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ce COO OOF OOOO FCO OOO 2 CAPITULO III SENTIMENTOS: CT) LEGITIMIDADE E CIN IUSTICA LOLOL LE COOOL ¢ BIBLIOTECA DA HLOCESE DF wu G no / e R & oe ¢ c 4 s & , & G s 4 “Un senein é o do sentente, « mas outro 0 > , (J. G. Rosa,Grande Sert: -) ¥ Sy ‘ v c 4 + 5 4 : CELERON LLL SEI ALLE A ETL FP wr Oe T 184 CAPITULO III - SENTIMENTOS: (1)LEGITIMIDADE EB (IN)JUSTICA Quando se fala de movimento social no campo, vém & mente pequenas ou grandes mobilizagSes coletivas que chamam a atengaa ou pelo ntimero de pessoas envolvidas ou pelo anacronismo de suas formas e postulagdes, ou ainda pela repressdo violenta que quase sempre ce abate sobre elas. Antes ou depois de se lembrarem os movimentos messianicos, freqientemente, se volta para os organismos mediadores presentes ou ausentes, mais ou menos influentes, e roubam a cena os sindicatos, a CONTAG e as PETAGs, a Igreja_e a CPT, o Movimento Sem Terra, os partidos, ag associagées, as agéncias de extensio rural e da “reforma agréria” do Estado, etc. HA também uma tendéncia em tomar o que acontece no campo como consequéncia do avango do capital e da modernidade. Ainda que n&o possamos desconsiderar estas visdes, propomos uma outra que 6 sugerida pelo préprio desenrolar dos acontecimentos em Sobradinho. Certificados de que os homens nao \ agem apenas e t&o somente por razdes pragmdticas ou determinagdes | econémicas, nem s6 produzem eventos grandiosos e repercutentes na meméria oficial, procuramos conceber e interpretar os comportamentos dos camponeses no contexto da ordem moral caracteristica em que eles so engendrados e€ que os faz nortearem-se por no¢Ses morais acerca das obrigagdes sociais dos envolvidos nos acontecimentos da barragem., 0 fato de oa sindicatos, a Igreja e outros possiveis mediadores do mesmo tipo estarem ausentes, no momento da relocag&o e antes dela, n&o quer dizer que necessariamente os camponeses n&o tenham reagido as ae OO OE COE OT OOOO COE TO OOO OOF EEL EEL EL LOE EOCCOE CLL 185 formas de dominac&o que lhes foram impostas. Afirmar esta falta de reag&o n&o 86 -- como temos visto -- nao faz jus acs camponeses @ ao acontecido, como & mais uma imposi¢éo sobre eles, téo corrente em discursos de ontem e de hoje, aque virou obviedade; quase ninguém se propunha questioné-la, para se dar conta de que, se faltaram certos tipos “consagrados" de reac¢&o, houveram outros no menos importantes ¢ até mais elficientes. Isto pode ser até, paradoxalmente, sob ponto de vista analitico, um “privilégio” da situaco de Sobradinho, uma vez que, por nfo haver outras formas de mediacéo, torna-ge mais visivel o campo em que atuaram fatores n&o comumente percebidos como constitutivos de movimentos sociais; quando muito se lhes atribue o caréter de “caldo de cultura em que fermentam as revoltas © organizagées” (SILVA, 1988:27)(1). A quest& asgome: que formas de mediagao sio estas que viabilizeram as reagées camponesas havidas em Sobradinho, de maneira que podemos falar de movimento social neste caso? A pesquisa de campo e também a documental e a da literatura j4 volumosa sobre Sobradinho trouxeram uma profus&o de dados, informacées, sinais e, sobretudo, expressdes do discurso camponés, que chamam a ateng&o pelo conteido moral de que estdo carregadas e que parecem informar a meméria camponesa do passado e do presente. Como s&o recorrentes tanto em documentos da época como em falas atuais, sabendo que o comportamento camponés influenciou no rumo do processo de implantaggo da barragem e da configuracéo do seu préprio destino, impSe-se explorar estes aspectos morais de seus discursos e préticas -- como a um fil&o interpretativo -- procurando neles pistas da razio de ser das COCR OCC EEE OCC FEE FEF EOF EOF ER FRO OCC OF 186 diversas atitudes frente 4s diversas formas de a sofridas, atitudes que vdo do conformismo 4 resisténcia ou ficam entre um e outra e que, por seu lado, determinaram a dinamica dos fatos que fizeram a histéria vivida em Sobradinho. Nas falas camponesas que analisamos no capitulo anterior, estavam implicitamente presentes juizos de valor sobre o Passado © sobre o presente. A seletividade da memoria visava condenar os abusos, desmandos ¢ injusticas sofridas. N&o eram apenas bens materiais inestimévels, ouja perda era ajuizada. Também relacgdes e obrigacées sociais reciprocas, tidas como legitimas, foram aviltadas ¢ provocaram indignacdo moral, interferindo no comportamento dos camponeses. Ainda que no se Possa falar de ruptura completa da ordem tradicional -- haja visto @ continuidade relativa do prestigio de algumas elites dominantes ~~ h& uma crise profunda dos valores e nogées morais até entéo vigentes. Ea perda ou no da eficécia dessa ordem moral que inspira sentimentos de (i)legitimidade e justica na vivéncia dog fatos, nas atitudes tomadas e na posture diante dos atores responsabilizados pelos desmantelos que vieram com 4 barragem. Esses sentimentos e atitudes, enquanto produzidos no contexte de uma ordem em crise e transformagdo, tanto refletem o velho que persiste como o novo que se insinua: sdo Pr. tigfo e/ou criaedo. Aqui cabe a sugeat&o de MARTINS (1989: 18), de “examinar as transformagées que modificam velhas relagédes sociais, que atenuam ou destroem a autoridade da cultura tradicional e que abrem espago para a invencfo cultural”. No caso de Sobradinho, além das transformacdes que por si sé ocasionaria uma barragem que & & & & & & & q & & & c & c L c c & & & & & & & & & & c & & c & & a 187 desaloja pessoas, aquelas advindas do mode prepotente e autoritério com que o Estado impde “sua” barragem, envolvendo antigos e novos mediadores e levando a redefinigdes do status-quo. E inovagées culturais surgem na medida em que se exercita, na ag&o, uma legitimidade alternative 4 vigente, por exemplo, ao reivindicar indenizagao além do que estabelece a lei, pela qual 6 dono da terra e tem direito 4 ressarcimento apenas quem apresentar titulo de propriedade. Contra a lei estabelecida, dase valor & terra n&o como valor-de-uso mas “uso enquanto valor” (WOORTMANN, 1990:12). Concordamos com MARTINS (198: :18) -- por razdes Jé apresentadas -- de que mudangas come essa devem ser encaradas como “mudangas politicas”. Em situacdes de crise social, quando passa a n&o haver correspondéncia entre as relagdes sociaia ¢ os valores morais, a tendéncia é a da “agudizagéo consciente dos valores tradicionais @ "o que era dado como natural torna-se mais intensamente pensado” (WOORTMANN, 1990:14 © 22). Pudemos perceber isto, no caso de Sobradinho, quando, no capitulo anterior, tratamos da idealizapdo do passado. Interessa-nos, aqui, enfatizar o aspecto moral desta afirmag&o consciente e veemente dos valores da tradigdo posta em xeque pelo desenrolar dos acontecimentos da barragem. A desnaturalizas&o do modo de viver -- das articulagdes espaco-temporais e das relagdes sociaia que lhes eram solidérias -- e a eupervalorizagic do passado, em consequéncia da crise provocada pela barragem, implicam em conaciéncia e sentimentos. N&o sf, porém, consciéncia e sentimentos, fendmenos que se CoM OOF OCT OL EOC OROOOOE 188 excluem, como poderdé pretender um racionalismo Como THOMPSON, acreditamos que as pessoas ndo experimentam sua prépria experiéncia apenas como idéias, no émbito do pensamento e de seus procedinentes [...]