ritmo cotidiano, a galinhada e a pamonhada
podem ser definidas como referências identitárias coladas no tempo
das socibilidades, das festas ou o lazer, permitindo que as famílias e
os amigos se encontrem” (Molina; 2001:133).

Regina Lacerda (1977) 33, que pesquisou sobre o folclore goiano, deixou
registrado que nos dias festivos, a empada goiana é de presença obrigatória. Brandão (
1981 ), conta que, em nenhum outro momento, a não ser durante as festas de Igreja, há
tantos e tão insistentes convites para “ pamonhadas ” feitas nas fazendas ou na cidade.
Ele não menciona o empadão.

33
Lacerda, Regina.1977. Vila Boa, história e folclore. Goiânia: Oriente. 2.ed. p.39.
54

Vivência Bretas Tahan (1995) filha de Cora Coralina que em seu livro Cora
Coragem, Cora Poesia, reporta às primeiras décadas do século XX, quando do
casamento da irmã mais velha de Cora Coralina, também de nome Vivência, descreve o
referido momento:

“As bodas eram ocasiões onde se serviam o que havia de bom e


melhor em iguarias. No casamento da irmã de Cora, foram servidos
tabuleiros com empadões recheados de carne de galinha34, pastéis,
pães recheados de pernil, biscoito de queijo, bolo de arroz, doce de
ambrosia, doce de laranja, de leite e de limão. Refresco de seriguela,
de maracujá, servidos às crianças e às senhoras. Aos homens eram
oferecidos vinhos, feitos de laranja, além de vinho português. Os
doces eram feitos em tachos, colocados em caixinhas de madeira,
forradas de papel manteiga e enfileirados no jirau” (Tahan,1995
apud, Molina; 2001:136).

Albernaz (1992), em seu livro Reminiscências relata que sua avó paterna [mãe
Ita] aniversariava no dia 6 de janeiro, dia dos Santos Reis, e que havia sempre um jantar
festivo para comemorar o evento. Segue abaixo sua narrativa:

“No grande dia, jantar às três horas da tarde, para o qual


chegavam os filhos, noras, netos, irmãos, sobrinhos e amigos. (...) Às
três horas, mesa aumentada e arrumada com toalha de algodão,
copos de vidro, talheres de prata, aparelho azul importado, salvas e
copos de prata etc. (...) Os maiores à cabeceira da mesa. Sopa de
macarrão grosso importado de Portugal, tutu de feijão, arroz, carne
enrolada, carne recheada, galinha assada e farofa, lombo de porco,
leitoa em duas bandas tostadas e cheirosas, grandes travessas com
empadas quentinhas35, cobertura e forros tostados no velho forno de
barro, guariroba com molho e tigelada” (Albernaz; 1992: 56).

34
Grifo meu. No casamento foi servido empadão adaptado, esta é a primeira vez que é mencionado.
35
Grifo meu. A narrativa sugere que estas empadas sejam individualizadas, típicas de reuniões sociais
familiares.
55

Nesta perspectiva destacam-se como elementos culturais da culinária goiana


simbólos de uma “goianidade”, os seguintes itens: “empadão goiano, arroz com pequi,
peixe na telha, ‘macarrão de folia’, frango ao molho ou ensopado, guariroba ou arroz
com guariroba, pamonha, angu com quiabo, abóbora, jiló e carne picadinha, lombo de
porco”36. A delícia dos doces goianos: “passas de caju, bolo de arroz, alfenim, doces
cristalizados os mais comuns são de doces de figo, goiabada, laranja, limão, mamão e
cidra, flor de coco ou cocada em fita, pastelinho de doce de leite” 37. Sucos: mangaba,
cajazinho, caju, cagaita, curriola entre outros 38. Todos articulados à sociabilidade,
tornando-se indicadores que permitem a marcação e demarcação de um grupo que
envolvem “pertencimento”.

No contexto do âmbito privado vimos como a mulher opera nte em muitos


momentos cuidou também de dirigir a casa, sendo portanto responsável pela
sociabilidade e harmonia do lar. Neste sentido, essas mulheres respondem pela
definição tanto da forma como a função do empadão, o que implica um certo controle
da forma como esse alimento irá mediar as relações entre indivíduos. Para DaMatta
(1986) , “a sociedade manifesta-se por meio de muitos espelhos e vários idiomas. Um
dos mais importantes no caso do Brasil é, sem dúvida, o código da comida39, em seus
desdobramentos morais que acabam ajudando a situar também a mulher e o feminino no
seu sentido talvez mais tradicional. Comidas e mulheres, assim, exprimem teoricamente
a sociedade, tanto quanto a política, a economia, a família, o espaço e o tempo, em suas
preocupações e, certamente, em suas contradições” (DaMatta; 1986:51).

Tudo isso revela que a comida se refere a algo que ajuda a estabelecer uma
identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa. O empadão
enquanto produto da comida 40 regional, expressa algo que diz respeito a um prato que
tem peso social muito importante, pois inventa a sua própria ocasião social. Ademais,
também se refere a algo que exprime possibilidades simbólicas e por isso permite
realizar uma importante mediação entre a sua forma e função.

36
Carvello, Ciça. 2001. “Economia & Desenvolvimento”. Ano II nº 8 julho/setembro.p.71.
37
idem.p.74.
38
A respeito de receitas relativas à comida típica goiana ver: Ortencio,2000.
39
grifo meu.
40
Mais adiante, farei a distinção entre comida e alimento. No entanto, vale ressaltar que, neste momento,
o empadão ainda nos é entendido como algo que se refere à comida, já que tem uma propriedade que
define um domínio e põe as coisas em foco, por exemplo, a sociabilidade.
56

A questão que procuro evidenciar aqui e que considero fundamental para a


pesquisa em especial é a distinção entre empadão e empadinha, tal como percebidas
localmente, pois um dos nossos objetivos é entender a sua caracterização e o seu
significado simbólico. Assim sendo, a partir dos relatos evidencio esta distinção:

“Tem vários tamanhos. Grande... eu tenho uma forma que a


gente pode colocar até uma coxa de frango inteira. Mais hoje em dia,
ninguém coloca coxa inteira. O empadão, você tem que sentir o quê
tem dentro dele. Assim... você sabe que está comendo um pedaço de
guariroba, um pedaço de porco, você sabe que é um frango. (...)
Agora, franguinho desfiado, tudo picadinho e amassado é empadinha.
Empadinha41 é para festa” (A.S., 62 anos, empadeira).

O tamanho do empadão distingüi-se tanto na esfera pública quanto na esfera


privada. Portanto, turista nenhum irá provar o empadão “especial” tamanho família. Por
que? Porque o empadão tamanho família é especial, e é limitado aos de “dentro”. Os de
“fora” ganham uma empadinha de festa ou um empadão tamanho individual. O
empadão tamanho família pode “reatualizar” as relações onde o indivíduo está. Quando
a matriarca da família faz empadão, isto nos sugere “integração”. Com efeito, o
empadão tamanho família sempre esteve no plano familiar, ele expressa um ritual de
agregação familiar.

Neste sentido, proponho-me agora a responder algumas inquietações que me


causaram expectativas: quando se serve empadão e quando se serve empadinhas. Para
tal fim, apontarei alguns referenciais relativos ao empadão que tem como conotação:
aspectos familiares, políticos, econômicos e religiosos.

Benedita Moraes Siqueira, 89 anos, conhecida como “Nené Gonzaga”, morou


parte de sua vida na fazenda, informou-nos que, tal como mencionado por Lacerda
(1982) a cada festa de aniversário de seus filhos, fazia “empadinhas” de frango com
intuito de receber os convidados que compareciam em sua residência. Acrescente-se
ainda que a informante, ao se referir ao empadão familiar, faz a seguinte observação:

41
Grifo meu. A expressão usada pela informante “franguinho” e “empadinha” sugere que sejam
produtos pouco valorizados. No capítulo III, retomarei esta discussão, mostrando a relação entre frango
caipira, criação doméstica x “franguinho” congelado de supermercado.
57

“Não fazia[empadão familiar] para festa . Fazia somente para


a casa mesmo. Era tudo inteiro, em forma de barro grande” ( B.M.S.,
89 anos, do lar).

Outro depoimento completa essa dimensão de forma e função:

“A empadinha a gente faz para batizado, aniversário. O


empadão a gente faz qualquer dia que dá vontade de comer, sempre
no final de semana porque dá muito trabalho. Os filhos almoçam,
comem na janta e dizem: - ‘mãe, agora vou levar o meu para o
almoço amanhã’ ” ( Dª S.C., 70 anos, doceira).

Maria Martins, 52 anos, relata:

“Veja aqui a minha formona, que eu ainda faço até hoje. Essa é
para festa de Natal. Esse ano passado (2001) fiz quatro formona de
empadão. Agora foi diminuindo... Eu tenho cinco tamanho de
empadão. Varia de todo tamanho. Mas antigamente só fazia grande.
O empadão não era comercializado. O empadão foi surgindo como
um prato, para reuniões de família. Para não fazer várias iguarias.
Então, minha mãe falava... que eles então inventaram um prato que
tinha todas as carnes, todas as coisas num prato só e com uma massa.
(...) ( Dª M.M., 52 anos cozinheira).

E continua o seu depoimento:

“Na Semana Santa, é servida a empada menor, com camarão,


bacalhau e ou atum. A de atum é de tamanho maior. Os fregueses
pedem em tamanho maior, porque eles gostam do empadão com
caldo. Porque o empadão bom mesmo é com bastante caldo” (Dª
M.M.52 anos, cozinheira).

“Todas as festas ou ocasiões extraordinárias recriam e resgatam o tempo, o


espaço e as relações sociais. Nelas, aquilo que passa despercebido, ou nem mesmo é
visto como algo maravilhoso ou digno de reflexão, (...) é ressaltado e realçado,
alcançando um plano distinto” (DaMatta; 1986:81). Como se observa, são inúmeras as
formas e função do empadão e, são inúmeras também as situações e m que as pessoas
dele se apropriam para expressar a identidade de goianidade e, seja de uma forma ou de
outra, o empadão lembra as relações sociais tal como elas operam no mundo vilaboense
58

promovendo a sua glorificação e manutenção. O empadão simboliza a ordem social,


com suas diferenças e gradações, seus poderes e hierarquia. Não por acaso Moraes Leite
(1995) , que escreveu “Apontamentos de Viagem” relata como presidente da Província
de Goiás, nos anos de 1881, o conflito político entre Bulhões, Anteristas e Fleurys,
tecendo sobretudo as seguintes considerações:

“A provincia estava dividida em dois grupos - clubistas e


empadistas, aqueles dirigidos por Bulhões e estes por Anteristas e
Fleurys. Estávamos hospedados pela empada, e fomos devida e
cuidadosamente apalpados quanto às nossas intenções
governamentais e políticas” ( Morais; 1995: 99).

Nas décadas de 60 e 70 do século XIX, os Bulhões estruturaram o Partido


Liberal em Goiás, expressando, assim, uma reação mais organizada dos grupos locais
contra o oficialismo e a luta pela hegemonia política de uma oligarquia que persistiu até
o final da República Velha. A estruturação dos partidos ocorreu com a ascensão
nacional dos liberais. Os principais representantes das famílias tradicionais, os Bulhões,
os Caiado, os Fleury, os Siqueira, organizaram o Partido Liberal Goiano. Essa
composição, segundo Canezin (1994) , formou uma frente familiocrata, persistindo,
portanto, até que a liderança de André Augusto de Paula Fleury fosse rejeitada. Em
conseqüência, surgiram duas facções: Liberal Clubista, liderada pelos Bulhões, e
Liberal histórica, liderada pelos Fleurys. O Partido Conservador organizou-se em torno
do presidente da Província, Antero Cícero de Assis.42 (Canezin,1994).

É necessário ressaltar que, antes da organização dos partidos políticos, as


tendências políticas em Goiás eram denominadas governistas ou oposicionistas. Os
governistas eram os que sempre apoiavam incondicionalmente o presidente da Província
e os oposicionistas eram aqueles que apoiavam o presidente desde que seus interesses
não fossem feridos.43 Portanto, neste período em que existiam essas duas tendências
mas não havia ainda partido político definido, foi presidente de Goiás Antero Cícero de
Assis (1871-1878) , nomeado pelo gabinete conservador do Marquês de São Vicente. O
governo de Antero Cícero assumiu posições conservadoras contrárias ao discurso liberal
que começava a circular e que passava a ser difundido pelos Bulhões.
42
A respeito do governo de Antero Cícero de Assis, ver Assis, Antero Cícero de. Relatório - 1876.
43
Canezin, Maria Teresa. 1994. A Escola Normal em Goiás/Maria Teresa Canezin e Walderês Nunes
Loureiro. Goiânia: Editora da UFG. Coleção Documentos Goianos, 28. p. 20.
59

Para Ferreira (1998) , “é com a ascensão do gabinete liberal, em 5 de janeiro de


1878, que os Bulhões começaram a se projetar no cenário político”. E segundo Maria
Augusta Sant’Anna de Moraes (1974) , “o que diferenciava liberais e conservadores era,
fundamentalmente, a posição abolicionista dos liberais clubistas o que, em parte, influiu
sobre as vitórias eleitorais conquistadas a partir de 1879, com a posse de Aristides
Spíndola” (Moraes,1974 apud, Ribeiro; 1998:228).

A fase de transição da monarquia à República é marcada por mudanças


significativas na composição do poder em Goiás. O Estado foi palco de luta de
oligarquias rurais que disputavam o poder. Destacaram-se nesse embate especialmente
os Bulhões e os Caiado.

Em 1888, foi oferecido um banquete político pelo diretório liberal da capital,


representado pelo tenente coronel Antônio José Caiado, aos distintos correligionários.
No menu oferecido à época torna-se evidente o apego à língua francesa e vínculo
desta à realidade regional:

“Potages
Vermicelle. Consomé, Orge perlè.
Hors d’ouvre
Croquettes aux pommes de terre. Petits patès de viande. Patès
de poisson.
Rele vès
Poisson a la goyene. Roast-beef aux petits pois.
Mayonnaise de poulets. Filets de boeuf a la Custodie. Perdrix
farci
Rotis
Pigeons au cresson. Paca aux olives. Salade aux oeufs.
Legumes
Haricots verts. Petits pois.
Dessérts
Pouding à la federation des provinces. Gelleé aux oranges. Crême
à la Sainte Therese.
Café, cognac, liqueurs.
60

Vins

Bordeaux, Madére, Porto” 44

Comparando o banquete transcrito acima com o que transcreveremos à seguir,


podemos perceber algumas modificações no plano político-ideológico. Primeiro, que o
menu logo abaixo é redigido em português e privilegia o que era pensado como
culinária regional: macarronada, galinha assada, leitão, tutu de feijão, lombo de porco e
doces feitos com frutas do cerrado. Segundo que, Pedro Ludovico Teixeira, ligado ao
modelo de concepção centralizado na política de substituições de importações, proposta
do Governo Vargas, tem como marca, o Nacionalismo, ou seja, uma política ideológica
voltada para a valorização da produção nacional. Assim sendo, o cardápio teve como
princípio valorizar as coisas da terra, como poderemos observar:

“Carinhosa homenagem à Caravana do Norte.


Menu
- Sopa de batatas com azeitonas.
- Empadinhas de camarão com arroz.
- Macarronada com galinha assada.
- Leitão com tutu de feijão e alface.
- Arroz de forno com lombo de porco recheado.
Sobremesa
Doces: mangaba, caju com queijo Palmeira. Queijo de leite.
Bebidas
Coktail, Vermouth, vinhos branco e tinto. Champagne - Café -
Licores.
Charutos”.45

No contexto desse Nacionalismo enfatiza-se uma preocupação com a Marcha


para o Oeste46. Isto é, a ocupação de novas terras mais especificamente no Oeste de
Goiás e Mato Grosso, e sua integração produtiva. Além disso enfatiza-se também, a

44
Goyaz, 15/06/1888 apud Bittar; 2002:136.
45
Voz do Povo, 02/10/1931 apud Bittar 2002.
46
Especificamente sobre a Marcha para o Oeste e a Criação da Fundação Brasil Central. Ver: Lima
Filho, Manuel Ferreira. 2001. O desencanto do Oeste: memória e identidade social no médio Araguaia.
Goiânia: Ed. da UCG.
61

criação de novas cidades e melhoria de comunicação, através de novas estradas de


rodagem.

Nesta perspectiva, em 1961, o Diário da Tarde publicou o almoço de


comemoração do jubileu de prata da turma de Direito da Cidade de Goiás de 1936.
Segue a publicação do Almoço Jurídico:

“O cardápio foi originalíssimo, lembrando, desde os vestibulares até as


atividades da vida dos advogados e magistrados: I - Empadas Vestibulares; II - Frio
“Exames Finais”; III - Frango “Apuros da Profissão”; IV - Arroz “Primeira Audiência”;
V - Arroz “Justiça Gratuíta”; VI - Tutu “Honorários Advocatícios”; VII - Feijão
“Interlocutório Simples”; VIII - Lombo “Composição Amigável”; e o prato extra, Arroz
com Piqui: “Arroz Decisão Final”. Como sobremesa, os deliciosos doces de figo e
laranja, em calda, e as famosas passas de caju. Bebidas: água de alambique, mineral,
guaraná, cerveja e o delicioso vinho dos Padres, fabricado pelos Dominicanos.” 47

Nesta mesma percepção observe a narrativa abaixo:

“A Prefeitura fez uma festa. Foi servido de entrada o empadão,


feito no tamanho médio. Não foi grande porque cada um ficou com
uma. No aniversário de Goiás, eu também fiz o maior empadão. Era
até para ir para o livro dos recordes. Para esse empadão foi preciso
seis homens e não tirou o empadão do lugar. Ele foi feito num tacho,
aqueles taxo que usavam antigamente para fazer melado de
engenho... Então foi a maior dificuldade do mundo para fazer esse
empadão, só de carvão eu gastei vinte sacos de carvão para assar ele.
Dez embaixo e dez em cima. Tem que fazer uma armação de ferro na
serralheria e pôr uma tampa por cima, para pôr o carvão... “ (Dª
M.M., 52 anos, cozinheira).

