Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
São Paulo
2021
GABRIELA HENRIQUE CARVALHO
TIA: 719.5302-7
São Paulo
2021
C331v Carvalho, Gabriela Henrique.
Violência doméstica: análise jurídica do estupro marital. /
Gabriela Henrique Carvalho.
196 f. ; 30 cm
Agradeço a Deus pelas oportunidades que tive na vida e por ter me dado pais
maravilhosos que sempre incentivaram ao máximo minha educação, me dando todo
o suporte possível. Cláudia e Addy, obrigada por tanto.
À Raquel e ao Victor, os irmãos mais amorosos e amados.
À querida Vovó Jodair por sempre ter cuidado de mim com tanto amor.
Ao Vitor, o companheiro pra uma vida.
À Patrícia, muito mais que uma orientadora. É um prazer contar com sua
sabedoria e ainda mais com a sua amizade.
A todos os meus amigos pela força, incentivo e por acreditarem em mim.
Aos meus colegas da Pós-Graduação em Direito Político e Econômico, em
especial do Grupo de Estudos Mulher e Direitos Humanos, por tanto conhecimento
dividido, por tudo que aprendemos juntos.
A quem me ajudou e incentivou a seguir a carreira acadêmica, em especial o
futuro Doutor Victor Grampa e o amigo prof. Dr. Felipe Chiarello.
Por último, mas não menos importante, obrigada a todos os professores que
passaram na minha vida, em especial os que me ensinaram sobre amar aos outros
e dividiram comigo seu conhecimento, que é o maior tesouro que uma mulher pode
ter na vida.
Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou
religiosa para que os direitos das mulheres sejam
questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá
que manter-se vigilante durante toda a sua vida. (Simone de
Beauvoir)
RESUMO
Using contributions from feminist theory, such as the concepts of gender, patriarchy,
sexual division of labor, division between public and private spheres and false
neutrality of law and institutions, the aspects and consequences of social, civil and
family subordination of the women are analyzed. Domestic violence is shown as a
cause and effect of gender inequality, a tool used by men to punish women for
behaviors seen as contrary to their dominance within the family, establishing
authority over them, with serious consequences for their physical and psychological
integrity. The legislation protecting women's rights is then analyzed according to its
evolution in the country, in chronological order. First, it analyzes the colonial period,
in which women were only property, whether white or slaves. Then the imperial
period, when the influence of liberalism allowed women to claim the right to
education. In the period of the first Republic, there is talk about the struggle for the
vote, as well as about the first organizations of women's movements. In the Vargas
era, there is talk about women workers and the achievement of political and labor
rights. As for the dictatorship, the role that the women's movement played in the
struggle for the recognition and guarantee of social rights and for democracy is
mentioned. The rights they fought for are finally recognized with the enactment of the
1988 Constitution, which recognizes full equality between the sexes and positively
influences the legislation that comes in its wake, such as the 2002 Civil Code, which
enshrines equality in the family, the Maria da Penha Law, which criminalizes
domestic violence, and the Feminicide Law, which makes homicide committed based
on gender against women a qualified crime. Next, the criminal type of rape is
analyzed in order to demonstrate that it has only recently become a crime against a
human rights subject, and not against the man who owned his property. It analyzes
the concept of rape, the consequences for the victim, the rapist's psychology, the
cultural concept of the crime and its main causes. It is estimated that the second
highest rate of rapes is within love relationships, so that their specific aspects and
their relationship with domestic and family violence against women are analyzed.
Finally, judicial decisions from all States of the Federative Republic of Brazil are
analyzed in order to establish the permeability of the Judiciary to rape crimes
occurring in the domestic and romantic sphere.
Keywords: feminist theory, domestic violence, rape, marital rape.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA À LUZ DA TEORIA FEMINISTA ................................ 14
1.1 PATRIARCADO E GÊNERO .......................................................................... 14
1.2 FALSA NEUTRALIDADE DA LEI.................................................................... 20
1.3 ESPAÇO PÚBLICO E ESPAÇO PRIVADO, CASAMENTO E DIVISÃO
SEXUAL DO TRABALHO ..................................................................................... 24
1.4 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA .............................................................................. 35
2 NORMATIZAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES NO BRASIL ..................... 41
2.1 PERÍODO COLONIAL .................................................................................... 41
2.2 BRASIL IMPÉRIO ........................................................................................... 46
2.3 REPÚBLICA VELHA....................................................................................... 48
2.4 ERA VARGAS E SEGUNDA REPÚBLICA ..................................................... 54
2.5 DITADURA CIVIL-MILITAR ............................................................................ 58
2.6 RETOMADA DEMOCRÁTICA ........................................................................ 68
3 ESTUPRO E SUAS DIMENSÕES ........................................................................ 74
3.1 ANÁLISE HISTÓRICA DO TIPO PENAL ........................................................ 74
3.2 DEFINIÇÃO DE ESTUPRO ............................................................................ 85
3.3 ESTUPRO MARITAL ...................................................................................... 98
4 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS SOBRE ESTUPRO MARITAL ................ 105
4.1 REGIÃO SUL................................................................................................ 105
4.1.1 Rio Grande do Sul .................................................................................. 105
4.1.2 Paraná ................................................................................................... 109
4.1.3 Santa Catarina ....................................................................................... 111
4.2 REGIÃO SUDESTE ...................................................................................... 114
4.2.1 São Paulo .............................................................................................. 114
4.2.2 Rio de Janeiro ........................................................................................ 118
4.2.3 Minas Gerais .......................................................................................... 118
4.2.4 Espírito Santo ........................................................................................ 123
4.3 REGIÃO CENTRO-OESTE .......................................................................... 123
4.3.1 Goiás ..................................................................................................... 123
4.3.2 Distrito Federal ....................................................................................... 126
4.3.3 Mato Grosso do Sul ............................................................................... 129
4.3.4 Mato Grosso .......................................................................................... 132
4.4 REGIÃO NORDESTE ................................................................................... 135
4.4.1 Bahia...................................................................................................... 135
4.4.2 Paraíba .................................................................................................. 138
4.2.3 Piauí ....................................................................................................... 139
4.4.4 Maranhão ............................................................................................... 140
4.4.5 Pernambuco ........................................................................................... 143
4.4.6 Alagoas .................................................................................................. 144
4.5.7 Rio Grande do Norte .............................................................................. 147
4.5.8 Ceará ..................................................................................................... 147
4.5.9 Sergipe .................................................................................................. 148
4.5 REGIÃO NORTE .......................................................................................... 148
4.5.1 Amazonas .............................................................................................. 148
4.5.2 Acre ....................................................................................................... 150
4.5.3 Rondônia................................................................................................ 153
4.5.4 Roraima ................................................................................................. 157
4.5.5 Tocantins ............................................................................................... 161
4.5.6 Pará ....................................................................................................... 162
4.5.7 Amapá ................................................................................................... 166
4.6 QUADRO ANALÍTICO .................................................................................. 167
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 187
11
INTRODUÇÃO
1
LÉVI-STRAUSS, Claude. O olhar distanciado. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 82.
2
FIRESTONE, Shulamith. A Dialética do Sexo. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976, p. 94.
3
““Patriarcado” vem da combinação das palavras gregas pater (pai) e arkhe (origem e comando).
Essa raiz de duplo sentido se encontra em arcaico e monarquia. Para o grego antigo, a primazia no
tempo e a autoridade são uma só e a mesma coisa. Portanto, o patriarcado é literalmente a
15
foi utilizado para justificar uma doutrina absolutista. Nessa etapa do pensamento
patriarcal, o poder paterno nas relações familiares era o modelo para explicar as
outras relações de poder, inclusive de um rei com seus súditos. O poder do pai
sobre os filhos e a família era natural; o poder político do pai sobre eles derivaria da
sua capacidade de reprodução4, assim como o poder do rei derivaria diretamente
desse poder. A forte influência da Igreja Católica determinou a força do patriarcado,
assim como a predestinação do rei; a determinação bíblica era de que o lugar da
mulher fosse limitado à vontade masculina. Conforme Auad:
a maioria não acredita que já tenha havido matriarcado, de forma que essa é a maior
diferença entre o patriarcado de Engels e o utilizado pelas feministas atualmente 7.
A história do contrato social conta que este foi feito como uma forma de
limitação dos poderes então tidos como “naturais”, o poder do pai e o poder do rei,
para que os indivíduos pudessem exercer pessoalmente seus direitos. Assim, os
homens deixam de se ver como filhos e pais e passam todos ao status de indivíduo,
com poderes políticos, abandonando o patriarcado e estabelecendo uma
fraternidade civil, considerados irmãos, pois submetidos igualmente à mesma lei e
com poderes iguais8.
Filmer, o maior defensor do patriarcalismo (enquanto sistema de poder que
sustenta a monarquia), entendia que o poder paterno é apenas uma dimensão do
patriarcado. O direito sexual ou conjugal sobre a esposa precede o direito sobre os
filhos, de forma que o poder do homem se constitui antes mesmo dele se tornar pai 9.
Assim, o poder sexual é precedente ao poder paterno.
Embora os contratualistas fossem contra o poder paterno como fundador do
poder político, o poder conjugal ou sexual foi pouco explorado, e é ele que dá origem
ao poder patriarcal. Assim, quando do estabelecimento do contrato social, o direito
patriarcal do pai não foi eliminado, mas sim divido entre todos os homens; o poder
sexual patriarcal passa a ser um direito universal 10. Na égide do contratualismo, o
poder sexual se constitui por meio do contrato de casamento.
No entanto, assim como o poder sexual é apenas um atributo do poder
paterno, o poder sexual não está restrito à unidade familiar. As mulheres estão
subordinadas aos homens enquanto unidade fundadora da sociedade civil, não
apenas aos seus pais ou maridos. Em outras palavras, o sistema de controle
pessoal foi transformado num sistema de controle impessoal, mediado pelas
instituições11. Conforme Pateman:
7
DELPHY, Cristine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, Helena et al. (org). Dicionário Crítico do
Feminismo. São Paulo: Unesp, 2009, p. 175.
8
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 121.
9
Ver FILMER, Robert. Patriarcha, or the natural power of the kings. Londres: Richard Chiswell,
1680.
10
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 163.
11
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 138.
17
Assim, o termo gênero passou a ser utilizado pelas feministas para enfatizar o
caráter social das diferenças entre os sexos. O conceito é relacional, ou seja, é
12
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 29.
13
“Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos
político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico.” SAFFIOTI, Heleith
I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 50.
14
HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more progressive
union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979, p. 11.
15
Ver HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more
progressive union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979; HARTMANN, Heide. Capitalism,
patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3.
16
SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004, p. 45.
18
17
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto
Alegre, v.20, nº2, jul-dez 1995, p. 75.
18
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 24.
19
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 8.
20
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 45.
21
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 52.
22
“Heterossexuality, supposed natural, is found to be forced on women moment to moment. Qualities
pointed to as naturally and eternally feminine – nurturance, intuition, frailty, quickness with their
fingers, orientation to children – (…) look simply like descriptions of the desired and required
characteristics of particular occupants of women’s roles.” MACKINNON, Catherine. Toward a
feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989, p. 90.
19
23
MACKINNON, Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1989, p. 119.
24
“All this sugests that what is called sexuality is the dynamics of control by which male dominance
(…) eroticizes and thus defines man and woman, gender identity and sexual pleasure. It is also that
which mantains and defines male supremacy as a political system. Male sexual desire is thereby
simultaneously created and serviced, never satisfied once and for all, while male force is romanticized,
even sacralized, potentiated and naturalized, by being submerged into sex itself.” MACKINNON,
Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989, p.
137.
25
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 20.
20
26
BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu. Campinas, vol. 42, jan-jul 2014, pp 249-
274.
27
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 17.
28
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 29.
29
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 32.
21
30
BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993,
p. 12
31
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 39.
32
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013, p.
60.
33
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013, p.
58.
22
34
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Tratado sobre a economia política. Versão online, disponível em:
<https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/tratado-sobre-economia-politica.pdf>. Acesso
em: 11 dez 2020.
35
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 49.
36
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 47-48.
23
37
“Durante o congresso antiescravista mundial que aconteceu em Londres em 1840, as quatro
delegadas norte-americanas não foram bem recebidas. Os congressistas ficaram escandalizados
com sua presença, não as reconheceu como delegadas e as impediu de participar. As quatro
mulheres só puderam assistir às sessões atrás das cortinas. (...)” GARCIA, Carla Cristina. Breve
História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 53.
38
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 55.
39
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 58.
40
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 64.
41
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 79.
24
42
AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 47
43
MACKINNON, Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1989, p. 94.
44
MACKINNON, Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1989, p. 163.
25
45
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013, p.
61.
46
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 18.
47
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 146.
48
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 28.
49
Ver RUSKIN, John. Of Queen’s Gardens. Londres: 1864.
26
50
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 53.
51
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 143.
52
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 178.
53
Ver TABET, Paola. Mãos, instrumentos, armas. In: FERREIRA, Verônica et al (org.). O patriarcado
desvendado. Recife, SOS Corpo, 2014.
54
KERGOAT, Danièle. Divisão Sexual do Trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et
al. (org). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Unesp, 2009, p. 67.
55
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 89.
56
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Estudos Feministas. Florianópolis, ano 16,
nº2, maio-ago 2008, p. 323.
27
57
“The law of privacy treats the private sphere as a sphere of personal freedom. For men, it is. For
women, the private is the distinctive sphere of intimate violation and abuse, neither free nor
particularly personal. Men’s realm of private freedom is women’s realm of collective subordination.”
MACKINNON, Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1989, p. 168.
58
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 176.
59
ENGELS, Frederich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo:
Lafonte, 2012, p. 64.
60
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 102.
28
A família é uma instituição essencial para o Estado, pois é através dela que a
sociedade se reproduz. Assim, para assegurar que a estrutura da família se
mantenha e as mulheres continuem cuidando da família sem retribuição, a
legislação sobre família e assistência social afirma e mantém a subordinação
feminina64. É particularmente notável o esforço que a Alemanha nazista fez para
manter e reproduzir a família nuclear patriarcal, como o faz muitos governos
autoritários. A ideia é de que o tirano tenha um representante em cada família – o
pai65.
