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Florianópolis
2021
MARCELO AUGUSTO RIBEIRO ROCHA
Florianópolis
2021
MARCELO AUGUSTO RIBEIRO ROCHA
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Prof.ª e orientadora Priscila de Azambuja Tagliari, mestre
Universidade do Sul de Santa Catarina
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Prof.ª Nome do Professor, titulação
Universidade do Sul de Santa Catarina
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Prof. Nome do Professor, titulação
Universidade do Sul de Santa Catarina
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico e referencial conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Sul de
Santa Catarina, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de
todo e qualquer reflexo acerca deste Trabalho de Conclusão de Curso.
Estou ciente de que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em caso
de plágio comprovado do trabalho monográfico.
____________________________________
MARCELO AUGUSTO RIBEIRO ROCHA
Dedico este trabalho à minha família, que me
apoiou durante toda a trajetória pelo curso de
Direito. Em especial, à todas as pessoas que,
como eu, são apaixonadas pelo direito e pela
literatura, e seu poder de proporcionar
conhecimento de forma lúdica através de
gerações.
AGRADECIMENTOS
A obra literária Laranja Mecânica, escrita por Anthony Burgess em 1962, é um romance
distópico onde acompanhamos a trajetória de Alex de Large, um jovem líder de uma gangue
de infratores. O livro é focado numa sociedade onde a violência atinge proporções
gigantescas, explorando temas como a alienação e criminalidade presentes na sociedade.
Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é identificar as abordagens criminológicas trazidas
no livro Laranja Mecânica. Propõe-se, uma apresentação dos aspectos sociais, políticos e
econômicos da obra; o estudo das escolas e teorias criminológicas; e uma análise das
abordagens criminológicas trazidas pelo livro. Para tanto, utiliza-se do método de abordagem
dedutivo, observando uma análise de dados qualitativa e embasado em uma pesquisa
bibliográfica. Diante disso, a narrativa da obra é construída sobre uma trama enraizada em
violência, problemas sociais e crime organizado. São temáticas que se inter-relacionam com
as escolas e teorias criminológicas, em caráter multidisciplinar. É certo que as causas do crime
e da criminalidade não estão resolvidas, e é preciso perseverar na busca de novas teorias e
modelos penais mais justos e menos invasivos.
1 INTRODUÇÃO
A narrativa do livro Laranja Mecânica do escritor Anthony Burgess, 1962, elucida uma
trama enraizada em violência, problemas sociais e crime organizado. São temáticas atuais,
que evidenciam o que o livro e a Criminologia têm em comum, e destacam a contribuição do
tema escolhido para o debate acadêmico em caráter interdisciplinar. Além da obra ter sido
objeto de artigos científicos e monografias entre os acadêmicos, é objeto de análise para
profissionais das ciências sociais desde a década de 60. Assim, analisar uma obra tão
conceituada e destacar as abordagens da criminologia contidas nela, é de grande relevância
social, seja para as ciências sociais, para o meio acadêmico ou à sociedade em geral.
As problemáticas oriundas de fatos criminosos, criminalidade e dos processos de
criminalização são de grande relevância para as ciências criminais, e mais especificamente, à
criminologia.
A obra Laranja Mecânica apresenta sujeitos desviantes, que se recusam a viver pelas
normas impostas pela sociedade e sentem prazer em infringí-las e negá-las. A respeito desse
cenário, as escolas, teorias e correntes criminológicas abordam as questões criminais e sociais,
e, em conformidade com a temática do livro, buscam a compreensão acerca do delinquente, o
crime e a criminalidade, bem como seu reflexo social.
Diante disso, o livro Laranja Mecânica é focado numa sociedade onde a violência
atinge proporções gigantescas em meio ao governo capitalista e totalitário, um ícone literário
acerca da violência, alienação e criminalidade presentes na sociedade. Portanto, em
conformidade com os questionamentos levantados pela obra e pela criminologia, surge a
questão: quais as abordagens criminológicas trazidas no livro Laranja Mecânica, de Anthony
Burgess (1962)?
O objetivo geral desta monografia é pesquisar as abordagens criminológicas trazidas
no livro. Para tanto, tem-se como objetivos específicos a apresentação do livro Laranja
Mecânica (1962), escrito por Anthony Burgess, e suas circunstâncias sociais, políticas e
econômicas; seguido de um estudo sobre as Escolas e teorias criminológicas; e, por fim, uma
análise das abordagens criminológicas trazidas no livro.
Para esta monografia será utilizado o Método de Abordagem Dedutivo. Assim, se
partirá da premissa geral, que será a definição dos aspectos sociais, políticos e econômicos, e
das teorias criminalísticas, frente à narrativa do livro Laranja Mecânica, para se produzir
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conclusões específicas e lógicas. Logo, será embasada na técnica bibliográfica. Desta forma, o
estudo terá um referencial teórico extenso, uma busca minuciosa em todas as fontes
interdisciplinares, que conversam entre si sobre as escolas e as teorias criminológicas, bem
como os novos movimentos de política criminal. Juntamente, a leitura e a interpretação do
conhecimento obtido sob o enfoque do enredo do livro Laranja Mecânica, de Anthony
Burgess.
O presente trabalho foi estruturado em cinco seções: introdução, três capítulos de
desenvolvimento e conclusão. O segundo capítulo reproduz uma análise da narrativa do livro,
selecionando passagens que possuem relação com as diversas áreas da filosofia, sociologia,
psicologia e direito penal. Dessa forma, apresenta os aspectos sociais, políticos e econômicos
que a obra desenvolve dentro do seu próprio universo fictício.
O terceiro capítulo apresenta a base teórica necessária acerca das escolas
criminológicas, passando pelo direito penal e pelas políticas criminais. Para, assim,
estabelecer a conexão necessária da obra literária com os teóricos da criminologia. O estudo
das escolas criminológicas se fez essencial, para conseguir uma base concreta para a análise
final.
No quarto capítulo, foram identificadas as abordagens criminológicas que a narrativa
da obra literária, embora fictícia, expõe. Apresentando as passagens com os principais
acontecimentos que encontram respaldo nas teorias e nas escolas de criminologia. Sejam estes
de maior ou menor impacto na trama, o intuito foi de explicá-los pelo viés da criminologia, do
direito penal e das políticas criminais.
Por fim, se encerra com a conclusão, que discorre numa reflexão sobre as instituições
governamentais que se usam de ferramentas abusivas e violentas na tentativa de repressão e
prevenção dos crimes. Bem como sobre o desrespeito à autonomia e ao livre-arbítrio do
indivíduo e a estigmatização dos sujeitos à sombra da sociedade, do sistema penal e da
ideologia dominante.
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O jovem Alex é filho único de uma família comum londrina, de classe baixa e
cotidiano ordinário. Vive em um bairro abandonado pelo governo, em um conjunto
habitacional chamado Flatbloco Municipal 18A, um aglomerado de apartamentos minúsculos,
com lixo acumulado ao seu redor, nenhum resquício de natureza verde e viciados pelos
corredores.
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O contexto do livro traz uma sociedade onde a ordem e a submissão ao Estado são
fatores determinantes para se viver e buscar a felicidade. Os pais de Alex seguem à risca o seu
papel de trabalhadores e consumidores, sendo, grande parte do tempo, completamente
alienados e sem senso crítico.
A sociedade parte da suposição de que a falta de limites eficazes faz a vida “detestável,
brutal e curta”, e a juventude, se não forçadamente oprimida, é considerada uma besta e não
um indivíduo livre. Essa visão encontra similaridade com os pensamentos contratualistas do
estado moderno e pela filosofia social desenvolvida por Émile Durkheim, na qual a norma -
seguida de sanções punitivas - verdadeiramente liberta os homens da escravidão de sua
natureza pré-social ou associal. O indivíduo, então, se submete à sociedade e essa submissão é
a condição de sua libertação (BAUMAN, 2001, p. 24-25).
Nesse sentido, há uma cultura tradicional, dominante e vinculada à soberania estatal,
mas ela não alcança os jovens, ou não tenta alcançá-los. Os adultos somente vivem para o
trabalho e para o consumo. Em analogia ao pensamento de Foucault (1999, p. 270-271), que
afirma que o trabalho dentro da prisão sujeita os corpos a movimentos regulares, exclui a
agitação e a distração, impõe uma hierarquia e uma vigilância que serão ainda mais bem
aceitas. Em outras palavras, tem função de adestramento e disciplinar, e esse conceito se
encaixa perfeitamente no contexto da obra, dentro ou fora da prisão.
Os jovens são rebeldes, sem valores morais e contra o que se rebelar, e buscam nas
aventuras noturnas uma forma de expressar sua própria individualidade. Como Bauman
(2001, p. 27) sintetiza:
O indivíduo já ganhou toda a liberdade com que poderia sonhar e que seria razoável
esperar; as instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa
individual o cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais
contra os quais se rebelar estão em falta.
A frase de abertura do livro - e que é usada pelo protagonista para iniciar cada parte da
obra - “o que é que vai ser, hein?”, marca a rotina de Alex como um círculo vicioso, uma
sucessão de acontecimentos e consequências, geralmente ininterrupta e infinita, que sempre
resulta numa situação que parece sem saída ou simplesmente incompreensível (SOUZA;
WOLTMANN, 2013, p. 2-3).
O contexto da obra denuncia o estado latente e crescente da delinquência juvenil. Por
isso, as gangues são parte importante da narrativa, utilizando-se a estética e comportamentos
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das gangues no livro como alusão aos grupos skinheads, punks, e à utilização de drogas
alucinógenas, como em movimentos da década de 60 e 70. A vestimenta desses grupos é um
forte indício de exclusão da sociedade e de uma nova identidade compartilhada: roupas bem
passadas, cabelos curtos, coturnos, suspensórios. Em paralelo, a gangue de Alex veste um
uniforme preto (há uma constante preocupação de Alex quanto ao asseio dos trajes de seus
companheiros, comportamento típico dos skinheads tradicionais), com suspensórios e
coturnos militares, referência ao grupo supracitado. Ainda, usam chapéus coco, associáveis
ironicamente às autoridades políticas, cujo papel no enredo é de dominação e repressão
(VALLE, 2016, p. 4).