O contexto acima narrado pela informante se refere ao aniversário da Cidade de


Goiás, realizado dia 26 de julho de 2001. É nesta data que ocorre a transferência
simbólica da capital para a antiga Vila Boa. Nesta ocasião, o governador do Estado
Marconi Perillo, eleito em 1998 e reeleito em 2002, esteve presente para comemorar o
referido aniversário (ver foto nº 11). Neste sentido, gostaria de mencionar alguns

47
Diário da Tarde de 11 de dezembro de 1961 apud Ortencio; 2000: 408.
62

aspectos relativos ao contexto da festa em questão, que não se encontram no domínio da


discussão teórica sobre memória realizada anteriormente. Primeiro, que, para se fazer o
empadão extraordinário, utilizou-se também utensílio extraordinário, por exemplo, o
tacho de engenho. Segundo, que a brasa usada na confecção do empadão simboliza
fonte de calor diferente, o que denota também, uma questão extraordinária. Além disso,
o preparo em ocasião exigiu uma estrutura relativa ao forno muito maior do que a
doméstica. Terceiro e último, que o empadão nesta ocasião ganhou uma dimensão tão
extraordinária que, segundo o relato, era para ser indicado para o livro dos recordes, o
que implica também em um conjunto de coisas extraordinárias.

Observa-se neste contexto que, a cada momento festivo, o empadão possui


tamanho diferenciado. Entretanto, o mesmo não perde a sua definição. Segundo as
palavras de DaMatta (1986) , “temos, então, uma culinária relacional, que expressa de
modo privilegiado uma sociedade igualmente relacional. Isto é, um sistema onde as
relações são mais que mero resultado de ações, desejos e encontros individuais; pois
aqui entre nós elas se constituem, em muitas ocasiões, em verdadeiros sujeitos das
situações, trazendo para elas o seu ponto de vista” 48. Nas palavras do Autor, “temos,
então, na cozinha, na nossa comida e no nosso modo de comer, uma obsessão pelo
código culinário relacional e intermediário. Um código marcado pela ligação”
(DaMatta; 1986:64).

Na recepção festiva do título de Patrimônio da Humanidade, realizada em


Goiânia, no Country Clube de Goiás, foram servidos dois mil empadões produzidos
especialmente para a ocasião. Tal fato nos sugere uma extensão simbólica/culinária de
Goiás em Goiânia, como representante da comunidade vilaboense. Segue, portanto, o
depoimento abaixo:

“ (...) teve um dia que nós fizemos duas mil formas de empadão
para ir para o clube em Goiânia, que foi lá a festa do negócio de
título de Patrimônio, então, a festa foi lá (...) ” ( Dª E.C.S., 65 anos,
ceramista).

Geralmente, o empadão está inserido no núcleo familiar 49. A família reúne-se no


final de semana para comê-lo como uma iguaria especial. Assim, a

48
DaMatta; 1986:63/64.
49
No aspecto econômico, mostrarei também a relação do empadão com o comércio. A sugestão aqui
presente torna-se necessária para caracterizar a distinção entre forma e função.
63

vilaboense/matriarca, de véspera, reúne os ingredientes. A fôrma de barro tamanho


família -cerca de 38cm, já curada50 aguarda pela finalização do empadão. Muitas
utilizam as fôrmas de 14cm. Outras fazem uso da assadeira de alumínio. Os filhos
chegam e se inicia o ritual familiar. Em consonância com esta abordagem, observei em
todas as interlocuções, a seguinte expressão: “para nós mesmos”.

Neste sentido, os relatos possibilitam compreender que o empadão é familiar.


Ademais, que se aproxima da pizza grande (tamanho família - ver foto nº 12) , o que
denota uma idéia de compartilhar, onde a agregação é inerente. Outro aspecto
significativo, neste contexto e, que foi percebido durante a pesquisa, é que a fôrma
familiar tem caldo, apresentando, portanto, uma distinção em detrimento da pequena
que é seca, ou seja, não contém caldo, mas que, no entanto, têm a mesma composição
relativa aos ingredientes 51 Entretanto, faz-se necessário ressaltar ainda que, na Cidade
de Goiás, todos têm conhecimento da massa folhada mas não a fazem e que, no
empadão individual, não se encontra a massa folhada, exceto em ocasiões especiais,
como por exemplo, a encomenda, ou em ocasião onde a matriarca vilaboense deseja
retomar a antiga “tradição”.

A ordem abaixo, ilustra as formas e função do empadão percebidas localmente e


que, por sua vez, apontam para a sua dimensão enquanto produto :

empadinhas = aniversário; batizado; casamento; Folia do Divino; reuniões


sociais e políticas.

empada (10 cm) = sociabilidade; individualização; mercadoria.

empadão (14 cm) = sociabilidade; individualização; mercadoria.

empadão (20 cm) = tradicional = identidade emblemática.

empadão redondo especial (36 cm) = Natal; Semana Santa; Dias das Mães =
agregação familiar e ritual de comensalidade familiar.

50
O sistema de “curtir ou curar” faz-se necessário, pois a panela que não é curada antes de ser usada
pode arrenbentar ao ser levada ao fogo diretamente com os alimentos. Mais adiante, tratarei com maior
propriedade esta questão da cerâmica vilaboense e tratamento de “cura”.

51
É necessário salientar que as condicionantes ligadas ao preparo e confecção do Empadão de Goiás,
sobretudo no que se refere ao receituário, depende de um conjunto de variantes que veremos mais adiante.
Isto é, os ingredientes usados na confecção do empadão, depende do gosto de cada família, ou então, do
gosto da freguesia, o que permite afirmar que o empadão tem em si um conjunto de “adaptações” e que
estão ligadas a um complexo de fatores econômicos e culturais.
64

empadão retangular grande ( 38 cm) = ritual de comensalidade, agregação


familiar.

empadão gigante (1 metro) = a comunidade vilaboense como um todo.

Em relação à especificidade da empadinha na Folia do Divino Espírito Santo,


chamo atenção para a relação entre prestígio e recompensa. O primeiro pode simbolizar
status e o segundo pode significar - dar e receber. Não nos cabe discutir o arcabouço
teórico que permeia estas duas categorias, entretanto, é importante sugerir pistas para
posteriores pesquisas. Não obstante, durante a Semana Santa, não come-se carne
vermelha52. Nesta perspectiva torna-se oportuno, apresentar alguns aspectos que estão
implicados neste sistema. No decorrer da Semana Santa, faz-se empadinhas de
bacalhau; camarão e atum como denotam as narrativas. Geralmente, aos domingos faz-
se empadões de bacalhau ou atum. No entanto, um caso específico destaca-se, no
Domingo de Páscoa - o fornecimento de empadinhas de frango 53 como oferenda na
Folia do Divino Espírito Santo 54. Conforme o depoimento abaixo:

“Antigamente na Festa do Divino, no dia da festa, após a missa,


havia uma mesa de doces em calda. O povo podia comer a vontade.
No ano que fui festeiro, por exemplo, fizemos 60 quilos de doce. Toda
a família reuniu-se para fazer. (...) No ano que o filho de Maria Veiga
foi festeiro, iniciou-se a oferta de salgados. Isto foi em 1977. A
Silvinha faz empadinhas e alfenins...” ( J.N.C. 64 anos, aposentado).

Ao relatar sobre a oferta de salgado empadinhas em especial, o informante


perceber através da noção de tradição, que está se referindo à uma novidade que faz da
festa um acontecimento ainda mais expressivo e interessante, pois as concepções de
incremento e mudança na tradição são importantes para que a mesma possa apresentar
um caráter dinâmico e contextualizado. É necessário que se reconheça que as tradições

52
Bariani Ortencio(2000), em seu trabalho “Cozinha Goiana”, escreveu sobre “Tabus e Crenças
Alimentares Existentes em Nosso País”. Desta forma, faz referência quanto à carne vermelha: “
Incompatibilidade ou obrigatoriedade de alimentos, por imperativos religiosos: Proibidos: Carne durante
a Semana Santa ‘ofende a Deus’; Carne na quartas e sextas-feiras santas ‘é pecado’ (...). Obrigatórios:
pescados na Semana Santa, ‘porque não têm sangue’.(...) (Ortencio; 2000:482/483).
53
“ Frango e festa: O frango é comemorativo. Numa mesa que se preze não pode faltar o frango. Quando
chega uma visita no interior já se põe os meninos correndo atrás dos frangos. A galinha é mais usada para
as coxinhas, as empadinhas e os resguardos, por serem maiores. A carne da galinha também desfia-se
melhor. Um resguardo de parto, antigamente, constava de 40 galinhas, uma cada dia
”(Ortencio;2000:433).
54
A Folia do Divino Espírito Santo na Cidade de Goiás ocorre no Domingo de Páscoa. Com relação à
Festa do Divino Espírito Santo, esta ocorre 50 dias, ou seja, 7 semanas após a Páscoa.
65

estão constantemente sujeitas a mudanças, a reinterpretações desde o momento em que


surgem. Hobsbawn e Ranger (1984) , afirmam que as “tradições inventadas” são
mantidas por quem as cria e delas se beneficia. No caso da Folia do Divino Espírito
Santo, notei que a incorporação dos salgados se caracteriza por uma “tradição
inventada” o que denota uma “reapropriação” da Festa imposta por alguns membros do
grupo em questão e que passa a ser definidora de uma identidade específica da
comunidade vilaboense.

Uma guardiã da memória na Cidade de Goiás, que se apresenta como uma


pessoa importante no tocante à Folia do Divino Espírito Santo, e sobretudo
fundamental, principalmente quando foi delegado à ela autonomia para “reapropriar” a
referida Festa, mas que ainda não tinha sido mencionada, é a professora Maria Veiga.
Ela relata que, em 1834, o Imperador do Brasil ofertou a Província de Goiás as insígnias
do Divino (coroa e cetro) , através do Presidente José Rodrigues Jardim, seu bisavô.
Nota-se portanto, que diante deste fato, sente-se responsável pela manutenção da Festa,
e ainda, “autoridade” máxima no que se refere ao processo de “reapropriação”, embora
sejam os cargos absolutamente masculinos. O que sugere que a inserção da empadinha
na Folia do Divino, fato atribuído ao período em que seu filho foi Imperador da Festa, é
parte deste poder hierárquico atribuído a certos elementos vilaboenses, normalmente os
guardiãs da memória. Neste caso levanto aqui uma questão: Quem pode introduzir uma
inovação? Se alguém de “fora” a introduz é aceita ou não? Em relação a Folia do Divino
Espírito Santo, percebe-se que não, pois os cargos só podem ser dirigidos a pessoas de
naturalidade vilaboense, domiciliada ou não na Cidade de Goiás, o que ocorre
naturalmente no caso do empadão. Entretanto, devemos lembrar que a função de
estabelecer ou não novos modelos de “adaptações” segue as diretrizes da tradição, o que
significa que pode sofrer alterações, desde que não seja colocada em risco.

J.M.Audrin, em Os Sertanejos que Conheci, retrata a comensalidade na Festa da


Folia do Divino e aponta alguns referenciais importantes para nossa justificativa e m
questão:

“Concluída a cerimônia, forma-se, novamente, o cortejo para


reconduzir a seu palácio o herói do dia. Chega, então, a hora do
banquete e o espetáculo torna-se realmente estonteante. Sob o olhar
de “Sua Majestade”, longas mesas cobrem-se num instante, de um
sem-número de iguarias: leitões, frangos e perus, assados, enormes
66

bifes, pasteis, tortas e empadas. Seguem-se os bolos e os doces em


calda. Tudo profusamente regado com vinhos e com licores regionais
de laranja, de ananás, de tucum, de jenipapo, etc. A cachaça corre
copiosamente. Assim será por toda a tarde, pela noite adentro, até de
madrugada. Sucedem a mesas, porque ninguém há de ser esquecido.
Até os mais pobres poderão comer e beber a fartar” (Audrin, apud
Ortencio; 2000:472).

Estas formas de circulação cerimonial do alimento podem começar por ser


analisadas à luz das características religiosas das Festas do Espírito Santo. “A
dissipação de recursos alimentares que ela requer é de facto concebida, antes de mais,
como uma forma não só de homenagear a divindade, más também de assegurar a sua
proteção” ( Leal; 1991:34).

No caso da Festa do Divino Espírito Santo na Cidade de Goiás55, a distribuição


de oferendas (por exemplo, empadinhas) é operado como um meio de obtenção da
proteção do Espírito Santo para a sua unidade doméstica. Muitas vezes também certos
dispêndios cerimoniais resultam de promessas feitas ao Espírito Santo e funcionam,
portanto, como um meio de retribuir graças anteriormente concebidas.

De acordo com Leal (1991) , “simultaneamente a esta vertente religiosa, as


refeições, dádivas e distribuições alimentares que integram a sequência ritual das Festas
do Espírito Santo possuem uma importante dimensão sociológica. Circulando num
quadro social profano minuciosamente previsto e regulamentado, os alimentos, ao
mesmo tempo que ligam os homens à divindade também os homens entre si” (Leal;
1997:34/35).

É justamente para uma imbricação deste tipo que se pode analisar a empadinha
da Folia do Divino Espírito Santo como algo que significa comunhão. A palavra

55
Vale ressaltar que a Festa do Divino Espírito Santo para a comunidade vilaboense é dividida em
momentos: 1º os vários dias do giro da Folia (três finais de semana consecutivos que se iniciam no
domingo de páscoa; 2º os dias de pré-novena (nove dias antes de iniciar as novenas; 3º os dias de novena
(nove dias antes do dia de pentecostes) e por último o dia da festa que é o domingo de pentecostes (50
dias após a Páscoa). Estas informções foram cedidas gentilmente por Leila Miguel Fraga que está
estudando a Festa do Divino Espírito Santo na Cidade de Goiás.
67

comunhão significa, comm~un~i-one-, “comunidade, acto de pôr em comum,


participação, carácter comum” 56.

Se, por um lado, sabemos que o significado de empada = pão, por outro lado,
sabe-se que o pão pode significar o símbolo do sagrado na Folia do Divino, pois para
Santo (1988) que escreveu “Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa”, no ato
da ceia do culto do Divino: “trazem então para a mesa o mais sagrado e o mais Santo de
todos os alimentos: pão comum” (p.129). Para Mayol (1998) 57, o pão, “não é tanto um
alimento básico mas sobretudo um “símbolo cultural” de base, um monumento sem
cessar restaurado para conjurar o sofrimento e a fome” (p.133). E continua o autor: “o
pão suscita o respeito mais arcaico, é quase sagrado. Jogá-lo ao chão, pisá-lo é visto
como sacrilégio. O pão é um memorial”58. Pode-se afirmar, o empadão é um memorial.

Baseado no que foi apresentado acima, proponho-me, então, a fazer uma relação
entre o sentido etimológico da palavra comunhão com a Santa Ceia, afim de mostrar
como a expressão tem no bojo da questão o propósito de consagrar e unir um grupo e m
torno da comida. Logo, se comunhão = comm~un~i-one, não poderia escapar de nossa
atenção a representação simbólica da Santa Ceia em relação ao significado etimológico
da palavra empadão = pão o que pode simbolizar o Corpo de Cristo no ato da eucaristia.

Nesta mesma percepção, compreende-se que a empadinha da Folia do Divino


Espírito Santo na Cidade de Goiás pode simbolizar a divisão do empadão em várias
pequenas partes, representando então, a comunhão. (ver foto nº13).

Além disso entende-se que a empadinha é uma “ressemantização” do empadão


quando ele vai ou alcança as camadas populares da Cidade de Goiás, mas isto enquanto
pão. Sendo que, nesta dimensão, tem menor tamanho; menos recheio e massa menos
elaborada. É a massa para a massa.

Os dados da pesquisa indicam que, além da oferta de salgados, encontram-se os


doces (ver foto nº14). Ademais, que a Folia do Divino Espírito Santo a partir de 1988,
chega até Goiânia-GO, estabelecendo a inserção dos nativos da Cidade de Goiás que se
mudaram para a nova capital. O que implicou a “replicação”/extensão da empadinha

56
Bueno, Francisco da S., 1974. “Grande Dicionário Etimológico” - Prosódico da Língua Portuguesa -
Vocábulos, Expressões da Língua Geral e Científica - Sinônimos contribuições do Tupi-Guarani. 3º vol.
E - F. Editora Brasília Limitada. Santos - São Paulo .
57
Mayol, Pierre. 1998. O Pão e o Vinho. In: A Invenção do Cotidiano: 2. morar, cozinhar/ Michel de
Certeau, Luce, Pierre Mayol.-Petrópolis, RJ: Vozes.
58
idem
68

para o contexto da festa evidenciando, assim, a união de dois elementos significativos


tradicionais da antiga Vila Boa de Goiás. Segundo o relato de Maria Veiga, concedido à
Leila Miguel Fraga (pesquisadora do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia) ,
o fato de a tradição ter chegado até a capital do Estado (ver foto nº15) se refere à
intenção de relembrar e reintegrar os vilaboenses que moram fora da Cidade de Goiás e
que, no entanto, foi transformado em um comportamento que se tornou tradição mas
que foi observado e copiado dos jaraguenses 59.