. Elas também experimentam sua experiéncia como sentimenta e lidam con esses sentimentos na cultura, como pormas. obrigagdes familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas conviceSes religiosas. Essa metade da cultura (e & uma metade completa) pode ser descrita como conseiénoia afetiva e moral (THOMPSON, 1981:189) (grifos nossos). Poderiamos dizer também, que, como MAUSS (1974:180), estamos a procura da consciéneia sentimental que os homens © a sociedade tomam de si mesmos e de sua situagdo face a outrem. E importante considerar que esta consciéncia, mesmo em sua porefo racional, n&o 6 mero reflexo da situagdo, néo reproduz toda a realidade vivida, mas é uma representagéo dela mais ou menos adequada (GOLDMANN,1973). Neste ponto, 6 util a distinc&o que faz este autor entre a consciéncia real -- squela que, conjugando os diversos fatores em jogo, todo grupo social tem a cada instante - e a consciéncia possivel, “o m4ximo de adequagéio ao qual poderia chegar o grupo sem entretanto mudar sua natureza” (GOLDMANN,1973:103). Transformagées estruturais como ss impostas pela barragem modificam a experiéncia e os fatores constitutivos da consciéncia, acarretando mudangas tanto na consciéncia real como na possfvel que a fundamenta. A diferenca entre o maximo de adequacéo possivel 4 nova situagio ¢ 4 adequapio efetivamente praticada pelos camponeses pode nos dar a compreensio da globalidade do que verdedeiramente mudou na vida deles e de quais s%o 0 sentido e a extensic desta mudanga para os préprios (consciéncia real) e para nés, enquanto pesquisadores. 189 Apartir dai, podemos perceber os camponeses como “sujeitos da histéria e sujeitos do conhecimento” (MARTINS, 1889:199), que n&o apenas sofrem mudangas, mas também, conscientemente, no seu tempo préprio, as criam e representam, so produtores de cultura. Como diz MARTINS, A cultura popular no & apenas funcional, adaptada e i E também interpretativa, explicativa, formu reconhecimento de uma realidade em que o sujeito néo se reconhece ou nfo se reconhece mais. Fla contém, na sua logics, elementos de explicapdo da mudanga e das inguietagées sociais e ndo apenas elementos de justificacao do passado (MARTINS, 1989:123). nstrumental. 8 eritica, E podemos, entéo, descobrir -- como SCOTT -- gue a cultura camponesa, enquanto “refiigio simbélico » de "um campesinato derrotado ou intimidado” nfo é simples e téo somente alienacio, fuga da realidade e conaolo na miséria, mas pode representar também “um universo moral alternativo, divergente da ordem social criada e continuamente imposta pelas elites"(SCOTT, 1976:240). Estabelecemos como eixo do capitulo a auest&o de uma 6tica de subsisténcia dos camponeses “beiradeiros”, como 0 conjunto das nocSes que induziram-lhes sentimentos de (i)legitimidade e (in)justiga frente as atuags dos implicados e responsabilizados (os “representantes” locais, o “ygoverno” e a CHESF), diante do valor e do modo das index izagdes pelos bens perdidos e com recurso, por vezes, & consciéncia mitico-religiosa (2). A partir des falas camponesas e com o apoio dos trabalhos de THOMPSON (1979b e 1981), SCOTT (1976), MOORE JR. (1987), RAWLS (1981), WOORTMANN (1990) e MARTINS (1986 e 1989), buscamos levantar e interpretar os elementos que constituiriam uma ordem moral caracteristica -- universo da legitimidade camponesa -- fundamento, mais especificamente, de uma ética de subsisténcia, & cite 190 cujo nicleo central € uma economia moral. Esta orden moral em € crise com a barragem nutriu os sentimentos de (i)legitimidade e (in)justica que nortearam atitudes camponesas de conformiemo e resisténcia. Depois de definir estes conceitos procedemos ao exame das falas. 1. ORDEM MORAL: ETICA DE SUBSISTENCIA E ECONOMIA MORAL. © campesinato € comumente estudado como ordem econémica e@-- talvez, por ter sido historicamente parte essencial do feudalismo que antecedeu e se opés so capitalismo surgido de sua transformacdo e superacéo -- 6 frequentemente referenciado a | economia capitalista, pela maior ou menor subordinagdo A dinamica do capital. Por este viés, corre-se o risco de restringir o campo de anélise, de sorte que outros aspectos, de natu as diversas, ficam de fora ou, quando muito, sio relegados a um plano secundério e complementar. Querendo escapar desta incorregio e, por outro lado, nao cair no extremo oposto de achar que aspectos n&o econémicos é que s&o determinantes, tentamos uma interpretac&o da histéria dos camponeses de Sobradinho pela ética da moralidade COCO OCOCOCEOOOOFOOFOOCOCOOOEOCOFCOO COE COO OOO camponesa (3), sem perder de vista suas possiveis © necessdrias vinoula¢Ses econémicas. Como realidade vivida, aqui empiria, esta r | histéria néo apresenta divisées internas, mas ¢ um todo organico, & cuja totalidade e organicidade, porém, escapam as andlises que serdo sempre mais ou menos unilaterais, tributdrias de seus pontos de vista. Perguntamos, entéo, pela ordem moral em questdo com a 191 barragem, captando-a treduzida numa economia moral © numa ética de subsisténcia. Falamos de moral no sentido lato, de costumes e norma de conduta, baseadas na tradicao, isto 6, legitimadas pela pratica das relacdes sociais conforme vém se dando ha geracdes, passando de pai para filho. Ndéo se trata de moral referente a tenes, principios e tratados, mas sim a problemas reais, de sobrevivéneia, de garantir “o p&o de cada dia", de consequéncias imediatas da dominacio para a reprodugo fisica, psicoldgica, cultural, etc. n&o sé do “pequeno produtor” mas também do “camponés". No dizer de SCOTT, C...] 0 contetido moral da ética de subsisténcia. O problema oa exploracdo 6 da rebelido néo é apenas um problema de calorias o rendinento, mas 6 uma quest&o das concepeies camponesas de Justica social, de direitos e obrigapées, de reciprocidade (SCOTT. 1976:ViI). Este autor, estudando as rebelidea camponesas do Sudeste Asiatico, durante os anos 30, constata que elas ocorreram por causa de violacdes da ética de subsisténcia campo: A partir dai ele tece consideracdes que néo devem ser generalizadas para outros casos, em outras partes do mundo, como ele sugere (cf. ScoTT, 1976:3-4), mas checados, ainda que fundamentelmente apontem uma tendéncia mundial. Os camponeses, em geral, vivem muito préximos & margem de subsisténcia e este é o dilema essencial de suas vidas. A permenente ameaga de néo conseguir o necessdrio para a subsisténcia familiar expde a sociedade camponesa a riscog constantes (4). 0 medo da escassez provocada por intempéries que comprometem colheitas ou por um aumento exorbitants da taxa normalmente aceita de exploracdo, isto é, de apropriacho do crgece | | Corre Cer EOC OTF OOOO OFOO FOF OOS = 192 excedente econdmico pelo patrée ¢/ou pelo em suma, o temor da ndo-reprodugdo ~- isto é 0 que dd origem mantém uma 6tica de subsisténcia. Por ela s&o feitos arranjos téenicos (tecnologias tradicionais) e arranjos seciais (normas de reciprocidade, generosidade constrangida; terra ¢ trabalho comunitérios) para garantir a margem de subsisténcia, a “seguranca primeira” (safety-first), sem maiores preocupasdes com acumulagdo e lucro (SCOTT, 1971 4). Eo que se poderia chamar economia moral dos camponeses: “sua noc&o de justic¢a econdmica e sua definic’o operacional de exploracio -- sua visio de quais cobrangas (claims) sobre seus produtos sao tolerdveis ¢ quais séo intolerdéveis" (SCOTT, 1976:3}. Ai esto, segundo SCOTT, as raizes da politica camponesa e a chave de entendimento de suas relagées sociais, com os vizinhos, com as elites e com o Estado. “Etica de subsiténcia", como a entendemos, nao deve infundir-nos a idéia de que os camponeses $$ se mobilizam por razbes praéticas, s6 reagem em vista da sobrevivéncia material ameacada. Como demonstrou MOORE JR. (1987), com sa fartar, os sentimentos e atitudes das pessoas diante do consideram injustice tém uma variedade infinda quanto a motivoe ¢ formas. © aspecto que mais nos interessa na a) lise de SCOTT 6 que o desejo de uma garantia de subsisténcia, 4 la que nasca das Recessidades dos lavradores -- da economia camponesa » é socialmente experimentado como norma de direitos ou expectativas morais, que se tornam padrSes para julgar os préprics comportamentos @ os dos outros (Cf. SCOTT, 1976:6). “A violacdo desses padres pode se esperar que provoque — ressentimentos @ terme rn oe COOL ELE L Coot sg resisténcla -- n&o somente porque ni cessidades nfo so satisfeitas, mas porque direitos sio violadcs” (SCOTT, 1976:6). No caso de Sobradinho, enquanto eis dete aveis, no comportamento e no discurso dos camponeses, elementos de uma ética de subsisténcia ¢ de uma economia moral, que é sua base, podemos demonstrar que foram expectativas morais, referentes a padrdes de igualdade e justica, cumpridas ou frustadas pelos promotores e executores da barragem, as bases das reagSes de conformidade resisténcia. Para THOMPSON (1976:b), 08 motins de subsisténcia, na Inglaterra do século XVIII, tinham origem em violacdes de tradicées sociais de contetido marcadamente moral, as quaig constitufam 0 que ele chama economia “moral” dos pobres: E certo, por suposicéo, que os motins de subsisténeia Provocados por pregos que subiam vertiginosamente, por praéticas incorretas dos comerciantes, ou por foue. Nas estes asnavos operavam dentro de um consenso popular quanto a que praticas eran legitimas e quais ilegitimas na comercializapéo, na elaboraedo do Pao, etc. Isto estava por sua vez baseado em uma idéia tradicional des normas © obrigagées sociais, das funees econdmicas préprias dos distintos setores dentro da comunidade que, tomadas em conjunto, pode dizer-se que constituiam a “economia ‘noral’ dos Pobres" (THOMPSON, 1979b:65-86). eran No caso de Sobradinho -- guardadas as devidas diferencas histéricas -~ ainda que ndo possamos falar de “rebeliso” ou, como THOMPSON (1979b:65), de " s#0 popular direta, disciplinada e com claros objetivos", tal como acontecia com aqueles “motins", podemos demonstrar que os acontecimentos inéditos relatives a implantacéo da barragem foram enfrentados e vividos pelos camponeses, pare além de toda perplexidade, com indignagéo moral, e mais do que isso, como injustica, como quebra de padrdes SEE EEEEEEEEEeenennemeemnmeenne nanan ic cS \ i‘ k 194 i tradicionais de comportamento e de atribuigdes padrées \ ee baseados em nogdes de legitimidade, de cbrisacSes morais : reciprocas e direitos adquiridos, nogdes tidas e@ havidas como ; validas e fundamentais @ ordem moral naturalizada das coisas, de I ‘ modo que podemos faler de uma economia “moral” dos camponeses \ : A ribeirinhos. & k A implantagao da barragem, nos moldes ei que se deu, & L incidiu diretamente sobre estas idéias, crencas e sentimentos kK morais, desrespeitando-os, e criou uma situag%o em gue o novo © 0 velho se confrontaram produzindo reagdes que expressam tanto ajustamento quanto insubmissio, conservacao © mudanca. Interessa-nos, na trilha de THOMPSON (1979b:65), realgar “alguma nog&o legitimizante” nas agdes dos campones! es, @ exemplo dos amotinados ingleses, que “acreditavam defendendo direitos e costumes tradicionais, e, em geral, que estavam apoiados pelo amplo consenso da comunidade”. A barragem colocou em crise a economia moral dos camponeses, subverteu sua ética de subsisténcia e pds em questdo a LTO OTOL TTT OOO TS C legitimidade da ordem tradicional ribeirinha. Mas até que ponto? 5 L + . 2. RECIPROCIDADE, (I)LEGITIMIDADE K (IN)JUSTICA L r 4 As falas dos camponesas manifestam que as situagdes criadas pela barragem foram por eles percebidas e enfrentadas com maior ou menor sentimento de (i)legitimidade pela quebra da £ COP FF OCOO OOO LR OOOOCOFCOE OOO OCOOFCOCOCE OE CEE 8 8 195 tradicéo, pelo rompimento da ordem estabele, ordem moval naturalizada. Entendemos por legitimidade o atributo de pessoa, grupo ou instituic&o social e/ou de suas atitudes e comportamentos, bem como de costumes e normas sociais, que se fundamenta num gray consenso popular suficiente para assegurar a obediéncia as suas diretrizes e@ determinagdes. Para os nossos propésitos esta definic&o é adequada, porquanto amplia -- so contrario do aue faz LEVI (1986:675) (5) -- para além dos limites do Estado e seus aspectos a questo da legitimidade do poder (e na © sentimento de (i)legitimidade de que tratamos tem origem no modelo que poderiamos chamar tradicional ou paternalista, cuja base é a reciprocidade da troca de favores, uma espécie de “contrato social” implicito entre os camponeses e as elites dominantes proprietérias das terras e controladoras da concess&o de uso das ilhas. Trocam-se condiedes de subsisténcia (principalmente, o acesso aos “lameiros"), protesSo e seguranga, por cumprimento de deveres que podem ir da entrega do excedente econdmico ao voto dos familiares nas eleigdes. Ts] sistema inclue © que nos parece, objetivamente, um alto grau de exploragdo e desigualdade — social. No entanto, os contratantes”, subjetivamente, ¢ toda a sociedade ribeirinka nio véem desta forma. Para eles, € justa ¢ legitima a troca, se cada um cumpre sua parte € se o que se exige dos camponeses no ultrapassa a margem estabelecida de subsisténcia. Esta © uma reivindicagaéo moral dos camponeses e uma obrigaedo moral da autoridade paternalista. 0 que os pobres n&o aceitam nado 6 a pobreza, mas a crecce wrerencrereecerr cg COCO TP FF OOO OFF, cr 196 “pobreza insegura” (cf. SCOTT, 1976:34). A reciprocidade, como indica MOORE JR. (1987:6) no significa “igualdade de responssbilidade ou obrigagSes", melhor seria entendida como “obrigagéo mitua". Pare este autor (1987:685), esta € possivelmente a idéia que fundamenta concepeses populares de justiga © injustica, igualdade e desigualdade. Eo espaco da critica (e da revolta), dentro desta concepeio, € evidentemente circunscrito aos seus limites: (...lela [a critica] aceita a existéncia da hierarquia e da autoridade ao mesmo tempo que tenta fazé-las se conformarem 4 um Padr&o idealizado de como deveriam se comportar [...). Para as obrigagdes do subordinado deveria haver obrigagdes Sorrespondentes Para o governante, e 0 todo deveria redundar no beneficio da Comunidade (MOORE JR., 1987:687). 0 “contrato” de reciprocidade ¢ implicito e nfo est4 dado de uma vez por todas. Na verdade, o que ha entre os “contratantes" una sondagem continua "a fim de descobrir o que eles podem efetuar impunemente, a fim de testar e descobrir os limites da obediéncia @ da desobediéncia” (MOORE JR., 1987:39). Numa situagéo excepcional como a da barragem, o modelo de veciprocidade praticado até entdo passou, no minimo, por um momento critico. As "revoltas", ou melhor, os sentimentos de ilegitimidade e indignac&o moral que, em grande medida, tomou conta da imensa maioria dos camponeses deram-se dentro destes moldes, reclamarem o descumprimento do padréc, impugnaram o rompimento (unilateral) do "contrato” de — reciprocidade, questionaram o beneficio que, diziam, a barragen traria para todos, protestaram contra o alargamento dos limites de desobediéncia ou sua ultrapassagemn por parte das autoridades. ac COC CRE ECE OOOO FOC ECF RCE FOE FORO FEE OC FOOLS 197 Se formos verificar, no caso Sobradinho, as atividades apontadas por MOORE JR. (1987:43-44) como as trés obrigagées da autoridade legitima, vamos constatar que cada uma delas foi percebida como (mais ou menos) descumprid: : a0 contrério da Protegdo, a inseguranga; no lugar da manutengdo aa paz © da orden, a repressfo e o desarranjo da ordem; ao invés da seguranga material, a expropriagéo das condigdes de vida. Frente a tais violagdes da reciprocidade, os sentimentos © ag atitudes dos camponeses, por seu lado se configuraram om (velativa) deslegitimacao da ordem tradicional. A cl&ssica distine&o weberiana dos tipos de legitimidade (ou de dominac&o legitima) langa luz sobre os diferentes aspectos da legitimidade em quest&. AS podem estar mesclados aspectos da degitimidade legal (a que se fundamenta na lei, ou na crenga de que as normas s&o legais) e de legitimidade carismitica (a que se fundamenta na crenga