Observamos que o mundo de Alex é cercado por dominação, violência e desprezo. O
poder advindo da violência foi essencial para a construção da própria identidade de Alex, que
por vezes precisou lembrar aos seus companheiros de que ele era o líder. Quando tinham
algum conflito interno, era a violência que o decidia. O medo o mantinha no poder de seu
quarteto e fazia suas palavras serem absolutas e suas ideias as únicas alternativas existentes
(BURGESS, 2004, p. 56-57).
Essa realidade encontra respaldo nos pensamentos do filósofo Thomas Hobbes (1997,
p. 45), que descreve os homens como inimigos uns dos outros, em estado natural de guerra,
incapazes de encontrar o respeito sem o papel do Estado soberano. Ele explica que todos os
homens vivem em discórdia, pois, primeiro, buscam competir entre si, atacando uns aos
outros tendo em vista o lucro; em segundo, a segurança para si e para os que são seus
subordinados; e por fim, a reputação.
Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas; os segundos,
para defendê-los; e os terceiros por futilidades, mediante qualquer sinal de desprezo, quer seja
diretamente dirigido a ele, a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos,
sua nação, sua profissão ou seu nome (HOBBES, 1997, p. 46).
O estado de discórdia que Alex e sua gangue desfrutam é exatamente o que fulmina
sua prisão. Traído por seus companheiros, é encontrado pelas autoridades e passa a ser
julgado pelas instituições extensivamente controladas pelo governo, sobretudo por uso da
opressão. De tal forma, quando Alex é preso, a violência utilizada pela polícia, através do
espancamento, é elucidativa do nível de corrupção a que o próprio Estado havia chegado
(ROBERTO, 2008, p. 4).
Durante o espancamento de Alex, logo ao chegar na delegacia, um dos policiais
16
exprime a seguinte frase: “violência gera violência” (2004, p. 72). Como descreve Maffesoli
(1987 apud BELO, 2001, p. 9):
Curioso, neste ponto, é que a violência que Alex protagoniza, volta-se contra ele
próprio, a demonstrar que tal ímpeto é intrínseco à natureza humana, presente mesmo
naqueles considerados bons cidadãos.
Durante toda a ambiência na prisão, Alex foi resumido a responder por um número,
6655321, que representava a sua identificação como presidiário. É uma clara referência ao
processo de desumanização do preso, que é despersonificado e transformado em apenas
números. Esse processo aconteceu na realidade, quando os judeus tiveram seus nomes
substituídos por números nos campos de concentração nazistas, durante a Segunda Guerra
Mundial (PEREIRA, 2019, p. 54).
Rodotá apud Cavalcanti e Xerez (2020, p. 12-13) recorda que na época nazista, eles
tinham a ideia do homem de vidro, que converte-se na pretensão do Estado de conhecer tudo,
até os aspectos mais íntimos, da vida dos cidadãos, transformando em suspeitos aqueles que
pretendiam salvaguardar a vida privada, por exemplo.
No mesmo sentido, destaca-se a perda de valores imprescindíveis, como liberdade e
privacidade, diante do ocorrido no atentado terrorista em 11 de setembro. Os episódios de
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terrorismo são marcados pelo posicionamento do Estado, que justifica o reforço à segurança
nacional em detrimento da minoração da privacidade e da liberdade (CAVALCANTI;
XEREZ, 2020, p. 12-13).
Enjaulado na Prisão Estadual 84F, com celas planejadas para apenas 3 prisioneiros,
mas estavam em 6, e esse número poderia aumentar. É claro que a violência era frequente
dentro do presídio, seja por parte dos guardas ou entre os próprios prisioneiros. Vemos que os
núcleos e subculturas - antes observados fora da instituição - também existem dentro do
sistema prisional, acompanhados da violência, que marca a opressão da instituição.
Oliveira (2003 apud PAULA; TAGLIARI, 2014, p. 11), destaca que:
Cabe destacar que Alex, ao ser preso e espancado, tinha 15 anos de idade. Apesar de
ter sido inúmeras vezes enviado à casa correcional, seu último crime havia se consumado em
homicídio - o que o levou a ser julgado por um júri e sentenciado a 14 anos de prisão
(BURGESS, 2004, p. 77).
Segundo Becker (2009), estudos da delinquência juvenil deixam claro que meninos de
áreas de classe média, quando detidos, não chegam tão longe no processo legal como os
meninos de bairros miseráveis.
O menino de classe média têm menos probabilidade, quando apanhado pela polícia,
de ser levado à delegacia; menos probabilidade, quando levado à delegacia, de ser
autuado; e é extremamente improvável que seja condenado e sentenciado. Essa
variação ocorre ainda que a infração original da norma seja a mesma nos dois casos.
De maneira semelhante, a lei é diferencialmente aplicada a negros e brancos
(BECKER, 2009, p. 18).
Ao analisarmos a posição dos policiais, do ponto de vista de que eles são os emissários
do poder punitivo e do controle do Estado, cabe destacar a ideia do impositor, trazida por
Becker (2009). Os policiais, naquele contexto, protegem os interesses, ou melhor, as regras do
grupo dominante. Não estão interessados no conteúdo da regra como tal, mas somente no fato
de que a existência da regra lhe fornece um emprego, uma profissão e uma raison d’être
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Nesse sentido, Becker (2009) traz um estudo de policiais numa pequena cidade, feito
por William A. Westley, em seu livro Violence and the Police (Violência e Polícia), e fornece
um bom exemplo desse fenômeno. Westley, em sua entrevista, perguntou aos policiais:
“Quando acha que um policial tem razão para bater num sujeito?” E constatou que “[...] pelo
menos 37% dos homens acreditavam que era legítimo usar violência para impor respeito [...].”
Ele faz algumas citações nas suas entrevistas:
Bom, há casos. Por exemplo, quando você detém um sujeito para um interrogatório
de rotina, digamos um "espertinho", ele começa a responder e a lhe dizer que você
não vale nada e esse tipo de coisa. Você sabe que pode prender um homem sob
acusação de perturbação da ordem, mas essa acusação quase nunca se sustenta.
Então o que você faz num caso desses é provocar o cara até que ele lance um
comentário que lhe permita esbofeteá-lo justificadamente. Depois, se ele reagir, você
pode dizer que resistiu à prisão (WESTLEY apud BECKER, 2009, p. 83).
Nesse ponto, é possível averiguar o papel que a religião tinha dentro da penitenciária,
e como Alex (ou qualquer outro capaz) utilizava-a como uma ferramenta para obter regalias e
a remissão de sua pena.
O esperto Alex começa a demonstrar aparente interesse pelos ensinamentos da Bíblia,
como modo de melhor sobrevivência na prisão. De fato, o que ele deseja é a liberdade para
voltar à vida de “ultraviolência”. É aí que o próprio padre o alerta para a possibilidade de
abreviar seu tempo de cárcere: a submissão a um experimento estatal que consistia, em
resumo, a uma tortura por imagens.
Segundo a ciência estatal, a exposição do prisioneiro a cenas de violência, conjugada
com aplicação de medicamentos que causavam mal-estar, condicionaria o organismo para
instintivamente abdicar de impulsos violentos, como medida de proteção ao próprio
organismo condicionado (CAVALCANTI; XEREZ, 2020, p. 4).
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Foucault, em Vigiar e Punir (1999, p. 14), explica que a punição restritiva de liberdade
através da prisão eximia a participação dos juízes como castigadores de corpos, abandonando
o suplício, restringindo a correção para a função administrativa: “[...] o essencial é procurar
corrigir, reeducar, ‘curar’; uma técnica de aperfeiçoamento recalca, na pena, a estrita expiação
do mal, e liberta os magistrados do vil ofício de castigadores.” Logo, o sistema judiciário, ao
não castigar publicamente os corpos ou tortura-los, consegue se posicionar como uma
entidade justa e necessária para o bem-estar da sociedade.
Conseguimos perceber que Alex é tratado como um objeto passível de ser punido e, ao
mesmo tempo, tratado e ressocializado. É inevitável fazermos uma aproximação com o texto
de Foucault, uma das teses que está presente em Vigiar e Punir trata de uma reconfiguração do
papel do corpo numa sociedade que, em meados do século XVIII, passava de punitiva para
disciplinadora e coercitiva.
Conforme Foucault (1999, p. 129), “[...] no antigo sistema, o corpo dos condenados se
tornava coisa do rei, sobre a qual o soberano imprimia sua marca e deixava cair os efeitos de
seu poder. Agora, ele será antes um bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil.”
O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito
de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva à
existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o
corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do
corpo (FOUCAULT, 1999, p. 33).
Quando estava preso, Alex tinha o seu corpo como uma posse do Estado, ele era um
objeto passível de transformação, e, mesmo após passar pela fase de tratamento, deveria estar
sob constante vigilância. A sua liberdade era vigiada, delimitada, condicionada, pelo saber
punitivo imposto pela distopia que Burgess criou para o seu livro. Assim, o que se deve punir
é a alma, transformando o corpo do alvo em um elemento útil, e que deve estar sujeito ao
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de que o homem não governa sua alma e não é senhor do seu destino, podendo ser controlado
por forças ambientais fora de sua percepção e sem o seu consentimento (MORAES, 2010, p.
15-16).
Como explica Moraes (2010, p. 17-18), a partir das ideias do behaviorismo
skinneriano tem-se a aplicação da “tecnologia científica” ao campo da modificação do
comportamento, notadamente aplicado a criminosos presos. Técnicas de modificação do
comportamento que agem diretamente sobre o sistema nervoso, para tratamento de criminosos
violentos e utilizando drogas. Essas técnicas não exigem participação ativa do alvo
controlado, visto que buscam violar a própria vontade dele. Entre essas técnicas destacam-se a
psicocirurgia, o eletrochoque, a castração química do sujeito, normalmente indicadas para
criminosos sexuais; o uso de tranquilizante que provoca náusea crescente utilizado na terapia
aversiva, entre outras.