Diferente conta Machado (2002), em A Família fala mais alto, na Folia do


Divino Espírito Santo na Cidade de Luziânia-GO, não aparece a empadinha, como
oferenda. Assim transcrevo as suas palavras:

“ A festa é precedida de uma novena preparatória constando de


uma missa todos os dias com pregações na Igreja Matriz. Depois há
um animado leilão de prendas oferecidas pelas tradicionais famílias
da cidade. Entre as prendas oferecidas, as que mais se destacam são
as bandejadas de doces e leitão assado. Ao mesmo tempo, uma
equipe de voluntários composta de homens e mulheres fica
encarregada do preparo dos quitutes ( pães de queijo, pastéis,
churrasquinhos, etc. ) bem como a venda de bebidas, tanto nas mesas
quanto nos balções laterais ”( Machado; 2002:65 ).

* * *

Chamo atenção, agora, para a relação entre a forma e função do utensílio


doméstico utilizado para o preparo do empadão. O objetivo é mostrar os diferentes
tamanhos das fôrmas. Os dados da pesquisa de campo realizada na Cidade de Goiás,
sugerem que o empadão goiano tenha sido introduzido em Goiás no início do século
XIX, no contexto do núcleo familiar. A partir de então, sofreu “adaptações” ao longo
dos anos. Marcos André Torres de Souza (2000) , que pesquisou Ouro Fino de Goiás,
cujo trabalho consiste em uma análise morfológica dos artefatos escavados na área

59
Para maiores detalhes a respeito da Festa do Espírito Santo na Cidade de Goiás, ver: Fraga, Leila
Miguel. 2003. O Divino Espírito Santo na Cidade de Goiás. Uma festa para o Patrimônio e a Memória.
Dissertação de Mestrado. UCG.
69

mencionada, onde preocupou-se em ressaltar através da Arqueologia Histórica o


cotidiano da mineração durante o século XVIII, aponta para os seguintes referenciais60:

“Na Idade Média e primeiros momentos do Renascimento, os


utensílios ligados ao preparo, serviço e consumo de alimentos não
apresentavam uma distinção nítida na sua forma e tampouco eram
especializados ou, quando isso existia, não era marcante, havendo a
tendência destes artefatos serem menos diversificados e acumularem
funções. Com o correr dos séculos XVII e XVIII, contudo, os
recipientes tenderam a apresentar uma maior diversificação, o que foi
acentuado após a popularização das categorias de faiança, usadas no
serviço e consumo de alimentos, enquanto na cozinha permaneceram
os mesmos artefatos cerâmicos” (Souza; 2000:56).

Conforme o levantamento e as sondagens realizadas em campo, pôde-se


constatar que, no que se refere ao empadão, o utensílio usado para o preparo é o mesmo
usado para o consumo. Exceto em raras ocasiões, onde o preparo se dá em utensílio
grande, como é o caso da fôrma tamanho família, e no ato do consumo, a iguaria
repartida em porções é servida em outro recipiente o prato.

No primeiro capítulo, vimos portanto, que a mulher/matriarca é a grande


responsável pelo domínio privado e, sendo assim, também se torna responsável pela
dimensão da confecção ou supervisão do preparo do empadão. Neste sentido, então,
devo acrescentar que nesta proporção é a dona da casa que serve todo mundo na ocasião
de comensalidade do empadão, o que denota uma tradição goiana, diferentemente do
churrasco, que é o homem quem serve. E ainda que a mãe neste caso, procura atender os
gostos de cada filho, se transformando, então, na atriz privilegiada da cozinha.

60
Ressalta-se que nossa preocupação consiste em entender o processo de manufatura dos utensílios
cerâmicos da Cidade de Goiás, ligados ao preparo e consumo do empadão a partir do século XIX, com a
finalidade de caracterizar o tamanho da fôrma utilizada em cada momento do contexto de festas sociais e
religiosas. Através da análise tipológica do utensílio cerâmico, torna-se possível reconstituir alguns
elementos característicos do processo de confecção e preparo dos alimentos. Ademais, Souza (2000),
apresenta em seu trabalho, algumas discussões ligadas à forma como os grupos domésticos se
estruturaram em Goiás no século XVIII, sobretudo por meio da identificação das relações de gênero.
70

Os dados da pesquisa indicam que a participação da mulher escrava foi ativa na


confecção dos utensílios para o preparo do empadão. Essas mulheres foram em parte as
responsáveis pela confecção tanto da forma quanto da função. Mesmo, com a abolição
da escravatura, a escrava continuou sendo de certa maneira a responsável pela
confecção do utensílio cerâmico usado no preparo do empadão. O depoimento abaixo,
além de melhor ilustrar esta afirmação, aponta para o processo ensino/aprendizagem:

“Antigamente, lá em casa todos nós sabíamos fazer cerâmica.


Hoje, eu compro do Pedro. É ele que faz as cerâmicas para mim,
inclusive estas fôrmas grandes” (M.M., 52 anos, cozinheira).

Na Cidade de Goiás, havia uma legião delas que faziam parte da família. Não
por acaso o depoimento abaixo retrata esta questão:

“Eu tinha uma ‘ preta’ lá em casa, que era ‘peão’. Ela era
cozinheira e fazia as fôrmas de barro” (B.G.89 anos, do lar).

Dona Eva Carneiro dos Santos, nascida em 1937 na cidade de Goiás, profissão
ceramista. Proprietária da Cerâmica Arte à Mão, em entrevista, relatou que, desde os
sete anos, aprendeu a fazer cerâmica, sendo ela descendente de africanos e tendo toda a
sua família envolvida no processo do “modo de fazer” cerâmica, como apresenta o seu
depoimento:

“Minha mãe fazia cerâmica... Tarcila Camargo Pedrosa... ela


não faz mais, porque não dá conta de mais nada. Eu faço cerâmica há
53 anos. Minha filha faz e meus netos também” (E.C. S., 65 anos,
ceramista)61.

Conta ainda que a cerâmica popular local hoje abandonou o padrão decorativo,
utilizando-se de raras exceções. Nesta perspectiva, a informante acrescentou també m
que a fôrma cerâmica para o preparo do empadão possui vários tama nhos (ver foto nº 16
e 17). O que pode variar entre 38cm de diâmetro; 14 cm a 10cm de diâmetro, como
declara o seu depoimento:

61
Entrevista concedida à Leila Miguel Fraga em 16/04/1998.
71

“A gente faz forma de empada para todos estes restaurantes...


Ouro Fino, Casarão, Dali do seu Elder... Encomendam e fazemos
todos os tamanhos. Ás vezes, encomendam 100 ou 200 formas do
mesmo tamanho. Ás vezes, fazemos duas, três maiores para reuniões
familiares. Depende da encomenda que o restaurante recebe
também”. ( E.C.S., 65 anos, ceramista)62

Dona Maria Martins de Oliveira, 52 anos, em entrevista informou sobre o


tamanho da fôrma “antiga”, como ela se refere:

“A minha mãe sabia fazer cerâmica. Pote, panela de barro,


fôrma para empadão também. Inclusive, a fôrma ‘antiga’ era maior,
tamanho grande, mais ou menos 30 a 40 cm. E também cozinhava
mais era nas panelas de barro. Até hoje eu ainda cozinho em panelas
de barro, arroz, pequi...” (M.M., 52 anos, cozinheira).

63
Por um lado temos tigelas tamanho família (com 38cm de diâmetro) . Por
outro, a exumação de tigelas com motivos decorativos confeccionadas por escravas no
século XVIII (Souza, 2000). Assim, levanto aqui uma questão que a considero
pertinente: quem sabe a cerâmica do empadão goiano “antigamente” não tinha motivos
decorativos? Relembrando as palavras de Dona Eva ceramista, “curiosamente a
cerâmica hoje deixou os motivos decorativos” (ver foto nº 19). Ademais, com as
“adaptações” do empadão sofridas ao longo dos anos, o seu recipiente, foi també m
sendo modificado de acordo com a ocasião.

À medida que relacionei a forma e função do utensílio cerâmico com o


empadão, observei uma outra situação onde a comida tradicional é preparada em vasilha
de tecnologia tradicional, como por exemplo: o arroz com pequi; a guariroba; o feijão; a
galinhada; o peixe na telha; o lombo de porco e etc. No que diz respeito a esta comida,
notei que, embora muito apreciada, não é preparada nestes vasilhames no dia-a-dia,

62
Dª Eva nos informou também que, atualmente, em sua residência, ela faz empadão em uma fôrma
retangular de cerâmica, que se aproxima à uma fôrma Duralex com aproximadamente 28cm de largura e
38cm de comprimento (ver foto nº 18).
63
Durante a pesquisa de campo encontrou-se na casa de Dª Maria Martins, uma cerâmica utilizada para
fazer empadão em festas de final de ano com 36cm de diâmetro(ver foto nº 20).
72

somente em dias especiais. Ao mesmo tempo que, na rua, esta prática é reforçada
através da expansão dos restaurantes de comida típica. Assim sendo, a produção do
utensílio cerâmico na Cidade de Goiás, hoje, atende mais à uma dimensão de
comercialização em grande escala com o intuito de atender aos restaurantes do que
necessariamente aos habitantes que a usam esporadicamente no preparo dos alimentos.

Observou-se também neste, conjunto de informações, a substituição do utensílio


cerâmico, usado para a confecção do empadão goiano, pela lata de goiabada ou
marmelada64. Isto sugere, portanto, o ingresso de produtos industrializados do Sudeste
em Goiás no pós-30. Sobretudo quando Borges (2000), afirma que:

“centros urbanos como Goiânia, Anápolis, Rio Verde,


Itumbiara, Pires do Rio e outros, inseridos no circuito do mercado
nacional, tornaram-se autênticos entrepostos comerciais encravados
no sertão, os quais funcionavam como coletores dos excedentes
econômicos produzidos na agropecuária e repassadores dos bens
industrializados provenientes do Sudeste” (Borges; 2000:32/33).

Fica aqui demonstrado que o empadão, em domínio privado, se difere em duas


categorias: empadão tamanho familiar e empadão familiar especial. O primeiro tem na
tradição o significado de “agregação familiar” e, não que o outro de distancie da
primeira conclusão, mas a sua especificidade se encontra no domínio da ocasião
especial, para pessoas especiais, com ingredientes especiais. E é, isto que possibilita
entender o empadão como uma tradição que permite, em situações especiais, estabelecer
o que DaMatta (1986) , considera culinária relacional.

A empadinha, uma adaptação do empadão, ligada aos supostos de festas sociais


e religiosas, tem, neste primeiro aspecto, uma conotação de sociabilidade que
geralmente acontece em contexto de reuniões sociais, como aniversário e casamento. E
quanto ao último aspecto, a empadinha ganha a dimensão de comunhão que no sentido
etimológico da palavra significa, comm~un~i-one.

64
A marmelada de Santa Luzia-GO, é registrada por Sant-Hilaire(1975) no século XIX.
73

No que se refere à forma e função do utensílio doméstico utilizado para o


preparo do empadão goiano, penso que está relacionado às ocasiões
extraordinárias/especiais ligadas às pessoas, utensílios, pratos e acompanhamentos
especial. E nesta direção o empadão goiano, visto como uma tradição regional, está
inserido na perspectiva mudança/continuidade, o que veremos no próximo capítulo.
74

CAPÍTULO III

Empadão e certos aspectos Econômicos e Ecológicos

“O empadão bom mesmo é o tradicional


assado no forno de brasa. O sabor é
outro...” (DªMª.M.52 anos, cozinheira)

Disponibilidades de Gêneros Alimentícios no século XVIII

O ouro em Goiás, descoberto na segunda década do século XVIII pelos


bandeirantes paulistas, trouxe uma nova organização social e também dieta 65. “Boris
Fausto aponta que, durante os primeiros 60 anos do século dezoito, chegaram ao Brasil
cerca de 600 mil pessoas de Portugal e das ilhas do Atlântico” 66. Quanto aos cardápios
da época, “Luís da Camara Cascudo dá a dieta do escravo na mineração: angu de milho,
toucinho e alguma carne semanal eram o regime dos escravos em Minas Gerais, Mato
Grosso e Goiás, juntando-se o ocasional da caça e pesca feliz” 67.

E sobre comida da fazenda e das vilas mineiras relata que “a culinária se


utilizava do que conseguiam fazer chegar dos navios, em lombo de burro, e do que
cultivavam. Os pratos daquela época permanecem até hoje, fruto da influência de
negros, índios e portugueses, entre eles, os mais famosos são o frango com quiabo, a
canjiquinha, a couve, o angu e as carnes de vaca e porco” 68. A comida do tropeiros é
descrita da seguinte maneira: “Os alimentos dos tropeiros tinham de ser duráveis e
secos: carnes salgadas, farinhas, brotos, caças e cachaça”. E sobre a comida dos
bandeirantes: “A comida básica era a paçoca de carne-seca ou de peixe, preparada para
viagens longas. Porém, no caminho, os bandeirantes caçavam e plantavam roçados, para
ser colhidos pelas próximas bandeiras”69.

65
Fonte: Folha de São Paulo - Especial 1. Domingo, 2 de abril de 2000. In: “Tabuleiro do Brasil
500”.p.06.
66
idem.
67
op cit.
68
idem.
69
idem.
75

Bertran (1978) em seu livro “Formação Econômica de Goiás”, afirma que, “em
Goiás, o comércio desenvolvera-se consideravelmente. Em 1741 compunha-se de 253
estabelecimentos de que citam-se 146 vendas (capital de aproximadamente 2
quilos/ouro) e o restante lojas ( capital de uns 5 quilos/ouro) resultando como fundo de
comércio da capitania uns 800 quilos de ouro. Ainda no mesmo ano a renovação de
estoques importados atingia de 350 a 700 quilos/ano (entradas) a que se pode acrescer
uns 50% da produção agrícola do ano, atingindo o todo uns 500-700 quilos de ouro de
giro de mercadorias e o encerramento do ano com uns 30% de estoques” (p.39). Nas
palavras de Silva e Souza (1998) 70, durante o século XVIII:

“as cousas mais necessarias para a vida se vendiam a peso de


ouro, chegando a custar o alqueire de milho seis e sete oitavas; e de
farinha dez; o primeiro porco que appareceu oitenta oitavas; a
primeira vacca de leite duas libras de ouro, e tudo o mais a
proporção” (Silva e Souza apud, Teles; 1998:79).

Silva e Souza nos dá notícia do sal também à época, fazendo as seguintes


considerações:

“Os generos de importação são o sal, que se calcula em 1000 alqueires (...) ”
(Silva e Souza apud, Teles; 1998:161).

Bertran (1978) , tece ainda as seguintes considerações acerca dos alimentos na


economia goiana durante a febre aurífera: “Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso - nessa
ordem - constituíam espaços econômicos alternativos - gravados nessa progressão por
sucessivos aumentos de custo nos fatores de produção aurífera (...) ”. No entanto, apesar
dos altos custos as mercadorias importadas de Portugal e Inglaterra não tiveram mais
como destino apenas as regiões litorâneas, dirigindo-se também às demais zonas
brasileiras71, como por exemplo, Goiás. Este comércio se apresentou rico na diversidade
de mercadorias comercializadas, desde produtos alimentícios até uma infinidade de
outros produtos (Callefi,2000) 72.