nas qualidades pessoais extraordindrias do chefe e de suas ordens), mas caracteristica a legitimidade tradicional, “que descansa na crenca cotidiana na santidade das tradicSes regentes desde tempos antigos e na legitimidade das pessoas assinaladas por essa tradic¢&éo para exercer a autoridade’ (WEBER, 1944:172). E 0 vinoulo tradig&o-pessoa que fornece a base do modelo de reciprocidade paternalista, que se nutre na sqitidade da troca de favores. Na medida em que a barragem ocasiona quebras na tradic&o, a autoridade a ela vinculada perde legitimidade e passa também ela a nfo ser acatada. Produz, entéo, um sentimento duplo mas nfo contraditério: com base na legitimidade do passado, | o Lr LOL, A LLL rere ere reer or u 198 condena~se a violacdo, encarada com indignaedo moral -- no que ha um inequivoco desejo de restauragio -~ e ao mesm tempo, com esperanca, cria-se uma legitimidade nova, que nasce na luta pelo veassentamento e pela indenizacéo "justa”. Como diz MARTINS (1909: 127), “as relagdes e concepgées do passado ganham sentido, forga e coeréncia nesse desencontro do presente”. For exemplo, a concepgao de pobre passa a designar no sé os excluidos do direito A terra, mas também “os excluidos do dirsito ao favor” (MARTINS, 1989:22). A tradic&o, em casos como este, “nio € o passado que sobrevive no presente, mas o passado que, no presente, constréi as possibilidades do futuro” (WOORTMANN, 1990:17). Na medida em que hé continuidades com a tradig¢&o -- por exemplo, alguma interferéncia favordvel de algum “representante” local ou certos aspectos da consciéncia mitico-religiosa dustificadores de fatos de barragem -- refaz~se a Jegitimidade tradicional. De qualquer forma, rupturas ou continuidades foram vividas com um forte sentido de (in)justic (des)respeito ao consenso social sobre o que deve © o que n&o deve ser feito por parte de cada um dos atores envolvidos (6). 0 conceito de justica de RAWLS (1981) pode nos ser atil: dustic¢a como eghidade (justice as fairness), isto é, respeito ae regras do Jogo estabelecidas por contrato. Os homens, em estado (de igualdade) natural, acordariam quanto a uma concepgtic de dustica para nortear sua vida em sociedade, com a possibilidade de refazé-la, através de reconstitui¢So democrética do contrato, ou CL LLL LOLA LLCO LOL LL DLO LDL LOO LS fs oc c CLL LG 199 reafirmé-la através da desobediéncia civil. No obstante o idealiomo neo-contretualista liberal de RAWLS, h4, em seu conceito de dustica, elementos que podem nos valer na andlise dos sentimentos camponeses, principalmente, a idéia de que a experiéncia humana conoreta pode modificar nogdes de Justo injusto, redefini-las por consenso sempre renovavel -- nem sempre, diga-se, de modo objetivamente democratico --, © a idéia de desobediéncia civil diante de violagdes do contrato. A concere&o de RAWLS vem confirmar o que temos visto nos estudos de SCOTT (1976) e MOORE JR. (1987) acerca da desigualdade até certo ponto aceita como legitima, E este pronto é justamente aquele em que a desigualdade passa a ndo trazer beneficios para todos, desacata o principio da eallidade e, entdo, € vista injusti¢ca. como Estas todas s& nocSes em jogo no modo como os camponeses perceberam, sentirem, viveram os acontecimentos da barragem. Ao nivel do tempo cotidiano, do imediato © do visivel, elas foram vividas como cituagdes reais (indenizagdo, deslocamento © reassentamento) referenciadas a entidades _—_coneretas C'representantes” locais, governo e CHESF). Como diz MARTINS (1989:124), “a injustica ndo esta separada do injust: E por este que podemos chegar & aquela. Aqui, visamos o= sentimentos de (Cin)justica que brotaram nas relactes com os (considerados) (in)justos. Fazemos isto analisando as falas dos camponeses, tendo 20 fundo o panorama dos fatos e A frente as atitudes om que ee traduzirem os sentimentos, e como instrumental os conceitos conforme os definimos. COOCCOF OOF OCOCOCECFE FEE ae ereee COTE CE EOE corr ee 200 3. PRIMEIROS SENTIMENTOS Das primeiras respostas dos camponeses 4 pergunta sobre qual fora a reacfo primeira ao antincio da barragem, so as ue falam da descrenga: Carmina (Igarapé, Remanso) ~ A gente, quando saiu essa conversa, aquilo pra néis foi um sonho, uma coisa que nunca ia acontecer. Foi uma tristeza quando ouvia dizer que ia sumin aqui. ninguém acreditava, ni conversa, ninguém acreditava isso. Erasmo (Quadra 4, Remanso) - Descrenga... desorenga... ninguém achava que podia acontecer. Irmo (Quadra 2, Remanso) - Ninguém acreditava em bapragem, que a dgua_chegasse até onde chegasse. Ndo havia no imaginério social camponés qualquer veferéncia importante que tornasse possivel uma compreensdo efetiva do que seria de fato uma barragem. Encontramos referéncias esparsas & barragem de Trés Marias, mas com consciéncia da distancia, no tempo e no espago, suficiente para nés n&o as considerarmos. Apareceu também uma referéncia, na entrevista com o grupo de Igarapé (Remanso), a antincios da barragem feitos por voluntérios do Projeto Rondon, mas pela data apontada (1973) fag crer que se trata das primeiras equipes da ANCARBA. Mais importantes so as profecias de fundo mitico-religioso, que investigaremos a frente. De qualquer forma, barrar o rio ou elevar suas aguas de modo permanente, acima dos niveis costumeiros, numa enchente sem vagzante, era simplesmente impossivel, porque contrariava a ordem do mundo estabelecida desde todo o sempre. Por isso, tocar no assunto provocava a reagdo que se deve aos disparates, comumente o 201 riso, a ironia, o desaforo: Joné Paulo (Igarapé, Remanso) - Era a coisa mais impossivel do munde. [...] A gente nem acreditava, [dizia] 6 nada, mu ¢d vendo que num vai sé cortado o rio Sao Francisvo. Grupo de Igarapé (Remanso) - [.. J néo queria sair, achava que aguilo era um sonho mesmo, dizia “nada, que vem nada”, por Oe Por aquilo, porgue entrou, porque saiu. Outros falaram seas dua i iz pdinha. como seu M. foi duns. Outros que queria vird uma porca parida: outros que Parece -- com uma menina feia, se as agua mexesse com eles [risos]. - Como o V. fal6 que queria pariy wma fia femi (filha fémea], se as agua viesse cobrir ali a Veneza. [pisos] P - EF nao veio? - Quase que ele morre afogado. (risos] ~ A m&e mesmo foi dumas que disse que virava wma porea roncando se a gua viesse. (risos) VOL OL OL OO LE rt. Irm& da descrenga, nasce a desconfianca, a suspeita por / parte dos camponeses de que por tras do antincio da barragem e do / deslocamento existiam interesses em suas terras: ada de vocés, Carmina (Igarapé, Remanso) ~ «1 aqui tudo i_pr. tomarem conta” ‘océs querem ¢ tomar esse servico dagui pra vi {...] todo mundo dizia isso mesmo. Alcidio (Igarapé, Remanso) - [...] a gente dizia que eles -~ a gente n&o acreditava -- sles queria era tomar os local da gente, Porque o povo via eles andar a cavalo, ai nestas beca de earrero, 7 i i cimente. O pove achava: “nada, aqui eles t&o como néis agui porque acha que tem um grande. mineral”. E ai o que é certo é que ndis nunca acreditava naquilo, n&o. COE OOO LLL LL i000. Os camponeses néo podiam imaginar uma barragem e menos u w ainda suas consequéncias, e tinham seus motivos. Entre a altivez de quem tem seguranga de seu mundo e a desconfianga de quem vem de ‘ fora com interesses desconhecidos, tornaram-se re patarios G conversa dos técnicos, que mais lhes parecia “suada" (barulho indecifravel). Por af podemos fazer idéia ao menos, da violéncia, antes de tudo cultural, do impacto que causou a constatagdo de que © impossivel estava acontecendo. Ndo tiveram informagia, que meamo Lae a WO LLL LL LOL IE OL “ = MOL LLL LOLOL LOL LOLOL LO 1 “ 202 havendo é de se perguntar se seria suficie Imperou a desinformac&o que, combinada coma pressa e a pre! encia dos promotores da barragem, nutriu a auséncia de didlogo entre técnicos e camponeses e alimentou o desencontro cultural e o confronto de duas légicas diferentes e opostas. 