Tomando a obra de Burgess como uma projeção da técnica behaviorista, destaca-se
que a ética objetivista não julgaria correto, para um ser dotado de razão, submeter-se ao
tratamento. Afinal, Alex, como ser humano, não pode controlar o seu corpo, ainda que não
haja uma intenção em parar de cometer os atos violentos, ignorando a posição de indivíduo
que toma decisões e comanda sua própria vida, optando por um vetor externo impeditivo,
reduzindo-se à uma máquina quebrada, sem autonomia. A ética objetivista não aprova a teoria
behaviorista pois reduz os homens a um gado que será conduzido a qualquer caminho. O
determinismo é rechaçado, pois as implicações morais se refletirão na política, abrindo
caminho como justificador teórico de sistemas autoritários. Não é por menos razões que, na
obra clássica Laranja Mecânica, é apresentado, concomitante à história do protagonista, um
governo que já se prepara para algum enfrentamento de ordem política e que o tratamento é
um teste (RAUÉDYS, 2019).
Na obra, Alex não foi apenas condicionado, reformado, obrigado a se tornar uma
pessoa com aversão a condutas criminosas. Ele teve seu direito de arbítrio, de escolha, de
liberdade, destruído pelo Estado, o qual, infelizmente ainda nos dias atuais, continua a
procurar filosofias de controle da conduta humana, sem considerar que os limites e o nível de
intervenção da esfera moral dos cidadãos vão além da legislação, da urgência e da
necessidade de segurança coletiva. (CAVALCANTI; XEREZ, 2020, p. 11-15).
Sendo assim, nota-se que, na temática do livro aqui analisado, o personagem aceita se
submeter ao programa de recuperação proposto pelo Estado, simplesmente porque deseja se
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livrar o mais rápido possível da prisão. Em nenhum momento ele demonstra estar arrependido
de seus atos ou preocupado com a reprovação moral daquilo que cometeu. Por outro lado, não
se observa por parte do Estado qualquer preocupação com o arbítrio do personagem, o que
parece violar o princípio fundamental do direito.
Após ser submetido ao tratamento, Alex perde sua habilidade de escolha, sua
autonomia como indivíduo. Sabemos que para Kant (2007), a autonomia individual é
fundamento do Direito; assim, qualquer intervenção na autonomia, no processo de escolha do
indivíduo, é ilegítima - ou deveria ser.
Para Kant (2007, p. 76-78), a autonomia é o fundamento da dignidade da natureza
humana e de toda a natureza racional. Se não há autonomia, não há de se falar em moralidade,
já que toda escolha deve ser feita com base na relação das ações com a lei. Assim, as ações
com base na autonomia da pessoa podem ser legais ou ilegais quando confrontadas com as
máximas produzidas pelo Estado. Se não for possível escolher, como é possível se falar em
moral? Incapaz de exercer sua autonomia de escolha, Alex foi privado de um dos princípios
norteadores de toda a sociedade e do direito à dignidade.
Nesse contexto, Laranja Mecânica expõe que as leis parecem não resolver os
problemas da então alienada sociedade, o governo busca novas formas de reintegrar o homem
“mau”, moldando-o na sociedade, transformando-o em um indivíduo “bom” – para isso
recorre a mecanismos técnicos e psicológicos, testados, por exemplo, na indução do
comportamento de Alex: o novo indivíduo daí resultante é como uma “laranja mecânica”, que
age de acordo com o que lhe é condicionado, e não de acordo com seus anseios pessoais. A
ficção retrata muito bem o caráter de dominação presente na história da humanidade
(SOUZA; WOLTMANN, 2013, p. 5).
23
3.1 DEFINIÇÃO
A criminologia pode ser definida como uma ciência empírica e interdisciplinar, que se
ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social, contemplando
o crime como problema individual e social (MOLINA apud SHECAIRA, 2014, p. 44).
Para Nucci (2017, p. 74), a criminologia é o estudo do crime como fenômeno social e
do criminoso, como agente do ato ilícito, em visão ampla e aberta, não se cingindo à análise
da norma penal e seus efeitos, mas sobretudo às causas que levam à delinquência,
possibilitando, pois, o aperfeiçoamento dogmático do sistema penal. Como Shecaira (ano, p.
46) assevera, o direito penal, a criminologia e a política criminal são os três pilares das
ciências criminais.
Etimologicamente, criminologia vem do latim crimino (crime) e do grego logos
(estudo, tratado), significando o “estudo do crime”. Entretanto, Penteado Filho (2020) explica
que “[...] a criminologia não estuda apenas o crime, mas também as circunstâncias sociais, a
vítima, o criminoso, o prognóstico delitivo etc.”
Nesse sentido, a Criminologia, como uma ciência criminal, se ocupa do estudo das
teorias do direito criminal, das causas do fenômeno criminal, da sua prevenção e do controle
de sua incidência, tendo um caráter interdisciplinar e abrangente de outras disciplinas e
24
3.2 ESCOLAS
delinquente e sua conduta. Sobretudo, a pena deveria produzir a impressão de ser eficaz sobre
o espírito dos homens, e, ao mesmo tempo, ser menos cruel para o corpo do delinquente
(BITENCOURT, 2020, p. 203-205).
Nesse sentido, durante o século 18 e 19 surgiram inúmeras correntes estruturadas e
com princípios fundamentais e que seriam conhecidas como Escolas Criminológicas, que
estudariam a legitimidade do direito de punir, a natureza do delito e as formas de sanções
aplicadas a cada um deles (BITENCOURT apud PENTEADO FILHO, 2020, p. 31).
Assim, Beccaria acreditava que o direito penal deveria pressupor a igualdade absoluta
entre todos os homens. Logo, sob essa perspectiva, se questionava a imposição da pena, os
alcances do livre-arbítrio, e o problema das relações de dominação que podiam refletir uma
determinada estrutura jurídica. Além disso, mencionando os ideais de um contrato social em
sua obra, sob o pressuposto de que o delinquente rompeu o pacto social, cujos termos supõe-
se que tenha aceito, considera-se que se converteu em inimigo da sociedade. Essa situação o
levaria a suportar o castigo que lhe seria imposto (BITENCOURT, 2020, p. 240-241).
A burguesia procurava afastar o arbítrio e a opressão do Estado soberano com a
manifestação desses seus representantes por meio da junção das duas teorias, que, embora
distintas, igualavam-se no fundamental, isto é, a existência de um sistema de normas anterior
e superior ao Estado, em oposição à tirania e violência reinantes (PENTEADO FILHO, 2020,
p. 32-33).
Para tanto, a Escola Clássica consagrou o livre-arbítrio do ser humano para o
cometimento do crime; pregou a proporcionalidade entre delito e punição; afastou-se da pena
de morte e outras penas cruéis; e trouxe a preocupação com a racionalização na aplicação
das penas, combatendo-se o reinante arbítrio judiciário (NUCCI, 2017, p. 107).
A dogmática trazida pela contribuição de Francesco Carrara trouxe o pensamento de
que o crime não é um ente de fato, mas um ente jurídico, não sendo apenas uma ação por si
só, e sim uma infração. Como um ente jurídico, o crime tem sua essência constituída na
violação de um direito. Tal pensamento é norteado pelo contratualismo, em que o crime, como
a violação de um direito, é uma exigência racional e não de uma norma positivada como
explica (SHECAIRA, 2014, p. 90).
Ainda, o contratualismo inspirava a ideia de que cada cidadão teria renunciado a uma
porção de liberdade para delegar ao Estado a tarefa de punir, nos limites da necessária defesa
social. Logo, a pena ganhou um contorno de utilidade, destinada a prevenir delitos, e não
simplesmente castigar (NUCCI, 2017, p. 107-108).
Em síntese, os princípios fundamentais da Escola Clássica são:
[...]
a) o crime é um ente jurídico; não é uma ação, mas sim uma infração (Carrara);
b) a punibilidade deve ser baseada no livre-arbítrio;
c) a pena deve ter nítido caráter de retribuição pela culpa moral do delinquente
(maldade), de modo a prevenir o delito com certeza rapidez e severidade e a
27
A Escola Positiva, por sua vez, observando-se as taxas de reincidência, fez com que os
cientistas criminais transferissem o cerne da questão do próprio sistema legal para as
motivações do crime. A partir daí, privando pela tipificação e criação de normas gerais que
explicassem o crime (COIMBRA; SANTOS, 2016).
Diante disso, podemos citar os principais fatores que explicam o surgimento da Escola
Positiva, nas palavras de Bitencourt (2020, p. 250-251), são os seguintes:
[...]
a) a ineficácia das concepções clássicas relativamente à diminuição da
criminalidade;
b) o descrédito das doutrinas espiritualistas e metafísicas e a difusão da filosofia
positivista;
c) a aplicação dos métodos de observação ao estudo do homem, especialmente em
relação ao aspecto psíquico;
d) os novos estudos estatísticos realizados pelas ciências sociais (Quetelet e Guerri)
permitiram a comprovação de certa regularidade e uniformidade nos fenômenos
sociais, incluída a criminalidade;
e) as novas ideologias políticas que pretendiam que o Estado assumisse uma função
positiva na realização nos fins sociais, mas, ao mesmo tempo, entendiam que o
Estado tinha ido longe demais na proteção dos direitos individuais, sacrificando os
direitos coletivos
estava no homem e que se revelava como degeneração deste. Seus conceitos de temibilidade
ou periculosidade seriam o propulsor do delinquente e a porção de maldade que deve se temer
em face deste. Por conseguinte, fixou a necessidade de conceber outra forma de intervenção
penal – a medida de segurança (NUCCI, 2017, p. 111).
A grande participação de Garofalo foi em conceber a noção de delito natural (violação
dos sentimentos altruísticos de piedade e probidade). Assim, poderia classificar os criminosos
em natos (instintivos), fortuitos (de ocasião), ou pelo defeito moral especial (assassinos,
violentos, ímprobos e cínicos), defendendo a pena de morte aos sujeitos classificados como
instintivos ou pelo impacto que seu crime poderia ter causado para a sociedade PENTEADO
FILHO, 2020, p. 37-38).