A família nuclear patriarcal é extremamente desigual; não é que os membros
(mãe e filhos) dependem apenas economicamente do homem; este é visto como o
seu representante natural, o chefe da família. Há de se notar, no entanto, que a
posição da sociedade em relação à criança mudou muito a fim de solidificar a
autoridade do pai. As crianças trabalhavam como adultos. Na verdade, até a idade
média, não havia o conceito de infância; as crianças eram pouco diferenciadas dos
adultos. A semelhança era a dependência econômica, pois geralmente a criança se
61
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 90.
62
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 103.
63
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987, p. 9.
64
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013,p.
73.
65
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 146.
29
66
FIRESTONE, Shulamith. A Dialética do Sexo. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976, p. 93.
67
A autora explica a ideologia que se forma a fim de sustentar essa nova posição da criança na
família; a visão das crianças como anjos e sua proximidade de Deus, bem como de inocência, serve
para justificar a noção de que as crianças são diferentes dos adultos e por isso devem ser tratadas de
forma infantilizada. Ver FIRESTONE, Shulamith. A Dialética do Sexo. Rio de Janeiro: Labor do
Brasil, 1976.
68
FIRESTONE, Shulamith. A Dialética do Sexo. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976, p. 99.
69
HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more progressive
union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979, p. 17.
70
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 17.
30
suas esposas. A ideia era que “o marido detinha a propriedade da pessoa da sua
esposa, e o homem era um proprietário e um senhor absoluto somente se ele
pudesse fazer o que quisesse com seu bem”71.
Assim, além do sexo, as esposas tem responsabilidade de fornecer cuidados
múltiplos para o lar. No entanto, não são empregadas, pois não fazem parte do
espaço público ou recebem salário. A prestação dos serviços do lar é vista como
natural; ser uma esposa significa prestar serviços domésticos para o marido. A
construção do trabalhador pressupõe uma esposa em casa cuidando das suas
necessidades72.
Note-se que o trabalho prestado pelas mulheres no espaço doméstico não é
diferente do trabalho efetuado nas empresas, mas é apropriado de forma diferente,
de forma que se torna menos valioso. O trabalho das mulheres no lar gera riqueza
em valores de uso que é apropriada pelos homens, determinando uma relação de
exploração econômica73.
A inserção das mulheres (e das crianças) no mercado de trabalho não foi
aceita pacificamente pelos homens, muito embora o capitalismo tenha se
aproveitado dessa força de trabalho por serem mais vulneráveis, tanto por causa
das relações de autoridade na família tanto pela sua extrema necessidade
econômica74. A revolução industrial levava toda a força de trabalho disponível, em
especial a mais barata, para as fábricas. Os homens entendiam que as mulheres e
as crianças receberem salários minava as relações de autoridade na família, e
mantinha os salários baixos para todos os trabalhadores 75. Além de serem uma
competição barata, as mulheres trabalhadoras eram esposas dos trabalhadores,
deviam serviços a eles e o trabalho na indústria diminuía drasticamente a
quantidade de serviços que aquela esposa prestava76.
71
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 184.
72
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 196.
73
MIGUEL, Luís Felipe. Voltando a Discussão sobre capitalismo e patriarcado. Estudos Feministas.
Florianópolis, set-dez 2017, p. 1230.
74
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 150.
75
Hartmann entende que a conquista dos homens se deu porque foram mais hábeis em se
organizarem sindicalmente, reforçando a ideia de que os homens mantém uma fraternidade. Os
sindicatos apoiavam a legislação protetora para mulheres, mas não para os homens, visando criar
impedimentos para o trabalho feminino. Ver HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job
segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3.
76
HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more progressive
union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979, p. 16.
31
77
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 46.
78
Hartmann entende que o salário família se estabeleceu como norma a fim de resolver o conflito que
se estabelecia socialmente quando as mulheres ingressavam na força de trabalho, a fim de mantê-las
no espaço doméstico, assegurando a noção de esferas separadas e a dependência econômica da
mulher, sendo uma maneira de reforçar a dominação masculina. HARTMANN, Heidi. The Unhappy
marriage of marxism and feminism: toward a more progressive union. Capital & Class. Nova York,
vol. 2, 1979, p. 16.
79
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 206.
80
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 103.
32
81
Num sentido amplo, englobando socialismo utópico e socialismo marxista.
8282
AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 52.
83
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 66.
84
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 71.
33
85
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 76.
86
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 84.
87
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 108.
88
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013, p.
72.
89
Governo Federal, Ministério da Economia, Secretaria da Previdência. CNP: Estudo mostra que
mulheres recebem 30% a menos que homens no Mercado de trabalho formal. 08 jun 2020.
Disponível em: <https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/noticias/previdencia/conselho-de-
previdencia/cnp-estudo-mostra-que-mulheres-recebem-30-menos-que-homens-no-mercado-de-
trabalho-formal>. Acesso em: 17 mar 2021.
34
em relação aos homens90. As mulheres trabalham muito mais tempo que os homens
entre esfera doméstica e esfera produtiva91, mas as ocupações e salários inferiores
ainda determinam majoritariamente sua dependência econômica em relação aos
seus maridos. A inferioridade na esfera doméstica determina a desigualdade na
esfera produtiva, e esta serve como mecanismo a fim de se manter a primeira,
mantendo as mulheres financeiramente dependentes dos homens 92.
A separação das esferas, a divisão sexual do trabalho e o poder sobre a
esposa na esfera doméstica são as grandes bases materiais que sustentam o
patriarcado. A base não é apenas econômica, no sentido da discriminação de
salários e postos inferiores, mas também da sua sexualidade, no próprio controle da
sua capacidade de reprodução93.
Podemos, assim, definir alguns aspectos que determinam majoritariamente a
subordinação da mulher: a participação marginal na produção e a consequente
dependência econômica; sua responsabilidade completa na reprodução sexual e a
responsabilidade a ela atribuída pela reprodução na vida cotidiana; sua sexualidade,
controlada e determinada pelos homens; e finalmente, sua responsabilidade primária
no cuidado das crianças94. Embora esses aspectos sejam ainda hoje largamente
defendidos em nome da natureza, apenas um dos mecanismos é essencialmente
natural; os demais são construídos socialmente a fim de sustentar a dominação
masculina. Embora a cultura ocidental reconheça hoje a igualdade de direitos entre
homens e mulheres, as desigualdades e a subordinação se mantêm de fato no
cotidiano feminino. A violência doméstica é um dos componentes que contribuem
atualmente para manter a desigualdade entre os gêneros e a subordinação das
mulheres aos homens, especialmente no âmbito familiar.
90
FACAMP. Mulheres no mercado de trabalho no 1º trimestre de 2020. 09 jun 2020. Disponível em:
<https://www.facamp.com.br/pesquisa/economia/npegen/mulheres-no-mercado-de-trabalho-no-1o-
trimestre-de-2020/>. Acesso em: 17 mar 2021.
91
Agência de Notícias IBGE. Em média, mulheres dedicam 10,4 horas por semana a mais que os
homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. 04 jun 2020. Disponível em:
<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/27877-em-media-mulheres-dedicam-10-4-horas-por-semana-a-mais-que-os-
homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas>. Acesso em: 17 mar 2021.
92
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 139.
93
SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004, p. 106
94
EISENSTEIN, Zillah. Constructing a Theory of capitalist patriarchy and socialist feminism. Critical
Sociology, 1999, vol. 25, p. 206.
35
95
SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004, p. 17.
96
COVID-19 and violence against women What the health sector/system can do. WHO, 2020.
Disponível em: <https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/331699/WHO-SRH-20.04-eng.pdf>.
Acesso em: 24 mar 2021.
97
COVID-19 and Ending Violence against Women and Girls. UN Woman, 2020. Disponível em:
<https://www.unwomen.org/-
/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2020/issue-brief-covid-19-and-ending-
violence-against-women-and-girls-en.pdf?la=en&vs=5006 >. Acesso em: 24 mar 2021.
36
possível afirmar que a violência doméstica é uma questão que afeta diretamente o
bem-estar feminino, além de uma violação de direitos humanos que impacta toda a
sociedade.
A violência doméstica pode ocorrer de diversas formas, sendo a mais
evidente delas a violência física; mas a violência doméstica muitas vezes se
manifesta como uma violência emocional, com humilhações constantes,
intimidações ou ameaças, ou através de sua forma psicológica, com o agressor
monitorando o comportamento da vítima, proibindo contato com família e amigos,
bem como controlando acesso aos recursos financeiros. Finalmente, a violência
doméstica também se manifesta por meio de violência sexual 98.
As mulheres que não abandonam seus agressores muitas vezes são vistas
como passivas, mas a maior parte delas busca estratégias para proteger a si e aos
seus filhos. Existem muitas razões para as mulheres permanecerem nesses
relacionamentos, sendo as principais o medo de retaliação, preocupação com os
filhos, falta de suporte familiar ou de amigos, medo do estigma do divórcio,
esperança de que o parceiro mude e, finalmente, falta de meios alternativos para se
manter financeiramente. Os principais fatores que levam as mulheres a finalmente
abandonarem esses relacionamentos são a intensificação da violência, a aceitação
de que o parceiro não irá mudar e a percepção de que a violência também afeta aos
filhos99.
A violência doméstica pode ocorrer em qualquer relacionamento; no entanto,
alguns fatores podem contribuir para a sua realização. Quanto à dimensão
individual, no que tange às mulheres (vítimas), são fatores de risco a juventude,
baixo nível de educação, testemunhar ou ter sido vítima de violência na infância,
abuso de álcool e drogas, distúrbios de personalidade, tolerância à violência e
histórico de abusos passados. Quando aos homens (perpetradores), baixo nível de
educação, desemprego ou subemprego, exposição à violência entre os pais, abuso
sexual na infância, tolerância à violência, abuso de drogas e exposição a outras
formas de violência anteriormente são os principais fatores de risco.
98
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
99
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
37
100
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
101
DRYDEN-EDWARDS, Roxanne. Domestic Violence. Medicine Net. Disponível em:
<https://www.medicinenet.com/domestic_violence/article.htm#domestic_violence_facts>. Acesso em:
24 mar 2020.
102
TOTTEN, M. Girlfriend abuse as a form of masculinity construction among violent, marginal male
youth. Men and Masculinities, 6(1), 70-92, 2003.
103
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 156.
104
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 43.
38
105
ANDERSON, K. L., & UMBERSON, D. Gendering violence: Masculinity and power in men's
accounts of domestic violence. Gender & Society, 15(3), 358-380, 2001.
106
TOTTEN, M. Girlfriend abuse as a form of masculinity construction among violent, marginal male
youth. Men and Masculinities, 6(1), 70-92, 2003.
107
ANDERSON, K. L., & UMBERSON, D. Gendering violence: Masculinity and power in men's
accounts of domestic violence. Gender & Society, 15(3), 358-380, 2001.
108
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 164.
39
109
SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004, p. 82.
110
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 159.
111
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
40
112
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
113
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
114
COVID-19 and Ending Violence against Women and Girls. UN Woman, 2020. Disponível em:
<https://www.unwomen.org/-
/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2020/issue-brief-covid-19-and-ending-
violence-against-women-and-girls-en.pdf?la=en&vs=5006 >. Acesso em: 24 mar 2021.
41
Se a história das mulheres foi excluída da história oficial por muitos anos, isso
é particularmente verdade no que tange ao período da colônia. Nessa época, o
Brasil era habitado por diversos povos indígenas. Não seria preciso dizer que
apenas aos homens eram permitidas as viagens marítimas. Assim, quando os
portugueses chegaram nestas terras, buscaram utilizar a força dos homens nativos
para o trabalho escravo e as mulheres como concubinas ou empregadas 116. Não é
exagero dizer que a miscigenação foi fruto do estupro das mulheres indígenas.
Quanto ao retrato que foi feito dos indígenas, vale ressaltar que foi resultado
da perspectiva cristã que os europeus tinham; assim, os costumes diferentes dos
nativos eram vistos como indícios da influência do Diabo, de forma que os brancos
entendiam que eram superiores a eles. A poligamia existia, difundida entre os chefes
indígenas, como símbolo de prestígio. Entende-se que havia grande liberdade
sexual entre os solteiros, de forma que as mulheres indígenas, antes do casamento,
115
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 10.
116
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 17.
42
117
RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 20.
118
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 18
119
FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 37.
120
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: DEL PRIORI, Mary
(org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 37
43
121
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 19
122
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 21-22.
123
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 23.
124
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 38.
44
125
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 48.
45
Como muitos dos fatos que tem grande impacto na vida da sociedade e do
povo brasileiro, a independência do Brasil foi um acordo entre as elites. Com o
advento da Revolução Industrial, a Inglaterra precisava de matéria prima e mercado
consumidor para sua produção; Portugal estava sendo fortemente pressionada para
ceder a colônia. Ao mesmo tempo, as ideias do liberalismo chegavam até aqui,
fortalecendo a ideia da independência. O acordo, feito pela elite local com Portugal,
tornou o Brasil uma monarquia. O processo foi fortemente apoiado pela maçonaria,
fraternidade onde apenas homens eram (e são) admitidos. As mulheres estiveram
excluídas desse momento histórico130.
Na primeira metade do século XIX, as mulheres passaram a reivindicar seu
direito à educação. Até então, elas só tinham direito de estudar até o 1º grau, onde
aprendiam basicamente as atividades do lar. O ensino mais qualificado só era
permitido para os meninos. As professoras ganhavam menos que seus colegas
homens. As escolas dedicadas ao ensino de meninas eram em número inferior as
escolas de menino. Em 1881, a primeira mulher ingressou no ensino superior, e
somente em 1887 se graduou Rita Lobato Velho Lopes, em medicina 131. O papel da
mulher foi pouco alterado; a ela ainda cabia o lugar de dona de casa. Conforme
Melo e Thomé:
130
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 27
131
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 28.