0 fato de camponeses e técnicos do Estado falarem a mesma lingua fazia crer que atribuiam o mesmo significado ao aque diziam. Como afirma MARTINS-COSTA, @ relativa homogensidade lingufstica era equivocante, tomada de imediato como homogeneidade cultural. Se os técnicos estivessen as voltas com grupos indigenas, a comunicagaéo entre eles ganhapia Belo menos o status de um problema a sep resolvido, © qualquer interpretacdo de atos ou mensagens seria encarada com mais cautela e eritério (MARTINS-COSTA, 1990:61). 86 argumentos mais convincentes, como mostrar o mapa da 4rea a ser inundada, reunides com presenca de politicos “representantes” locais ¢ o comego das indenizacdes -- sé isto conseguiu demover a descrenga, ao menos em parte, ¢ 0 em Remanso: José Paulo (Igarapé, Remanso) - [...] E af, quer disé que a gente num acreditava nisso, nao, repas, mas quando eles comecaro em . ‘Fics adsin weio veana Sn 7, oles viero indaniad 6 servi gente, a gente nao indenizé-se ainda. Sempre aguela divida: que nfo veio indenizd, por que saiu. P ~ Quer dizer que o povo ndo acreditava? Antero (Igarapé, Remanso) - Ndo acreditava, nao, movo. A gente 26 veio mesmo acredité, ainda teve mais essa, i ar oie omana. Alén despois desse mapa, a gente fol chamado om Remanso, todos os pai de famia, todo o pessoal que morava aqui foi Ghanadeen—Hemanse. |e jaa —arande—reuaida. x cabeaise. oo deputado falé, ad que todo mundo acredits. Como resultado dos desencontros entre os técnicos do Estado e os camponeses, produziram-se situagdes de desesparo, quando n&o de terror, diante do “levante das aguas”, do que os J W 2 rmocerrcecrcrrerecrcre OOO COO OOF 4 CM OOOO 203 camponeses d&o vividos relatos: Dilermano (Pascoal, Sento Sé) - A agua veio de repente. Este ano foi um ano que choveu bastante. O pessoal néo acreditava. Eles mesmo (téonicos da CHESF] dizia que ia encher en 3 anos @ encheu no primeiro ano; 6 meses nun foi? Foi de supapo. guando o in Eiteu. a diva vain conpenda aseia roo a2 tocse outta cosa. 2 essoal se afastando, tiranda as sois4 para _né sobrir tudo. Valdo (Aldeia, Sento Sé) - Na mudanea da gente, quando a, as agua chegou em nosso lugar, pra arretird a gente de 14, olha, o terreno é assim igual esse aqui, 6 [abaixa-se © pega um punhado de pé da terral, a poeira cobria que o senhor dizia “Ali vem um redemoinho, um vento... ", era 4 ib, Pr er, pera ou nao era? [Os cutros confirmam com acenos.] corr, esim, 5 {faz o geste com o braco em diregdo ao préprio corpo], por © oa bichinne ae acabando.. ea cents en —tenpo dese _acaba ‘também... Acabou muita coisa 14, nossa home, no funde d“égua A consciéncia sentimental dos camponeses, acerca do processo de transformagéo que estavam vivendo, foi gradativa. Do mesmo modo as reelaboragées culturais e morais © as reagdes: Dilermano (Pascoal, Sento Sé) - Quando surgiu as noticia, né, as primeira informag&o, que ia construir essa barrage, pessoal achava que néo era isso que td ai hoje, era uma coiss menor, gue uio ia. atingir tanto _o pessoal. nuit si preocups auito née. Mas depois. Boa parte, ao que parece, sé acreditou definitivamente na “mudanga" quando viu que as 4guas chegaram onde nunca haviam chegado, muito acima de qualquer ponto registrada pela memoria social das enchentes altas (cf. MARTINS-COSTA, 1983), ©, ao contrério de qualquer enchente normal ou excepcional, nao recuavam para que se pudesse descer plantando, acompanhando o molhado. As experiéncias das enchentes descomunais de 1979 = 1950 demoliram qualquer vaga espersnga, que por ventura ainda houvesse, de que o rio se comportasse como antes, e trouxeram a certeza de que a “retirada” nfo tinha volta ¢ a “mudanca” era para sempre. Os coer CC CC LL. y ~er 204 depoimentos tomados em 1980, se ainda denctam perplexidade, J& indicam uma maior consciéncia das implicagSes da barragem para a vida ribeirinha: P - Qual a diferenca que vocé esté vendo no rio do tempo antigo agora? Abdias (Itapera, Pildo Arcado, 1980) - Moco, adiferenca $ sebre. os_preiuizos que a gente td tomando. P- Como 8, por que esse prejuizo? Abdias - E devido o negécio das aguas da barragem. Porque dos. tempo desde quando a gente foi oriado punea viu ia _deua desi como té assim agora. né, todo mundo josado, hoje ta agui A = Antes vocés também n&io perdiam as coisas com 0 rio? Abdias - No, ndéis nunca perdemo como perdemo agora. P= Mas o rio nao enchia também? Abdias - Enobia, mas n&o fazie assim. pra gente a. soim. ficd desabrigzado, tomé prejuizo. Tomava prejuizinho besta, a base duns 4, 5 meses ja tava no ponto do cara trabalha de novo. Mas como ta sendo agora, tudo Jogado... P~ Vocé t& vendo uma diferenca, né. E essa diferenga, o que 6. & a quantidade de agua? Abdias - £, que a dgua $ demais. A gente morava aqui pré trés. A agua a gente deixa hoje aqui, né. Amanhd, quando a gente pensava que ainda tava no seco, ja tava dentro d“agua. Saimo foi jogado af nas carrera, perdemo muitas coisa, as casa s5 faltou cair por cima de nés. P - Uma novidade, ent&o, § que a dgua vem muito répida? Abdias ~ i 2 id per weg. (...] Nas pressas, o que colheu mesmo 36 foi a mandioea, mas feijao, melancia, foi tudo perdido. Prejutso terptvel: Eu mesmo perdi 2 roca grande lotada de milho, o milho que peguei num da 5 Pratos [1 prato = 3 litros]. Tudo foi assim, 6, feijao de corda fic aboiado. A consciéneia do prejuizo é evidente, ele ultrapassa as perdas costumeiras e aceitdéveis, quando as Aguas que fertilizavam a terra tinham sua parte na plantagdo ("o rio come"), 0 que era encarado como “prejuizinho besta". 0 tempo, do rio © das pessoas, & outro e © espago também: “hoje té aqui, amanhé nem tA". Instalou-se a desordem: "tudo jogado”. As primeiras tentativas frustradas de veprodugir o antigo modo de vida deram aos camponeses a dimensdo exata da nova realidade, a expressio = “mudanga” assumindo todos os seus CLO LLL OL LLL LYELL LLL OL LLL CL LL LOL POOL ok oh a ae el 205 significados. Completa-se, ent&o, o sentido de ilegitimidade e injustiga, e plenificam-se os sentimentos com que se percebem, se interpretam, se vivem os fatos e as relacdes com aqueles a quem se apontam como responsdéveis. Da descrenga na barragem passa-se a& descrenca na autoridade de quem a promoveu ou implantou ou apoiou @ pSe-se a erftica -- no sentido de MOORE JR. (1i987:687) -- da ordem tradicional. 4. (I)LEGITIMIDADE RELIGIOSA A consciéncia sentimental da “mudanga”, de sua profundidade e extensdo, avangando pela experiéncia do cotidianc transtornado, busce elementos na ordem do sobrenatural, ativando a consciéncia mitico-religiosa. Os costumes e tradigées, para que se imponham como normas de vida inquestiondveis, revestem-se de caréter mitico e recebem sangdes religiosas. Deste modo, compreende-se como as transformagdes radicais operadas com a barragem tenham instigado sentimentos religiovos fundamentals, que tém @ ver com o ordenamento do mundo atribuido a Deus. Realizar “a coisa mais imposaivel do mundo” gue era “prender as 4guas" © com isso transtornar a orden do mundo, s&0 experiéncias descritas como recurso de imagens apocalipticas, tais como “esbandaio de tudo”, “desacato muito grande", “desarranjo no mundo”, “fim do mundo”, “dia de juizo”, “adildvio de _Noé", “&gua de Deus", “mudanca do diabo", “Besta-Fera", “n&o 6 Deus quem governa mais o mundo"... Nestes termos, os limites possiveis de legitimidade recebem contornos muito amplos, nutridos ac 206 por uma consciéncia religiosa muito oultivada, nos moldes do catolicismo popular de arraigada tradic&o em to regiéo do Médio Séo Francisco. O catolicismo chegou com o colonizador portugués e¢ ganhou o vale pela acio dos missiondrios jesuitas