Enrico Ferri, por sua vez, considerado uma das principais figuras da sociologia
jurídica, afirmava que o ser humano seria responsável pelos danos causados simplesmente
porque vivia em sociedade. Ele negou terminantemente o livre-arbítrio, legitimado pela escola
clássica. Logo, também tinha como fundamento basilar de seu pensamento, a punição em prol
unicamente da defesa social. Assim, a finalidade da pena consubstancia-se, primordialmente,
na prevenção a novos crimes. Não aceitando o livre-arbítrio, pois sua aceitação importaria na
negação absurda das duas leis científicas fundamentais: a lei da conservação da força e a lei
da causalidade natural (NUCCI, 2017, p. 111).
A Escola de Chicago encara o fenômeno do crime com base na ecologia, que analisa a
arquitetura da cidade como formadora do comportamento delinquente. A obra fundamental
para a compreensão da distribuição ecológica do crime da cidade de Chicago é Delinquency
Areas (Áreas de Delinquência), de Clifford Shaw, datada de 1929. Nessa obra é sistematizado
dados oficiais concernentes à delinquência juvenil em Chicago por décadas. Seu objetivo
inicial era observar os locais urbanos onde nascia a criminalidade ao longo dos anos, de modo
a verificar se existiriam as chamadas áreas criminais (guetos, favelas, periferias).
Primeiramente, foi realizada a coleta de dados agrupados de acordo com determinados
períodos históricos ou conforme o estatuto jurídico daqueles que compunham as amostras
coletadas, variando de pequenos delinquentes a criminosos adultos (GONZAGA, 2020, p. 92-
93).
Zaffaroni (2013, p. 122) cita o sociólogo americano Charles Cooley por ser
responsável por alguns conceitos que até hoje vigoram, como a distinção entre grupos
primários e secundários. Os grupos primários seriam os do período de infância e de formação
do indivíduo, da família, etc., ao passo que os secundários eram as instituições. A diferença
entre eles centra-se no tratamento, que nos grupos primários é personalizado e, nos
secundários, despersonalizado.
O crescimento desordenado da cidade de Chicago progredia no chamado movimento
circular centrífugo (do centro para periferia), espalhando, além dos graves problemas sociais,
econômicos, culturais, um ambiente favorável à instalação da criminalidade. Nesse sentido, o
processo de secularização após o movimento da revolução industrial trouxe uma aproximação
entre as elites e a classe baixa, sobretudo por uma matriz de pensamento, formada na
Universidade de Chicago, que se denominou teoria da ecologia criminal ou desorganização
social (PENTEADO FILHO, 2020, p. 80).
Esse círculo em expansão de criminalidade é facilmente perceptível quando se tomam
31
por base três círculos concêntricos (esse fenômeno também pode ser chamado de teoria das
zonas concêntricas), em que o primeiro deles representa o centro cívico (instituições do
Estado) com toda a proteção estatal tradicional, sendo zero a estatística de crimes. O segundo
círculo representa os subúrbios que, na visão norte-americana, seria o local em que as pessoas
que trabalham no centro cívico residem. Nesse local, o índice de criminalidade é diferente de
zero, mas nada tão expressivo. No segundo círculo, alguns delitos são praticados, como
furtos, danos e outros de natureza patrimonial, mas são de menor ofensividade. Já no terceiro
círculo existente, a Escola de Chicago destacou o grande problema social da criminalidade,
consubstanciado nos famosos guetos, periferias ou favelas, em que a presença estatal é
inexistente e, por esse motivo, os crimes são praticados de forma livre e sem repressão
policial. Tudo isso por falta de preocupação social do Estado em tais regiões (GONZAGA,
2018, p. 92-93).
Na estrutura ecológica, a cidade é o ponto de partida. Assim, é imprescindível que a
metodologia parta da colocação dos resultados da criminalidade sobre o mapa da cidade. Os
meios diferentes de adaptação das pessoas às cidades acabam por propiciar a mesma
consequência: implicação moral e social num processo de interação na cidade. Logo, com o
crescimento das cidades começa a surgir uma relação de aproximação entre as pessoas, com a
vizinhança se conhecendo. Passa a existir, por conseguinte, uma verdadeira identidade dos
quarteirões ou bairros (PENTEADO FILHO, 2020, p. 80-81).
Sustenta-se que a criminalização primária produz a etiqueta ou rótulo, que por sua
vez produz a criminalização secundária (reincidência). A etiqueta ou rótulo
(materializados em atestado de antecedentes, folha corrida criminal, divulgação de
jornais sensacionalistas etc.) acaba por impregnar o indivíduo, causando a
expectativa social de que a conduta venha a ser praticada, perpetuando o
comportamento delinquente e aproximando os indivíduos rotulados uns dos outros.
Uma vez condenado, o indivíduo ingressa numa “instituição” (presídio), que gerará
um processo institucionalizador, com seu afastamento da sociedade, rotinas do
cárcere etc. (PENTEADO FILHO, 2020, p. 92).
A Criminologia Crítica buscou seu ponto fundamental nas ideias de Karl Marx de que
o crime e o criminoso surgem diante da interação entre dois grupos bem antagônicos, quais
sejam, os pobres e os ricos. A ideia de luta de classes tornou-se o foco de estudo dos teóricos
desta escola, uma vez que a classe dominante quer impor o seu modo de pensar e produzir o
capital em detrimento da classe subalterna. Portanto, essa teoria, de origem marxista, entende
34
que a realidade não é neutra, de modo que existe um processo de estigmatização da população
marginalizada, principalmente da classe trabalhadora, alvo preferencial do sistema punitivo,
visando criar o temor da criminalização do colarinho-azul e a consequente prisão para manter
a estabilidade da produção e da ordem social (GONZAGA, 2018, p. 145).
Deve ser destacado, desde já, que a Escola Crítica ou simplesmente Criminologia
Crítica é exemplo de inserção das teorias do conflito. Pela análise que será feita
adiante, a ideia de luta de classes (ricos e pobres) demonstra claramente que há uma
busca de subjugação de uma classe por outra, o que gera o conflito social, ensejando
a colocação desta escola nas hipóteses de teorias do conflito. A abordagem de
conflito fica mais clara quando se percebe que o Direito Penal constitui uma forma
de dominação social da elite para proteger os seus interesses, em detrimento da
classe excluída socialmente (GONZAGA, 2018, p. 145-146).
[...] de que o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta
ou uma entidade ontológica pré-constituída à reação social e penal, mas uma
qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos
processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e
seleção (ANDRADE apud PAULA; TAGLIARI, 2015, p. 28).
A Política Criminal foi fundada em 1889, buscando providência de ordem prática para
beneficiar a prevenção e a repressão ao crime. Graças a esse movimento, foi possível a adoção
na legislação positiva da medida de segurança, do conceito de periculosidade ou a tese do
estado perigoso e do próprio tratamento tutelar dos menores delinquentes, do livramento
condicional, do sursis, etc. (FERNANDES; FERNANDES, 2010, p. 408-410).
Conforme explicam Fernandes e Fernandes (2010), a política criminal não é
efetivamente pertencente à Criminologia, sendo mais um ramo do Direito Penal. Porém, é
estudada em quase todos os compêndios de ciência criminológica, em face das íntimas
relações que mantém com essa ciência. Assim, empresta os subsídios da investigação e das
experiências, sobretudo de dois dos principais ramos da Criminologia: Estatística Criminal e
da Antropologia Criminal. De posse desses dados, a política criminal, como ciência, busca
ofertar ao Estado uma estratégia de prevenção e repressão à criminalidade mais efetiva.
Atualmente, com a crescente criminalidade em nossa sociedade, a política criminal
insurge-se como uma busca por intervenção estatal que objetive o combate à violência e
estabeleça a segurança social (PAULA; TAGLIARI, 2015).
Nas palavras de Zaffaroni, (1999 apud PAULA; TAGLIARI, 2015):
[…] a política criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que
devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal
tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos.
Hulsman, no seu livro Penas Perdidas. Na obra, o autor atesta que as sanções criminais não
servem para ressocializar ninguém, mas apenas para impor um castigo inútil e que deturpa
ainda mais o criminoso. As penas são métodos de castigo e vingança por parte do Estado
(GONZAGA, 2018, p. 164-165).
Sabe-se que o ser humano possui vários valores inalienáveis que devem ser tutelados
pelo Estado, encarregado de manter a paz social. Embora sejam poucos que são totalmente
absolutos, visto que até a vida e a liberdade podem ser negligenciadas, como por exemplo na
pena de morte, guerra declarada ou as próprias penas privativas de liberdade. Assim,
questiona-se se, após o devido processo legal, o indivíduo condenado e mantido numa cela
com poucos de seus direitos respeitados, tem a sua dignidade protegida pelo sistema de punir
que é o Direito Penal (GRECO, 2009, p. 7).
Gonzaga (2018, p. 166) aponta outro grande teórico que fomentou as ideias
abolicionistas, apesar de não poder ser considerado um deles. Michel Foucault, ao discorrer
acerca do sistema carcerário e das estruturas de poder. Ao analisar a forma com que se
aplicavam as sanções criminais, Foucault ofereceu vasto material crítico para que outros
pensadores pudessem desenvolver uma política alternativa a essa espécie de restrição da
liberdade, uma vez que os presídios eram vistos apenas como estruturas voltadas para
encarcerar e sem nenhum viés ressocializador. A forma precisa que expôs as entranhas do
sistema carcerário fez com que houvesse uma revisitação das ideias punitivas e novas
concepções precisaram ser pensadas, dando ensejo até mesmo para ideias mais liberais, entre
elas a chamada de abolicionista.
Partindo-se da ideia de que a sociedade não é capaz de abrir mão do Direito Penal para
a repressão dos comportamentos que prejudicam o convívio social, encontra-se a tese do
chamado movimento de Lei e Ordem, que prega um discurso do Direito Penal Máximo. A
ideia é afirmar que a sociedade necessita do direito penal para dar conta de todos os males que
a aflige. Esse movimento teve como ferramenta a mídia, propagadora de ideias críticas às leis
penais, trazendo-se a concepção de que são necessárias leis mais duras, novos tipos penais e o
afastamento de garantias processuais. Somente assim seriam afastados os sujeitos que não se
adaptam às normas e ao convívio social (GRECO, 2009, p. 12).
37
Esse movimento parte da premissa de que os pequenos delitos devem ser rechaçados,
para inibir os mais graves, e acabar com o problema na raiz, atuando como prevenção geral.