70
Teles, José Mendonça. 1998. “Vida e obra de Silva e Souza” . 2ª edição - Goiânia: Ed. UFG.(Coleção
Documentos Goianos nº 31).
71
Ver: os principais caminhos coloniais do século XVIII in Rocha, Leandro Mendes(Org.). 2001.“Atlas
Histórico: Goiás pré-colonial e colonial. Goiânia: Editora do CECAB. p. 51.
72
Callefi, Gislaine Valério de Lima.2000. Preferências e Possibilidades de Consumo em Goiás nos
Séculos XVIII e XIX. Dissertação de Mestrado, Faculdades de Ciências Humanas e Letras, UFG.
76

A mesma autora acrescenta ainda que, além, das metrópoles mencionadas acima,
as províncias brasileiras que se dedicaram ao abastecimento das áreas de mineração
foram: São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e a região platina. Com efeito, esta nova
realidade provocou algumas situações negativas nas regiões abastecedoras, como, por
exemplo, a falta de produtos para o abastecimento da população local, e a especulação
de preços. Zemella (1990) ao escrever sobre “O Abastecimento da Capitania das Minas
Gerais no Século XVIII” nos relata os produtos exportados para as regiões mineradoras:
toucinho, aguardente, açucar, trigo, entre outros73. “As carnes de porco e o toucinho
eram mantidos em bom estado pelo processo da defumação” 74. E conta ainda que,
“outro fator que contribuía para as demoras dos fornecimentos e para o encarecimento
de todos os artigos - além das estradas, era a multiplicidade de barreiras onde se
pagavam impostos e se procedia à revista e contagem das mercadorias”. Conta ainda
que na travessia dos rios também pagavam as mercadorias direitos de passagem. E
lembra a impossibilidade de abertura de novos caminhos (Zemella; 1990:197).
Entre os principais produtos importados de Portugal no século XVIII
destacavam-se: alho; azeitona; azeite; bacalhau; nozes; sal; sabão; vinhos e aguardente
(Callefi; 2000:36) 75. Ressalte-se que, entre estes ingredientes, o toucinho, o trigo, assim
como o sal, a zeitona, são ingredientes básicos do empadão.
Segundo, Leandro Mendes Rocha (2001) os produtos que chegavam até
Goiás, no sistema colonial, saíam de Lisboa chegando até os portos de Belém; Salvador;
Rio de Janeiro e São Paulo para posteriormente seguirem viagem até Vila Boa.
Souza (2000) 76 assinala o referêncial sobre a alimentação utilizada na mineração
em Goiás durante o século XVIII, ao tecer considerações a respeito do feijão
combinado com toucinho, o eventual consumo de galinha, porco, gado e caça. Além
disso, o arroz, os derivados de milho, com destaque para sua farinha e como suplemento
os vegetais encontrados no cerrado. Ao que tudo indica, desenvolveu-se, então uma
cozinha própria, adaptada à conjuntura resultante das dificuldades na aquisição de
produtos provinientes de fora e aos altos preços77. Vale lembrar que, devido as altas

73
Zemella, M.P.1990. O Abastecimento da Capitania das Minas Gerais no Século XVIII. São Paulo:
HUCITEC.p.59.
74
Zemella;1990: 198.
75
Grifo meu.
76
Souza, Marcos André Torres de. 2000. Ouro Fino. Arqueologia Histórica de um Arraial de Mineração
do Século XVIII em Goiás. Dissertação de Mestrado, Faculdades de Ciências Humanas e Letras, UFG.p.
99.
77
Zemella conta que, “ outro fator que contribuía para as demoras dos fornecimentos e para o
encarecimento de todos os artigos - além das estradas, era a multiplicidade de barreiras onde se pagavam
77

taxas cobradas pela Coroa, somente os ricos senhores tinham acesso aos artigos de luxo
(Abdala; 1997:61).

Bertran (1994) em a “História da terra e do homem no Planalto Central”, ao


indagar o que se comia nessas fazendas e arraiais setecentistas do sertão brasileiro, faz a
referência abaixo:

“ Primeiríssimo a ser lembrado, o milho, tanto para os animais


quanto para o sustento humano. Farinha, sem esclarecer-se se de
milho, mandioca ou, improvável, de trigo. Feijão, caríssimo.
Toucinho de porco, vendido quando muito por libra de peso. Galinha.
Frango. Ovos. De vaca tudo se comia: cabeça, língua, miúdos, carne
seca, carne verde, e como é sabido, o berro não era a vianda
preferida, como também entende o mineiro Eduardo Frieiro. Dos
frutos de coleta natural da terra, o primeiro lembrado é o palmito de
“guariroba”, tão substancioso que dava-se aos doentes, verdadeira
salvação nos ermos. Aliás foi o que deu fôlego à primeira entrada do
descobridor de Goiás, o Anhangüera, como lembrou-se de registrar o
cronista Silva Braga” (Bertran; 1994:173-174).

Para encerrar o nosso cenário alimentício dos anos da mineração, sem ainda
fazer alusão ao empadão goiano, continuo in Bertran (1994), que comenta que a
culinária inicial era fundamentalmente carnívora e atesta que o arroz viria mais para o
fim do século XVIII, quando já se cultivava em escala no sul de Minas, e que,
curiosamente conforme, Suzane Chantal, nesta mes ma época o arroz com feijão era um
prato muito apreciado em todas as classes, em Portugal.

Preferências e Consumo no século XIX: O Empadão Goiano

Nesta segunda parte procurar-se-à tratar separadamente de alguns produtos


básicos usados no preparo do empadão goiano e que se tem notícia desde o século
XVIII. Para tal fim, iniciaremos este momento, com a chegada da Família Real, afim de
apontar a abertura dos Portos em 1808 às nações amigas, isto é, a importação de

impostos e se procedia à revista e contagem das mercadorias”. Conta ainda que, na travessia dos rios,
também pagavam as mercadorias direitos de passagem. E lembra a impossibilidade de abertura de novos
caminhos(Zemella;1990:197).
78

produtos das nações amigas. Outras questões, aqui presentes e, que, por conseqüência
estão ligadas à preferência e consumo em Goiás de produtos importados, é o retorno de
D. João VI a Portugal em 1821 e o pós-22, pois, considerando os termos que se deu à
Independência, observa-se que não houve uma queda significativa no setor de
importação.

Sabe-se que, ao fugir para o Brasil em 1808, D.João VI trouxe em sua comitiva
especialistas em cozinha. Entre os cardápios oferecidos, encontra-se empadas78. No
mesmo ano, com a abertura dos portos, ocorre o ingresso de novos comerciantes e
novos produtos. Ademais, um número crescente de imigrantes também chegou ao país.
Os novos imigrantes introduziram massas de toda a espécie (Ornellas,2000). Dessa
forma, contribuíram grandemente para tornar muito maior o consumo do trigo, quer
para as massas, quer para o pão branco (Ornellas,2000).

O trigo é proveniente simultaneamente da Europa, São Paulo, Rio de Janeiro,


Bahia e região platina desde o século XVIII, para as regiões mineradoras. Entretanto, no
século XIX, passa a ser cultivado e transformado em farinha de trigo aqui em Goiás,
como mencionou Saint-Hilaire (1975):

“A alimentação dos habitantes de Vila Boa é a de todos os


brasileiros do interior, constituindo a sua base a farinha de mandioca
ou de milho. Não obstante, encontram-se na cidade algumas
especialidades que não há nas fazendas. Menciono, em particular, um
excelente pão que é feito com farinha de trigo vinda de Santa Luzia,
de Meia-Ponte e de Cavalcante, um arraial situado ao norte de Vila
Boa, cujas terras são provavelmente mais elevadas e, segundo dizem,
muito propícias à cultura do trigo” (Saint-Hilaire; 1975:52).

No entanto, apesar das referências apontadas por Saint-Hilaire, os dados da


pesquisa nos indicam que em Goiás havia uma preferência considerável pela farinha de
trigo especial, estrangeira, ou da “boa”, para a confecção do empadão especial. Como
comprova o depoimento abaixo:

“Farinha de trigo, nós compravamos aquela farinha boa. Era


para empadão. Agente fazia a massa, sovava... Ai deixava para o

78
Ornellas, Lieselotte Hoeschl. 2000. A alimentação através dos tempos. 2.ed. - Florianópolis: Ed. da,
UFSC. p. 240.
79

outro dia. No outro dia amanhecia lisa, macia que era uma beleza. É,
ficava folhada... Hoje ela fica é ressecada, dura” (B.M.S. 89 anos,do
lar).

“Após 1822, apesar da independência, a Corte de D. Pedro I não sofreria


mudanças drásticas, apenas algumas reações. Mesmo os produtos europeus,
principalmente de Portugal, antes recusados pelos nacionalistas, nas festas da
proclamação e sagração, voltavam a merecer a mesma acolhida que se dispensava ao
novo Imperador” (Ornellas; 2000:243).

Com a maior abertura dos costumes, voltaram a chegar carregamentos navais de


iguarias européias, entre elas queijos (Ornellas; 2000:243). Abdala (1997) registra que,
de acordo com Cascudo, na primeira década do século XIX, o queijo de Minas era
produto vendido para quase todo o Brasil Meridional e para a Bahia. Chegava ao Norte
revendido pelo Rio de Janeiro. Saint-Hilaire (1975) e Cascudo (1983) dão notícias da
exportação do queijo de Minas para outras regiões do país, desde as primeiras décadas
do século XIX ( Saint-Hilaire (1975) e Cascudo (1983) apud Abdala; 1997:88).

Silva e Souza, in Teles (1998) , argumenta que um dos problemas de Goiás, em


relação à produção de queijo, é que aqui, por volta de 1824, matavam as vacas para
pouparem os bois, assim, transcrevo as suas palavras: “havendo bom methodo, e tendo
os habitantes maior fevor na creação, não matando as vaccas para poupar os bois, que se
vendem (...) fazendo queijo, manteiga” (Teles; 1998:189).

Como foi registrado anteriormente, o toucinho, constitui-se como uma das


preferências no consumo diário. Oscar Leal (1980) , registrou que, em toda casa que se
chegava havia uma porção de refeição preparada à base de toucinho. Além disso,
registra também que, em sua passagem por Perinópolis, foi servido um alegre jantar
onde constou: “carne de porco, vacca, gallinha, camarões de lata e farofas, regando-se
tudo com alguns copitos de pinga (aguardente) , o que é um córte para os maus effeitos
d’esses alimentos gordurosos” (Leal; 1980:102).

Oscar Leal acrescenta ainda que em maioria, os produtos consumidos em Goiás


no século XIX chegavam do Rio de Janeiro e, apesar da distância, os “negociantes”
trazem objetos e mercadorias de péssima qualidade por preços “disparatados”. Quanto
aos negociantes goianos, estes pagavam pelos prejuízos constantemente, devido muitas
vezes não procurarem obter certos gêneros diretamente de “casas especiais”. Pediam
80

muitas vezes ao correspondente do Rio de Janeiro mercadorias estranhas ao seus


negócios aqui, e geralmente de péssima qualidade porque: “cada qual deseja um
lucrosinho ...” (Leal; 1980:84).

E se tratando do Rio de Janeiro, encontrou-se junto a pesquisa bibliográfica que,


no Rio de Janeiro em 1853, de acordo com anuncio de jornal à época, havia junto ao
Teatro São Francisco, uma “casa de pasto” que oferecia “grande variedade de comidas e
empadas, todos os dias”79.

Callefi (2000) ao pesquisar os primeiros anúncios de casas comerciais, no jornal

Correio Official, a partir de 1864, constatou que em Goiás existia um número


significativo de mercadorias importadas disponíveis nestes estabelecimentos tais como:
“ azeitonas em latas; queijos do Reino (novos) ; farinha de trigo estrangeira, aseitonas
de Sevilha em vidros; aseitonas d’Elva em latas 80; farinha de trigo gallega; latas com
azeitonas pretas; latas com camarões em conserva; manteiga dinamarqueza; manteiga
inglesa; peixe em latas; queijos londrinos; sal e lingüiça” 81.

Callefi (2000), considera que estes elementos mencionados acima, evidenciam


importantes aspectos do consumo da população goiana no século XIX 82.

“Goiás, apesar da distância, manteve contato com o comércio estrangeiro (...)


encomendavam peças de cristal tcheco, porcelanas inglesas e chinesa, prata portuguesa,
seda e outros. A mercadoria chegava em “carro de boi” vinda do porto do Rio de
Janeiro ou subia pela navegação do Araguaia, aportados em Belém do Pará. O comércio
mais corriqueiro também embrenhava-se pelos sertões até as lojas como a de Simão de
Sousa, em 1880, vendia passas e amêndoas confeitadas, caixas de doces de Lisboa, latas
de ameixas (...) vinho do Porto engarrafado e em barril, etc” (Rodrigues; 1982:44).
Brito (1982) também adiciona a este contexto que: “a carga por via fluvial era
descarregada no Porto de Leopoldina, hoje Aruanã, seguindo dali, por tropas, para a
Capital. Nosso mercado, assim era abastecido dos melhores artigos estrangeiros: vinhos,

79
Alencastro, Luiz Felipe de. 1998. “ O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”. In: História da Vida
Privada no Brasil. vol.2. Império: a corte e a modernidade nacional. Companhia Das Letras.
80
A palavra aseitona foi escrita conforme a fonte pesquisada (Callefi,2000), o que sugere que no anúncio
original deve ter sido desta forma.
81
Para maiores informações ver: Correio Official, n.20, 16/03/1878.p.4. E anúncios dos jornais “Correio
Official” e “ A Província de Goiás” correspondente ao período de 1865 a 1889. - Arquivo Histórico
Estadual de Goiás(AHEG).
82
Entre os anos de 1780 a 1822 os dados da cobrança de dízimo revelam, com mais segurança, os gêneros
que eram produzidos localmente. Os principais eram: milho, mandioca, feijão, arroz, aguardente, açúcar,
rapadura, algodão ( Salles, 1992 apud Callefi; 2000:59).
81

licores, louças, latarias, manteiga, camarões e peixes secos” (Brito; 1982:176). Nesta
mesma direção, Paulo Bertran (1978) completa as seguintes referências, ao apontar a
importância do setor de importações no século XIX: “Via Belém os produtos [de
importação] chegavam a Goiás por menos da metade do preço do que pela via da Corte”
(p.54).

No século XIX, a criação doméstica de galinhas, porcos e vacas, representara m


significativa importância para os quintais. Apesar da historiografia tradicional
apresentar um quadro generalizado, sobre o século oitocentista, apontando-o como um
século de total estagnação econômica. Entretanto, entendemos que este século é
marcado pela produção de subsistência aliado também ao setor de importação como foi
apontado por Callefi (2000). E mais: os dados da pesquisa apresentaram um quadro
significativo de plantio nas hortas caseiras que de uma maneira ou de outra,
contribuíram para suprir a visão tradicional de fome/miséria apontada pelos
historiadores desta abordagem.

Cabe ressaltar que, aqui em Goiás, o empadão sofreu ‘adaptações’ como por
exemplo, a introdução da guariroba como será visto mais adiante. As primeiras
referências do tipo mais anti go, indicam que o empadão goiano, tenha sido introduzido
inicialmente no espaço doméstico. Atribuí-se a este empadão “dos antigos” os seguintes
ingredientes: farinha de trigo; banha de porco; ovo; salmoura; galinha; toucinho; carne
de porco; azeitona; queijo; pão; lingüiça e guariroba. Sobre o processo de abertura da
massa, inclui-se também, a utilização da folha de bananeira ou uma toalha molhada,
sendo o preparo de véspera caracterizado por uma massa folhada a partir do fermento
caseiro.

No Jornal “O Popular”83 em entrevista concedida à jornalista Margareth Gomes,


a fotógrafa publicitária Marisa Di Sousa autora do livro Culinária de Goiás (que está
em pré-edição) , relata que “garimpou” receitas em cadernos antigos de famílias
tradicionais da antiga Vila Boa. “Da artísta plástica Goiandira do Couto 84, por exemplo,
ela recebeu de presente a receita do fermento caseiro, que exige preparo especial e é
responsável pelo sabor único do bolo de arroz”, afirma. Segue portanto, a receita:

83
Gomes, Margareth. 2001. Sabores que são nosso Patrimônio. In: Jornal “O Popular”. Goiânia,
segunda-feira, 17 de dezembro.
84
Em entrevista concedida, Goiandira do Couto, informou que esta receita do fermento caseiro é de pelo
menos, primeira metade do século XIX. A informante não soube com precisão informar ao certo a data da
referida receita.
82

“FERMENTO CASEIRO
 5 colheres de farinha de trigo
 2 colheres de água
Coloque todos os ingredientes numa cuia de cuité e misture bem. Deixe descansar por
12 horas. Quando a massa crescer e azedar está pronta para ser usada em bolos e pães”
85

A especificidade do fermento caseiro nos sugere que ele pode ter sido uns dos
elementos que fizeram parte da confecção do empadão, sendo usado na fermentação da
massa. Embora as evidências nos apontem para um processo natural de fermentação,
considerando seu preparo de véspera. Outra questão a que se dedica esta ressalva é que,
no caso do empadão, na Cidade de Goiás, a sua receita, ao que tudo indica, é transmitida
oralmente, portanto, não há cadernos de receitas “antigo” que contenha-o, quando há, a
receita é “modificada”. ( Ver foto nº 21 e 22)

Todo este corpo de informação nos levam para uma nova dimensão: a relação
entre os pratos do cotidiano e os pratos especiais de festa, de domingo, de visitas.
Abdala (1997) que analisou a relação entre a cozinha e a construção da imagem do
mineiro em seu livro “Receita de Mineiridade”86, levantou um quadro considerável de
pratos do dia-a-dia, durante o século XIX e que acredito ser também indicativo para a
realidade goiana. Entre estes destacam-se o angu, o frango com quiabo, o feijão, o tutu,
o lombo a leitoa e a galinha assada. Sendo os primeiros pratos cozidos e os últimos,
assados e destinados para as festas e finais de semana (Abdala; 1997:66).

No caso nosso, soma-se o empadão goiano, que além de assado não é prato do
cotidiano. Nesta relação entre cozido e assado, a autora utilizou-se da reflexão de Lévi-
Strauss (1968) para nos mostrar como é entendido por ele tal oposição. Para a autora,
segundo esse autor, cozinhar, assar, fritar e defumar não são meras técnicas de
elaboração dos alimentos, nem resultado de simples preferências ligadas a um gosto
subjetivamente determinado. Cozido (bouilli) e assado (rôti) representam as formas
fundamentais de cozer em inúmeras culturas. O contraste entre bouilli e rôti é indicativo
de oposições de natureza cosmológica ou sociológica. O assado está mais próximo da
natureza, diretamente submetido à ação do fogo, enquanto o cozido requer mediação de

85
Grifo meu.
86
“ A culinária goiana e mineira divergem em detalhes e em alternativas
combinantes”(Bertran;1994:175).
83

água e recipiente, que é um objeto cultural. E adverte ainda que o cozido evoca a
conservação integral do alimento e seu suco, ao passo que o assado é acompanhado de
perda. Esse é aristocrata, marca o ponto culminante do banquete, o outro é popular,
econômico, evoca a cozinha caseira, íntima (Lévi-Strauss, apud Abdala; 1997:66-67).