47
132
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder: histórias, ideias e indicadores.
Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 56.
133
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 29.
134
Nísia Floresta defendeu a abolição, ao lado de propostas como a emancipação da mulher. Maria
Firmina dos Reis, negra, a primeira romancista brasileira. Chiquinha Gonzaga, primeira compositora
popular brasileira, ativista abolicionista e crítica da monarquia.
135
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 34.
48
136
BRASIL, Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 14 dez 2020.
137
BRASIL, Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 14 dez 2020.
49
138
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 16.
139
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder: histórias, ideias e indicadores.
Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 61.
140
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 18.
50
141
MELO, Hildete Pereira de; MARQUES, Tereza Cristina. Partido Republicano Feminino.
Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/PARTIDO%20REPUBLICANO%20FEMININO.pdf>. Acesso em: 11 dez 2020.
142
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 42.
143
SOIHET, Renata. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORI, Mary (org.).
História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 37.
144
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 43.
51
145
GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira. In: DEL
PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 641.
146
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 17.
147
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 25.
148
A Coluna Prestes foi uma marcha político-militar, parte do movimento Tenentista no Brasil. A crise
advinda do pacto oligárquico, que privilegiava as elites paulista e mineira, fez com que as camadas
médias da população passassem a questionar o sistema político. O ápice foi o governo do presidente
Arthur Bernardes, com indícios autoritários. Os jovens oficiais do exército, tenentes, de classe média
e forte influência liberal, passaram a representar os anseios da população. As primeiras revoltas
foram sufocadas em quase todo o Brasil, mas Luís Carlos Prestes, tenente no Rio Grande do Sul,
percorreu quase todo o país com seus soldados sem sofrer derrotas. A grande importância desse
movimento político deve-se ao fato da sociedade civil, de forma orgânica, ter-se unido à Coluna. Após
mais de 2 (dois) anos de marchas pelo Brasil, Prestes decidiu partir pro exílio a fim de pensar em uma
forma de lidar com a extrema pobreza, pois acreditava que não bastaria a mudança de governantes
52
para solucionar os graves problemas sociais do Brasil. Posteriormente, Prestes se tornaria a maior
liderança comunista no país. PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: patriota,
revolucionário, comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
149
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 45.
150
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder: histórias, ideias e indicadores.
Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 66.
151
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 46.
152
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 28.
153
CASTRO, Flávia Lages. História do Direito Geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,
p. 433.
53
154
BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
155
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 23.
54
156
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil.
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3071-1-janeiro-1916-397989-
publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
157
GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira. In: DEL
PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 641.
158
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 47.
55
159
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 48.
160
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 49.
161
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 49.
56
162
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 608.
163
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 51.
164
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 14
dez 2020.
57
165
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal (redação original).
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-
1940-412868-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
166
BRASIL. Decreto-lei nº5.452, de 1º de maio de 1943. Consolidação das Leis Trabalhistas (redação
original). Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-
maio-1943-415500-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
58
A partir dos anos 60, surgiu no Brasil um forte movimento popular social; a
industrialização levou à urbanização. As desigualdades sociais acentuaram-se no
campo e na cidade; os camponeses intensificaram a luta pela reforma agrária.
Quando João Goulart, declaradamente socialista, tomou posse, anunciou a decisão
de aprovar a reforma agrária e aumentar o salário mínimo em 100%. Desse
momento em diante, os golpistas passaram a mobilizar a sociedade para legitimar
suas ações contra a democracia. Para isso, usaram mulheres; milhares delas foram
às ruas na Marcha com Deus pela Família e a Liberdade. Os movimentos de
mulheres que encabeçaram a manifestação tinham um caráter reacionário, visando
eliminar a “ameaça comunista” e evitar mudanças de caráter popular. Entretanto, a
grande massa de mulheres que participou da Marcha era composta de empregadas,
faveladas e trabalhadoras que, ludibriadas por princípios religiosos, acreditavam que
167
CASTRO, Flávia Lages. História do Direito Geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,
p. 519.
168
BRASIL. Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Estatuto da Mulher Casada. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-
1969/l4121.htm#:~:text=A%20mulher%20casada%20pode%20livremente,ou%20suprimento%20do%
20juiz%20(art.>. Acesso em: 14 dez 2020.
59
169
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 53.
170
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 56.
171
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p 58.
60
172
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 64.
173
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 73.
174
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 76.
175
BLAY, Eva Alterman. Como as mulheres se construíram como agentes políticas e democráticas: o
caso brasileiro. In: BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia (org.). 50 anos de feminismo: Argentina,
Brasil e Chile. São Paulo: EDUSP, 2017, p. 75-76.
61
179
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 112.
180
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 105.
181
“A oposição unida tornara-se imbatível e os militares gradualistas, sob a liderança do presidente
Figueiredo, trataram de, por meio de uma reforma, criar espaços para as múltiplas manifestações
político-ideológicas das oposições, quebrando assim sua unidade e a possibilidade, bastante real, de
uma vitória eleitoral. Se a reforma, por um lado, realmente implodiu a unidade oposicionista, por outro
veio ao encontro dos anseios por expressão própria das múltiplas correntes que se agrupavam sob a
sigla do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).” PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do
Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 68.
182
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1999, p. 118.
63
183
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 121.
184
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Ábramo, 2001, p. 68.
185
BLAY, Eva Alterman. Como as mulheres se construíram como agentes políticas e democráticas: o
caso brasileiro. In: BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia (org.). 50 anos de feminismo: Argentina,
Brasil e Chile. São Paulo: EDUSP, 2017, p. 83.
186
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 142.
64
187
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 68
188
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 89.
189
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 146.
190
GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira. In: DEL
PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 648.
65
191
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 149.
192
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 151.
66
tratamento social e das autoridades sempre foi no sentido de colocar a vítima numa
posição de instigadora da violência193194.
Em 1982, mesmo ano da criação do Movimento das Mulheres pelas Diretas
Já, os governadores voltaram a ser eleitos por voto direto, sendo essa eleição um
triunfo para a oposição ao regime; na campanha, a violência doméstica foi uma
pauta destacada. A violência doméstica sempre foi tratada no país como um tabu. A
não submissão da mulher ao homem era justificativa para a agressão. A
jurisprudência brasileira sagrou o direito do homem de matar em legítima defesa da
honra. Em 1985, o governador paulista Franco Montoro criou a Delegacia Policial de
Defesa da Mulher, com pessoal especializado, inclusive mulheres. A demanda
começou a crescer. O espaço doméstico não recebia visibilidade; a partir de então,
se começou a enxergar a casa como um lugar potencialmente perigoso para a
mulher, com endosso do poder público195.
No mesmo ano, criou-se o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
(CNDM), fruto da iniciativa das mulheres do PMDB junto ao presidente Tancredo
Neves. Foi criado junto ao Ministério da Justiça, com status de ministro para a
presidenta e com orçamento próprio. Com o governo Collor, perdeu orçamento e a
influência das feministas na escolha das dirigentes. Sua maior importância se deu na
intervenção junto à Constituinte196.
A ditadura militar foi um período de inúmeros retrocessos em matéria de
direitos humanos e políticos. O processo decisório foi alienado, de forma que a
participação social era reprimida e desencorajada. Assim, a previsão do artigo 150,
da Constituição 1967197, que proíbe a distinção por sexo e institui a igualdade legal,
foi muito mais uma decisão dos militares, influenciados pela Declaração Universal
dos Direitos dos Homens, de 1948, do que uma conquista das mulheres198. Na
prática, a mulher ainda estava submissa no interior do lar, bem como os demais,
excluída dos direitos políticos e sujeita às violações de direitos humanos da época.
193
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 134.
194
O assunto será exaustivamente tratado no capítulo 3.
195
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 137.
196
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 72.
197
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 14 dez 2020.
198
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 27.
67
passa a ser obrigatória antes da concessão do divórcio (artigo 31). O divórcio direto
era reservado àqueles que já estivessem separados de fato há mais de cinco anos,
comprovada a causa da separação e antes da promulgação da referida lei (artigo
40), porém os requisitos não eram simples. A lei tornou possível casar apenas mais
uma vez (artigo 38), já que do segundo casamento não seria concedido divórcio,
pois o pedido só podia ser formulado uma única vez.
Embora tenha representado um grande avanço na situação civil e na
liberdade das mulheres, a lei previa que o juiz tinha o dever de tentar todas as
formas de conciliação antes da concessão do divórcio (artigo 3º, §2º), resquícios da
interferência estatal na preservação do casamento. Assim, ainda que tenha sido
muito importante e atendido aos anseios de mulheres de por termo à sociedade
conjugal desvantajosa, muitas vezes apresentava excessivos óbices, como o longo
tempo para a conversão em divórcio (ou seja, para efetivamente romper os laços
conjugais, já que a separação permitia reconciliação e obstava novos casamentos) e
as tentativas exaustivas de reconciliação.
202
Os deputados e senadores que redigiram a CRFB/88 não foram eleitos exclusivamente para a
Constituinte, como ocorre numa Assembleia, mas continuaram em seus cargos após a promulgação
da nova Constituição, de forma que se pode dizer que os políticos que formularam a Constituição de
1988 estão mais próximos de um Congresso Constituinte. Ver: FGV – CPDOC. Verbete: Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-88. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/assembleia-nacional-constituinte-de-
1987-88>. Acesso em: 16 maio 2020.
203
Ainda que seja um número ínfimo, as eleições de 1986 mais que dobraram o número de
deputadas e senadoras em relação aos homens, um aumento percentual de 1,9% para 5,3% de
representação feminina no Congresso. Ver: PITANGUY, Jacqueline. A Carta das Mulheres Brasileiras
aos Constituintes: memórias para o futuro. In: BERTOLIN, Patrícia Martins Tuma; ANDRADE, Denise
Almeida de; MACHADO, Mônica Sapucaia (org.). Carta das Mulheres Brasileiras aos
Constituintes: 30 anos depois. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.
69
204
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 74.
205
Ver BERTOLIN, Patrícia Martins Tuma; ANDRADE, Denise Almeida de; MACHADO, Mônica
Sapucaia (org.). Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: 30 anos depois. São Paulo:
Autonomia Literária, 2018.
206
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 75.
70
207
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 144.
208
ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Emendas Populares. Janeiro de 1988. Disponível
em: <https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-258.pdf>.
Acesso em: 11 dez 2020.
209
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 77.
71
ambos na sociedade conjugal (artigo 226) 210. Na prática, isso significou que as
mulheres não mais estavam formalmente subordinadas à autoridade do marido,
assumindo iguais responsabilidades no comando familiar.
O § 6º do artigo 226 apresenta importante alteração quanto ao divórcio,
reduzindo o prazo para a conversão e admitindo o divórcio direto. A Constituição
removeu a limitação da Lei do Divórcio, permitindo que as pessoas se casem e
divorciem quantas vezes quiserem. Em 1989, foi promulgada a Lei nº 7.841,
buscando adaptar a Lei do Divórcio às modificações constitucionais; em 1992, foi
promulgada a Lei nº 8.408, modificando novos aspectos da lei211.
O Código Civil de 2002 veio para consolidar as mudanças constitucionais de
1988, estabelecendo igualdade de gênero na família e na sociedade civil; no
entanto, manteve diversos entraves para a concessão do divórcio e da separação,
até a Lei nº 11.441, de 2007. A lei criou a possibilidade de obtenção de separação e
divórcio consensuais por vias administrativas, modificando o artigo 1.124-A do antigo
Código de Processo Civil, correspondente ao artigo 733 do Código atual. A lei foi
importante para desburocratizar o acesso ao divórcio, bem como para limitar a
intervenção do Estado nessa decisão. A Emenda Constitucional nº 66/2010 suprimiu
o requisito de tempo de separação judicial ou de fato prévia. Deixou de ser
necessária a comprovação de qualquer tipo de prazo para obtenção de divórcio,
bem como discussões sobre culpa. O processo judicial tornou-se dispensável,
tornando o divórcio muito mais acessível, rápido e simples para a população 212.
Outra importante previsão constitucional foi a do § 8º do referido artigo 226. O
dispositivo determina sobre a necessidade de mecanismos com intuito de coibir a
violência no âmbito da família; embora já houvesse delegacias especializadas em
violência contra a mulher, este era um fato corriqueiro socialmente. Com intuito de
regulamentar o dispositivo constitucional, no dia 7 de agosto de 2006 foi promulgada
a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, ensejando modificações no
Código Penal. A lei foi batizada em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes,
brasileira que ficou paraplégica após agressões de seu marido no ano de 1983.
Como o Estado Brasileiro não tomou providências, 15 anos depois do crime, em
210
BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 (redação original). Disponível
em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-
publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 15 dez 2020.
211
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 60.
212
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 74.
72
213
Ministério Público do Estado de São Paulo. História da Lei Maria da Penha. Disponível em:
<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Violencia_Domestica/Lei_Maria_da_Penha/vd-lmp-
mais/Historia_da_lei#:~:text=A%20Lei%2011.340%2F06%2C%20que%20recebeu%20o%20nome%2
0de%20%E2%80%9C,%2C%20viol%C3%AAncia%20dom%C3%A9stica%2C%20etc.)>. Acesso em:
15 dez 2020.
214
BRASIL, Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre
a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Planalto.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso
em: 15 dez 2020.
73
215
BRASIL, Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do
crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol
dos crimes hediondos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13104.htm>. Acesso em: 15 dez 2020.
216
Quando da aprovação da lei, a palavra “gênero”, mais abrangente, foi trocada pela palavra “sexo”,
mais conservadora. ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O Processo de tipificação do
feminicídio no Brasil. In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela
Corrêa (org.). Feminicídio – quando a desigualdade de gênero mata: mapeamento da tipificação na
América Latina. Joaçaba: Editora Unoesc, 2020, p. 36.