e, posteriormente, capuchinhos. A rudeza da vida © o3 esquemas de dominac¢o0 coronelicia encontravam respaldo nas pregagdes moralistas que enalteciam o sofrimento (7). "O nicleo da cultura rastica brasileira 6 ~~ como ensina MARTINS (1989:22) -- a idéia do castigo, da punig¢éo, como contrapartida do pecado, da culpa". Convém considerar brevemente como surge esta idéia. No catolicismo ristico tradicional, fundante da ordem moral camponesa, o mundo € criado, ordenado e governado por Deus, que em troca exige obediéncia, e sobretudo juste. A partir do pecado original, o mal entra no mundo ¢ passa a competir com o bem, que deve prevalecer pela expiagio das culpas, através do sofrimento, consequéncia do mal. 0 maniqueismo nio 6 aqui simples oposic¢éo bem versus mal, pois ha um bem utido no mal, exatamente a chance de redengdo. Nestes termos que se coloca tradicionalmente a concepe&o camponesa da divisie da sociedade em pobres € ricos, fortes e fracos. Pobre e fraco é 0 destituido de propriedade e de poder, que deve se submeter ao rico e forte, como punigéo pela sua maldade intrinseca. Rico e forte é aquele a quem Deus concedeu propriedade e poder como instrumentos de bondade © redengdo de todos, através da obrigagéo do favor. 0 bem que hé no mal é, aqui, LOLOL LOO OL OL OO LOLOL OL LOL reper ror eee se. iff dD 207 oda punicdo que justifica e salva o pobre ¢ obrigag&o que justifica e salva o rico e forte. A corrupedo do sentido moral-religioso da propriedade © do poder -- quando estes se tornam instrumentos de sua auto-promo¢%o e quebram a reciprocidade, descumprinds o dever do favor -- traz a desordem e novo sofrimento, mas ao meamo tempo deslegitima a propriedade e o poder e desobriga o pobre ¢ fraco (8). No caso de Sobradinho, tanto encontramos a legitimagdo moral-religiosa da implantagio da barragem -- sofrimento que castiga os pobres e fracos -- como sua deslegitimac8o, porquanto ela vem desacompanhads da reciprocidade. A partir dai ha camponeses que resistem a aceité-lo, como bh cemponeses se resignando a acaté-la como punigdo, enquanto as autoridades n&o os favorecem, no os assistem, n&o os retribuem; a barragem ndo sendo um bem para todos, apenas um mal para alguns que o merecem. Assim, o sinistro da barragem pode ser percebido e aceito como “vontade de Deus", sofrimento necessério, “lei”, para expiar a culpa pelos “pecados comuns" (a “culpa crista” de cada dia) e pelo “grande pecado” ("original") dos homens terem arvorado substituir Deus, "querer adiante de Deus", ao “inventarem as Aguas": Faustino (Silva, Pildo Arcado, 1980) - Se fosse de benefieio era se as dgua voltasse pros limite que era, que cada qual no seu setor. Mas que ela ndo volte mais. porque os hemem dao pela Sabedoria deles; que, primeiro, ho_tempo que existia, que era ele. fgie-2-0a hone que_quer adiante de Deus. E, portanto, meu amigo. é s0fn8. Apelamos pra os senhores 2 outros semelhantes. OL YC TN ot ORT OIE T a 208 Por terem transgredido a ordem natural dada por Deus (as divisées espaco-temporais ciclicas ¢ regulares) e, seguindo a prépria sabedoria, terem inventado uma outra “crdem” (desordem das 4guas do rio barrado, as Aguas presas e/ou humana), os homens causaram a condena¢do ao sofrimento, “lei” a se cumprir "vamos sofré"), castigo (as 4guas n&o voltam mais “pros limites que era", os prejuizos). A antiga ordem ("cada qual no seu setor": hierarquia Deus--autoridades/ricos/fortes--pobres/fracos) parece irrestaurével. $6 resta apelar o favor de outrem, de quem pode (“os senhores e outros semelhantes"), para reestabelecer nova reciprocidade. Com este raciocinio, suprema legitimagio, a barragem encontra seu “mito de origem". Enguanto permitido por Deus, ser seguidamente desalojade pelas enchentes provocadas pela barragem (1979 ¢ 1980) -- qual Ad&o e Eva expulsos do paraiso -~ 6 um sofrimento suportével: Nome desconhecido (Pildo Arcado, Nove {lenconhecido (Pile Arcade, 1980) ~ Situs - dob 2 spfrs ndo porous tamp vivo iia nd 2 nano mda de a sa nae ona ean eles fanto pra outro, até 9 dia que ele quiss. Raimunda (Aldeia, Sento Sé) - “Hu sofrio que 0 sofré sofpeu” (9). Chorei que 36 crianga na beira do pio, panhano bichinho, que nem eachorre ruim de cage... Mas, enquanto é Deus quem ainda governa o mundo, mesmo castigando, hé esperanga em sua bondade e justiga, conforto para quem se conforma: Miguel (Silva, Pildo Arcade, 1980) - [...1 nis ve ix: jar. a ndis com os indo. Portanto, a situagdo vem dura, dura mesno e precaéria pra nois todos. E ainda tamo vivo pelos milagres de Deus. Felipa (Salinas, Piléo Arcado, 1980) ~ Td das en txinado. Bu trabalhei a morré, nao vi resultado, plantei e Figquei abarracada na roca, esperando que Deus desse. Dous fornia cheaa ceoeer cde yorerceercere ¢, {- COFCO OOF OOE ceorecrge 209 Agua. E 14 figuei na ropa, como aqui, oiano traveis pra v8 seo rio baixa. [...] agora figquei, como la diz, com as gragas eé chamando pelas gragas do Céu e dando louvado a Jesus. porque num tem mesmo pra onde & que vai... Sai no mundo como louea eu num vd gai, porque pra onde 6 que eu v6? SS pra os braeo de Cristo. Quando mais se caminha ainda § pior 2 o frace ainda mais pior, ele Pega passa pra qui, passa pra li, caminhando como dofdo. Melhor ele dd im conforte, tenho pra min que Jesus tem que dé um conforto. Mas de bom num ta, nao. A legitimidade religiosa, fruto de sofisticada elaboracio, pode revestir os fatos da barragem de inquestionabilidade, o que facilmente recebe conotacdes sécio-politicas: (...] em sua verso popular, as religides sancionam a versio dominante de submiss&o aos designios ocultos de um poder separado. Em todas elas, os conflitos sociais sao figurados como resultado da agao de forcas externas 4 sociedad, polarizagdes estranhas entre bem e mal que se abatem sobre os homens, determinan suas vidas e organizam o real (CHAUI, 1982:82). Nem sempre, porém, essa “leitura religiosa” dos fatos da barragem 86 facilitava o sentimento de conformag&o; podia também reforcar tendéncias positivas do ponto de vista camponés, como seja de ficar e nfo sair pelo mundo “caminhando como doido” (no dizer de Felipa, Salinas, Pildo Arcado) e a da procura da beira do rio, sempre. O “principio da beira”, expressio maxima do “valor social e simbélico do rio", era o que ordenava a classificag&o hier&rquica dos espagos sociais (MARTINS-COSTA, 1989:57). Como tal, recebia sang&o religiosa e se impunha (sobre)naturalmente: P ~ Vocés preferiram ficar, quando descobriram que podiam ficar? Grupo de Pau-a-Pique (Casa Nova) - Foi. P - Isso era uma coisa que vocés queriam? - Era. P ~ N&o estavam pensando em sair da beira do rio, n&o? - Porque, rapaz, eu tenho comigo... eu sempre ouvi dizer que. sea bessca tivesse perdida, vinhesse pra beira do plo, qc de sede ° de_fome ele néo morria. ~ Se tivesse com sede na caatinga. puxasse pra beira do ril iO, que io a & & PP ey CAT IEEE PP I a ere 210 eu Ihe garanto, que ele morrer de sede ele nao morria que de fome... P ~ 0s antigos diziam isso? ~ Erei Henpiaue sempre dizia P - Quen & Frei Henrique? Padre de Bom Jesus da Lapa - £... 