Da forma como percebo o empadão goiano, este conota duas ações, pois,
primeiro cozinha-se os ingredientes (frango, guariroba etc) e em seguida assa-se a
massa recheada com os ingredientes. Uma relação que estabelece um procedimento que
está associado a uma ritmação lenta, que marca longos processos de preparação e
confecção de alimentos, e exigia da mulher, atriz principal da cozinha no século XIX e
início do século XX, dedicação total e praticamente exclusiva. Este ritmo lento assinala,
portanto, o espaço da cozinha domínio de boa parte da vilaboense desde o processo
colonizador, durando até que a praticidade da vida contemporânea impusesse mudanças.
Vejamos à seguir o depoimento abaixo que melhor ilustra esta questão:

“O empadão tem seqüência. Antigamente cortava-se as rodelas


de pão em cunha. Minha mãe era muito caprichosa. Ela falava que a
rodela de pão tinha um porque. É para não estourar o fundo. A
mamãe pegava e esfaqueava o pão, depois pegava o molho e colocava
uma colher no fundo, colocando em seguida o pão por cima... Hoje,
coitada, está com 93 anos e não faz mais nada... Por cima do pão, a
batata. Então, o quê que vai dar para por na batata, o queijo. Porque
a batata com queijo, casam-se bem. No meio põe-se a azeitona e uma
pimenta de cheiro inteira, para ela soltar aquele aroma. Depois vem o
frango e por cima a carne de porco. Em seguida a guariroba amarga.
E por fim, um pedaço de ovo. Porque um tempera o outro”. (Dª Silvia
Curado, 70 anos, doceira)

Ao analisar o depoimento acima, logo percebi que seria viável uma estimativa de
datação da receita, principalmente se levarmos em consideração a idade da mãe da
informante. No ato da entrevista, a informante mencionou que sua mãe apreendeu com a
sua avó. Sendo assim, se calcularmos a data de nascimento da sua mãe 1909, e se
recuarmos mais um pouco no tempo, levando em consideração que a avó de Dª Sílvia,
provavelmente teve sua mãe com mais de dezoito anos, o que nos permite afirmar que
esta receita é de pelo menos final do segundo Império. Ver a receita a seguir, fornecida
oralmente pela informante:
84

“ Massa:

-1 chávena menos um dedo de banha de porco;


-ovos;
-sal;
-farinha de trigo.
Recheio:

-pão;
-queijo;
-azeitona;
-pimenta de cheiro;
-carne de porco ou lingüiça de carne de porco;
-frango;
-guariroba;
-ovos.

Modo de fazer:
Derreta a banha de porco, coloque-a em um lugar fresco e
deixe coalhar. Reuna os ingredientes da massa em uma gamela,
depois, sove-os com a banha de porco coalhada. Enrole a massa na
folha de bananeira ou pano húmido. No outro dia, corte a massa e
tire os pedaços e vai abrindo a empada. Forre o fundo com molho.
Coloque uma rodela de pão ou esfaqueie o miolo para o molho não
vazar. Coloque o queijo por cima e bem no meio, uma azeitona e uma
pimenta de cheiro, ‘para soltar aquele aroma’. Em seguida o frango,
a carne de porco, a guariroba e por fim um pedaço de ovo. Por último
o molho grosso, a tampa e vai fechando” (S.C. 70 anos, doceira).

Menciono como possibilidade que estas receitas do empadão possivelmente


tenham sido trazidas por mandatários portugueses no período colonial ou na “bagagem”
de presidentes de província no Império.

Empadão Goiano: Continuidade e Alterações


85

É do século XX, porém, a configuração da culinária goiana em seu formato atual


(Bertran,1994). Quanto ao empadão goiano, percebeu-se através do levantamento de
dados orais e fontes histórico-literárias que sofreu algumas alterações significativas a
87
partir do início do século mencionado. Fonseca (1998) ao pesquisar o Censo de 1920,
“População do Brasil por Estados, Municípios e Distritos ”, certificou-se que, em
Goiás, produzia-se além do arroz, do café e do milho - a batata inglesa. Observou-se
que, no preparo do empadão goiano visto acima, não se incluía a batata inglesa. Tudo
indica, que a batata inglesa, passa a ser introduzida no empadão goiano a partir de então.
Não se sabe ao certo quais foram as razões da ‘reapropriação’, se por substituição ou
por acréscimo, inserindo ai a questão do gosto incorporado às novas tendências de
mercado 88. Segue abaixo o depoimento de Goiandira do Couto, 86 anos, que remetendo
aos anos 20, menciona em entrevista concedida o seguinte:

“Minha avó fazia assim... Colocava tudo separado na mesa,


cada ingrediente em um prato. Então era: um pedaço de frango
caipira; ovos; lingüiça; carne de porco; queijo. Batata não existia (...)
Azeitona e molho bem vermelho de tomate. Eu era bem pequeninha,
tinha 6 anos de idade” (G.C., 86 anos, artísta plástica).

As adaptações no “modo de fazer” empadão goiano, podem ser vistas no livro


Cozinha Goiana de Bariani Ortencio (2000) , quando o autor, ao coletar as receitas,
compara técnicas. Segundo o autor, as receitas repetidas, como biscoito de queijo e pão
de queijo, bolo de arroz e empadão, são para mostrar algumas diferenças que há sobre
um mesmo prato em diversas regiões do Estado89. Desse livro de receitas, escolheu-se
alguns exemplos como exercício piloto para mostrar a perspectiva mudança-
continuidade. No primeiro exemplo, a autora da receita comenta que: “A empada goiana
é o carro-chefe da nossa cozinha. Prato para dias especiais, pela dificuldade de sua
confecção. São dois dias de preparação” ( Regina Lacerda apud Ortencio; 2000: 76).

87
Fonseca, M. L. 1998. Coronelismo e Cotidiano: Morrinhos(1889-1930). In: Coronelismo em Goiás:
estudos de casos e famílias. (coord) Chaul, Nasr Fayad. - Goiânia: Mestrado em História/UFG.p.146.
Editora Kelps.
88
A Colônia de Uvá e a CANG ( Colônia Agrícola Nacional de Goiás ), exerceram grande influência,
relativa a política econômica no Estado de Goiás. A primeira tinha como iniciativa trazer imigrantes. A
segunda visava, intensificar e aumentar a produção de alimentos no Centro-Oeste. A esse respeito ver,
BRITO, Maria Helena de Oliveira. 1992. A colônia de Uvá: uma tentativa de colonização em
Goiás(1924-1954). Goiânia: Cegraf. ( Coleção Documentos Goianos). Ver também: DAYRELL, Eliane
Garcindo. 1975. Colônia Agrícola Nacional de Goiás: análise de uma política de colonização na
expansão do Oeste. Dissertação ( Mestrado em História) - Departamento de História, Universidade
Federal de Goiás, Goiânia.
89
Vale lembrar que, dentro do conjunto de empadões, estou trabalhando o da Cidade de Goiás.
86

Assim, observou-se os seguintes ingredientes para a confecção da massa: farinha de


trigo; banha de porco; ovos; salmoura. Para o recheio: farinha de trigo; frango; sal; alho;
pimenta-de-cheiro; cebola; lingüiça; queijo ( tipo Minas) ; pão; extrato de tomate ( o que
antes era tomate) e azeitonas 90.

Quanto ao Empadão de Goiás À Maninha ( Mani Saddi Calil ) , encontrou-se


alguns ingredientes que nos sugerem uma nova “reapropriação” no modo de fazer
empadão e que provavelmente estejam ligados às mudanças do pós- guerra. Em
entrenvista concedida ao Jornal O Popular91, Dª Maninha, contou que: “fazer empadão
não é nem mesmo muito demorado. A massa não toma muito tempo exagerado para
crescer e nem exige ingredientes caros. O mais caro fica por conta do recheio rico em
ingredientes - mas cujo custo é compensado pela rentabilidade final”. Neste sentido,
alguns detalhes merecem destaque nesta narrativa: primeiro se percebe que o “modo de
fazer” já não se caracteriza pelo fermento caseiro. Passa-se ao uso do pó Royal 92.

Outro fato que me chama atenção é a utilização do óleo industrializado


substituindo a banha de porco, “receita padrão de época”. E mais: ela faz menção do uso
de massa de tomate, o que se supõe ser extrato de tomate. Quando se refere ao uso de
maisena para adquirir uma consistência mais forte, vejo, portanto, uma ‘reapropriação’
de novos ingredientes no empadão goiano, a partir dos anos 30 do século XX.

“EMPADÃO DE GOIÁS À MANINHA


Massa:

1 kg de farinha de trigo;
4 ovos;
2 colheres (sopa) de manteiga;
1 copo de gordura ( banha de porco) ;
1 colher (sopa) de sal;
1 colher (sopa) de pó Royal.
Recheio:

7 ovos cozidos ( em pedaços) ;


1 kg de carne de porco cortada em pedaços e bem frita ou 1 kg de lingüiça de porco frita e
cortada em pequenos pedaços;

90
Desta receita não consta carne de porco. Em certos depoimentos, percebeu-se a exclusão da carne
bovina e suína na Semana Santa e durante o período de resguardo pós-parto.
91
O Popular, Goiânia, 26/12/1986.
92
Em 1937, registro da produção do Fermento Fleschman e Pó Royal no Brasil.
87

Queijo fresco em pedaços delgados;


200 gr de azeitonas;
Guariroba cozida em pedaços;
1 frango pequeno frito em pedaços não muito grandes.
Molho:

Óleo;
Alho, cebola e pimenta de cheiro;
Massa de tomate ou tomates bem maduros;
Pimenta do reino, cheiro verde em geral ( a gosto) ;
Maisena (para engrossar) ”.
* (Fonte: Ortencio, 2000)

Ao que tudo indica, a comunidade vilaboense delegou à Dª Maninha, uma certa


autonomia e responsabilidade sobre o “modo de fazer” empadão. Como “autoridade
máxima”, e com certa margem de criatividade, ela adquiriu poderes para a inserção de
novos ingredientes. Na condição de representante legal do empadão “oficial”, Mani
Saddi Calil, em 1978, abriu em sua residência um restaurante que fornecia, além do
empadão, outros pratos típicos da região.

É interessante observar ainda que o Restaurante de Dª Maninha tinha o rótulo de


Restaurante e funcionava como uma extensão doméstica. O “visitante” comia na sala.
Neste espaço, podia-se observar, assim que entrasse, o altar do Divino Espírito Santo. 93

No entanto, em decorrência de sua morte em 1998, o restaurante foi fechado.


Mas o que nos interessa, a partir deste fato, é que uma nova representante foi eleita,
como “autoridade” do empadão goiano - Dª Alicinha, hoje proprietária do Restaurante
Dali94. Observou-se neste contexto uma profissionalização, no que se refere ao processo
de “saber fazer” empadão. Uma questão merece destaque aqui: Alice de Sant’Ana de
Passos nasceu na Bahia, portanto, é de “fora”, mas, foi “nora” querida, apreendeu com
sua sogra, e recebeu dela, os “segredinhos” do empadão goiano. Como vimos,
anteriormente, isto, só acontece no âmbito da família. O caso aqui é especial, e isto pode

93
Especificamente sobre as características do altar do Divino Espírito Santo, Ver: Fraga, Leila Miguel.
2002. O Divino Espírito Santo na Cidade de Goiás. Uma festa para o Patrimônio e a Memória.
Dissertação de Mestrado. UCG.
94
O Restaurante Dali funcionava, antes da enchente de Dezembro de 2001, na própria residência de Dª
Alicinha. O que se observa é que, quando o restaurante se muda da unidade doméstica, ele é transformado
em espaço profissional.
88

significar que ela foi eleita pela família do esposo como uma especialista no “modo de
fazer” empadão.

O Restaurante de Dª Alicinha funciona como um espaço de convivência, sócio-


cultural e política. Segundo, as informações, várias autoridades políticas, quando
visitam a Cidade de Goiás, vão até seu restaurante para comer o empadão “oficial”.
Marconi Perillo, goiano, de família tradicional, atual governador do Estado, com certa
regularidade viaja até a antiga Vila Boa de Goiás, hospedando no Palácio Conde dos
Arcos. Ele criou o hábito de sair do palácio para comer empadão de Goiás, nas “casas”
de Dª Alicinha, Olinda, entre outras. Retomando, portanto, a tradição política e a
tradição culinária.

Na receita denominada “Empadão” do livro Cozinha Goiana, se encontrou os


seguintes ingredientes: óleo; farinha de trigo; margarina, fermento em pó; peito de
frango; lombo de porco; lingüiça; molho de tomate batido no liquidificador; guariroba;
batata e ovos 95. A autora da receita sugere: “Misture bem todos os ingredientes e, (...).
Deixe descansar por duas horas. Abra a massa no cilindro (...) ” (Ortencio; 2000:71).
Vimos portanto, o uso de ingredientes ainda não mencionados acima, como o uso do
peito de frango e margarina, além, do uso do liquidificador e cilindro, o que indica que
esta receita é mais recente.

Ao pesquisar os recenseamentos de 1940 “Recenseamento Geral do Brasil” o de


1949 “Censos Econômicos do Estado de Goiás” e de 1960 “Censo Agrícola do Estado
de Goiás”, com a finalidade de entender melhor esta dinâmica de ingresso de novos
produtos para o estado de Goiás e que estejam ligados ao empadão goiano, pôde-se,
concluir que alguns dos ingredientes estão presentes no rol da economia regional a
partir dos anos 2096, com o expansão da fronteira agrícola de Goiás.

Borges (2000) , considera que: “A ferrovia tornou-se não só a principal artéria


de exportação de bens primários e de importação de manufaturados, como também a
principal via de penetração de novas idéias e valores culturais da sociedade moderna,
portanto, um instrumento do capital no processo de dominação econômica e culutral”
(Borges; 2000:36).

95
Nesta receita não tem azeitona.
96
Ressalta-se que Goiás integra-se à economia nacional com advento da malha ferroviária a partir de
1913. A este respeito ver: Borges, Barsanufo Gomides. 2000. “Goiás nos quadros da economia nacional:
1930-1960. Goiânia. Ed: da UFG.
89

O transporte rodoviário que inicialmente desenvolveu-se em Goiás sob o signo


da iniciativa privada e assim permaneceu até 30 foi também um dos fatores que
contribuiram, com a expansão e integração da economia regional. A integração física do
Estado passa a ser prioridade do poder público após-30. Portanto, segundo, Borges
(2000) , com o projeto de “modernização conservadora” implementado no Estado por
Pedro Ludovico Teixeira, a rede rodoviária97 regional cresceu de forma ainda mais
rápida. “Assim, mais do que a nova capital, as rodovias construídas em razão dela
terminaram por dar unidade ao território goiano” (Borges; 2000:59).

Nos censos mencionados acima, foram encontrados as demais produções em


Goiás: manteiga, queijo, milho, algodão, batata inglesa e hortaliças. Do algodão e
milho, refina-se o óleo (Ortencio; 2000:438). E dentre as hortaliças são apontados os
tomates.98 Sobre estas últimas, segue o depoimento abaixo referindo-se ao final de
1950:

“Quando eu tinha sete anos de idade, minha mãe mandava


buscar tomates e alface na hortaliça próxima ao matadouro. Era
aqueles tomates bonitos e vermelhos. Mas como o prefeito da época
loteou aquele pedaço lá, as pessoas que plantavam horta deixaram de
plantar e hoje a gente compra de Goiânia. O caminhão vende para o
mercado, para a feira e supermercados. Mas só na quarta feira que a
gente consegue comprar tomate mais bonito”. ( Dª Eva, 65 anos,
ceramista)

No nosso caso específico, a introdução de novos ingredientes no empadão


goiano a partir do início do século XX e sobretudo com uma forte tendência de
mudança a partir dos anos 30, atribui-se; ao que tudo indica, ao contexto das
transformações político-econômicas. A transferência da antiga capital para Goiânia
acaba por introduzir, posteriormente, certos valores culturais novos, como por exemplo,
o incremento de determinados elementos como mencionado acima, e não só isso mas, a
“encomenda” de empadão goiano para a capital, com a finalidade de integração socio-
econômica, como denota o depoimento abaixo:

97
A respeito da “Era Rodoviária em Goiás” ver: Nunes, Heliane Prudente.1984. A era rodoviária em
Goiás. Goiânia. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Goiás.
98
Recorde-se que o tomate, básico na alimentação de hoje, era quase desconhecido, ou pouco explorado,
cerca de cinqüenta anos atrás.
90

“A minha mãe contava muito que, quando transferiu a capital


para Goiânia, ficou pouca gente aqui. (...) Agora, minha mãe tinha
muita freguesia. Ela mandava muita empada para Goiânia e tinha
muita encomenda. Toda sexta-feira, ela colocava as empadas numa
caixa de isopor e colocava no ônibus. Uma mulher pegava e
entregava nos prédio lá. Ela fazia as embalagem de doce, e também
de empada”. (Dª O. 47 anos, comerciante)

O estímulo pelo novo/moderno, a valorização de novas formas de concepção,


fizeram com que, Goiânia se tornasse a diferença nos primeiros anos do pós-30, embora
na Goiânia dos primeiros tempos o empadão fizesse parte do universo tradicional,
levado por famílias tradicionais. O circuito de parentesco e amizade relativo à
“encomenda” de empadão ocorria eventualmente, e o retorno desta relação não visava o
lucro.

A idéia de “encomenda” assume, aqui neste trabalho, uma conotação diferente.


