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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO-SENSU EM DIREITO POLÍTICO E


ECONÔMICO

GABRIELA HENRIQUE CARVALHO

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ANÁLISE JURÍDICA DO ESTUPRO MARITAL

São Paulo
2021
GABRIELA HENRIQUE CARVALHO
TIA: 719.5302-7

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ANÁLISE JURÍDICA DO ESTUPRO MARITAL

Dissertação de mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu da
Faculdade de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial
para a obtenção do grau de mestre em Direito.

Orientadora: Profa. Dra. Patrícia Tuma Martins


Bertolin

São Paulo
2021
C331v Carvalho, Gabriela Henrique.
Violência doméstica: análise jurídica do estupro marital. /
Gabriela Henrique Carvalho.
196 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) –


Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2021.
Orientador: Profa. Dra. Patrícia Tuma Martins Bertolin.
Bibliografia: f. 187-196.

1. Teoria feminista. 2. Violência doméstica. 3. Estupro.


4. Estupro marital., orientador. II. Título.
CDD 341.55512

Bibliotecária responsável: Jaqueline Bay Inacio Duarte - CRB-8/9509


AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pelas oportunidades que tive na vida e por ter me dado pais
maravilhosos que sempre incentivaram ao máximo minha educação, me dando todo
o suporte possível. Cláudia e Addy, obrigada por tanto.
À Raquel e ao Victor, os irmãos mais amorosos e amados.
À querida Vovó Jodair por sempre ter cuidado de mim com tanto amor.
Ao Vitor, o companheiro pra uma vida.
À Patrícia, muito mais que uma orientadora. É um prazer contar com sua
sabedoria e ainda mais com a sua amizade.
A todos os meus amigos pela força, incentivo e por acreditarem em mim.
Aos meus colegas da Pós-Graduação em Direito Político e Econômico, em
especial do Grupo de Estudos Mulher e Direitos Humanos, por tanto conhecimento
dividido, por tudo que aprendemos juntos.
A quem me ajudou e incentivou a seguir a carreira acadêmica, em especial o
futuro Doutor Victor Grampa e o amigo prof. Dr. Felipe Chiarello.
Por último, mas não menos importante, obrigada a todos os professores que
passaram na minha vida, em especial os que me ensinaram sobre amar aos outros
e dividiram comigo seu conhecimento, que é o maior tesouro que uma mulher pode
ter na vida.
Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou
religiosa para que os direitos das mulheres sejam
questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá
que manter-se vigilante durante toda a sua vida. (Simone de
Beauvoir)
RESUMO

Utilizando de aportes da teoria feminista, como os conceitos de gênero, patriarcado,


divisão sexual do trabalho, divisão entre esferas pública e privada e falsa
neutralidade da lei e das instituições, são analisados os aspectos e as
consequências da subordinação social, civil e familiar da mulher. A violência
doméstica é mostrada como causa e efeito da desigualdade de gênero, ferramenta
utilizada por homens para punir as mulheres por comportamentos vistos como
contrários à sua dominância no seio da família, estabelecendo autoridade sobre ela,
com graves consequências para sua integridade física e psicológica. É analisada,
então, a legislação protetiva de direitos das mulheres conforme sua evolução no
país, em ordem cronológica. Em primeiro lugar, analisa-se o período colonial, em
que as mulheres eram apenas propriedade, fossem brancas ou escravas. Em
seguida, o período imperial, em que a influência do liberalismo permitiu que as
mulheres reivindicassem o direito à educação. No período da primeira República,
fala-se sobre a luta pelo voto, bem como das primeiras organizações de movimentos
de mulheres. Na era Vargas, fala-se sobre as mulheres trabalhadoras e a conquista
de direitos políticos e trabalhistas. Quanto à ditadura, é mencionado todo o papel
que o movimento de mulheres teve na luta pelo reconhecimento e garantia de
direitos sociais e pela democracia. Os direitos pelos quais lutaram são finalmente
reconhecidos com a promulgação da Constituição de 1988, que reconhece plena
igualdade entre os sexos e influencia positivamente as legislações que vem em sua
esteira, como o Código Civil de 2002, que consagra igualdade na família, a Lei Maria
da Penha, que criminaliza a violência doméstica, e a Lei do Feminicídio, que torna o
homicídio cometido em virtude de gênero crime qualificado. Em seguida, o tipo penal
de estupro é analisado a fim de demonstrar que apenas recentemente tornou-se um
crime contra um sujeito de direitos humanos, e não contra o homem que tinha sua
propriedade. Analisa-se o conceito de estupro, as consequências para a vítima, a
psicologia do estuprador, o conceito cultural que se tem do crime e as suas
principais causas. Estima-se que o segundo maior índice de estupros é dentro de
relacionamentos amorosos, de modo que são analisados seus aspectos específicos
e a sua relação com a violência doméstica e familiar contra a mulher. Por último, são
analisadas decisões judiciais de todos os Estados da República Federativa do Brasil,
a fim de estabelecer a permeabilidade do Judiciário a crimes de estupro ocorridos no
âmbito doméstico e amoroso.
Palavras chave: teoria feminista, violência doméstica, estupro, estupro marital.
ABSTRACT

Using contributions from feminist theory, such as the concepts of gender, patriarchy,
sexual division of labor, division between public and private spheres and false
neutrality of law and institutions, the aspects and consequences of social, civil and
family subordination of the women are analyzed. Domestic violence is shown as a
cause and effect of gender inequality, a tool used by men to punish women for
behaviors seen as contrary to their dominance within the family, establishing
authority over them, with serious consequences for their physical and psychological
integrity. The legislation protecting women's rights is then analyzed according to its
evolution in the country, in chronological order. First, it analyzes the colonial period,
in which women were only property, whether white or slaves. Then the imperial
period, when the influence of liberalism allowed women to claim the right to
education. In the period of the first Republic, there is talk about the struggle for the
vote, as well as about the first organizations of women's movements. In the Vargas
era, there is talk about women workers and the achievement of political and labor
rights. As for the dictatorship, the role that the women's movement played in the
struggle for the recognition and guarantee of social rights and for democracy is
mentioned. The rights they fought for are finally recognized with the enactment of the
1988 Constitution, which recognizes full equality between the sexes and positively
influences the legislation that comes in its wake, such as the 2002 Civil Code, which
enshrines equality in the family, the Maria da Penha Law, which criminalizes
domestic violence, and the Feminicide Law, which makes homicide committed based
on gender against women a qualified crime. Next, the criminal type of rape is
analyzed in order to demonstrate that it has only recently become a crime against a
human rights subject, and not against the man who owned his property. It analyzes
the concept of rape, the consequences for the victim, the rapist's psychology, the
cultural concept of the crime and its main causes. It is estimated that the second
highest rate of rapes is within love relationships, so that their specific aspects and
their relationship with domestic and family violence against women are analyzed.
Finally, judicial decisions from all States of the Federative Republic of Brazil are
analyzed in order to establish the permeability of the Judiciary to rape crimes
occurring in the domestic and romantic sphere.
Keywords: feminist theory, domestic violence, rape, marital rape.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA À LUZ DA TEORIA FEMINISTA ................................ 14
1.1 PATRIARCADO E GÊNERO .......................................................................... 14
1.2 FALSA NEUTRALIDADE DA LEI.................................................................... 20
1.3 ESPAÇO PÚBLICO E ESPAÇO PRIVADO, CASAMENTO E DIVISÃO
SEXUAL DO TRABALHO ..................................................................................... 24
1.4 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA .............................................................................. 35
2 NORMATIZAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES NO BRASIL ..................... 41
2.1 PERÍODO COLONIAL .................................................................................... 41
2.2 BRASIL IMPÉRIO ........................................................................................... 46
2.3 REPÚBLICA VELHA....................................................................................... 48
2.4 ERA VARGAS E SEGUNDA REPÚBLICA ..................................................... 54
2.5 DITADURA CIVIL-MILITAR ............................................................................ 58
2.6 RETOMADA DEMOCRÁTICA ........................................................................ 68
3 ESTUPRO E SUAS DIMENSÕES ........................................................................ 74
3.1 ANÁLISE HISTÓRICA DO TIPO PENAL ........................................................ 74
3.2 DEFINIÇÃO DE ESTUPRO ............................................................................ 85
3.3 ESTUPRO MARITAL ...................................................................................... 98
4 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS SOBRE ESTUPRO MARITAL ................ 105
4.1 REGIÃO SUL................................................................................................ 105
4.1.1 Rio Grande do Sul .................................................................................. 105
4.1.2 Paraná ................................................................................................... 109
4.1.3 Santa Catarina ....................................................................................... 111
4.2 REGIÃO SUDESTE ...................................................................................... 114
4.2.1 São Paulo .............................................................................................. 114
4.2.2 Rio de Janeiro ........................................................................................ 118
4.2.3 Minas Gerais .......................................................................................... 118
4.2.4 Espírito Santo ........................................................................................ 123
4.3 REGIÃO CENTRO-OESTE .......................................................................... 123
4.3.1 Goiás ..................................................................................................... 123
4.3.2 Distrito Federal ....................................................................................... 126
4.3.3 Mato Grosso do Sul ............................................................................... 129
4.3.4 Mato Grosso .......................................................................................... 132
4.4 REGIÃO NORDESTE ................................................................................... 135
4.4.1 Bahia...................................................................................................... 135
4.4.2 Paraíba .................................................................................................. 138
4.2.3 Piauí ....................................................................................................... 139
4.4.4 Maranhão ............................................................................................... 140
4.4.5 Pernambuco ........................................................................................... 143
4.4.6 Alagoas .................................................................................................. 144
4.5.7 Rio Grande do Norte .............................................................................. 147
4.5.8 Ceará ..................................................................................................... 147
4.5.9 Sergipe .................................................................................................. 148
4.5 REGIÃO NORTE .......................................................................................... 148
4.5.1 Amazonas .............................................................................................. 148
4.5.2 Acre ....................................................................................................... 150
4.5.3 Rondônia................................................................................................ 153
4.5.4 Roraima ................................................................................................. 157
4.5.5 Tocantins ............................................................................................... 161
4.5.6 Pará ....................................................................................................... 162
4.5.7 Amapá ................................................................................................... 166
4.6 QUADRO ANALÍTICO .................................................................................. 167
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 187
11

INTRODUÇÃO

A história que conhecemos é fruto do ponto de vista dos sujeitos dominantes,


que, em condições históricas favoráveis, buscam tomar para si a prerrogativa de
disseminar os fatos que se tornarão conhecidos, na medida em que isso os
favoreça. No que tange à história das mulheres, isso é particularmente verdade.
Durante toda a história, pouquíssimas mulheres foram retratadas, e só o foram
quando alguma situação excepcional acontecia na vida dessas mulheres. Na maior
parte da história conhecida, as mulheres não são retratadas como líderes, como
pessoas que podem influenciar outras. Estiveram por centenas de anos confinadas
ao espaço do lar, enquanto os homens conviviam na esfera pública e conquistavam
respeito, influência e poder.
A história brasileira é extremamente exemplificativa do fenômeno acima
exposto. As primeiras mulheres comuns a influenciarem a esfera política só o
fizeram após a Proclamação da República. Até poderia ser citada uma ou outra
mulher em período anterior. Porém, todas as que de alguma forma se tornaram
influentes eram mulheres das classes econômicas mais elevadas, que tiveram
acesso à educação formal – o que era uma exceção no período da Colônia. A
influência dessas mulheres é mais satisfatoriamente explicada pela sua posição
social e econômica do que por uma quebra de paradigma de gênero.
Em todas as Constituições do Brasil, o espaço reservado às mulheres sempre
foi inferior, subsidiário. As mulheres possuíam expressamente menos direitos que os
homens. No que interessa a este trabalho, a posição das mulheres no interior do
casamento, do lar, era uma posição subordinada, de forma que a maior parte dos
direitos das mulheres casadas estava submetido à concessão por parte dos
maridos. Por muito tempo a possibilidade de separação ou divórcio não existiu;
assim, por muitos anos, as mulheres passavam da propriedade do pai para a
propriedade do marido, e nunca se constituíam sujeitos de direito, já que o usufruto
dos seus direitos estava diretamente ligado à permissão do pai ou do marido.
O movimento feminista foi essencial para trazer visibilidade à desigualdade
sofrida pelas mulheres. A primeira pauta do movimento foi a extensão dos direitos
políticos às mulheres. Ao final da luta pelo fim dos privilégios da nobreza, na
Revolução Francesa, um amplo leque de direitos foi concedido aos homens. Aquela
Revolução influenciou diversos países, que passaram a reconhecer direitos
12

expressamente. No entanto, esses direitos conquistados não foram concedidos a


todos, mas apenas aos homens. As mulheres não eram donas da sua liberdade, não
tinham direito a voto; não se constituíram cidadãs ou sujeitos de direito.
A partir da questão do direito ao voto, o movimento feminista trouxe luz a
diversos problemas que as mulheres enfrentam há séculos. A divisão do espaço
público e privado, a divisão sexual do trabalho, o confinamento da mulher no lar, a
desigualdade de salários e cargos no mercado de trabalho, a subordinação
doméstica da mulher – situações que sempre ocorreram e nunca tiveram
visibilidade, pois as mulheres não eram sequer consideradas pessoas autônomas.
Da questão da subordinação doméstica da mulher, decorrente da divisão do
espaço em público e privado, o tema da violência doméstica passou a aparecer.
Note-se que essa foi uma das pautas que mais demoraram a surgir. Por muito
tempo, sendo o homem o chefe da sociedade conjugal e o espaço doméstico
extremamente privativo, a violência doméstica foi invisibilizada. Sendo a mulher
propriedade do marido, a própria legislação permitia essa prática. Assim, as esposas
eram constantemente agredidas por seus maridos, sem qualquer intervenção
estatal, sendo inclusive uma prática tolerada socialmente.
A partir do tema da violência doméstica, outras situações de desigualdade e
agressão no interior do lar passaram a tornar-se visíveis e a ser discutidas. Dentre
elas, o estupro marital. Por muito tempo, a tipificação do crime de estupro no Código
Penal Brasileiro não possibilitava esse tipo de discussão. Além disso, a mulher
possuía o “dever conjugal” de submeter-se à vontade de seu marido, no que diz
respeito às relações sexuais, de forma que a sua vontade não era levada em
consideração. Afinal, no interior da família, a mulher estava subordinada ao homem
de fato e de direito, devendo-lhe obediência. Hoje, a teoria feminista e a criminologia
entendem o estupro como o ato sexual ao qual a mulher não presta consentimento.
Na época, porém, não tinham direito à vontade, de forma que se torna difícil e
complexa a definição do estupro marital.
Tendo em vista a mudança na legislação, faz-se necessário uma análise das
decisões judiciais a fim de observar a efetividade da lei. A questão probatória é
muito complicada, já que se pressupõe que no casamento existam relações sexuais.
Sendo o consentimento uma questão subjetiva, é difícil comprovar sua presença ou
ausência. No entanto, a questão demonstra a força do movimento de mulheres, que
13

vem alterando costumes substancialmente e trazendo à visibilidade questões até


então ocultas pela falta de influência e importância de quem as sofre.
Assim, o presente trabalho busca instrumentalizar a teoria feminista para
entender as raízes das opressões das mulheres, que em última instância é o fato
que coloca as mulheres numa posição de vítimas de diversas violências, inclusive a
sexual. O aporte feminista é importante para que entendamos as desigualdades e
como elas se constituem e se perpetuam na sociedade.
No primeiro capítulo, são articulados conceitos da teoria feminista para
mostrar o fundamento da sujeição, as bases pelas quais as mulheres vêm sendo
inferiorizadas há séculos. No segundo capítulo, busca-se sintetizar aspectos
importantes das vivências das mulheres brasileiras, quais são suas necessidades,
aspirações e particularidades; enfim, mostrar como as coisas eram para entender
por que são como são. A legislação de cada período busca demonstrar a forma de
evolução histórica da aquisição de direitos por parte das mulheres, bem como que
sua desigualdade sempre se demonstrou na lei.
No terceiro capítulo, serão analisados aspectos do crime de estupro e o
histórico da legislação brasileira, para então enfocar sua ocorrência no casamento.
Finalmente, no último capítulo, serão analisadas decisões colegiadas de tribunais
brasileiros acerca do tema, a fim de analisar a permeabilidade do judiciário à
violência sexual contra a mulher ocorrida no interior do casamento. Será utilizada
como metodologia a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. A pesquisa bibliográfica
será majoritariamente de autores que analisam a situação da mulher na sociedade e
as consequências das desigualdades impostas. A pesquisa jurisprudencial será feita
em cada Tribunal de todos os Estados do Brasil, a fim de observar decisões
colegiadas de segundo grau, por constituírem entendimento sobre o tema,
analisando a maneira que o Judiciário lida com a violência sexual no interior da
família.
14

1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA À LUZ DA TEORIA FEMINISTA

A subordinação e o lugar inferior que as mulheres têm ocupado em todos os


lugares que conseguiram penetrar, bem como na família, suposto locus próprio da
mulher, é exemplificativo da sua situação civil. Foram muitas as dificuldades que as
mulheres enfrentaram e enfrentam ao redor do mundo, em busca de melhores
condições de vida e de igualdade formal e material com os homens. Embora não se
tenha conhecimento histórico de como essa desigualdade se constituiu, ao longo do
tempo ela vem tomando formas mais complexas para se manter eficaz.
Até o advento do liberalismo, as famílias estavam organizadas no sistema do
patriarcalismo. Diversas gerações da mesma família conviviam no mesmo lar sob a
autoridade do homem mais velho, nas chamadas “famílias extensas” 1. Embora as
mulheres estivessem sob a autoridade masculina (do pai ou do marido), eram parte
da produção, pois a casa não era um lugar tido como privado, mas um lugar
comunitário, de fluxo de pessoas. As mulheres faziam parte da sociedade geral, e
não de um grupo oprimido segregado2.
Por meio dos tópicos seguintes, buscou-se apresentar um panorama dos
aspectos que constituem hoje a desigualdade e a inferioridade social da mulher,
todos eles incompatíveis com uma sociedade igualitária de direito. No decorrer da
análise, poderá ser observado que algumas dessas práticas eram sancionadas
legalmente, através do poder do Estado. Atualmente, embora a determinação legal
seja de igualdade, tais condições prevalecem como estatutos sociais.

1.1 PATRIARCADO E GÊNERO

Patriarcado é uma ideia de difícil conceituação, pois polissêmico e diverso


conforme o período histórico ao qual se aplica. O patriarcado começou a ser usado
para explicar a autoridade do homem mais velho da família extensa (modo de
organização familiar anterior à contemporânea família nuclear), que detinha direitos
e autoridade sobre os filhos e sobre a unidade familiar como um todo 3. Esse poder

1
LÉVI-STRAUSS, Claude. O olhar distanciado. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 82.
2
FIRESTONE, Shulamith. A Dialética do Sexo. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976, p. 94.
3
““Patriarcado” vem da combinação das palavras gregas pater (pai) e arkhe (origem e comando).
Essa raiz de duplo sentido se encontra em arcaico e monarquia. Para o grego antigo, a primazia no
tempo e a autoridade são uma só e a mesma coisa. Portanto, o patriarcado é literalmente a
15

foi utilizado para justificar uma doutrina absolutista. Nessa etapa do pensamento
patriarcal, o poder paterno nas relações familiares era o modelo para explicar as
outras relações de poder, inclusive de um rei com seus súditos. O poder do pai
sobre os filhos e a família era natural; o poder político do pai sobre eles derivaria da
sua capacidade de reprodução4, assim como o poder do rei derivaria diretamente
desse poder. A forte influência da Igreja Católica determinou a força do patriarcado,
assim como a predestinação do rei; a determinação bíblica era de que o lugar da
mulher fosse limitado à vontade masculina. Conforme Auad:

A imagem que prevalecia da mulher continuava associada à fragilidade, à


indolência, à luxúria. A Igreja era a principal responsável por essa
mentalidade. Alguns teólogos afirmavam que a mulher era uma prova da
existência do Diabo e que era desprovida de alma, assim como os animais.
Pregava-se ainda que as mulheres eram seres inferiores fabricados por
Deus como uma armadilha para que os homens pecassem. De um lado, a
mulher era associada ao demônio; de outro lado, havia todo um conjunto de
atitudes que revelavam uma posição de superioridade feminina. Tratava-se
do culto à Virgem Maria (...)5

O segundo uso que se deu ao patriarcado – uma forma de poder que os


homens exercem sobre as mulheres - é signatário da forma como Engels, ao
interpretar Bachofen, busca situar o patriarcado como uma forma de poder político
posterior ao matriarcado. A ideia é que as mulheres possuíam certo prestígio social
nas comunidades em razão do fato de gerarem filhos, mas que os homens teriam
rompido esse sistema e tomado o controle através da violência ao tomar
conhecimento da sua participação na reprodução de vida; a descoberta da função
do homem na reprodução teria sido o fato instituidor do patriarcado6. Embora as
estudiosas sejam quase unanimidade ao concordar com a existência do patriarcado,

autoridade do pai. Como o pai é forçosamente o primeiro e a origem em relação às gerações


seguintes, a adição de pater com arkhe redobra a autoridade da origem, considerada uma evidência
no termo arqui – e evidente na palavra grega archontes (descendentes das primeiras famílias
instaladas num lugar e dirigentes da comunidade). Mas a palavra pater em si – a mesma em
sânscrito, grego e latim – não designa o pai no sentido contemporâneo. Esse papel é preenchido pelo
genitor – genitor. “A palavra pater tinha um outro sentido [...] Na língua do Direito [aplicava-se] a todo
homem que não dependia de nenhum outro e que tinha autoridade sobre uma família e um domínio”
(Fustel de Coulanges, 1864). A palavra “patriarcado” comporta, portanto, triplamente a noção de
autoridade e nenhuma noção de filiação biológica.” DELPHY, Cristine. Patriarcado (teorias do). In:
HIRATA, Helena et al. (org). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Unesp, 2009, p. 174.
4
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 45.
5
AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 35.
6
Ver ENGELS, Frederich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo:
Lafonte, 2012.
16

a maioria não acredita que já tenha havido matriarcado, de forma que essa é a maior
diferença entre o patriarcado de Engels e o utilizado pelas feministas atualmente 7.
A história do contrato social conta que este foi feito como uma forma de
limitação dos poderes então tidos como “naturais”, o poder do pai e o poder do rei,
para que os indivíduos pudessem exercer pessoalmente seus direitos. Assim, os
homens deixam de se ver como filhos e pais e passam todos ao status de indivíduo,
com poderes políticos, abandonando o patriarcado e estabelecendo uma
fraternidade civil, considerados irmãos, pois submetidos igualmente à mesma lei e
com poderes iguais8.
Filmer, o maior defensor do patriarcalismo (enquanto sistema de poder que
sustenta a monarquia), entendia que o poder paterno é apenas uma dimensão do
patriarcado. O direito sexual ou conjugal sobre a esposa precede o direito sobre os
filhos, de forma que o poder do homem se constitui antes mesmo dele se tornar pai 9.
Assim, o poder sexual é precedente ao poder paterno.
Embora os contratualistas fossem contra o poder paterno como fundador do
poder político, o poder conjugal ou sexual foi pouco explorado, e é ele que dá origem
ao poder patriarcal. Assim, quando do estabelecimento do contrato social, o direito
patriarcal do pai não foi eliminado, mas sim divido entre todos os homens; o poder
sexual patriarcal passa a ser um direito universal 10. Na égide do contratualismo, o
poder sexual se constitui por meio do contrato de casamento.
No entanto, assim como o poder sexual é apenas um atributo do poder
paterno, o poder sexual não está restrito à unidade familiar. As mulheres estão
subordinadas aos homens enquanto unidade fundadora da sociedade civil, não
apenas aos seus pais ou maridos. Em outras palavras, o sistema de controle
pessoal foi transformado num sistema de controle impessoal, mediado pelas
instituições11. Conforme Pateman:

O contrato sexual, deve-se enfatizar, não está associado apenas à esfera


privada. O patriarcado não é puramente familiar ou está localizado na esfera
privada. O contrato original cria a sociedade civil patriarcal em sua

7
DELPHY, Cristine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, Helena et al. (org). Dicionário Crítico do
Feminismo. São Paulo: Unesp, 2009, p. 175.
8
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 121.
9
Ver FILMER, Robert. Patriarcha, or the natural power of the kings. Londres: Richard Chiswell,
1680.
10
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 163.
11
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 138.
17

totalidade. (...) A sociedade civil é bifurcada, mas a unidade da ordem social


é mantida, em grande parte, através da estrutura das relações patriarcais. 12

Como estabelecido hoje, o patriarcado funciona como um conjunto de


relações entre os homens e as instituições que mantém a solidariedade entre os
homens, de forma que se beneficiam como um grupo da dominação-exploração 13
que exercem sobre as mulheres. A base material do patriarcado atual é a divisão
sexual do trabalho e o controle masculino sobre a sexualidade feminina 14. Muitas
autoras têm demonstrado como a intersecção entre patriarcado e capitalismo
acentuam a hierarquização na divisão sexual do trabalho, atuando como
mecanismos complementares na subordinação feminina 15.
O patriarcado é um conceito articulado para definir e demonstrar a
subordinação da mulher, não só no interior da família, como também na sociedade
civil. A subordinação da mulher a um homem em particular se tornou a subordinação
a todo o gênero masculino. Neste sentido, o conceito de gênero também é útil como
método de análise, para entender a desvalorização da mulher na sociedade civil. A
diferença entre os termos se refere à questão de que gênero é uma categoria
histórica mais adequada do que o patriarcado, pois este teria se iniciado há alguns
milênios, enquanto a relação entre os sexos sempre teria existido, embora não deixe
clara a situação de subordinação feminina. De acordo com Saffioti:

O conceito de gênero não explicita, necessariamente, desigualdades entre


homens e mulheres. Muitas vezes, a hierarquia é apenas presumida. Há,
porém, feministas que veem a referida hierarquia, independente do período
histórico com o qual lidam. (...) considerando a história como processo,
admitindo a utilização do conceito de gênero para toda a história, como
categoria geral, e o conceito de patriarcado, como categoria específica de
determinado período, ou seja, para os seis ou sete milênios mais recentes
da história da humanidade.16

Assim, o termo gênero passou a ser utilizado pelas feministas para enfatizar o
caráter social das diferenças entre os sexos. O conceito é relacional, ou seja, é

12
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 29.
13
“Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos
político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico.” SAFFIOTI, Heleith
I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 50.
14
HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more progressive
union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979, p. 11.
15
Ver HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more
progressive union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979; HARTMANN, Heide. Capitalism,
patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3.
16
SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004, p. 45.
18

definido reciprocamente, de forma que informação sobre gênero é, necessariamente


sobre os dois sexos. A ideia de gênero se contrapõe às explicações biológicas;
nesse sentido, demonstra que as diferenças entre homens e mulheres são
construídas nas relações sociais 17. Em outras palavras:

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o


destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que
o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente
construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo, nem
tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. 18

Assim, o gênero aparece como relação social, caracterizada pelo binômio


exploração-dominação. Está em transformação constante conforme a sociedade e,
como constitutivo das relações sociais, é um modo de expressar relações de poder.
Essa instância de poder permeia toda a sociedade, construindo a identidade de
homens e mulheres19.
A feminilidade e a masculinidade, as construções de gênero, visam instituir a
heterossexualidade compulsória, por meio de uma relação binária, definida em
termos da atividade sexual da forma como desejada pelo homem; ou seja, essa
diferenciação entre duas possibilidades estáticas busca definir quais performances
são desejáveis para os homens nas relações entre os sexos 20. A separação é
definida em termos proibitivos, a fim de determinar subconscientemente as práticas
sexuais próprias de cada gênero21. Dito de outra forma:

A heterossexualidade, supostamente natural, é forçada nas mulheres a


cada momento. Qualidades definidas como naturais e eternamente
femininas – nutrição, intuição, fragilidade, rapidez com os dedos, facilidade
com crianças – (...) parecem simplesmente descrição das características
desejadas e requeridas de ocupantes específicos do papel feminino.22
(Tradução da autora)

17
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto
Alegre, v.20, nº2, jul-dez 1995, p. 75.
18
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 24.
19
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 8.
20
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 45.
21
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 52.
22
“Heterossexuality, supposed natural, is found to be forced on women moment to moment. Qualities
pointed to as naturally and eternally feminine – nurturance, intuition, frailty, quickness with their
fingers, orientation to children – (…) look simply like descriptions of the desired and required
characteristics of particular occupants of women’s roles.” MACKINNON, Catherine. Toward a
feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989, p. 90.
19

Muitas estudiosas da subordinação feminina consideram o controle da


sexualidade feminina como a principal esfera de dominação masculina. A
socialização feminina constitui o processo pelo qual a mulher identifica-se como um
objeto sexual. Como o modelo é masculino, a sexualidade é definida pelos homens
e imposta sobre as mulheres. Em outras palavras, é o interesse dos homens que
define o que significa sexualidade e a relação entre os sexos23. De acordo com
MacKinnon:

Tudo isso sugere que o que é chamado de sexualidade é a dinâmica de


controle pela qual a dominação masculina erotiza e, assim, define homens e
mulheres, identidade de gênero e prazer sexual. Também é o que mantém
e define a supremacia masculina como sistema político. O desejo sexual
masculino é, desse modo, simultaneamente criado e servido, nunca
satisfeito de uma vez por toda, enquanto a força masculina é romantizada,
até mesmo sacralizada, potenciada e naturalizada, por se submergir no
próprio sexo24. (Tradução da autora)

O gênero é constitutivo de relações sociais, ao mesmo tempo em que remete


os indivíduos a uma categoria anteriormente construída; ou seja, não se trata de
uma real construção, mas de uma representação. Sua repetição constante gera uma
sensação de naturalidade, obscurecendo seus mecanismos. O gênero não é apenas
uma construção social e cultural, mas um sistema semiótico, de significado e
representação de poder, atribuindo posição, identidade dos indivíduos dentro da
sociedade em relação a si e aos demais 25.
Nesse sentido, gênero é apresentado como uma norma reguladora, a fim de
definir e normalizar os comportamentos masculino e feminino. Como é reguladora
das práticas sociais, geralmente aparece implicitamente, mais perceptível em seus
efeitos. A norma não é apenas uma regra, mas um princípio de valoração e uma
maneira de construir as regras. Ou seja, gênero não se resume apenas na

23
MACKINNON, Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1989, p. 119.
24
“All this sugests that what is called sexuality is the dynamics of control by which male dominance
(…) eroticizes and thus defines man and woman, gender identity and sexual pleasure. It is also that
which mantains and defines male supremacy as a political system. Male sexual desire is thereby
simultaneously created and serviced, never satisfied once and for all, while male force is romanticized,
even sacralized, potentiated and naturalized, by being submerged into sex itself.” MACKINNON,
Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989, p.
137.
25
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 20.
20

performance da personalidade vista como masculina ou feminina, mas no próprio


mecanismo que institui essa diferenciação26.
A divisão entre os sexos e os papeis esperados de cada um, assim, não são
naturais, mas socialmente construídas, conforme a hierarquia de gênero. Apresenta-
las como naturais é uma estratégia para garantir legitimação 27. As diferenças não
são simétricas, mas são enxergadas socialmente com relevâncias socialmente
distintas, de modo a garantir a dominação 28.
O conceito de gênero possibilita demonstrar que os papeis sociais atribuídos
como consequência do que é natural é, na verdade, socialmente construído, de
forma a valorizar o que é considerado masculino e inferiorizar o feminino, mantendo
o status inferior da mulher por meio do próprio mecanismo que o institui. Assim,
tanto gênero quanto patriarcado são conceitos que possibilitam análise das formas
da inferioridade social da mulher e como esta se constitui.

1.2 FALSA NEUTRALIDADE DA LEI

Com o Renascentismo e a Reforma Protestante, que propiciaram o


questionamento das estruturas sociais vigentes e o individualismo, a cultura passou
a ser mais acessível às mulheres. Nos salões franceses da elite, espaço de elevada
importância social para a época, as mulheres começaram a questionar os papeis a
elas reservado e a inferioridade a que estavam sujeitas, num movimento complexo
chamado Preciosismo, que combina movimento literário com movimento de
mulheres e de ideias29. Embora tenha perdido sua força, no final do século XVII,
quando as mulheres passaram a se interessar pela ciência, foi importante para
tornar pública a discussão sobre a situação das mulheres. Conforme Badinter:

Consideradas as primeiras feministas – mulheres da aristocracia e alta


burguesia, solteiras, independentes economicamente -, defendiam a
igualdade entre os sexos, o direito ao amor e ao prazer sexual, o acesso à
mesma educação intelectual dada aos homens. Questionando a instituição
casamento e os papeis de esposa e mãe como destino da mulher, elas

26
BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu. Campinas, vol. 42, jan-jul 2014, pp 249-
274.
27
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 17.
28
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 29.
29
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 32.
21

inverteram os valores sociais da época. Apesar de seus opositores, elas


conseguiram algumas mudanças.30

No final do século XVIII, com a proclamação da Declaração da Independência


dos EUA, em 1776, e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na
França, em 1789, bem como a Revolução Industrial e a derrocada do Absolutismo,
tem-se a transição entre a Idade Moderna e a Contemporânea, baseada nos valores
do desenvolvimento científico e no racionalismo, empirismo, e utilitarismo. Tais
revoluções foram possibilitadas pelo desenvolvimento econômico e, principalmente,
pelas novas ideias que pregavam a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos 31.
A teoria contratual, o liberalismo e o individualismo são as teorias que
passaram a enxergar o homem como indivíduo, como capaz de estabelecer relações
civis e políticas. Os critérios que regem a sociedade civil liberal são baseados em
conceitos aparentemente universais e impessoais de igualdade e propriedade, mas
que cabem apenas à concepção liberal do homem, do sexo masculino; as formas
não são neutras, mas são apresentadas, porém, como o modelo do indivíduo 32. O
modelo de ser da sociedade liberal é o homem, embora esse modelo seja visto
como cabível a todos da sociedade indistintamente.
Essa ordem aparentemente igualitária acaba por esconder a subordinação
das mulheres. A desigualdade passa despercebida porque a teoria é “universal”.
Locke, um dos mais expoentes autores do contratualismo, sustenta a ideia patriarcal
de que a subordinação das mulheres aos maridos seria derivada de suas diferenças
naturais, mas exclui o controle dos maridos sobre as esposas como uma forma de
poder político. A subordinação da mulher não seria política, mas natural. A questão é
que um subordinado natural não pode ser igual politicamente; por isso, as mulheres
(esposas) estão excluídas do poder político; o modelo de indivíduo não se aplica a
elas33.

30
BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993,
p. 12
31
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 39.
32
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013, p.
60.
33
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013, p.
58.
22

Jean Jacques-Rousseau, um dos filósofos mais influentes e importantes da


época, buscou reforçar o ideal de família e de feminilidade, excluindo as mulheres
da cidadania francesa:

Por várias razões derivadas da natureza das coisas, na família quem


comanda é o pai. Em primeiro lugar, a autoridade da mãe não deve ser
igual à paterna, mas quanto ao governo é preciso que seja um só, e que
quando houver opiniões divergentes haja também uma voz preponderante
que possa decidir. (...) Além disso, o marido precisa inspecionar a conduta
da esposa, porque para ele é importante que os filhos que precisa
reconhecer como seus não sejam de outros. No entanto, a esposa que nada
tem de semelhante a temer, não exerce o mesmo direito sobre o marido 34.

Assim, Olympe de Gouges, ativista da Revolução, escreveu, em 1791, a


famosa Declaração dos Direitos das Mulheres e das Cidadãs. A autora pretendia,
por meio do escrito, conscientizar as mulheres da sua exclusão, de que deveriam
participar do processo legislativo revolucionário da mesma forma que os homens; e
que os ideais da Revolução eram apenas para os homens, embora fossem
princípios ditos universais e naturais. A autora foi guilhotinada em 1793, “por haver
esquecido as virtudes que convém a seu sexo e por haver se intrometido nos
assuntos da República”35.
A Revolução Francesa não significou evolução de direitos para as mulheres.
Obtiveram poucas conquistas, como o direito ao divórcio e de testemunhas em
processos civis, enquanto os privilégios masculinos foram reforçados. Os clubes de
mulheres foram fechados e em 1794 proibiu-se a presença de feministas em
qualquer atividade política. Essa é a chamada primeira onda do feminismo, que
trouxe visibilidade ao fato de que a desigualdade feminina não era natural e sim
social, situando a reivindicação feminista nos ideais de igualdade e liberdade
pregados pelos revolucionários para os homens36.
Nos Estados Unidos, no século XIX, as mulheres de classe média passaram a
lutar pela abolição da escravidão dos negros. O protestantismo, ao contrário do
catolicismo, possibilitava o estudo feminino, de forma que as mulheres aprenderam
a ler e escrever. Surgiu o movimento sufragista, na Declaração de Seneca Falls, em
1848, fundado por mulheres excluídas do congresso antiescravista de 1840 em

34
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Tratado sobre a economia política. Versão online, disponível em:
<https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/tratado-sobre-economia-politica.pdf>. Acesso
em: 11 dez 2020.
35
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 49.
36
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 47-48.
23

virtude de seu sexo37. Em 1866, foi apresentada a décima quarta emenda


constitucional, visando à concessão de direito ao voto para os escravos, negando-o
explicitamente às mulheres – apenas os libertos homens adquiriram o direito ao
voto38. Sequer os abolicionistas as apoiaram, com medo de perderem os direitos
recém-adquiridos.
Após a abolição, o movimento sufragista se intensificou. O sufragismo
inventou diversos protestos pacíficos que foram utilizados posteriormente por outros
movimentos, como a greve de fome 39. Apenas em 1920 as mulheres americanas
conquistaram o direito ao voto. Vale dizer, no entanto, que o movimento sufragista
teve repercussão internacional em todas as sociedades industriais, buscando
assegurar direito ao voto e à educação às mulheres. Foi também muito intenso em
diversos países na Europa, como a França e a Inglaterra, como um movimento das
mulheres da elite.
Na Inglaterra, merece enfoque o trabalho do casal John Stuart Mill, importante
filósofo do século inglês do século XIX, e Harriet Taylor. Em 1866, o então deputado
Stuart Mill ofereceu ao Parlamento inglês a primeira proposta de voto feminino, no
que foi recebido com escárnio por seus companheiros. Junto com sua esposa,
escreveu o livro A sujeição da mulher, que se tornou muito influente para as
sufragistas. Afirmam a mulher como um indivíduo livre e denunciam o casamento
como uma instituição desigual.40
O fim da Primeira Guerra marcou a conquista do voto das mulheres inglesas.
Com o fim do Império austro-húngaro, diversas medidas progressistas foram
implantadas no território, inclusive o voto feminino. Em 1917, se iniciou a Revolução
Russa. Diversos acontecimentos contribuíram para a derrocada da ordem europeia
antes da Segunda Guerra, e as mulheres acabaram conquistando o direito ao voto.
A conquista do direito ao voto causou uma reação masculinista; a taxa de natalidade
estava em decadência, e passou-se a culpar a independência das mulheres, sendo
as feministas acusadas de destruir a nação e a família 41. Conforme Auad:

37
“Durante o congresso antiescravista mundial que aconteceu em Londres em 1840, as quatro
delegadas norte-americanas não foram bem recebidas. Os congressistas ficaram escandalizados
com sua presença, não as reconheceu como delegadas e as impediu de participar. As quatro
mulheres só puderam assistir às sessões atrás das cortinas. (...)” GARCIA, Carla Cristina. Breve
História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 53.
38
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 55.
39
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 58.
40
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 64.
41
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 79.
24

No fim da guerra e com a volta da força de trabalho masculina, a ideologia


da diferenciação dos papeis por sexo e da inferioridade feminina foi
fortemente reativada. Os meios de comunicação logo se apressaram em
veicular mensagens que reforçassem a ideia de que o espaço doméstico
cabia à mulher, enfatizando a imagem de “rainha do lar”.42

Mesmo conquistando os direitos formalmente, as mulheres ainda são vítimas


da desigualdade. A própria existência de uma ideia conservadora no pós-guerra,
visando reforçar a feminilidade e o papel doméstico da mulher, demonstra que existe
um padrão que não foi criado pelas mulheres, mas que elas devem seguir. Os
homens como um grupo se beneficiam dos mesmos mecanismos que
sistematicamente excluem as mulheres. A relação entre os sexos é uma relação de
poder; e o poder é socialmente masculino. Não é apenas que os homens maltratem
as mulheres, mas que eles podem fazê-lo, não só pela sua força física, mas porque
é socialmente aceitável (já que a sociedade é criada em moldes masculinos) 43.
A universalidade, a igualdade e a isenção são vistos como os ideais que
legitimam a sociedade; mas fazem parte da criação masculina do mundo, que se
tornam a verdade a ser determinada. O Estado é masculino, pois adota o ponto de
vista “neutro” nas suas relações com os cidadãos. A neutralidade esconde que o
poder é ele mesmo masculino, de forma que não leva em conta que as mulheres
estão em posições subordinadas e privadas do poder socialmente, fazendo com que
a neutralidade não dê conta de lidar com as desigualdades materiais entre homens e
mulheres 44.
As mulheres não são iguais aos homens, mas o “outro”, o “contrário”. As
mulheres são atingidas hoje pela desigualdade porque há um padrão de indivíduos e
de comportamentos que as mulheres não criaram e ao qual são obrigadas a se
equiparar. As mulheres não são vistas como indivíduos como os homens porque o
conceito de indivíduo não foi pensado para incluí-las.