0 padre do Cearé, 0 padre Cieero RumBo sempre diz ~ Fosse pra beira do rio. > Mamae mesmo saiu daqui de @ pé mais uma tia minha, mais um bucado, bem uma seis ou vito pessoas de a pé dagui prdé o Juazeiro do Ceard, de @ pé... acompanhsi a festa do Juazeiro do Ceara. dia ser “Frei Henrique", “Padre Cicero”... ainda principios externos de legitimacio, mas menos em “vers&o dominante” (de que fala CHAUT), enguanto “figuras” criadas pela aabedoria popular da tradicao sertaneja e utilizados para sacralizar (e¢, em certo sentido, com isso “domar") fatos que tém a forca irremitente da Natureza, como @ necessidade de sobreviver (comer e beber) © a prodigalidade de vida (saciar fome e sede) na beira do rio. Isso com certeza pesou na decis&o inabalével de ficar aonde parassem as aguas, espago que se esperava nfo fosse muito diferente da beira do rio, néo se retirar para o desconhecido, a caatinga ou outro lugar distante, que n&o oferecesse as vantagens da beira. N&o se pode avaliar, sem um estudo mais aprofundado, a veal influéncia exercida pelas antigas profecias de lideres de movimentos milenaristas, 4s vezes referidas pelos habitantes da regido. Canudos (1985-1987) no fora muito distante dali e Antonio Conselheiro havia previsto que o sertdo ia virar mar... Na regiso mesma do lago de Sobradinho, conservavam-se as lembrangas do movimento massacrado de Pau-de-Colher, em Casa Nova, liderado pelo beato Severino de Carvalho, logo apés o movimento do Caldsirao do beato José Lourengo, desbaratado em 1936-19387, ao Sul do Ceara, proximo ao Juazeiro do Padre Cicero, O beato Severino, ao ser espancado e expulso de Remanso, teria profetizado que a torre da 2 + COC OOOO Co OOCOCOCOO OOOO OOOOCOC OOO COCO EE is ain igreja-matriz daquela cidade ainda se tornaria “loca de surubim' ou “cama de peixe": P- Mes eles n&o tiraram (coisas e animais) por que? acreditavam que a barragem vinha? Carmina (Igarapé, Remanso) - KH porque muitos que nado acreditava que a Agua néo vinha, essa guantidade de d4gua, pensava que a agua que vinha af mesmo, era cheia do rio, mas muitos 36 ouvia fala de Sue_esse igreda de Noasa Senhora ia t8 uma caua ie reixe, agora quem nao [ininteligivel] ele disse que ja sé uma cama de peixe. brdé_quen pensasse em se defends da barrage wesmo. né, pore pra siuma_igreda ua cana de peixe, essa Agua podia vir pela uma barrage. E depois o rio ia vazd, ia pro caixdo, ia abri una cacimba no meio, pro pessoal bebé agua e 03 pobre 8 os pice matano os pobre por causa dessa agua. Vi muito minha avd fal isso. 2 Ae P- EF auita gente lembrava disso, quando ouvia falar da barrage, lembrava da histéria da igreja, da cama de pei; Carmina - Minha mae cans6 de fal4 isso pra ndis, meu avd tansm fal6 muito. P - Yooss acham oue ieto ajudou o povo a sain? Carmina - Para quem pensava. ajudava. P - Muitos pensavam? Carmina - Nao 6 todos que pensa o que a gente fala, (pensa} que nada. (fo MARTINS-COSTA (1989:294) também encontrou referéncia semelhante em Itapera, Sento Sé: esposa de seu Afro: [...] o conselheiro que passou en 32, 2m 32, chauava Severino de Carvalio, e ele dizia que a enchente de cima nao fazia medo; a que fazia medo era a enehente de baixo. Ele dizia: “olhe, meus filhos, no tenham medo da enchente de oima. tenhan sede da_enchente da eee Spphan-aiedo daenohente debe Lse—poraus acuchente de baixo, de Tais discursos fazem crer que estas profecias de alguma forma interferiram no modo de compreender e de se comportar dos camponeses face ao acontecimento da barragem que, de téo extraordinério, suscitava-lhes os pendores messianicos. Estes, ao que parece, tendiam mais para uma aceitacdo da barragem do que para o contrério e esteriam funcionando mais como reelaboragdes explicativas feitas no presente, com recurso A autoridade do “beato" exercida no passado como profecia, conservada ¢ adaptada OL POOLE dh LOOT OOO OL OO I IO EN 7 ye " 212 por velhos e novos. Sem maior investimento em pesquisa, nao vamos muito além das suposigées. E certo, porém, que a expressdo “Hesta~Fera” usada pelos camponeses para denominar a CHESF, que com 4gua © mundo da beira do rio, sugere que a interpretagao da bserragem esteve préxima de ser apocaliptica, concebendo-a como amincio do fim dos tempos, “Dia do Juizo” e instalago do “reino do 40", do mal total, o que néo aconteceria se ainda restasse alguém com autoridade para fazer justiga, garantir o bem, praticando-o. 5. (I)LEGITIMIDADE DA ATUACAO DOS “REPRESENTANTES" LOCAIS As situagdes criadas pela barragem, menos como “coisa de Deus" ou “coisa do diabo", foram encaradas © vividas pelos camponeses como “coisa dos home” mesmo. Os responséveis, enquanto identificados, tornavam-se os alvos de sentimentos de revolta e injustiga ou legitimidade e conformidade; eram encontrados ora nos politicos locais, ora no “governo”, ora nos técnicos e/ou na CHESF quase sempre. Os chefes e chefetes locais, as elites municipais, os politicos do lugar, eram tides e havidos como “representantes” dos interesses dos habitantes do povoado ou do municipio. Sua atuagdo deve ser entendida nos moldes da ordem legitima tradicional, fundada na reciprocideade das “relac$es de favor, tutela e dependéncia” CHAUI (1986:56). Como mediacdo politica dos fatos da barragem néo é algo que se deva tomar como dado de antem&o, eoue 213 mag posto diferentemente conforme o momento © o lugar, marcado pela ambiguidade percebida pelos camponeses tanto mais quanto mais explicita, ou melhor, explicitada pela situac&o excepeional. A importaéncia da atuagio das liderangeas politicas tradicionais na determinag#o dos rumos dos acontecimentos da barragem tem gerado controvéreia. Em geral, ela € superestimada, ao se considerar a posi¢do dos atingidos em nfo deixar a regido por n&o querer perder suas ligagdes e favores politicos (DUQUE cit. por SIGAUD, 1986:28) ou, ao contrario, em decidir deixar a regido para escapar do dominio de chefes locais e fazendeiros de quem se era dependente ou agregado (M.D. e 1I.G., técnicos da CHESF, em entrevista). I.G., um dos responsaveis pela “parte social” da instaleg&o do reservatério, contraditoriamente enfatiza a dominagao politica das familias locais como explicativa da “passividade assustadora” da populacdo, que “tendia a ficar perto da 4gua por causa da vinculagdo cultural” e “por seguir o oe fe politico". Freqlientemente, atribue-se A manipulagio politica destas liderancas o insucesso das tentativas da CHEST em deslocar a popula¢&o para longe das bordas do reservatério, porque isto tiraria deles eleitores e recursos. Em geral, mai do que a um extraordinaério poder destes chefes -~ 0 que, sem dtivida, também ocorria -- a superestima de sua atuacdo se deve & “crenga” na “incapacidade" inata dos camponeses, como j& analisamos. Por isso © por aquilo, na vie&o de M.D., que coordenou uma das “equines sociais" atuantes em Sobradinho, a ténica do comportamento dos camponeses teria sido a “outorga acs porta-vozes”, os membros da hierarquia detentora © do poder local: dos “cabos eleitorais", coer eerrereerrer LLL OY COM COCOFOCOOT OF OLS i | y | | 214 comerciantes, funciondérios de érgéos publicos, como o INCRA, o DERBA, até o prefeito municipal ¢ algum deputado. Ainda que nfo concordemos com esta visio de “outorga”, a intervencdo destes setores intermediérios ¢ das préprias oligarquias teve sua importancia e exige ser melhor compreendida. A forea dos grupos da politica tradicional néo era a mesma em toda a regido e interviu diferentemente em cada municipio. Esta diferenciagéo se deve ao grau variavel de articulac&o externa, com as foreas politicas hegeménias no Estado e na Federacfo, e interna, com os chefetes e “cabos eleitorsis’ dos povoados e distritos. Em Casa Nova, secularmente dominada pela familia Viana, a interferéncia foi explicita e mais influente, respaldada por uma rede de “representantes” locais preservada com habilidade e coersio, usando a méquina administrativa do Estado. ‘Em Sento $6, “feudo” da familia Sento Sé, em que as formas de dominagSo ainda arcaicas e os meios até violentos -~ da negac&o de servigos piblicos, como educagao @ satide, ao uso de Jagungos -~, o peso da atuag&o olig&rquica foi relativo, talvez porque Jairo Sento Sé, herdeiro do cld, neta do “coronel” Tonhé ¢ filho do “coronel” Deni Sento Sé, n&o tenha vesolvido o dilema ae ser também advogado da CHESF, e Sento Sé tenha tido o maior numero de camponeses expulsos (3.597 familias), a maioria “foreiros” e/ou posseiros (v. Anexo I) ~ Em Remanso, era maior o ntimero das