217
ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O Processo de tipificação do feminicídio no Brasil.
In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela Corrêa (org.).
Feminicídio – quando a desigualdade de gênero mata: mapeamento da tipificação na América Latina.
Joaçaba: Editora Unoesc, 2020, p. 55.
74
218
Ordenações Afonsinas: Livro V, Título IV. Da molher forçada, e como fe deve a provar a força.
Disponível em: <http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg29.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
219
Ordenações Filipinas: Livro V, Título XVIII. Do que dorme por força com qualquer mulher, ou trava
dela, ou a leva por sua vontade. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1168.htm>.
Acesso em: 16 maio 2021.
220
Ordenações Filipinas: Livro V, Título XXV. Do que dorme com mulher casada. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1174.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
221
BRASIL. Lei de 16 de Dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Parte Terceira,
Título II, Capítulo II. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>.
Acesso em: 16 maio 2021.
75
um a três anos, além de indenizá-la222. A lei também trata do que hoje chamamos de
estupro de vulnerável, quando o criminoso fosse responsável pela vítima ou tivesse
com ela laço familiar que impedisse o casamento, caso em que as penas eram
maiores223. Finalmente, o tipo penal de estupro é definido por “ter cópula carnal por
meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta”, com pena de três a
doze anos, bem como dever de indenização. Caso a vítima fosse prostituta, a pena
de prisão passava a ser de um mês a dois anos 224. Caso criminoso e vítima se
casassem, nenhuma das penas era executada 225. A legislação entendia o
matrimônio como reparação, já que a mulher não virgem era considerada impura e
dificilmente conseguiria outro casamento. Numa sociedade em que o único destino
possível para as mulheres era o casamento, parecia razoável que uma vítima se
casasse com seu estuprador a fim de aprovação social. A diferença de penas entre
as vítimas relaciona-se com o princípio da retribuição do direito penal, afinal
entendia-se que a prostituta não havia perdido tanto a honra quanto a mulher
honesta, simplesmente porque não a tinha para perder.
No Código Penal de 1890, o crime de estupro está inserido no Título VIII,
relativo aos crimes contra a honra e honestidade das famílias e do ultraje público
pudor226. Mais uma vez, a proteção não é direcionada à vítima, mas aos seus
familiares que foram desonrados com a sua violação. O tipo passa a ser definido no
artigo 269 “chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma
mulher, seja virgem ou não” e acrescenta no parágrafo único que a violência não se
restringe apenas à força física, e inclui qualquer meio que prive a mulher das suas
faculdades psíquicas e dificulte a possibilidade de resistência. A diferenciação de
penas devido ao status da vítima de prostituta ou de mulher honesta permanece;
mas ainda que a pena para estupro de prostitutas tenha sido aumentada (prisão de
seis meses a dois anos), a pena de estupro de mulher honesta foi diminuída pela
metade (prisão de um a seis anos) 227. A maior evolução legislativa foi deixar explícito
no tipo penal que o criminoso poderia ser enquadrado na lei mesmo que a vítima
não fosse mais virgem.
222
Artigo 219 do Código Criminal de 1830.
223
Artigo 220 do Código Criminal de 1830.
224
Artigo 222 do Código Criminal de 1830.
225
Artigo 225 do Código Criminal de 1830.
226
BRASIL. Decreto nº 847, de 8 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
227
Artigo 268 do Código Penal de 1890.
76
É nesta codificação que pela primeira vez aparece o tipo penal de atentado
violento ao pudor, conforme lei extravagante aprovada em 1915 228. A configuração
deste crime é particularmente importante, pois até então, como o estupro era
definido apenas pela penetração vaginal, outros atos sexuais forçados não eram
tipificados. Vale ressaltar também que a caracterização do crime por meio exclusivo
de penetração vaginal excluía homens de qualquer proteção legal quanto ao abuso
sexual. Assim, o art. 266 definia o crime por “atentar contra o pudor de pessoa de
um, ou de outro sexo, por meio de violências ou ameaças, com o fim de saciar
paixões lascivas ou por depravação moral”. Desta forma, pela primeira vez mulheres
e homens são protegidos legalmente de atos sexuais forçados além da penetração
vaginal. No Código Penal de 1890, a pena para tal crime era a mesma do estupro de
mulher honesta. Maridos que praticassem atos extravagantes ao sexo vaginal, que
era visto como dever marital, em tese, poderiam ser acusados desse crime.
No Código Penal de 1940, promulgado sob a ditadura de Getúlio, o tipo penal
passa a ser inserido no Título VI, que trata dos crimes contra o costume 229. O
capítulo I, que trata do estupro em seu artigo 213, refere-se a crimes contra a
liberdade sexual – o que aparenta certa evolução, embora, como sujeito de direito
vista como incapaz (ao se casar), a mulher da época não exatamente possuía
liberdade sexual. O crime é definido como “constranger mulher a conjunção carnal,
mediante violência ou grave ameaça”. A pena foi aumentada consideravelmente,
para prisão de três a oito anos. Quanto ao atentado violento ao pudor, o crime passa
a ser definido como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção
carnal”. A pena foi ligeiramente aumentada para prisão de dois a sete anos 230.
Embora as definições tenham sido alteradas, o crime de estupro ainda tem por
sujeito passivo unicamente a mulher, por se referir à penetração vaginal forçada. Os
outros atos sexuais forçados continuam sob a égide do crime de atentado violento
ao pudor, oferecendo proteção legal para mulheres e homens, ainda que com pena
menor.
228
BRASIL. Lei 2.992, de 25 de setembro de 1915. Modifica os arts. 266, 277 e 278 do Código Penal.
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-2992-25-setembro-1915-
774536-publicacaooriginal-138024-pl.html>. Acesso em: 16 maio 2021.
229
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 16 maio 2021.
230
Artigo 214 do Código Penal de 1940.
77
231
Artigo 215 do Código Penal de 1940.
232
Artigo 216 do Código Penal de 1940.
233
Artigo 217 do Código Penal de 1940.
234
Artigo 218 do Código Penal de 1940.
78
238 o
BRASIL. Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 – Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10224.htm>. Acesso em: 16 maio
2021.
239
Embora a legislação tenha excluído o conceito, ainda é comum que o caráter e o histórico sexual
da vítima sejam questionados a fim de estabelecer que, de alguma forma, ela contribuiu para o crime.
Um exemplo disso é o julgamento em que a blogueira Mariana Ferrer figurou como vítima de estupro,
que repercutiu midiaticamente por, dentre outros motivos, o advogado de defesa do réu ter humilhado
a vítima e questionado suas condutas sexuais anteriores como forma de degradar sua imagem e
desmoralizá-la. Ver, por exemplo: GARCIA, Dantielli Assumpção; VENSON, Ana Paula. Entre o
jurídico e o midiático, o estupro culposo: mulher e violência. Leitura. Maceió, vol. 69, mai-ago 2021.
240
BRASIL. Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e
acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e dá
outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2005/lei/l11106.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
80
vítima ou qualquer outra autoridade sobre ela, o que inclui o marido pela primeira
vez expressamente como sujeito ativo do crime de estupro, incluindo uma pena
maior em razão do parentesco. Também revoga incisos do artigo 108 do Código
Penal, que trata de extinção da punibilidade; até 2005, nos crimes sexuais,
extinguia-se a punibilidade do agente pelo casamento com a vítima, bem como pelo
casamento da vítima com outra pessoa, desde que o crime não tivesse sido
cometido por violência ou grave ameaça ou se ela não requisitasse o procedimento
da ação em até 60 (sessenta) dias da celebração do casamento. Assim, até 2005 o
intuito da lei era preservar a virgindade da mulher para garantir o casamento,
entendendo este como o objetivo máximo da sua vida, sem se preocupar com sua
integridade física ou a convivência com alguém que a violentou.
A maior inovação, porém, foi dada em 2009, pela Lei nº 12.015. O Título do
Código que trata dos crimes sexuais, o VI, deixa de trazer os crimes contra os
costumes e passa a ser nomeado “dos crimes contra a dignidade sexual”. O tipo
penal de estupro passa a ser definido no artigo 213 como “constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir
que com ele se pratique outro ato libidinoso”, e a pena foi aumentada para prisão de
seis a dez anos. O artigo 214, que tratava do atentado ao pudor, foi revogado. Na
prática, com a nova definição do crime de estupro e a revogação do artigo 214, não
só a penetração vaginal, mas todos os atos sexuais cometidos à força passam a ser
enquadrados nesse delito, aumentando a proteção legal para mulheres e homens
vítimas de qualquer violência sexual. As qualificadoras inseridas em 2009 se referem
à idade da vítima e ao resultado do crime. Assim, se a vítima tiver entre catorze e
dezoito anos ou o resultado for lesão grave, a pena de prisão deve ser entre oito e
doze anos. Havendo o resultado morte, a pena é de doze a trinta anos 241.
Os tipos penais referentes a atos sexuais cometidos com uso de fraude
(posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude) passam a ser
tratados num único dispositivo, o artigo 215, que passa a determinar o crime de “ter
conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou
outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Assim
241
BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009.
o
Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos
termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de
1954, que trata de corrupção de menores. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
81
como no caso do crime de estupro, a lei não mais diferencia penetração vaginal de
outros atos de violação sexual; nesse sentido, todos os atos sexuais praticados
mediante violência ou fraude passam a ser igualmente amparados pela lei. O crime
também teve a pena de prisão aumentada, para prisão de dois a seis anos.
Até então, os crimes sexuais contra menores de catorze anos não tinham
tipificação específica, e enquadravam-se nos crimes de estupro e atentado violento
ao pudor. Embora a violência fosse sempre presumida, ou seja, o crime sempre
fosse caracterizado, o tipo penal de estupro só protegia as meninas de violação
sexual; os meninos estavam apenas sob a proteção da lei de atentado ao pudor,
com pena inferior a do crime de estupro.
A Lei nº 12.015/2009 tem especial preocupação com crianças e adolescentes,
por isto, cria o Capítulo II, referente aos crimes sexuais contra vulnerável. Os novos
artigos inseridos visam conferir maior proteção legal às crianças e aos incapazes,
imprimindo ainda mais gravidade nos delitos cometidos contra eles, além de
tipificação própria. O artigo 217-A, que trata do estupro de vulnerável, define o delito
como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de catorze
anos”, com pena de oito a quinze anos. A lei determina que também são
considerados vulneráveis quem possuir enfermidade ou doença mental ou que não
possa oferecer resistência, por qualquer outro motivo – como o consumo de bebidas
e drogas. As qualificadoras se referem ao resultado de lesão corporal grave (prisão
de dez a vinte anos) e de morte (prisão de doze a trinta anos).
O crime de corrupção de menores muda sua descrição para “induzir alguém
menor de catorze anos a satisfazer a lascívia de outrem”, com pena de dois a cinco
anos. O crime teve seu escopo diminuído para inserir apenas terceiros, quando não
praticam efetivamente o ato, mas levam a criança a tal. O artigo 218-A e 218-B são
inseridos pela lei de 2009. O primeiro se refere ao crime de satisfação de lascívia
mediante presença de criança ou adolescente, que é definido por “praticar, na
presença de alguém menor de catorze anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção
carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem”, com
pena de dois a quatro anos de prisão. Assim, esse crime tem por escopo proteger as
crianças de atos que não as envolvam efetivamente, mas que elas possam
presenciar. O artigo 218-B, por sua vez, visa proteger menores de dezoito anos e
82
deficientes242 ou enfermos mentais (ou seja, pessoas que não têm capacidade plena
de tomar decisões) do favorecimento de prostituição, quando o incapaz é submetido,
induzido ou atraído para prostituição, bem como quando o ato é facilitado, ou
quando é impedido ou é dificultado seu abandono, com pena de quatro a dez anos
de prisão para quem cometer tais atos. As mesmas penas são devidas a quem
pratica qualquer ato libidinoso com menor de dezoito e maior de catorze anos nas
condições descritas, bem como o responsável pelo local onde se realizem tais
práticas.
A lei de 2009 traz algumas mudanças nas disposições gerais referentes aos
crimes de violação sexual. O artigo 225 passa a determinar que todos esses crimes
passam a ser de Ação Penal Pública Condicionada à representação, de forma que a
vítima não mais tem a responsabilidade de proceder com a queixa, apenas informar
e requerer ao Ministério Público que seja dado prosseguimento. No caso de
menores de dezoito anos e pessoa vulnerável, a ação penal passou a ser
incondicionada, e era processada independentemente da vontade da vítima. São
inseridas as causas de aumento de pena, de ½ quando do crime resulta gravidez e
de 1/6 a ½ quando o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível
que sabe ou deveria saber ser portador.
É apenas em 2009 que a lei determina que os processos referentes a crimes
de violação sexual corram em segredo de justiça. Antes, além do desgaste do
processo, a vítima estava sujeita a estigma social, pois havia a possibilidade de que
outros tomassem conhecimento de sua situação de vítima. A lei ainda altera a Lei de
Crimes Hediondos, inserindo o estupro de vulnerável como tal.
Em 2012, há uma importante modificação no que diz respeito aos crimes
contra vulnerável243. O prazo prescricional dos crimes passa a ser contado da data
em que a vítima completa dezoito anos, e não mais da data do fato. A prescrição,
instituto que determina a extinção da pretensão penal pelo decurso do tempo, muitas
vezes impedia que abusadores de criança não pudessem ser processados. Ao
alterar o termo inicial da prescrição, permitiu-se que crianças violadas pudessem
denunciar o crime, após adquirirem independência e capacidade.
242
Embora o termo seja reconhecidamente excludente, é o utilizado pela legislação.
243
BRASIL. Lei nº 12.650, de 17 de maio de 2012. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 - Código Penal, com a finalidade de modificar as regras relativas à prescrição dos crimes
praticados contra crianças e adolescentes. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12650.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
83
244
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais, artigo 61.
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3688-3-outubro-
1941-413573-publicacaooriginal-1-pe.html>.Acesso em: 16 maio 2021.