1.3 ESPAÇO PÚBLICO E ESPAÇO PRIVADO, CASAMENTO E DIVISÃO SEXUAL


DO TRABALHO

42
AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 47
43
MACKINNON, Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1989, p. 94.
44
MACKINNON, Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1989, p. 163.
25

Conforme já mencionado, o direito dos homens sobre as mulheres não se


constitui apenas na esfera doméstica, mas também no espaço público. O poder
patriarcal dos homens não se dá mais em virtude do parentesco, mas da
fraternidade dos homens. Até então, não havia uma divisão estratificada do espaço
entre público e privado, pois as atividades produtivas não tinham finalidade
capitalista e sim de subsistência da família, sendo efetuadas dentro do espaço
doméstico, pela família em comunhão. A separação da produção da unidade familiar
e o surgimento da família como privada (família nuclear) removeram as mulheres do
espaço produtivo e as “devolveram” ao seu papel natural45, de forma a conciliar as
demandas do patriarcado e do capitalismo. A sociedade civil dá origem a ambas as
esferas, pública e privada, porém como o contrato social cria a esfera política, a
outra fica ignorada46. Assim, a derrocada do status das mulheres se deu quando
elas perderam o controle da subsistência pela mudança dos métodos produtivos,
tornando seu trabalho inferior; quando o trabalho delas foi privatizado pela família ao
invés de ser coletivizado; quando a família nuclear se tornou a regra, em detrimento
do grupo47.
As mulheres foram excluídas do contrato; não eram tidas como indivíduos,
pois não tinham a propriedade de si mesmas, não nasciam livres. As mulheres não
faziam parte do contrato, mas eram necessárias na sociedade civil pra reprodução;
assim, foram incorporadas em uma esfera que é parte da sociedade civil, mas sem
importância política relevante. A esfera privada é vista como feminina, enquanto a
esfera pública, política, é masculina48. No entanto, o homem circula entre as duas
esferas e tem o poder em ambas.
A doutrina das esferas separadas 49 constitui-se num meio simples de excluir
as mulheres da participação política. Note-se que a doutrina se justifica na natureza.
A mulher pertence naturalmente ao domínio particular do lar por sua capacidade de
gerar filhos. A divisão entre as esferas é baseada em assunções do temperamento
de cada sexo, inserindo-os numa relação generificada, na qual os sexos são vistos

45
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013, p.
61.
46
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 18.
47
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 146.
48
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 28.
49
Ver RUSKIN, John. Of Queen’s Gardens. Londres: 1864.
26

como opostos e complementares50. As esferas são complementares, mas a esfera


pública é mais valiosa, de forma que os homens também o são 51.
O casamento dá origem à divisão entre as esferas, e esta dá a forma da
divisão sexual do trabalho na sociedade moderna52. Assim, a divisão das esferas
privada e pública, ou das esferas reprodutiva e produtiva, está estritamente ligada à
divisão sexual do trabalho. Embora a divisão sexual do trabalho já existisse em
todas as sociedades53, é sob a égide do capitalismo que essa diferenciação toma
maior importância, já que o trabalho visto como produtivo só é realizado na esfera
pública mediante o pagamento de um salário. A divisão sexual do trabalho é
considerada transcultural, mas as atividades que são vistas como próprias de um ou
outro sexo são diferentes conforme a sociedade. A divisão sexual do trabalho
moderna parte de dois princípios, o princípio da separação (cada sexo tem os seus
trabalhos) e o princípio da hierarquização (os trabalhos de homem são mais
valiosos). Aos homens cabem os trabalhos na esfera pública, produtiva, de forte
valor social agregado54. O tema da reprodução social surge como se derivado da
natureza e não das relações sociais. Como há complementariedade na relação
sexual da reprodução, da mesma forma quer-se imprimir uma noção de naturalidade
e complementariedade das relações sociais.
Assim, a divisão sexual do trabalho muitas vezes apresenta-se como
biologicamente orientada, como uma relação de reciprocidade para organização da
sociedade. No entanto, trata-se de uma dominação dos homens sobre as mulheres,
a fim de controlar sua sexualidade e capacidade reprodutiva, assegurando a
legitimidade dos herdeiros55. A vida doméstica é tida como privada, de forma que
vista fora da alçada do Estado, tornando-se um território de poder e controle
masculino sob a justificativa da privacidade, reforçando o poder masculino sobre a
esposa e os filhos56. Em outras palavras:

50
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 53.
51
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 143.
52
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 178.
53
Ver TABET, Paola. Mãos, instrumentos, armas. In: FERREIRA, Verônica et al (org.). O patriarcado
desvendado. Recife, SOS Corpo, 2014.
54
KERGOAT, Danièle. Divisão Sexual do Trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et
al. (org). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Unesp, 2009, p. 67.
55
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 89.
56
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Estudos Feministas. Florianópolis, ano 16,
nº2, maio-ago 2008, p. 323.
27

A lei da privacidade trata a esfera privada como a esfera da liberdade


pessoal. Para os homens, realmente é. Para as mulheres, o privado é a
esfera distintiva de violação íntima e abuso, nem livre nem particularmente
pessoal. O reino de liberdade privada dos homens é o reino de
subordinação coletiva das mulheres57. (Tradução da autora).

Neste contexto, a família nuclear torna-se a regra. Embora a mulher estivesse


excluída do contrato social, afirma-se que a família constitui-se por meio do contrato
de casamento. Assim, a mulher passa da autoridade do pai para o marido, confinada
ao espaço doméstico. Pressupõe-se que ela devia determinadas tarefas para o
marido a fim de satisfazer suas necessidades, diversas que fossem. O contrato de
casamento também é um contrato de trabalho, pois pressupõe que as mulheres
sejam donas de casa para seus maridos58.
A acumulação de riquezas e o capitalismo nascente são importantes a fim de
entender o estabelecimento do casamento monogâmico, da forma como
conhecemos hoje. A monogamia baseia-se na necessidade do homem de dominar o
processo reprodutivo e assegurar que os herdeiros são legítimos, assegurando a
transmissão de propriedade e a manutenção das riquezas. O que define o
casamento, dessa forma, é que a monogamia é válida somente para a mulher 59. A
finalidade do casamento é o absoluto controle sexual da esposa, baseado
principalmente nas circunstâncias econômicas. A monogamia e a família nuclear são
os meios pelos quais o patriarcado mantém seu poder na esfera privada. O
casamento serve nas classes burguesas para manter e transmitir propriedades e
privilégios, enquanto nas classes operárias funciona a fim de reproduzir mão de obra
barata.60 Millet esclarece:

Enquanto o patriarcado procurava reduzir a mulher à condição de objeto


sexual, esta não era encorajada a tirar proveito dessa sexualidade, que, na
opinião geral, constituía o seu destino. Pelo contrário, faziam-na sofrer e
envergonhar-se do seu sexo, enquanto por outro lado não lhe permitiam
conhecer outra existência que não estivesse a ele ligada. Porque, através
dos tempos, a maioria das mulheres foram deixadas num nível cultural
comparável ao dos animais, sendo unicamente encarregadas de exercer

57
“The law of privacy treats the private sphere as a sphere of personal freedom. For men, it is. For
women, the private is the distinctive sphere of intimate violation and abuse, neither free nor
particularly personal. Men’s realm of private freedom is women’s realm of collective subordination.”
MACKINNON, Catherine. Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1989, p. 168.
58
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 176.
59
ENGELS, Frederich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo:
Lafonte, 2012, p. 64.
60
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 102.
28

funções de reprodução e de educação das crianças. Assim, a mulher devia


conceber sua sexualidade como um castigo, dentro de um tipo de vida que,
com algumas exceções, e pondo de parte a maternidade, não a encorajava
a aproveitar a sua vida sexual e a limitava a uma existência consagrada às
tarefas ingratas do serviço doméstico.61

Como a principal finalidade da mulher na família é reprodutiva, diz-se que a


maternidade é seu destino natural; dessa forma, não se necessita de qualquer
qualificação ou treinamento para o cuidado dos filhos e tampouco do lar. Diz-se
também que como faz parte de sua natureza cuidar dos filhos, não se trata de
trabalho e sim um prazer, um ato de amor. Além de invisível, esse trabalho é
inferiorizado62. Nas palavras de Saffioti:

A sociedade investe muito na naturalização desse processo. Isto é, tenta


fazer crer que a atribuição do espaço doméstico à mulher decorre de sua
capacidade de ser mãe. De acordo com este pensamento, é natural que a
mulher se dedique aos afazeres domésticos, aí compreendida a
socialização dos filhos, como é natural sua capacidade de conceber e dar à
luz.63

A família é uma instituição essencial para o Estado, pois é através dela que a
sociedade se reproduz. Assim, para assegurar que a estrutura da família se
mantenha e as mulheres continuem cuidando da família sem retribuição, a
legislação sobre família e assistência social afirma e mantém a subordinação
feminina64. É particularmente notável o esforço que a Alemanha nazista fez para
manter e reproduzir a família nuclear patriarcal, como o faz muitos governos
autoritários. A ideia é de que o tirano tenha um representante em cada família – o
pai65.
A família nuclear patriarcal é extremamente desigual; não é que os membros
(mãe e filhos) dependem apenas economicamente do homem; este é visto como o
seu representante natural, o chefe da família. Há de se notar, no entanto, que a
posição da sociedade em relação à criança mudou muito a fim de solidificar a
autoridade do pai. As crianças trabalhavam como adultos. Na verdade, até a idade
média, não havia o conceito de infância; as crianças eram pouco diferenciadas dos
adultos. A semelhança era a dependência econômica, pois geralmente a criança se

61
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 90.
62
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 103.
63
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987, p. 9.
64
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013,p.
73.
65
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 146.
29

dedicava ao aprendizado de algum ofício. A sua posição de servidão, no entanto,


não era vista como degradante, mas como uma etapa pela qual todos passavam. A
família patriarcal que mantinha várias gerações não tinha relações afetivas com as
crianças, pois essas eram enviadas pra longe da família a fim de desenvolver seu
aprendizado66.
O desenvolvimento da burguesia é acompanhado por uma crescente
diferenciação da infância. Os meninos passaram a usar vestimentas vistas como
femininas, e a masculinização das suas roupas acontecia conforme o crescimento;
ou seja, as crianças começavam na classe baixa das mulheres e era o crescimento
que os levava ao status dos homens. O ensino foi redefinido, a fim de iniciar as
crianças na vida adulta; a disciplina tornou-se o modo de ensino moderno67. A
educação segregava cada vez mais as crianças do mundo adulto 68.
A segregação da infância da vida adulta levou a família moderna a ter seu
centro na criança; a criança é o produto da unidade familiar. A separação da criança
do mundo adulto mantém a sua dependência econômica por mais tempo, bem como
demanda um trabalho constante de quem passa a cuidar delas. O status das
crianças se adapta às necessidades masculinas; as crianças foram inseridas na
produção fabril, mas foram excluídas pela apropriação masculina da economia
familiar. Quando deixaram de ser úteis (produtivas financeiramente), passou-se a se
preocupar com o bem estar das crianças e a mãe passou a ser vista como primordial
para tal69.
Até o final do século XIX, a mulher não tinha personalidade civil; ao se casar,
tornava-se com o marido uma única pessoa, perdendo todos os seus direitos. Ela e
seus filhos eram propriedades do marido, de forma que havia vendas de esposas
assim como de escravos; os maridos podiam alugar a elas e aos seus serviços e
lucrar com isso. A mulher casada tornava-se um objeto70. Além do acesso sexual
regular, era comum (e ainda o é, em algumas partes) que os homens castigassem

66
FIRESTONE, Shulamith. A Dialética do Sexo. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976, p. 93.
67
A autora explica a ideologia que se forma a fim de sustentar essa nova posição da criança na
família; a visão das crianças como anjos e sua proximidade de Deus, bem como de inocência, serve
para justificar a noção de que as crianças são diferentes dos adultos e por isso devem ser tratadas de
forma infantilizada. Ver FIRESTONE, Shulamith. A Dialética do Sexo. Rio de Janeiro: Labor do
Brasil, 1976.
68
FIRESTONE, Shulamith. A Dialética do Sexo. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976, p. 99.
69
HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more progressive
union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979, p. 17.
70
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 17.
30

suas esposas. A ideia era que “o marido detinha a propriedade da pessoa da sua
esposa, e o homem era um proprietário e um senhor absoluto somente se ele
pudesse fazer o que quisesse com seu bem”71.
Assim, além do sexo, as esposas tem responsabilidade de fornecer cuidados
múltiplos para o lar. No entanto, não são empregadas, pois não fazem parte do
espaço público ou recebem salário. A prestação dos serviços do lar é vista como
natural; ser uma esposa significa prestar serviços domésticos para o marido. A
construção do trabalhador pressupõe uma esposa em casa cuidando das suas
necessidades72.
Note-se que o trabalho prestado pelas mulheres no espaço doméstico não é
diferente do trabalho efetuado nas empresas, mas é apropriado de forma diferente,
de forma que se torna menos valioso. O trabalho das mulheres no lar gera riqueza
em valores de uso que é apropriada pelos homens, determinando uma relação de
exploração econômica73.
A inserção das mulheres (e das crianças) no mercado de trabalho não foi
aceita pacificamente pelos homens, muito embora o capitalismo tenha se
aproveitado dessa força de trabalho por serem mais vulneráveis, tanto por causa
das relações de autoridade na família tanto pela sua extrema necessidade
econômica74. A revolução industrial levava toda a força de trabalho disponível, em
especial a mais barata, para as fábricas. Os homens entendiam que as mulheres e
as crianças receberem salários minava as relações de autoridade na família, e
mantinha os salários baixos para todos os trabalhadores 75. Além de serem uma
competição barata, as mulheres trabalhadoras eram esposas dos trabalhadores,
deviam serviços a eles e o trabalho na indústria diminuía drasticamente a
quantidade de serviços que aquela esposa prestava76.

71
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 184.
72
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 196.
73
MIGUEL, Luís Felipe. Voltando a Discussão sobre capitalismo e patriarcado. Estudos Feministas.
Florianópolis, set-dez 2017, p. 1230.
74
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 150.
75
Hartmann entende que a conquista dos homens se deu porque foram mais hábeis em se
organizarem sindicalmente, reforçando a ideia de que os homens mantém uma fraternidade. Os
sindicatos apoiavam a legislação protetora para mulheres, mas não para os homens, visando criar
impedimentos para o trabalho feminino. Ver HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job
segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3.
76
HARTMANN, Heidi. The Unhappy marriage of marxism and feminism: toward a more progressive
union. Capital & Class. Nova York, vol. 2, 1979, p. 16.
31

As condições de trabalho das mulheres e das crianças chocavam os homens


burgueses, e o fato de elas dedicarem mais tempo à fábrica do que ao lar
incomodava os seus maridos. Nesse contexto, começaram a surgir as primeiras leis
de proteção ao trabalhador que, no entanto, beneficiavam mais aos homens do que
às mulheres. A ideia da legislação era proteger a organização familiar, a autoridade
masculina que era minada quando a mulher tinha independência econômica. As leis
não buscavam condições melhores de trabalho para as mulheres, mas sim mostrar
condescendência com seres vistos como inferiores77. O capitalismo adaptou-se a fim
de se adequar ao sistema estruturante e mais antigo em vigor, o patriarcado.
Quando os homens se tornaram trabalhadores assalariados, as suas esposas
se tornaram donas de casa. O salário tornou-se um salário família, a fim de sustentar
o trabalhador e sua esposa, sua dependente financeira. O casamento então aparece
para as mulheres como a única oportunidade de subsistência, pois a maioria das
mulheres só encontra empregos com baixos salários e status inferior, desprezados
pelos homens. Como o salário dos homens é encarado como salário-família78, o
salário da mulher é encarado como complemento, mesmo nas famílias mais
humildes. O emprego feminino ameaça tanto a autoridade do marido quanto a
organização masculina dos locais de trabalho, de modo que os salários são
diferenciados a fim de manter a hegemonia masculina no espaço público 79.
As mulheres não foram incorporadas no mercado de trabalho como
trabalhadoras, e sim como mulheres. As mulheres são frequentemente assediadas
nos locais de trabalho; os salários continuam sendo inferiores e as ocupações
também. Sua incorporação no mercado produtivo é determinada pelas necessidades
do mercado, não porque são vistas como trabalhadoras 80.
O século XIX é acompanhado de grande industrialização, com a inserção
maciça de mulheres nas fábricas e grande parte da população sendo levada ao
espaço urbano. Embora o ideal de feminilidade e maternidade ditasse que o papel
das mulheres era o cuidado do lar e dos filhos, as mulheres eram cada vez mais

77
MILLET, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 46.
78
Hartmann entende que o salário família se estabeleceu como norma a fim de resolver o conflito que
se estabelecia socialmente quando as mulheres ingressavam na força de trabalho, a fim de mantê-las
no espaço doméstico, assegurando a noção de esferas separadas e a dependência econômica da
mulher, sendo uma maneira de reforçar a dominação masculina. HARTMANN, Heidi. The Unhappy
marriage of marxism and feminism: toward a more progressive union. Capital & Class. Nova York,
vol. 2, 1979, p. 16.
79
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 206.
80
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 103.
32

empurradas para a indústria pela necessidade premente. Assim, estavam totalmente


à margem do processo produtivo, sendo os maiores sujeitos de miséria na
sociedade industrial nascente.
Enquanto as mulheres burguesas lutavam pelo voto, a situação da mulher
trabalhadora era de extrema vulnerabilidade, devido à forma marginal que foram
incorporadas na força de trabalho. A situação da trabalhadora expunha as
contradições do pensamento vigente; enquanto o modelo era de mulher e dona de
casa, a necessidade as forçava ao trabalho na indústria em péssimas condições. As
ideologias do socialismo81 e do anarquismo penetraram as fábricas; as mulheres
passaram a fazer parte dos movimentos sociais, notando as particularidades da
situação de trabalhadoras das mulheres e sofrendo hostilidade de seus colegas
homens. Conforme Auad:

A diferença de remuneração fazia com que o nível salarial geral fosse


rebaixado, ou seja, se os patrões podiam pagar menos para uma mulher,
muitos homens tinham que aceitar ganhar menos para conseguir um
emprego. A diferença salarial também fazia com que mais mulheres do que
homens fossem empregadas para determinadas funções. Isso provocou
hostilidade dos trabalhadores em relação às trabalhadoras.82

Embora o modelo socialista utópico reconhecesse a dependência econômica


da mulher, não era crítico o suficiente da divisão sexual do trabalho. Seu mérito, no
entanto, foi a definição da família como um instituto desigual, condenando o celibato,
a dupla moral sexual e a indissolubilidade do casamento83. O socialismo marxista
articulou a “questão feminina”, buscando oferecer uma explicação para a posição
subordinada da mulher na sociedade; porém, falhou ao reduzir a questão a um
problema econômico, conectando a dependência econômica à exclusão dos meios
de produção84. Foi importante, no entanto, pra ressaltar a diferença entre as
mulheres das diferentes classes sociais. Embora apoiassem as sufragistas,
ressaltavam seu privilégio de classe. O anarquismo, por sua vez, embora não fosse
articulado na questão das mulheres como o socialismo, teve em suas fileiras
inúmeras mulheres, que lutavam por liberdade e igualdade; por sua vez, criticavam

81
Num sentido amplo, englobando socialismo utópico e socialismo marxista.
8282
AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 52.
83
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 66.
84
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 71.
33

as sufragistas por demandarem uma forma de reconhecimento a ser outorgado pelo


Estado (que devia ser abolido)85.
As mulheres, portanto, ficam confinadas ao espaço privado e a elas cabe o
serviço doméstico, de reprodução da vida. Trata-se de um trabalho feito de forma
gratuita, para os outros em nome do amor, e é um trabalho invisível que requer
esforço diário para a sua manutenção. A sociedade valoriza apenas as atividades
relacionadas à produção material. O trabalho doméstico é privado e, portanto,
improdutivo, de forma que como as funções femininas são subordinadas, as
mulheres também o são86. Evidente que a subordinação das mulheres não se inicia
nesse momento, mas a configuração da divisão sexual do trabalho é um mecanismo
para a sua manutenção.
Embora as mulheres das famílias pobres sempre tenham trabalhado fora de
casa, a realidade hoje é que a maioria das mulheres trabalha no espaço público,
independentemente da classe a qual pertencem. Foram integradas ao mercado de
trabalho, mas além das situações de assédio, outro grave problema que as mulheres
enfrentam é o trabalho doméstico, que ainda é sua responsabilidade e consome
muito tempo, e enfrentam assim a chamada “dupla jornada”. Embora trabalhem fora,
a responsabilidade dos filhos e da casa recai inteiramente ou a maior parte sobre as
mulheres. O salário do marido continua sendo enxergado como o que mantém a
família, enquanto o da esposa é um salário complementar, e assim sua vida
profissional é vista como menos importante do que o trabalho reprodutivo 87.
Essa concepção naturalista prevalece de certa forma. As circunstâncias
pessoais de cada mulher são afetadas por esses fatores políticos da divisão sexual
do trabalho. O capitalismo pós-guerra sempre empregou mulheres, mas a fim de
reforçar a divisão sexual do trabalho na esfera pública 88, de forma que os salários
das mulheres continuam inferiores aos dos homens, mesmo sendo mais qualificadas
e exercendo as mesmas funções89. Continuam subinseridas no mercado de trabalho

85
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2015, p. 76.
86
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 84.
87
STOLCKE, Verena. Mulheres e Trabalho. Estudos Cebrap. São Paulo, nº 26, 1980, p. 108.
88
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe;
BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Rio de Janeiro: EDUFF, 2013, p.
72.
89
Governo Federal, Ministério da Economia, Secretaria da Previdência. CNP: Estudo mostra que
mulheres recebem 30% a menos que homens no Mercado de trabalho formal. 08 jun 2020.
Disponível em: <https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/noticias/previdencia/conselho-de-
previdencia/cnp-estudo-mostra-que-mulheres-recebem-30-menos-que-homens-no-mercado-de-
trabalho-formal>. Acesso em: 17 mar 2021.
34

em relação aos homens90. As mulheres trabalham muito mais tempo que os homens
entre esfera doméstica e esfera produtiva91, mas as ocupações e salários inferiores
ainda determinam majoritariamente sua dependência econômica em relação aos
seus maridos. A inferioridade na esfera doméstica determina a desigualdade na
esfera produtiva, e esta serve como mecanismo a fim de se manter a primeira,
mantendo as mulheres financeiramente dependentes dos homens 92.
A separação das esferas, a divisão sexual do trabalho e o poder sobre a
esposa na esfera doméstica são as grandes bases materiais que sustentam o
patriarcado. A base não é apenas econômica, no sentido da discriminação de
salários e postos inferiores, mas também da sua sexualidade, no próprio controle da
sua capacidade de reprodução93.
Podemos, assim, definir alguns aspectos que determinam majoritariamente a
subordinação da mulher: a participação marginal na produção e a consequente
dependência econômica; sua responsabilidade completa na reprodução sexual e a
responsabilidade a ela atribuída pela reprodução na vida cotidiana; sua sexualidade,
controlada e determinada pelos homens; e finalmente, sua responsabilidade primária
no cuidado das crianças94. Embora esses aspectos sejam ainda hoje largamente
defendidos em nome da natureza, apenas um dos mecanismos é essencialmente
natural; os demais são construídos socialmente a fim de sustentar a dominação
masculina. Embora a cultura ocidental reconheça hoje a igualdade de direitos entre
homens e mulheres, as desigualdades e a subordinação se mantêm de fato no
cotidiano feminino. A violência doméstica é um dos componentes que contribuem
atualmente para manter a desigualdade entre os gêneros e a subordinação das
mulheres aos homens, especialmente no âmbito familiar.

90
FACAMP. Mulheres no mercado de trabalho no 1º trimestre de 2020. 09 jun 2020. Disponível em:
<https://www.facamp.com.br/pesquisa/economia/npegen/mulheres-no-mercado-de-trabalho-no-1o-
trimestre-de-2020/>. Acesso em: 17 mar 2021.
91
Agência de Notícias IBGE. Em média, mulheres dedicam 10,4 horas por semana a mais que os
homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. 04 jun 2020. Disponível em:
<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/27877-em-media-mulheres-dedicam-10-4-horas-por-semana-a-mais-que-os-
homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas>. Acesso em: 17 mar 2021.
92
HARTMANN, Heide. Capitalism, patriarchy and job segregation by sex. Signs. Chicago, vol. 1, nº 3,
p. 139.
93
SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004, p. 106
94
EISENSTEIN, Zillah. Constructing a Theory of capitalist patriarchy and socialist feminism. Critical
Sociology, 1999, vol. 25, p. 206.
35

1.4 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A conceituação de violência não é uma tarefa exatamente simples, já que as


pessoas têm percepções diferentes do que constitui violência para elas, de acordo
com suas experiências; o mesmo fato pode ser considerado agressivo por uma
pessoa e por outra não. Dito de outro modo, violência é um conceito subjetivo. De
forma objetiva, pode-se dizer que violência é qualquer ato que cause ruptura nos
direitos humanos de outro. A violência não necessariamente se constitui por uma
violação física95.
A violência doméstica é um tipo específico de violência de gênero, que ocorre
em relacionamentos amorosos entre adultos ou adolescentes, em que a violência é
cometida por um dos parceiros íntimos contra o outro. Muito embora as mulheres
possam ser autoras dessa violência, na maior parte das vezes são as vítimas, de
forma que este será o enfoque. Da mesma forma, pode acontecer em relações
homossexuais, mas será tratado especificamente nas relações heterossexuais em
virtude das relações de gênero que criam uma hierarquia entre os sexos. O termo
violência doméstica será utilizado para violência cometida dentro de uma relação
amorosa, para os fins dessa dissertação, independentemente de coabitação. Os
relacionamentos amorosos serão tratados independentemente de seu status,
abrangendo tanto as relações reconhecidas civilmente, como o casamento e a união
estável, tanto as informais. Vale ressaltar que mesmo após o fim do relacionamento,
a violência entre os parceiros é considerada violência doméstica.
De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), a violência
doméstica é a forma mais comum de violência; uma em cada três mulheres passa
em sua vida por algum tipo de violação sexual ou física, a maior parte delas
perpetradas por algum parceiro amoroso96. Mais especificamente, quase 18% das
mulheres de 15 a 49 anos que já estiveram em um relacionamento amoroso
passaram por algum tipo de violência doméstica no último ano 97, de forma que é

95
SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004, p. 17.
96
COVID-19 and violence against women What the health sector/system can do. WHO, 2020.
Disponível em: <https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/331699/WHO-SRH-20.04-eng.pdf>.
Acesso em: 24 mar 2021.
97
COVID-19 and Ending Violence against Women and Girls. UN Woman, 2020. Disponível em:
<https://www.unwomen.org/-
/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2020/issue-brief-covid-19-and-ending-
violence-against-women-and-girls-en.pdf?la=en&vs=5006 >. Acesso em: 24 mar 2021.
36

possível afirmar que a violência doméstica é uma questão que afeta diretamente o
bem-estar feminino, além de uma violação de direitos humanos que impacta toda a
sociedade.
A violência doméstica pode ocorrer de diversas formas, sendo a mais
evidente delas a violência física; mas a violência doméstica muitas vezes se
manifesta como uma violência emocional, com humilhações constantes,
intimidações ou ameaças, ou através de sua forma psicológica, com o agressor
monitorando o comportamento da vítima, proibindo contato com família e amigos,
bem como controlando acesso aos recursos financeiros. Finalmente, a violência
doméstica também se manifesta por meio de violência sexual 98.
As mulheres que não abandonam seus agressores muitas vezes são vistas
como passivas, mas a maior parte delas busca estratégias para proteger a si e aos
seus filhos. Existem muitas razões para as mulheres permanecerem nesses
relacionamentos, sendo as principais o medo de retaliação, preocupação com os
filhos, falta de suporte familiar ou de amigos, medo do estigma do divórcio,
esperança de que o parceiro mude e, finalmente, falta de meios alternativos para se
manter financeiramente. Os principais fatores que levam as mulheres a finalmente
abandonarem esses relacionamentos são a intensificação da violência, a aceitação
de que o parceiro não irá mudar e a percepção de que a violência também afeta aos
filhos99.
A violência doméstica pode ocorrer em qualquer relacionamento; no entanto,
alguns fatores podem contribuir para a sua realização. Quanto à dimensão
individual, no que tange às mulheres (vítimas), são fatores de risco a juventude,
baixo nível de educação, testemunhar ou ter sido vítima de violência na infância,
abuso de álcool e drogas, distúrbios de personalidade, tolerância à violência e
histórico de abusos passados. Quando aos homens (perpetradores), baixo nível de
educação, desemprego ou subemprego, exposição à violência entre os pais, abuso
sexual na infância, tolerância à violência, abuso de drogas e exposição a outras
formas de violência anteriormente são os principais fatores de risco.

98
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
99
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
37

Quanto à dimensão interpessoal (do relacionamento), são fatores de risco


para ocorrência de violência doméstica o conflito no relacionamento, a dominância
masculina na família, desestabilizações econômicas, o homem ter outras parceiras e
disparidade no nível de educação do casal100. O homem ter um pensamento mais
conservador do que a mulher também aparece como fator de risco,
independentemente de pertencerem ou não à mesma religião 101.
A questão econômica aparece muito quando se trata de violência doméstica.
Em primeiro lugar, atar as mulheres financeiramente aparece como uma forma de
violência, a fim de criar dependência e consequente subordinação. Em segundo
lugar, o desemprego ou subemprego masculino como um fator de risco demonstra
que o questionamento da supremacia financeira, de provisão do lar, faz com que o
homem sinta o seu poder afetado; é uma ameaça a sua própria identidade, a sua
masculinidade. A ameaça à identidade masculina tem um papel significante na
violência doméstica, de forma que os homens agem violentamente buscando
readquirir um senso de poder e controle na relação102. Finalmente, a maior
incidência de violência doméstica ocorre em mulheres economicamente ativas, que
não dependem de seus parceiros financeiramente e desafiam a ordem de gênero 103.
De acordo com Saffioti:

Na ordem do gênero, o homem desfruta de gigantescos privilégios frente à


mulher. E isso ocorre não apenas porque a sociedade legitima amplamente
a falocracia, mas também porque o homem sente necessidade de afirmar-
se, fazendo-o com exagero nesta relação interpessoal, de preferência em
uniões de caráter relativamente estável, para compensar o massacre de
que é alvo nos outros tipos de ordenamento das relações sociais. A
impotência aí gerada ultrapassa os limites destas relações, penetrando no
domínio de gênero. Desta sorte, a violência masculina contra a mulher pode
ser pensada como fruto da necessidade do homem de fazer parecer maior o
pequeno poder de que goza neste tipo de relação. Há, assim, uma
exacerbação das condutas denotadoras de poder, ou seja, a síndrome do
pequeno poder.104

100
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
101
DRYDEN-EDWARDS, Roxanne. Domestic Violence. Medicine Net. Disponível em:
<https://www.medicinenet.com/domestic_violence/article.htm#domestic_violence_facts>. Acesso em:
24 mar 2020.
102
TOTTEN, M. Girlfriend abuse as a form of masculinity construction among violent, marginal male
youth. Men and Masculinities, 6(1), 70-92, 2003.
103
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 156.
104
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 43.
38

A violência doméstica é muitas vezes utilizada pelos homens como forma de


punir suas companheiras por não terem atendido às suas necessidades; de fato, a
própria violência é vista como “um recurso que demonstra que uma pessoa é um
homem”. Nesse sentido, a força é utilizada para adquirir parcelas de poder que não
seriam conquistadas pelo consentimento. As identidades masculinas são
construídas por atos de violência e pela capacidade dos agressores em controlar
suas vítimas. Os agressores buscam minimizar seus atos; apresentam a violência
como forma de reação normal a uma provocação, como um incidente desagradável
que tomou proporções exageradas. A atitude da companheira é vista como irracional
e histérica, de forma que eles enxergam suas violências como racionais e
proporcionais105.
Assim, os agressores culpam suas vítimas pelas suas próprias ações.
Assinalam traços de personalidade e comportamentos da companheira que
consideram inaceitáveis e ensejam as agressões. A maior parte das mulheres
agredidas é vista como controladora; o fato de demandarem de seus companheiros
algum tipo de atitude faz com que sejam vistas como dominadoras. Alguns homens
relatam que o senso de controle de suas companheiras fez com que se sentissem
emasculados; a agressão é vista como uma forma de estabelecer poder e
dominação sobre a companheira106.
Embora alguns homens apresentem arrependimento, eles ainda buscam de
alguma forma culpar a companheira pelos seus atos violentos. Muitos acreditam que
a violência doméstica é um pequeno incidente no qual o Estado se intromete. Suas
narrativas buscam desviar de suas próprias ações, colocando-as num plano moral
superior, minimizando a violência cometida. Alguns afirmam que estão sendo
vitimizados por um sistema criminal que é preconceituoso contra os homens,
fingindo vulnerabilidade, de forma a desviar a atenção de seus comportamentos 107.
“O agressor insiste na culpabilização da mulher, fundada na quebra do contrato
matrimonial, expressa, notadamente, na ruptura da tradicional divisão sexual do
trabalho.”108.

105
ANDERSON, K. L., & UMBERSON, D. Gendering violence: Masculinity and power in men's
accounts of domestic violence. Gender & Society, 15(3), 358-380, 2001.
106
TOTTEN, M. Girlfriend abuse as a form of masculinity construction among violent, marginal male
youth. Men and Masculinities, 6(1), 70-92, 2003.
107
ANDERSON, K. L., & UMBERSON, D. Gendering violence: Masculinity and power in men's
accounts of domestic violence. Gender & Society, 15(3), 358-380, 2001.
108
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 164.
39

São comuns alguns tipos de pensamentos e falas que patologizam o


agressor, apresentando-o como uma pessoa mentalmente doente sem consciência
dos seus atos. Esse mecanismo ignora as hierarquias sociais; a violência doméstica
não é uma intercorrência anormal, mas uma consequência da organização social de
gênero que privilegia o masculino, do poder masculino de controle sobre as
mulheres109.
Pode-se sinalizar alguns aspectos que competem à violência doméstica. Em
primeiro lugar, ela visa manter uma hierarquia de gênero, o poder e o controle dos
homens sobre as mulheres. Dessa forma, amplia-se e modifica-se conforme esse
poder se vê ameaçado. A violência doméstica normalmente é mesclada com outros
aspectos positivos no relacionamento; esses aspectos não visam romper ou afastar
a violência, e sim criar um mecanismo para mantê-la ao manter a vítima envolvida.
Em último lugar, a violência fragiliza ambos os cônjuges, criando uma dependência
psicológica e não saudável entre eles 110.
As consequências da violência doméstica são diversas. As consequências
físicas, além das deixadas pelas lesões imediatamente, envolvem comumente
doenças chamadas de “distúrbios funcionais” ou “condições relacionadas ao
estresse”, que incluem síndrome do intestino irritável ou sintomas gastrointestinais,
fibromialgia, síndromes de dor crônica e exacerbação da asma. As mulheres que
sofrem violência doméstica têm duas vezes mais chance de reportar problemas
físicos e mentais de saúde, mesmo depois de anos do acontecimento da
violência111.
As consequências também envolvem distúrbios mentais. As mulheres
violentadas têm mais chances de sofrer de depressão, ansiedade e fobias.
Pensamentos e tentativas de suicídio também são comuns, além de abuso de álcool
e drogas, desordens de alimentação e sono, inatividade física, baixa autoestima,
estresse pós-traumático, fumo, autoflagelo e comportamento sexual inseguro. No
âmbito sexual, as consequências envolvem gravidez indesejada, aborto inseguro e
infecções sexualmente transmissíveis. As consequências ultrapassam

109
SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004, p. 82.
110
SAFFIOTI, Heleith I. B. Violência de Gênero. Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 159.
111
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
40

extensivamente a barreira física, ensejando traumas que acompanham as mulheres


por muito tempo após a ocorrência da violência 112.
A consequência mais grave e permanente da violência doméstica é a morte.
De acordo com a OMS, de 40 a 70% dos homicídios cometidos contra mulheres são
cometidos por parceiros íntimos113. Mas além dos danos para os envolvidos, a
violência doméstica é um problema que traz prejuízos a toda sociedade. Os custos
econômicos envolvem o sistema de proteção à vítima e a justiça criminal de
aproximadamente 1,5 trilhões de dólares114, o que é uma soma importante, ainda
que se leve em consideração que nem todos os países efetivamente investem
financeiramente em mecanismos para combater a violência doméstica.