Ela tem aqui uma restituição em dinheiro pelo trabalho e investimentos investidos no
processo de fazer empadão, mas não tem sentido de mercadoria. Quanto ao termo
mercadoria, este conota, portanto, baixo custo na produção; substituição de alguns
ingredientes como a guariroba, a galinha caipira; massa menos elaborada;
uniformização do produto ou seja, produção em grande escala; o estabelecimento de
postos de venda em outros locais e, ainda, o aparecimento da cozinha industrial tendo
como sujeito o homem.

Na Cidade de Goiás, poucas empadeiras, em âmbito doméstico, reconhecem que


fazem empadão para a comercialização. A maior parte faz para o consumo familiar.
Outras conseguem reservar “a sobra” do consumo para a venda, feita quase dentro dos
limites do município. A circulação “gratuita” de empadão entre parentes foi muito
comum em toda a antiga Vila Boa. Ainda hoje, sempre que pode, a empadeira destina
parte do produto para os parentes. A circulação do empadão entre vizinhos e amigos é
quase inexistente. Ela se conserva ainda dentro dos padrões simbólicos nos convites
para as festas de aniversário, batismo, casamento, ou nas trocas de pratos de empadão,
quitandas, doces caseiros de uma casa para outra.

Há três situações em que o empadão sai da esfera estritamente familiar e produz


formas simbólicas de trocas entre grupos de produtores-consumidores: primeiro, quando
as mulheres ajudam regularmente seus esposos no orçamento doméstico “vendendo”
91

empadão em momentos de “aperto”. O que significa que o fazem e, em seguida


divulgam para os parentes próximos e amigos que o fez, e, em troca, recebe uma
“ajuda” em dinheiro. Segundo, em festas familiares (aniversários, casamentos, Natal e,
com menos frequência, batizado). E por último, nas festas religiosas a da Semana Santa
e a Folia do Divino.

Outra ocasião, que o empadão sai da esfera familiar e ganha conotação de


reciprocidade, é quando simboliza agradecimento. Um exemplo, é quando se presta
favor a alguém e este retribuí o favor com empadão. Aquele emprego que o fulano
conseguiu; o ato de levar o filho para o hospital, são exemplos simples mas que se
inserem dentro deste contexto de reciprocidade onde a forma de agradecimento ocorre,
muitas vezes, com o empadão. A matriarca vilaboense se sente tão gratificada que acaba
por restituir o favor com o empadão tradicional. (ver foto nº 23)

O Censo de 1940 “Recenseamento Geral do Brasil”, apresenta as principais


características de organização e movimento das empresas e estabelecimentos que
operaram no comércio de mercadorias, caracterizando as classes e os ramos de
comércio, entre eles encontrou-se aqueles destinados à venda de gêneros alimentícios
ligados tanto à empresas brasileiras quanto à estrangeiras. Neste sentido, observou-se
que no estado de Goiás, desde já ocorre um processo significativo de novas mercadorias
destinadas ao preparo e confecção de alimentos, entre elas aquelas destinadas a
produção do empadão goiano. Na interpretação de Barsanufo Gomides Borges, “após
30 e até por volta dos anos 60 do século passado, os vínculos intersetoriais se limitava m
às operações livres de trocas: a sociedade agrária goiana vendia produtos primários e
comprava manufaturados” (Borges; 2000: 94).

Por volta dos anos 40/50, do século XX, de acordo com o levantamento dos
dados orais, surge na Cidade de Goiás um ou outro restaurante e lanchonete que vendia
esporadicamente empadão goiano. A maneira como esses estabelecimentos
funcionavam se dava da seguinte forma: primeiro, faziam a “encomenda” de uma
quantidade “x” do produto à empadeira, repassando-o em seguida ao freguês - turista ou
para o próprio vilaboense. E nessa dimensão, a empadeira, fornecendo o produto,
contribuía com o orçamento doméstico. O depoimento a seguir mostra esta realidade:

“Eu me lembro, quando o meu pai morreu em 1944, que minha


mãe começou a levar empadão para o restaurante que tinha ali. Eu
era criança, mas ajudava minha mãe” (S.C. 70 anos, doceira).
92

A “encomenda” do empadão é algo tão excepcional a ponto da memória local ter


retido o nome de algumas pessoas. No começo era tão raro, a “comercialização” do
empadão via “encomenda”, que se sabe as pessoas que se iniciaram. Como vimos, A
“encomenda” do empadão é algo tão excepcional a ponto da memória local ter retido o
nome de algumas pessoas. Como vimos, Dª Nazaré, a “morena”, que entregava por
“encomenda” empadão na lata por volta dos anos trinta.

Nos de 1960 e 1970, o empadão agrega novos ingredientes como a gordura


hidrogenada; a ervilha e o milho enlatados; o palmito, o óleo de soja 99. Desta forma, o
produto se distingue dos anos anteriores, sofrendo uma nova mudança quanto a sua
forma e função. Além do ingresso desses novos produtos, ele ganha uma nova
proporção partir das décadas 60 e 70 do século XX, pois, tornou-se comum a confecção
de empadinhas com destino às festas sociais e ou religiosas, favorecendo a uma nova
fonte de renda para as mulheres. Aquilo que antes tinha uma conotação puramente
familiar sobretudo no que se refere ao contexto do espaço doméstico, passa agora a ser
transformado em mercadoria. Além disso, gostaria de salientar a comercialização do
empadão goiano nos estabelecimento comerciais. Ao me referir sobre a comercialização
neste período em questão, chamo atenção para a individualização do empadão goiano,
ou seja, no comércio foi sendo ‘reapropriado’ de acordo com o gosto do freguês e
possibilidades de consumo, além da mudança no tamanho.

A partir dos anos 70/80, o processo se acentua, aparece, portanto, restaurantes e


lanchonetes voltados tanto para a comida típica quanto para a comercialização do
empadão, porém, com uma dimensão ainda não vista nos anos anteriores: a preocupação
em produzir porções de forma controlada, voltada ao indivíduo. Além disso, ressalta-se
100
a questão da busca pelo prazer e cultura. Para Melo (2000) que publicou um artigo
para a Folha de São Paulo no especial denominado: “O Tabuleiro do Brasil 500”, em
todo o Brasil, a partir dos anos oitenta do século passado, “as levas migratórias vão
marcar o cenário dos restaurantes”, considerando que caracterizam uma nova
modalidade que são as refeições rápidas e individualizadas101.

99
A partir dos anos 70 do século XX, a economia goiana é reforçada pelo plantio de soja, principalmente
com o acelerado processo de migração de “catarinenses” para o nosso Estado. “Catarinenses” é como são
chamados os migrantes do sul ( que inclui gaúchos e paranaenses).
100
Melo, Josimar. “ Restaurantes surgem para matar fome de convívio”. In: “O Tabuleiro do Brasil 500”.
Folha de São Paulo- Domingo, 2 de abril de 2000. Especial. p.10.
101
Segundo Bariani Ortencio em entrevista concedida à Revista Economia & Desenvolvimento
(julho/setembro 2001) “ Antigamente não havia interesse pela comida típica goiana, como ocorre hoje.
93

Na cidade de Goiás, encontrou-se durante a pequisa, no “Posto da Patricinha” 102,


um dos exemplos mais claros do que poderíamos chamar de individualização do
empadão goiano 103. O comensal que para lá se dirige come geralmente mais de uma
empada. Além disso, come também, pastelinhos doce feito com uma massa semelhante
à do empadão, recheada com doce de leite e salpicada com canela em pó. “Trata-se de
um dos maiores tesouros da culinária goiana” 104. Na empada à Patricinha encontram-se
ingredientes distintos tais como: filés grandes de frango, açúcar, queijo muzzarela ou
mineiro-goiano, margarina e ainda a gordura hidrogenada. Veja, portanto, que os
produtos usados na receita, caracterizam-se por ingredientes mais leves, o que nos
possibilita uma nova interpretação quanto ao “modo de fazer” empadas goianas,
identificando-as como empadas “light”. (ver foto nº 24)

Woortmann (1978) em seu trabalho “Hábitos e Ideologias Alimentares em


Grupos Sociais de Baixa Renda”, procurou classificar certos alimentos como
quente/frio e forte/fraco além de reimoso e descarregado. Para tal fim, o autor, criou
uma tabela de gêneros alimentícios baseada nos valores atribuídos pelas próprias
sociedades estudadas, entre elas encontra-se a comunidade de Mossâmedes cidade
vizinha à Cidade de Goiás. Neste sentido, pôde-se observar que o empadão tradicional
contém produtos quentes. Em contraposição o tipo Patricinha atual pode ser definido
como em geral “frio/light”.

Neste mesmo trabalho, de forma bastante simplificada, encontramos também, a


tabela forte/fraco. Retomando a empada à Patricinha, podemos considerá-la como sendo
algo fraca e descarregada se compararmos com a tabela classificatória de Woortmann
(1978). Desta forma, observa-se ai uma nova dimensão associada aos valores culturais
e, sobretudo econômicos como uma nova tendência do final do século XX e início do
XXI, a preocupação com o consumo de produtos não calóricos.

A empada “light” do Posto da Patricinha sugere que as pessoas têm feito tal
opção, porque é menos calórica do que as demais. Entretanto, devo ressaltar,

Na década de 60, porém, houve um aumento da curiosidade por pratos regionais, comportamento
influenciado pelo turismo que começava a crescer em todo o País”.
102
Patricinha é o nome da proprietária da lanchonete. Hoje o termo “patricinha” é usado para classificar
adolescentes do sexo feminino, que adotam um estilo compulsivo por moda. Entretanto, no Posto da
Patricinha, encontrou-se uma categoria heterogênea de comensais de empadas. O que nos sugere que a
empada “ligth” está sendo consumida por todas as classes de idade e identidade.
103
O tamanho da empada à Patricinha é de 10cm, e é servida em uma fôrma de alumínio batido,
comprado na própria cidade. Mais adiante, veremos uma análise acerca da relação entre empadão goiano
e meio ambiente, onde farei a descrição do processo de fabricação artesanal do referido utensílio.
104
Carvello, Ciça. In: “ Economia e Desenvolvimento”. Ano II. nº 8. Julho/Setembro de 2001.p.74.
94

excepcionalmente, muitas pessoas optam pelo gosto de manter a tradição mesmo que
contrarie a saúde do corpo. E “as mudanças não provocam o desaparecimento da
referência a um modelo tradicional, a um modelo idealizado, mesmo que esse padrão se
restrinja a festas e a um ou outro final de semana” (Abdala, 1997).Um exemplo relativo
ao empadão calórico é o torresmo, que muitas vezes, só é consumido em ocasiões de
extrema excepcionalidade. O depoimento a seguir conta como isto acontece nos dias
atuais:

“Eu só coloco torresmo para dar aquele saborsinho especial


quando a cliente pede. Outro dia, fiz um tanto de empadão tradicional
e a cliente achou muito forte. E me encomendou com apenas peito de
frango, palmito, azeitona, queijo, pão e batata, porque o marido dela
está de dieta e tem colesterol alto. Eu achei mais prático, sem contar
que fica mais barato para mim” (R.M.P, 47 anos, salgadeira).

Para Abdala (1997), “além das exigências que o preparo de pratos típicos
demanda, e que contribuem para a restrição de seu consumo, recai sobre eles a
atribuição de serem perniciosos à saúde e à silhueta. A dieta dita as regras da boa saúde.
A moda dita o corpo esguio. O colesterol e a gordura são os maiores inimigos nestes
tempos. Uns perdem diante da praticidade de alimentos congelados, outros perdem pela
acusação que pesa sobre eles” (Abdala; 1997:147).

O toucinho foi substituído pelo óleo vegetal. Entretanto, hoje, com a


‘re’apropriação da tradição em função do título de Patrimônio da Humanidade te m
ocorrido uma retomada do seu uso, mas, com outro conceito, o tipo carne da Perdigão.
No final dos anos 90 do século XX, o Parque Industrial de Rio Verde-GO experimentou
grande surto de desenvolvimento com a chegada de novos investimentos. Vale destacar
o complexo agroindustrial da Perdigão. Trata-se de um complexo industrial capaz de
fomentar a produção de animais (suínos e aves) pelos pecuaristas integrados e promover
a transformação desses animais em produtos acabados, para abastecimento dos
mercados internos e externos.

Ressalta-se que, a partir dos anos 80 do século passado, ocorre a proibição de


criação de porcos no espaço urbano. Este fato se dá em decorrência do plano de reforma
urbanística, onde a principal preocupação se encontra no domínio da higienização
urbana, dada as circunstâncias políticas voltadas para limpeza e princípios de saúde
pública.
95

Como vimos, o toucinho desapareceu praticamente do empadão goiano, mas, o


que quero argumentar aqui, é que algumas coisas são incorporadas, enquanto coisas
“desaparecem”. No nosso caso, específico, a galinha caipira, o toucinho são
ingredientes que quase não são mais usados, exceto em ocasiões especiais. Sobre a
galinha caipira, esta só é usada atualmente quando, é para a filha “querida”, em
contrapartida, o frango de granja é usado comumente para todos, principalmente,
quando o produto tem como propósito a produção em maior escala.

A galinha caipira, uma prática da economia doméstica até os anos 70 do século


passado, hoje, como vimos, tem sido substituída pelo “franguinho” congelado de
supermercado. Segundo, a concepção local, ele é pouco valorizado, porém, viável,
economicamente. Em virtude da redução do tamanho dos terrenos, associada à política
de higienização urbana, e também por uma questão cultural, a galinha caipira deixou de
ser uma criação doméstica habitual na malha urbana. Sítios, chácaras, entre outros,
continuam, ainda produzindo esta espécie para o abastecimento de feiras livr es,
mercados e algumas redes de supermercados.

Nos últimos anos a Cidade de Goiás vem recebendo um número significativo de


turistas. Duas questões estão ligadas à esta política de ação turístico-cultural: o FICA -
105
Festival Internacional de Cinema Ambiental e o título de Patrimônio da
Humanidade, concedido pela UNESCO em 2001. Neste sentido, chamo atenção para a
venda indiscriminada do empadão goiano. Segundo os dados levantados em campo,
aquelas pessoas que antes não se dedicavam ao “modo de fazer” empadão, passam
agora a se ocupar com o seu preparo. Nesta perspectiva, o depoimento abaixo, quando
da denúncia, faz um alerta para uma certa descaracterização do empadão goiano a partir
do ingresso de novos ingredientes como: a calabreza, o macarrão e a salsicha. Veja a
seguir o relato que chama atenção para o comprometimento da tradição:

“Em Goiás o empadão é tradição. Mas eles deixaram várias


pessoa colocarem barracas durante o FICA. Ali teve empada com
macarrão, teve empada com salsicha, teve empada com tudo quanto é
coisa que você pensar. As pessoas queriam ganhar dinheiro. Viu
muita gente e quis ganhar dinheiro (...) Comia uma empada toda
bagunçada ia procurar mais? Não queria nem saber! Eu fiquei muito

105
O FICA - Festival Internacional de Cinema Ambiental teve início em 1998 .
96

revoltada. Não exponho meu serviço na rua. Eu sempre trabalhei na


minha casa, você vê, eu moro afastado, eu nunca deixei de ter
freguesia. Trabalhei dezoito anos no Hotel Vila Boa. Eu que fazia o
empadão lá. Então os hóspede, de Goiânia, de Brasília, de Belo
Horizonte, Rio de Janeiro que vem liga e encomenda empada
buscando-a aqui. Então eu tenho minhas freguesia, porque vou expor
minha mercadoria no meio dos outro quer ganhar dinheiro!” (...) (
Mª.M.52 anos, cozinheira).

A concepção da empada exige uma ordenação como já vimos anteriormente.


Neste sentido, quando a informante enfatiza logo acima: “Comia uma empada toda
bagunçada!”, algo nos chamou atenção, pois, isto denota claramente uma certa
descaracterização e “desordem” do empadão, principalmente quando nos alerta dizendo:
“Não exponho meu serviço na rua”. Ou seja, a informante deixou bem claro que o seu
produto pode até ser uma mercadoria - pois nada o impede -, entretanto, alguns cuidados
são necessariamente importantes quando estamos lidando com algo que é um dos
símbolos-chave da culinária goiana. Ambas as expressões usadas pela informante
significam um grito de alerta!

Contudo, apesar, do que poderíamos chamar de denúncia, há ainda, na Cidade de


Goiás, aqueles que ainda retém a dimensão tradicional e que se utilizam dos
ingredientes tradicionais, do modo de fazer tradicional, e que fazem em casa da maneira
tradicional em utensílios tradicionais, mesmo sendo mercadoria.

Belkiss Carneiro de Mendonça, ao escrever um artigo para o Jornal O


Popular,106 faz também um alerta: “A vida hodierna obriga-nos a uma reformulação de
hábitos e utilização de cardápios de feitura mais simples. As receitas, porém, que
retratam nossos costumes, precisam ser preservadas. Pequenas mudanças em sua
propagação oral são previstas e não chegam a causar modificações profundas. Na
elaboração, entretanto, da empada goiana - comida típica representativa de nossas
tradições e, por isso, procurada pelos visitantes de outros países ou estados a situação
torna-se preocupante. Há por parte de algumas pessoas que as fabricam e vendem um
total desrespeito às suas bases (talvez mesmo por desconhecê-las) e, a continuar assim,

106
Jornal O Popular. 26.05.1996
97

dentro em breve, dela restarão o formato e o nome” (Mendonça (1996) apud Ortencio;
2000:371).