245
BRASIL. Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação
de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a
liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena
para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro
corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das
Contravenções Penais). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/lei/L13718.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
84
de humilhar a vítima. O artigo 218-C define o crime por uma série de ações, como
“oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir,
publicar ou divulgar, por qualquer meio” foto, vídeo ou registro audiovisual que
retrate ou faça apologia a estupro e estupro de vulnerável, bem como de sexo,
nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima. O crime tem como causa de
aumento de pena, de 1/3 a 2/3, se o crime é praticado por quem mantém ou tenha
mantido relação com a vítima, a fim de se vingar ou humilhá-la (revenge porn). O
parágrafo 2º traz a excludente de ilicitude a fim de não conflitar com a liberdade de
expressão; assim, quando tais atos forem praticados com fins jornalísticos, culturais,
científicos ou acadêmicos, havendo autorização da vítima maior de idade e não
identificando-a, o crime não se configura.
A maior contribuição dessa lei, porém, é a alteração do tipo de ação
processual referente aos processos de abuso sexual. Todos os crimes tipificados
contra a liberdade sexual e contra vulneráveis passam a ser de ação penal pública
incondicionada. Isso significa que independente do status e da vontade da vítima,
todos os crimes sexuais que chegarem ao conhecimento do Ministério Público
devem ser processados.
As disposições gerais também são alteradas. As causas de aumento de pena
passam a ser de ½, quando o crime é praticado por parente ou pessoa de confiança
ou autoridade sobre a vítima, e de 1/3 a 2/3 no caso de concurso de pessoas ou da
prática chamada de estupro corretivo, quando a violência sexual tem o intuito de
coibir ou controlar o comportamento sexual e social da vítima. As causas de
aumento de pena quanto ao resultado passam a ser de ½ a 2/3, quando do crime
resulta gravidez, e de 1/3 a 2/3 quando há transmissão de doença venérea, ou
quando a vítima é idosa ou pessoa com deficiência.
Também em 2018, a lei nº 13.722 reconhece a violação da intimidade da
mulher como violência, criminalizando tal ação como violência psicológica a
enquadrar-se na Lei Maria da Penha. O registro não autorizado de cena de nudez ou
ato sexual passa a ser crime, inserido no artigo 216-B do Código Penal,
independente de disponibilizar para terceiros (o que configura outro crime). O tipo
proíbe as ações de “produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio” ato
sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado, sem autorização da vítima. No
85
mesmo tipo incorre quem realiza montagem para inserir pessoa nestes atos. A ideia
é que a vida sexual de alguém é privada e não deve sofrer violações 246.
Assim, pode-se afirmar que a legislação brasileira referente a estupro e
violência sexual apresentou evolução e, principalmente após a Constituição de 1988,
passa a incluir a mulher como figura plena de direitos humanos, protegendo sua
integridade sexual e física com uma legislação abrangente e que adequa-se
razoavelmente à realidade social.
246
BRASIL. Lei nº 13.722, de 19 de dezembro de 2018. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de
2006 (Lei Maria da Penha), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para
reconhecer que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar e para
criminalizar o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de
caráter íntimo e privado. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Lei/L13772.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
247
Essa teoria foi formulada por Krafft-Ebing, pioneiro no estudo das desordens sexuais.
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p. 11.
248
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
360.
249
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
14.
86
250
Essa cultura é particularmente influente no comportamento social ocidental, já que embasa os
valores morais do cristianismo, cuja doutrina permeia o campo cultural.
251
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
20.
252
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
30.
87
parte do sucesso pela batalha253. Além do triunfo, no entanto, o estupro também visa
estabelecer um padrão de terror e subordinação, intimidando e desmoralizando o
lado perdedor254. Assim, fica claro que o estupro não é exatamente sobre desejo
sexual, pois prostitutas costumam estar disponíveis em grandes números nas
proximidades de acampamentos militares 255. É curioso notar que embora as
mulheres sejam as violentadas, os homens da parte vencida tomam essa violência
como sua, pois em sua visão são suas mulheres, suas propriedades que foram
violadas. O estupro das mulheres viola o conceito de poder e propriedade dos
homens, que veem sua masculinidade afetada pela incapacidade de impedir o
ato256.
Assim, a cultura da violência é importante para entender o estupro. A
violência é um recurso social aceitável para a resolução de diversos conflitos; mais
que isso, as demonstrações de violência e força são características extremamente
valorizadas como masculinas, assim como a passividade e aceitação são
características tidas por femininas. Brownmiller faz um comparativo, situando o
estupro entre a agressão e o assalto. O estupro seria, ao mesmo tempo, um dano
físico infligido a outrem, como a agressão, e apropriação da propriedade de outrem,
como o assalto. Nessa perspectiva, a mulher é vista pelo estuprador tanto como
uma pessoa desprezível, como uma propriedade desejada 257.
Embora o conhecimento quanto ao efeito que a violência sexual traz às
vítimas e à sociedade seja amplo, os estereótipos sobre o estuprador continuam em
voga: ou ele é vítima de uma mulher que mudou de ideia, ou que ele é um homem
frustrado sexualmente, ou que ele é um pervertido ou doente mental; de forma que
assume-se que o impulso para o cometimento do crime é sexual. A maioria dos
agressores sexuais não são doentes mentais, mas homens com diversas
253
O estupro de guerra também pode ter dimensões étnicas, a fim de dissolver e exterminar
características genéticas dos povos vencidos, sendo, além de uma violência contra as mulheres, um
instrumento de limpeza étnica e extermínio de povos considerados inferiores. Ver, por exemplo:
PERES, Andréa Carolina Schvartz. Campos de estupro: as mulheres e a guerra na Bósnia.
Cadernos Pagu. Campinas, vol. 37, dez 2011.
254
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
37.
255
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
93.
256
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
38.
257
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
186.
88
261
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
pp. 25-44.
262
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
pp. 44-58.
90
263
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
197-194.
264
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
196.
265
Prática conhecida como “estupro corretivo”.
266
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 287.
267
Um exemplo disso é que um dos principais problemas dentro dos presídios é o estupro dos presos
por parte de outros homens. É um exercício de poder que coloca o preso mais fraco numa situação
inferior, ao ser forçado ao papel que seria de uma mulher. Por outro lado, os criminosos sexuais
costumam ser segregados na prisão, a fim de preservar sua integridade corporal dos outros presos,
já que estes teoricamente possuem um rígido código de ética contra abusadores. O tratamento dos
criminosos em relação aos estupradores é ainda mais contraditório quando se leva em conta, por
exemplo, casos de estupros coletivos cometidos por criminosos organizados no Brasil. Ver: ARAÚJO,
Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020, Capítulo 3;
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975,
Chapter 8.
268
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 173.
91
269
“Forced sex as sexuality is not excepcional in relations between the sexes but constitutes the
meaning of gender.” MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge:
Harvard University Press, 1889, p. 178.
270
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 180.
271
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 201.
272
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 209.
92
Assim, o estupro é sobre violência, mas também é sobre sexo, pois poder e
dominação são determinantes nos dois atos, e assim estes se confundem. Desta
forma, muitos estupradores se convencem de que a vítima exagerou, entendendo
que a resistência ou a negação foram uma tentativa de conquista. Além disso,
entendem que não são criminosos, culpando, por vezes, a vítima pela falta de
controle a qual eles atribuem o crime. Mais ainda, os criminosos buscam ter um
comportamento exemplar em outras esferas da vida, afinal um bom profissional ou
familiar dificilmente seria entendido como um criminoso violento275. Quando
enfrentam acusações, negam o fato, ou, havendo prova física, afirmam que a
relação foi consensual276.
Os mitos sobre o estupro ainda são recorrentes, embora a sociedade tenha
cada dia mais acesso à informação. São comuns noções de que a mulher “estava
pedindo”, ou que não se esforçou o suficiente para evitar a violência, ou que se ela
tivesse resistido e lutado o bastante o crime não teria ocorrido. Tais noções
descredibilizam as mulheres, sendo um poderoso mecanismo para manter o estupro
invisível, um artefato do patriarcado. Nas palavras de Brownmiller, “porque estupro é
um ato que os homens cometem em nome da sua masculinidade, é de seu interesse
273
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 211.
274
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 288.
275
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 286.
276
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 53.
93
acreditar que as mulheres também desejam que o estupro seja cometido, em nome
da feminilidade.”277 (Tradução da autora)
Outro estereótipo sobre estupro que permanece no imaginário popular é que
o estupro é cometido por um homem desconhecido, quando se está em locais
perigosos. Na verdade, a maioria dos estupros acontece dentro de casa, e o
perpetrador é pessoa conhecida da vítima. No entanto, nesses casos, o status de
vítima fica prejudicado, obscurecido. Ela é vista, muitas vezes inclusive pelos
representantes do Estado (juízes, policiais), como alguém que mudou de ideia
depois do ato e busca prejudicar um homem, não recebendo o tratamento
adequado278. A este respeito, mais de 90% das cidades brasileiras não possuem
uma Delegacia da Mulher, que é um dos poucos lugares onde a violência sexual e a
palavra da vítima são levadas a sério 279.
Uma terceira percepção equivocada que vale à pena ser esclarecida é a ideia
de que a maior parte dos estupros são denúncias falsas. A mentalidade dos agentes
estatais é muito permeada pelo pensamento patriarcal como todo o resto da cultura
moderna, de forma que estes tendem mais a se identificar com o agressor, que é um
homem, do que com a vítima, bem como a entender atos de violência como
simplesmente sexo. Dessa forma, muitas vezes as mulheres são humilhadas ao
denunciar um estupro. São vistas como mentirosas, e seu passado é trazido à tona
a fim de desacreditá-las. Sua vida sexual será investigada, com intuito de provar que
é uma mulher promíscua, não tendo valor moral e, portanto, não merece proteção
legal280. Conforme Mackinnon:
277
“Because rape is an act that men do in the name of their masculinity, it is in their interest to believe
that women also want rape done, in the name of the femininity.” BROWNMILLER, Susan. Against our
will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p. 312.
278
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
352.
279
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 12.
280
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
374.
281
“Men’s pervasive belief that women fabricate rape charges after consent to sex makes sense in this
light. To them, the accusations are false because, to them, the facts describe sex. To interpret such
94
events as rapes distorts their experience. Since they seldom consider that their experience of the real
is anything other than reality, they can only explain the woman’s version as maliciously invented.”
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 181.
282
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 23.
283
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 27.
284
“Rape is a crime of opportunity, and opportunity knocks most frequently in a familiar milieu.”
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p. 349.
285
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 69.
95
290
Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Datafolha Instituto de Pesquisa.
#APolíciaPrecisaFalarSobreEstupro: Percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres
vítimas nas instituições policiais, 2016. Disponível em:
<https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/a-policia-precisa-falar-sobre-estupro-percepcao-
sobre-violencia-sexual-e-atendimento-a-mulheres-vitimas-de-estupro-nas-instituicoes-policiais/>.
Acesso em: 16 maio 2021.
291
Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Datafolha Instituto de Pesquisa.
#APolíciaPrecisaFalarSobreEstupro: Percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres
vítimas nas instituições policiais, 2016. Disponível em:
<https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/a-policia-precisa-falar-sobre-estupro-percepcao-
sobre-violencia-sexual-e-atendimento-a-mulheres-vitimas-de-estupro-nas-instituicoes-policiais/>.
Acesso em: 16 maio 2021.
97
lesões, atendimento psicológico, bem como profilaxia para ISTs e para evitar a
gravidez292.
A lei prevê assistência médica para contenção de danos, visando evitar
doenças, bem como autoriza o aborto em caso de estupro, independentemente da
escolha da vítima de informar ou não o crime aos órgãos policiais. Assim, o
problema não está na legislação, mas na sua efetiva aplicação. São poucos
hospitais habilitados para lidar com questões de violência sexual 293, geralmente em
grandes centros urbanos, deixando as vítimas praticamente desassistidas. Muitos
médicos ainda se recusam a fazer abortos, mesmo quando permitido pela
legislação, por questões religiosas ou morais acerca do aborto 294. Em que pese toda
a dificuldade que as vítimas de violência encontram para efetivar seus direitos,
existem diversos projetos no Senado e na Câmara visando restringir ainda mais o
direito ao aborto295.
Quanto às sequelas emocionais, a mais comum é o TEPT (Transtorno de
Estresse Pós-Traumático), transtorno psicológico que acomete vítimas de eventos
traumáticos, sendo também muito comum em pessoas que foram à guerra. Os
sintomas mais comuns são depressão, vergonha, culpa, raiva, problemas de
socialização, problemas sexuais e abuso de álcool e drogas. Outro sintoma muito
comum é a chamada “evitação”, na qual as vítimas rejeitam qualquer situação que
as relembre do trauma. Assim, muitas vítimas têm a sua vida sexual interrompida,
pois evitam qualquer contato que possa lembra-las da violência sofrida.296 Há relatos
de mulheres que foram violentadas por intermédio de sexo oral, e, por isso, evitam
idas ao dentista, colocando sua saúde bucal em risco a fim de evitar a situação de
vulnerabilidade297.
292
BRASIL. Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral
de pessoas em situação de violência sexual. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
293
Como o Hospital Pérola Byington, em São Paulo (SP), referência em saúde da mulher. Ver:
<http://www.hospitalperola.com.br/>. Acesso em: 16 maio 2021.
294
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 45.
295
Como, por exemplo, o Projeto de Lei 788/2019. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192070>. Acesso em:
16 maio 2021.
296
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 138.
297
Ver ABDULALI, Sohaila. Do que estamos falando quando falamos sobre estupro. São Paulo:
Vestígio, 2019, p. 122 e ss,
98
298
SPIEGEL, David. Amnésia dissociative. Manual MSD – Versão saúde para a família, mar 2019.
Disponível em: <https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-de-sa%C3%BAde-
mental/transtornos-dissociativos/amn%C3%A9sia-dissociativa>. Acesso em: 05 maio 2021.