112
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
113
Understanding and adressing violence against women. WHO, 2012. Disponível em:
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/77432/WHO_RHR_12.36_eng.pdf;sequence=1>.
Acesso em: 24 mar 2020.
114
COVID-19 and Ending Violence against Women and Girls. UN Woman, 2020. Disponível em:
<https://www.unwomen.org/-
/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2020/issue-brief-covid-19-and-ending-
violence-against-women-and-girls-en.pdf?la=en&vs=5006 >. Acesso em: 24 mar 2021.
41

2 NORMATIZAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES NO BRASIL

A história das mulheres, já invisibilizada por sua destinação ao espaço


privado, no Brasil assume nuances específicas, por estar sempre ligada a outros
movimentos em voga na sociedade. O movimento de mulheres, desde que passou a
existir, buscou sempre desafiar a ordem patriarcal que impedia o acesso das
mulheres ao espaço público enquanto lutava pelas pautas progressistas, ao mesmo
tempo em que os seus companheiros revolucionários consideravam suas
reivindicações inferiores aos problemas que realmente importavam. Dada a
heterogeneidade do povo brasileiro, o movimento sempre foi fragmentado, com
anseios e pretensões diversas de acordo com os sujeitos que representavam.
Assim, o feminismo nunca foi uma pauta autônoma; sempre foi empenhado ao lado
de outras pautas sociais relevantes para o país naquele momento 115.

2.1 PERÍODO COLONIAL

Se a história das mulheres foi excluída da história oficial por muitos anos, isso
é particularmente verdade no que tange ao período da colônia. Nessa época, o
Brasil era habitado por diversos povos indígenas. Não seria preciso dizer que
apenas aos homens eram permitidas as viagens marítimas. Assim, quando os
portugueses chegaram nestas terras, buscaram utilizar a força dos homens nativos
para o trabalho escravo e as mulheres como concubinas ou empregadas 116. Não é
exagero dizer que a miscigenação foi fruto do estupro das mulheres indígenas.
Quanto ao retrato que foi feito dos indígenas, vale ressaltar que foi resultado
da perspectiva cristã que os europeus tinham; assim, os costumes diferentes dos
nativos eram vistos como indícios da influência do Diabo, de forma que os brancos
entendiam que eram superiores a eles. A poligamia existia, difundida entre os chefes
indígenas, como símbolo de prestígio. Entende-se que havia grande liberdade
sexual entre os solteiros, de forma que as mulheres indígenas, antes do casamento,

115
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 10.
116
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 17.
42

se relacionavam com diversos homens sem reprovação social 117. Embora os


indígenas tenham sido retratados como degenerados como um todo, a misoginia da
época fez com que muitas vezes o enfoque fosse dado às mulheres.
Quanto às mulheres brancas, havia poucas, já que a jornada para a colônia
era longa e desgastante. O hábito dos portugueses de manter concubinas entre as
escravas indígenas era mal visto pelos jesuítas, que solicitaram à Corte portuguesa
que enviasse para cá mulheres brancas. Mesmo assim, não eram numerosas.
Talvez este fato tenha contribuído para elevar a posição da mulher branca na
sociedade118. As mulheres brancas que aqui haviam muitas vezes eram enviadas
para Portugal para os conventos. Havia preocupação com o povoamento da colônia.
Conforme Figueiredo:

A preocupação com o “crescimento da gente” que as autoridades


manifestavam não se referia à população em geral. Ao contrário, o
endereço certo das medidas para limitar o retorno das valiosas mulheres
brancas era a elite social (“gente”), pois o desequilíbrio entre o número de
mulheres brancas e os homens da mesma condição tendia a empurrá-los
para relações (legítimas ou não) com mulheres negras e mulatas. Sob a
ótica metropolitana, ao (a)tingir a elite colonial, a miscigenação poderia
acabar comprometendo a continuidade da comunhão de interesses na
relação colônia-metrópole. (...) para a ideologia colonialista os mestiços, em
geral libertos, representavam uma população indisciplinada e inquieta
socialmente, desclassificados e desligados do sistema escravista-
exportador. (...) Decorreram daí todos os esforços para que, através de
certos casamentos, a ordem colonial pudesse ter sua continuidade
garantida; esse fato fazia tão necessárias as “mulheres que hajam de
casar”, ou seja, as mulheres brancas.119

A sociedade brasileira foi construída sobre bases patriarcais. Assim, o papel


da mulher da classe dominante era cuidar da casa e dos filhos legítimos do senhor.
Escolhidos pelos pais, seus maridos eram, geralmente, bem mais velhos. As
mulheres desde então tinham sua sexualidade estritamente controlada. A Igreja
Católica mantinha rígida vigilância sobre elas, sob o argumento da superioridade
masculina. Mesmo no casamento, havia interferência sobre as relações sexuais – a
sexualidade devia ser repugnada, afinal, a finalidade da relação era a procriação 120.

117
RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 20.
118
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 18
119
FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 37.
120
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: DEL PRIORI, Mary
(org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 37
43

As mulheres só aprendiam as tarefas úteis para o cuidado do lar, como


cozinhar, coser e bordar; a instrução formal só era dada aos homens. Em São
Paulo, no século XVII, apenas duas mulheres sabiam assinar o nome. Para receber
instrução, as mulheres tinham de entrar no convento, destino das rebeldes e
solteironas121.
A pior situação, certamente, era a das mulheres negras. Escravizadas, além
de trabalhar como os homens na lavoura, ainda eram submetidas constantemente a
estupros pelo senhor. Além disso, reproduziam a força de trabalho, gerando novos
escravos. Conscientes do destino de seus filhos, algumas mulheres abortavam ou
até mesmo matavam seus filhos recém-nascidos122. As mulheres foram grandes
lideranças nos quilombos, forma de sociedade organizada pelos negros na luta
contra a escravidão. Eram minoria, pois o tráfico priorizava o homem negro123.
Fato é que neste período, a mulher não possuía qualquer espaço na
organização política formal. As poucas mulheres cujas histórias são conhecidas hoje
foram as que desafiaram a ordem social vigente e se impuseram num ambiente que
não lhes pertencia. É interessante notar, no entanto, que esses espaços eram
majoritariamente os considerados “subversivos”, como quilombos e revoluções. Nos
ambientes formais de representação política, a presença da mulher não seria
tolerada.
Sendo o Brasil dependente e subordinado à metrópole, as instituições
coloniais buscavam reproduzir o aparato burocrático de Portugal, sem qualquer
adaptação à realidade nacional, desvinculadas da sociedade que aqui era gestada.
As influências da Coroa de Portugal contribuíram para a formação de uma
burocracia patrimonial, voltada aos interesses dos senhores de escravos e grandes
proprietários de terra. O fato de a monarquia proteger os interesses dos proprietários
fez com que a formação da identidade nacional não fosse orgânica, guiada pelos
interesses nacionais, e sim fruto da imposição da Coroa, inaugurando um modelo de
intervenção estatal nas instituições sociais 124.

121
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 19
122
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 21-22.
123
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 23.
124
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 38.
44

Assim, diferentemente da maioria dos povos, nos quais o direito é produto de


uma evolução social construída pelos fatos relevantes da vida em comum, o direito
brasileiro colonial foi fruto da imposição de uma legislação estrangeira, complexa e
desconectada com a realidade nacional. No primeiro momento da colonização, de
1520 a 1549, houve predomínio das relações tipicamente feudais conhecidas como
Capitanias Hereditárias. A legislação do período era composta pela Legislação
Eclesiástica (determinações religiosas), Cartas de Doação e Forais (essas duas
últimas fontes instituíam direitos de propriedade e privilégios afins). Após o fracasso
das Capitanias, a Coroa portuguesa instituiu o sistema de governadores gerais na
colônia; a partir de então, passou a haver o decreto de prescrições legais
diretamente de Portugal, como Cartas Régias, Alvarás, Regimento dos
governadores gerais e as Ordenações Reais 125.
Assim, a maior fonte do direito colonial eram as Ordenações Reais,
compostas pelas Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1521) e
Ordenações Filipinas (1603), originárias de Portugal e que eram aplicadas no
território nacional sem qualquer esforço adaptativo. Embora eventualmente tenham
sido promulgadas leis extravagantes para lidar com as particularidades da colônia,
principalmente no âmbito comercial, a maior parte das relações civis eram reguladas
pelas Ordenações, razão pela qual serão enfocadas no intuito de ressaltar a
situação legal das mulheres.
Nas Ordenações Afonsinas, o Direito Civil e de Família é tratado no Livro IV,
sendo essa a parte mais relevante para entender os direitos das mulheres, já que
estavam excluídas dos direitos civis e políticos e confinadas ao espaço doméstico,
em sua maior parte. No título X, a legislação proíbe que “se constranja por ameaça
ou por força algum homem ou mulher para casar contra sua vontade”; à mulher,
conforme título XII, é permitido que se tornasse “cabeça da casa” após o falecimento
do marido. A aparente neutralidade da relação civil é desmentida no Livro V, que
trata da legislação penal. No título XII, o rei determina a morte de ambos os
envolvidos no crime de adultério. No título X, afirma que a mulher só pode demandar
indenização pela perda de virgindade no prazo máximo de 3 (três) anos após o fato.
As alcoviteiras eram punidas com açoite e sequestro de bens pela coroa na primeira

125
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 48.
45

infração; na segunda, eram condenadas à morte, conforme título XVI126. Assim,


pode-se afirmar que embora as mulheres não fossem contempladas enquanto
sujeitos de direito civil, podendo firmar contratos e estabelecer vontades, podiam ser
punidas pelo direito penal. Foi pouco aplicada no Brasil, pois revogada 21 anos após
o “descobrimento”.
As Ordenações Manuelinas são fruto de uma atualização e revisão das
Ordenações Afonsinas. É feita em forma de decretos; muitas novas normas surgem
com a promulgação das Ordenações Afonsinas. Poucas coisas mudaram no que
tange à situação da mulher; porém, a punição para o adultério tornou-se mais grave.
As Ordenações Portuguesas eram fortemente signatárias da Igreja Católica e, por
isso, muitas vezes confundiam os conceitos de crime e pecado. Assim, o adultério
era visto como um crime tão reprovável que poderia justificar o crime de homicídio,
inclusive duplo e com associação a terceiros, desde que não fossem inimigos da
mulher adúltera127. Assim, o Título XVI do Livro V prevê que o homem que foi vítima
de adultério não sofre qualquer tipo de punição, nem no que tange aos bens, caso
mate a esposa e o homem que com ela comete adultério 128. Essa lei inaugura o
instituto penal conhecido como “legítima defesa da honra”, utilizada e aceita como
justificativa para o homicídio de mulher adúltera até a promulgação da Constituição
de 1988.
As Ordenações Filipinas são o mais duradouro documento legislativo, tanto
em Portugal, quanto no Brasil. Poucas foram as mudanças nas disposições legais,
de forma que se pode afirmar que novamente se trata de uma revisão e não de um
novo diploma legal. A maior parte dos crimes era punida com morte; em segundo
lugar, a punição mais aplicada era o exílio para o Brasil, de forma que durante muito
tempo a colônia foi destino de diversas espécies de criminosos 129. As Ordenações
Filipinas mantiveram os dispositivos que inferiorizavam a mulher, mantendo a
hierarquia dos papeis sociais entre os sexos, a subordinação social e civil da mulher
e a permissão de violência no caso de conflitos domésticos. Em matéria criminal, as
Ordenações Filipinas vigoraram no Brasil até o primeiro Código Criminal do Brasil,
126
Ordenações Afonsinas, Coimbra: 1792. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Disponível
em: <https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/20280>. Acesso em: 14 dez 2020.
127
CASTRO, Flávia Lages. História do Direito Geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,
p. 279.
128
Ordenações Manuelinas, Coimbra. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Disponível em:
<https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/17841>. Acesso em: 14 dez 2020.
129
CASTRO, Flávia Lages. História do Direito Geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,
p. 286.
46

em 1830. Da mesma forma, em matéria civil, o primeiro Código Civil brasileiro é


datado de 1916, ano de ab-rogação das Ordenações.
A preocupação dos diplomas legais quanto ao adultério é signatária da
influência moral da Igreja Católica, de forma que as ideias de pecado e crime se
confundem na configuração legal do Império, levando o Estado a intervir nas
relações privadas a fim de proteger a ordem familiar patriarcal. Embora a lei fosse
formalmente aplicável aos homens, visava controlar a sexualidade das mulheres e
principalmente sua reprodução, evitando filhos bastardos que comprometessem a
transmissão de propriedade dos maridos, além de proteger a honra masculina
perante a sociedade.

2.2 BRASIL IMPÉRIO

Como muitos dos fatos que tem grande impacto na vida da sociedade e do
povo brasileiro, a independência do Brasil foi um acordo entre as elites. Com o
advento da Revolução Industrial, a Inglaterra precisava de matéria prima e mercado
consumidor para sua produção; Portugal estava sendo fortemente pressionada para
ceder a colônia. Ao mesmo tempo, as ideias do liberalismo chegavam até aqui,
fortalecendo a ideia da independência. O acordo, feito pela elite local com Portugal,
tornou o Brasil uma monarquia. O processo foi fortemente apoiado pela maçonaria,
fraternidade onde apenas homens eram (e são) admitidos. As mulheres estiveram
excluídas desse momento histórico130.
Na primeira metade do século XIX, as mulheres passaram a reivindicar seu
direito à educação. Até então, elas só tinham direito de estudar até o 1º grau, onde
aprendiam basicamente as atividades do lar. O ensino mais qualificado só era
permitido para os meninos. As professoras ganhavam menos que seus colegas
homens. As escolas dedicadas ao ensino de meninas eram em número inferior as
escolas de menino. Em 1881, a primeira mulher ingressou no ensino superior, e
somente em 1887 se graduou Rita Lobato Velho Lopes, em medicina 131. O papel da
mulher foi pouco alterado; a ela ainda cabia o lugar de dona de casa. Conforme
Melo e Thomé:

130
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 27
131
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 28.
47

A educação limitada das mulheres propagou-se em meados do século XIX


e, na medida em que avançava o processo de urbanização em
consequência das transformações na economia agrária-exportadora, isso
permitiu, ainda que timidamente, a abertura dos portões escolares para o
sexo feminino. Entre 1870 e 1880, diversas escolas normais foram abertas
para as meninas e moças. Essas escolas possibilitaram às moças o
exercício da primeira carreira profissional – a de professora. Tal profissão
era vista como adequada às mulheres pelos padrões masculinos, isso
porque se considerava que elas teriam uma capacidade “inata” para lidar
132
com as crianças. O magistério era uma extensão da maternidade.

A partir de 1850, com a proibição do tráfico de escravos, acelerou-se a luta


pela abolição da escravidão. Os produtores nacionais, influenciados pelas ideias
capitalistas, buscavam mercado consumidor para seus produtos. Juntamente com a
nascente classe média e o exército, promoveram a proclamação da República. Esse
período foi marcado pela forte urbanização e imigração; com novas ideias
germinando, as mulheres passam a questionar o papel social a elas delegado. Por
volta de 1860, algumas mulheres passaram a organizar sociedades em prol da
abolição. Das classes dominantes, buscavam assegurar para si a direção do
movimento. Ao apropriarem-se dele, direcionaram toda a atenção para o fim da
escravidão, evitando a pauta da reforma agrária, buscando preservar seus
privilégios133.
Mesmo assim, novas ideias passaram a circular na sociedade. Muitas
mulheres foram importantes para o movimento abolicionista. Nessa época, surgem
as pioneiras em diversas áreas134. No mesmo período, surgem os primeiros jornais
editados por mulheres. O Brasil foi o país latino-americano com maior desempenho
do jornalismo feminista, e sua importância será crucial para a disseminação das
ideias da Revolução Francesa e do direito ao voto feminino. De grande relevância, o
jornal “O Sexo Feminino”, publicado por Francisca Senhorinha da Motta Diniz desde
1873 já abordava temas como direito ao voto e educação feminina 135.

132
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder: histórias, ideias e indicadores.
Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 56.
133
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 29.
134
Nísia Floresta defendeu a abolição, ao lado de propostas como a emancipação da mulher. Maria
Firmina dos Reis, negra, a primeira romancista brasileira. Chiquinha Gonzaga, primeira compositora
popular brasileira, ativista abolicionista e crítica da monarquia.
135
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 34.
48

Naquele período, houve pouca mudança social e legal no que tange à


situação feminina; sua subordinação é constante e sempre presumida. A
Constituição de 1824, fala, a todo tempo, dos direitos do cidadão. Não havia sequer
necessidade de mencionar proibição do voto feminino; aqueles direitos, obviamente,
não se aplicavam às mulheres, pois elas ainda não eram cidadãs, não eram sujeitos
de direito – continuavam, portanto, submetidas ao poder patriarcal do pai e do
marido.
Em matéria civil, continuavam vigorando as Ordenações Filipinas. Porém, em
1830 foi promulgado o Código Penal do Brasil. Em seu artigo 199, estabelece a
criminalização e penas para o aborto. O adultério tornou-se crime, passível de pena
de prisão de até 3 (três) anos. O homem também poderia ser punido; era necessário
porém, que sustentasse outra mulher. O defloramento de mulher virgem menor de
17 (dezessete) anos era punido com até 3 (três) anos de desterro para longe da
mulher deflorada, conforme artigo 219. Se houvesse casamento, porém, a pena não
incorreria136.
Vale mencionar o tipo penal de estupro, previsto no artigo 222. No caput,
tipificava que ter cópula carnal por meio de violência ou grave ameaça com mulher
honesta era passível de pena de prisão de 3 (três) a 12 (doze) anos, mais
indenização para a ofendida. No parágrafo único, porém, o legislador determinava
que, tratando-se de prostituta, a pena seria de um mês a 2 (dois) anos, sendo silente
quanto à indenização. O artigo 225 determinava que se os réus se casassem com
as ofendidas, estariam isentos de pena 137. Assim, fica claro o caráter misógino da
legislação penal, que submetia a mulher à possibilidade de ser obrigada a se casar
com o seu violentador. Além disso, se a mulher valia pouco, a prostituta valia muito
menos, sendo a baixa pena por violentá-la incapaz de fazer incidir um dos efeitos da
legislação penal (qual seja, de instituir a reprovabilidade da conduta na sociedade),
podendo-se dizer que de certa forma constitui um incentivo para a violência.

2.3 REPÚBLICA VELHA

136
BRASIL, Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 14 dez 2020.
137
BRASIL, Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 14 dez 2020.
49

Ainda no século XIX apareceram os primeiros movimentos femininos em


busca do direito ao voto. Não eram movimentos populares, mas autônomos, de
mulheres que individualmente requisitaram seu direito ao voto e à candidatura. A
questão do voto feminino já era relevante; foi discutida na Constituinte da República
de 1891. A mulher não foi expressamente incluída, nem excluída; a exclusão da
mulher era natural e presumida. Os parlamentares simplesmente não concebiam a
mulher como um indivíduo dotado de direitos 138. De acordo com Melo e Thomé:

As discussões na Assembleia Constituinte de 1891 pelo direito ao voto


feminino foram intensas: havia um grupo de mulheres que lutavam
abertamente por esse direito cidadão. (...) Os debates na Câmera Federal
foram intensos; um pequeno grupo de parlamentares aliou-se às mulheres
na defesa do voto feminino, mas acabou vencendo o medo masculino de
admitir a igualdade dos direitos civis.139

Inconformada com a exclusão da mulher dos direitos políticos, em 1910, a


professora Leolinda Daltro, em conjunto com outras mulheres, fundaram o Partido
Republicano Feminino, defendendo a ocupação de cargos eletivos por mulheres.
Teve um destaque curioso, pois era uma organização política de pessoas que não
possuíam direitos políticos; não defendiam apenas o direito ao voto, mas a
emancipação e independência das mulheres 140.

Regimento do Partido Republicano Feminino


Art. 1º De acordo com o art. 72, §8º da Constituição da República dos
Estados Unidos do Brasil, fica fundado o Partido Republicano Feminino, que
obedecerá ao seguinte programa: (...)
§2º Pugnar pela emancipação da mulher brasileira, despertando-lhe o
sentimento de independência e de solidariedade patriótica, exalçando-a
pela coragem, pelo talento e pelo trabalho, diante da civilização e do
progresso do século.
§3º Estudar, resolver e propor medidas a respeito das questões presentes e
vindouras relativas ao papel da mulher na sociedade, principalmente no
Brasil, pleiteando as suas causas perante os poderes constituídos,
baseando-se nas leis em vigor.
§4º Pugnar para que sejam consideradas extensivas à mulher as
disposições constitucionais da República dos Estados Unidos do Brasil,
desse modo incorporando-a na sociedade brasileira.
§5º Propagar a cultura feminina em todos os ramos do conhecimento
humano. (...)

138
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 16.
139
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder: histórias, ideias e indicadores.
Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 61.
140
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 18.
50

§7º Combater, pela tribuna e pela imprensa, a bem do saneamento social,


procurando, no Brasil, extinguir toda e qualquer exploração relativa ao
sexo.141

A primeira República foi fruto do acordo entre a burguesia paulista e mineira.


A industrialização passou a ocorrer, a custo da mão de obra imigrante. Os negros
continuaram marginalizados, pois a indústria estava reservada aos brancos. Aos
negros, apenas os serviços de baixa remuneração e menos valorizados eram
oferecidos. A mulher negra teve um papel muito importante no sustento do lar nesse
período, pois muitas vezes apenas ela conseguia um emprego142. De acordo com
Soihet:

O homem pobre, por suas condições de vida, estava longe de poder


assumir o papel de mantenedor da família previsto pela ideologia
dominante, tampouco o papel de dominador, típico desses padrões. Ele
sofria a influência dos referidos padrões culturais e, na medida em que sua
prática de vida revelava uma situação bem diversa em termos de resistência
de sua companheira a seus laivos de tirania, era acometido de
insegurança.143

As mulheres operárias também ocupavam posições subordinadas. Sua


jornada de trabalho era maior, enquanto o salário era menor; além disso, ainda eram
responsáveis pelo cuidado do lar. Atuaram de forma ativa nos movimentos operários
em busca de melhores condições de trabalho; suas conquistas, porém, eram sempre
inferiores. Em 1906 os tecelões da fábrica São Bento, em Jundiaí, entraram em
greve por melhorias salariais e redução de jornada. Os homens conseguiram a
vitória, oito horas de trabalho diário. As mulheres permaneceram trabalhando nove
horas e meia. Em 1907, os tecelões, categoria majoritariamente feminina, entraram
em greve. Algumas categorias conseguiram redução, mas as costureiras
continuaram a trabalhar nove horas e meia diariamente. Em 1917, a greve das
operárias da fábrica Crespi, que, embora violentamente reprimida, levou à
promulgação da lei que abolia o trabalho noturno da mulher 144. As mulheres foram

141
MELO, Hildete Pereira de; MARQUES, Tereza Cristina. Partido Republicano Feminino.
Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/PARTIDO%20REPUBLICANO%20FEMININO.pdf>. Acesso em: 11 dez 2020.
142
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 42.
143
SOIHET, Renata. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORI, Mary (org.).
História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 37.
144
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 43.
51

incorporadas às lutas dos trabalhadores, sem, no entanto, terem sua condição de


mulheres trabalhadoras reconhecida. Conforme Giulani:

A projeção em primeiro plano do homem trabalhador acaba deixando na


sombra, quase invisíveis, as péssimas condições de trabalho impostas às
mulheres. Muitas vezes, as trabalhadoras nem são reconhecidas como
parte da população economicamente ativa; sua contribuição social reduz-se
ao papel de mantenedoras do equilíbrio doméstico familiar.145

No mesmo período, surgiam as primeiras movimentações formais femininas.


A maior parte das mulheres que compunham estas organizações eram filhas de
oligarcas, que tiveram acesso à educação de qualidade. Das famílias ricas veio a
maior parte das pioneiras a protestar contra a opressão das mulheres 146. Em 1922,
surge a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), fundada pela bióloga
Bertha Lutz, buscando assegurar a educação feminina e a participação das
mulheres nos direitos políticos. Bertha Lutz era privilegiada, pois sua família (era
filha do cientista Adolfo Lutz) e sua formação (obtida na Sorbonne) lhe permitiram
participar da elite econômica e intelectual do país. Tinha reconhecimento social,
tendo sido representante do Brasil internacionalmente em convenções da ONU. Sua
organização buscava o direito ao voto. Bertha era aliada do governador Juvenal
Lamartine, e a pressão do movimento de mulheres fez com que ele desse parecer
favorável ao voto feminino na Comissão de Constituição e Justiça de 1927. A lei não
foi aprovada, mas é interessante observar que a maior parte das mulheres que o
reivindicaram eram da elite147.
Em 1924, as mulheres passaram a unir-se à Coluna Prestes148. Embora
formalmente excluídas, continuavam a acompanhar o movimento, prestando

145
GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira. In: DEL
PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 641.
146
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 17.
147
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 25.
148
A Coluna Prestes foi uma marcha político-militar, parte do movimento Tenentista no Brasil. A crise
advinda do pacto oligárquico, que privilegiava as elites paulista e mineira, fez com que as camadas
médias da população passassem a questionar o sistema político. O ápice foi o governo do presidente
Arthur Bernardes, com indícios autoritários. Os jovens oficiais do exército, tenentes, de classe média
e forte influência liberal, passaram a representar os anseios da população. As primeiras revoltas
foram sufocadas em quase todo o Brasil, mas Luís Carlos Prestes, tenente no Rio Grande do Sul,
percorreu quase todo o país com seus soldados sem sofrer derrotas. A grande importância desse
movimento político deve-se ao fato da sociedade civil, de forma orgânica, ter-se unido à Coluna. Após
mais de 2 (dois) anos de marchas pelo Brasil, Prestes decidiu partir pro exílio a fim de pensar em uma
forma de lidar com a extrema pobreza, pois acreditava que não bastaria a mudança de governantes
52

serviços de cozinha e enfermagem, bem como de espionagem. Apesar de pouco


valorizadas por seus companheiros, as mulheres sempre estiveram engajadas nos
espaços alternativos de organização e representação política149.
Em 1927, as mulheres da FBPF se engajaram na eleição de Juvenal
Lamartine, que garantia que caso eleito implementaria o voto feminino; foi eleito
governador do Rio Grande do Norte e fez passar uma lei que permitia o voto
feminino. No ano seguinte, 15 mulheres votam pela primeira vez no país. A nível
federal, porém, seus votos não seriam reconhecidos. Apenas após o movimento
conhecido por Revolução de 30, em 1932 com a promulgação do Código Eleitoral a
luta pelo sufrágio feminino chega ao fim e as mulheres puderam votar federalmente.
Na eleição estadual de 1934, foram eleitas 11 deputadas estaduais e 11 vereadoras
ao redor do país150. A Constituição de 1934 teve a participação da primeira mulher
constituinte, Carlota Pereira de Queirós, que ajudou a incorporar o sufrágio feminino
à Constituição151. Bertha Lutz foi eleita como primeira suplente.
Note-se que a luta das mulheres se estruturava em torno do sufrágio
feminino, não apenas porque era a questão em voga no mundo todo, mas também
porque tinha suas maiores expoentes como mulheres da elite. Assim, pode-se dizer
que o movimento pelo sufrágio tinha respaldo no Brasil apesar do conservadorismo
da classe política, de forma que lentamente foi ganhando lugar na opinião pública 152.
O Código Penal de 1890 apresentou poucas inovações em relação ao
anterior, tendo sido uma necessidade de adaptação em função da abolição; embora
tenha mantido a diferenciação da pena de estupro quando a vítima fosse prostituta
ou “mulher honesta”, a pena para o estupro de prostituta foi aumentada153. Quanto
ao adultério, a mulher era punida pela sua simples execução ainda que uma única

para solucionar os graves problemas sociais do Brasil. Posteriormente, Prestes se tornaria a maior
liderança comunista no país. PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: patriota,
revolucionário, comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
149
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 45.
150
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder: histórias, ideias e indicadores.
Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 66.
151
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 46.
152
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 28.
153
CASTRO, Flávia Lages. História do Direito Geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,
p. 433.
53

vez, enquanto o homem só era punido se mantivesse a amante financeiramente 154.


A grande inovação legislativa no período republicano foi a promulgação do Código
Civil de 1916, vigente a partir de 1917. Embora tenha incorporado diversos ideais
liberais populares na época, mantiveram o poder patriarcal na previsão legislativa.
Assim, o Código Civil reforçava os papeis de gênero vigentes na sociedade.
Em seu artigo 219, IV, determinava que fosse causa de erro essencial sobre a
pessoa do cônjuge, ensejando anulação do casamento, a ausência de virgindade da
esposa desconhecida pelo marido. Em seu artigo 233, afirmava que o homem é o
chefe da sociedade conjugal, exercendo o pátrio poder. Conforme artigo 242, a
mulher necessitava da autorização do marido para diversos atos, inclusive para
alienar bem particular dela. A autorização era suprida, porém, caso ocupasse cargo
público ou emprego fora do lar por mais de 6 (seis) meses; assim, fica claro que a lei
entende que a mulher trabalhadora está, de certa fora, fora do alcance do poder de
seu marido, tendo conquistado algum grau de independência.
Aliás, a mulher era incapaz de diversos atos civis sem autorização do marido,
como, por exemplo, de receber mandato (artigo 1.299), de aceitar ou repudiar
herança, litigar em juízo civil ou exercer profissão (artigo 242). Na verdade, conforme
artigo 6º, a mulher casada era considerada relativamente incapaz enquanto durasse
a sociedade conjugal; embora o artigo 9º, §1º determinasse que o menor de idade
era emancipado com o casamento, essa previsão evidentemente só era válida para
os homens, que com o casamento se tornavam chefes de família.
Vale mencionar o que diz respeito ao casamento, considerado indissolúvel em
virtude do seu caráter sagrado, influência da Igreja Católica no Estado brasileiro. Na
verdade, o casamento era a única forma legal de constituição familiar (artigo 229);
embora sempre tenha havido outras formas de união no Brasil, a única forma que
tinha reconhecimento e amparo na lei era o casamento civil 155. O casamento só era
desfeito pela morte dos cônjuges, anulação ou nulidade e desquite (artigo 315). O
desquite ensejaria ação judicial apenas no caso de adultério, tentativa de morte,
sevícia ou injúria grave e abandono do lar conjugal por dois anos (artigo 317). No
entanto, conforme artigo 318, era possível obter a separação por mútuo
consentimento se casados há mais de 2 (dois) anos. Os cônjuges separados

154
BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
155
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 23.
54

poderiam reestabelecer, a qualquer tempo, a sociedade conjugal. Não podiam, no


entanto, se casarem novamente com outras pessoas. A mulher desquitada que
tivesse dado causa à separação perdia o direito de ter o sobrenome do marido 156.
Assim, fica claro que a condição da mulher na legislação permanecia inferior.
Inclusive no que dizia respeito ao cuidado dos filhos, estava subordinada à vontade
do marido. Consagra valores patriarcais, como a valorização da virgindade e a
manutenção da masculinidade como superior. A mulher não possuía autoridade nem
quanto aos próprios bens, inclusive quanto aos direitos sucessórios. Dessa forma, o
Código Civil consagra a inferioridade e dependência feminina, sendo ela
dependente, para tudo (ou para a maior parte dos atos civis relevantes), da
autorização do marido.

2.4 ERA VARGAS E SEGUNDA REPÚBLICA

Com o surgimento do Ministério do Trabalho e a posterior Consolidação das


Leis Trabalhistas (CLT), Vargas atraiu para si os trabalhadores urbanos, mais
articulados e, portanto, mais perigosos para o seu governo. Os trabalhadores rurais
e não-assalariados ficaram excluídos da proteção legal. Ainda neste período, a
maior parte da população brasileira vivia no campo, de forma que grande parte dos
trabalhadores e trabalhadoras não tinha reconhecimento social ou legal157.
Em 1934, surgiu a Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma organização de
esquerda brasileira voltada a derrubar o governo Vargas, que vinha se aproximando
dos grupos oligárquicos afastados em 1930. Parte integrante da ANL era União
Feminina Brasileira; suas adeptas eram intelectuais e operárias, em sua maior parte.
Em 1935, colocadas na clandestinidade, teve todas suas dirigentes presas. Uma
delas era Olga Benário Prestes, cidadã alemã, que foi posteriormente deportada
para Alemanha nazista. Grávida, foi presa em um campo de concentração, e
posteriormente assassinada158.

156
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil.
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3071-1-janeiro-1916-397989-
publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
157
GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira. In: DEL
PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 641.
158
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 47.
55

Em 1936, Bertha Lutz assumiu a cadeira de um deputado que morrera (foi


eleita suplente em 1934). Constavam na pauta projetos para pressionar o Legislativo
a reconhecer mais direitos às mulheres; porém, em 1937, Getúlio Vargas deu um
golpe de Estado, tornando-se ditador do Brasil. Neste contexto, a luta feminina
mesclou-se à luta do povo, contra a ditadura e pela democracia. Durante a Segunda
Guerra, as mulheres operárias e intelectuais se manifestaram ativamente pela
liberdade e contra o nazifascismo. Apesar de toda a movimentação social no
período, a Assembleia Nacional Constituinte de 1946 não contou com a participação
de nenhuma mulher. Enquanto a Constituição de 1934 proibia a discriminação por
sexo, a de 1946 foi silente, condenando, porém, o preconceito racial 159.
Durante a Constituinte, houve uma grande polêmica acerca da manutenção
do casamento como monogâmico e indissolúvel, afastando qualquer possibilidade
de divórcio. Os filhos considerados ilegítimos (adulterinos) também não tiveram seus
direitos reconhecidos. Não foram concedidos direitos políticos aos analfabetos,
impedindo de acessarem representação formal direta ou indireta mais de 10 milhões
de mulheres, que eram analfabetas 160.
No mesmo período, surgiu a Associação de Donas de Casa contra a Carestia;
começaram a surgir também as organizações de mulheres contra as más condições
de vida do povo. A Associação Feminina do Distrito Federal, no Rio de Janeiro,
espalhou-se por diversos bairros com pautas como fim do despejo nas favelas e
menor custo de vida. Em 1947, surgiu a Federação das Mulheres no Brasil (FMB),
buscando impulsionar direitos das mulheres. O Partido Comunista Brasileiro (PCB)
teve grande influência na criação dessas organizações de mulheres, visando
mobilizar o contingente feminino em campanhas contra a pobreza 161. No mesmo
período, houve diversos encontros e conferências de mulheres organizadas.
Ao mesmo tempo, crescia no país a classe média trabalhadora. Com o fim da
Segunda Guerra e a urbanização e industrialização, ampliaram-se aos brasileiros as
oportunidades de acesso a melhores condições de vida. As campanhas
estrangeiras, com o fim da guerra, passaram a difundir a volta das mulheres ao lar e

159
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 48.
160
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 49.
161
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 49.
56

aos valores tradicionais162. Assim, as mulheres que haviam conquistado certa


liberdade nos períodos anteriores, voltaram a ser confinadas ao espaço doméstico.
O governo Juscelino Kubitschek, muitas vezes visto como democrático,
suspendeu o funcionamento das organizações de mulheres. Mesmo assim, as
mulheres continuaram se reunindo. Em 1960, foi fundada a Liga Feminina do Estado
da Guanabara, que além de cursos e palestras, liderava campanhas contra o alto
custo de vida. As reivindicações femininas nesta época estavam ligadas à pobreza e
às melhores condições de vida, mas havia também pautas mais específicas, como
as discriminações contra a mulher casada no Código Civil. As pautas feministas
propriamente ditas, como controle de fertilidade e sexualidade, ainda não eram
mencionadas163.
A primeira grande revolução do período Vargas, no que tange à situação da
mulher, foi a promulgação do Código Eleitoral de 1932, que instituiu a Justiça
Eleitoral, o voto secreto e, principalmente, o voto feminino. A Constituição de 1934
ratificou o Código Eleitoral, mantendo o voto feminino para maiores de 18 anos.
Apesar de permitido, o voto feminino só era obrigatório se fossem servidoras
públicas, enquanto todos os homens deviam votar. A Constituição previa, ainda, a
criação de legislação especial trabalhista, tendo como princípios a proibição de
diferença de salários para o mesmo trabalho e proibição do trabalho noturno para
mulheres, bem como o amparo à maternidade 164.
Com o golpe de Vargas, a Constituição de 1937 não representou nenhum
retrocesso formal no que tange aos direitos das mulheres. O Código Penal de 1940,
promulgado em regime ditatorial, está em vigor até hoje, com diversas alterações. A
lei acabou com a diferença de penas entre mulheres honestas e as prostitutas
vítimas do crime de estupro, passando a determinar o artigo 213 que o crime se
caracteriza quando o sujeito passivo é uma mulher. Apresenta, ainda, uma
excessiva valorização da virgindade da mulher, criando no artigo 217 o crime de

162
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 608.
163
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 51.
164
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 14
dez 2020.
57

sedução, que constituía na sedução de mulher virgem menor de 18 (dezoito)


anos165.
A segunda grande conquista do período Vargas foi a promulgação da CLT,
que busca institucionalizar e unificar num diploma legal os direitos dos
trabalhadores, inseridos em decretos esparsos desde a Constituição de 1934.
Estabeleceu duração máxima diária do trabalho feminino (artigos 373 e 374), bem
como a proibição do trabalho noturno feminino (artigo 379), embora estejam
previstas exceções. Determinou, então, que o salário da mulher que tivesse um
trabalho noturno fosse maior do que o de trabalho em horário diurno (artigo 381).
Estabeleceu o período de descanso entre as jornadas, bem como o período de
alimentação durante a jornada e o dia de folga. Foi proibido o emprego de mulheres
em subterrâneos, minerações e pedreiras, bem como em atividades perigosas e
insalubres (artigo 387). A Consolidação proibiu a demissão em virtude de gravidez
ou casamento (artigo 391), bem como estabeleceu a licença maternidade
remunerada (artigo 392) e o descanso especial para amamentação do filho menor
de 6 (seis) meses de idade em horário de trabalho (artigo 396). Grande importância
para a liberdade das mulheres foi a possibilidade de ingressar em juízo para
obtenção de autorização para o trabalho em caso de proibição paterna ou do marido
(artigo 446), bem como a dispensa de assistência do marido para ingressar na
Justiça do Trabalho (artigo 792) 166.
Assim, embora a legislação trabalhista algumas vezes apresente excesso de
protecionismo legal para as mulheres, foi fonte de importantes avanços, já que o
trabalho feminino era o mais desvalorizado e descartável – embora se saiba que a
CLT, muitas vezes, não é cumprida -, bem como representou uma grande evolução
legal na liberdade e no direito feminino ao trabalho.
Como já mencionado, a Constituição de 1946 representou certo retrocesso
para os direitos das mulheres, tanto do ponto de vista formal, ao silenciar sobre a
discriminação em virtude de sexo, quanto em relação à representação, já que a

165
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal (redação original).
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-
1940-412868-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
166
BRASIL. Decreto-lei nº5.452, de 1º de maio de 1943. Consolidação das Leis Trabalhistas (redação
original). Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-
maio-1943-415500-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 14 dez 2020.
58

constituinte não teve a presença de nenhuma mulher. Institui, porém, a


obrigatoriedade do voto para ambos os sexos167.
O Estatuto da Mulher Casada, promulgado em 1962, é considerado por
muitos o documento fundador dos direitos civis das mulheres no Brasil. Fruto dos
esforços da jurista Romy Medeiros da Fonseca, o projeto de lei ficou nas mãos do
legislativo por dez anos até a sua aprovação. Com a promulgação do Estatuto,
houve o reconhecimento da capacidade civil da mulher casada, que na prática
significava que a mulher não mais precisava da autorização do marido para o
trabalho e não era mais vista como relativamente incapaz, como alguém que
precisava da autorização de outros para contrair obrigações. Além disso, determinou
que ambos competiam na autoridade e cuidado com os filhos, diminuindo ou
dividindo, na prática, o chamado “pátrio poder”, bem como o reconhecimento dos
filhos tidos fora do casamento168.