Deve-se lembrar que o termo tradição deriva da noção latina de traditio - ou


seja, aquilo que se trasmite de geração a geração. “A tradição pode ser percebida, então,
como um patrimônio cultural do grupo, diretamente vinculado à sua continuidade e à
percepção que tem da mesma. Sendo assim, ela não somente se origina no passado de
forma reconhecida, mas também constitui a imagem do passado e, através dela, a
imagem do presente” (Porto; 1997:20). Considerando que o empadão goiano é tradição,
faz-se necessário, que se reconheça que as tradições estão constantemente sujeitas a
mudança, a reinterpretações, desde o momento em que surgem - sejam elas impostas ou
não. Entretanto, gostaria de lembrar o que foi visto na introdução deste texto, que, as
mudanças somente são aceitas quando não comprometem a tradição. Neste caso
específico - o FICA -, o que pôde ser percebido é uma certa descaracterização do
empadão goiano. A substituição de certos alimentos em mercadorias pode, então,
ameaçar a sua tradicionalidade. Ademais, é interessante reconhecer que a comunidade
local aponta vários dos aspectos que consideramos, do ponto de vista teórico, atribuição
de flexibilidade para a tradição, do reconhecimento de que ela pode, e muitas vezes
deve, se adaptar a um mundo em constante mudança.

Aponto agora, para outra dimensão, a venda de empadas congeladas (ver foto nº
25). Na Cidade de Goiás, algumas empadeiras vendem empadas congeladas em casa ou
nos estabelecimentos comerciais. Em Goiânia, capital do Estado, já é possível encontrar
em rede de supermercados ou em empórios empadão e empadas congeladas107. O que
nos sugere uma outra característica da ‘reapropriação’ comercial aliada aos novos
padrões econômicos, como a inserção do freezer108 micro ondas e da própria dinâmica
do cotidiano - comida rápida e prática. Outra alternativa também que merece destaque
na atualidade na Cidade de Goiás é a venda do empadão no utensílio cerâmico, ou seja,
o cliente compra o empadão goiano e leva para casa o vasilhame, possibilitando,
portanto, o surgimento de uma nova fonte de renda tanto para a pessoa que confeccio na
o empadão quanto para a ceramista, pois aumenta sua escala de produção.

107
O processo, portanto, leva ao uso de novos utensílios para a confecção e preparo do empadão as
forminhas de alumínio (one way) ou seja, descartável. Registrou-se também a venda de empadão sem
fôrma, principalmente em postos de conveniência.
108
O mecanismo de congelamento através do freezer surgiu por volta dos anos 80 do século passado.
98

Gostaria de mencionar a questão do sal e da azeitona. Sabe-se que o primeiro é


importado para o Estado desde o século XVIII e que continua sendo um produto de
“fora”. A azeitona, embora seja também um produto de “fora”, importada desde o
século XIX, hoje é acondicionada também aqui em Goiás pela Arisco/S.A. E nesta
mesma direção, o Estado, hoje, constitui-se de muitas cidades goianas famosas pela
produção de alimento, tais como Mara Rosa (açafrão) , Goianápolis (tomate) , Uruana
(melancia) e Nerópolis (alho) , Rio Verde (soja). Estas cidades primam pela qualidade
do produto abastecendo tanto o mercado interno bem como o mercado externo.

Poderíamos então dizer que os hábitos alimentares obdecem a critérios de


“racionalidade” econômica ( Woortmann,1978 ). A substituição de certos ingredientes
ao nível de consumo, significa adequar estes aos princípios de uma maximização de
retornos por unidade de fator empregada. Insistir no consumo destes ou daqueles
ingredientes significaria dispensar os fatores de produção à disposição. Assim, é
racional tornar central à dieta alimentar aquele produto que ocupa posição central nas
relações de mercado ( Woortmann,1978 ).

Empadão Goiano: resultado de uma simbiose entre home m e meio ambiente

Nas palavras de Paulo Bertran (1994) , “aos poucos, na mesologia do cerrado, ia


brotar uma culinária própria adaptada, estribada em idiossincrasias de um meio
ambiente que, sob muitos aspectos, era novo ao colo nizador e que o encaminharia ao
consumo de alimentos cuja produção adaptava-se à região. E talvez ao metabolizar
diferente, comer diferente, face ao clima, ao calor, à ausência de iodo e sais raros nos
ares e nas águas. Assim os doces antigos foram muito doces, o café abusivo e melado, a
gordura e os óleos besuntados, características que entre muitas outras, podem
obscuramente explicar-se pela adaptação antrópica” (Bertran; 1994:174).

Neste sentido, hoje, temos uma variada cozinha goiana, em geral, e vilaboense,
em particular que, além dos vinhos, queijos, licores, quitandas e o empadão, prima pela
qualidade dos pratos de sabor exótico feitos com espécies do cerrado goiano, como
pequi e guariroba. Sem falar dos doces e sucos feitos com os frutos da região e, até
mesmo, com as cascas desses frutos, resultado de uma verdadeira e perfeita simbiose
entre o homem e seu meio ambiente.
99

Para Brandão (1981) , “em todo o Mato Grosso Goiano, é mais nas matas do que
no cerrado e no campo que a população encontra frutos silvestres: (...) guariroba,
araticum, marmelada-de-cachorro, (...) jenipapo, curriola, (...) cagaita. Mas os frutos
naturais de maior consumo e maior agrado são encontrados no campo e no cerrado: os
pequenos “cajus-do-campo”, o murici e a mangaba” (Brandão; 1981:100).

Assim sendo, em um primeiro confronto, “alimento opõe-se ao que não é


alimento” (Brandão; 1981:96). E continua o autor: “de uma mesma [mata]saem vegetais
que são alimento (como as frutas silvestres) e que são pau (madeira para construção e
para remédio) ” (p.96). “Toda a comida não obtida na natureza, mas sobre os recursos
da natureza, deriva do trabalho do homem na fazenda, no quintal, ou é comprada, sendo
então considerada como de “fora” ” ( Brandão; 1981:100 ). No entanto, o que nos
interessa neste primeiro momento é ressaltar alguns frutos do cerrado que são
transformados ora em suco, pinga ou licor e que, por sua vez, são elementos que muitas
vezes acompanham o empadão no ato de comer.

O empadão em âmbito privado significa comida, que é igual a “ritual” ao passo


que em âmbito público, tem significado de alimento que implica mercadoria “típica”.
Assim, em dias especiais, atribui-se, ao seu acompanhamento um bom vinho do Porto,
toalha especial na mesa e copos especiais. Observe o depoimento abaixo datado dos
anos 30:

“Quando eu era criança, na casa do meu avô Pacheco, ele dava


uma xicrinha de vinho do Porto. Era um cálicizinho. Todos
tomávamos. A gente comia o empadão tomando vinho, a mesa era
grande... forrada com uma toalha bonita.... Em toda casa de boa
família, comia-se empadão tomando vinho do Porto109 ” (S.C.70 anos,
doceira).

O empadão familiar é um prato especial, que contém ingredientes especiais, cuja


ocasião é também especial e o acompanhamento é atribuído à uma bebida especial com
pessoas especiais. Sendo assim, ele é um “ritual”, que exige, produtos especiais como o
vinho do Porto, importado de Portugal via Belém. Para Mayol(1998) , o vinho “é a
condição sine qua non de toda celebrações: é aquilo pelo qual se pode gastar mais para
honrar alguém (um convidado) ou alguma coisa (um acontecimento, uma festa). Isto

109
grifos meu.
100

quer dizer que o vinho contém, pelas virtudes próprias que lhe são atribuídas, por um
consenso cultural, um dinamismo social que o pão não tem: o pão se reparte, o vinho é
oferecido” (Mayol; 1998:138).

Por outro lado, enquanto expressão de mercadoria, o empadão tem sido


acompanhado com cerveja, refrigerante e sucos como afirma a narrativa à seguir:

“Ah! hoje o povo tem comido o empadão acompanhado com


cerveja; refrigerante e suco. O suco, principalmente o turísta que
gosta de conhecer as coisas” (DªE.C.S. 65 anos, ceramista).

Quero me referir à distinção entre comida e alimento, que é tão importante no


sistema social brasileiro. DaMatta (1986) , considera que:

“Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para menter uma
pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer, de acordo com
as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade. Em outras
palavras, o alimento é como uma grande moldura; mas a comida é o
quadro, aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos;
aquilo que deve ser visto e saboreado com os olhos e depois com a
boca, o nariz, a boa companhia e, finalmente, a barriga...” (DaMatta;
1986:55).

O turista busca por “comida típica” e “bebida típica”. Os sucos, os licores e a


pinga, são produzidos localmente com as frutas do cerrado. Entre os sucos destacam-se:
caju-do- cerrado (cajuzinho) ; cajazinho; mangaba; curriola e raramente a cagaita.
Contudo, o uso alimentar desses frutos é muito difundido na região. O cajuzinho, por
exemplo, apresenta sabor ácido, é consumido ao natural ou mesmo sob a forma de
sucos, doces, geléias, sorvetes e compotas. Com a fermentação da polpa, obtém-se uma
espécie de vinho ou aguardente, muito apreciado na região 110. Os seus aspectos

110
Almeida, S.P.; Proença, C.E.B.; Sano, S.M.;Ribeiro, J.F. 1998. Cerrado: espécies vegetais úteis.
Planaltina,DF:EMBRAPA-CPAC.
101

ecológicos, se caracterizam como caule subterrâneo tendo a particularidade de


armazenar água necessária para que resista às secas prolongadas. Os ramos só crescem
entre setembro de um ano e junho do seguinte, necessariamente na estação chuvosa.
Esta espécie depende qualitativa e quantativamente da queimada para florescer
(Almeida, Proença, Sano, Ribeiro,1998).

Quanto a mangaba, que em tupi-guarani significa “coisa boa de comer”, tem boa
aceitação alimentar na região. Quando madura pode ser consumida no estado natural ou
sob a forma de doces, compotas, sorvetes ou mesmo refresco. Esta planta comum e m
terrenos arenosos e de baixa fertilidade, produz frutos até duas vezes por ano 111. Já a
curriola, apesar de fornecer pouco material comestível, a polpa gelatinosa e doce, de cor
amarelada que envolve as sementes é apreciada ao natural ou sob forma de suco pela
população regional. E finalmente, a cagaita, o seu uso alimentar é bastante difundido na
região, entretanto, devendo apenas ser tomadas algumas precauções em relação à
quantidade ingerida, porque pode tornar-se laxante. A polpa é usada com boa aceitação
em doces, geléias, sorvetes e sucos. A sua frutificação ocorrem no início do período das
chuvas, entre agosto e outubro 112.

Sobre a aguardente a pinga, em entrevista concedida ao Jornal “O Popular”113,


Dª Maninha recomenda antes de comer o empadão o seguinte: “Para abrir o apetite,
nada como uma pinga caseira com mutamba, jenipapo ou murici”. Isto, indica que,
comer comida típica sugere aperitivo típico. A mutanba contém frutos adocicados e
assim, é bastante saboreado pela população local. É uma espécie sul-americana,
largamente cultivada como ornamental em diversos países tropicais. Quanto ao
jenipapo, além de sua propriedade alimentar para o processamento de licores e pinga, é
também uma planta ornamental. Já o murici, fruto de sabor agridoce é comestível ao
natural e usado para o fabrico de doces, licores, sucos, sorvetes e pinga. A planta é
tóxica em doses elevadas.

É importante notarmos que, a despeito dessa descrição aparentemente


generalizada sobre a relação entre o homem/meio ambiente e empadão goiano, podemos
concluir que a influência da natureza sobre o produto em questão é fundamental, pois,

111
idem.
112
idem.
113
Jornal O Popular. 26/12/1986.
102

em primeira aproximação, o reconhecimento da natureza até os limites do empadão


pode ser esquematizado da seguinte forma:

EMPADÃO

ORIGEM ANIMAL ORIGEM VEGETAL ORIGEM MINERAL

Carne suína Guariroba Sal

Banha de porco Farinha de trigo (pão) Argila

Carne de peixe Azeitona Antiplástico*

Bacalhau, camarão Alho Ferro estanhado

Carne de frango (pedaços Ervilha (lata de goiabada)


inteiros ou filé)
Queijo Batata

Manteiga Tomates

Ovos Cebola

Salsa

Palmito (doce)

Lenha

Antiplástico (origem
vegetal)

*antiplástico (areia, mica etc.)

O esquema anterior pode ser agora complementado da seguinte maneira:

EMPADÃO
103

DA NATUREZA DA FAZENDA (QUINTAL) DA CIDADE

(COLETA) (TRABALHO) (COMPRA)

Guariroba Porco Sal

Frutos Banha Bacalhau

Argila Galinha Camarão

Areia Ovos Atum

Lenha Lingüiça Frango

Pimenta Lingüiça (industrial)

Queijo Tomate

Manteiga de leite Cebola

Guariroba Queijo (mussarela)

Frango Azeitona

Salsa Ervilha

Palmito

Óleo

Fermento em pó

Margarina

Milho (enlatado)

Madeira (combustível)

Cerâmica

Lata de goiabada

Alumínio batido

Esta cadeia é importante para a compreensão do “modo de fazer” empadão,


principalmente, quando nos referimos sobre a sua relação com o meio ambiente.

Como já foi visto, com a redução das atividades de mineração, aumenta a


implantação de fazendas de gado na região. Segundo Suárez (1982), em Agregados,
Parceiros e Posseiros: a Transformação do Campesinato no Centro-Oeste, vários
104

fatores contribuíram para a reprodução do campesinato, entre eles destacam-se terras


inexploradas que são abertas a pequenos produtores para produção autônoma.
Entretanto, este aspecto não é condição suficiente, migrações massivas que levaram ao
surgimento da categoria de posseiro ou pequeno proprietário são também aspectos que
devem ser levados em conta. Ademais, segundo a autora, a figura do agregado é tão
antiga quanto a própria ocupação regional.

Nesse processo a que a autora se refere, a forma particular da ocupação do


Centro-Oeste, quando pensada pelos agentes da ação social, imprime particularidade,
também ao campo simbólico. “Assim, a história do Centro-Oeste é simbolizada como se
efetivando num espaço geográfico livre e seu conteúdo é visto como um processo em
que migrantes tornaram-se posseiros para serem, posteriormente, proprietários”(Suárez;
1982:16). E continua: “a fazenda tradicional não deve ser pensada, simplesmente, como
uma unidade de produção de gado. Nela se executava um processo de trabalho
complexo que incluía a produção de gado, propriamente dita, a produção de alimentos e
o processamento dos mesmos” (1982:21).

Conforme Mariza Veloso Motta (1983), em Conhecimento camponês e forças


produtivas: a fazenda goiana, o processo de formação da fazenda como unidade
produtiva caracteriza-se como de “tipo camponês”, baseada num processo de trabalho
relativamente autônomo. Através deste processo de trabalho realizava-se a produção de
dois bens: gado e alimentos.

Com o tempo, os produtos passaram a ser cultivados na “roça de quintal”. “Esta


roça de quintal emprega apenas o trabalho da mulher e dos filhos” (Motta; 1983:162).
Tudo isso nos leva a ter certeza de que uma questão não nos poderia escapar: a
relação entre ingredientes do empadão com a fazenda. Segundo Brandão (1981), “a
percepção da fazenda como uma unidade quase-completa de produção e de
beneficiamento de bens de consumo transcende os limites da dieta alimentar. Em tudo o
que fala ao explicar o que faz para conseguir comida, o lavrador [de Mossâmedes]
demonstra a crença de que as condições de acesso ao ‘mantimento’ oscilam entre um
máximo de dependência da natureza e um máximo de dependência da cidade” ( op cit ).
Acredita-se que, entre uma área de domínio de uma sociedade pioneira e uma
área de domínio de uma sociedade dividida, houve um espaço ideal de trocas entre
pessoas e entre os homens e o meio ambiente: a fazenda (Brandão, 1981). No que se
refere ao empadão, a realidade não se difere, principalmente quando percebemos a sua
105

relação com os produtos de origem da fazenda. O empadão goiano é a feliz combinação


entre os produtos importados e produtos dos quintais e fazenda.
Ao entrevistar algumas informantes elas sempre fazem referência aos produtos
da fazenda dizendo que “antigamente” a lingüiça usada no empadão era pura porque
vinha da fazenda: “não era essa lingüiça de hoje não! Era da fazenda, bem
temperada...” (S.C. 70 anos, doceira).
A valorização do produto da fazenda é uma das questões fundamentais, aqui
neste presente momento, pois, “fala” da auto suficiência. A expressão “lingüiça pura,
da fazenda” implica, como poderia se supor, melhor qualidade do produto, segundo a
percepção local. Portanto, esta concepção é parte da economia doméstica. O que nos
sugere que seja um entendimento que tenha características camponesa. Para Brandão
(1986), ao se referir sobre o campesinato goiano, considera que:

“a ideologia [camponesa] não pode ser compreendida como uma


produção meramente conceptual, teórica e inte ncionalmente
livre das práticas econômicas sociais dos seus agentes. Cada
sujeito ou grupo social identifica a ideologia com a própria
experiência diária e, inclusive, a traduz, explicando em última
instância, a ordem institucional a partir de um ponto de vista
baseado nessa experiência” (Brandão; 1986:124).