99
passa a ter importância aparente, mesmo que ele tenha sido negado. Mais do que
isso, pelo contrato de casamento, o consentimento da esposa passa a ser
presumido socialmente299.
Por muito tempo, o crime de estupro era um crime contra a propriedade do pai
ou do marido, de forma que seria impossível o marido violar um bem que era seu. A
definição tradicional de estupro nas leis da Inglaterra referia-se a sexo não previsto
em lei contra a vontade da mulher, de forma que qualquer relação sexual dentro do
casamento, mesmo forçada, era prevista em lei e excluída da definição de estupro.
Dito de outra forma:
299
PATEMAN, Carole. Women and consent. In: Political Theory, vol. 8, nº 2, 1980, pp. 149-168.
300
“Traditional sex regulations express the familiar moralistic notion that the only sexual conduct that
is acceptable is sex that occurs within heterosexual marriage. Legal regulations in the traditional mode
regards sex within marriage as qualitatively different from other sexual conduct and treats even
consensual nonmarital sex, such as adultery and commercial sex, as illicit and deserving of legal
condemnation.” CHAMALLAS, Martha. Introduction to feminist legal theory. New York: Wolters
Kluwer Law & Business, 2013, p. 286.
301
ANDERSON, Michelle J. Marital rape laws globally: rationales and snapshots around the world. In:
YLLO, Kersti; TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and social change in
global context. New York: Oxford University Press, 2016, p. 178.
100
302
CHAMALLAS, Martha. Introduction to feminist legal theory. New York: Wolters Kluwer Law &
Business, 2013, p. 287.
303
TORRES, M. Gabriela. Reconciling cultural difference in the study of marital rape. In: YLLO, Kersti;
TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and social change in global context.
New York: Oxford University Press, 2016, pp. 9-14.
101
304
ADAMS, Carol J. “I just raped my wife! What are you going to do about it, pastor?” The Church and
sexual violence. In: BUCHWALD, Emilie; FLETCHER, Pamela; ROTH, Martha (org.). Transforming a
Rape Culture. Minneapolis: Milkweed Editions, 2005, p. 83.
305
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
pp.174-176.
306
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
pp. 178-179.
102
variedade de razões, como o sentimento de vergonha e culpa, bem como por medo
de retaliação do parceiro, lealdade cultural ou familiar ou por não entenderem que
foram violentadas sexualmente e podem necessitar de atendimento médico 310.
Dor pélvica e câncer cervical têm sido associados a experiências constantes
de violência sexual, e a inflamação dos tecidos vaginal e cervical resulta em maior
suscetibilidade à infecção por HIV. Os maridos de mulheres abusadas comumente
mantêm outros relacionamentos sexuais e não aceitam o uso de preservativo;
mulheres que pedem aos companheiros agressivos para usarem preservativo são
mais propensas a serem ainda mais agredidas, e o uso de força normalmente é um
impedimento para o uso. A infecção de AIDS é maior em mulheres com histórias de
violência doméstica, e os índices de violência doméstica são maiores em mulheres
infectadas. Além disso, o estresse a que são submetidas por um longo tempo
desencadeia respostas inflamatórias que impactam no seu sistema imunológico 311.
Os homens que cometem violência sexual são particularmente inclinados a
negar o crime, e isso ocorre com maior intensidade no caso de um relacionamento.
A negação ou minimização do delito são apresentadas através de justificativas,
como que a vítima teria gostado, ou que ela mereceu, ou que pediu por isso. O fim
do relacionamento por vontade da mulher parece ser um importante gatilho para o
cometimento do crime. Homens que violam suas companheiras não possuem
distúrbios ou problemas, ou estão descontrolados; eles buscam impor o controle
através da violência. O estupro num relacionamento amoroso é signatário da lógica
de dominação do patriarcado, na qual é aceitável que o mais forte, o homem,
subordine a parte mais fraca312. A sociedade aceita a vitimização do agressor, que
não é responsabilizado por seus atos e continua praticando-os.
O contexto da sociedade brasileira é extremamente tolerante à violência
doméstica e sexual, especialmente no casamento, em virtude da influência da Igreja
Católica nos valores morais da sociedade. As mulheres são vistas, neste viés, como
310
BERGEN, Raquel Kennedy. An Overview of Marital Rape research in the United States: limitations
and implications for cross-cultural research. In: YLLO, Kersti; TORRES, M. Gabriela (org). Marital
rape: consent, marriage and social change in global context. New York: Oxford University Press,
2016, pp. 19-28.
311
CAMPBELL, Jacquelyn et all. A Feminist public health approach to marital rape. In: YLLO, Kersti;
TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and social change in global context.
New York: Oxford University Press, 2016, p. 165.
312
ADAMS, Carol J. “I just raped my wife! What are you going to do about it, pastor?” The Church and
sexual violence. In: BUCHWALD, Emilie; FLETCHER, Pamela; ROTH, Martha (org.). Transforming a
Rape Culture. Minneapolis: Milkweed Editions, 2005, p. 92.
104
313
ADAMS, Carol J. “I just raped my wife! What are you going to do about it, pastor?” The Church and
sexual violence. In: BUCHWALD, Emilie; FLETCHER, Pamela; ROTH, Martha (org.). Transforming a
Rape Culture. Minneapolis: Milkweed Editions, 2005, p. 94.
314
BENNICE, Jennifer A,; RESICK, Patricia A. Marital Rape: history, research and practice. In:
Trauma, Violence & Abuse, vol. 4, nº 3, 2003, pp. 228-246.
315
BENNICE, Jennifer A,; RESICK, Patricia A. Marital Rape: history, research and practice. In:
Trauma, Violence & Abuse, vol. 4, nº 3, 2003, pp. 228-246.
105
O acórdão trata da apelação interposta pelo réu acusado por estupro, ameaça
e lesões corporais no âmbito doméstico. No julgamento de primeiro grau, foi
reconhecida a prescrição do crime de ameaça e o réu foi condenado a 6 (seis)
meses de detenção pelo crime de lesão corporal e 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de
reclusão, a ser cumprida em regime inicial semiaberto; foi concedido direito de
apelar em liberdade. A defesa requer a decretação de prescrição no crime de lesão
corporal e absolvição do crime de estupro por ausência de provas, afirmando que a
vítima teria consentido com os atos sexuais.
Consta nos autos que o acusado teve uma discussão com sua ex-esposa,
tendo batido a cabeça da vítima por diversas vezes no chão, então passou a
esganá-la, na frente de sua filha, que também agrediu. Em seguida, levou a vítima
até o banheiro e obrigou-a a manter com ele conjunção carnal. A vítima, enquanto
buscava atendimento médico, foi procurada pelo acusado, que lhe ameaçou de
morte caso procurasse a polícia para denunciá-lo. O réu foi preso em flagrante; além
disso, há prontuário médico e exame de corpo de delito que atestam a conjunção
carnal. O réu confessou as agressões físicas.
O desembargador entende estar extinta a punibilidade no crime de lesão
corporal. Quanto ao crime de estupro, entende que as provas dos autos são
suficientes para a condenação, especialmente o depoimento da vítima. O
desembargador afirma que a alegação de consentimento da defesa não é
embasada, devido à extrema violência empregada pelo acusado. Vota o
redimensionamento da pena em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses, pois entende não
108
4.1.2 Paraná
No Tribunal de Justiça do Paraná foi encontrada apenas 1 (uma) decisão,
pois o Estado protege o inteiro teor de processos sobre crimes sexuais. É importante
ressaltar que embora o artigo 11 do Código Civil consagre o princípio da publicidade
das decisões judiciais, a lei específica dos crimes contra a dignidade sexual garante
o segredo de justiça a fim de preservar a identidade da vítima. No que tange às
decisões colegiadas, é particularmente importante que sejam divulgadas por
constituírem jurisprudência. No entanto, é notável que a maioria dos Tribunais do
país dão plena publicidade ao inteiro teor dos acórdãos, sem sequer censurar o
nome das vítimas. Assim, ainda que a publicidade das decisões seja um importante
princípio constitucional, deve-se atentar ao princípio da dignidade humana e não
submeter as vítimas a outra situação vexatória, de forma que seus nomes deviam
ser censurados em todas as decisões que se tornarão públicas.
APELAÇÃO CRIME - CRIME DE ESTUPRO (ART. 213, C.C ART. 61, II, F
DO CP) E LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE (ART. 129, § 1º, I E
§ 10 DO CP)- SENTENÇA ABSOLUTÓRIA - RECURSO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO - ALEGADA ROBUSTEZ PROBATÓRIA QUANTO À
MATERIALIDADE E À AUTORIA QUE TORNA IMPOSITIVA A
CONDENAÇÃO DO RÉU - NÃO ACOLHIMENTO - DECLARAÇÃO DA
VÍTIMA CONTRADITÓRIA - FRAGILIDADE - DECLARAÇÕES DOS
INFORMANTES E DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS QUE
REPRODUZEM A VERSÃO DA OFENDIDA DE QUE DIANTE DA
110
vítima de forma que seu depoimento seja confuso; o evento traumático pode
desencadear consequências dissociativas. Ainda que seu depoimento tenha sido
inconsistente, jamais o foi em relação à imposição de sexo oral que o acusado fez. A
alteração da vítima não pode ser levada em consideração, pois embora possa ter
sido motivada pelo consumo de álcool, pode ser intensificada pelo abalo emocional.
Assim, esse acórdão está em desacordo com os princípios protetivos estabelecidos
na legislação e com os demais precedentes estabelecidos pelos Tribunais.
Consta nos autos que o acusado namorava há 4 (quatro) anos com a vítima e
estavam convivendo em união estável. Ao retornar de uma festa, o acusado iniciou
uma discussão com a companheira, acreditando estar sendo traído. A vítima sugeriu
que terminassem o relacionamento. Ainda no interior do automóvel, passou a agredir
a vítima com socos em sua face, afirmando que se não fosse com ele, a vítima não
ficaria com mais ninguém. Dentro da residência, ameaçou-a, dizendo que caso ela
gritasse, apanharia mais. Passou a empunhar uma faca para prosseguir a ameaça e
as agressões continuaram; o acusado teria dito que suas ações eram para que a
vítima lhe valorizasse, pois ele a amava. Durante a madrugada, mediante violência,
obrigou a vítima a ter com ele conjunção carnal, penetrando-a via anal e obrigando-a
a praticar sexo oral. O acusado, inclusive, fez com que a vítima ingerisse fezes,
humilhando-a de todas as formas que achou possível.
O desembargador entende que ocorreu a prescrição punitiva nos crimes de
ameaça e lesão corporal. Quanto ao crime de estupro, entende que as provas que
constam nos autos, boletim de ocorrência, laudo de exame de corpo de delito e
prova oral, são suficientes para formar a convicção; a ausência de testemunhas não
é suficiente para sustentar a alegação. A ausência de esperma também não é
relevante, já que o exame de corpo de delito atestou a violência sexual. Finalmente,
o relator afirma que o argumento da defesa de que relações sexuais entre o casal
são sempre consentidas é ultrapassado, e que todos os atos após o “não” da mulher
são violência sexual, independente do relacionamento entre as partes. Assim, nega
provimento ao recurso e determina o imediato cumprimento da pena. Os demais
desembargadores seguem seu voto. Assim, o acórdão coaduna-se aos princípios
protetivos previstos na legislação.
O apelante foi condenado pelo crime de estupro por ter constrangido sua
esposa à prática de conjunção carnal mediante grave ameaça, com pena de 15 anos
de prisão, bem como pelo crime de ameaça, que lhe rendeu condenação a 4 meses
115
O réu foi condenado a 7 (sete) anos de reclusão com regime inicial fechado
pelo crime de estupro de sua ex-mulher. A vítima e o réu estavam separados há
mais de 3 anos, mas a vítima deixou que ele ficasse em sua casa por um tempo,
após o fim de outro relacionamento. A vítima narra que após sair do banho, o réu a
agarrou e, mesmo com sua negativa, praticou conjunção carnal, deixando marcas
em seu corpo pela violência com a qual a forçou. O réu afirmou que manteve
relações sexuais com a vítima após voltar a morar com ela, mas que foram todas
consentidas.
O apelante requer reforma da decisão, alegando insuficiência probatória. O
relator afirma que a palavra da vítima é suficiente em casos como este, tendo ela
mantido a mesma versão com firmeza, e que a violência deixou vestígios no corpo
117
que o depoimento ao qual mais deu valor foi o de um homem, que mantém relações
pessoais com o acusado e inclusive frequentava sua casa.
O desembargador observa o depoimento dessa testemunha com um viés
completamente patriarcal. Utiliza a parte que lhe serve, na qual a vítima nega para
um homem que mantém relações próximas com seu marido que é vítima de
violência doméstica, e simplesmente desconsidera a parte em que ela afirma ter sido
ameaçada com um facão - como se isso não fosse violência. Ignora as relações de
poder entre os sexos e a fraternidade entre os homens; um depoimento que atesta a
violência foi enxergado como prova de que o estupro não ocorreu. Completamente
contra os princípios de direitos humanos das mulheres em vigor atualmente,
felizmente, essa decisão mostra-se uma exceção das que foram encontradas nessa
pesquisa.
doméstica contra a mulher. Afirma que está evidente a periculosidade do autor e dos
crimes praticados, lembrando tratar-se de hediondos, e que incabíveis medidas
cautelares diversas, denegando o Habeas Corpus. Os desembargadores votaram
em conformidade com a relatora.
A decisão do colegiado demonstra aderência aos princípios protetivos da
mulher. As ações do acusado visavam estabelecer a posse da ex-companheira, de
forma que violou a integridade desta de inúmeras formas, inclusive sexualmente. A
extrema violência com que praticou seus atos e a extensão de crimes que cometeu
demonstram que a sua prisão cautelar é indispensável a fim de proteger a vítima de
outras violências e ameaças que o acusado possa cometer a fim de estabelecer seu
domínio sobre ela.