Logo, os espaços públicos e privados deveriam ser tutelados e preservados (PENTEADO
FILHO, 2020, p. 94).
Conforme Gonzaga (2018, p. 16), buscou-se a aplicação implacável da lei a qualquer
conduta ilícita com o fim de manter a ordem social. Sem lei haveria uma completa anarquia
da sociedade, em que cada um fará aquilo que bem entender, pois não deve submissão a
nenhum regramento jurídico. Com a ideia rígida de a lei ser cumprida sempre, a todo custo, o
sentimento de impunidade e desordem desaparecem, fazendo com que todos pensem em
obedecer aos preceitos legais, pois essa é a coisa certa a fazer. Sob esse enfoque, não se
analisa se a lei é boa ou ruim, mas sim que ela deve ser aplicada por ser ela votada
legitimamente para reger as condutas sociais.
Assim, resumindo o pensamento, o direito penal deve se preocupar com todo e
qualquer bem, não importando seu valor. A intervenção do Estado se torna preferencial e
prima ratio, ou seja, a solução primordial para a solução de todo e qualquer conflito
(GRECO, 2009, p. 16).
Por conseguinte, confere-se ao direito penal a responsabilidade em fazer com que o
meio social fique em paz, usando-se da força e da coerção, pouco importando a pessoa do
criminoso. Em outras palavras, o que se prega é a pura concepção de que a prevenção geral
solucionará todos os problemas com o temor iminente de uma pena (GONZAGA, 2018, p.
116).
2009, p. 17-18).
Conforme a doutrina de Jakobs, a preservação do Estado propõe um tratamento
gravoso aos criminosos que violam bens jurídicos mais importantes (vida, liberdade,
dignidade sexual), à semelhança do que ocorre com os terroristas. O Estado deve ampliar
ações sociais capazes de prover as necessidades da população (saúde, educação, trabalho,
segurança etc.), pois a criminalidade organizada ocupa espaços e recruta os indivíduos
abandonados por ele, mediante um projeto de médio prazo, alterando a legislação criminal,
fortalecendo o sistema de persecução penal, entre outras medidas (PENTEADO FILHO,
2020, p. 122-123).
definida como a incapacidade de o Direito Penal tutelar todos os bens jurídicos existentes,
restando a possibilidade apenas de proteger os mais relevantes (GONZAGA, 2018, p. 153-
155).
Dessa forma, ao contrário dos movimentos antagônicos anteriores, abolicionista e
máximo, o Direito Penal Mínimo se encontra numa posição equilibrada, sendo uma via de
acesso razoável possa punir sem ser um tirano e ofender a dignidade dos cidadãos. Para,
assim, reduzir o máximo possível o marco de intervenção do sistema penal (GRECO, 2009, p.
29).
40
escolha e, em razão disso, é moralmente responsável por seus crimes. Seguindo esses
aspectos, a Escola Clássica se situava em uma instância crítica em face da prática penal e
penitenciária até então, e buscava uma política baseada em princípios como o da humanidade,
legalidade e utilidade. A filosofia da escola clássica atraia os pressupostos de uma teoria
jurídica do delito, da pena e do processo, em uma concepção liberal do estado de direito,
baseada no princípio utilitarista da maior felicidade para o maior número, os ideais do
contrato social e a separação dos poderes (BARATTA, 1999, p. 31-33).
Kant (1994) elaborou conceitos que inovam qualquer preceito normativo. Para o autor,
viver em sociedade só é possível em obediência a uma lei moral universal, ou seja, que sirva
em todas as ocasiões e lugares. A pura razão prática de Kant consistia em duas premissas: o
ser humano tem capacidade de raciocinar, logo tem capacidade de ser livre. Assim, para agir
livremente, é preciso autonomia, é necessário agir de acordo com uma lei que seria imposta a
si mesmo. A autonomia é aquela sua propriedade à qual ela é para si mesma a sua lei
(independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é, portanto,
não escolher senão de modo que as máximas da escolha estejam incluídas, simultaneamente,
no querer mesmo, como lei universal (CAVALCANTI; XEREZ, 2020, p. 8-9).
Em sua obra, Laranja Mecânica (1962), Burgess descreve Alex narrando seu feito ao
adentrar a casa de um escritor que se preocupava com a mecanização do mundo. Detalhe que
o título do mais novo livro deste escritor se chamaria “Laranja Mecânica”. Alex toma alguns
papéis e lê em voz alta as ideias do escritor, em tom irônico. A leitura de Alex representa a
tese principal e mais controversa de Burgess, defendida também pelo capelão do presídio: a
de que qualquer restrição à liberdade de escolha transforma os humanos em máquinas, ou
seja, o ser humano é transformado num mecanismo automático e determinista. O livre-arbítrio
é, pois, necessário para a manutenção da humanidade individual e coletiva, mas, sobretudo,
porque as revoluções se fazem exercendo a liberdade à autodeterminação, uma escolha que,
segundo o capelão, não pode ser imposta por técnicas de modificação comportamentais
(BURGESS, 2004, p. 24-26).
Embora os homens tenham entendido a necessidade de limitação da liberdade para
alcançar a possibilidade de convivência em grupo, é preciso enfatizar que essa escolha não faz
do homem uma espécie “boa”, mas reprimida. Ou seja, sem capacidade de escolha, qualquer
vestígio de bondade humana é inautêntica e artificial, e uma bondade condicionada nunca será
idêntica a uma bondade escolhida (SOUZA; WOLTMANN, 2013, p. 4-5).
42
Diante disso, Alex perdeu seu livre arbítrio. E a grande questão a partir disso,
defendida pelo próprio padre da instituição prisional, é que o homem pode ser bom ou mal,
mas isso deve ser de sua livre escolha. O Estado não teria o poder de obrigá-lo à escolha,
ainda mais por métodos artificiais. Não seria essa a sociedade justa que se busca, ou seja, um
pacto de segurança com restrição à liberdade de escolha dos indivíduos pelo próprio Estado,
que seria uma liberdade básica e inerente ao comportamento humano (CAVALCANTI;
XEREZ, 2020, p. 5).
Diante de nossa realidade, vemos que o tratamento dado a Alex foi desumano, assim
como o tratamento dado aos apenados nos presídios. É claro que o procedimento conferido a
Alex não modificou sua essência, bem como o sistema prisional não ressocializa, mas
coisifica o homem. Na obra, fica visível que o autor tenta argumentar a favor do livre-arbítrio
do homem, sendo melhor ser mal por própria escolha que ser bom por meio de lavagem
cerebral. Por conseguinte, quando Alex tem o poder da escolha, opta apenas por violência
(AMORIM, 2020).
Assim, sustenta o autor:
Pode não ser bom ser bom, pequeno 6655321. Ser bom pode ser horrível. E quando
digo isto a você, percebo o quão autocontraditório isso soa. Eu sei que perderei
muitas noites de sono por causa disto. O que Deus quer? Será que Deus quer
sensibilidade ou a escolha da bondade? Será que um homem que escolhe o mal é
talvez melhor do que um homem que teve o bem imposto a si? Questões difíceis e
profundas, pequeno 6655321 (BURGESS,2004, p. 97).
comportamentos desviantes. O meio social também seria corrupto por natureza, como
observamos ao Alex ser reinserido na sociedade, mas sendo rejeitado pelos pais, agredido por
aqueles que antes tinha agredido, numa espécie de inversão de papéis (BURGESS, 2004).
Nesse sentido, ao observarmos acontecimentos como a prisão de Alex, vemos um
descontrole e inefetividade em punir os criminosos, por isso o Estado busca uma forma de
tentar se restabelecer como o poder dominante e capaz de trazer a ordem e com isso a
felicidade e satisfação da sociedade, conforme os princípios utilitaristas. Em todos os casos,
no entanto, observa-se a onipresença do Estado como dirigente de políticas criminais
totalmente desproporcionais e até desumanas (COIMBRA; SANTOS, 2016).
Temos na figura de Alex (ou de todos os jovens naquele contexto), por fim, a
verdadeira personificação da quebra do contrato social, e o seu culto à ultraviolência, bem
como seu prazer a partir dela, torna-o a mais profunda representação da libertação do “eu” e
do estado natural proposto por Thomas Hobbes (SOUZA; WOLTMANN, 2013, p. 7).
Roberto (2008, p. 62-63) nos conta que o livro complica mais as coisas, ao sugerir que
a inclinação de Alex para o mal é inata. Assim, através de Alex, o autor manifesta a sua crença
no pecado original, na ideia bíblica de que o mal é natural no homem e não um produto do
ambiente e essa condição implica uma ausência de escolha. A marca do pecado original está
patente, sobretudo, na forma de governo – os médicos e outros representantes oficiais são
capazes do mesmo sadismo e das mesmas práticas de violência que Alex e a sua gangue. Os
próprios médicos são sádicos e violentos. Além disso, Alex insiste em afirmar que pratica o
mal porque gosta e que combate a sociedade repressiva. No entanto, mesmo o indivíduo
maculado pelo pecado original possui, certamente, maior capacidade de livre escolha do que
alguém que foi submetido ao mesmo tipo de tratamento que o protagonista (Técnica de
Ludovico).
O método de controle de pensamento é efetuado através de propaganda, TV e cinema
funcionando como técnicas sofisticadas de lavagem cerebral. Em última instância, é o próprio
governo que parece penetrar na mente das pessoas, eliminando o seu livre-arbítrio. É o que
acontece com Alex: vítima do Estado repressivo, Alex ainda reage à violência, só que em vez
de a mesma causar prazer, gera agonia. Na verdade, Alex perde a sua capacidade de escolha,
transformando-se numa “laranja mecânica” (ROBERTO, 2008, p. 62-64).
LOMBROSIANA
Apesar dos diversos pensadores da Escola Positiva, os diversos conceitos que estes
difundiram se confundem, como a ideia de crime como um fenômeno social e natural, sujeito
às influências e vários fatores do meio, sendo assim essencial utilizar o método experimental.