É comum encontrarmos na Cidade de Goiás, assim como no universo camponês,


referenciais sobre os “dias de hoje” e um tempo anterior de passado, o “tempo antigo”.
“No tempo antigo a natureza envolvente era mais hostil e bastante mais pródiga”
(Brandão,1986). Além da natureza ser pródiga no tempo antigo, as suas qualidades
distribuíam-se por todas as coisas: a saúde das pessoas, dos animais de criação e a
riqueza dos produtos dela retirados.

E é nesta direção que um dos ingredientes inclusos nas receitas do empadão


podia vir de uma área direta da natureza, sem a mediação do trabalho do homem como
um produtor a guariroba.

A história do Centro-Oeste é marcada por um processo em que migrantes


tornaram-se posseiros para serem, posteriormente, proprietários. A fazenda tradicional
não deve ser pensada, simplesmente, como uma unidade de produção de gado. Nela se
106

executava um processo de trabalho complexo que incluía a produção de gado, a


produção de alimentos e o processamento dos mesmos (SUÁREZ, 1982, MOTTA,
1983).

Com o tempo, os produtos passaram a ser cultivados na “roça de quintal”. Esta


roça de quintal emprega apenas o trabalho da mulher e dos filhos. Tudo isso confirma a
relação entre ingredientes do empadão com a fazenda. O empadão goiano é a feliz
combinação entre os produtos importados e produtos dos quintais e fazenda.
A valorização do produto da fazenda expressa auto-suficiência. Produtos da
fazenda expressão melhor qualidade, segundo a percepção local. Esta concepção é parte
da economia doméstica, próprio da economia camponesa.

É comum encontrarmos na Cidade de Goiás, assim como no universo camponês,


referencial sobre os “dias de hoje” e o “tempo antigo”. No tempo antigo a natureza era
mais hostil e mais pródiga. Além de pródiga, suas qualidades estavam por todas as
coisas; na saúde das pessoas, dos animais de criação e na riqueza dos produtos dela
retirados.

Um dos ingredientes incluso nas receitas do empadão que veio de uma área
direta da natureza, sem a mediação do trabalho do homem como um produtor foi a
guariroba.

A Guariroba

Dos frutos de coleta natural da terra, relativo aos “comeres antigos”, o primeiro
lembrado é o palmito de “guariroba”, tão substancioso que foi, o que deu fôlego ao
Anhangüera, no período da mineração em Goiás.

Durante o século XIX e parte do XX, na antiga Vila Boa às margens dos rios
Bagagem, Bacalhau, Vermelho e outros sempre repletos de guarirobas, pessoas
coletavam-na para serem vendidas na Vila para com o produto da venda se alimentarem.
Outros a coletavam no quintal da fazenda para o próprio consumo.

Uma palavra empregada com extrema freqüência, a “fartura”, traduz bem a


relação entre a cozinha e o quintal da fazenda. Quase todas as famílias produziam pelo
menos parte do seu próprio consumo. A fazenda representava a extensão da casa e, dela
107

se estabelecia a venda de guariroba por encomenda. O desmatamento exerceu grande


influência sobre a relação encomenda x compra de guariroba.

A guariroba ou gariroba, ainda, gueroba, como comumente é chamada, é o


palmito amargo, espalhado profusamente em Goiás, nas terras de cultura. O coco possui
uma castanha muito gostosa. É comida tradicional na região e nunca é comido como o
palmito em conserva – cru. As guarirobas enfeitam a paisagem das fazendas
(ORTENCIO, 2000).

Uma prática muito comum, em Goiás, é fazer o plantio da guariroba em


fazendas, sítios e chácaras para fins de ornamentação da paisagem local. Mas é válido
ressaltar que, mesmo com esta preocupação estética, o palmito acaba caindo na panela,
o que sai da defesa ecológica.

Atualmente, pelo fato de a guariroba se encontrar em vias de extinção, e por


conseqüência da política de preservação do meio ambiente, surgiu um grande interesse
pela execução de plantios desta espécie nativa, com a finalidade de produção e corte.

Rara é a festa de roça, como a “folia”, o casamento, que não tem a guariroba, ou
como molho, ou misturada no arroz. O tutu de feijão é indispensável, pois como se diz,
“molho de guariroba com tutu de feijão vai muito bem”. Na cidade usam a guariroba
temperada com massa de tomate e fazem também o pastel, o que não se vê na zona rural
(ORTENCIO, 2000).

O cultivo da guariroba está ganhando espaço em Goiás devido à alta rentabilidade


que proporciona. O produto tem potencial para industrialização, principalmente do
palmito. Bom rendimento, pequeno risco de perdas, baixa perecividade e um mercado
que se torna cada dia mais atraente. Para licença de plantio, o produtor tem que procurar a
Agência Ambiental e apresentar documentação da área total da propriedade, área de
plantio e cronograma de execução das operações.

O número ideal de plantas (guariroba) é de 10 mil por hectare. Os solos


adequados para o plantio da guariroba são os de média e alta fertilidade, profundos,
ricos em matéria orgânica. O cultivo pode ser feito em solos de cerrado, desde que
adequadamente corrigidos com calcário e em sucessão a outras culturas capazes de
melhorar sua fertilidade, a exemplo da soja. As sementes demoram de 60 a 120 dias
para germinar e devem ser colhidas diretamente das plantas do início da queda
108

espontânea. As folhas verdes da guariroba servem para alimentar o gado durante a


época de seca.

A Cerâmica

A produção da fôrma cerâmica do empadão goiano está ligada ao processo de


extração de argila e os seus antiplásticos e a mesma tem seu uso na vida doméstica da
Cidade de Goiás comumente até os dias atuais.

Na cidade de Goiás, as ceramistas consideram, que para se obter bons resultados


na produção cerâmica, faz-se necessário, que o barro seja retirado na lua minguante.
Caso contrário, as vasilhas se partem facilmente quando levadas ao fogo.

Antigamente o barro tinha em qualquer lugar. E não era preciso pagar pelo
mesmo. Hoje, coletar barro é proibido. O sábado é o melhor dia da semana, porque, no
sábado a lua não governa.

Estes padrões cognitivos são referencias da comunidade local. Para extração da


argila torna-se indispensável, certos cuidados. Deve ser escolhido o local onde não haja
muitas raízes e deve ser evitado solo arenoso. Cabe à mulher a tarefa de separação entre
o “barro” bom e ruim. Para a cerâmica ficar vermelha, faz-se necessário mistura-la com
a argila preta e amarela.

Certas ceramistas percebem a existência das minas de barro pelo comportamento


dos animais com a natureza, observando a postura do gado. Outra dimensão se refere às
transformações climáticas: “se ventar a chuva vai embora e a peça cerâmica seca” –
alerta Eva ceramista.

Existe na cerâmica popular de hoje a crença de que a mulher não pode coletar
argila quando menstruada, o que acarretaria na quebra posterior do recipiente. O que
seria, a continuidade da tradição dos grupos Bantu, observada em Camarões (SOUZA,
2000).

Quanto às ferramentas de trabalho, utilizam o sabugo de milho; a paletinha de


plástico; a bucha; a faca e um pequeno pedaço de couro de sola de sapato, além de um
pequeno seixo para polir a fôrma cerâmica.
109

Entre a relação do meio ambiente e confecção do vasilhame cerâmico


acondicionado ao empadão goiano, chamo atenção para o emprego de vegetais, muitas
vezes utilizados na produção do utensílio. Entre eles destacam-se: a palha; a cinza e a
casca de árvores. Quanto ao processo de queima, é colocado a peça para desumificar,
até a condição considerada ideal para ser levada ao fogo, com o combustível ideal - a
lenha.

Como vimos anteriormente, algumas coisas são incorporadas enquanto outras


“desaparecem”. No entanto, vale ressaltar que, com relação à cerâmica, a tradição se
mantém na Cidade de Goiás. Atualiza-se, mas a tradição se mantém. Um exemplo é a
fôrma do empadão tamanho família que foi adaptada para mercadoria, mas não
desapareceu.

Lata de Goiabada

A venda, por encomenda, do empadão às ruas da antiga capital, em tabuleiros na


década de 30 do século passado, apresenta a lata de goiabada como uma das principais
responsáveis por este processo. A transferência da capital em 1937, a queda na
economia interna, levaram a uma nova adaptação no “modo de fazer” assim como
“razão prática” relativa ao empadão goiano.

A lata de goiabada é retornável; a mulher, após o preparo do empadão e entrega


da encomenda ao freguês habitual, ela retorna para busca-la. Além disso, ela tem maior
durabilidade, se conservada com cuidado, evitando, assim, a ferrugem. Fica estabelecida
uma relação ainda mais próxima entre o freguês e empadeira. São por estas e outras
razões que, excepcionalmente, o nome de certas empadeiras ficaram retidos na memória
local.

O Alumínio Batido

A empada vendida na vasilha de alumínio batido é mais uma adaptação do


empadão goiano inserido no processo mudança-continuidade visto anteriormente. O
alumínio é produzido a partir do metal substância simples, bom condutor de calor,
110

durabilidade, como utensílio doméstico, maior. O utensílio usado para a confecção e


preparo da empada corresponde a 10 cm de diâmetro e sua produção é artesanal. O
material utilizado para a fabricação é de origem reciclável, latas de óleo de soja; hoje,
latinhas de cerveja.

A Lenha

O tamboril, chamado de vinhático-do-campo, o jatobá, a aroeira, cangerana,


cedro, peroba, jacarandá, Angelim Sebastião de Arruda, ipê, pequiseiros e muitas
outras, são madeiras ainda utilizadas para o aproveitamento de lenha, embora o sistema
de fiscalização exija a licença para o desmatamento. A vegetação regional conhecida
como cerrado possui características fisionômicas significativas como:

 árvores de porte baixo, espaçadas entre si;


 caules tortuosos e recobertos por espessa casca;
 folhas grandes e pilosas;
 ausência quase total de árvores espinhosas.

A lenha utilizada para a queima do utensílio cerâmico e para assar empadão


goiano tem origem tanto de restos de construções quanto em mangueiras e na vegetação
típica do cerrado. Entre a mangueira e uma vegetação típica do cerrado, as ceramistas
preferem a primeira. A lenha característica do cerrado não é muito favorável para a
queima - baixa combustão -, pois o seu aproveitamento é inferior ao da mangueira,
exatamente pela sua casca grossa.

Com o grande desmatamento atribuído ao fator econômico, a vegetação nativa


goiana viu-se destruída em grande escala, durante o século XX. O Programa de Marcha
para o Oeste na década de 40 provocou o “desbravamento” das matas.

Nos anos de 1970, esta realidade se intensificou com a derrubada dos cerrados e
dos campos para a abertura de novas áreas de lavoura ou de pastagens. Esta realidade
afeta por assim dizer, os produtos que condicionam o homem a outros meios de
111

sobrevivência tais como a lenha para o aproveitamento do combustível, a madeira para a


construção da casa, a coleta de guariroba e etc.

O reaproveitamento da lenha parece ser uma das alternativas encontradas hoje,


pela comunidade vilaboense, dada a escassez e os altos preços da lenha. Isto representa
o cerne da economia doméstica. Economizar, poupar, reaproveitar, e não desperdiçar
nada, tem sido um dos meios que a comunidade adota para manter a tradição.

Para o produtor adquirir a licença para o desmatamento e aproveitamento da


lenha de origem nativa ou plantada, faz-se necessário procurar a Agência Ambiental e
requerer a licença, juntamente com o selo florestal para que o mesmo possa então,
vender a lenha. Quanto ao consumidor, deve se cadastrar na Agência Ambiental - como
consumidor de lenha, e recolher as taxas referentes à reposição florestal obrigatória e
guias florestais para transporte da lenha e armazenamento. Angico; Ipê; Aroeira;
Gonçalo Alves; Pequizeiro; Amburana ou Cerejeira e Brauna, não podem ser exploradas
nem com licença, exatamente por se encontrarem em extinção.

A madeiras úteis para o fogão à lenha são: Angico; Ipê; Tinguí; Aroeira; Jacaré;
Vinhatico ou Amarelinho; Chapadinha ou Unha-Danta. Toda esta madeira contém cerne
(cerne é o miolo da madeira). Madeiras ideais para construção de casa: Aroeira; Jatobá;
Angilim e Ipê. Principalmente na confecção de baldrame, esteio e viga.

Para Lacerda (1972) a lenha usada para o aproveitamento não pode ser forte.
Cerne não serve, dá fogo forte. As melhores são vinhático e angico. Vinhático é a mais
forte que se pode usar. Existe um conhecimento diferenciado sobre a madeira. Costuma-
se usar um tipo de madeira para o forno de barro, geralmente, onde se assa o empadão
goiano. Usa-se outro tipo de madeira para a queima da cerâmica e outro tipo para o
fogão a lenha ou fogão caipira.

Até o final da década de 1970, a base principal da economia da região Centro-


Oeste foi a pecuária extensiva e o garimpo em menor escala. Toda a atividade de
pecuária extensiva dependia da utilização da paisagem nativa. Com a ocupação do
cerrado, no início da década de 1970, com o incentivo governamental e adoção da
mecanização, a vegetação nativa começou a ser derrubada. Essa ocupação proporcionou
uma gradativa mudança de paisagem, principalmente na cobertura vegetal.
Monoculturas, sobretudo de plantas anuais como a soja, o arroz e o milho, ocupara m
112

áreas extensas na época chuvosa e, na época seca, os solos avermelhados sem qualquer
cobertura vegetal proporcionavam uma paisagem de deserto.

O uso das espécies nativas pode ser uma alternativa econômica para o
aproveitamento sustentado da região. Além, é claro, do reflorestamento. Várias são as
espécies que possuem utilização regional e muitas delas enquadram-se em mais de um
tipo. Entretanto, o usuário comum ainda é a população regional cuja atividade é
essencialmente extrativista. Neste sentido é que procuro abordar o potencial econômico
destes elementos, cujos dados disponíveis mostraram sua importância para a confecção
e preparo do empadão goiano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conferir certas questões sobre a temática, possibilitou o reconhecimento de uma


tradição que combina elementos usados para o preparo do empadão e que se altera
desde as três últimas décadas do século XIX até os dias atuais. Além disso, levou a
considerar que, lidar com um produto da complexidade simbólica tal como é o empadão
goiano, faz-se necessário levar em consideração a mudança/continuidade, apesar das
adaptações a que o produto está freqüentemente sujeito. Certificou-se ainda, que o
empadão tradicional preparado de véspera contagiava a família que o esperava com
muito anseio. Hoje, o empadão ganha nova dimensão: o congelamento.

O empadão, como tradição, expressa a identidade regional. E reforça, através


dos símbolos nele inseridos, o reconhecimento da memória vinculada na relação
presente/passado. A memória nele imbricada simboliza o sistema do lugar
(PIETRAFESA,1998). A memória colocou, segundo a percepção local, a mulher como
responsável pela reprodução e atualização do habitus no sentido Bourdieu (1994).

A vilaboense, ao preparar o empadão, criou pretexto para o encontro, para o


convívio social, geralmente limitado às festas familiares. Cuidou de orientar a ceramista
– em grande maioria escrava íntima, na confecção do utensílio cerâmico usado para o
preparo do empadão. Embora, muitas vezes, estes vasilhames representassem um
antagonismo entre as classes, expressado na ornamentação do artefato, como afirma
Souza (2000).

As virtuosidades da cozinha e a transformação do produto em mercadoria


possibilitam entender como um produto que caracteriza a identidade local expressa
113

simbolismo e significação social. O empadão goiano, em domínio privado, simboliza


agregação familiar. A matriarca vilaboense, com certa margem de criatividade, criou
dentro deste espaço o empadão especial que combina tradição e gosto de cada membro
da família. O empadão tamanho família constitui-se de muito caldo, diferentemente do
individual, que é mais seco. A empadinha, condicionada a festas sociais e religiosas,
representa, neste último aspecto, a comunhão sagrada com o Divino Espírito Santo.
Quanto à forma e função do recipiente, ela está ligada às ocasiões extraordinárias,
especiais que implica pessoas especiais, utensílios, pratos, toalha de mesa e
acompanhamento especial.

O empadão atualiza-se; mas a tradição se mantém. Além disso, devemos


considerar que a continuidade do empadão goiano é garantida, pois, é acordada entre os
habitantes da comunidade. Não basta propor uma nova mudança, e achar que serão
implementadas e aceitas. Há pessoas que são legítimas introdutoras de novos produtos
no empadão. Estas são consideradas como “autoridade máxima” do “saber fazer”.

Fica aqui demonstrado que o empadão goiano, como uma expressão simbólica
complexa imbuída de práticas e valores tradicionais, exprime o habitus, que expressa
uma maneira de ser, um estado habitual. Mas que está constantemente sujeito às
modificações.

O tema proposto ainda tem muitos aspectos a serem desvendados. Dessa forma,
a reflexão aqui realizada não deverá ser vista como uma conclusão. A dinâmica
mudança/continuidade implicada no “modo de fazer” empadão que acontece em todos
os níveis - tecnológico, econômico, cultural, ligada à complexidade do mundo da
cozinha e diversidade da vida social, tem, sobretudo alterado o quadro dessa prática
alimentar em Goiás.

O total de obras sobre culinária goiana ainda é pequeno, mas tende a crescer,
gradativamente, pelo próprio interesse que o tema vem despertando. Os pontos aqui
discutidos são apenas algumas pistas para posteriores pesquisas. O empadão é uma
referência da culinária regional e neste sentido deve ser pensado como um Patrimônio
Imaterial que tem como expressão o saber fazer repassado de geração a geração.
114

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