4.3.1 Goiás
No Tribunal de Justiça de Goiás, foram encontrados 2 (dois) acórdãos acerca
do tema pesquisado.
relacionamento estava desgastado, e que em uma briga a vítima teria dito que tinha
um novo namorado, afirmando que seria o pai de um dos filhos do casal. Afirma que
quis se separar depois desse desentendimento e que não o fez pela intervenção da
avó da vítima. Em cada discussão, a vítima mandava o acusado para fora de casa;
em uma oportunidade, disse que se ele não saísse, ela sairia, então o fez levando
os três filhos.
O relator segue o entendimento do juiz de primeira instância; alega que
embora o depoimento da vítima deva ser levado em consideração, há
incongruências em seu relato. O juiz sentenciante afirmou que a vítima negar-se a
manter relações com seu marido por estar no período fértil é questionável, já que
havia feito laqueadura, e questionou a vítima ter demorado mais de dois meses da
última ocorrência para se separar do réu, já que ela tinha recursos financeiros para
tal; o relator cita tais partes da sentença a fim de demonstrar sua concordância.
Questiona a vítima por ter permanecido na residência após a primeira ocorrência e
por não ter denunciado de imediato nas primeiras vezes. O desembargador afirma
que não se sabe por que a vítima se recusaria a manter relações sexuais com o
companheiro, mas que mesmo sabendo que ele exigia relações sexuais continuou a
conviver com o companheiro. A vítima não foi submetida a exame de corpo de delito,
pois denunciou após a separação. As testemunhas foram a mãe e a tia da vítima,
que afirmaram jamais terem presenciado agressão contra ela. Assim, o
desembargador entende que o conjunto probatório não é suficiente para condenar o
acusado, havendo dúvida razoável acerca do crime. Nega provimento ao recurso; os
demais desembargadores acompanham o voto.
É notável que a denúncia após muito tempo do fato diminui as chances da
colheita de provas, e que a absolvição por esse fundamento se sustenta. O que não
é aceitável é o questionamento do juiz quanto à postura da vítima. A mulher não
precisa de um motivo para se recusar a fazer sexo, inclusive com seu marido; mas a
sua vontade e integridade física devem ser respeitadas. Não é cabível questionar
porque a vítima se recusou, mas sim porque o acusado cometeu o crime. O juiz
sentenciante reconhece que algumas mulheres têm dificuldade de abandonar o
relacionamento por dependência financeira, mas que este não é o caso, pois a
vítima possuía recursos. Mas a dependência não se dá apenas por razões
econômicas, mas também por razões sociais e emocionais. Embora o teor técnico
do acórdão se sustente, qual seja, a absolvição por insuficiência de provas, os
125
argumentos utilizados pelos magistrados são mal direcionados e com forte teor
patriarcal.
contra o próprio pai. O Ministério Público prosseguiu com a ação, entendendo que a
vítima não manifestou inequívoca vontade de retratação. O juízo singular decidiu
pelo prosseguimento do feito, condenando o acusado.
O relator entende que sendo o crime na época dos fatos condicionado à
representação, a ausência desta implica em nulidade do processo, não entendendo
que o motivo pelo qual a vítima retratou-se não importa, já que o fez de forma livre,
sem coação ou influência de terceiros, sendo que a vítima afirmou em juízo que
após o deferimento das medidas protetivas, o acusado não a procurou mais. Dessa
forma, o relator acolhe a preliminar suscitada pela defesa, declarando a nulidade do
processo. Os demais desembargadores votaram em conformidade com o relator.
Embora o direito penal deva ter todos os seus procedimentos respeitados em
nome da legalidade, a retratação da vítima pode não ter sido livre, mas motivada
pelo seu desejo de proteger seus filhos. Tal decisão mostra a importância de o crime
de estupro ser de ação penal pública incondicionada, já que quando há
relacionamento prévio entre acusado e vítima, a representação da vítima apresenta
mais dificuldades, tanto pelos sentimentos envolvidos tanto pelo medo de retaliação.
O acórdão trata sobre Habeas Corpus interposto por investigado nos crimes
de ameaça, sequestro, cárcere privado, lesão corporal, estupro e desobediência. A
defesa se insurge sobre decisão que converteu a prisão em flagrante em preventiva,
afirmando ausentes os requisitos para tais. Ademais, alega que não houve
descumprimento de medida protetiva de forma que a prisão é excessiva a fim de
garantir a integridade da vítima, pleiteando que seja revogada a prisão preventiva.
O relator entende que há evidências de relação violenta com a vítima,
estando provada a intenção de cometer o crime pelos depoimentos da vítima e dos
policiais. Os indícios de autoria e materialidade são comprovados pelo recebimento
129
ele, já que não aceitava o fim do relacionamento e ainda a via como sua esposa. A
vítima afirma que o acusado machucou sua vagina com os dedos, tendo
interrompido a violência em virtude da chegada de uma amiga da vítima à
residência. Após descobrir que a ex-esposa estava namorando outro homem, as
agressões se intensificaram, resultando em pedido e concessão de medida protetiva
e, com o descumprimento, decretada a prisão do réu. Inclusive, um mês após o
estupro mencionado acima, o acusado foi à casa da vítima para arrumar confusão
com ela e seu namorado, provocando-os e usando palavras de baixo calão. Assim, a
vítima representou pelos abusos sexuais e o réu foi condenado. Além do
depoimento da vítima e das testemunhas, há boletim de ocorrência e conversas
entre vítima e acusado nos autos a corroborar o crime. O acusado nega todas as
acusações.
O relator entende que as provas colacionadas e o testemunho da vítima são
suficientes, e que este se manteve coerente em todas as fases investigativas e
judiciais. Afirma que o acusado tratou a vítima como se dela fosse dono, recusando-
se a admitir o fim do relacionamento. Nega provimento à apelação; os demais
desembargadores acompanham seu voto.
O caso em questão demonstra a dificuldade que alguns homens têm de
aceitar o fim do relacionamento e as agressões que cometem a fim de estabelecer
dominância sobre a mulher; não conseguem aceitar a perda de algo que enxergam
como propriedade. Ao descumprir as medidas restritivas e praticar o estupro, o
acusado busca estabelecer a posse, não se importando com as consequências
advindas de seus atos.
4.4.1 Bahia
No Tribunal de Justiça da Bahia, foram encontradas 7 (sete) decisões
colegiadas acerca do tema pesquisado.
4.4.2 Paraíba
No Tribunal de Justiça da Paraíba, foi encontrado apenas 1 (um) acórdão que
versa sobre o crime de estupro no âmbito doméstico.
139
4.2.3 Piauí
No Piauí, foi encontrada apenas 1 (uma) decisão colegiada que versa sobre
estupro de cônjuge ou companheira.
4.4.4 Maranhão
No Estado do Maranhão, foram encontrados 3 (três) acórdãos que versam
sobre o tema pesquisado
4.4.5 Pernambuco
No Tribunal de Justiça do Pernambuco, foram encontradas 2 (duas) decisões
colegiadas sobre estupro contra companheira ou ex-companheira.
PENAL E PROCESSO PENAL. ART. 147, ART. 148, 2 E ART. 213 C/C O
ART. 226, II, TODOS DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE E AUTORIA
DOS DELITOS DE ESTUPRO E CÁRCERE PRIVADO COMPROVADAS.
DOSIMETRIA. ART. 148, 2. DO CP. REANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS
JUDICIAIS. INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. CONCURSO FORMAL.
APELO PROVIDO PARCIALMENTE. DECISÃO UNÂNIME.
4.4.6 Alagoas
No Tribunal de Justiça do Alagoas, foram encontrados 10 (dez) acórdãos que
decidem sobre o crime de estupro em relacionamentos amorosos.
O acórdão versa sobre apelação interposta por acusado aos crimes de lesão
corporal e estupro em contexto doméstico, bem como por cárcere privado,
condenado a 12 (doze) anos de reclusão em regime inicial fechado. Pede absolvição
dos delitos de estupro e cárcere privado, bem como reanálise da dosimetria da
pena.
A vítima ficou presa em casa durante 4 (quatro) dias, sendo espancada,
ameaçada de morte e estuprada pelo marido. A vítima tinha 18 (dezoito) anos e já
se relacionava com o acusado há 5 (cinco), tendo com ele três filhos. Alega que
146
sempre foi agredida por ele, e que por isso havia fugido para Alagoas, mas ele a
perseguiu até o estado, forçando-a a continuar o relacionamento. Na data dos fatos,
os vizinhos escutaram os pedidos de socorro e ligaram para o pai da vítima, que
ligou para a Polícia. Os policiais encontraram a vítima presa e machucada, sendo
agredida pelo acusado, que foi preso em flagrante. O acusado já havia sido preso
outras vezes por violência doméstica contra a companheira. Em juízo, disse querer
retirar as acusações, mas após tomar conhecimento de que o Ministério Público
prosseguiria com a ação independentemente de seu desejo, relatou os fatos.
O relator entende ser robusto o conjunto probatório, já que há diversas
testemunhas a corroborar os crimes. Quanto ao apenamento, mantém as
circunstâncias judiciais valoradas negativamente pelo juízo de primeiro grau,
negando provimento ao recurso, voto que é acompanhado pelos demais
desembargadores. Como já visto, a aplicação de circunstâncias judiciais negativas
na primeira fase de fixação da pena varia conforme o Tribunal analisado, já que a
maioria deles entende que tais circunstâncias judiciais negativas são próprias do
crime praticado, afastando-as da dosimetria.
4.5.8 Ceará
No Estado do Ceará, foi encontrada apenas 1 (uma) decisão de segundo grau
acerca do crime de estupro marital.
4.5.9 Sergipe
No Tribunal de Justiça do Sergipe, não foi encontrada nenhuma decisão
sobre o tema pesquisado.
4.5.1 Amazonas
No Amazonas, foram encontradas 5 (cinco) decisões colegiadas que tratam
do crime de estupro no âmbito doméstico.
regime inicial semiaberto. A defesa pugna pela absolvição por ausência de provas,
sob a alegação de que a vítima inventou os fatos porque queria tirá-lo de casa, já
que o acusado não aceitava a separação.
Consta nos autos que o acusado obrigou sua companheira a manter com ele
conjunção carnal e praticar outros atos libidinosos. A materialidade é comprovada
pelo exame de corpo de delito, que atesta conjunção carnal e coito anal, bem como
pelo laudo psicológico da vítima. A vítima afirmou em juízo que o acusado estava
embriagado e que ela estava dormindo quando ele chegou. O acusado a deixou
amarrada após forçá-la aos atos. Em dado momento, a vítima conseguiu fugir e
pedir ajuda a vizinhos, que acreditavam que o acusado estava armado quando o
encontraram, pois ameaçava matar a vítima. Esta afirma que por muitos anos sofreu
violências, inclusive sexual, mas que nesse dia foi muito mais violento, de forma que
procurou ajuda policial.
O desembargador entende que a prova colacionada nos autos é suficiente
para atestar materialidade do delito, pois a vítima apresentava diversos ferimentos à
época e, anos depois, exame confirmou que possui sequelas pelas violências
sofridas. Exame psicológico também atesta inúmeros traumas causados pelo
relacionamento com o acusado. Assim, entende por manter a condenação; ambos
os desembargadores votam em concordância com o relator. Trata-se de processo
que teve início em 2004, cujo recurso de segundo grau foi julgado em 2019. A parte
a demora judicial, que poderia ter consequências graves para a vítima, o acórdão é
coerente com os princípios protetivos contra violência doméstica.
4.5.2 Acre
Foram encontradas 5 (cinco) decisões sobre estupro marital no Estado do
Acre.
vítima sob a alegação de que fazia aquilo para saber se ela teve relação com outro
homem. O acusado juntou as roupas rasgadas e o lençol sujo de sangue e levou
embora, afirmando que mataria a vítima caso ela o denunciasse. Há exame de corpo
de delito e boletim de ocorrência a corroborar o testemunho da vítima. O acusado
alega que a vítima simulou os fatos narrados na denúncia após ele ter recusado
reatar o relacionamento.
O relator rejeita a preliminar suscitada, entendendo que a sentença está
suficientemente embasada. No mérito, aduz que o depoimento da vítima foi coerente
durante todas as fases processuais e que está corroborado por outros meios de
prova, votando pelo desprovimento do recurso. Os demais desembargadores o
acompanham.
Nota-se no caso em voga que o acusado não aceitava o fim do
relacionamento e que o ato libidinoso ao qual a forçou visava controlar sua
sexualidade. Aparenta ter consciência da gravidade de seus atos, de forma que
tenta não deixar vestígios, mas isso não o impede de tentar manter o domínio sobre
o que pensa ser sua propriedade. Também parece ser usual que os acusados
acusem a vítima de não aceitar o fim do relacionamento, quando são eles que não
aceitam o fim do relacionamento e tentam controlá-las por meio de agressões.
dedos na vagina e no ânus, ofendendo a vítima por não manter com ele relações
anais.
O relator entende que deve ser aplicado o princípio da consunção, pois as
agressões e ameaças constituíram a fase preparatória para o crime de estupro. No
apenamento, entende que deve ser afastada a causa de aumento de pena referente
às consequências do ilícito, pois o constrangimento e a humilhação da vítima são
partes do tipo penal, fixando a pena base em 6 (seis) anos; pela agravante de ter
sido o crime em ambiente doméstico, fixa a pena em 6 (seis) anos e 8 (oito) meses
de reclusão, a ser cumprida em regime semiaberto. A revisão criminal é
parcialmente provida; por maioria, a Câmara seguiu o voto do relator. Tal decisão
parece divergir dos acórdãos já analisados, que não reconhecem o princípio da
consunção nos crimes de lesão corporal e ameaça quanto ao estupro, mas não há
julgados suficientes para definir de fato jurisprudência acerca do tema no âmbito
doméstico.
4.5.3 Rondônia
No Tribunal de Justiça de Rondônia, foram encontradas 2 (duas) decisões
sobre o tema pesquisado.