O conceito de responsabilidade social, tendo por base a periculosidade do infrator,
transformando a pena em uma forma de defesa social, perdendo aquele viés ressocializador
que foi destacado na escola clássica. Aliás, ao contrário dos Clássicos, defensores da pena por
tempo determinado, os positivistas trouxeram a ideia de prisão por medida de segurança, por
tempo indeterminado, até que o delinquente se “curasse”. Caso contrário, deveria ser aplicada
a pena de morte. Assim, o criminoso era visto como um indivíduo psicologicamente anormal,
temporária ou permanentemente (SHECAIRA, 2014, p. 98).
A Escola Positiva da criminologia sempre teve como enfoque a constituição biológica
como uma fatalidade orgânica que leva o indivíduo a agir dessa ou daquela forma. A
Sociologia, nesse viés positivista, produziu várias teorias que procuram explicar o problema
do crime. A “Monomania Homicida” foi uma designação proposta por Esquirol (1838), para
identificar certas expressões de loucura cujo único sintoma evidente seria uma desordem ética
e moral propensa à prática de crimes. Tratava-se de uma exigência mais social do que médica,
numa tentativa de a sociedade segregar as duas figuras mais temidas do desvio da conduta
45
línguas políticas do mundo – a anglo-americana e a russa –, e isso era para ser irônico, pois
suas atividades estão totalmente fora do contexto da política (PEREIRA, 2019, p. 46).
Termos como “ultraviolência”, usado por Alex para evidenciar os excessos que os
delinquentes cometem nos crimes, com orgulho; “moloko velocet”, o leite misturado com
drogas sintéticas que bebem toda noite; e “druguis”, a palavra utilizada por Alex para chamar
seus companheiros de gangue, entre outros (BURGESS, 2004).
O delito é um ente jurídico para a Escola Positiva também, mas o direito que qualifica
este fato humano não isola a ação do indivíduo da totalidade natural e social. Em
contraposição ao livre-arbítrio do indivíduo da escola clássica, a escola positiva, por meio de
Lombroso, trouxe a ideia de que a compreensão do delito deve encontrar a complexidade das
causas na totalidade biológica e psicológica do indivíduo. Assim, o delito começou a ser
entendido como um fenômeno natural, como o nascimento ou a morte, determinado por
causas biológicas e hereditárias (BARATTA, 1999, p. 38-39).
No livro, é descrito um governo que anestesia a mente dos indivíduos através de
filmes estatais, reprimindo a sua individualidade e livre-arbítrio. Sendo assim, o senso de
superioridade e individualidade de Alex enfatiza a sua própria alienação. Destacando na
parede de seu quarto lembranças de sua vida na escola correcional para menores infratores,
desde que tinha onze anos de idade. Seu maior orgulho eram seus discos de música e caixas
de som. Fã de música clássica, ele se imagina como um intelectual, apreciando e visualizando
seus atos abomináveis de violência como arte, praticando todas as noites, em todas as suas
nuances, desde espancamento a mendigos até estupro contra menores e assassinato
(BURGESS, 2004, p. 34-35).
Alex, por exemplo, possui pais totalmente desvinculados de sua vida social, não
sabem onde o filho vai a noite, muito menos se está na escola ou com quem está criando
amizades. A desestruturação familiar é contínua e tem reflexos evidentes na formação moral e
educacional dos jovens naquele contexto. Alex, como indivíduo, buscou identidade e
propósito sozinho, sem influência dos pais ou de instituições do Estado (BURGESS, 2004).
Não obstante, Alex pode ser visto como um lunático, seguindo um padrão de vida
muito distante do que é idealizado pela cultura dominante. Como visto anteriormente, ele vive
numa rotina de caos, sem objetivos ou anseios pessoais. Alex vive em um círculo vicioso,
uma sucessão de ações e consequências, sem motivações, sempre envolvendo uma situação
em que se inserem em locais aleatórios simplesmente para furtar, espancar e estuprar, sem
47
nem ao menos terem consciência de um motivo para isso. Como já discutido, a conduta
malévola de Alex é, por vezes, mostrada como intrínseca à sua personalidade. Diante disso, é
certo concordar que seria impossível para ele agir de forma contrária a sua própria natureza.
O protagonista, após a primeira noite de ultraviolência descrita no livro, retorna a sua
casa ainda na madrugada. Já com o horário avançado, sua mãe, no início da manhã, bate na
porta de seu quarto e o questiona sobre a escola. Alex, esperto, inventa a desculpa de que está
com dor de cabeça, com dores pelo corpo e muito cansado. Por pura desídia, a mãe acolhe tal
mentira e perpetra a falta de responsabilidade e limites do jovem (BURGESS, 2004, p. 37-
38).
Para Lombroso, elementos como o orgulho e a vaidade são utilizados pelos criminosos
para suprir sua falta de dedicação e afeição familiar, onde poderiam vir a manifestarem na
“[...] consideração excessiva pela própria pessoa [...].” Na compreensão de que seus atos e
necessidades são mais importantes do que de qualquer outro indivíduo (LOMBROSO, 2016
apud RAMOS, 2017. p. 34).
Lombroso (2007, p. 135) determinara que os delinquentes tinham apenas motivação
para cometer infrações e crimes, não sendo capazes de sustentar a prática de trabalhar em
continuidade, por motivo de preguiça. Assim, a preguiça é umas das principais características
dos criminosos, além da depravação moral, já discutida acima.
Percebe-se então, segundo a teoria, que o criminoso não chega a ser influenciado
somente pelas questões sociais e educacionais desfavoráveis a ele, mas sim tem uma
tendência atávica, sendo geneticamente mal e possuindo certas características
físicas, morais e psicológicas que podem vir a identifica-los. Lombroso defendia
ainda a delinquência como uma doença, devendo o indivíduo adulto ser isolado até
encontrar uma maneira eficaz de curá-lo e a prisão perpétua seria a forma mais
favorável para a contensão destes (RAMOS, 2017, p. 35).
Nesse sentido, após todas essas análises detalhistas, os estudos científicos dele
assumiram feição multidisciplinar, pois emprestaram estudos da psiquiatria, com a análise da
degeneração dos loucos morais, bem como lançaram mão de dados antropológicos para retirar
o conceito de atavismo e de não evolução, assim desenvolvendo um viés científico para a
teoria do criminoso nato. Para ele, não havia delito que não tivesse raízes em múltiplas
causas, incluindo-se aí variáveis ambientais e sociais, como o clima, o abuso de álcool, a
educação, o trabalho, entre muitas outras. Destaca-se por oportuno, que a maioria de suas
pesquisas foram feitas em manicômios e prisões, concluindo que o criminoso é um ser
atávico, um ser que regride ao primitivismo, um verdadeiro selvagem (ser bestial), que nasce
48
O Governo não pode se preocupar mais com teorias penológicas datadas. Empilhe
os criminosos juntos e veja o que acontece. Você obtém criminalidade concentrada,
crime no meio do castigo (BURGESS, 2004, p. 93).
O livro ainda nos apresenta uma crítica social muito forte em relação à ideia
sensacionalista de que uma justiça agressiva é o melhor modo de livrar a sociedade da
violência que a afronta. A obra como um todo exibe, de uma forma artística, o abusivo
tratamento de condicionamento humano, além de fazer o leitor concordar que, se todo aquele
processo de reabilitação fosse possível de ser realizado, o Estado Penal o acataria e investiria.
Além disso, ainda podemos perceber que, apesar da mídia o ter exposto como totalmente
curado, isto pouco importa, porque o status de ex-penitenciário passa a persegui-lo, sendo
Alex vítima de violência e expulso de locais públicos, por exemplo. Tal desfecho é um
espelho da atualidade, onde uma maioria não crê que o sistema carcerário seja capaz de
reeducar o criminoso e nem que o próprio criminoso seja capaz de se conscientizar e ir em
busca de melhores oportunidades, após lhe ter sido concebida a liberdade (JARDELINO,
2017, p. 3)
Lombroso, ainda, afirmava que o índice de reincidência entre os delinquentes estaria
sempre sujeito à majoração, demonstrando a incapacidade do sistema penal em punir e
prevenir o crime. Segundo ele, “[...] não há sistema carcerário que salve os reincidentes; ao
contrário, as prisões são as causas principais deles [...].” Assim, não se deveria esperar que a
melhoria dos sistemas carcerários poderia prevenir ou diminuir a reincidência, pois tem um
efeito totalmente contrário (LOMBROSO, 2007, p. 154).
Então, nada mais justo do que a intervenção de um ente superior, o Estado, para
contornar tal situação de imediato. A Técnica Ludovico, presente no livro, surge como um
solucionador definitivo desta problemática, visto que atingirá diretamente o instinto criminoso
do apenado (JARDELINO, 2017, p. 3-5).
49
interiorização desses novos valores, sendo a opinião do grupo tida como referente ideal para a
opinião pessoal, naquilo que leva Becker a denominar de aprendizagem step by step (passo a
passo). Neste sentido, se entende, pois, a responsabilidade máxima dos organismos oficiais da
sociedade em proteger os seus cidadãos.
A violência perpetrada por gangues nas suas formas mais diversas e intensas deve ser
vigiada, desviada e punida – foi assim que, já nos finais dos anos setenta, as sociedades
contemporâneas aumentaram os seus métodos de controle e punição sobre os gangues, à
medida que aumentavam também os níveis de violência e de consumo de drogas. Diante da
desestruturação social que se manifesta, relembramos, por exemplo, que os pais de Alex são
ausentes, relapsos, que o prédio onde mora está abandonado e sujo. Tais circunstâncias,
evidentemente, não funcionam por elas mesmas como principais motivos para ele ser um
delinquente ou formar uma gangue, mas não deixam de ser um dado importante para
compreensão do processo (ROBERTO, 2008, p. 76-77).
Normalmente, o crime é associado a efeitos socialmente disfuncionais e negativos.
Tais efeitos são incontestáveis, pois provocam danos materiais, fomentam o medo, cerceiam a
convivência social, põem em risco valores sociais, entre outros aspectos. Mas há um lado
“positivo” também abordado por Robert Merton, que desenvolveu a chamada teoria
funcionalista da anomia, tendo por base a negação da concepção patológica do desvio.