2.5 DITADURA CIVIL-MILITAR

A partir dos anos 60, surgiu no Brasil um forte movimento popular social; a
industrialização levou à urbanização. As desigualdades sociais acentuaram-se no
campo e na cidade; os camponeses intensificaram a luta pela reforma agrária.
Quando João Goulart, declaradamente socialista, tomou posse, anunciou a decisão
de aprovar a reforma agrária e aumentar o salário mínimo em 100%. Desse
momento em diante, os golpistas passaram a mobilizar a sociedade para legitimar
suas ações contra a democracia. Para isso, usaram mulheres; milhares delas foram
às ruas na Marcha com Deus pela Família e a Liberdade. Os movimentos de
mulheres que encabeçaram a manifestação tinham um caráter reacionário, visando
eliminar a “ameaça comunista” e evitar mudanças de caráter popular. Entretanto, a
grande massa de mulheres que participou da Marcha era composta de empregadas,
faveladas e trabalhadoras que, ludibriadas por princípios religiosos, acreditavam que

167
CASTRO, Flávia Lages. História do Direito Geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,
p. 519.
168
BRASIL. Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Estatuto da Mulher Casada. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-
1969/l4121.htm#:~:text=A%20mulher%20casada%20pode%20livremente,ou%20suprimento%20do%
20juiz%20(art.>. Acesso em: 14 dez 2020.
59

estavam defendendo o Brasil169. Evidente está a manobra da elite em se utilizar das


entidades femininas para manipular a população.
Com o apoio de boa parte das mulheres, em 1964 os militares, com endosso
da elite, golpearam a democracia brasileira. Todos os partidos políticos foram
cassados, criando apenas dois partidos institucionalizados pelo regime. As indústrias
se desenvolviam, causando um maciço êxodo rural. No campo, os latifúndios
passaram a se concentrar cada vez mais nas mãos dos grandes proprietários.
Eclodiram as periferias, subúrbios, favelas; a violência passou a ser um problema.
As escolas voltavam-se para o ensino técnico, visando a formação de mão de obra
especializada para a indústria. Milhões de brasileiros permaneceram analfabetos, e
os índices de mortalidade infantil cresceram exponencialmente em diversas regiões
do Brasil170. O crescimento econômico no período militarista ocorreu às custas da
qualidade de vida da população e do crescimento da pobreza e da desigualdade
social, por isso nunca chegou a realmente desenvolver o país.
Naquele momento, a indústria tinha necessidade constante de mão de obra,
sendo as mulheres absorvidas pelas fábricas em grande número. Aceitavam tarefas
monótonas e repetitivas, e se adaptaram às exigências de destreza e produtividade.
Multiplicaram-se os problemas em relação aos filhos, principalmente porque a
maioria dessas mulheres migrava do campo para a cidade sem apoio familiar,
sozinhas. Ainda que a CLT previsse, desde 1943, que empresas que empregassem
mais de 30 mulheres com mais de 16 anos deviam manter um lugar apropriado para
que elas mantivessem seus filhos, essa lei não era aplicada antes do golpe, muito
menos depois dele171.
Muitas mulheres procuravam seus entes queridos desaparecidos, outras
participavam de organizações clandestinas contrárias à ditadura. Com o Ato
Institucional nº 5 (AI-5), a censura se intensificou. Outras tantas seguiram para o
exílio, mas o mais notório foi a participação das mulheres na luta armada. As
organizações de esquerda relutavam em aceitar as mulheres em igualdade com os
homens na luta. Sua participação foi poucas vezes reconhecida; uma amostra da

169
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 53.
170
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 56.
171
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p 58.
60

omissão do papel das mulheres no âmbito político172. Os torturadores do regime


violavam-nas sexualmente, mas os comandantes revolucionários esperavam delas
que se comportassem como homens 173.
A partir da década de 1970, as mulheres da periferia passaram a se organizar
em grupos e associações de mães ou donas de casa e questionar seus problemas e
como resolvê-los. Questões como custo de vida, baixos salários e principalmente a
necessidade de trabalhar fora pra complementar o sustento do lar e não ter com
quem deixar os filhos. As igrejas e as organizações de esquerda passaram a apoiar
essas mulheres; com isso, tiveram contato com o feminismo. Para as feministas,
porém, era difícil o diálogo com essas mulheres, pois os religiosos e os dirigentes
dos partidos impediam conversas sobre questões relacionadas à sexualidade,
violência doméstica e pautas feministas propriamente ditas 174. De acordo com Clay:

Com o cerco aos partidos políticos, aos sindicatos e à imprensa, premidas


pelas necessidades da vida cotidiana, as mulheres saíram às ruas para
clamar “contra a carestia”, a ausência de creches e serviços de saúde até
chegar à denúncia da violência doméstica. O movimento de mulheres tinha
a adesão da parcela progressista da Igreja Católica desde que não
abordasse o tema da sexualidade, o qual levaria à discussão do
planejamento familiar e, em consequência, ao aborto – questões
diabolizadas pela Igreja Católica até hoje. Para as feministas atuantes nos
bairros, nos sindicatos, nas áreas onde havia distribuição gratuita de leite,
era impossível evitar esses problemas que afligiam as mulheres da periferia
175
– mas não só a elas. (...)

Um dos movimentos populares mais importantes do período foi o Movimento


do Custo de Vida, pois foi o primeiro pós AI-5. A princípio, era dirigido pelas
mulheres da periferia e setores da Igreja Católica, mas após a mudança de nome
para Movimento contra a Carestia, o movimento passou ao controle de sindicatos e
organizações de esquerda. As pautas desse movimento eram o direito à moradia,
escola, transporte, reforma agrária e melhores salários. Com os homens tomando a
direção do movimento, a pauta relacionada às creches desapareceu do programa.

172
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 64.
173
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 73.
174
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 76.
175
BLAY, Eva Alterman. Como as mulheres se construíram como agentes políticas e democráticas: o
caso brasileiro. In: BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia (org.). 50 anos de feminismo: Argentina,
Brasil e Chile. São Paulo: EDUSP, 2017, p. 75-76.
61

Foi a primeira de muitas manifestações populares que culminaram no fim da


ditadura176.
As mulheres também deram origem aos movimentos por anistia. O primeiro
grupo a levantar a pauta foram as mães dos estudantes presos no Congresso da
União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1968. No Ano Internacional da Mulher, em
1975, organizaram o Movimento Feminino pela Anistia e prepararam um abaixo-
assinado e um manifesto em prol da pauta, que teve repercussão mundial. O ano de
1975 foi essencial para a luta feminista, pois a ONU trouxe visibilidade às pautas,
propiciando um espaço de discussão. A partir de então, criaram-se novamente
organizações de mulheres177.
Após o Ano Internacional da Mulher, o movimento foi ganhando força em
Igrejas, sindicatos, movimentos sociais e políticos. As pautas das mulheres
passaram a ser levantadas em diversas ocasiões. Em 1977, o governo retirou a
proibição ao trabalho noturno das mulheres, que se uniram para protestar contra a
lei. Foi implantado o Programa de Prevenção à Gravidez de Alto Risco, que foi
violentamente criticado, pois era visto como uma forma de controle de natalidade, já
que seus critérios eram mais uma forma de discriminar as mulheres pobres. Ainda
neste ano, foi instalada a CPI da Mulher; no entanto a mulher trabalhadora foi
impedida de participar. Era necessária a aprovação prévia de um currículo para
quem quisesse falar, sob o argumento de que as mulheres trabalhadoras seriam
inibidas178.
Em 1978 ocorreu o I Congresso da Mulher Metalúrgica, que foi bastante
reprimido pelos patrões, com demissões em massa das operárias participantes. Foi
desencadeada no congresso a luta pelo fim do trabalho noturno das mulheres. As
mulheres queriam espaço nos sindicatos para lutar por suas pautas, mas os
dirigentes se opunham. Nas greves do mesmo ano, na região do ABC paulista, não
havia reivindicações femininas, além de salário igual para o mesmo trabalho. Ainda
em 78, as mulheres químicas realizaram seu primeiro congresso, contando com 70
participantes. Muitas foram demitidas por suas participações em greves, e seus
maridos apoiavam; afinal, aquele não era visto como lugar de mulher. Ainda há
176
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 81
177
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 86.
178
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 102.
62

dificuldade de incorporação das mulheres aos sindicatos; suas necessidades são


incorporadas aos últimos itens de necessidade dos trabalhadores 179.
Desde que as mulheres passaram a integrar maciçamente a força de
trabalho, a pauta por creche sempre foi uma constante. No entanto, foi em 1979, no I
Congresso da Mulher Paulista, que foi criado o Movimento de Luta por Creche,
abrangendo bairros, sindicatos e feministas. A luta por creches desencadeou
diversos debates acerca da responsabilidade pelos filhos, que recaía apenas sobre
as mães. Passaram a combater a ideia de creche como depósito de crianças,
defendendo o direito de seus filhos de estudar desde a mais tenra idade. No início
da criação das creches, o movimento fiscalizava a qualidade do serviço. O
movimento trouxe à visibilidade a situação das crianças filhos de trabalhadores, bem
como mudou a visão da sociedade acerca das creches. Em São Paulo, criou-se a
primeira rede municipal de creches. Em 1982, inseriu-se na Constituição paulista um
dispositivo que previa assistência para crianças menores de 7 (sete) anos cujas
mães fossem funcionárias públicas 180.
Esse Congresso foi importante além da criação do Movimento de Luta por
Creche. Realizado por feministas, havia empenho e entusiasmo para o evento.
Aquele foi o ano da anistia, no qual muitas feministas voltaram do exílio e a reforma
partidária foi aprovada, acabando com o bipartidarismo e ensejando a formação de
novos partidos políticos181. Este foi um marco do início de uma era de mais
liberdade, com mais oportunidades de manifestação. Neste congresso, reuniram-se
mulheres diversas, e pela primeira vez discutiram-se temas como direito ao prazer
sexual. O congresso foi bem recebido pela imprensa e recebeu divulgação e
visibilidade da grande mídia182.
Em 1980, promovido por 52 (cinquenta e duas) entidades, ocorreu o II
Congresso da Mulher Paulista. Reuniram-se aproximadamente 4 (quatro) mil

179
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 112.
180
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 105.
181
“A oposição unida tornara-se imbatível e os militares gradualistas, sob a liderança do presidente
Figueiredo, trataram de, por meio de uma reforma, criar espaços para as múltiplas manifestações
político-ideológicas das oposições, quebrando assim sua unidade e a possibilidade, bastante real, de
uma vitória eleitoral. Se a reforma, por um lado, realmente implodiu a unidade oposicionista, por outro
veio ao encontro dos anseios por expressão própria das múltiplas correntes que se agrupavam sob a
sigla do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).” PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do
Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 68.
182
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1999, p. 118.
63

mulheres. Conscientes do seu poder de mobilização, as organizações de esquerda


passaram a se inserir no movimento. Durante o congresso, houve tumulto, pois as
forças legais e os partidos clandestinos quiseram disputar hegemonia. Nesse
momento, a pauta feminista foi absorvida pelos partidos de esquerda, que percebem
sua força de mobilização política183. As feministas que até então se aglutinavam no
MDB, estavam divididas entre o PMDB (Partido do Movimento Democrático
Brasileiro, que sucede o MDB) e o recém-surgido PT (Partido dos Trabalhadores) 184.
De acordo com Blay:

Divergências ocorreram baseadas nos princípios antifeministas de alguns


grupos de esquerda. A direção dos trabalhos era disputada justamente para
afastar a discussão sobre a autonomia das mulheres. Propunha-se a
prevalência da luta de classes ficando a autonomia fora da discussão. A
contenda se dá com o Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que
considerava o tema da autonomia um gesto diversionista, afirmando que a
luta era uma só, “não há violência contra a mulher, mas sim contra o
homem e a mulher da classe operária”. Iam além ao afirmar que criar um
SOS para enfrentar a violência contra as mulheres seria “transforma[r] a
violência na família em caso de polícia e faz[er] o jogo da ditadura, porque
185
culpa o operário que chega em casa cansado e bate na mulher”.

A partir da década de 80, as trabalhadoras rurais passaram a se organizar


politicamente. Suas pautas eram a participação sindical, creche, saúde da mulher
previdência social, infraestrutura no local de trabalho e reforma agrária. Até então,
as trabalhadoras rurais não eram organizadas em sindicatos; a licença maternidade
não era prevista pra elas. Também eram vítimas do controle pelos maridos, assim
como as mulheres da cidade. Sua aposentadoria representava um problema, pois,
se fossem casadas, apenas o marido fazia jus ao benefício; se não fossem, se
aposentavam apenas aos 60 (sessenta) anos. Finalmente, não tinham as carteiras
assinadas pelos patrões, por isso não faziam jus aos direitos trabalhistas186.
Foi também nos anos 80 que surge o chamado feminismo acadêmico, a partir
do Departamento de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, e das
pesquisas de ciências humanas em algumas universidades do país, onde surgiram

183
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 121.
184
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Ábramo, 2001, p. 68.
185
BLAY, Eva Alterman. Como as mulheres se construíram como agentes políticas e democráticas: o
caso brasileiro. In: BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia (org.). 50 anos de feminismo: Argentina,
Brasil e Chile. São Paulo: EDUSP, 2017, p. 83.
186
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 142.
64

núcleos de estudo especializado sobre as mulheres 187. A produção acadêmica da


Fundação Carlos Chagas tornou-se referência para estudos sobre as mulheres ao
redor do mundo. Também vale ressaltar o Pagu (Núcleo de Estudos de Gênero), da
Universidade Estadual de Campinas, que acolheu o primeiro curso de doutorado
sobre o tema no Brasil e publica desde 1993 importante revista acadêmica, a
Cadernos Pagu188.
Grupos autônomos de mulheres vinham se organizando em torno da saúde e
da violência doméstica. Desde a década de 70, estava em voga a luta pelo direito à
saúde. Questões como maternidade, parto, como evitar filhos, eram constantemente
discutidas nos grupos e organizações de mulheres. Naquela época, apenas pessoas
com registro em carteira tinham acesso gratuito aos serviços de saúde; as donas de
casa, portanto, ficavam dependentes do marido. Além disso, o saneamento básico
era limitado às áreas centrais; as populações periféricas estavam excluídas, em
situação de vida escassa. Assim, as mulheres passaram a se movimentar para
garantir o direito à saúde e rede de água e esgoto para seus bairros. Mesmo com as
dificuldades e a falta de apoio, inclusive dos maridos, foi dessa forma que surgiram
os primeiros postos de saúde e atendimento pré-natal e infantil189. Conforme Giulani:

A temática da saúde conduz as mulheres a uma vasta discussão sobre os


problemas da maternidade – gravidez, parto, amamentação, doenças do
pós-parto, mortalidade infantil, mortalidade materna, assistência ao controle
de câncer etc. é importante registrar que as mulheres que participam
desses grupos não se reúnem enquanto trabalhadoras, mas enquanto
cidadãs-excluídas, ou usuárias mal-atendidas dos serviços públicos
essenciais. O ritmo e a intensidade da movimentação diferem de região
para região, mas permanece claro que em todos os grupos as mulheres
190
reivindicam direitos e não favores.

As mulheres pobres e trabalhadoras começaram a discutir controle de


natalidade e prazer sexual em seus encontros e reuniões. Havia muita resistência à
discussão, tanto por parte da esquerda, quanto por parte da Igreja. O controle de
natalidade também foi repreendido, inclusive por profissionais da saúde; o

187
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 68
188
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 89.
189
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 146.
190
GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira. In: DEL
PRIORI, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 648.
65

planejamento familiar no Brasil era visto como uma tentativa de controle de


natalidade dos pobres. O movimento feminista, a princípio, teve dificuldade de
aceitar o lesbianismo como um direito de orientação sexual da mulher, de agrupá-las
ao movimento. As questões principais eram a sexualidade livre em contrapartida ao
risco de contaminação por HIV, bem como a ausência de métodos contraceptivos
femininos para evitá-la, pois os métodos atuais recolocam o controle da sexualidade
feminina sob controle do homem, responsável por usar o preservativo191.
Assim, o estado passou a oferecer serviços de saúde na gravidez da mulher e
na infância da criança, mas as mulheres queriam um atendimento mais amplo;
reivindicavam serviços de planejamento familiar, acesso à informação e a métodos
contraceptivos. Em 1984, o governo propôs através do Ministério da Saúde o
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). A princípio, apenas
mulheres em idade reprodutiva eram atendidas, mas por intermédio da organização
feminista, que pressionou as autoridades, o Ministério da Saúde estendeu o
programa a todas as idades. Na época, o governo paulista assumiu o programa,
mas retirou o planejamento familiar, tentando evitar atritos com a Igreja, que não
permitia uso de anticoncepcionais. Diversas barreiras se colocaram para evitar o
sucesso do programa: tanto a resistência ideológica, quanto as de ordem material e
infraestrutura192.
A pauta acerca da violência sofrida pelas mulheres só apareceu no II
Congresso da Mulher Paulista. Após alguns encontros, foi criado o SOS Mulher,
entidade autônoma com intuito de prestar auxílio voluntário a mulheres vítimas de
violência doméstica. Fatos como o assassinato de Leila Diniz trouxeram visibilidade
à questão da violência doméstica, que por muitos anos foi silenciosa. Havia então a
ideia disseminada de que apenas homens pobres e pretos batiam em suas mulheres
e esse acontecimento, com uma mulher de classe média, fez com que se
começasse a questionar o apoio tácito da sociedade a esse tipo de prática. Na
mesma época, as feministas passaram a conscientizar as mulheres acerca da
violência do estupro. Até então, o crime recebia uma visão patologizada, como se
apenas pessoas “anormais” ou doentes o praticassem, contra mulheres de conduta
questionável, que se vestiam de forma vulgar e andavam em locais suspeitos. O

191
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 149.
192
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 151.
66

tratamento social e das autoridades sempre foi no sentido de colocar a vítima numa
posição de instigadora da violência193194.
Em 1982, mesmo ano da criação do Movimento das Mulheres pelas Diretas
Já, os governadores voltaram a ser eleitos por voto direto, sendo essa eleição um
triunfo para a oposição ao regime; na campanha, a violência doméstica foi uma
pauta destacada. A violência doméstica sempre foi tratada no país como um tabu. A
não submissão da mulher ao homem era justificativa para a agressão. A
jurisprudência brasileira sagrou o direito do homem de matar em legítima defesa da
honra. Em 1985, o governador paulista Franco Montoro criou a Delegacia Policial de
Defesa da Mulher, com pessoal especializado, inclusive mulheres. A demanda
começou a crescer. O espaço doméstico não recebia visibilidade; a partir de então,
se começou a enxergar a casa como um lugar potencialmente perigoso para a
mulher, com endosso do poder público195.
No mesmo ano, criou-se o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
(CNDM), fruto da iniciativa das mulheres do PMDB junto ao presidente Tancredo
Neves. Foi criado junto ao Ministério da Justiça, com status de ministro para a
presidenta e com orçamento próprio. Com o governo Collor, perdeu orçamento e a
influência das feministas na escolha das dirigentes. Sua maior importância se deu na
intervenção junto à Constituinte196.
A ditadura militar foi um período de inúmeros retrocessos em matéria de
direitos humanos e políticos. O processo decisório foi alienado, de forma que a
participação social era reprimida e desencorajada. Assim, a previsão do artigo 150,
da Constituição 1967197, que proíbe a distinção por sexo e institui a igualdade legal,
foi muito mais uma decisão dos militares, influenciados pela Declaração Universal
dos Direitos dos Homens, de 1948, do que uma conquista das mulheres198. Na
prática, a mulher ainda estava submissa no interior do lar, bem como os demais,
excluída dos direitos políticos e sujeita às violações de direitos humanos da época.

193
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 134.
194
O assunto será exaustivamente tratado no capítulo 3.
195
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 137.
196
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 72.
197
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 14 dez 2020.
198
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 27.
67

Como já mencionado, a Igreja determinava o casamento como vínculo


indissolúvel. O desquite proibia a formação de novas famílias, criando estigma social
para os sujeitos envolvidos, na relação conhecida como concubinato; cessava a
sociedade conjugal, mas os vínculos do casamento não se dissolviam. Assim, sem
dúvidas, a maior conquista do período foi a Lei do Divórcio. O embate se deu entre
organizações católicas, como a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil)
e a TFP (Tradição, Família e Propriedade, grupo conservador), e os políticos, que
dependendo da região eram favoráveis ao divórcio. O senador Nelson Carneiro, que
defendia o divórcio desde 1951, e o senador Accioly Filho, propuseram o projeto de
lei, que depois se transformou na Emenda Constitucional nº 9 199. Conforme o
senador Accioly, em conferência a respeito do projeto:

A estabilidade do casamento e, assim, da família, não está a depender da


indissolubilidade do vínculo. Ela depende da própria estabilidade emocional
e da educação dos cônjuges, que devem estar preparados para o
casamento. É claro que, nos termos de nossa legislação projetada, não
serão possíveis exageros verificados em alguns Estados na nação norte-
americana, nem o exemplo de artistas prolifera nas classes afastadas da
vida exótica que eles levam. O divórcio depende da lei que o regula e o
padrão moral de vida que os cônjuges adotam. Se estes tendem para o
amor livre, para a promiscuidade, para o excêntrico, não é o divórcio que os
leva a isso, mas o seu próprio temperamento e caráter.200

Assim, contrariando os protestos da Igreja Católica, a Emenda Constitucional


foi aprovada, modificando o §1º do artigo 167 da Constituição de 1967, que
determinava a indissolubilidade do casamento; o parágrafo passou a determinar que
o casamento pudesse ser dissolvido se houvesse separação judicial há 3 (três) anos
ou separação de fato há 5 (cinco) anos. O desquite foi substituído pela separação, e
o divórcio possibilitou a ruptura dos vínculos matrimoniais, ensejando novas núpcias.
Seis meses após a Emenda, a Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977,
regulamentou o Divórcio201.
A Lei do Divórcio revogou algumas disposições do Código Civil de 1916. A lei
foi criada para regulamentar aspectos do divórcio e da separação judicial e suas
consequências jurídicas. O desquite foi substituído pela separação (artigo 39), que
199
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 49.
200
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 50-
51.
201
BRASIL. Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Regula os casos de dissolução da sociedade
conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências (redação
original). Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/norma/548391/publicacao/15757797>. Acesso
em: 14 dez 2020.
68

passa a ser obrigatória antes da concessão do divórcio (artigo 31). O divórcio direto
era reservado àqueles que já estivessem separados de fato há mais de cinco anos,
comprovada a causa da separação e antes da promulgação da referida lei (artigo
40), porém os requisitos não eram simples. A lei tornou possível casar apenas mais
uma vez (artigo 38), já que do segundo casamento não seria concedido divórcio,
pois o pedido só podia ser formulado uma única vez.
Embora tenha representado um grande avanço na situação civil e na
liberdade das mulheres, a lei previa que o juiz tinha o dever de tentar todas as
formas de conciliação antes da concessão do divórcio (artigo 3º, §2º), resquícios da
interferência estatal na preservação do casamento. Assim, ainda que tenha sido
muito importante e atendido aos anseios de mulheres de por termo à sociedade
conjugal desvantajosa, muitas vezes apresentava excessivos óbices, como o longo
tempo para a conversão em divórcio (ou seja, para efetivamente romper os laços
conjugais, já que a separação permitia reconciliação e obstava novos casamentos) e
as tentativas exaustivas de reconciliação.

2.6 RETOMADA DEMOCRÁTICA

Em 1986, elegeram-se os deputados para a Assembleia Constituinte202. Dos


559 deputados eleitos, apenas 26 eram mulheres, representando 5,7% da
Assembleia203. Norte e nordeste foram as regiões que mais as elegeram. O
recrutamento de mulheres para a Constituinte não foi feito no movimento feminista
dentro dos partidos e sim pelos moldes tradicionais – laços familiares, influência
midiática; o que explica o alto número de mulheres eleitas por partidos de direita,
pouco influenciados pelas questões do movimento. Estiveram pouco representadas
oficialmente, o que explica a força de sua mobilização anteriormente e durante a

202
Os deputados e senadores que redigiram a CRFB/88 não foram eleitos exclusivamente para a
Constituinte, como ocorre numa Assembleia, mas continuaram em seus cargos após a promulgação
da nova Constituição, de forma que se pode dizer que os políticos que formularam a Constituição de
1988 estão mais próximos de um Congresso Constituinte. Ver: FGV – CPDOC. Verbete: Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-88. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/assembleia-nacional-constituinte-de-
1987-88>. Acesso em: 16 maio 2020.
203
Ainda que seja um número ínfimo, as eleições de 1986 mais que dobraram o número de
deputadas e senadoras em relação aos homens, um aumento percentual de 1,9% para 5,3% de
representação feminina no Congresso. Ver: PITANGUY, Jacqueline. A Carta das Mulheres Brasileiras
aos Constituintes: memórias para o futuro. In: BERTOLIN, Patrícia Martins Tuma; ANDRADE, Denise
Almeida de; MACHADO, Mônica Sapucaia (org.). Carta das Mulheres Brasileiras aos
Constituintes: 30 anos depois. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.
69

Constituinte. As mulheres eleitas, diferentemente do esperado, se autodenominaram


“bancada feminina” e apresentaram 30 emendas sobre direitos das mulheres,
abrangendo a maior parte das reivindicações. Três razões explicam essa
aproximação das constituintes com o movimento: as três emendas populares
promovidas pelo movimento; a influência do Conselho Nacional de Direitos da
Mulher, que mobilizou os movimentos para pressionar os constituintes; e o
machismo estrutural próprio da dinâmica interna da Câmara dos Deputados, espaço
privilegiadamente masculino204.
O CNDM foi essencial para movimentar a Constituinte a favor dos direitos das
mulheres. Fizeram uma campanha nacional na televisão e por faixas com o slogan
“Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher!”. Em agosto de 1986 ocorreu o
Encontro Nacional da Mulher pela Constituinte, que contou com mulheres das mais
diversas perspectivas para debater as ideias. Neste encontro, foi elaborado um
documento, chamado de “Carta das mulheres” 205, o mais completo e abrangente da
época.

O documento defendia a justiça social, a criação do Sistema Único de


Saúde, o ensino público e gratuito em todos os níveis, autonomia sindical,
reforma agrária, reforma tributária, negociação de dívida externa, entre
outras propostas. Na segunda parte, o documento detalhava as demandas
em relação aos direitos da mulher no que se referia a trabalho, saúde,
direitos de propriedade, sociedade conjugal, entre outros. Em dois pontos a
carta apresentou originalidade em relação aos demais documentos do
período. O primeiro refere-se a questão da violência contra a mulher. (...) O
segundo diz respeito ao polêmico tema do aborto.206

Praticamente todas as reivindicações foram apresentadas aos deputados e


inseridas na Constituição de 1988. Uma das poucas exceções foi o aborto; nesse
caso, porém, a participação das mulheres fez com que não houvesse retrocessos na
lei brasileira. Deputados religiosos queriam proibir até mesmo os casos previstos na
lei do Código Penal. As mulheres se uniram, aproveitaram-se do regimento interno e

204
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 74.
205
Ver BERTOLIN, Patrícia Martins Tuma; ANDRADE, Denise Almeida de; MACHADO, Mônica
Sapucaia (org.). Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: 30 anos depois. São Paulo:
Autonomia Literária, 2018.
206
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 75.
70

colheram mais de 30 mil assinaturas. No dia 26 de agosto de 1987, uma


representante das feministas faz a defesa da Emenda Popular nº 65 207:

Inclui, onde couber, na Seção I (da Saúde), do capítulo II (da Seguridade


Social), do Título IX (da Ordem Social), os seguintes dispositivos:
Art. - Compete ao Poder Público prestar assistência integral à saúde
da mulher, nas diferentes fases de sua vida, garantir a homens e mulheres
o direito de determinar livremente o número de filhos, sendo vedada a
adoção de qualquer prática coercitiva pelo Poder Público e por entidades
privadas, assegurar acesso à educação, informação e aos métodos
adequados à regulamentação da fertilidade, respeitadas as opções
individuais.
Art. - A mulher tem o direito de conceber, evitar a concepção ou
interromper a gravidez indesejada, até 90 (noventa dias) de seu início.
§ 1º Compete ao Estado garantir este direito através da prestação
de assistência integral às mulheres na rede de saúde pública.208

A emenda que tinha como proposta a aposentadoria das donas de casa, de nº


19, foi a que teve maior número de assinaturas; mesmo assim, não foi incorporada
nem pela bancada feminista, por isso não consta na Constituição. A mais
abrangente foi a de nº 20, que propunha questões como saúde da mulher, igualdade
na lei e na sociedade conjugal, liberdade de planejamento familiar, direito de posse e
de propriedade de terra para mulheres. Todas as reivindicações foram assumidas
pelas deputadas da Constituinte209.
A igualdade formal de direitos e a proibição de discriminação por sexo já
havia sido outorgada em 1967, embora, como já visto, na prática não havia sujeitos
de direitos plenos no Brasil durante a ditadura. A importância primordial da
Constituição Federal de 1988 não está apenas no reconhecimento da igualdade,
mas em tratá-la como princípio norteador da República do Brasil e fornecer diversos
mecanismos para que ela se efetive no plano material.
Os maiores progressos constitucionais se deram no âmbito da família. Novas
formas de arranjo familiar foram reconhecidas, como a união estável; o casamento
deixa de ser a única fonte de formação familiar. No que tange à autoridade familiar,
a Constituição de 1988 revoga diversos artigos do Código Civil de 1916; assim,
deixa de existir o “pátrio poder” e passa a haver o “poder familiar”, exercido por

207
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999, p. 144.
208
ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. Emendas Populares. Janeiro de 1988. Disponível
em: <https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-258.pdf>.
Acesso em: 11 dez 2020.
209
PINTO, Celi Regina Jardim. Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2001, p. 77.
71

ambos na sociedade conjugal (artigo 226) 210. Na prática, isso significou que as
mulheres não mais estavam formalmente subordinadas à autoridade do marido,
assumindo iguais responsabilidades no comando familiar.
O § 6º do artigo 226 apresenta importante alteração quanto ao divórcio,
reduzindo o prazo para a conversão e admitindo o divórcio direto. A Constituição
removeu a limitação da Lei do Divórcio, permitindo que as pessoas se casem e
divorciem quantas vezes quiserem. Em 1989, foi promulgada a Lei nº 7.841,
buscando adaptar a Lei do Divórcio às modificações constitucionais; em 1992, foi
promulgada a Lei nº 8.408, modificando novos aspectos da lei211.
O Código Civil de 2002 veio para consolidar as mudanças constitucionais de
1988, estabelecendo igualdade de gênero na família e na sociedade civil; no
entanto, manteve diversos entraves para a concessão do divórcio e da separação,
até a Lei nº 11.441, de 2007. A lei criou a possibilidade de obtenção de separação e
divórcio consensuais por vias administrativas, modificando o artigo 1.124-A do antigo
Código de Processo Civil, correspondente ao artigo 733 do Código atual. A lei foi
importante para desburocratizar o acesso ao divórcio, bem como para limitar a
intervenção do Estado nessa decisão. A Emenda Constitucional nº 66/2010 suprimiu
o requisito de tempo de separação judicial ou de fato prévia. Deixou de ser
necessária a comprovação de qualquer tipo de prazo para obtenção de divórcio,
bem como discussões sobre culpa. O processo judicial tornou-se dispensável,
tornando o divórcio muito mais acessível, rápido e simples para a população 212.
Outra importante previsão constitucional foi a do § 8º do referido artigo 226. O
dispositivo determina sobre a necessidade de mecanismos com intuito de coibir a
violência no âmbito da família; embora já houvesse delegacias especializadas em
violência contra a mulher, este era um fato corriqueiro socialmente. Com intuito de
regulamentar o dispositivo constitucional, no dia 7 de agosto de 2006 foi promulgada
a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, ensejando modificações no
Código Penal. A lei foi batizada em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes,
brasileira que ficou paraplégica após agressões de seu marido no ano de 1983.
Como o Estado Brasileiro não tomou providências, 15 anos depois do crime, em

210
BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 (redação original). Disponível
em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-
publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 15 dez 2020.
211
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 60.
212
COSTA, Ligia Bertaggia de Almeida. 40 anos da Lei do Divórcio. Barueri: Manole, 2018, p. 74.
72

1998, conseguiu que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos avaliasse seu


caso. Em 2002, o Brasil foi condenado. A promulgação da referida lei foi fruto da
mobilização das mulheres desde 1970 contra a violência doméstica, aumentando
nos anos 1980 em virtude dos assassinatos cometidos por parceiros contra suas
companheiras213.
A importância da Lei Maria da Penha é que ela tipifica especificamente o
crime de violência doméstica intrafamiliar; o delito caracterizado pela agressão em
contexto doméstico era naturalizado socialmente. Caso fosse punido, porém, era
tipificado como lesão corporal, com penas inferiores às estabelecidas pela nova lei.
Assim, a Lei Maria da Penha representa um grande avanço legislativo quanto aos
direitos das mulheres, buscando coibir a violência doméstica que por tanto tempo foi
invisibilizada. A lei define violência doméstica da seguinte maneira:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar


contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada
por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva
ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual.214

Pode-se observar que a violência doméstica não depende de coabitação nem


de laços sanguíneos, mas dos fatores que caracterizam a relação familiar e
amorosa, como afeto, convivência e codependência. Outro grande diferencial da lei
é a amplitude de formas como a violência contra a mulher é protegida. Além da

213
Ministério Público do Estado de São Paulo. História da Lei Maria da Penha. Disponível em:
<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Violencia_Domestica/Lei_Maria_da_Penha/vd-lmp-
mais/Historia_da_lei#:~:text=A%20Lei%2011.340%2F06%2C%20que%20recebeu%20o%20nome%2
0de%20%E2%80%9C,%2C%20viol%C3%AAncia%20dom%C3%A9stica%2C%20etc.)>. Acesso em:
15 dez 2020.
214
BRASIL, Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre
a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Planalto.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso
em: 15 dez 2020.
73

violência física, a violência doméstica se caracteriza também através da violência


psicológica, patrimonial, moral e, finalmente, sexual, conforme rol exemplificativo do
Artigo 7º. Assim, a lei garante proteção em todos, ou na maioria dos âmbitos pelos
quais os homens controlam as mulheres dentro dos relacionamentos.
Finalmente, para os fins que interessam a este trabalho, é válido mencionar a
tipificação do crime de feminicídio, previsto na Lei nº 13.104, de 9 de março de
2015215. A lei determinou alteração no artigo 121 do Código Penal, inserindo no
crime de homicídio a qualificadora referente ao cometimento contra mulher em
virtude de seu sexo216. Para o enquadramento em feminicídio, o crime deve ser
cometido em contexto de violência doméstica e familiar, ou em menosprezo ou
discriminação da condição da mulher. Além disso, o crime de feminicídio é
classificado como hediondo, de forma que o condenado perde direito a diversos
privilégios processuais, bem como no cumprimento da pena.
A tipificação do crime de feminicídio não foi orgânica, mas fruto de pressão
internacional, especialmente da ONU, para cumprir os tratados internacionais e
tipificar os crimes de violência contra a mulher na América Latina 217. O crime de
feminicídio é visto por muitos como exasperação da violência doméstica; um
companheiro que violenta a companheira constantemente pode, eventualmente,
mata-la. Desta forma, a Lei nº 13.104/15 completa a proteção legal provida à mulher
no interior do lar, coibindo situações antes consideradas normais.