Apelação criminal. Violência doméstica. Lesão corporal (art. 129, §9º CP).
Ausência de representação criminal. Irrelevância. Ação penal pública
incondicionada (Súmula 542 do STJ e ADI 4424). Materialidade e autoria
comprovadas. Ausência de laudo de exame de corpo de delito oficial direto.
Irrelevância. Prova técnica diversa (Ficha de Atendimento Médico) a indicar
a existência de lesões. Laudo Oficial Indireto. Suficiência Depoimento da
vítima. Harmonia com os demais elementos de provas. Condenação
mantida. Estupro (art. 213 do CP). Fato anterior à Lei 13.718/18. Vítima não
vulnerável e maior de 18 anos. Lesão corporal leve. Ação penal pública
condicionada à representação da ofendida. Súmula 608 do STF.
Inaplicabilidade na espécie. Manifestação expressa de não representar.
Decadência configurada. Extinção da punibilidade decretada. Regime
aberto. Procedência. Recurso parcialmente provido.
ocorreu, bem como nulidade pela ausência do exame de corpo de delito no crime de
lesão corporal. No mérito, pede absolvição por insuficiência de provas;
subsidiariamente, requer aplicação do princípio da consunção e alteração do regime
inicial de cumprimento de pena para o semiaberto.
Consta na denúncia que em 2015, o acusado agrediu e estuprou sua ex-
companheira, com quem havia vivido por 14 (catorze) anos e estava separado há 1
(um) mês. O acusado havia ingerido bebida alcoólica durante o dia, e iniciou
discussão com a vítima a fim de reatar o relacionamento. Dada sua negativa, passou
a agredi-la com socos e chutes. Ato contínuo, obrigou a vítima a manter conjunção
carnal; ao notar que ela resistia, voltava a agredi-la, a fim de consumar o ato, um
ciclo que permaneceu até a testemunha ouvir os gritos e chamar a polícia, quando o
acusado fugiu do local.
As provas trazidas aos autos consistem na Ficha de Atendimento Médico da
vítima, que constata lesões corporais leves. Quando inquirida, 6 (seis) dias após o
fato, afirmou expressamente não desejar representar contra o acusado; em juízo, já
decorrido o prazo decadencial, a vítima reafirmou seu desinteresse.
A relatora afirma que a nulidade por ausência de condição de procedibilidade
da ação penal, no caso a representação feita pela vítima, não é possível no crime de
lesão corporal, pois o STF editou Súmula afirmando que o crime de lesão corporal
no âmbito doméstico é de ação penal pública incondicionada. Quanto ao estupro,
entende que a defesa está com razão, mas que a questão será tratada como
prejudicial de mérito, já que a decadência é norma de direito material. A lei que torna
o crime de estupro de ação pública incondicionada foi editada apenas em 2018,
após a ocorrência do fato, de modo que a vítima deveria ter apresentado
representação; não tendo procedido desta forma, seu direito de representar decaiu.
Quanto à Súmula 608 do STF, que determina que em crimes de estupro cometidos
com violência real dispensa-se representação, afirma que tal súmula apenas é
aplicável nos casos em que decorre lesão corporal grave, pois a de natureza leve já
compõe a tipicidade delitiva. Quanto à outra preliminar suscitada, de ausência de
exame de corpo de delito, entende tratar de valoração probatória, matéria de mérito.
No mérito, a desembargadora afirma em seu voto que de forma excepcional,
pode-se dispensar o exame de corpo de delito em crimes que deixam vestígio e
realizar a prova por outros meios, como fotografias e exames médicos, prática
conhecida como exame de corpo de delito indireto; e que tais provas são suficientes
155
a fim de formar a convicção do juízo, já que não houve desídia das autoridades
investigatórias, que solicitaram a Ficha Médica ao hospital, que demonstra as
lesões. Além das provas físicas, há prova testemunhal da vítima e do policial que
atendeu a ocorrência, de forma que claras materialidade e autoria delitiva. Assim, a
desembargadora decide por dar parcial provimento ao recurso, extinguindo a
punibilidade do agente quanto ao crime de estupro e para modificar o regime inicial
de cumprimento de pena do crime remanescente, lesão corporal leve, para o aberto.
Os outros desembargadores votaram com a relatora.
Essa decisão demonstra a importância da alteração feita pela lei de 2018, que
alterou a espécie de ação penal própria para o crime de estupro. Em casos como
esse, em que há convivência ou relacionamento prévio entre vítima e acusado, a
dependência econômica, financeira ou social pode dissuadir a vítima a dar início à
persecução penal. Ao tornar a ação penal pública incondicionada, tira-se o poder
decisório de pessoas que muitas vezes não são capazes de tomar essa decisão por
culpa ou medo, colocando-o na mão do Estado, que deve agir indiscriminadamente
ao tomar conhecimento do crime.
público, tentou manter relações sexuais com a esposa; após sua recusa, passou a
agredi-la com tapas no rosto. O acusado, por sua vez, negou o crime. Afirmou que
houve uma briga de casal por entender que a vítima, sua esposa, não deveria estar
comendo em estabelecimento comercial enquanto ele viajava a trabalho. Após a
prolação da sentença condenatória, a vítima afirmou ter inventado a acusação por
não aceitar o fim do relacionamento.
O relator inicia afirmando não vislumbrar prescrição da pretensão executória,
rejeitando a preliminar. No mérito, entende que, dado a posterior afirmação da vítima
de que teria feito a acusação de forma caluniosa, o réu deve ser absolvido do crime
de estupro. O relator também pugna pela absolvição no crime de ameaça, alegando
não possuir provas contundentes do fato criminoso, pois as testemunhas só
presenciaram a discussão e souberam da ameaça pela vítima. O relator afirma que
embora tenha ocorrido discussão entre ambos, as intimidações não tiveram
potencial ofensivo. Quanto à conduta de vias de fato, vota também pela absolvição,
entendendo que a fragilidade do conjunto probatório e a ausência de laudo causam
dúvidas acerca do fato criminoso. Assim, pugna pela absolvição do acusado de
todos os crimes. Ambos os desembargadores votam em sentido contrário ao voto do
relator.
O voto-vista de um deles afirma que a posterior negação dos fatos pela vítima
não tem capacidade para desconstituir a sentença, já que a condenação não se
baseou apenas no depoimento da vítima, mas também no de sua filha e irmã. O
desembargador entende que a retratação da vítima é comum nos crimes em que o
acusado e a vítima têm relações próximas, e que tal declaração não passou pelo
contraditório, de forma que vota de forma contrária ao relator, voto que é
acompanhado pelo terceiro desembargador.
Embora o voto do relator mostre desconhecimento acerca dos mecanismos
de dependência de relacionamentos amorosos violentos, os outros
desembargadores atentaram-se aos princípios legais e mantiveram a condenação. A
retratação da vítima é plenamente compreensível se considerar-se a relação
emocional estabelecida com o acusado, com o qual teve um filho. Mas o conjunto
probatório e seus depoimentos anteriores são plenamente condizentes com o crime.
Note-se que o acusado demonstrou relação de posse com a vítima, ao afirmar que
se irritou ao saber que ela saiu para comer sem ele. Assim, embora a vítima tenha
157
afirmado que inventou o crime por não aceitar o fim do relacionamento, é mais
provável que o acusado tenha cometido o crime, pelo mesmo motivo alegado.
4.5.4 Roraima
Foram encontradas 4 (quatro) decisões sobre o tema pesquisado no Tribunal de
Justiça de Roraima.
4.5.5 Tocantins
No Tocantins, há apenas 1 (uma) decisão sobre estupro marital cujo inteiro
teor não é coberto por segredo de justiça.
4.5.6 Pará
No Tribunal de Justiça do Pará foram encontradas 6 (seis) decisões acerca do
crime de estupro cuja vítima é esposa ou companheira do acusado.
LIMINAR. UNANIMIDADE.
4.5.7 Amapá
No Estado do Amapá, foram encontradas 2 (duas) decisões sobre estupro no
âmbito doméstico contra esposa ou companheira.
urgência
Habeas Corpus nº Casa Lesão Consumado Denegado - Risco de reiteração delitiva/perigo
5531577- corporal, para a integridade da vítima
16.2020.8.13.0000 constrangime
nto ilegal,
sequestro e
cárcere
privado,
violação de
domicílio e
tortura
Apelação criminal nº Casa Ameaça Consumado Absolvição - Ausência de provas/ vítima
307907- continuou com o acusado após os
05.2014.8.09.0076 crimes
Apelação criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 10 anos e 6 Suficiência probatória
14008- corporal meses de
95.2018.8.09.0172 reclusão
Apelação Criminal nº Casa - Consumado Nulidade - Ausência de condição de
0001502- procedibilidade (representação da
39.2018.8.07.0012 vítima)
Apelação Criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 9 anos e 9 Suficiência probatória
0002188- corporal e meses de
37.2018.8.07.0010 ameaça reclusão
Habeas Corpus nº Casa Ameaça, Consumado Denegação - Risco de reiteração
0716699- sequestro, delitiva/proteção à integridade da
171
35.2021.8.11.0000
Apelação criminal nº Casa - Consumado Condenação 9 anos e 4 Suficiência probatória/crime
0504414- meses de cometido por meio de ardil
64.2016.8.05.0274 reclusão
Apelação Criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 10 anos e 6 Suficiência probatória
0523877- corporal meses de
30.2019.8.05.0001 reclusão
Habeas Corpus nº Casa/ matagal Lesão Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
0013621- corporal, proteção à integridade da vítima
30.2015.8.05.0000 constrangime
nto ilegal e
ameaça
Habeas corpus nº - Ameaça Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
0804154- proteção à integridade da vítima
15.2015.8.15.0000
Apelação criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 7 anos de Suficiência probatória
0001045- corporal e reclusão
40.2011.8.18.0046 violação de
domicílio
Habeas Corpus nº - Lesão Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
0005280- corporal proteção à integridade da vítima
74.2015.8.10.0000
Apelação Criminal nº Motel Cárcere Consumado Condenação 14 anos e 6 Suficiência probatória
0000726- privado meses de
46.2013.8.10.0104 reclusão
173
316
O CNJ editou, em 2020, a Recomendação nº 79, a fim de que magistrados que atuarem na
aplicação da Lei Maria da Penha sejam treinados em gênero. CNJ. Recomendação Nº 79 de
08/10/2020. Dispõe sobre a capacitação de magistradas e magistrados para atuar em Varas ou
Juizados que detenham competência para aplicar a Lei nº 11.340/2006. Disponível em:
<https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3514>. Acesso em: 05 maio 2021.
317
STJ. Jurisprudência em Teses. Edição nº 111: Das provas no Processo Penal – II. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp>. Acesso em: 05 maio 2021.
178
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agência de Notícias IBGE. Em média, mulheres dedicam 10,4 horas por semana a
mais que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. 04 jun
2020. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-
imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27877-em-media-mulheres-dedicam-
10-4-horas-por-semana-a-mais-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-
cuidado-de-pessoas>. Acesso em: 17 mar 2021.
ADAMS, Carol J. “I just raped my wife! What are you going to do about it, pastor?”
The Church and sexual violence. In: BUCHWALD, Emilie; FLETCHER, Pamela;
ROTH, Martha (org.). Transforming a Rape Culture. Minneapolis: Milkweed
Editions, 2005.
ANDERSON, Michelle J. Marital rape laws globally: rationales and snapshots around
the world. In: YLLO, Kersti; TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent,
marriage and social change in global context. New York: Oxford University Press,
2016.
AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORI, Mary (org.).
História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007.
188
BENNICE, Jennifer A,; RESICK, Patricia A. Marital Rape: history, research and
practice. In: Trauma, Violence & Abuse, vol. 4, nº 3, 2003, pp. 228-246.
BRASIL. Lei 2.992, de 25 de setembro de 1915. Modifica os arts. 266, 277 e 278 do
Código Penal. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-
1919/lei-2992-25-setembro-1915-774536-publicacaooriginal-138024-pl.html>.
Acesso em: 16 maio 2021.
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do
Brasil. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3071-
1-janeiro-1916-397989-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
BRASIL. Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226,
227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de
1940 – Código Penal e dá outras providências. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11106.htm>. Acesso
em: 16 maio 2021.
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York:
Fawcett, 1975.
191
BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu. Campinas, vol. 42, jan-jul
2014, pp 249-274.
CAMPBELL, Jacquelyn et all. A Feminist public health approach to marital rape. In:
YLLO, Kersti; TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and
social change in global context. New York: Oxford University Press, 2016.
COVID-19 and Ending Violence against Women and Girls. UN Woman, 2020.
Disponível em: <https://www.unwomen.org/-
/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2020/issue-brief-
covid-19-and-ending-violence-against-women-and-girls-en.pdf?la=en&vs=5006 >.
Acesso em: 24 mar 2021.
COVID-19 and violence against women What the health sector/system can do. WHO,
2020. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/331699/WHO-SRH-20.04-eng.pdf>.
Acesso em: 24 mar 2021.
DELPHY, Cristine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, Helena et al. (org).
Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Unesp, 2009.
FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORI, Mary (org.).
História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007.
FILMER, Robert. Patriarcha, or the natural power of the kings. Londres: Richard
Chiswell, 1680.
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York:
Springer, 1979.
HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more
progressive union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979.
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder: histórias, ideias e
indicadores. Rio de Janeiro: FGV, 2018.
PATEMAN, Carole. Women and consent. In: Political Theory, vol. 8, nº 2, 1980.
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2001.
RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007.
RESNICK, Patricia A. et all. A review of marital rape. In: Agression and violent
behavior, vol. 12, 2007.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, v.20, nº2, jul-dez 1995.
SOIHET, Renata. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORI,
Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007.
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980.
TORRES, M. Gabriela. Reconciling cultural difference in the study of marital rape. In:
YLLO, Kersti; TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and
social change in global context. New York: Oxford University Press, 2016.
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;s
equence=1>. Acesso em: 24 mar 2021.
195