Segundo essa teoria, o desvio é interpretado como um produto da estrutura social,
absolutamente normal, assim como o comportamento é adaptado às regras sociais. Isso
significa que a estrutura social não tem somente um efeito repressivo, mas também, e
sobretudo, um efeito estimulante sobre o comportamento individual. No fundo, é como uma
guerra contra uma moral estreita e conformista. Nesse vasto movimento, o grupo de
rejeitados é revestido de um novo contexto político, tornando-se criadores ou reformadores de
uma nova estruturação social. A violência remete-nos para um instinto, quase perceptível, de
negação, de resistência e de insubmissão. É como desejar viver fora dos parâmetros impostos,
em resistência ao comportamento social-padrão (ROBERTO, 2008, p. 76-77).
Há de se observar que os crimes cometidos por Alex e sua gangue, apesar de
aleatórios, cruéis e desconexos, tinham certo planejamento, mesmo que não fosse intencional.
Por vezes, saíam dos subúrbios e se dirigiam para as áreas nobres da cidade. Primeiro, para
conseguir mais dinheiro. Segundo, pois era mais divertido. A classe mais empoderada ficar à
mercê de delinquentes como eles era o que mais agradava Alex. Após espancarem o mendigo,
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a gangue furtou um veículo, ali mesmo, nos subúrbios. Entretanto, sua atenção estava para os
bairros mais ricos. Demonstrando que as parcelas marginalizadas estão sujeitas à
criminalidade, justamente por conta dessa desunificação da sociedade e a desigualdade social
(BURGESS, 2004, p. 21-22).
A teoria das subculturas de gangues juvenis, de Albert Cohen, no seu livro Delinquent
Boys (Meninos Delinquentes, 1955), desenvolveu a ideia de um sistema de crenças e valores
cuja origem é extraída de um processo de interação entre jovens (rapazes) ocupantes de
posições pares na estrutura social. A subcultura representaria a solução para os problemas de
adaptação, relativamente aos quais a cultura dominante não oferece alternativas satisfatórias.
Nesse sentido, tanto os jovens das classes abastadas como os jovens das classes inferiores
interiorizam e começam a aderir à ética do sucesso da sociedade ocidental capitalista. Essa
ética, contudo, revela-se discriminatória uma vez que encerra em si mecanismos de exclusão
de grupos sociais e possui critérios típicos de classe média: racionalidade, autodisciplina,
ambição, qualificação técnica, cultura acadêmica, cortesia. Alex pode ter sido educado nesse
meio (a descrição da casa onde mora é elucidativa desse aspecto), pode ter sido socializado
com essa concepção culturalista da classe média e, eventualmente, deveria reproduzir o
modelo dos próprios pais (ROBERTO, 2008, p. 72-74).
É daí que surge a crise de identidade, a qual é superada, justamente, na subcultura dos
jovens: a identificação visual, o uso de drogas e o culto à violência. Nesse sentido, o Duque
de Nova Iorque e o Lactobar Korova (locais de reunião de Alex e sua gangue) funcionam
como pontos de referência para a subcultura e o seu culto à “ultraviolência”, fornecendo um
ambiente livre do controle do Estado, que fornece drogas e um álibi para suas aventuras
noturnas (BELO, 2001, p. 372-375).
A Londres descrita no livro é uma cidade onde há muita disparidade social e
econômica. O bairro em que Alex vive é representado pelas ruas sempre sujas, falta de
policiamento e crescente aumento de moradores de rua. Tudo isso expõe as consequências das
atividades do submundo das gangues naquela região da cidade, que se vê abandonada e
esquecida pelo poder público. Os cidadãos negligenciados tornam-se marginalizados e o
ambiente se desenvolve propício para a violência. Outra marca da marginalidade é a vida
noturna, que demarca também a desigualdade social. Conforme a passagem:
O dia era muito diferente da noite. A noite pertencia a mim e aos meus amigos e a
todo o resto dos jovens, e os burgueses velhos espreitavam dentro de suas casas,
52
bebendo das transmissões mundiais idiotas, mas o dia era dos velhos e sempre
parecia ter mais policiais durante o dia também (BURGESS, 2004, p. 44).
Shecaira (2014, p. 166-168), por sua vez, observa que o método ecológico da Escola
de Chicago não levava em consideração o caráter ético da conduta delitiva e talvez possa ser
considerada como um novo determinismo, o ecológico, ao predizer que áreas mais pobres
tinham mais criminalidade, enquanto as zonas mais ricas e nobres não tinham. Entretanto, a
Escola de Chicago se vangloria por trazer atenção para a criminalidade das áreas mais pobres
e deterioradas da cidade, além de superar a concepção etiológica da delinquência da escola
positivista. Diante da inadequação das respostas para o tratamento individual, mudou o foco
para as comunidades locais, buscando mobilizar as instituições para combater a
desorganização social, reconstituir a solidariedade humana e controlar as condutas desviadas.
A crítica não está nos métodos de punição aplicados, mas na responsabilidade do
Estado em auxiliar o cidadão a chegar a esse patamar de violência. Nesse sentido, é
imprescindível analisar, sob a ótica da desigualdade social, o sistema penal do Brasil – país de
terceiro mundo que mal oferece educação e saúde a seus constituintes, mas que está
completamente equipado legislativamente de normativas para punir aqueles que não
respeitam a lei. Ou seja, esse Estado sancionador, leviatã, é o primeiro a eximir-se da
responsabilidade de constituir uma sociedade em que existam condições de igualdade entre as
pessoas. Mais grave ainda é que o mesmo Estado que não proporciona condições de igualdade
julga a todos com base em uma lei única aplicada sem qualquer desconto de sua própria
responsabilidade na construção daquele infrator; atua, portanto, como se fosse um ator à parte
que apenas assiste às barbáries cometidas pelos cidadãos como se não tivesse contribuído em
absolutamente nada (CAVALCANTI; XEREZ, 2020, p. 9-10).
livre-arbítrio. Dessa forma, a sociedade assume postura tão brutal quanto a das gangues e dos
delinquentes (COIMBRA; SANTOS, 2016).
Ao ser libertado, Alex encontrou-se abandonado pelos seus familiares, pelas
autoridades e pelas instituições. Não conseguia mais introduzir-se na sociedade, incapaz de
trabalhar e de socializar normalmente. Por fim, a transformação de Alex em uma máquina
incapaz de praticar atos em nome da própria vontade não é menos alvo da estigmatização do
que o velho Alex, sádico e cruel. Ao final do livro, o protagonista, depois de ser
completamente abandonado e violentado por todos que já cruzaram seu caminho, não
encontra um meio de seguir adiante, ou melhor, de se socializar novamente. Diante disso, é
levado a tentar o suicídio (BURGESS, 2004, p. 167-168).
Entretanto, vemos uma contradição aí. Se o tratamento o tornou incapaz de praticar e
até de pensar em violência, como Alex foi capaz de pular da janela da mansão de seu
sequestrador (uma antiga vítima de Alex e sua gangue) para tirar a própria vida? Por dedução,
o método de tratamento não funcionou como deveria. O único fruto advindo deste foi a
marginalização de Alex, vendido para a mídia como um monstro violento que foi curado de
seus instintos destrutivos (BURGESS, 2004, p. 171-172).
Greco (2015) aponta: parece-nos que a sociedade não concorda, infelizmente, pelo
menos à primeira vista, com a ressocialização do condenado.
Greco (2015, p. 334-335) explana que o Estado não educa, não presta serviços de
saúde, não fornece habitação para a população carente e miserável, enfim, é negligente em
todos os aspectos fundamentais no que diz respeito à preservação da dignidade da pessoa
humana. Em conformidade com a ideia de Michel Foucault, de que o ambiente da prisão
estimula o crime, Greco afirma que o ideal seria afastar, o máximo possível, o condenado do
convívio carcerário, facilitando, dessa forma, a sua ressocialização. Já que ressocializar
retirando o preso do seu meio social é uma verdadeira contradição.
Assim, mesmo após o cumprimento de sua condenação - que deveria expiar os seus
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crimes e o tornar passível de reingressar a sociedade -, ainda terá de conviver com o estigma
de ser um inimigo, um desvio, uma coisa que deve ser punida para todo o sempre. Greco
atribui isso ao pensamento vingativo do Estado e ao desrespeito à dignidade da pessoa.
O Direito Penal do inimigo foi criado por Gunther Jakobs, em 1985. Entre seus ideais,
está o uso da expressão “pessoa-inimigo”. Tal conceito é, aos olhos de muitos críticos,
inaceitável em um Estado Democrático de Direito, já que infringiria intimamente os direitos
humanos. Entretanto, diante do retrato que, ao que parece, não é passível de reversão, evitar a
discussão acerca de tal diferenciação apenas consentirá que se autentique o caos normativo,
cominando-se normas penais e processuais de modo indistinto aos inimigos e aos cidadãos
(AMORIM, 2020).
Quando observamos Alex ser julgado a prisão em regime fechado, sendo menor de
idade, sofrendo represálias da sociedade e violência das autoridades policiais, é certo
lembrarmos das palavras de Zaffaroni (2007), ao trazer o delinquente ou infrator - nas
palavras de Becker, o desviante - como um inimigo de todos.
Destarte, Jakobs, fundador do Direito Penal do Inimigo, distingue os dois padrões de
Direito Penal propostos a diferentes tipos de indivíduos, explicitando que o sujeito que, por
convicção e de modo constante, atenta contra a ordem jurídica sem oferecer garantia de
comportar-se como pessoa, tal sujeito confirma, ainda que tacitamente, que não é capaz de se
submeter às leis, tampouco conviver em sociedade, e, portanto, deverá ser tratado como
inimigo (AMORIM, 2020).
Roberto (2008, p. 76-77) lembra que as influências adultas de Alex são pessoas que
trabalham demais, sem tempo para a família e para os filhos. Descartando os pais de Alex e
nos concentrando em P.R Deltoid, seu orientador da época das casas correcionais para
menores. Deltoid, na visão do jovem, é um adulto obediente das regras e por isso é patético,
pois tenta forçar essa obediência aos jovens que tutela. Assim, a violência de Alex e de sua
gangue pode ser analisada como a recusa de uma vida direcionada para a produção, numa
sociedade dominada pelo trabalho e pelo isolamento. Deltoid, por sua vez, nutre rancor e
repulsa por Alex, ao invés de ajudá-lo a se recuperar, somente serve de guia para as punições
excessivas e ineficazes, assimilando o delinquente como um inimigo da sociedade, que
precisa ser retirado do convívio social.