215
BRASIL, Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do
crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol
dos crimes hediondos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13104.htm>. Acesso em: 15 dez 2020.
216
Quando da aprovação da lei, a palavra “gênero”, mais abrangente, foi trocada pela palavra “sexo”,
mais conservadora. ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O Processo de tipificação do
feminicídio no Brasil. In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela
Corrêa (org.). Feminicídio – quando a desigualdade de gênero mata: mapeamento da tipificação na
América Latina. Joaçaba: Editora Unoesc, 2020, p. 36.
217
ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O Processo de tipificação do feminicídio no Brasil.
In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANGOTTI, Bruna; VIEIRA, Regina Stela Corrêa (org.).
Feminicídio – quando a desigualdade de gênero mata: mapeamento da tipificação na América Latina.
Joaçaba: Editora Unoesc, 2020, p. 55.
74

3 ESTUPRO E SUAS DIMENSÕES

3.1 ANÁLISE HISTÓRICA DO TIPO PENAL

Com o debate sobre violência doméstica, a violência sexual passou a ser


objeto de discussão e estudo do movimento feminista. Ao longo do capítulo anterior,
por várias vezes foi mencionada a evolução legislativa do crime de estupro; as leis
serão analisadas mais minuciosamente, a fim de explicitar a mentalidade vigente na
sociedade patriarcal brasileira sobre a violação sexual das mulheres.
As Ordenações Afonsinas, primeira codificação da Colônia, determinavam
que, caso uma mulher fosse forçada na rua, deveria sair gritando por ao menos três
ruas sobre o que foi feito com ela, além de nomear o algoz, caso pudesse. Se assim
não fizesse, sua palavra não seria acreditada posteriormente 218. Assim, a mulher
deveria se expor publicamente para ter algum crédito, de forma imediata,
independentemente de como se sentisse. As Ordenações Filipinas, posteriormente,
retiram tal exigência. Este texto determina que, se tratando de mulher virgem ou
honesta não casada, a pena seria de morte; fosse prostituta, porém, o crime deveria
ser levado ao conhecimento do rei, que deveria autorizar a morte do criminoso 219.
Ou seja, a legislação não tinha por preocupação o crime, mas sim as características
da vítima e do criminoso. Quanto à mulher casada que for forçada, a lei diz que não
deve morrer por isso, e o marido deve ser compensado com os bens do
estuprador220. Ainda que fosse ela a vítima, era o marido que tinha o seu bem
desvalorizado.
O Código Penal Imperial de 1830, o primeiro independente de Portugal, o
crime de estupro está inscrito no capítulo dos crimes contra a segurança da
honra.221 O Código determina que deflorar mulher virgem ou honesta, menor de
dezessete anos, seria punido com desterro da comarca onde a mulher vivesse de

218
Ordenações Afonsinas: Livro V, Título IV. Da molher forçada, e como fe deve a provar a força.
Disponível em: <http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg29.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
219
Ordenações Filipinas: Livro V, Título XVIII. Do que dorme por força com qualquer mulher, ou trava
dela, ou a leva por sua vontade. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1168.htm>.
Acesso em: 16 maio 2021.
220
Ordenações Filipinas: Livro V, Título XXV. Do que dorme com mulher casada. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1174.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
221
BRASIL. Lei de 16 de Dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Parte Terceira,
Título II, Capítulo II. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>.
Acesso em: 16 maio 2021.
75

um a três anos, além de indenizá-la222. A lei também trata do que hoje chamamos de
estupro de vulnerável, quando o criminoso fosse responsável pela vítima ou tivesse
com ela laço familiar que impedisse o casamento, caso em que as penas eram
maiores223. Finalmente, o tipo penal de estupro é definido por “ter cópula carnal por
meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta”, com pena de três a
doze anos, bem como dever de indenização. Caso a vítima fosse prostituta, a pena
de prisão passava a ser de um mês a dois anos 224. Caso criminoso e vítima se
casassem, nenhuma das penas era executada 225. A legislação entendia o
matrimônio como reparação, já que a mulher não virgem era considerada impura e
dificilmente conseguiria outro casamento. Numa sociedade em que o único destino
possível para as mulheres era o casamento, parecia razoável que uma vítima se
casasse com seu estuprador a fim de aprovação social. A diferença de penas entre
as vítimas relaciona-se com o princípio da retribuição do direito penal, afinal
entendia-se que a prostituta não havia perdido tanto a honra quanto a mulher
honesta, simplesmente porque não a tinha para perder.
No Código Penal de 1890, o crime de estupro está inserido no Título VIII,
relativo aos crimes contra a honra e honestidade das famílias e do ultraje público
pudor226. Mais uma vez, a proteção não é direcionada à vítima, mas aos seus
familiares que foram desonrados com a sua violação. O tipo passa a ser definido no
artigo 269 “chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma
mulher, seja virgem ou não” e acrescenta no parágrafo único que a violência não se
restringe apenas à força física, e inclui qualquer meio que prive a mulher das suas
faculdades psíquicas e dificulte a possibilidade de resistência. A diferenciação de
penas devido ao status da vítima de prostituta ou de mulher honesta permanece;
mas ainda que a pena para estupro de prostitutas tenha sido aumentada (prisão de
seis meses a dois anos), a pena de estupro de mulher honesta foi diminuída pela
metade (prisão de um a seis anos) 227. A maior evolução legislativa foi deixar explícito
no tipo penal que o criminoso poderia ser enquadrado na lei mesmo que a vítima
não fosse mais virgem.

222
Artigo 219 do Código Criminal de 1830.
223
Artigo 220 do Código Criminal de 1830.
224
Artigo 222 do Código Criminal de 1830.
225
Artigo 225 do Código Criminal de 1830.
226
BRASIL. Decreto nº 847, de 8 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
227
Artigo 268 do Código Penal de 1890.
76

É nesta codificação que pela primeira vez aparece o tipo penal de atentado
violento ao pudor, conforme lei extravagante aprovada em 1915 228. A configuração
deste crime é particularmente importante, pois até então, como o estupro era
definido apenas pela penetração vaginal, outros atos sexuais forçados não eram
tipificados. Vale ressaltar também que a caracterização do crime por meio exclusivo
de penetração vaginal excluía homens de qualquer proteção legal quanto ao abuso
sexual. Assim, o art. 266 definia o crime por “atentar contra o pudor de pessoa de
um, ou de outro sexo, por meio de violências ou ameaças, com o fim de saciar
paixões lascivas ou por depravação moral”. Desta forma, pela primeira vez mulheres
e homens são protegidos legalmente de atos sexuais forçados além da penetração
vaginal. No Código Penal de 1890, a pena para tal crime era a mesma do estupro de
mulher honesta. Maridos que praticassem atos extravagantes ao sexo vaginal, que
era visto como dever marital, em tese, poderiam ser acusados desse crime.
No Código Penal de 1940, promulgado sob a ditadura de Getúlio, o tipo penal
passa a ser inserido no Título VI, que trata dos crimes contra o costume 229. O
capítulo I, que trata do estupro em seu artigo 213, refere-se a crimes contra a
liberdade sexual – o que aparenta certa evolução, embora, como sujeito de direito
vista como incapaz (ao se casar), a mulher da época não exatamente possuía
liberdade sexual. O crime é definido como “constranger mulher a conjunção carnal,
mediante violência ou grave ameaça”. A pena foi aumentada consideravelmente,
para prisão de três a oito anos. Quanto ao atentado violento ao pudor, o crime passa
a ser definido como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção
carnal”. A pena foi ligeiramente aumentada para prisão de dois a sete anos 230.
Embora as definições tenham sido alteradas, o crime de estupro ainda tem por
sujeito passivo unicamente a mulher, por se referir à penetração vaginal forçada. Os
outros atos sexuais forçados continuam sob a égide do crime de atentado violento
ao pudor, oferecendo proteção legal para mulheres e homens, ainda que com pena
menor.

228
BRASIL. Lei 2.992, de 25 de setembro de 1915. Modifica os arts. 266, 277 e 278 do Código Penal.
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-2992-25-setembro-1915-
774536-publicacaooriginal-138024-pl.html>. Acesso em: 16 maio 2021.
229
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 16 maio 2021.
230
Artigo 214 do Código Penal de 1940.
77

O Código apresenta inovação ao trazer a figura da posse sexual 231 e do


atentado violento ao pudor mediante fraude 232, ou seja, sexo obtido sem o real
consentimento da pessoa, já que esta foi enganada para prestar tal consentimento.
Porém, para a caracterização de ambos os delitos, era necessário que o sujeito
passivo fosse “mulher honesta”. Embora a pena seja menor do que a pena de
estupro e de atentado violento ao pudor, os artigos que se referem a práticas
sexuais mediante fraude incluem uma qualificadora, quando a vítima for virgem e
tiver entre catorze e dezoito anos. A ideia é que é muito mais fácil enganar uma
menina inexperiente, de forma que a pena deva ser correspondente à gravidade do
delito. Por outro lado, tratar como sujeito passivo apenas mulheres honestas deixa
claro que o legislador entende que homens não podem ser enganados a praticar os
atos sexuais que normalmente são levados a praticar à força; bem como que
mulheres que não atendessem aos padrões sociais não mereciam proteção do mau
comportamento de outros homens.
O sexo com mulheres de catorze a dezoito anos era punido com prisão de
dois a quatro anos233, pois se entendia que o homem seduziu a moça, aproveitando-
se de sua inexperiência e desconhecimento, já que nessa idade eram consideradas
relativamente capazes civilmente. Outros atos libidinosos, indução a pratica de atos
ou executá-los em presença de pessoa de catorze a dezoito anos se enquadrava no
crime de corrupção de menores, com pena de um a quatro anos 234. O tipo de
sedução visa proteger meninas consideradas ingênuas de serem ludibriadas a ter
sexo – ou seja, não é cometido nem à força, nem mediante fraude, mas a moça é
convencida a ter tal relação. Tal instituto tinha por intuito preservar a virgindade das
moças. Por fim, o crime de corrupção de menores visa proteger pessoas da mesma
faixa etária, independente do sexo, de serem ludibriados a permitir ou executar atos
sexuais, bem como de assisti-los, já que não se considera que esta pessoa seja
plenamente capaz de entender os atos.
O artigo 223 e os seguintes tratam de disposições gerais sobre os crimes de
violação sexual descritos acima. Primeiramente, traz as qualificadoras de resultado
de lesão corporal grave (a pena é de quatro a doze anos) e de morte (pena de oito a
vinte anos de prisão). Também traz a causa de aumento de pena de (mais ¼)

231
Artigo 215 do Código Penal de 1940.
232
Artigo 216 do Código Penal de 1940.
233
Artigo 217 do Código Penal de 1940.
234
Artigo 218 do Código Penal de 1940.
78

referente ao sujeito ativo: quando o crime é cometido com concurso de pessoas, se


o agente for parente ou tiver autoridade sobre a vítima, e se o agente for casado 235.
A lei presumia que havia violência em três casos: quando a vítima fosse menor de
catorze anos, quando tivesse alguma doença mental, ou quem por outra causa não
pudesse resistir236. Assim, nestes casos, independente do artifício utilizado pelo
sujeito ativo, o crime seria de estupro se houvesse penetração vaginal e de atentado
violento ao pudor se fosse referente a outros atos libidinosos. A menor de catorze
anos não podia ser sujeito passivo dos tipos de violação sexual mediante fraude,
tampouco sedução ou corrupção de menores. Da mesma forma, o menor de catorze
anos não podia ser vítima de corrupção de menores, e sim de atentado violento ao
pudor.
O Código de Processo Penal foi promulgado no ano de 1941, mas o Código
Penal de 1940 já trouxe em seu corpo algumas disposições acerca das ações
referentes aos crimes contra a liberdade sexual. O artigo 225 determinava que tais
crimes somente se procedessem mediante queixa, ou seja, em ação penal privada.
O crime só seria processado por ação pública se a vítima ou sua família não
pudessem arcar com os custos do processo sem prejuízo de sustento, caso em que
se requeria representação para o Ministério Público ingressar com a ação (ação
penal pública condicionada à representação). A única possibilidade de ação pública
incondicionada seria quando o crime fosse cometido pelo pai, padrasto, tutor ou
curador, caso em que o Ministério Público independia de qualquer ato para ingressar
com a ação, bem como se houvesse lesão corporal além do estupro.
O Código Penal de 1940 continua em vigor até os dias atuais, embora tenha
sofrido diversas alterações a fim de adequar-se ao contexto de alguns momentos da
sociedade brasileira. Todas as alterações foram feitas após a Constituição
Democrática de 1988, retratando as evoluções pelas quais a sociedade brasileira
vem passando. Logo em 1994, a Lei de Crimes Hediondos passa a tratar o estupro e
o atentado violento ao pudor como tais237. Na prática, isso significa que esses crimes
não estão sujeitos à graça, anistia ou indulto, bem como à soltura mediante fiança. O
235
Artigo 226 do Código Penal de 1940.
236
Artigo 224 do Código Penal de 1940.
237
BRASIL. Lei nº 8.930, de 06 de setembro de 1994.
o o
Dá nova redação ao art. 1 da Lei n 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes
hediondos, nos termos do art. 5o, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8930.htm#art1>. Acesso em:
16 maio 2020.
79

criminoso possui menos benefícios no que tange à progressão de regime, e deve


necessariamente começar a cumprir a pena em regime fechado.
Em 2001, a Lei nº 10.224 passou a retratar o crime de assédio sexual em seu
artigo 216-A, definindo-o como “constranger alguém com o intuito de obter vantagem
ou favorecimento sexual, prevalecendo-se de sua condição de superior hierárquico
ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”, a fim de
proteger as mulheres de investidas desagradáveis no ambiente de trabalho. O crime
não possui pena de prisão, sendo sua maior finalidade efetivamente coibir tais
comportamentos238.
É só no ano de 2005, com a promulgação da Lei nº 11.106, que a figura da
“mulher honesta” é definitivamente removida da legislação brasileira 239. As figuras de
violação sexual mediante fraude tem essa qualificação da vítima removida como
requisito para a configuração do crime. O crime de adultério também é
definitivamente eliminado da legislação penal. O artigo 215, referente à posse sexual
mediante fraude, passa a ser redigido como “ter conjunção carnal com mulher,
mediante fraude”. O artigo 216, que diz respeito ao atentado ao pudor, passa a
definir o crime como “induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à
prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. O crime de atentado ao pudor
não apenas dispensa a figura da mulher honesta, como também passa a proteger
homens de atos sexuais cometidos com o uso de fraude. O crime de sedução é
excluído do Código, considerando que atualmente as mulheres possuem mais
liberdade sexual e as experiências costumam se iniciar na adolescência240.
A Lei de 2005 também efetuou mudanças no que diz respeito às disposições
gerais referentes aos crimes sexuais. As causas de aumento de pena são de ¼ no
caso de concurso de pessoas, e de ½, se o agente ativo tiver parentesco com a

238 o
BRASIL. Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 – Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10224.htm>. Acesso em: 16 maio
2021.
239
Embora a legislação tenha excluído o conceito, ainda é comum que o caráter e o histórico sexual
da vítima sejam questionados a fim de estabelecer que, de alguma forma, ela contribuiu para o crime.
Um exemplo disso é o julgamento em que a blogueira Mariana Ferrer figurou como vítima de estupro,
que repercutiu midiaticamente por, dentre outros motivos, o advogado de defesa do réu ter humilhado
a vítima e questionado suas condutas sexuais anteriores como forma de degradar sua imagem e
desmoralizá-la. Ver, por exemplo: GARCIA, Dantielli Assumpção; VENSON, Ana Paula. Entre o
jurídico e o midiático, o estupro culposo: mulher e violência. Leitura. Maceió, vol. 69, mai-ago 2021.
240
BRASIL. Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e
acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e dá
outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2005/lei/l11106.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
80

vítima ou qualquer outra autoridade sobre ela, o que inclui o marido pela primeira
vez expressamente como sujeito ativo do crime de estupro, incluindo uma pena
maior em razão do parentesco. Também revoga incisos do artigo 108 do Código
Penal, que trata de extinção da punibilidade; até 2005, nos crimes sexuais,
extinguia-se a punibilidade do agente pelo casamento com a vítima, bem como pelo
casamento da vítima com outra pessoa, desde que o crime não tivesse sido
cometido por violência ou grave ameaça ou se ela não requisitasse o procedimento
da ação em até 60 (sessenta) dias da celebração do casamento. Assim, até 2005 o
intuito da lei era preservar a virgindade da mulher para garantir o casamento,
entendendo este como o objetivo máximo da sua vida, sem se preocupar com sua
integridade física ou a convivência com alguém que a violentou.
A maior inovação, porém, foi dada em 2009, pela Lei nº 12.015. O Título do
Código que trata dos crimes sexuais, o VI, deixa de trazer os crimes contra os
costumes e passa a ser nomeado “dos crimes contra a dignidade sexual”. O tipo
penal de estupro passa a ser definido no artigo 213 como “constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir
que com ele se pratique outro ato libidinoso”, e a pena foi aumentada para prisão de
seis a dez anos. O artigo 214, que tratava do atentado ao pudor, foi revogado. Na
prática, com a nova definição do crime de estupro e a revogação do artigo 214, não
só a penetração vaginal, mas todos os atos sexuais cometidos à força passam a ser
enquadrados nesse delito, aumentando a proteção legal para mulheres e homens
vítimas de qualquer violência sexual. As qualificadoras inseridas em 2009 se referem
à idade da vítima e ao resultado do crime. Assim, se a vítima tiver entre catorze e
dezoito anos ou o resultado for lesão grave, a pena de prisão deve ser entre oito e
doze anos. Havendo o resultado morte, a pena é de doze a trinta anos 241.
Os tipos penais referentes a atos sexuais cometidos com uso de fraude
(posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude) passam a ser
tratados num único dispositivo, o artigo 215, que passa a determinar o crime de “ter
conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou
outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Assim

241
BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009.
o
Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos
termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de
1954, que trata de corrupção de menores. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
81

como no caso do crime de estupro, a lei não mais diferencia penetração vaginal de
outros atos de violação sexual; nesse sentido, todos os atos sexuais praticados
mediante violência ou fraude passam a ser igualmente amparados pela lei. O crime
também teve a pena de prisão aumentada, para prisão de dois a seis anos.
Até então, os crimes sexuais contra menores de catorze anos não tinham
tipificação específica, e enquadravam-se nos crimes de estupro e atentado violento
ao pudor. Embora a violência fosse sempre presumida, ou seja, o crime sempre
fosse caracterizado, o tipo penal de estupro só protegia as meninas de violação
sexual; os meninos estavam apenas sob a proteção da lei de atentado ao pudor,
com pena inferior a do crime de estupro.
A Lei nº 12.015/2009 tem especial preocupação com crianças e adolescentes,
por isto, cria o Capítulo II, referente aos crimes sexuais contra vulnerável. Os novos
artigos inseridos visam conferir maior proteção legal às crianças e aos incapazes,
imprimindo ainda mais gravidade nos delitos cometidos contra eles, além de
tipificação própria. O artigo 217-A, que trata do estupro de vulnerável, define o delito
como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de catorze
anos”, com pena de oito a quinze anos. A lei determina que também são
considerados vulneráveis quem possuir enfermidade ou doença mental ou que não
possa oferecer resistência, por qualquer outro motivo – como o consumo de bebidas
e drogas. As qualificadoras se referem ao resultado de lesão corporal grave (prisão
de dez a vinte anos) e de morte (prisão de doze a trinta anos).
O crime de corrupção de menores muda sua descrição para “induzir alguém
menor de catorze anos a satisfazer a lascívia de outrem”, com pena de dois a cinco
anos. O crime teve seu escopo diminuído para inserir apenas terceiros, quando não
praticam efetivamente o ato, mas levam a criança a tal. O artigo 218-A e 218-B são
inseridos pela lei de 2009. O primeiro se refere ao crime de satisfação de lascívia
mediante presença de criança ou adolescente, que é definido por “praticar, na
presença de alguém menor de catorze anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção
carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem”, com
pena de dois a quatro anos de prisão. Assim, esse crime tem por escopo proteger as
crianças de atos que não as envolvam efetivamente, mas que elas possam
presenciar. O artigo 218-B, por sua vez, visa proteger menores de dezoito anos e
82

deficientes242 ou enfermos mentais (ou seja, pessoas que não têm capacidade plena
de tomar decisões) do favorecimento de prostituição, quando o incapaz é submetido,
induzido ou atraído para prostituição, bem como quando o ato é facilitado, ou
quando é impedido ou é dificultado seu abandono, com pena de quatro a dez anos
de prisão para quem cometer tais atos. As mesmas penas são devidas a quem
pratica qualquer ato libidinoso com menor de dezoito e maior de catorze anos nas
condições descritas, bem como o responsável pelo local onde se realizem tais
práticas.
A lei de 2009 traz algumas mudanças nas disposições gerais referentes aos
crimes de violação sexual. O artigo 225 passa a determinar que todos esses crimes
passam a ser de Ação Penal Pública Condicionada à representação, de forma que a
vítima não mais tem a responsabilidade de proceder com a queixa, apenas informar
e requerer ao Ministério Público que seja dado prosseguimento. No caso de
menores de dezoito anos e pessoa vulnerável, a ação penal passou a ser
incondicionada, e era processada independentemente da vontade da vítima. São
inseridas as causas de aumento de pena, de ½ quando do crime resulta gravidez e
de 1/6 a ½ quando o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível
que sabe ou deveria saber ser portador.
É apenas em 2009 que a lei determina que os processos referentes a crimes
de violação sexual corram em segredo de justiça. Antes, além do desgaste do
processo, a vítima estava sujeita a estigma social, pois havia a possibilidade de que
outros tomassem conhecimento de sua situação de vítima. A lei ainda altera a Lei de
Crimes Hediondos, inserindo o estupro de vulnerável como tal.
Em 2012, há uma importante modificação no que diz respeito aos crimes
contra vulnerável243. O prazo prescricional dos crimes passa a ser contado da data
em que a vítima completa dezoito anos, e não mais da data do fato. A prescrição,
instituto que determina a extinção da pretensão penal pelo decurso do tempo, muitas
vezes impedia que abusadores de criança não pudessem ser processados. Ao
alterar o termo inicial da prescrição, permitiu-se que crianças violadas pudessem
denunciar o crime, após adquirirem independência e capacidade.

242
Embora o termo seja reconhecidamente excludente, é o utilizado pela legislação.
243
BRASIL. Lei nº 12.650, de 17 de maio de 2012. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 - Código Penal, com a finalidade de modificar as regras relativas à prescrição dos crimes
praticados contra crianças e adolescentes. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12650.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
83

Em 2018, depois de repetidas ocorrências de mulheres sendo alvo de


ejaculação no transporte público, a lei teve que se adequar a estes atos, pois muitos
juízes e promotores achavam exagero enquadrar este ato no crime do estupro; a
caracterização legal do crime também não se efetivava, pois este deve ser cometido
sob violência ou grave ameaça, e estes atos no transporte público muitas vezes
ocorrem sem a vítima sequer perceber. No entanto, a aplicação do dispositivo da Lei
de Contravenções também não parecia adequar-se plenamente à gravidade do
ato244.
Assim, a lei nº 13.718/2018 insere no Código Penal o artigo 215-A, que tipifica
a importunação sexual, definindo-a como “praticar contra alguém e sem a sua
anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou de terceiro”,
com pena de um a seis anos. Assim, as condutas sexuais praticadas na presença de
alguém, como exibicionismo e ejaculação em terceiros estão coibidas pela
legislação penal. O artigo da Lei de Contravenções é revogado, deixando o ato de
se configurar como contravenção e passando a ser efetivamente um crime245.
A referida faz ainda outras modificações no Código Penal. No crime de
estupro de vulnerável, é acrescentado um parágrafo deixando claro que o crime se
configura independentemente do consentimento da vítima, e mesmo que ela já
tenha mantido relações sexuais antes. Por mais que se inicie a vida sexual cada vez
mais cedo, muitos adultos se aproveitam da ingenuidade da vítima, que muitas
vezes não percebe a violência, sentindo-se lisonjeada pela atenção de uma pessoa
mais velha. Embora crianças e adolescentes possam entender que querem tal
relacionamento, é responsabilidade do adulto proteger a criança de atos que
possam prejudicá-la.
A lei de 2018 também tipifica a divulgação de cena de estupro, de sexo ou de
pornografia, buscando coibir as redes de pedofilia online e a prática conhecida como
revenge porn, que consiste na distribuição ou divulgação de imagens de nudez a fim

244
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais, artigo 61.
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3688-3-outubro-
1941-413573-publicacaooriginal-1-pe.html>.Acesso em: 16 maio 2021.
245
BRASIL. Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação
de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a
liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena
para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro
corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das
Contravenções Penais). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/lei/L13718.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
84

de humilhar a vítima. O artigo 218-C define o crime por uma série de ações, como
“oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir,
publicar ou divulgar, por qualquer meio” foto, vídeo ou registro audiovisual que
retrate ou faça apologia a estupro e estupro de vulnerável, bem como de sexo,
nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima. O crime tem como causa de
aumento de pena, de 1/3 a 2/3, se o crime é praticado por quem mantém ou tenha
mantido relação com a vítima, a fim de se vingar ou humilhá-la (revenge porn). O
parágrafo 2º traz a excludente de ilicitude a fim de não conflitar com a liberdade de
expressão; assim, quando tais atos forem praticados com fins jornalísticos, culturais,
científicos ou acadêmicos, havendo autorização da vítima maior de idade e não
identificando-a, o crime não se configura.
A maior contribuição dessa lei, porém, é a alteração do tipo de ação
processual referente aos processos de abuso sexual. Todos os crimes tipificados
contra a liberdade sexual e contra vulneráveis passam a ser de ação penal pública
incondicionada. Isso significa que independente do status e da vontade da vítima,
todos os crimes sexuais que chegarem ao conhecimento do Ministério Público
devem ser processados.
As disposições gerais também são alteradas. As causas de aumento de pena
passam a ser de ½, quando o crime é praticado por parente ou pessoa de confiança
ou autoridade sobre a vítima, e de 1/3 a 2/3 no caso de concurso de pessoas ou da
prática chamada de estupro corretivo, quando a violência sexual tem o intuito de
coibir ou controlar o comportamento sexual e social da vítima. As causas de
aumento de pena quanto ao resultado passam a ser de ½ a 2/3, quando do crime
resulta gravidez, e de 1/3 a 2/3 quando há transmissão de doença venérea, ou
quando a vítima é idosa ou pessoa com deficiência.
Também em 2018, a lei nº 13.722 reconhece a violação da intimidade da
mulher como violência, criminalizando tal ação como violência psicológica a
enquadrar-se na Lei Maria da Penha. O registro não autorizado de cena de nudez ou
ato sexual passa a ser crime, inserido no artigo 216-B do Código Penal,
independente de disponibilizar para terceiros (o que configura outro crime). O tipo
proíbe as ações de “produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio” ato
sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado, sem autorização da vítima. No
85

mesmo tipo incorre quem realiza montagem para inserir pessoa nestes atos. A ideia
é que a vida sexual de alguém é privada e não deve sofrer violações 246.
Assim, pode-se afirmar que a legislação brasileira referente a estupro e
violência sexual apresentou evolução e, principalmente após a Constituição de 1988,
passa a incluir a mulher como figura plena de direitos humanos, protegendo sua
integridade sexual e física com uma legislação abrangente e que adequa-se
razoavelmente à realidade social.

3.2 DEFINIÇÃO DE ESTUPRO

O estupro, embora seja um crime, ainda é um assunto pouco debatido como


tal. Em primeiro lugar, ainda prevalece no imaginário popular a noção de que o
estuprador é portador de uma patologia mental ou profunda degeneração moral 247,
ainda que as estatísticas demonstrem que esta é uma falácia. Em segundo lugar,
por tratar-se de um crime que normalmente não é cometido na presença de outras
pessoas, não tem testemunhas, colocando a palavra da vítima contra a do agressor,
o que nos leva ao terceiro ponto: é o único crime no qual a vítima é culpabilizada
pelo que ocorre com ela, bem como a violência sofrida é questionada, e é o único
crime de violência em que se espera que a vítima apresente resistência, mesmo que
isso coloque sua vida em risco248.
Surge, ainda, um quarto motivo. Por tratar-se de um crime de violência que é
praticado, na maioria das vezes, contra as mulheres, não recebe a devida atenção;
afinal, o modelo protetivo do Estado foi feito para garantir a propriedade masculina,
como visto no capítulo 1. Assim, este crime bárbaro permanece não apenas impune,
mas como uma prerrogativa masculina que funciona como uma arma, mantendo as
mulheres intimidadas e sob coerção do poder dos homens enquanto fraternidade 249.

246
BRASIL. Lei nº 13.722, de 19 de dezembro de 2018. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de
2006 (Lei Maria da Penha), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para
reconhecer que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar e para
criminalizar o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de
caráter íntimo e privado. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Lei/L13772.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
247
Essa teoria foi formulada por Krafft-Ebing, pioneiro no estudo das desordens sexuais.
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p. 11.
248
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
360.
249
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
14.
86

Como já mencionado anteriormente, as mulheres não eram sujeitos de direito


até muito recentemente. A mulher não era vista como uma pessoa, mas sim como
uma coisa, uma propriedade do homem que possuía o seu controle, sendo o valor
desse bem medido pela castidade e mantido pela monogamia. Tendo isso em
mente, é interessante observar brevemente o histórico do crime de estupro. A
cultura hebraica250 determinava que a mulher casada que fosse estuprada deveria
ser apedrejada até a morte, pois compartilhava a culpa do que houve com ela; do
mesmo modo, a virgem que foi estuprada dentro da cidade, pois se entendia que
caso ela tivesse resistido e gritado, teria sido resgatada. A virgem que fosse
estuprada nos campos, onde ninguém pudesse ouvi-la, era levada a se casar com o
estuprador, que devia uma compensação ao pai da vítima por ter roubado dele o
valor do seu bem251.
Com a evolução social e a aquisição de prestígio entre as mulheres, o Talmud
(livro de costumes e cultura dos hebreus) não mais ordenava que a vítima se
casasse com seu estuprador, podendo ela mesma receber a compensação
financeira caso tivessem algum nível de independência, mas ainda assim, para a
caracterização do delito, deviam ser virgens. Foi apenas no século XIII, na
Inglaterra, que primeiro se reconheceu que forçar mulheres não-virgens ao sexo
também era crime, punindo o criminoso independente do status da vítima. Só a partir
daí entende-se o estupro como um problema estatal, independente de
características da vítima252.
Um recurso importante para entender as dimensões e as motivações do
estupro é observar seu uso sistemático como arma de guerra. Embora atualmente
seja um crime de genocídio sob as regras internacionais que regulam as guerras, foi
intensamente utilizado como arma de dominação. O próprio machismo das
instituições militares demonstra que as mulheres são secundárias aos objetivos dos
homens.
O estupro na guerra é praticado, em sua maior parte, pelos vitoriosos. A ideia
de que “o espólio pertence aos vencedores”, nessa lógica, estende-se aos corpos
das mulheres cujo povo foi vencido. O estupro é considerado uma recompensa,

250
Essa cultura é particularmente influente no comportamento social ocidental, já que embasa os
valores morais do cristianismo, cuja doutrina permeia o campo cultural.
251
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
20.
252
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
30.
87

parte do sucesso pela batalha253. Além do triunfo, no entanto, o estupro também visa
estabelecer um padrão de terror e subordinação, intimidando e desmoralizando o
lado perdedor254. Assim, fica claro que o estupro não é exatamente sobre desejo
sexual, pois prostitutas costumam estar disponíveis em grandes números nas
proximidades de acampamentos militares 255. É curioso notar que embora as
mulheres sejam as violentadas, os homens da parte vencida tomam essa violência
como sua, pois em sua visão são suas mulheres, suas propriedades que foram
violadas. O estupro das mulheres viola o conceito de poder e propriedade dos
homens, que veem sua masculinidade afetada pela incapacidade de impedir o
ato256.
Assim, a cultura da violência é importante para entender o estupro. A
violência é um recurso social aceitável para a resolução de diversos conflitos; mais
que isso, as demonstrações de violência e força são características extremamente
valorizadas como masculinas, assim como a passividade e aceitação são
características tidas por femininas. Brownmiller faz um comparativo, situando o
estupro entre a agressão e o assalto. O estupro seria, ao mesmo tempo, um dano
físico infligido a outrem, como a agressão, e apropriação da propriedade de outrem,
como o assalto. Nessa perspectiva, a mulher é vista pelo estuprador tanto como
uma pessoa desprezível, como uma propriedade desejada 257.
Embora o conhecimento quanto ao efeito que a violência sexual traz às
vítimas e à sociedade seja amplo, os estereótipos sobre o estuprador continuam em
voga: ou ele é vítima de uma mulher que mudou de ideia, ou que ele é um homem
frustrado sexualmente, ou que ele é um pervertido ou doente mental; de forma que
assume-se que o impulso para o cometimento do crime é sexual. A maioria dos
agressores sexuais não são doentes mentais, mas homens com diversas

253
O estupro de guerra também pode ter dimensões étnicas, a fim de dissolver e exterminar
características genéticas dos povos vencidos, sendo, além de uma violência contra as mulheres, um
instrumento de limpeza étnica e extermínio de povos considerados inferiores. Ver, por exemplo:
PERES, Andréa Carolina Schvartz. Campos de estupro: as mulheres e a guerra na Bósnia.
Cadernos Pagu. Campinas, vol. 37, dez 2011.
254
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
37.
255
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
93.
256
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
38.
257
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
186.
88

dificuldades psicológicas e de relacionamentos próximos com outras pessoas.


Assim, o impulso primário não é sexual, mas de raiva ou em busca de poder 258.
Buscando entender a dinâmica psicológica dos homens que cometem
violência sexual, um dos primeiros estudos sobre o tema demonstra que em todos
os estupros há três estímulos diversos, raiva, poder e sexualidade, que se mesclam
no ato e, dependendo da predominância de um deles, há três tipos de estupro: o
estupro movido por raiva, na qual a sexualidade é um ato de hostilidade; o estupro
motivado por poder, no qual a sexualidade é uma expressão de conquista; e o
estupro sádico, no qual a agressão e a dominação são erotizados. Mas a maioria
dos estupros é movida por sentimentos de raiva e dominação; 55% são motivados
por impulsos de dominação, 40% por raiva e apenas 5% por razões sádicas259.
Assim, fica claro que a motivação principal é, raramente, primariamente sexual – na
verdade, a sexualidade é o instrumento usado para outros fins.
O estupro movido por raiva tem como característica a brutalidade física; além
da violência sexual, há violência física e verbal. O homem que comete esse tipo de
estupro entende que essa é a pior ofensa que ele pode cometer contra outra pessoa
e, no intuito de humilhá-la ainda mais, frequentemente nesse tipo de estupro a vítima
é forçada a suportar atos sexuais além da penetração que o criminoso considere
particularmente degradantes, como urinar ou ejacular na vítima. O criminoso reporta
não estar excitado inicialmente – para ele, tipicamente, o sexo é visto como sujo, por
isso o usa como arma. Normalmente, esse tipo de estupro dura menos tempo, pois
são mais impulsivos que premeditados. O ofensor não se satisfaz por causa do
sexo, mas sim pela descarga de raiva que o ato proporciona. Esse estuprador se
enxerga como um injustiçado em algum aspecto, e se vinga do que acha que os
outros lhe fizeram, especialmente as mulheres, de forma aleatória; a vítima é um
objeto contra o qual ele descarrega sua fúria 260.
O estupro motivado por desejo de poder não tem por intuito ferir a vítima, mas
possuí-la sexualmente, a fim de expressar sentimentos de superioridade, força,
controle e capacidade; a agressão física pode ser usada para dominar a vítima, mas
a força usada é apenas a necessária para concluir o objetivo de submetê-la
258
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
Chapter 1.
259
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
p. 58.
260
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
p. 13-25.
89

sexualmente. Esses ofensores têm pensamentos obsessivos sobre conquista sexual


e estupro, e o ato é uma mistura de excitação, ansiedade, prazer antecipado e
medo. Tipicamente, eles fantasiam sobre dominação sexual, mas de uma maneira
em que a mulher também deseje o mesmo, de forma que eles encontram pouca
satisfação no estupro e tendem a se tornarem estupradores repetitivos, procurando
a vítima correta, que satisfaça suas fantasias. Esses estupros são premeditados ou
de oportunidade, as vítimas sendo escolhidas por disponibilidade, acessibilidade e
vulnerabilidade. Esse estuprador frequentemente nega o estupro, pois ele precisa
acreditar que a vítima quis e gostou do sexo, refletindo sua fantasia de conquista
sexual. Uma das dinâmicas desse estupro é a reafirmação da masculinidade; a
vítima representa tudo que o ofensor despreza em si (fraqueza, feminilidade), e o
estupro é um ato buscando reafirmar para si sua virilidade e capacidade sexual. O
gatilho para o cometimento desse tipo de estupro pode ser a experiência de ser
desafiado por uma mulher, ou ameaçado por um homem, algo que afete sua
autoestima. Assim, sua intenção é validar sua masculinidade 261.
O estupro sádico é aquele no qual a agressão é erotizada; esse ofensor tem
prazer na angústia, sofrimento e vulnerabilidade da vítima, e frequentemente
envolve atos de tortura, como mordidas, queimaduras com cigarro e flagelo. Em
alguns casos, pode não incluir os órgãos sexuais do agressor, mas os da vítima são
os focos específicos de violência. Prostitutas ou mulheres que os agressores
entendam como promíscuas são as vítimas preferenciais, mas outras que se
pareçam com sujeitos desprezados pelo agressor podem ser escolhidas. O ataque é
premeditado e planejado. A excitação é associada com a imposição de dor, por isso
para alguns a própria agressão é satisfatória, enquanto para outros é uma preliminar
para a atividade sexual. Eles se sentem poderosos com a agressão, e isso é o que
os deixa excitados sexualmente262.
Nesse sentido, o estupro pode ser visto, na maioria das vezes, como um
exercício de poder e de raiva. Assim, os estupros grupais são antes de tudo
relacionamentos entre os homens que praticam o ato, um laço construído com o
intuito de humilhar a vítima; o estímulo é, primordialmente, demonstrar o poder

261
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
pp. 25-44.
262
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
pp. 44-58.
90

masculino diante de outros homens, uma exibição de masculinidade263. Outro


exemplo são os atos extravagantes no ato do crime, como a inserção de objetos na
vagina da vítima. A estimulação não é sexual, mas com o propósito de humilhar e
diminuir ainda mais a vítima264.
Há também homens que estupram mulheres que não são heterossexuais a
fim de “consertar” o desvio que entendem que elas têm 265 – afinal, para a
masculinidade, é inadmissível que as mulheres, pelo motivo que for, não queiram se
relacionar com homens. Ainda, existem os que não se conformam com a crescente
independência das mulheres, e utilizam a violência a fim de mantê-las submissas266.
Estes argumentos ainda são largamente aceitos e reproduzidos pela sociedade.
O estupro, para a vítima, é um ato de violência, assim como para os homens
é um ato de dominação, de demonstração de poder – como o sexo. Mas porque o
Estado e a legislação são formados pelo ponto de vista masculino, o estupro foi, por
muito tempo, definido pela penetração. Do ponto de vista masculino, apenas a
penetração tem capacidade de violar a integridade corporal de uma pessoa267, de
forma que este é o ato que demonstra que houve violência 268.
Quanto à força ou a coerção empregadas no ato, não são elas que
diferenciam o sexo do estupro, pois, na perspectiva masculina, dominação e
violência são partes do ato sexual. E porque a dominação também permeia o tecido
social, o consentimento, que é o que diferencia um ato do outro, não é livre
simplesmente porque as condições que determinam o poder não são iguais. “Sexo

263
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
197-194.
264
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
196.
265
Prática conhecida como “estupro corretivo”.
266
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 287.
267
Um exemplo disso é que um dos principais problemas dentro dos presídios é o estupro dos presos
por parte de outros homens. É um exercício de poder que coloca o preso mais fraco numa situação
inferior, ao ser forçado ao papel que seria de uma mulher. Por outro lado, os criminosos sexuais
costumam ser segregados na prisão, a fim de preservar sua integridade corporal dos outros presos,
já que estes teoricamente possuem um rígido código de ética contra abusadores. O tratamento dos
criminosos em relação aos estupradores é ainda mais contraditório quando se leva em conta, por
exemplo, casos de estupros coletivos cometidos por criminosos organizados no Brasil. Ver: ARAÚJO,
Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020, Capítulo 3;
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975,
Chapter 8.
268
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 173.
91

forçado como parte da sexualidade não é excepcional nas relações entre os


gêneros, mas o que constitui o significado de gênero.”269 (Tradução da autora)
A dominação faz parte da experiência sexual para os homens, assim como a
submissão é a parcela imposta às mulheres. Para muitos homens, encontros
violentos e forcados são vistos como sexo; o que define o estupro é como a vítima
se sentiu. Muitos estupradores não se veem como tal e entendem que a vítima
gostou do ato. É evidente que a maioria sabe o que estão fazendo, mas as mulheres
são constantemente violadas por atos que, para os homens, são apenas sexo 270.
A maioria dos homens aprende sobre sexo com a pornografia, uma indústria
milionária que influencia o comportamento sexual de muitos homens e mulheres. A
pornografia serve para intensificar a dominação masculina, estendendo-a ao ato
sexual, tornando a mulher um objeto para o prazer masculino; sexo forçado e
degradação são práticas comuns. A dominação e a subordinação são erotizadas,
tornando-se parte da construção de gênero de masculino e feminino. A violência se
torna sexual; a hierarquia de gênero também é sexual 271.
As mulheres são espancadas, violentadas e machucadas, mas isso é
permitido, pois a atriz, tecnicamente, consentiu, e, inclusive, aparentou gostar do
ato. A pornografia inventou uma nova sexualidade para a mulher, como ela deve se
portar no sexo e o que deve lhe agradar, no interesse do que agrada aos homens. A
liberdade de expressão da pornografia silencia a liberdade de expressão das
mulheres, que são violadas e devem encontrar prazer nisso como forma de
liberação sexual. A pornografia retira qualquer poder que a mulher tenha no ato
sexual e direciona ao homem, definindo o que uma mulher é em termos masculinos;
as mulheres na pornografia existem apenas para dar prazer aos homens 272.
A pornografia ensina aos homens o que é sexo, ao mesmo tempo em que
reflete o status feminino na mente dos homens. Na pornografia, as mulheres
aparentam sentir prazer com humilhação e dor. As mulheres são desumanizadas na
pornografia, mas mais que isso, é feito com elas o que é mais degradante e é isso

269
“Forced sex as sexuality is not excepcional in relations between the sexes but constitutes the
meaning of gender.” MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge:
Harvard University Press, 1889, p. 178.
270
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 180.
271
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 201.
272
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 209.
92

que os homens entendem como prazeroso. A grande questão sobre a pornografia é


que o que é erótico, sexual, é a subordinação feminina. A violência, a dominação e a
humilhação são sexuais. É por isso que se torna equivocado falar que estupro é
sobre violência, e não sobre sexo. Estupro é exatamente o que os homens
enxergam como sexual e excitante273.