fazend a3, muitas em condominio e 0 poder politico era mais partilhado. Talves porque OT EI ALI GING IOLA IAG IE LEP P EN Pf — 215 possuia uma “classe média” mais numerose ¢ influente, composta de comerciantes e médios proprietérios rurais, que conseguiram melhores indenizagées, comprovadas pelo ntimero de mansSes na nova cidade. Pil&o Arcado, 0 municipio mais isolado © de mais diffeil acesso teve um numero menor de atingidos, maioria de “foreiros"-pescadores espalhados pela longa exten ribeirinha do municipio. As liderangas locais beneficiaram-se com a relocagio e indenizag&o (Jo&o Ribeiro, prefeito nomeado, talvez seja o maior proprietério urbano da nova cidade) tiveram atuacdo relativamente fraca junto aos camponeses. Foram fracas no inicio, tanto a presenca de técnicos como a aplicayio de recursos do Estado na reconstrug&o da vida dos camponeses, intensificando-se depois com o Projeto Sobradinho. A agio dos chefes _— politicos, os — chamados “representantes”, 6 em geral vista pelos camponeses como negativa, descrita pelo que deviam fazer e n&o fizeram, faltando com a veciprocidade do sistema de favor, propria da Jlegitimidade tradicional. Porém, 6 a figura do prefeito a mais notada, o que introduz elementos de legitimidade legal, porquanto é rec: dever do poder piblico, por lei, “representar" © povo e defender seus interesses. Engquanto qualidades pessoais do “representante” intervém no exercicio da fungéo, acrescentam-se elementos da degitimidade carismética. A identificag’o do chefe tradicional com © legal e, eventualmente, o carism4tioo, reforga sua importancia e a repercusséo de sua auséncia (ou presenga). rere) cee coreg CFCC OC EF eee 0s graves problemas trazidos pela barragem, dada a sua magnitude, eram vistos pelos camponeses como algo sua capacidade e competénoia e como obrigag&o exclusiva do prefeito. eta idéia funciona no discurso camponés camo argumento para Justificar a falta de reacdo e acaba revelande a grande dependéneia que se tinha da mediag&e dog representantes", especialmente o prefeito: P - Ninguém chiou, néo? Deixaram fazer essa co sem reclamar? toda com vocés, Mario (Pau-a-Pique, Casa Nova) ~ Mas, como é gue a te podia Feolama. i o lama by rapa. que tinhs wma feneazinha. Néis ja faz8 o gue, polo anor de Deus iss podia fa nada. Diante da frustra¢do da expectativa, com a inagdo dos representantes, produz-se um disourso enviesado de condenacao, como este do Grupo de Pau-a-Pique, Casa Nova: phere fol um negécio mal determinado. Nun teve uma bessea por nds. ~ Hu sei que quem podia interessar era o represent, ante daqui. 0 Adolfo [A. Viana, dos lideres mais carismaticos ac regido]. Era o ~ Representante... nunca Pisouo pés aqui, no tempo que tava construinds este lugar agui, ele nunea pisou Pra disé “vou ao meno eid o lugar daqueles indiota, daqueles miserave dd, cuné que ta”, Nunea veio. Ss_devia apeld era pro 2 i vinha. P - E vocés fizeran algun tipo de press&o sobre ele? ~ N&o, o que néis ia fazé? Ninguém fez. Eu num Séioos otro, pelo menos eu nem fui 14. ~ Num foi ninguém 14 onde ta ele. ~ Atrasado, ninguém entendia nada... né, @uer Parecer-nos que a auto-imagem cultivada pelos camponeses de inépoia deles mesmos, de marasmo daquele “tempo = im cansado", n&o obstante ter seu fundo de verdade, § agui um recurso que visa, sobretudo, frisar a omissio dos “representantes” e sua responsabilidade pelos problemas sem solucSo. crrerrrrrrerrrrrrerrrereerrererrrerrrorrce cdg > ( A atuac&o que se esperava dos “represi estavam obrigados pela tradicao paternalista, era que, eles orientassem “sua gente” e controlassem o indenizagio, evitando a embromagao que houve. Isto pode aparecer no discurso de modo idealista, forjando uma ficcdo da atuac ideal que teria sido a do prefeito do municipio vizinho, o de Sento Sé (10), no caso desta fala: José Paulo (Igarapé, Remanso) - [. @ obrigacio dele [do prefeito de Remanso] era_chesé 2 orienrd tede unde, como a prefeite de Sento S$. Ele néo soube se orienta orienté os outros. O prefeito de Sento Sé chegou 14 no pessoal 14 pra indenizé a CHESF, Ele comupicoy todo mundo, 2ue _pinenim . Depois que sle dirigisse, dizendo “pode indenisé”, ai indenizava. Como de fato, © povo 1a tudo velo indenizd quando ele mandou, deu ordem © todo mundo e ele ainda mais disse, dava, deu a ordew e era pra ter recebido o dinheiro na hora e ndo tinha negécio de magada, como a gente daqui teve, néo. Lé quando acaba de indenigd, recebia tidio. o dipheiro e ainda recebia o material todinho, was aqui nunca teve prefeito. N&o 6 esta, porém, a opinidio de camponeses de Sento Sé que experimentaram a decepetio com o modo de agir do “representante” de 14, marcado, mais que pela omiss&o, pela conivéncia com a CHESF, exatamente o contrério do que imaginou o camponés de Remanso, para quem era o seu prefeito que se havia “vendido", razéo pela qual n&o teria tomado a defesa de “sua” gente: Milton (Pascoal, Sento Sé) ~ [...] agui, 0 senhor pode acredita que i 7 gquenos. Isso 6 gue eu acho impossivel, que eles hoje, desde os tempos atrds que meus velhos acoupanhava eles no voto e nds também, e hoje téo no poder ai mas é nie e nem por ninguém, Nunca foi home pré dizé, pré fala. O senhor pode acreditd, 0 dotd Jairo (deputado estadual, chefe politico da familia Sento Sé] uma ves cheg6, no dia da indenizagdo, no ameaco da indenizapdo, & fald pro pessoal, disse “olhe, quando o pessoal vié indenizé Suas coisas equi num pega barato nfo, peca um prego bom, um preso justo, dustamente 6 0 que vocés tém, sua casa, sua ropa, seus lameiros, num dé de graca nfo”. Mas, a_CHESF ndo é besta, contrat) ele pra. trabalhd pele CHESF, pawé ele. Disse “poucos dias eu td agui de CEO YC OE ECO CEO OEE OCFOOFLOOCOCE LOL 218 de novo mais vocés". Quando o home apresenté, o ficaro alegre pensando ele trazé uma boa esperanga praé eles. quando chegS disse “olhe, eu vim aqui somente di. pra vo. was CASAS 6 de lama, todo o dinheiro que o pessoal dé aqui, peguen”™ Ai o pessoal era s6 pegando, botava dois mil, que anava dois milh&o, dois e quinhentos, cinco mil, e era pe de forma que todo mundo pegS essa mixaria, viu. Por que representante do municfpic, devia [dizer] “4. omen pessoal voos. fem_aueindeniad juste”, acompanhd passo_a passa, se ele interessasse pejo povo,né. Mas nao feve nenhum. Ficd om, Solin al. Qsinhd dahe sq pessoal do interid ~nfo--tea exberiéncia e nunca teve, nunca soube nezdcio de barrage [...1. Nesta fala, 6 nitida a quebra ds tradic#o paternalista, primeiro, © chefe age como deveria, cumprindo sua obrigacio moral para com seus leais seguidores, que “acompanha cles no voto” (11); depois, por interesse particular, muda de comportamento e p. a defender a CHESF, contra “seu pessoal”, exatamente no ponto essencial, a indenizag&o que deveria repor os meios para garantir a seguranga primeira, a margem de subsisténcia. Em consequéncia, “ficd o pessoal solto ai", sem “representante” de fato, desinformado, inexperiente em “negécio de barrage”, 4 mercé da CHESS. Analisando este discurso, ocorre-nos que é fundamental ao modo de ser e pensar dos camponeses a dependéncia do “representante”. A condig&o de viver muito préximo & margem de subsisténcia faz dele o “pequeno” que nfo existe sem o “grande”, 0 “fraco” que necessita continuamente do “forte”, "o pessoal do interié que n&o tem experiéneia e nunca teve", gue parece nao poder viver fora da relacio de reciprocidade paternalista. Por isso, a desinformac&o que imperou 6 das principais reclamagdes dos camponeses, quando atribuida omissdo conivéncia dos “representantes”. A isso vinculam-se sentimentos dos mais explicitos de indignagéo moral, injustica e ilegitimidade. 0 desconhecer, o n&o saber, é 0 que mais se apresenta como causa da

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