Durante a primeira parte do livro, o sentimento de raiva e angústia é provocado no
leitor que, ora cidadão, que fica insatisfeito com a praticidade com que tais crimes são
60
cometidos – Alex e seus comparsas invadem uma residência, espancam o seu dono e, por fim,
ainda estupram a sua esposa, retirando-se do local ilesos. É proposital a intenção do autor em
fazer crescer o desejo de que ele seja punido. Ainda, sendo o personagem o próprio narrador
de sua história, o tom de cinismo que ele usa ao fazê-lo, em sua voz, é nítido, corroborando
com a vontade geral de que Alex seja penalizado por tais crimes (BURGESS, 2004, p. 25-26).
Zaffaroni (2007, p. 18-20) explica que o inimigo tem sua condição de pessoa negada -
outra similaridade com o uso de números para descrever os presidiários, como o caso de Alex,
que se torna o número “665544321” - e recebe um tratamento diferente, seja pela sociedade
ou pelo sistema punitivo do Estado. Alex, como um inimigo, ou um não-cidadão, é algo
perigoso, não mais uma pessoa, perde sua individualidade e precisa ser rejeitado e retirado do
convívio social (BURGESS, 2004, p. 77-78).
Nesse sentido, para Jakobs, o Direito Penal do Inimigo seria o Direito Penal por meio
do qual o Estado confere enfrentamento aos seus inimigos, não aos seus cidadãos, sendo o
conceito de “pessoa” construído em paralelo ao do sistema social, e, para ser pessoa, é
imprescindível oferecer garantias cognitivas bastantes de um comportamento individual, de
modo que tal comportamento não defraude as expectativas normativas institucionalizadas
(AMORIM, 2020).
Entende-se que a reincidência dos delinquentes dentro da própria prisão, mesmo que
houvesse sido ocasionada por fatores alheios à sua vontade, vale como uma concordância
tácita de sua definitiva exclusão das regras sociais. Ou seja, as leis as quais o Cidadão de bem
está submetido para aquele tipo de crime não poderiam ser aplicáveis a Alex, logicamente, por
este ter se excluído do seu status de Cidadão (JARDELINO, 2017, p. 3-5).
Foucault (1995) acreditava que a função da pena não é combater a criminalidade como
pensam muitos juristas, mas sim produzi-la, e, por esta razão, aparentemente fracassa:
A prisão não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida em que suscita
no meio das outras uma forma particular de ilegalidade, que ela permite separar, pôr
em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável. Ela
contribui para estabelecer uma ilegalidade, visível, marcada, irredutível a um certo
nível e secretamente útil – rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e
sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as
outras, mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar
(FOUCAULT, 1995 apud PAULA; TAGLIARI, 2014, p. 13).
sejam controlados, para que este possa ser reinserido na sociedade de forma segura. Porém, o
tratamento para o qual Alex é submetido se mostra tão violento quanto os crimes que haviam
sido cometidos por ele. Quando é liberado, o personagem percebe que a sua reabilitação o
impede de ter certos pensamentos e atos, como, por exemplo, agredir alguém, nem que seja
em legítima defesa. O governo o transformou em um ser não humano, pois Alex tornou-se
incapaz de exercer sua liberdade por si só. Porém, ainda assim, Alex opta pela prática de
crimes. Ao fazer esta escolha, para o Estado e a Sociedade, ele concorda em ser excluído da
esfera social, visto que descumpriu as normas que incidiam sobre ele, necessárias para um
convívio harmonioso (BURGESS, 2004).
Logo, entende-se que sua reincidência dentro da própria prisão, mesmo que houvesse
sido ocasionada por fatores alheios à sua vontade, vale como uma concordância tácita de sua
definitiva exclusão das regras sociais. Ou seja, as leis as quais o cidadão de bem está
submetido para aquele tipo de crime não poderiam ser aplicáveis a Alex, logicamente, por este
ter se excluído do seu status de cidadão (JARDELINO, 2017, p. 3-5).
Amorim (2020) explica que, dessa forma, os indivíduos tratados como inimigos
seriam aqueles que, por sua conduta, se recusam, reiteradamente, a ingressar no estado de
cidadania, como, por exemplo, terroristas, criminosos econômicos, autores de delitos sexuais
e de outras contravenções penais perigosas, os infratores que comandam o crime organizado.
Dentre estes, os delinquentes presentes no livro Laranja Mecânica, cujo questionamento
acerca da sua ressocialização, nos moldes do Direito Penal contido no contexto do livro, é
levantado aqui.
Sendo Alex ainda um verdadeiro delinquente, o qual ainda chega a cometer um
homicídio, juntamente com os seus colegas de cela, é entendido que o ordenamento jurídico
que rege as condutas sociais não é cabível para ele – além do que, o personagem desde a sua
entrada à penitenciária já era considerado um inimigo (BURGESS, 2004, p. 75-77).
Para o ordenamento jurídico, o tratamento diferenciado é consequência de uma
individualização do sujeito como inimigo, logo, não encontrará proteção nas leis ou nos
princípios de um Estado de direito. Considerado um ser hostil, estrangeiro - ou mesmo um
alienígena - , carece de direitos e está fora da comunidade (ZAFFARONI, 2007, p. 21-23).
62
5 CONCLUSÃO
violência, e busca o suicídio, sem sucesso. Aqui, fica clara a crítica aos processos de
estigmatização de indivíduos considerados delinquentes, seja por praticarem crimes, ou
apenas por terem adotado comportamentos e estilo de vida contrários aos da cultura
dominante.
A maior crítica da obra literária Laranja Mecânica - e que não se limita à ficção,
estendendo-se ao mundo real - é quanto aos limites da influência do governo no livre-arbítrio
do ser humano, em que, por meio do controle exercido através do sistema punitivo, o Estado
não respeita os interesses individuais e tenta forçar a convivência social condicionando o
comportamento por meios abusivos e violentos. De fato, considerando a população como
objetos a serem dispostos com uma função única e pré-determinada, resumindo pessoas à
engrenagens que compõem a grande máquina estatal.
Nesse sentido, os estudos conduzidos pelas escolas de criminologia se tornam
necessários para o entendimento do crime e do delinquente, da vítima e do controle social e
do processo de criminalização. É, pois, essencial nos voltarmos para os ensinamentos -
mesmo que datados - dos teóricos dessas escolas, desde os princípios utilitaristas contidos na
Escola Clássica; o determinismo biológico da Escola Positiva; a teoria ecológica da Escola de
Chicago e doutrinas menores; a crítica feita pelos pensadores responsáveis pelas teorias da
reação social e do etiquetamento, que formam o escopo da Criminologia Crítica; políticas
criminais modernas, envolvendo os abolicionistas e os defensores de um direito penal
mínimo, bem como os defensores de um direito penal máximo.
Diante do exposto, é possível afirmar que o livro de Anthony Burgess carrega
acontecimentos que estão em consonância com diversas escolas e abordagens criminológicas.
É certo que a vontade de causar o mal é inerte ao protagonista Alex, exatamente como os
pensadores da Escola Clássica tratavam o crime como uma escolha derivada da autonomia de
vontade do indivíduo. A punição, nesse sentido, deveria acabar com essa vontade, o que,
sabemos por experiência, está longe de ser verdade.
Assim como todo ser humano, Alex é condenado a certos determinismos, sejam eles
biológicos ou ecológicos. Como as teorias lombrosianas explicam, a lascívia, a falta de
empatia, a preguiça, o senso de superioridade, entre outras características, são exemplos da
personalidade de um delinquente. Assim como somos seres políticos, moldados pelo convívio
social e pela estruturação do ambiente em que vivemos, como a Escolha de Chicago afirma.
Mas, temos que nos atentar que o ser humano é muito mais do que um animal que age com
64
instintos apenas. Somos capazes de pensar racionalmente e com consciência de nós mesmos e
de nossas escolhas.
Por fim, é possível concluir que não existe uma causa universal que explique o
fenômeno do crime ou da violência, ambos atrelados a sociedade humana desde as antigas
civilizações e que encontram tanta similaridade com a realidade brutal que a natureza reserva
aos seres vivos.
Passa longe da intenção desta pesquisa defender as atitudes atrozes do protagonista,
que as descreve com tanto orgulho, mas a trajetória de Alex, de Laranja Mecânica, denuncia a
própria sociedade em que vivemos, em que tantos tem o seu destino selado por um direito
penal incisivo em excesso.
O comportamento reacional das instituições estatais começou a chamar a atenção,
justamente por ser responsável, em certa parcela, pela criminalidade e sua reincidência. Aqui,
é o momento em que percebemos que todos os métodos usados como punição e coerção
devem ser criticados e expostos, para que sejam estudados e analisados sob os princípios de
um estado justo e social.
O ser humano tentou se desvencilhar do suplício em busca da criação de uma
sociedade justa, com menos violência e crimes, fundada em leis e ordem. É nesse sentido que
é tão importante lembrar o passado e o que já aprendemos sobre a criminalidade.
É aí que a arte encontra forças para conscientizar e relembrar. Um livro como Laranja
Mecânica deixa claro que, apesar do trabalho fundamental da criminologia, a sociedade ainda
não está livre do crime, da violência e dos delinquentes. E somente com perseverança é que se
deve continuar os estudos do crime, do delinquente, da vítima, do controle social e dos
processos de criminalização.
É com afinco que a criminologia, o direito penal e as políticas criminais devem
continuar a estudar, analisar e produzir novos conhecimentos, buscando quebrar paradigmas
obsoletos e desenvolver novas teorias e modelos mais eficazes de retribuição e prevenção do
crime, a exemplo da teoria contemporânea do direito penal do equilíbrio.
Diante da grande dimensão em que os estudos criminológicos se desdobram e atingem
a sua complexidade, compreende-se que esta pesquisa é como achar uma agulha em um
palheiro, mas não passa despercebida a intenção de conscientizar e instigar outras análises e
questionamentos futuros acerca dessa matéria tão complexa.
65
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ao crime organizado: uma intersecção com a obra Laranja Mecânica. 2020. Disponível em:
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