O estuprador se excita com a violência dos seus atos e com a capacidade


de subjugar a vítima. É dominar o outro que produz a excitação. Em última
instância, o ato acaba trazendo satisfação sexual para o criminoso, mas
esse prazer é causado muito mais em função da agressividade. Na mente
do estuprador, a sexualidade e a violência caminham juntas, e uma não
existe sem a outra.274

Assim, o estupro é sobre violência, mas também é sobre sexo, pois poder e
dominação são determinantes nos dois atos, e assim estes se confundem. Desta
forma, muitos estupradores se convencem de que a vítima exagerou, entendendo
que a resistência ou a negação foram uma tentativa de conquista. Além disso,
entendem que não são criminosos, culpando, por vezes, a vítima pela falta de
controle a qual eles atribuem o crime. Mais ainda, os criminosos buscam ter um
comportamento exemplar em outras esferas da vida, afinal um bom profissional ou
familiar dificilmente seria entendido como um criminoso violento275. Quando
enfrentam acusações, negam o fato, ou, havendo prova física, afirmam que a
relação foi consensual276.
Os mitos sobre o estupro ainda são recorrentes, embora a sociedade tenha
cada dia mais acesso à informação. São comuns noções de que a mulher “estava
pedindo”, ou que não se esforçou o suficiente para evitar a violência, ou que se ela
tivesse resistido e lutado o bastante o crime não teria ocorrido. Tais noções
descredibilizam as mulheres, sendo um poderoso mecanismo para manter o estupro
invisível, um artefato do patriarcado. Nas palavras de Brownmiller, “porque estupro é
um ato que os homens cometem em nome da sua masculinidade, é de seu interesse

273
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 211.
274
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 288.
275
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 286.
276
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 53.
93

acreditar que as mulheres também desejam que o estupro seja cometido, em nome
da feminilidade.”277 (Tradução da autora)
Outro estereótipo sobre estupro que permanece no imaginário popular é que
o estupro é cometido por um homem desconhecido, quando se está em locais
perigosos. Na verdade, a maioria dos estupros acontece dentro de casa, e o
perpetrador é pessoa conhecida da vítima. No entanto, nesses casos, o status de
vítima fica prejudicado, obscurecido. Ela é vista, muitas vezes inclusive pelos
representantes do Estado (juízes, policiais), como alguém que mudou de ideia
depois do ato e busca prejudicar um homem, não recebendo o tratamento
adequado278. A este respeito, mais de 90% das cidades brasileiras não possuem
uma Delegacia da Mulher, que é um dos poucos lugares onde a violência sexual e a
palavra da vítima são levadas a sério 279.
Uma terceira percepção equivocada que vale à pena ser esclarecida é a ideia
de que a maior parte dos estupros são denúncias falsas. A mentalidade dos agentes
estatais é muito permeada pelo pensamento patriarcal como todo o resto da cultura
moderna, de forma que estes tendem mais a se identificar com o agressor, que é um
homem, do que com a vítima, bem como a entender atos de violência como
simplesmente sexo. Dessa forma, muitas vezes as mulheres são humilhadas ao
denunciar um estupro. São vistas como mentirosas, e seu passado é trazido à tona
a fim de desacreditá-las. Sua vida sexual será investigada, com intuito de provar que
é uma mulher promíscua, não tendo valor moral e, portanto, não merece proteção
legal280. Conforme Mackinnon:

A crença profunda dos homens de que as mulheres inventam acusações de


estupro depois de consentirem com o sexo faz sentido sob essa luz. As
acusações são falsas porque, para eles, os fatos descrevem sexo.
Interpretar tais eventos como estupros distorce a experiência deles. Uma
vez que eles raramente consideram que sua experiência dos fatos é
qualquer coisa além da realidade, eles só podem explicar a versão das
mulheres como maliciosamente inventada.281 (Tradução da autora)

277
“Because rape is an act that men do in the name of their masculinity, it is in their interest to believe
that women also want rape done, in the name of the femininity.” BROWNMILLER, Susan. Against our
will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p. 312.
278
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
352.
279
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 12.
280
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p.
374.
281
“Men’s pervasive belief that women fabricate rape charges after consent to sex makes sense in this
light. To them, the accusations are false because, to them, the facts describe sex. To interpret such
94

O que é chamado de sexualidade é tão profundamente definido pelo


pensamento masculino que, por isso, para uma mulher é muito difícil em algumas
ocasiões entender que o que houve com ela não foi sexo e sim violação. Quando o
agressor é uma pessoa próxima, ou quando a mulher entende que se inseriu em
situação de vulnerabilidade (como beber em excesso), bem como quando não há
penetração, as mulheres tendem a minimizar o ato e a violência sofrida. Estima-se
que, por todos os fatores apresentados, apenas 10% dos casos de estupro sejam
denunciados no Brasil; os principais motivos alegados pelas vítimas são os
sentimentos de medo, vergonha e culpa, além da dependência financeira, quando a
vítima e o agressor mantém relação282.
Embora não seja o escopo desse trabalho, vale mencionar que a maior parte
das vítimas de estupro no Brasil, atualmente, são meninas menores de idade.
Meninos também são vítimas, em menor número. Os agressores são, na maior parte
das vezes, conhecidos das vítimas e de suas famílias 283. Esses dados demonstram
tanto que o vínculo entre agressor e vítima oferece oportunidades para a violência,
tanto que o estupro relaciona-se profundamente com dominação e poder, quando a
maior parte das vítimas são pessoas vulneráveis. “Estupro é um crime de
oportunidade, e oportunidade é mais frequente num ambiente familiar.” 284 (Tradução
da autora)

Essa necessidade de demonstração de poder está na raiz de todos os


estupros. O maior prazer do estuprador é a dominação, que é feita por
intermédio do sexo, o que deixa até o prazer com o ato em si em segundo
plano. Isso explica muito a motivação de um estupro, afinal, sexo não é algo
tão difícil assim de se conseguir, principalmente hoje em dia. Portanto, se
fosse só uma busca por prazer sexual, os estupros seriam bem menos
recorrentes e teriam menores índices, mas isso infelizmente não é o que
ocorre. O que o agressor quer é dominar a vítima, se sentir mais forte, exibir
que está no controle e, assim, reafirmar a própria sexualidade.285

events as rapes distorts their experience. Since they seldom consider that their experience of the real
is anything other than reality, they can only explain the woman’s version as maliciously invented.”
MACKINNON, Catherine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University
Press, 1889, p. 181.
282
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 23.
283
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 27.
284
“Rape is a crime of opportunity, and opportunity knocks most frequently in a familiar milieu.”
BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York: Fawcett, 1975, p. 349.
285
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 69.
95

O senso de controle é exacerbado pela facilidade em manipular uma criança


para manter-se calada, ameaçando-a ou dizendo a ela que ninguém acreditaria no
abuso, o que é facilitado pela relação do agressor com a vítima e sua família.
Embora sejam chamados de pedófilos (transtorno mental que leva adultos a se
sentirem sexualmente atraídos por crianças, que atinge apenas 1% da população), a
grande maioria desses homens simplesmente escolheu a vítima mais fácil de
dominar e manipular286.
Infelizmente, há de se falar da dificuldade que algumas mães têm em
reconhecer a violação feita à criança sob sua responsabilidade 287. Algumas também
sofreram abuso na infância e tendem a naturalizar violências sexuais. O medo de
retaliação, a dependência emocional e ao status familiar influenciam na tomada de
decisões. A dependência financeira é uma questão importante, pois muitas temem
denunciar o companheiro e perder a subsistência. Finalmente, a mentalidade
masculina é tão profunda mesmo nas mulheres, que muitas entendem que tais
atitudes são naturais dos homens e que, como mulheres, devem se sujeitar a
elas288. Todos esses fatores também aparecem quando é a própria mulher que
sofre violência.
No Brasil, nas últimas décadas, tem-se um amplo debate acerca da violência
doméstica, mas a violência sexual permanece pouco comentada por uma série de
tabus. Em 2019, a polícia registrou a ocorrência de 66.348 estupros, ou um estupro
a cada oito minutos, do qual 58,8% das vítimas eram menores de 13 anos, e 85,7%
eram mulheres289.
Em pesquisa realizada em 2016 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
em parceria com o Instituto Datafolha, constatou-se que 85% das brasileiras têm
286
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 90.
287
Embora a responsabilidade da integridade física da criança seja de ambos os pais e de toda a
sociedade, entende-se que a mãe seria a principal responsável por resguardá-la, já que é muito mais
comum que os violadores sexuais sejam homens, e a paternidade não os exclui como possíveis
abusadores. A questão é particularmente complexa quando envolve casais separados, já que pode
haver tanto falsas acusações de estupro de vulnerável motivadas por alienação parental, quanto
alegações de alienação parental em acusações verdadeiras de estupro. Ver, por exemplo:
KRISTENSEN, Christian Haag; DIAS, Maria Berenice. Incesto e alienação parental: realidades que
a justiça insiste em não ver. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
288
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 139.
289
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segurança em Números, 2020. Disponível em:
<https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/infografico-2020-final-100221.pdf>.
Acesso em: 16 maio 2021.
96

medo de sofrer violência sexual, demonstrando que a violação sexual é uma


preocupação constante para as mulheres, em especial as mais jovens. Por outro
lado, 42% dos homens e 32% das mulheres entendem que o comportamento da
vítima influencia na agressão, concordando com a afirmação de que “mulheres que
se dão ao respeito não são estupradas”. Ainda, 91% concordam que se deve
ensinar aos meninos a não estuprar, o que demonstra uma certa contradição; as
pessoas sabem que o culpado do estupro é o homem, mas insistem em justificativas
para minimizar a agressão290.
A pesquisa também demonstrou que 50% da população não acredita que a
Polícia Militar esteja preparada para atender vítimas de violência sexual. A
porcentagem aumenta na população com maior escolaridade, bem como na que
vive em cidades com mais de 500 mil habitantes. A maior parte da população (53%)
também entende que as leis brasileiras protegem estupradores 291. Esses dados
demonstram que a maior parte da população não se sente segura em procurar a
Polícia em casos de violência sexual, por isso estima-se que o número de estupros
ocorridos é muito maior do que o de crimes denunciados.
Embora muitos homens minimizem o estupro, as consequências para as
vítimas são profundas. Em primeiro lugar, há o medo de retaliação, bem como do
julgamento da sociedade, além da culpa e da vergonha; mas as consequências
físicas são igualmente graves. Além da gravidez, consequência provável da relação
forçada, é possível que a vítima seja contaminada com alguma IST (infecção
sexualmente transmissível). A Lei nº 12.845/2013 prevê que vítimas de estupro
devem receber atendimento emergencial, integral e multidisciplinar em qualquer
hospital da rede pública de forma gratuita, incluindo tratamento para possíveis

290
Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Datafolha Instituto de Pesquisa.
#APolíciaPrecisaFalarSobreEstupro: Percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres
vítimas nas instituições policiais, 2016. Disponível em:
<https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/a-policia-precisa-falar-sobre-estupro-percepcao-
sobre-violencia-sexual-e-atendimento-a-mulheres-vitimas-de-estupro-nas-instituicoes-policiais/>.
Acesso em: 16 maio 2021.
291
Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Datafolha Instituto de Pesquisa.
#APolíciaPrecisaFalarSobreEstupro: Percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres
vítimas nas instituições policiais, 2016. Disponível em:
<https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/a-policia-precisa-falar-sobre-estupro-percepcao-
sobre-violencia-sexual-e-atendimento-a-mulheres-vitimas-de-estupro-nas-instituicoes-policiais/>.
Acesso em: 16 maio 2021.
97

lesões, atendimento psicológico, bem como profilaxia para ISTs e para evitar a
gravidez292.
A lei prevê assistência médica para contenção de danos, visando evitar
doenças, bem como autoriza o aborto em caso de estupro, independentemente da
escolha da vítima de informar ou não o crime aos órgãos policiais. Assim, o
problema não está na legislação, mas na sua efetiva aplicação. São poucos
hospitais habilitados para lidar com questões de violência sexual 293, geralmente em
grandes centros urbanos, deixando as vítimas praticamente desassistidas. Muitos
médicos ainda se recusam a fazer abortos, mesmo quando permitido pela
legislação, por questões religiosas ou morais acerca do aborto 294. Em que pese toda
a dificuldade que as vítimas de violência encontram para efetivar seus direitos,
existem diversos projetos no Senado e na Câmara visando restringir ainda mais o
direito ao aborto295.
Quanto às sequelas emocionais, a mais comum é o TEPT (Transtorno de
Estresse Pós-Traumático), transtorno psicológico que acomete vítimas de eventos
traumáticos, sendo também muito comum em pessoas que foram à guerra. Os
sintomas mais comuns são depressão, vergonha, culpa, raiva, problemas de
socialização, problemas sexuais e abuso de álcool e drogas. Outro sintoma muito
comum é a chamada “evitação”, na qual as vítimas rejeitam qualquer situação que
as relembre do trauma. Assim, muitas vítimas têm a sua vida sexual interrompida,
pois evitam qualquer contato que possa lembra-las da violência sofrida.296 Há relatos
de mulheres que foram violentadas por intermédio de sexo oral, e, por isso, evitam
idas ao dentista, colocando sua saúde bucal em risco a fim de evitar a situação de
vulnerabilidade297.

292
BRASIL. Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral
de pessoas em situação de violência sexual. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm>. Acesso em: 16 maio 2021.
293
Como o Hospital Pérola Byington, em São Paulo (SP), referência em saúde da mulher. Ver:
<http://www.hospitalperola.com.br/>. Acesso em: 16 maio 2021.
294
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 45.
295
Como, por exemplo, o Projeto de Lei 788/2019. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192070>. Acesso em:
16 maio 2021.
296
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: a cultura do estupro no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2020,
p. 138.
297
Ver ABDULALI, Sohaila. Do que estamos falando quando falamos sobre estupro. São Paulo:
Vestígio, 2019, p. 122 e ss,
98

Outro efeito emocional que pode ocorrer à vítima de abuso sexual é a


chamada amnésia dissociativa, comum em pessoas que sofreram traumas ou
estresses. Esse transtorno causa perda de memória, muitas vezes acerca dos
próprios eventos traumáticos298. É particularmente importante no crime de estupro,
pois a perda de memória sobre o crime pode gerar incongruência ou ausência de
depoimentos sobre o crime; não havendo acompanhamento psicológico adequado, é
possível que a vítima seja desacreditada pelas autoridades.
Como já mencionado, a grande maioria das vítimas não denuncia as
violências sofridas. Além do medo, da vergonha e da culpa, na maior parte dos
casos há dificuldade de classificar o sexo forçado como estupro, devido à
proximidade entre as vítimas. O estereótipo do crime de estupro não prevê a
violência sofrida por pessoas próximas, e a própria sociedade é relutante em
entender. Mas por ser este o caso da maior parte dos casos de violência sexual, é
necessário analisa-lo detalhadamente.

3.3 ESTUPRO MARITAL

Assim como no caso da violência doméstica, o termo “estupro marital” será


utilizado para identificar agressões sexuais dentro de relacionamentos amorosos ou
sexuais, independentemente do status de relacionamento dos sujeitos envolvidos.
Assim, o termo será utilizado tanto para agressões sexuais dentro do casamento,
como num namoro ou relacionamento estável. A ideia que define o termo é o
estupro dentro de um relacionamento de confiança, permeado por relações de
poder, e não atrelado a estado civil. Nesse trabalho, o enfoque é o estupro em
relacionamentos heterossexuais, pois especialmente permeados por relações de
poder.
Embora as mulheres tenham sido excluídas da categoria de indivíduos
naturalmente livres e iguais, e assim, incapazes de consentir, foram apresentadas
como pessoas que sempre consentem, e mesmo o seu não consentimento expresso
é interpretado como consentimento. Assim, mesmo vistas como incapazes de
desenvolver as capacidades para a vida pública, seu consentimento na vida privada

298
SPIEGEL, David. Amnésia dissociative. Manual MSD – Versão saúde para a família, mar 2019.
Disponível em: <https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-de-sa%C3%BAde-
mental/transtornos-dissociativos/amn%C3%A9sia-dissociativa>. Acesso em: 05 maio 2021.
99

passa a ter importância aparente, mesmo que ele tenha sido negado. Mais do que
isso, pelo contrato de casamento, o consentimento da esposa passa a ser
presumido socialmente299.
Por muito tempo, o crime de estupro era um crime contra a propriedade do pai
ou do marido, de forma que seria impossível o marido violar um bem que era seu. A
definição tradicional de estupro nas leis da Inglaterra referia-se a sexo não previsto
em lei contra a vontade da mulher, de forma que qualquer relação sexual dentro do
casamento, mesmo forçada, era prevista em lei e excluída da definição de estupro.
Dito de outra forma:

As regulações tradicionais do sexo expressam a noção moralista familiar de


que a única conduta sexual aceitável é o sexo que ocorre dentro do
casamento heterossexual. Regulações legais tradicionais tratam o sexo no
casamento como qualitativamente diferente de outras condutas sexuais e
trata até sexo consensual fora do casamento, como adultério e prostituição,
como ilícito e merecedor de condenação legal.300 (Tradução da autora)

Assim, no regime da common law, três teorias foram amplamente utilizadas


para excluir atos sexuais do casamento do crime de estupro. A primeira teoria, a da
propriedade, enxerga a mulher como propriedade do marido, de forma que ele não
poderia ser acusado por ela de violar a própria propriedade. A segunda teoria, da
cobertura, determina que a mulher tenha sua identidade abolida ao casar-se, e que
é substituída, ou coberta, pela identidade do marido. Como eram vistos como a
mesma pessoa, e o processo decisório pertencia ao homem, não havia a
caracterização do crime. Finalmente, a teoria do consentimento irrevogável
determina que ao se casar, a mulher consente em relações sexuais com o marido, e
esse consentimento não pode ser revogado 301. Essa teoria relaciona-se fortemente
com a ideia de que o patriarcado busca o controle sexual das mulheres por meio do
casamento. Essas teorias foram por muito tempo adotadas pelo Brasil, ainda que
não nominalmente.

299
PATEMAN, Carole. Women and consent. In: Political Theory, vol. 8, nº 2, 1980, pp. 149-168.
300
“Traditional sex regulations express the familiar moralistic notion that the only sexual conduct that
is acceptable is sex that occurs within heterosexual marriage. Legal regulations in the traditional mode
regards sex within marriage as qualitatively different from other sexual conduct and treats even
consensual nonmarital sex, such as adultery and commercial sex, as illicit and deserving of legal
condemnation.” CHAMALLAS, Martha. Introduction to feminist legal theory. New York: Wolters
Kluwer Law & Business, 2013, p. 286.
301
ANDERSON, Michelle J. Marital rape laws globally: rationales and snapshots around the world. In:
YLLO, Kersti; TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and social change in
global context. New York: Oxford University Press, 2016, p. 178.
100

Essas teorias adotam um ponto de vista liberal, visando regular a propriedade


masculina, sem levar em consideração a integridade física das mulheres. Sob esse
enfoque, a conduta sexual pertence à vida privada dos cidadãos e o Estado não
pode interferir. O sistema de acesso sexual determina que os homens devem iniciar
o encontro e a mulher está numa posição passiva de aceitação. Além disso, levando
em consideração a vulnerabilidade feminina à violência, o consentimento, na prática,
torna-se aquiescência ou não resistência. Dado o sistema no qual as partes são
inseridas, que torna o acesso ao poder desigual, o consentimento é viciado 302.
Os valores sociais, costumes, religião e a valorização do casamento como
instituição fazem com que o estupro marital ainda seja aceitável em muitos lugares.
Algumas mulheres entendem que a relação sexual forçada no casamento não pode
ser estupro, pois faz parte do seu papel permitir que o homem satisfaça seus
desejos sexuais; outras entendem que é uma parte do casamento que as mulheres
devem suportar. Assim, estupro marital é uma categoria da sociedade ocidental, em
razão das ideias de individualidade, consentimento e intimidade. Até pouco tempo
atrás, o estupro era uma violação da castidade, e não do consentimento, de forma
que a ideia de que o consentimento da mulher é necessário no casamento não é
compartilhada transculturalmente303.
Os estudiosos do tema definiram três espécies de estupro dentro de uma
relação amorosa. O primeiro é o estupro do espancamento (battering rape), no qual
o sexo forçado é mais um aspecto de violência física e psicológica contra a
companheira. Esse estupro acontece como uma continuação das agressões físicas,
com as vítimas ameaçadas pelos maridos se não cederem, ou forçadas a isso como
um meio imposto pelo agressor para fazer as pazes – entende-se este como o
estupro motivado por raiva. O segundo é o estupro de apenas força, ou sem
agressões físicas (force-only rape, or nonbattering rape), no qual o estupro ocorre
em contextos sexuais específicos – entende-se como o estupro que acontece por
desejo de dominação. A terceira categoria é o estupro obsessivo (obssessive rape),

302
CHAMALLAS, Martha. Introduction to feminist legal theory. New York: Wolters Kluwer Law &
Business, 2013, p. 287.
303
TORRES, M. Gabriela. Reconciling cultural difference in the study of marital rape. In: YLLO, Kersti;
TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and social change in global context.
New York: Oxford University Press, 2016, pp. 9-14.
101

no qual os companheiros têm obsessões sexuais esquisitas e são envolvidos com


pornografia – entende-se como o estupro sádico304.
Embora haja cada vez mais diálogo acerca da violência doméstica, a baixa
visibilidade a agressão sexual dentro do relacionamento deve-se a alguns aspectos.
Existe uma visão patriarcal de que a esposa não pode negar sexo ao marido, por
isso a vítima tem dificuldade de entender a ocorrência do estupro dentro do
casamento; se acontecer no contexto de uma briga ou agressão, ela provavelmente
entenderá o sexo forçado como uma etapa da violência e não como estupro. As
práticas que podem ser consideradas como tal variam de tirar vantagem do acesso
sexual ao parceiro, forçar a vítima a participar de atos sexuais que ela não aceita,
como felação ou sodomia, ou ataques sexuais violentos no contexto de violência
doméstica. Em outros casos, o marido força a esposa a ter relações sexuais com
estranhos305.
A recusa de fazer sexo com o marido, não é em si a razão para os estupros,
mas a maneira como ele entende o sexo e consequentemente essa negação. O
sexo pode ser visto como poder, quando o homem afirma sua dominância por meio
dele; sentir que não tem controle da própria vida pode ser uma razão para
demonstrar poder e força ao infligir sexo forçado contra a esposa. O sexo também
pode ser visto como amor e afeição, quando os agressores igualam ter sexo a ser
amado, e a negação confronta-os com sentimentos de rejeição e de não serem
valorizados; mesmo forçado, o sexo é uma afirmação do seu valor e uma defesa
contra rejeição. O sexo pode ser entendido como virilidade, masculinidade. Esses
homens entendem que ter sexo com a esposa é ser homem, e ao terem o sexo
recusado, sentem-se menos homens. O sexo pode ser enxergado como
recompensa e expressão de aprovação, e quando é negado, entendem a recusa
como punição, por isso usam sexo para punir suas esposas. Finalmente, o sexo
pode ser entendido como uma medida de sucesso do relacionamento e a solução
para todos os problemas; o sexo então é forçado a fim de reafirmar o casamento 306.

304
ADAMS, Carol J. “I just raped my wife! What are you going to do about it, pastor?” The Church and
sexual violence. In: BUCHWALD, Emilie; FLETCHER, Pamela; ROTH, Martha (org.). Transforming a
Rape Culture. Minneapolis: Milkweed Editions, 2005, p. 83.
305
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
pp.174-176.
306
GROTH, A. Nicholas. Men who rape: the psichology of the ofender. New York: Springer, 1979,
pp. 178-179.
102

Existe, ainda, o sexo forçado com finalidade de coagir para a reprodução, e


esse estupro pode acontecer independentemente de violência, como homens que se
recusam a usar preservativo com a parceira ou até mesmo retiram-na secretamente
durante o ato sexual. As vítimas são mais propícias a terem bebês prematuros ou
abaixo do peso, bem como níveis mais altos de aborto. A tomada de controle sobre
o controle anticoncepcional ou a gravidez é retirada da mulher, o que também é uma
forma de violência sexual307.
Os homens que estupram suas esposas usam diferentes táticas para
submeter suas vítimas ao ato sexual, como coerção sexual não-física, ameaça ou
força. As táticas de coerção não-físicas são mais utilizadas do que ameaça ou força,
e são de dois tipos principais, a coerção social ou normativa e a coerção
interpessoal. A coerção social utiliza-se da ideia de que é dever da esposa satisfazer
o marido, e é a mais utilizada. A coerção interpessoal ocorre quando o homem
utiliza-se dos seus recursos de poder para induzir a vítima ao ato, como limitação do
acesso a recursos financeiros ou ameaça aos filhos da vítima, ainda que de forma
implícita. O consentimento ao sexo indesejado também é uma forma de coerção
sexual, e as vítimas acabam cedendo a fim de evitar agressões físicas ou que o
sexo seja forçado308.
O estupro em contexto de relacionamento amoroso é especialmente
traumático para as vítimas, pois há o rompimento da confiança estabelecida entre os
sujeitos, e porque continuam a viver com seus agressores, e eles permanecem
tendo acesso a elas. Muitas mulheres não conseguem de fato falar sobre a violência
sofrida como estupro, pois o estereótipo do crime, que coloca o agressor como um
desconhecido, não se aplica à sua experiência. Assim, muitas mulheres colocam a
violência sexual sofrida como um episódio da violência física, evitando confrontar
sua experiência como um crime sexual do qual foi vítima 309.
As mulheres que são estupradas pelos parceiros têm mais probabilidade de
apresentar transtornos psicológicos, como depressão, ansiedade e estresse pós-
traumático. Além disso, são mais hesitantes em procurar serviços de saúde por uma
307
CAMPBELL, Jacquelyn et all. A Feminist public health approach to marital rape. In: YLLO, Kersti;
TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and social change in global context.
New York: Oxford University Press, 2016, p. 164.
308
RESNICK, Patricia A. et all. A review of marital rape. In: Agression and violent behavior, vol. 12,
2007, pp. 329-347.
309
ADAMS, Carol J. “I just raped my wife! What are you going to do about it, pastor?” The Church and
sexual violence. In: BUCHWALD, Emilie; FLETCHER, Pamela; ROTH, Martha (org.). Transforming a
Rape Culture. Minneapolis: Milkweed Editions, 2005, p. 90.
103

variedade de razões, como o sentimento de vergonha e culpa, bem como por medo
de retaliação do parceiro, lealdade cultural ou familiar ou por não entenderem que
foram violentadas sexualmente e podem necessitar de atendimento médico 310.
Dor pélvica e câncer cervical têm sido associados a experiências constantes
de violência sexual, e a inflamação dos tecidos vaginal e cervical resulta em maior
suscetibilidade à infecção por HIV. Os maridos de mulheres abusadas comumente
mantêm outros relacionamentos sexuais e não aceitam o uso de preservativo;
mulheres que pedem aos companheiros agressivos para usarem preservativo são
mais propensas a serem ainda mais agredidas, e o uso de força normalmente é um
impedimento para o uso. A infecção de AIDS é maior em mulheres com histórias de
violência doméstica, e os índices de violência doméstica são maiores em mulheres
infectadas. Além disso, o estresse a que são submetidas por um longo tempo
desencadeia respostas inflamatórias que impactam no seu sistema imunológico 311.
Os homens que cometem violência sexual são particularmente inclinados a
negar o crime, e isso ocorre com maior intensidade no caso de um relacionamento.
A negação ou minimização do delito são apresentadas através de justificativas,
como que a vítima teria gostado, ou que ela mereceu, ou que pediu por isso. O fim
do relacionamento por vontade da mulher parece ser um importante gatilho para o
cometimento do crime. Homens que violam suas companheiras não possuem
distúrbios ou problemas, ou estão descontrolados; eles buscam impor o controle
através da violência. O estupro num relacionamento amoroso é signatário da lógica
de dominação do patriarcado, na qual é aceitável que o mais forte, o homem,
subordine a parte mais fraca312. A sociedade aceita a vitimização do agressor, que
não é responsabilizado por seus atos e continua praticando-os.
O contexto da sociedade brasileira é extremamente tolerante à violência
doméstica e sexual, especialmente no casamento, em virtude da influência da Igreja
Católica nos valores morais da sociedade. As mulheres são vistas, neste viés, como

310
BERGEN, Raquel Kennedy. An Overview of Marital Rape research in the United States: limitations
and implications for cross-cultural research. In: YLLO, Kersti; TORRES, M. Gabriela (org). Marital
rape: consent, marriage and social change in global context. New York: Oxford University Press,
2016, pp. 19-28.
311
CAMPBELL, Jacquelyn et all. A Feminist public health approach to marital rape. In: YLLO, Kersti;
TORRES, M. Gabriela (org). Marital rape: consent, marriage and social change in global context.
New York: Oxford University Press, 2016, p. 165.
312
ADAMS, Carol J. “I just raped my wife! What are you going to do about it, pastor?” The Church and
sexual violence. In: BUCHWALD, Emilie; FLETCHER, Pamela; ROTH, Martha (org.). Transforming a
Rape Culture. Minneapolis: Milkweed Editions, 2005, p. 92.
104

as causadoras do pecado, e a sua subordinação ao homem como a punição pelos


seus comportamentos mal vistos; de forma que a fim de sua redenção, os
comportamentos recomendados são a submissão e o sacrifício. A moral social as
ensina a se submeterem ao dever do casamento, de forma que entendem que
devem aceitar sempre que o marido quiser sexo, e a noção de indissolubilidade do
casamento perpetua o relacionamento313. Assim, muitas mulheres sequer
conseguem nomear a violência sofrida, e entendem o crime como um acontecido
normal, ao qual devem se submeter em razão do seu gênero.
Alguns indivíduos sequer conseguem entender que estupro dentro do
casamento é um crime, e essa é a modalidade do crime que a sociedade mais
aceita e induz culpabilização da vítima, bem como ideias que apoiam o estupro. A
maior parte do preconceito se deve ao fato da vítima ter prestado consentimento
anteriormente. Assim, há uma ideia cultural de que o estupro dentro do casamento é
menos grave, e que nesses casos a vítima tem culpa sobre o ocorrido. A esposa é
culpada por negar seu dever marital. O marido é visto como o guardião moral da
família, e a sociedade entende que, caso ele interprete que sua esposa tem um
comportamento equivocado, a violência deve ser sancionada a fim de proteger a
moralidade familiar. Também prevalece a ideia de que a família é um âmbito
privado, e que tais práticas devem ser mantidas em segredo e terceiros não devem
intervir. A aceitação social dos valores patriarcais e de estereótipos de gênero
tradicionais mantém a visão de que estupro marital não é crime 314.
A dificuldade de entender a violência sexual como estupro por parte da vítima
é derivada desse preconceito social, Antes de procurar ajuda, a mulher deve
identificar-se como vítima, e esses estereótipos culturais limitam esse entendimento,
o que impede a identificação e notificação desses crimes, invalidando a experiência
traumática das vítimas. O estupro marital é o mais comum dos estupros, o mais
provável de ser cometido repetidas vezes, e também de ser efetivamente
consumado; mas porque a vítima conhece e se relaciona com o criminoso, é menos
provável que ela denuncie315.

313
ADAMS, Carol J. “I just raped my wife! What are you going to do about it, pastor?” The Church and
sexual violence. In: BUCHWALD, Emilie; FLETCHER, Pamela; ROTH, Martha (org.). Transforming a
Rape Culture. Minneapolis: Milkweed Editions, 2005, p. 94.
314
BENNICE, Jennifer A,; RESICK, Patricia A. Marital Rape: history, research and practice. In:
Trauma, Violence & Abuse, vol. 4, nº 3, 2003, pp. 228-246.
315
BENNICE, Jennifer A,; RESICK, Patricia A. Marital Rape: history, research and practice. In:
Trauma, Violence & Abuse, vol. 4, nº 3, 2003, pp. 228-246.
105

4 ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS SOBRE ESTUPRO MARITAL

Neste capítulo, serão analisadas decisões de segunda instância de todos os


Tribunais Estaduais do Brasil, não importando a modalidade recursal. A escolha
pelas decisões de Tribunais se deu por serem decisões que criam jurisprudência e
ultrapassam o processo, formando entendimento sobre o tema. A baixa notificação
do crime de estupro marital fica clara, pois são poucos julgados encontrados que
tratam do tema, de modo que a maior parte deles pode ser analisada. Devido a
maior predominância desses acórdãos em alguns Tribunais, serão analisados, no
máximo, 3 (três) julgados por estado, de acordo com a disponibilidade do inteiro teor
do acórdão, já que muitos estão cobertos pelo segredo de justiça, e conforme a
quantidade e qualidade de informação dos fatos criminosos no acórdão. Acórdãos
cujo inteiro teor não é público não são passíveis de análise, já que a ementa não
traz informações suficientes para afirmar que o acórdão versa sobre o crime de
estupro no âmbito conjugal. O capítulo será dividido de acordo com as regiões,
demonstrando as decisões do Tribunal de cada Estado. Não há um recorte temporal
efetivamente estabelecido; no entanto, por ter sido a pesquisa realizada em meios
eletrônicos, o marco temporal de início da pesquisa é a implantação dos processos
digitais, data que varia conforme o estado analisado.

4.1 REGIÃO SUL

4.1.1 Rio Grande do Sul


No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foram encontrados 5 (cinco)
julgados de segunda instância que tem por matéria o crime de estupro marital, de
forma que serão analisados os que apresentam mais informações sobre a
ocorrência do crime.

a) Apelação Criminal nº 70047652946

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO


PARA FINS LIBIDINOSOS E ESTUPRO. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA
NO QUE CONCERNE À MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS.
MANUTENÇÃO DA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. (...) APELAÇÃO A QUE
SE NEGA PROVIMENTO.
106

O acórdão versa sobre apelação interposta pelo Ministério Público em


desfavor do acusado da prática dos crimes de sequestro e estupro que foi absolvido
em primeiro grau. A acusação pugna para que a sentença seja modificada, pois a
palavra da vítima merece respaldo em crimes como esses, praticados na
clandestinidade, e que não há nada nos autos que desautorize seu depoimento; que
o réu assume ter estado com a vítima na data dos fatos, e que testemunhas
corroboram o testemunho da vítima. Finalmente, aduz que o fato de o acusado e a
vítima consumirem drogas juntos não o autoriza a prendê-la e forçá-la a atos
sexuais, pugnando pela condenação.
A vítima foi casada com o irmão do acusado, tendo ficado com este por 6
(seis) meses depois do fim do relacionamento anterior, mas afirma que já estavam
separados e tinham uma boa relação. Em depoimento, a vítima afirma que durante
uma conversa com o acusado, este lhe ofereceu crack e dinheiro por sexo, e ela
recusou. Quando virou as costas, ele tentou passar uma corda por seu pescoço para
prendê-la. Sob ameaças e portando uma faca, obrigou a vítima a ter com ele
conjunção carnal. Após a ocorrência do fato em local público, o acusado a levou
para a casa da mãe, onde a prendeu e a violentou física e sexualmente mais vezes,
ameaçando a vítima e seus filhos. O acusado a liberou 2 (dois) dias depois. A vítima
afirma que no momento do crime não estava sob efeito de drogas, mas que o
acusado parecia estar. O acusado negou todos os crimes a ele imputados,
afirmando que nunca bateu na vítima e que continuaram a se encontrar casualmente
após a separação. O acusado tem antecedentes por estupro e homicídio.
O relator entende que o conjunto probatório é nebuloso, pois o envolvimento
do acusado com a vítima era conhecido por todos e porque havia outras pessoas no
local em que a vítima estava em cárcere, de forma que ela poderia ter pedido ajuda.
Assim, nega provimento ao recurso, mantendo a absolvição do réu. Os demais
desembargadores, inclusive uma mulher, votam em conformidade com o relator.
A decisão é de 2012, de forma que destoa da maioria das demais analisadas
nesta pesquisa. A vítima representou junto ao Ministério Público para a persecução
penal do crime. Nota-se certo preconceito com a vítima por esta ser usuária de
drogas e até pelo contexto do relacionamento com o acusado, desconsiderando-se
que este já havia, inclusive, sido condenado pela prática do mesmo crime de que ela
o acusa. Deve-se ressaltar que o fato de a vítima não ter pedido ajuda para alguém
da casa em que foi mantida em cárcere não invalida seu depoimento, pois, como
107

família do acusado, poderiam desconsiderá-la. Além disso, em casos como este, em


que vítima e acusado já tiveram relacionamento, pode ocorrer que a vítima demore a
entender o que aconteceu com ela, de modo que é inexigível reação imediata por
parte da vítima.

b) Apelação Criminal nº 0032736-37.2018.8.21.7000

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL.


ESTUPRO. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. CONDENAÇÃO MANTIDA.
PENA REDIMENSIONADA. DIREITO À DETRAÇÃO RECONHECIDO.
CRIME CONEXO DE LESÕES CORPORAIS EM CONTEXTO DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA
PELA PENA EM CONCRETO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. (...) APELO
PARCIALMENTE PROVIDO. POR MAIORIA.

O acórdão trata da apelação interposta pelo réu acusado por estupro, ameaça
e lesões corporais no âmbito doméstico. No julgamento de primeiro grau, foi
reconhecida a prescrição do crime de ameaça e o réu foi condenado a 6 (seis)
meses de detenção pelo crime de lesão corporal e 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de
reclusão, a ser cumprida em regime inicial semiaberto; foi concedido direito de
apelar em liberdade. A defesa requer a decretação de prescrição no crime de lesão
corporal e absolvição do crime de estupro por ausência de provas, afirmando que a
vítima teria consentido com os atos sexuais.
Consta nos autos que o acusado teve uma discussão com sua ex-esposa,
tendo batido a cabeça da vítima por diversas vezes no chão, então passou a
esganá-la, na frente de sua filha, que também agrediu. Em seguida, levou a vítima
até o banheiro e obrigou-a a manter com ele conjunção carnal. A vítima, enquanto
buscava atendimento médico, foi procurada pelo acusado, que lhe ameaçou de
morte caso procurasse a polícia para denunciá-lo. O réu foi preso em flagrante; além
disso, há prontuário médico e exame de corpo de delito que atestam a conjunção
carnal. O réu confessou as agressões físicas.
O desembargador entende estar extinta a punibilidade no crime de lesão
corporal. Quanto ao crime de estupro, entende que as provas dos autos são
suficientes para a condenação, especialmente o depoimento da vítima. O
desembargador afirma que a alegação de consentimento da defesa não é
embasada, devido à extrema violência empregada pelo acusado. Vota o
redimensionamento da pena em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses, pois entende não
108

haver circunstância judicial desfavorável, mas reconhecendo a agravante de ter o


réu cometido o crime utilizando-se de relações domésticas; reconhece o direito à
detração da pena já cumprida. Ambos os desembargadores convergem no voto, no
que tange à prescrição do crime de lesão corporal e mantêm a condenação; no
entanto, entendem que a pena da sentença original deveria ser mantida e votam
para que o Tribunal determine, de ofício, medidas protetivas para a vítima e o
imediato cumprimento da pena pelo condenado, sem possibilidade de prisão
domiciliar. Assim, por maioria, o Tribunal decidiu por manter a condenação e o
apenamento no crime de estupro, incidentalmente determinando medidas protetivas
e o imediato cumprimento de pena.
Em que pese o relator tenha desconsiderado a gravidade do delito ao sopesar
as circunstâncias judiciais do crime, o juiz de primeiro grau e os demais
desembargadores, incluindo uma mulher, entendem que estas não favorecem o réu
para fixação da pena base no mínimo legal. Os mesmos desembargadores
entendem que a vítima deve ser protegida de novas violências; mesmo sem serem
provocados, decretam as medidas protetivas para resguardá-la. Assim, embora o
voto do relator mostre-se insuficiente, a decisão abrangeu diversos aspectos que
devem ser considerados no que tange à violência doméstica.

c) Habeas Corpus nº 0115079-22.2020.8.21.7000

HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL.


ESTUPRO. MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA. GRAVIDADE
CONCRETA DO DELITO. RISCO DE REITERAÇÃO DELITIVA. INVIÁVEL
ANÁLISE PROBATÓRIA NA VIA ESTREITA DO HABEAS CORPUS. (...)
ORDEM DENEGADA.

O Habeas Corpus foi impetrado em favor do réu, preso preventivamente em


abril de 2020 pela prática do crime de estupro. No dia anterior à sua prisão,
constrangeu sua companheira a ter conjunção carnal, mediante ameaça com arma
de fogo. Seu procurador afirma que houve constrangimento ilegal pela insuficiência
de provas, bem como que o réu é primário e sem antecedentes, solicitando a soltura
imediata do acusado.
Em seu voto, o relator pugna pelo indeferimento do Habeas Corpus, pela
gravidade do delito e risco de reiteração do crime, por ter sido praticado no ambiente
doméstico; assim, a continuidade da prisão faz-se necessária a fim de evitar
109

convivência entre as partes. Por unanimidade, os desembargadores denegam o


Habeas Corpus.
Não apenas a decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul cumpre o teor da lei,
mas demonstra aderência à finalidade desta. Ao reconhecer que a prática delitiva
pode ser reiterada ao manter o criminoso em liberdade, o que ofereceria maior
perigo à integridade da vítima e inclusive à sua vida, o órgão decisório utiliza-se dos
instrumentos processuais para manter o réu impossibilitado de cometer novos
delitos e vitimar ainda mais sua companheira. A decisão é satisfatória e a
unanimidade na denegação da liberdade demonstra comprometimento dos
julgadores em tratar a situação de violência doméstica a fim de resguardar a vítima.
É uma decisão recente que se alinha aos princípios protetivos que foram
assegurados na legislação.

4.1.2 Paraná
No Tribunal de Justiça do Paraná foi encontrada apenas 1 (uma) decisão,
pois o Estado protege o inteiro teor de processos sobre crimes sexuais. É importante
ressaltar que embora o artigo 11 do Código Civil consagre o princípio da publicidade
das decisões judiciais, a lei específica dos crimes contra a dignidade sexual garante
o segredo de justiça a fim de preservar a identidade da vítima. No que tange às
decisões colegiadas, é particularmente importante que sejam divulgadas por
constituírem jurisprudência. No entanto, é notável que a maioria dos Tribunais do
país dão plena publicidade ao inteiro teor dos acórdãos, sem sequer censurar o
nome das vítimas. Assim, ainda que a publicidade das decisões seja um importante
princípio constitucional, deve-se atentar ao princípio da dignidade humana e não
submeter as vítimas a outra situação vexatória, de forma que seus nomes deviam
ser censurados em todas as decisões que se tornarão públicas.

a) Apelação Criminal n° 0035267-14.2016.8.16.0014

APELAÇÃO CRIME - CRIME DE ESTUPRO (ART. 213, C.C ART. 61, II, F
DO CP) E LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE (ART. 129, § 1º, I E
§ 10 DO CP)- SENTENÇA ABSOLUTÓRIA - RECURSO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO - ALEGADA ROBUSTEZ PROBATÓRIA QUANTO À
MATERIALIDADE E À AUTORIA QUE TORNA IMPOSITIVA A
CONDENAÇÃO DO RÉU - NÃO ACOLHIMENTO - DECLARAÇÃO DA
VÍTIMA CONTRADITÓRIA - FRAGILIDADE - DECLARAÇÕES DOS
INFORMANTES E DEPOIMENTOS DAS TESTEMUNHAS QUE
REPRODUZEM A VERSÃO DA OFENDIDA DE QUE DIANTE DA
110

NEGATIVA DA PRÁTICA DO SEXO ORAL FOI AGREDIDA PELO ENTÃO


MARIDO - DÚVIDA RAZOÁVEL QUE CHANCELA A MANUTENÇÃO DA
SENTENÇA SEGUNDO O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. (...)
RECURSO DE APELAÇÃO NÃO PROVIDO.

O acórdão trata de apelação interposta pelo Ministério Público, requerendo a


modificação da sentença que condenou o acusado apenas quanto à lesão corporal
grave, a 1 (um) ano e 6 (seis) meses de reclusão, absolvendo-o no que diz respeito
ao estupro. A acusação diz que as provas são abundantes no que tange à autoria e
materialidade, requerendo também a condenação no crime de estupro.
Consta nos autos que diante da recusa de sua esposa em acompanhá-lo para
comprar drogas, o acusado puxou a vítima pelos cabelos, dentro do carro, para junto
de sua genitália, constrangendo-a a praticar sexo oral. Com a recusa da esposa,
desferiu socos no rosto da vítima, e puxando seus cabelos, bateu seu rosto no
volante do carro. O exame de corpo de delito atesta diversos hematomas e
contusões. Os policiais militares que atenderam a denúncia atestam que a vítima
estava machucada e que ela teria dito a eles que o marido a forçou a fazer sexo
oral, mas que ambos estavam alterados e o acusado estava em melhor estado. O
filho da vítima atesta que a mãe sofria agressões do padrasto. A acusação afirma
que em razão do desconhecimento técnico, a vítima entendia que não havia sido
estuprada, já que foi forçada apenas ao sexo oral. O acusado afirma que a vítima
adquiriu as lesões ao pular do carro durante uma briga, negando as violências.
O relator endossa as palavras do juiz sentenciante, que afirma que o
depoimento da vítima foi inconsistente, pois em algumas ocasiões negou que o ato
foi consumado e, em outras, disse que após as agressões acabou cedendo. Afirma
que a alegação da acusação de desconhecimento técnico acerca do estupro não
deve ser considerada, por tratar-se de especulação. Leva em conta o estado
alterado da vítima no momento da denúncia, afirmando que o acusado parecia
calmo e foi cooperativo. Entende que o conjunto probatório é insuficiente, deixando
de analisar inclusive o crime na modalidade tentada, pois entende que a dúvida é
sobre se o acusado teria tentado ou não o ato. Ademais, o relator entende que há
razoável dúvida de que as agressões do acusado tinham por intuito o sexo e se ele
ocorreu de fato. Assim, nega provimento ao recurso; seu voto é acompanhado pelos
demais desembargadores.
Embora seja de 2020, a decisão desconsidera o fato de que a experiência de
ser agredida e estuprada, ainda mais pelo seu companheiro, pode desestabilizar a
111

vítima de forma que seu depoimento seja confuso; o evento traumático pode
desencadear consequências dissociativas. Ainda que seu depoimento tenha sido
inconsistente, jamais o foi em relação à imposição de sexo oral que o acusado fez. A
alteração da vítima não pode ser levada em consideração, pois embora possa ter
sido motivada pelo consumo de álcool, pode ser intensificada pelo abalo emocional.
Assim, esse acórdão está em desacordo com os princípios protetivos estabelecidos
na legislação e com os demais precedentes estabelecidos pelos Tribunais.

4.1.3 Santa Catarina


No Tribunal de Justiça de Santa Catarina foram encontradas apenas 2 (duas)
decisões cujo inteiro teor está disponível; nos demais, é protegido por segredo de
justiça.

a) Apelação Criminal nº 0004085-10.2011.8.24.0031

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO, LESÃO CORPORAL E AMEAÇA,


DELITOS COMETIDOS NO ÂMBITO DOMÉSTICO (ART. 213, CAPUT, C/C
O ART. 226, II, ART. 129, § 9º, E ART. 147, CAPUT, TODOS DO CÓDIGO
PENAL). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA.
PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO, NA
MODALIDADE SUPERVENIENTE, QUANTO AOS DELITOS DE LESÃO
CORPORAL E AMEAÇA. REPRIMENDAS FIXADAS INFERIORES A 1
(UM) ANO. TRANSCURSO DO LAPSO TEMPORAL SUPERIOR A 3
(TRÊS) ANOS ENTRE A DATA DA PUBLICAÇÃO DA SENTENÇA
CONDENATÓRIA E DO PRESENTE JULGAMENTO. EXTINÇÃO DA
PUNIBILIDADE QUE SE IMPÕE, DE OFÍCIO. MÉRITO. ABSOLVIÇÃO DO
CRIME DE ESTUPRO. IMPOSSIBILIDADE. MATERIALIDADE E AUTORIA
DELITIVAS DEVIDAMENTE COMPROVADAS. RÉU QUE AGRIDE COM
SOCOS A COMPANHEIRA, PROFERE AMEAÇAS DE MORTE, A
ESTUPRA E, APÓS O ATO SEXUAL, FORÇA A VÍTIMA A INGERIR
FEZES. PALAVRAS FIRMES E COERENTES DA OFENDIDA,
CORROBORADAS PELO LAUDO PERICIAL. VIOLÊNCIA AMPLAMENTE
DEMONSTRADA. CONTEXTO PROBATÓRIO ESTREME DE DÚVIDAS.
SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

O acórdão trata de apelação interposta por acusado condenado a 12 (doze)


anos e 3 (três) meses de reclusão em regime inicial fechado pelo crime de estupro, 4
(quatro) meses e 7 (sete) dias de detenção pelo crime de lesão corporal e 1 (um)
mês e 5 (cinco) dias de detenção pelo crime de ameaça, todos no âmbito doméstico.
A defesa requer absolvição no crime de estupro, alegando que o conjunto probatório
não é suficiente, pois era casado com a vítima e tais relações sempre pressuporiam
consentimento.
112

Consta nos autos que o acusado namorava há 4 (quatro) anos com a vítima e
estavam convivendo em união estável. Ao retornar de uma festa, o acusado iniciou
uma discussão com a companheira, acreditando estar sendo traído. A vítima sugeriu
que terminassem o relacionamento. Ainda no interior do automóvel, passou a agredir
a vítima com socos em sua face, afirmando que se não fosse com ele, a vítima não
ficaria com mais ninguém. Dentro da residência, ameaçou-a, dizendo que caso ela
gritasse, apanharia mais. Passou a empunhar uma faca para prosseguir a ameaça e
as agressões continuaram; o acusado teria dito que suas ações eram para que a
vítima lhe valorizasse, pois ele a amava. Durante a madrugada, mediante violência,
obrigou a vítima a ter com ele conjunção carnal, penetrando-a via anal e obrigando-a
a praticar sexo oral. O acusado, inclusive, fez com que a vítima ingerisse fezes,
humilhando-a de todas as formas que achou possível.
O desembargador entende que ocorreu a prescrição punitiva nos crimes de
ameaça e lesão corporal. Quanto ao crime de estupro, entende que as provas que
constam nos autos, boletim de ocorrência, laudo de exame de corpo de delito e
prova oral, são suficientes para formar a convicção; a ausência de testemunhas não
é suficiente para sustentar a alegação. A ausência de esperma também não é
relevante, já que o exame de corpo de delito atestou a violência sexual. Finalmente,
o relator afirma que o argumento da defesa de que relações sexuais entre o casal
são sempre consentidas é ultrapassado, e que todos os atos após o “não” da mulher
são violência sexual, independente do relacionamento entre as partes. Assim, nega
provimento ao recurso e determina o imediato cumprimento da pena. Os demais
desembargadores seguem seu voto. Assim, o acórdão coaduna-se aos princípios
protetivos previstos na legislação.

b) Apelação Criminal nº 0001263-59.2017.8.24.0024

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL.


ESTUPRO (ART. 213, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA
ABSOLUTÓRIA. RECURSO DA ACUSAÇÃO. (...) PEDIDO DE
CONDENAÇÃO. ACOLHIMENTO. MATERIALIDADE E AUTORIA
COMPROVADAS. RELATOS DA OFENDIDA, DE ESPECIAL
RELEVÂNCIA, UNÍSSONOS EM AMBAS AS FASES DA PERSECUÇÃO
CRIMINAL, DANDO CONTA QUE SEU EX-COMPANHEIRO, MEDIANTE
GRAVE AMEAÇA COM USO DE FACA, CONSTRANGEU-A A TER
CONJUNÇÃO CARNAL. EVIDENCIADA A PRÁTICA DE RELAÇÃO
SEXUAL NÃO CONSENTIDA. ACERVO PROBATÓRIO SUFICIENTE.
DECISÃO REFORMADA. CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE. (...)
APLICAÇÃO DA PENA. NÃO INCIDÊNCIA DA CAUSA DE AUMENTO
113

PREVISTA NO ART. 226, II, DO CP, PORQUANTO AUSENTE QUALQUER


DAS HIPÓTESES. VÍTIMA E ACUSADO QUE ERAM AO TEMPO DOS
FATOS EX-COMPANHEIROS. INCIDÊNCIA, NA SEGUNDA FASE, DA
AGRAVANTE DE PENA PREVISTA NO ART. 61, II, F, DO CÓDIGO
PENAL. (...) RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

Na denúncia, consta que o réu praticou o crime de estupro no âmbito


doméstico, tendo empreendido o constrangimento contra sua ex-companheira com o
uso de uma faca. No juízo singular, o réu foi absolvido por ausência de provas. O
Ministério Público apelou, requerendo a condenação, postulando pelo afastamento
da causa de aumento de pena e a aplicação da agravante referente ao
relacionamento entre autor e vítima.
O relator do acórdão entende que a falta de laudo pericial ou depoimento
testemunhal não invalida a acusação, pois presentes outras provas que atestam
autoria e materialidade, como boletim de ocorrência, termo de representação e
requerimento de medidas protetivas. Ainda, os depoimentos da vítima em fase de
inquérito e em juízo são coerentes.
A vítima narrou que no dia do ocorrido, já estava separada de fato do réu,
morando inclusive em casas distintas, e que foram juntos levar o filho em comum ao
médico. Ao chegar em casa, o acusado insistiu em uma despedida com a vítima,
que recusou-se a manter relações sexuais com o ex-companheiro. Neste momento,
o réu pegou uma faca e levou-a até o quarto da criança, ordenou que a vítima
tirasse a calça e a estuprou, afirmando que era ele quem mandava nela e que caso
ela resistisse, ele “acabaria” com ela; ele manteve a faca apontada durante todo o
tempo; a vítima gritou e disse diversas vezes que não queria a relação. A avó da
vítima interrompeu o crime ao bater na porta, e o acusado disse à ex-companheira
que caso mencionasse o fato a alguém, iria lhe fazer coisa pior e tirar o filho dela,
que ela nunca mais o veria; a vítima só contou para alguém no dia seguinte, tendo
ido comunicar ao órgão policial. A avó da vítima testemunhou que viu o carro do
acusado na porta da casa da neta no dia do ocorrido; que ouviu gritos dentro do
quarto, e que ao bater na porta, o réu demorou em abri-la.
O acusado afirmou que o ato sexual ocorreu naquela ocasião, mas que foi
consentido. Disse que o término da relação foi pacífico, mas que a vítima teria ficado
com raiva da separação e o denunciado por mágoa, apresentando contradições; o
depoimento da vítima, contudo, foi coeso e uníssono. Ainda, o relator reconhece que
em crimes dessa estirpe são poucos os vestígios e provas deixados, de forma que a
114

palavra da vítima merece especial relevância. Quanto ao término do relacionamento,


ambos afirmaram que não foi conturbado, de forma que o relator entendeu que a
vítima não teria motivo para inventar o crime.
Quanto ao fato da vítima não ter comentado desde logo com alguém da
família, o relator afirma que isso não modifica o crime ocorrido e que a vítima não é
obrigada a expor sua intimidade ou privacidade. Entende que o fato de não haver
lesões na vítima não exclui o crime, pois o crime pode ser cometido por violência ou
grave ameaça, e que na segunda hipótese não há vestígios a serem detectados.
O relator entende que não há dúvidas da materialidade e autoria do fato,
condenando o acusado ao crime de estupro. Assim como solicitado pelo Ministério
Público, o relator também entende pela não aplicação do artigo 226, II do Código
Penal, pois na data dos fatos já estavam separados; mas que é inegável que o
acusado agiu prevalecendo-se de relações domésticas, impondo-se a aplicação da
agravante do artigo 61, II, f, do Código Penal. O réu foi condenado a 7 (sete) anos
de prisão, por unanimidade.
Embora o juízo a quo tenha sido extremamente conservador no que tange às
provas, o juízo recursal atentou-se à finalidade da lei e à gravidade da situação, bem
como à jurisprudência que confere especial valor à palavra da vítima em crimes
contra a dignidade sexual. Ainda, o relator demonstra compreender as nuances do
crime, que nem sempre deixa vestígios físicos. A decisão é importante a fim de
determinar que a prova pericial física não é absolutamente necessária para provar o
crime, que o depoimento consistente da vítima pode supri-la.

4.2 REGIÃO SUDESTE

4.2.1 São Paulo


No Tribunal de Justiça de São Paulo foram encontradas 3 (três) decisões
sobre o tema.

a) Apelação Criminal nº 0001325-25.2016.8.26.0624.


(sem ementa disponível)

O apelante foi condenado pelo crime de estupro por ter constrangido sua
esposa à prática de conjunção carnal mediante grave ameaça, com pena de 15 anos
de prisão, bem como pelo crime de ameaça, que lhe rendeu condenação a 4 meses
115

e 15 dias de detenção. No inquérito policial, o réu negou a acusação, afirmou que a


relação sexual que teve com a esposa foi expressamente consensual. No
depoimento judicial, reafirmou o anteriormente alegado. Disse ainda que “liberava” a
esposa para trabalhar, mas que estava enciumado, pois ela passava mais tempo
com outros afazeres do que fazendo comida para ele. Assumiu durante o
depoimento que no dia dos fatos tiveram uma briga por ela sair com uma calça que
ele considerou inapropriada, e que teria dito que ela “merecia morrer”, mas não que
ele próprio o faria. O réu afirma que sua esposa não mais atendia aos seus desejos,
e que teria a perdido para a “modernidade”.
A vítima afirma que as agressões ocorriam periodicamente, mas que nunca
procurou ajuda ou atendimento. O réu passou um tempo preso e, quando saiu, a
esposa não o queria de volta; em face de sua intenção de se separar explícita, o réu
passou a ameaçá-la. No dia dos fatos, o réu disse que iria matá-la na frente da filha
do casal. Durante a madrugada, ele acordou a vítima para manter relações sexuais;
ao receber a negativa, o réu a ameaçou e disse que era obrigação dela e que, caso
não cedesse, ele a mataria. O réu a ameaçou em razão da roupa que usava; após
ele dizer a ela que se ela insistisse no uso da peça ela “apanharia igual criança”. A
vítima, então, acionou a Guarda Municipal.
O relatório da decisão nos informa que a vítima só teve dimensão do que lhe
foi feito quando a delegada informou que se tratava do crime de estupro. Numa
audiência, após ser confrontada pelo réu, disse que não queria sua condenação, e
que gostaria apenas da separação, pois o réu era ciumento e agressivo, mas não
gostaria de maiores consequências, pois o considerava um bom pai.
O relator afirma que em crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima
é especialmente relevante, pois esse crime costuma ser cometido sem testemunhas.
Além do depoimento da vítima, o depoimento da filha do casal e o exame de corpo
de delito foram provas que o Tribunal considerou.
O desembargador entende que o pedido da vítima para não prosseguir com o
processo não demonstra que ela tenha se arrependido por prestar denúncia falsa,
conforme argumento do defensor do réu, mas sim que ela tem medo do marido. E
que a agressividade e intimidação exercidas por ele na audiência são possivelmente
mais intensas no âmbito doméstico. O relator afirma ainda que o réu usa termos e
expressões que evidenciam sua agressividade e possessividade com a vítima,
demonstrando provas suficientes para a culpa do réu. Por todos esses fatos,
116

manteve-se a condenação pelo crime de estupro, mas reconheceu-se de ofício a


prescrição da pena de detenção do crime de ameaça. Os demais desembargadores
seguiram o voto do relator.
Essa decisão é compatível com o escopo da lei de violência doméstica e de
proteção à mulher. Primeiramente, é reconhecida a importância da palavra da
vítima. Ao ser questionado pelo defensor do criminoso, o relator compreende as
relações de poder de gênero e entende que a vítima foi ameaçada, ao invés de
colocar em dúvida o seu depoimento. O relator também compreende que as
opiniões e atos do réu acerca da vítima, como a recusa em aceitar a separação,
enxergam-na como propriedade e que dessas opiniões emerge a ideia de que a
esposa é obrigada a manter relações sexuais com o marido sempre que ele desejar.
O relator aplica o entendimento da lei, no sentido de que todo ato sexual, ainda que
no contexto de casamento ou relação duradoura, demanda o consentimento da
mulher.

b) Apelação criminal nº 0033107-52.2017.8.26.0224

ESTUPRO - DECLARAÇÕES SEGURAS E COERENTES DA VÍTIMA -


OCORRÊNCIA DO DELITO. Nos crimes contra os costumes, geralmente
cometidos na clandestinidade, o depoimento da vítima, corroborado por
elementos probatórios dos autos, é suficiente para embasar o decreto
condenatório – CONDENAÇÃO MANTIDA. DOSIMETRIA DAS PENAS –
RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA FIXAR O REGIME INICIAL
SEMIABERTO.

O réu foi condenado a 7 (sete) anos de reclusão com regime inicial fechado
pelo crime de estupro de sua ex-mulher. A vítima e o réu estavam separados há
mais de 3 anos, mas a vítima deixou que ele ficasse em sua casa por um tempo,
após o fim de outro relacionamento. A vítima narra que após sair do banho, o réu a
agarrou e, mesmo com sua negativa, praticou conjunção carnal, deixando marcas
em seu corpo pela violência com a qual a forçou. O réu afirmou que manteve
relações sexuais com a vítima após voltar a morar com ela, mas que foram todas
consentidas.
O apelante requer reforma da decisão, alegando insuficiência probatória. O
relator afirma que a palavra da vítima é suficiente em casos como este, tendo ela
mantido a mesma versão com firmeza, e que a violência deixou vestígios no corpo
117

da vítima, de forma que o conjunto probatório é suficiente para demonstrar a


ocorrência do fato.
O relator mantém ainda a pena, mas de acordo com a primariedade do réu e
circunstâncias judiciais, altera o regime inicial de cumprimento para o semiaberto,
conforme princípio da individualidade da pena, mas recusa a substituição da pena
privativa de liberdade por restritiva de direito. Os demais desembargadores votaram
conforme o relator.
A decisão em voga demonstra que a palavra da vítima é suficiente para
estabelecer o não consentimento e, portanto, o crime. As marcas deixadas
evidenciam a violência, mas não é essa a prova determinante para comprovar o
acontecimento do crime. Fica claro também que muitos acusados entendem que o
ato foi consensual; muito embora na maioria das vezes seja uma espécie de defesa
processual, pode-se dizer que a comunicação acerca de relações sexuais, em
muitos casos, é diferente para homens e mulheres.

c) Apelação Criminal nº 1514473-34.2019.8.26.0071

TENTATIVA DE ESTUPRO – PLEITO ABSOLUTÓRIO – NÃO


ACOLHIMENTO – REALIDADE DA INFRAÇÃO E AUTORIA
COMPROVADAS – PENA E REGIME ADEQUADAMENTE
ESTABELECIDOS – RECURSO NÃO PROVIDO.

Trata-se de apelação interposta em favor de condenado a 3 (três anos) de


prisão, com regime inicial de cumprimento de pena semiaberto, pela tentativa de
estupro contra sua companheira. Requer absolvição por insuficiência de provas;
secundariamente, requer desclassificação para o crime de importunação sexual.
Conforme a denúncia, o réu chegou em casa embriagado e tentou
constranger sua companheira, por meio de violência, a manter conjunção carnal.
Com a recusa, subiu no corpo dela, causando lesões corporais atestadas em laudo.
O acusado não consumou a conjunção carnal por motivos alheios à sua vontade – a
embriaguez em excesso. A vítima afirma que se recusou a manter as relações, pois
os filhos estavam acordados, inclusive a filha portadora de deficiência do casal.
Relata que acabou tirando a roupa a fim de se preservar de maiores violências, e
que o acusado chegou a encostar o pênis em seu corpo, mas acabou não
conseguindo.
118

O relator reitera o entendimento firmado de que em crimes contra a dignidade


sexual, a palavra da vítima tem especial importância. A defesa questiona a vítima
por ter contatado o ex-companheiro após os fatos, afirmando que toda a denúncia
do crime teria sido motivada por vingança. O relator afirma que como guardiã da
filha do casal, é dever da vítima cobrar a pensão alimentícia junto ao acusado e que
isso não coloca em dúvida sua credibilidade, e que não há qualquer indício
probatório que demonstre más intenções da vítima. Finalmente, entende que a
violência física impossibilita a desclassificação do crime.
O Tribunal de Justiça tem entendimento firmado no sentido de que a palavra
da vítima tem valor probatório pleno nos casos de crimes contra a dignidade sexual.
Nos casos de estupro marital, pode-se observar que a maior parte da defesa dos
acusados afirma que a vítima fez uma denúncia falsa e que as provas não são
suficientes ou ela teria consentido e mudado de ideia. Embora o judiciário venha
tratando a questão de forma minimamente adequada, aparentemente a mentalidade
masculina ainda mantém a ideia de propriedade e livre usufruto do corpo da mulher,
e isso se mostra ainda mais presente em relações maritais ou de convivência, ainda
que o relacionamento tenha acabado.

4.2.2 Rio de Janeiro


No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, não foi encontrada nenhuma
decisão sobre estupro marital, pois o estado impõe segredo de justiça nos processos
sobre crimes sexuais.

4.2.3 Minas Gerais


No Tribunal de Justiça de Minas Gerais foram encontradas 4 (quatro)
decisões colegiadas sobre o tema.

a) Apelação criminal nº 2198322-93.2008.8.13.0686

APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO - INSUFICIÊNCIA DE PROVAS -


ABSOLVIÇÃO NECESSÁRIA. - A condenação exige a certeza da
ocorrência delituosa, não podendo embasar-se em meras conjecturas sem
o devido respaldo probatório. - Como corolário da presunção de inocência, o
in dubio pro reo é instituto penal que se assenta nas decisões que não
encontram respaldo no arcabouço probatório que reflita a certeza da autoria
delituosa.
119

Trata-se de apelação interposta pelo condenado a pena de 6 (seis) anos pelo


crime de estupro contra sua companheira. Consta dos autos que o exame de corpo
de delito não apontou lesão corporal. A vítima afirma que foi ameaçada a manter
relações sexuais com o acusado; que já estavam em conflito quando, numa festa de
ano novo, o apelante a arrastou de uma festa para estuprá-la. A mãe da vítima
afirmou ter visto o acusado arrastando-a pelo cabelo.
O relator questiona o fato de a vítima ter sido arrastada e não ter pedido ajuda
aos demais presentes na festa; questiona não haver mais nenhuma testemunha que
não a mãe da vítima nos autos do processo; questiona a vítima ter retornado à festa
e não ter comentado o fato com ninguém. Finalmente, questiona porque a mãe da
vítima não interviu ao ver o acusado arrastá-la.
O relator dá especial importância ao depoimento do patrão do apelante, que
afirma que foi à propriedade do casal e que a vítima teria dito que não foi agredida,
apenas ameaçada com um facão; e que o casal estava junto, e que teria ouvido a
vítima dizer que faria de tudo para prejudicar o companheiro. O desembargador
entende que a divergência entre os atos da vítima e seu depoimento atesta a falta
de prova para condenação. Assim, o relator entende que embora a palavra da vítima
tenha especial relevância nos crimes sexuais, quando as outras provas não
embasam o testemunho, o julgador deve absolver o acusado, conforme o princípio in
dubio pro reo. Todos os desembargadores votaram conforme o relator.
Note-se que se trata de acórdão proferido em 2011. Ainda assim, notável o
despreparo dos magistrados para lidar com a situação de violência doméstica. Em
primeiro lugar, deve-se notar que o crime de estupro pode ocorrer tanto sob
violência tanto sob ameaça, e que nessa segunda forma ele provavelmente não
deixará vestígios – de forma que a negativa do exame de corpo de delito não é a
prova mais importante nesse caso. Ao questionar a falta de demais testemunhas, o
magistrado desconsidera a cumplicidade da sociedade em crimes de violência
doméstica.
Ao questionar a falta de reação da vítima, o desembargador desconsidera que
as pessoas reagem de diversas maneiras aos traumas e que nem todos são
capazes de reagir imediatamente à violência; questiona a mãe da vítima por não
ajudá-la, desconsiderando a diferença de força física entre os envolvidos. É
especialmente notável que seu questionamento recaia sobre a vítima e sua mãe, e
120

que o depoimento ao qual mais deu valor foi o de um homem, que mantém relações
pessoais com o acusado e inclusive frequentava sua casa.
O desembargador observa o depoimento dessa testemunha com um viés
completamente patriarcal. Utiliza a parte que lhe serve, na qual a vítima nega para
um homem que mantém relações próximas com seu marido que é vítima de
violência doméstica, e simplesmente desconsidera a parte em que ela afirma ter sido
ameaçada com um facão - como se isso não fosse violência. Ignora as relações de
poder entre os sexos e a fraternidade entre os homens; um depoimento que atesta a
violência foi enxergado como prova de que o estupro não ocorreu. Completamente
contra os princípios de direitos humanos das mulheres em vigor atualmente,
felizmente, essa decisão mostra-se uma exceção das que foram encontradas nessa
pesquisa.

b) Apelação criminal nº 0296002-75.2017.8.13.0079

APELAÇÃO - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - LEI MARIA DA PENHA - PEDIDO


DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGENCIA - INDEFERIMENTO NA
ORIGEM - DECISÃO REFORMADA - PALAVRA DA VÍTIMA QUE ASSUME
ESPECIAL RELEVÂNCIA - RECURSO PROVIDO. (...)

Trata-se de apelação interposta pela vítima contra decisão de primeira


instância que indeferiu pedido de medidas protetivas e arquivou os autos do
processo. A apelante pugna pela reforma da decisão, e a Procuradoria ofertou
parecer pelo deferimento do pedido. Requer as medidas protetivas de afastamento
do lar e de não aproximação.
A vítima afirma ter convivido com o agressor por 24 anos, e que tiveram dois
filhos; o processo é acompanhado de diversos boletins de ocorrência demonstrando
que a agressão e a violência faziam parte dessa relação. As agressões eram quase
diárias, com puxões de cabelo, pancadas no estomago, arremessamento de objetos,
tentativas de enforcamento, além de ser forçada a relações sexuais. A vítima dorme
no sofá de casa há cinco anos, com medo de ser forçada a atos sexuais contra sua
vontade.
A vítima narra diversas ocorrências de estupro no âmbito conjugal; na última
ocasião, o acusado a levou forçadamente para o quarto para manter atos sexuais. A
vítima se segurou na parede e devido à força empregada pelo acusado, quebrou
uma das costelas. Nos autos do processo, há laudos que demonstram as fraturas
121

sofridas e acompanhamento com remédios. Afirma que depois que se separaram de


fato, o acusado abusou sexualmente dela de várias formas, e que não conseguia se
desvencilhar. A vítima atesta que durante esses atos sexuais forçados, o acusado
afirmava ser seu direito ter relações sexuais, pois ele colocava a comida em casa. O
acusado nega os fatos, afirmando que a vítima lesionou a costela ao cair no chão e
que seu intuito é prejudicá-lo no processo de divórcio e partilha de bens, e ficar com
os imóveis adquiridos na constância da união estável.
O relator afirma que o agressor tem grande poder de manipulação, e que sua
escolha de amizades hostis e de comportamento questionável fez com que a vítima
tivesse medo de denunciar por anos. Entende que os autos demonstram que as
violências foram intensificando-se ao longo do tempo. Em um dos boletins de
ocorrência, consta que a vítima e o acusado entraram em discussão, e que o
estupro e a violência física não ocorreram apenas porque a filha do casal interviu. O
relator menciona que corre processo de divórcio litigioso, pois no dia da audiência de
conciliação esta restou infrutífera porque o acusado exigiu que constasse no acordo
cláusula que impedisse a vítima de receber homens em casa para qualquer fim.
A vítima já havia requerido medidas protetivas em outro processo, que foram
indeferidas, pois o magistrado entendeu que ante a ausência de representação junto
ao Ministério Público, as medidas pleiteadas restariam inócuas. A vítima representou
junto ao Ministério Público, que pugnou pelo deferimento das medidas; o
magistrado, por sua vez, indeferiu as medidas pleiteadas, argumentando que os
depoimentos não eram capazes de fornecer convicção para seu deferimento.
O relator afirma que a finalidade das medidas protetivas previstas na Lei
Maria da Penha é de coibir violência doméstica e familiar contra a mulher e evitar
situações de risco que coloquem sua integridade em risco, e que não é necessário
amplo conjunto probatório para o deferimento dessas medidas; que dada sua
natureza cautelar, podem ser concedidas mesmo sem oitiva da parte contrária, e
que nos casos de violência contra a mulher, por ocorrerem de forma clandestina, a
palavra da vítima tem relevo especial. Que os indícios presentes no processo
demonstram situação de risco para a vítima. O relator defere as medidas de
afastamento do lar e de não aproximação, bem como de proibição de qualquer meio
de contato com a vítima. Os desembargadores votam por unanimidade com o
relator; um deles afirma que o recurso cabível para essa decisão seria o de agravo
122

de instrumento, mas que a apelação foi aceita conforme princípio da economia


processual e dado à boa-fé da apelante.
A decisão de primeira instância foi corretamente alterada pelo órgão
colegiado, que se atentou ao risco que a integridade da apelante suportava. Embora
não trate especificamente sobre estupro, essa decisão é importante porque
demonstra que a proteção legal da Lei Maria da Penha é cabível em caso de vítimas
de estupro conjugal; que a falta de condenação não impede a proteção legal, e que
tais medidas protetivas são importantes para que os crimes não permaneçam
ocorrendo.

c) Habeas Corpus nº 5531577-16.2020.8.13.0000

HABEAS CORPUS - ESTUPRO - AMEAÇA – DECISÃO DEVIDAMENTE


FUNDAMENTADA - CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO -
REQUISITOS DO ART. 312 E 313 DO CPP MANUTENÇÃO DA ORDEM
PÚBLICA. (...)

Trata-se de Habeas Corpus com pedido liminar impetrado em favor de


acusado preventivamente preso. No dia anterior à prisão, as medidas protetivas
foram deferidas e não foram descumpridas. Afirma que não há motivo concreto ou
juízo de proporcionalidade a justificar a cautelar. O réu é acusado de lesão corporal
no âmbito doméstico, constrangimento ilegal, sequestro e cárcere privado, violação
de domicílio, estupro com causa de aumento de pena por ser contra a companheira
e tortura. A liminar foi indeferida, e o Ministério Público pugnou pela denegação do
Habeas Corpus.
Consta dos autos que, motivado por ciúmes e uma suposta acusação de
traição, o acusado violou a casa da vítima, sua ex-companheira, e com ameaças
graves de morte contra as filhas dela levou-a para sua casa. Ordenou que a mesma
tirasse a roupa e introduziu os dedos em sua vagina a fim de se certificar que não
manteve relações sexuais. Manteve a vítima em cárcere, torturou-a com uma faca
de cozinha e a agrediu diversas vezes a fim de obter confissão de traição.
A relatora entende pela denegação da liminar, pois a decisão que determinou
a prisão preventiva e a que negou sua revogação estão suficientemente embasadas,
pautadas em motivos concretos a fim de assegurar a ordem pública. Não apenas a
garantia da ordem pública, mas dos requisitos instrumentais, como crime doloso com
pena máxima privativa de liberdade superior a 4 (quatro) anos e crime de violência
123

doméstica contra a mulher. Afirma que está evidente a periculosidade do autor e dos
crimes praticados, lembrando tratar-se de hediondos, e que incabíveis medidas
cautelares diversas, denegando o Habeas Corpus. Os desembargadores votaram
em conformidade com a relatora.
A decisão do colegiado demonstra aderência aos princípios protetivos da
mulher. As ações do acusado visavam estabelecer a posse da ex-companheira, de
forma que violou a integridade desta de inúmeras formas, inclusive sexualmente. A
extrema violência com que praticou seus atos e a extensão de crimes que cometeu
demonstram que a sua prisão cautelar é indispensável a fim de proteger a vítima de
outras violências e ameaças que o acusado possa cometer a fim de estabelecer seu
domínio sobre ela.

4.2.4 Espírito Santo


No Tribunal de Justiça do Espírito Santo, não foi encontrada nenhuma
decisão sobre o tema pesquisado.

4.3 REGIÃO CENTRO-OESTE

4.3.1 Goiás
No Tribunal de Justiça de Goiás, foram encontrados 2 (dois) acórdãos acerca
do tema pesquisado.

a) Apelação criminal nº 307907-05.2014.8.09.0076

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO. MARIDO E MULHER. JUÍZO


ABSOLUTÓRIO. MANUTENÇÃO. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO. Apesar
de a palavra da vítima, nos crimes cometidos na clandestinidade, como o
crime de estupro, possuírem valor probante excepcional, se as declarações
da ofendida (esposa à época dos fatos) não se acham harmônicas com as
evidências apuradas nos autos, e não foi corroborada por prova técnica,
não podem ser consideradas suficientes para alicerçar uma condenação,
devendo ser ratificado o juízo absolutório explicitada na sentença. APELO
MINISTERIAL CONHECIDO E IMPROVIDO.

O acórdão analisado versa sobre apelação interposta pelo Ministério Público


em desfavor do acusado pela prática do crime de estupro contra sua companheira,
que foi absolvido em primeiro grau por ausência de provas.
O acusado nega a conjunção forçada e ter ameaçado a companheira de
morte, com quem conviveu maritalmente por 10 anos e teve três filhos. Alega que o
124

relacionamento estava desgastado, e que em uma briga a vítima teria dito que tinha
um novo namorado, afirmando que seria o pai de um dos filhos do casal. Afirma que
quis se separar depois desse desentendimento e que não o fez pela intervenção da
avó da vítima. Em cada discussão, a vítima mandava o acusado para fora de casa;
em uma oportunidade, disse que se ele não saísse, ela sairia, então o fez levando
os três filhos.
O relator segue o entendimento do juiz de primeira instância; alega que
embora o depoimento da vítima deva ser levado em consideração, há
incongruências em seu relato. O juiz sentenciante afirmou que a vítima negar-se a
manter relações com seu marido por estar no período fértil é questionável, já que
havia feito laqueadura, e questionou a vítima ter demorado mais de dois meses da
última ocorrência para se separar do réu, já que ela tinha recursos financeiros para
tal; o relator cita tais partes da sentença a fim de demonstrar sua concordância.
Questiona a vítima por ter permanecido na residência após a primeira ocorrência e
por não ter denunciado de imediato nas primeiras vezes. O desembargador afirma
que não se sabe por que a vítima se recusaria a manter relações sexuais com o
companheiro, mas que mesmo sabendo que ele exigia relações sexuais continuou a
conviver com o companheiro. A vítima não foi submetida a exame de corpo de delito,
pois denunciou após a separação. As testemunhas foram a mãe e a tia da vítima,
que afirmaram jamais terem presenciado agressão contra ela. Assim, o
desembargador entende que o conjunto probatório não é suficiente para condenar o
acusado, havendo dúvida razoável acerca do crime. Nega provimento ao recurso; os
demais desembargadores acompanham o voto.
É notável que a denúncia após muito tempo do fato diminui as chances da
colheita de provas, e que a absolvição por esse fundamento se sustenta. O que não
é aceitável é o questionamento do juiz quanto à postura da vítima. A mulher não
precisa de um motivo para se recusar a fazer sexo, inclusive com seu marido; mas a
sua vontade e integridade física devem ser respeitadas. Não é cabível questionar
porque a vítima se recusou, mas sim porque o acusado cometeu o crime. O juiz
sentenciante reconhece que algumas mulheres têm dificuldade de abandonar o
relacionamento por dependência financeira, mas que este não é o caso, pois a
vítima possuía recursos. Mas a dependência não se dá apenas por razões
econômicas, mas também por razões sociais e emocionais. Embora o teor técnico
do acórdão se sustente, qual seja, a absolvição por insuficiência de provas, os
125

argumentos utilizados pelos magistrados são mal direcionados e com forte teor
patriarcal.

b) Apelação criminal nº 14008-95.2018.8.09.0172

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE ESTUPRO E LESÃO CORPORAL.


ABSOLVIÇÃO. PROVA SUFICIENTE. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. NÃO
APLICAÇÃO. REDIMENSIONAMENTO DA PENA. INVIABILIDADE. CAUSA
DE AUMENTO DE PENA. (...) APELO CONHECIDO E DESPROVIDO.

O acórdão trata de apelação interposta pelo condenado pelos crimes de


estupro e lesão corporal no âmbito doméstico, condenado a 10 anos e 6 meses de
reclusão e a 5 meses de detenção, em regime inicial fechado. O acusado pleiteia
recorrer em liberdade. No mérito, pede absolvição por ausência de provas;
subsidiariamente, pede a exclusão da continuidade delitiva e da causa de aumento
de pena referente ao estupro de esposa ou companheira.
A denúncia narra que no dia dos fatos, o acusado chegou em casa
embriagado, quando deitou-se ao lado da vítima, arrancou-lhe a roupa e a obrigou a
manter com ele relação sexual. Após o ato, questionou a vítima por ter chegado
tarde do trabalho, iniciando as agressões, que só cessaram quando a filha da vítima
as interrompeu. A vítima afirmou que ele a obrigava a manter relações sexuais
diariamente, e quando ela se recusava, ele rasgava suas roupas e a penetrava com
violência.
Consta nos autos que há flagrante delito e relatório médico a embasar o
depoimento da vítima. O acusado nega o crime desde a fase de inquérito, mas a
vítima prestou depoimentos em ocasiões diversas com a mesma versão dos fatos. O
relator entende que o depoimento da vítima é convergente com as demais provas.
Afirma ainda que não há consunção entre os crimes, pois as lesões não foram
infligidas a fim de consumar o crime de estupro, e sim em momento diverso. Quanto
à pena, afirma que as etapas da dosimetria foram corretamente cumpridas e que é
aplicável o concurso material e a causa de aumento de pena referente ao
cometimento contra cônjuge, disposta na lei desde 2005; que a lei de 2018 não
altera a disposição e sim a gramática da lei, de forma que não se pode afirmar que
se trata de lei posterior aplicada em prejuízo do réu. O relator nega provimento ao
recurso; os demais desembargadores seguem seu entendimento.
126

Embora a primeira decisão do Estado de Goiás seja reprovável, a segunda se


coaduna aos princípios protetivos contra a violência doméstica. A violência e a
relação sexual forçada aparentam funcionar de formas independentes. O acusado
não agredia a sua esposa por esta negar-se ao sexo; o estupro não era utilizado
como exacerbação da violência. Trata-se de mecanismos diversos com o mesmo
fim, de subordinar e dominar a mulher na relação, de forma que acertada a
condenação do acusado pela prática dos dois crimes.

4.3.2 Distrito Federal


No Tribunal de Justiça do Distrito Federal foram encontradas apenas 4
(quatro) decisões disponíveis devido ao segredo de justiça, sendo analisadas as que
apresentam mais informação acerca dos fatos criminosos.

a) Apelação Criminal nº 0001502-39.2018.8.07.0012

APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A


MULHER. ESTUPRO. FATO ANTERIOR À LEI 13.718/2018. CRIME DE
AÇÃO PENAL CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO. RETRATAÇÃO DA
REPRESENTAÇÃO. AUSÊNCIA DE CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE.
NULIDADE. ACOLHIMENTO DA PRELIMINAR.

O acórdão trata de apelação interposta pelo acusado à prática de crime de


estupro em relação doméstica, condenado a 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de
reclusão, em regime inicial fechado, e absolvido do crime de estupro tentado. A
defesa requer a nulidade do processo por ausência de condição de procedibilidade,
por a vítima ter retratado a representação. Subsidiariamente, requer a absolvição por
insuficiência probatória.
Consta nos autos que o réu tentou forçar sua ex-companheira a manter
relações sexuais com ele, não tendo conseguido por condições alheias à sua
vontade. No mesmo dia, mais tarde, após a mencionada tentativa, jogou a ex-
companheira na cama; a vítima novamente se recusou a manter relações e disse
que acionaria a polícia. O acusado retirou sua roupa e a imobilizou, mantendo
relações sexuais forçadas na presença dos 3 (três) filhos do casal. Após o ato, a
vítima fugiu para a casa do vizinho junto aos filhos e acionou a polícia. Em audiência
de retratação junto ao Ministério Público, disse que não desejava prosseguir com a
ação penal, pois queria preservar seus filhos de serem testemunhas em processo
127

contra o próprio pai. O Ministério Público prosseguiu com a ação, entendendo que a
vítima não manifestou inequívoca vontade de retratação. O juízo singular decidiu
pelo prosseguimento do feito, condenando o acusado.
O relator entende que sendo o crime na época dos fatos condicionado à
representação, a ausência desta implica em nulidade do processo, não entendendo
que o motivo pelo qual a vítima retratou-se não importa, já que o fez de forma livre,
sem coação ou influência de terceiros, sendo que a vítima afirmou em juízo que
após o deferimento das medidas protetivas, o acusado não a procurou mais. Dessa
forma, o relator acolhe a preliminar suscitada pela defesa, declarando a nulidade do
processo. Os demais desembargadores votaram em conformidade com o relator.
Embora o direito penal deva ter todos os seus procedimentos respeitados em
nome da legalidade, a retratação da vítima pode não ter sido livre, mas motivada
pelo seu desejo de proteger seus filhos. Tal decisão mostra a importância de o crime
de estupro ser de ação penal pública incondicionada, já que quando há
relacionamento prévio entre acusado e vítima, a representação da vítima apresenta
mais dificuldades, tanto pelos sentimentos envolvidos tanto pelo medo de retaliação.

b) Apelação Criminal nº 0002188-37.2018.8.07.0010

APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ESTUPRO. LESÃO


CORPORAL. AMEAÇA. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSÍBILIDADE.
MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. ACERVO PROBATÓRIO
COESO. PENA BASE. ANTECEDENTES. ANÁLISE DESFAVORÁVEL.
PRESERVADA. QUANTUM DE AUMENTO. MANUTENÇÃO.
CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE. FRAÇÃO. ADEQUADA. DOSIMETRIA
MANTIDA.

O acórdão trata de apelação interposta pelo acusado ao crime de estupro


com causa de aumento de pena pela relação doméstica, lesão corporal e ameaça no
âmbito doméstico. O acusado foi condenado a 9 (nove) anos e 9 (nove) meses de
reclusão em regime inicial fechado, bem como a 10 (dez) meses e 25 (vinte e cinco)
dias de detenção. A defesa requer a absolvição do acusado, afirmando que as
provas dos autos são insuficientes para sua condenação. Subsidiariamente, pleiteia
a diminuição da pena.
Consta nos autos que o réu chegou à residência sob efeito de drogas e
obrigou a vítima a manter com ele conjunção carnal e praticar sexo oral,
ameaçando-a de morte com uma faca grande. Além das ameaças, o acusado
128

agrediu a vítima diversas vezes a fim de abusar dela sexualmente. O acusado


obrigava a vítima a comportar-se como personagens de filmes pornográficos. As
violações ocorreram por aproximadamente um dia inteiro. Em um momento, o filho
de 2 (dois) anos da vítima entrou no quarto, o que fez com que o acusado ficasse
nervoso e o agredisse com uma barra de ferro. Em seguida, o filho adolescente
conteve o agressor, acionando a Polícia, que prendeu o acusado em flagrante. Em
juízo, o acusado negou os crimes e afirmou que não estava sob efeitos de drogas,
bem como que não manteve relações com a vítima naquele dia.
A relatora entende estarem comprovadas a autoria e a materialidade do
crime, pelo testemunho da vítima, exames de corpo de delito, boletim de ocorrência
e requerimento de medidas protetivas, bem como testemunho dos policiais que
atenderam a ocorrência, e que todas essas provas são harmônicas. O exame de
DNA atesta que o acusado ejaculou na vítima, contradizendo seu depoimento.
Assim, nega provimento ao recurso e mantém a condenação, bem como a
dosimetria das penas imputadas em todos os crimes e o regime inicial de
cumprimento. Os demais desembargadores votam de acordo com a relatora. Assim,
trata-se de uma decisão conforme aos princípios protetivos vigentes.

c) Habeas Corpus nº 0716699-92.2019.8.07.0000

HABEAS CORPUS. CRIMES DE AMEAÇA. SEQUESTRO E CÁRCERE


PRIVADO. LESÃO CORPORAL. ESTUPRO. DESOBEDIÊNCIA.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. PRISÃO
PREVENTIVA DECRETADA COM FUNDAMENTO NA GARANTIA DA
ORDEM PÚBLICA E PROTEÇÃO DA INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA
DA VÍTIMA. GRAVIDADE CONCRETA DA CONDUTA. FUNDAMENTAÇÃO
IDÔNEA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM
DENEGADA.

O acórdão trata sobre Habeas Corpus interposto por investigado nos crimes
de ameaça, sequestro, cárcere privado, lesão corporal, estupro e desobediência. A
defesa se insurge sobre decisão que converteu a prisão em flagrante em preventiva,
afirmando ausentes os requisitos para tais. Ademais, alega que não houve
descumprimento de medida protetiva de forma que a prisão é excessiva a fim de
garantir a integridade da vítima, pleiteando que seja revogada a prisão preventiva.
O relator entende que há evidências de relação violenta com a vítima,
estando provada a intenção de cometer o crime pelos depoimentos da vítima e dos
policiais. Os indícios de autoria e materialidade são comprovados pelo recebimento
129

da denúncia. Assim, o relator afirma que a prisão cautelar é necessária para


preservação da integridade da vítima, pois este já cometeu violências contra ela
anteriormente, e também levando em consideração a gravidade do crime, pois o
acusado teria invadido a casa da vítima, a ameaçado com uma faca e dado um soco
em seu rosto, além de obrigá-la a manter relações sexuais com ele; após a chegada
da polícia, recusou-se a abrir a porta e liberar a vítima. O exame de corpo de delito
atesta lesões. Assim, o relator entende que a prisão deve ser mantida, denegando a
ordem de Habeas Corpus. Os demais desembargadores votaram em conformidade
com o relator.
O caso em voga demonstra a necessidade de intervenção nos
relacionamentos quando a violência começa a ocorrer. A vítima já havia denunciado
o acusado outras vezes, já havia requerido medidas protetivas, mas não foi
atendida. O acusado observou que a baixa reprovabilidade de seu comportamento
bem como a impunidade, de forma que continuou cometendo atos violentos,
exacerbados pela violência sexual.

4.3.3 Mato Grosso do Sul


No Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul foram encontrados 6 (seis)
acórdãos sobre o tema, analisados os que possuem mais informações sobre a
conduta criminosa.

a) Apelação Criminal nº 0011635-69.2017.8.12.0002

APELAÇÃO CRIMINAL – RECURSO DEFENSIVO – ESTUPRO E


PERTURBAÇÃO DA TRANQUILIDADE EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA – PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO – INVIABILIDADE –
CONJUNTO PROBATÓRIO SUFICIENTE – PALAVRA DA VÍTIMA –
RELEVÂNCIA – COERÊNCIA COM OS DEMAIS ELEMENTOS.
CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

Trata-se de acórdão acerca da apelação interposta pelo condenado a 7 (sete)


anos de reclusão em regime inicial fechado pela prática do crime de estupro, e a 17
(dezessete) dias de prisão simples em regime aberto pelo crime de perturbação da
tranquilidade. A defesa requer absolvição por insuficiência de provas.
Consta na denúncia que o acusado foi à casa de sua ex-esposa, onde a
constrangeu mediante ameaças e com prevalência de força física a com ele manter
conjunção carnal, dizendo que a vítima tinha obrigação de ter relações sexuais com
130

ele, já que não aceitava o fim do relacionamento e ainda a via como sua esposa. A
vítima afirma que o acusado machucou sua vagina com os dedos, tendo
interrompido a violência em virtude da chegada de uma amiga da vítima à
residência. Após descobrir que a ex-esposa estava namorando outro homem, as
agressões se intensificaram, resultando em pedido e concessão de medida protetiva
e, com o descumprimento, decretada a prisão do réu. Inclusive, um mês após o
estupro mencionado acima, o acusado foi à casa da vítima para arrumar confusão
com ela e seu namorado, provocando-os e usando palavras de baixo calão. Assim, a
vítima representou pelos abusos sexuais e o réu foi condenado. Além do
depoimento da vítima e das testemunhas, há boletim de ocorrência e conversas
entre vítima e acusado nos autos a corroborar o crime. O acusado nega todas as
acusações.
O relator entende que as provas colacionadas e o testemunho da vítima são
suficientes, e que este se manteve coerente em todas as fases investigativas e
judiciais. Afirma que o acusado tratou a vítima como se dela fosse dono, recusando-
se a admitir o fim do relacionamento. Nega provimento à apelação; os demais
desembargadores acompanham seu voto.
O caso em questão demonstra a dificuldade que alguns homens têm de
aceitar o fim do relacionamento e as agressões que cometem a fim de estabelecer
dominância sobre a mulher; não conseguem aceitar a perda de algo que enxergam
como propriedade. Ao descumprir as medidas restritivas e praticar o estupro, o
acusado busca estabelecer a posse, não se importando com as consequências
advindas de seus atos.

b) Apelação criminal nº 0001390-59.2015.8.12.0037

APELAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA – ESTUPRO E LESÃO CORPORAL


EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – SENTENÇA
CONDENATÓRIA – PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO NO ESTUPRO –
PROCEDÊNCIA – ATIPICIDADE DA CONDUTA – CRIME
REMANESCENTE – PENA INTEGRALMENTE CUMPRIDA DURANTE A
PRISÃO PREVENTIVA – EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE – RECURSO
PROVIDO.

A decisão colegiada trata de apelação criminal interposta por acusado pela


prática do crime de estupro e lesão corporal qualificada pela situação de violência
doméstica, condenado a 8 (oito) anos de reclusão em regime inicial fechado e 3
131

(três) meses de detenção. A defesa pede absolvição por ausência de provas, e,


subsidiariamente, requer a diminuição da pena para o mínimo legal.
Segundo relatos, vítima e acusado conviviam em união estável há 7 (sete)
anos e têm dois filhos, tendo sido uma relação violência. No dia dos fatos, o acusado
teria obrigado sua companheira a manter com ele relações carnais, e depois a
agrediu fisicamente, causando lesões corporais. Há boletim de ocorrência e laudo de
corpo de delito. Em juízo, a vítima afirmou que durante relação consensual, o
acusado inseriu, sem que ela visse, um objeto em sua vagina.
O relator entende que a autoria e materialidade no crime de lesão estão
comprovados, mas não no que tange ao estupro. Para o relator, existe grande
distância entre a prática do crime de estupro, que presume violência ou grave
ameaça, e um ato sem consentimento, afirmando que o fato tratou-se de prática
sexual heterodoxa durante relação consentida. Portanto, o relator votou por parcial
provimento do recurso, reconhecendo a extinção de punibilidade no crime de lesão
corporal, pois o acusado cumpriu-a durante a prisão preventiva, e absolvendo o réu
do delito de estupro. Os demais desembargadores votaram com o relator.
Embora o tipo penal de estupro não tenha sob sua proteção legal atos
sexuais não consentidos durante uma relação sexual, é necessário que a legislação
reconheça e abarque tais práticas não consentidas como uma violação sexual, pois
permitem que a vulnerabilidade feminina na prática sexual seja utilizada em seu
prejuízo, bem como permite que atos que as mulheres jamais permitiriam ou
participariam sejam praticados com elas.

c) Apelação Criminal nº 0028741-86.2013.8.12.0001

APELAÇÃO CRIMINAL – ESTUPRO, AMEAÇA E VIOLAÇÃO DE


DOMICÍLIO – CRIMES COMETIDOS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA – ABSOLVIÇÃO – TESE DEFENSIVA DE INSUFICIÊNCIA
DE PROVAS – ARGUMENTO REFUTADO – CONJUNTO PROBATÓRIO
ROBUSTO QUANTO À COMPROVAÇÃO DA AUTORIA E
MATERIALIDADE DELITUOSAS– CONDENAÇÃO MANTIDA – PEDIDO
DE ABSOLVIÇÃO QUANTO AO CRIME DE FURTO – PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA – POSSIBILIDADE – PLEITO DE INCIDÊNCIA DO
PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO – DELITOS DE AMEAÇA E VIOLAÇÃO DE
DOMICÍLIO – REFUTADO – BENS JURÍDICOS TUTELADOS DISTINTOS
E AUTÔNOMOS – DE OFÍCIO – DELITO DE ESTUPRO – REDUÇÃO DO
PATAMAR RELATIVO À CAUSA DE AUMENTO PREVISTA NO ART. 61, II,
"F", DO CP – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
132

O acórdão trata de apelação interposta pelo acusado aos crimes de estupro,


furto, violação de domicílio e ameaça, condenado a 9 (nove) anos e 4 (quatro)
meses de reclusão em regime inicial fechado e 2 (dois) meses e 20 (vinte dias) de
detenção. Requer absolvição por ausência de provas e, subsidiariamente, aplicação
do princípio da insignificância ao furto e consunção dos crimes de ameaça e
violação ao domicílio ao delito de estupro.
Consta na denúncia que o acusado entrou na residência de sua ex-esposa
contra a vontade dela; entraram em violência corporal e o acusado rasgou suas
roupas e passou a agarrá-la, inserindo os dedos em sua vagina e sugando seus
seios; afirmou que colocaria fogo na casa com a vítima dentro e subtraiu para si a
chave da residência. A vítima prestou depoimento, bem como sua irmã, a quem
ligou pedindo socorro. O acusado negou as acusações, afirmando que apenas
houve uma discussão com a vítima.
O relator entende que devem ser mantidas as condenações de ameaça e
estupro, mas que o princípio da consunção deve ser aplicado no crime de violação
ao domicílio, já que se deu como meio para o cometimento das ameaças. Quanto ao
crime de furto, pugna pela aplicação do princípio da insignificância. Por fim,
reconhece a desproporcionalidade da aplicação da agravante em 1/3, fixando em
1/6, resultando na pena de 7 (sete) anos de reclusão. O revisor diverge do relator no
que diz respeito da consunção no crime de violação ao domicílio, entendendo que os
crimes são autônomos. O desembargador remanescente concorda com o revisor.
O caso em voga demonstra que a penetração não é a única forma de violação
sexual que enseja a condenação por estupro, já que foram praticados atos diversos.
Também fica claro que os atos sexuais aos quais a forçou visavam estabelecer
dominância sobre a vítima, a fim de subjugá-la, não se tratando em hipótese alguma
de desejo sexual.

4.3.4 Mato Grosso


No Mato Grosso, foram encontradas 4 (quatro) decisões sobre o tema
pesquisado.

a) Habeas Corpus nº 1003136-73.2021.8.11.0000

HABEAS CORPUS – ESTUPRO E DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS


PROTETIVAS DE URGÊNCIA – PRISÃO PREVENTIVA PARA A
133

GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA – IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA –


ARGUIDA A AUSÊNCIA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA
MEDIDA – IMPROCEDÊNCIA – NECESSIDADE DE RESGUARDAR A
ORDEM PÚBLICA E A INTEGRIDADE FÍSICA E PSICOLÓGICA DA
VÍTIMA – GRAVIDADE CONCRETA DA CONDUTA – RÉU REINCIDENTE
– PERICULUM LIBERTATIS DEMONSTRADO – ÉDITO PRISIONAL
DEVIDAMENTE MOTIVADO – SUSTENTADA A POSSIBILIDADE DE
SUBSTITUIÇÃO DA PRISÃO POR MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS
EM DECORRÊNCIA DA PANDEMIA – PACIENTE QUE NÃO SE
ENQUADRA NO GRUPO DE RISCO – INEFICÁCIA DAS MEDIDAS
CAUTELARES ALTERNATIVAS – CONSTRANGIMENTO ILEGAL
INEXISTENTE – ORDEM DENEGADA.

O acórdão trata de Habeas Corpus impetrado em favor de acusado preso em


flagrante delito pela prática de estupro e descumprimento de medidas protetivas,
cuja prisão foi convertida em preventiva. A defesa alega que a medida é infundada e
desproporcional. Ademais, o paciente seria grupo de risco para o Covid-19, de forma
que requerem a concessão do Habeas Corpus.
Segundo as informações do processo, acusado e vítima foram casados
durante 23 (vinte e três anos) e tiveram dois filhos juntos, mas estavam separados
há alguns meses. Foram impostas medidas protetivas em favor da vítima, pois o
acusado não aceitava o fim do relacionamento e a perseguia. Na data dos fatos, a
vítima havia conhecido outra pessoa e saído com ele, mantendo com ele relações
sexuais no banco traseiro do veículo dele. Quando a vítima estava se vestindo, foi
surpreendida pelo acusado que entrou no veículo e impediu que ela colocasse a
roupa. Passou a ameaçá-la de morte e inserir os dedos em sua vagina, enquanto
filmava os atos. Ordenou que o namorado da vítima dirigisse enquanto ele a violava
no banco de trás. Em dado momento, ordenou que o motorista parasse próximo à
casa da mãe da vítima. Ela fugiu seminua, pois suas roupas estavam rasgadas, e
chamou a polícia. O acusado foi preso em flagrante. Na delegacia, disse que seguiu
a ex-esposa porque desconfiava de traição, mas negou as violências sexuais.
A prisão preventiva foi decretada a fim de preservar a integridade da vítima, já
que houve descumprimento das medidas protetivas. Sendo essas insuficientes, a
medida cautelar a ser aplicada é a prisão preventiva. O acusado já foi preso outras
vezes por violência doméstica. O relator mantém os argumentos e denega o Habeas
Corpus, mantendo a prisão preventiva. Tal decisão é importante a fim de evitar
novos episódios de violência e ameaças contra a vítima.

b) Habeas Corpus nº 1009976-41.2017.8.11.0000


134

HABEAS CORPUS – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E TENTATIVA DE


ESTUPRO – MANDADO DE PRISÃO – TESE DE NEGATIVA DE AUTORIA
– IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE NA VIA ELEITA – MATÉRIA ATINENTE
AO MÉRITO DA AÇÃO – PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS
SUFICIENTES DE AUTORIA – AVENTADA AUSÊNCIA DE
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO E DOS REQUISITOS DESCRITOS NO
ART. 312 DO CPP – INSUBSISTÊNCIA – DEMONSTRAÇÃO EM
CONCRETO DA PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS AUTORIZADORES
DA CONSTRIÇÃO CAUTELAR – NECESSIDADE DA SEGREGAÇÃO
PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA – DESCUMPRIMENTO DE
CAUTELARES DIVERSAS – INTEGRIDADE FÍSICA E PSICOLÓGICA DA
VÍTIMA – ALEGADA EXISTÊNCIA DE BONS PREDICADOS A
RESPALDAR A MEDIDA LIBERATÓRIA – INVIABILIDADE – CONDIÇÕES
PESSOAIS QUE DESSERVEM À FINALIDADE PRETENDIDA –
CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO – DENEGAÇÃO DA
ORDEM.

O acórdão trata de Habeas Corpus interposto em favor de paciente acusado


pela prática de tentativa de estupro no âmbito doméstico. O acusado nega a autoria
dos delitos e alega que suas circunstâncias pessoais são favoráveis, requerendo o
relaxamento da prisão.
A vítima manteve com o acusado relacionamento amoroso pelo período de 6
(seis) meses; o acusado não aceitava o fim do relacionamento. Na data dos fatos,
consta que ligou para a vítima pedindo para conversar. Ao se encontrar com ela, foi
em sua direção afirmando querer manter relação sexual. Diante da negativa da
vítima, pegou-a pelo braço, jogou-a na cama e deitou sobre ela. Mediante uso de
força, retirou os shorts da vítima, agredindo-a com um soco na boca devido aos seus
protestos. A vítima, em dado momento, conseguiu se desvencilhar do acusado, mas
foi derrubada e teve sua cabeça batida no chão sob ameaças de morte. O acusado
foi em direção à cozinha pegar uma faca, momento em que a vítima trancou-se no
quarto e ligou para a polícia, que não encontrou o acusado no local do crime.
O relator entende que estão presentes os requisitos para a manutenção da
prisão do réu, a fim de manter a integridade física da vítima e que seus predicados
pessoais não são suficientes para a sua soltura. Afirma que há risco de reiteração
delitiva, pois o acusado já respondeu processo por ameaça e tem medidas
protetivas de três mulheres diferentes. Por unanimidade, a Câmara denegou a
ordem. Assim como na decisão analisada acima, imperiosa a manutenção da prisão
do acusado para evitar novas violências ou interferências na investigação.

c) Habeas Corpus nº 1000041-35.2021.8.11.0000


135

HABEAS CORPUS – PRISÃO PREVENTIVA – ARTS. 129, § 9º E 213 C/C


14, INC. II, TODOS DO CP, NA FORMA DO ART. 7º, INC. I, II, III DA LEI
11.340/2006 – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA NO DECRETO
PRISIONAL PARA A PRISÃO CAUTELAR - DESPROPORCIONALIDADE
DA PRISÃO – IMPROCEDÊNCIA – DECISÃO DEVIDAMENTE
FUNDAMENTADA – DESCUMPRIMENTO DELIBERADO DAS
PROVIDÊNCIAS ACAUTELATÓRIAS ANTERIORMENTE FIXADAS –
REITERAÇÃO DELITIVA – PACIENTE QUE SUPOSTAMENTE COMETEU
NOVO DELITO EM DESFAVOR DA MESMA VÍTIMA – PERICULUM
LIBERTATIS EVIDENCIADO – PREDICADOS PESSOAIS FAVORÁVEIS –
IRRELEVANTE – PRISÃO DOMICILIAR – (...) CONSTRANGIMENTO
ILEGAL NÃO EVIDENCIADO – ORDEM DENEGADA.

A decisão colegiada trata de Habeas Corpus interposto em favor de paciente


acusado de estupro e lesão corporal em âmbito doméstico, preso preventivamente.
A defesa alega que não houve por parte do acusado ofensa à integridade física da
vítima, e que esta teria redigido declaração isentando o acusado dos crimes
imputados. O acusado alega possuir bons predicados pessoais, primário, ter
residência fixa e emprego, solicitando o relaxamento da prisão.
Consta nos autos que o acusado esteve preso preventivamente em período
anterior, e com o relaxamento, voltou a cometer novo delito contra a mesma vítima,
o que ensejou nova prisão. O acusado afirma que os fatos alegados pela vítima são
invenções. O relator entende pela manutenção da prisão preventiva, pois o acusado
já descumpriu medidas protetivas, de forma que a prisão se impõe a fim de
assegurar a integridade física da vítima. As decisões analisadas no Mato Grosso são
recentes, porém mostram-se em consonância com os princípios protetivos contra
violência doméstica.

4.4 REGIÃO NORDESTE

4.4.1 Bahia
No Tribunal de Justiça da Bahia, foram encontradas 7 (sete) decisões
colegiadas acerca do tema pesquisado.

a) Apelação criminal nº 0504414-64.2016.8.05.0274

PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. RÉU CONDENADO PELA PRÁTICA DO


CRIME DE ESTUPRO (ARTIGO 213, DO CP). PENAS DEFINITIVAS EM 09
ANOS E 04 MESES DE RECLUSÃO, EM REGIME INCIAL FECHADO.
RAZÕES DE APELAÇÃO: INSUFICIÊNCIA DE PROVAS PARA EMBASAR
UMA SENTENÇA CONDENATÓRIA (...) IMPROCEDÊNCIA.
MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS COMPROVADAS. (...)
136

REDUÇÃO DA PENA-BASE PARA O MÍNIMO LEGAL. (...) EXISTÊNCIA


DE ELEMENTO CONCRETO CAPAZ DE FIXAR A PENA-BASE ACIMA DO
MÍNIMO LEGAL. PLEITO DE AFASTAMENTO DA CIRCUNSTÂNCIA
AGRAVANTE CONTIDA NO ARTIGO 61, II, “C”, DO CÓDIGO PENAL. NÃO
CABIMENTO. CRIME COMETIDO POR MEIO ARDIL. PENA MANTIDA.
RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

O acórdão decide sobre apelação interposta por acusado ao crime de


estupro, condenado à pena de 9 (nove) anos e 4 (quatro) meses de reclusão em
regime inicial fechado. A defesa requer a absolvição; subsidiariamente, a fixação da
pena-base no mínimo legal, bem como o afastamento da agravante pelo crime ter
sido cometido por meio de ardil.
O acusado teria entrado pelo telhado durante a noite na casa de sua ex-
companheira, pedindo para dormir. Após perceber que o filho do casal havia
dormido, ordenou que a vítima fosse até o andar de baixo, onde ele estava, e não
ligasse para a polícia, pois se ela o fizesse, ele a mataria. A vítima, temendo por sua
vida, desceu; o acusado tirou sua roupa e manteve com ela conjunção carnal,
sempre sob ameaças de morte.
O relator entende que o conjunto probatório é robusto para manter a
condenação. Afirma, ainda, que não há qualquer erro na dosimetria da pena, e que a
pena deve ser mantida, inclusive a agravante, já que o acusado enganou a vítima
para permanecer na casa. À unanimidade de votos, o recurso foi denegado. Tal
caso remonta à importância da correta consideração das circunstâncias pessoais e
do crime no caso concreto, já que muitos Tribunais entendem essas circunstâncias
como próprias do contexto do crime, o que mantém a pena em um baixo patamar,

b) Apelação Criminal nº 0523877-30.2019.8.05.0001

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (ART. 213


E ART. 129, §9º, NA FORMA DO ART. 69, TODOS DO CP C/C O ART. 7.º,
INCISOS I E III, DA LEI 11.340/2006). RECORRENTE SENTENCIADO À
PENA DE 10 ANOS E 06 MESES DE RECLUSÃO, EM REGIME
FECHADO, MAIS 03 MESES DE DETENÇÃO. PLEITO ABSOLUTÓRIO.
INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. (...) REFORMA DA
PENA. EXCLUSÃO DA CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE PREVISTA NO
ART. 61, II, F, DO CP. EM RAZÃO DO BIS IN IDEM COM A CAUSA DE
AUMENTO CONSTANTE NO ART. 226, II, DO CP. INVIABILIDADE.
PARECER MINISTERIAL PELO IMPROVIMENTO. RECURSO
CONHECIDO E IMPROVIDO.

O acórdão trata de apelação interposta por acusado aos crimes de estupro e


lesão corporal no âmbito doméstico, condenado à pena de 10 (dez) anos e 6 (seis)
137

meses de reclusão em regime inicial fechado, bem como a 3 (três) meses de


detenção. A defesa requer a absolvição por ausência de provas; subsidiariamente,
requer que seja excluída a agravante genérica por ser o crime cometido em
ambiente doméstico, pois já aplicada a causa de aumento própria dos crimes
sexuais, quando cometido por marido ou companheiro.
Consta nos autos que o acusado chegou em casa agressivo e aparentando
estar embriagado, obrigando a vítima, sua companheira, a manter com ele
conjunção carnal mediante força, estrangulando-a e afirmando que ela não mantinha
relações sexuais com ele por vontade própria por ter outro homem. No dia seguinte,
enquanto ele dormia, aproveitou para sair de casa. O acusado encontrou a vítima na
rua, e tentou puxar a vítima de volta para a casa. Com a resistência, deu um soco
em sua boca, o que fez com que a vítima caísse no chão. Uma viatura passou pela
rua e a vítima pediu ajuda. Ao chegarem na residência, o acusado veio em direção a
ela para agredi-la, mas foi impedido pelos policiais e preso em flagrante. Laudo de
exame de corpo de delito atesta as lesões corporais sofridas, bem como há
testemunha da agressão.
O relator afirma que deve ser mantida a condenação, afinal suficiente o
conjunto probatório para formar sua convicção. Quanto ao afastamento da agravante
genérica, postula sua impossibilidade, pois há entendimento que a aplicação da
agravante é compatível com a causa de aumento de pena específica dos crimes
sexuais. Assim, nega provimento ao recurso, decisão corroborada pelos demais
desembargadores. Tal decisão é importante a fim de estabelecer precedentes no
sentido de estabelecer a aplicação recíproca da causa de aumento de pena e da
agravante nos crimes sexuais no âmbito doméstico, a fim de que a pena seja mais
grave demonstrando a reprovabilidade estatal à conduta.

c) Habeas Corpus nº 0013621-30.2015.8.05.0000

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO.


PACIENTE PRESO PELA SUPOSTA PRÁTICA DOS DELITOS DE LESÃO
CORPORAL (ART. 129, § 9.º), CONSTRANGIMENTO ILEGAL COM
UTILIZAÇÃO DE ARMA PRÓPRIA (ART. 146, § 1.º), AMEAÇA (ART. 147)
E ESTUPRO (ART. 231, TODOS DO CPB), NO ÂMBITO DOMÉSTICO.
ALEGAÇÃO DE EXCESSO PRAZAL NA DEFLAGRAÇÃO DA
PERSECUÇÃO CRIMINAL JUDICIAL. OFERECIMENTO DA DENÚNCIA
PELO PARQUET. EVENTUAL CONSTRANGIMENTO ILEGAL
SUPERADO. SUSTENTAÇÃO DE COAÇÃO ILEGAL PELA INEXISTÊNCIA
DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA
PREVENTIVA DO PACIENTE. NÃO ACOLHIMENTO. (...) PARECER
138

MINISTERIAL PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM CONHECIDA E


DENEGADA.

O acórdão decide acerca de Habeas Corpus interposto em favor de paciente


preso preventivamente acusado dos delitos de lesão corporal, constrangimento
ilegal com uso de arma, ameaça e estupro. A defesa alega que a lesão corporal
ocorreu sob intensa emoção, após o acusado encontrar a ex-companheira na cama
com outro homem, negando o crime de estupro. Aduz ausência de requisitos para a
manutenção da prisão, bem como excesso de prazo para a conclusão do inquérito e
consequentemente para o oferecimento da denúncia, afirmando que há
constrangimento ilegal.
A vítima narra que recebeu ligação do acusado, afirmando que já havia
desocupado a residência com seus pertences e que ela poderia voltar. Em
companhia de um amigo, foi surpreendida com a chegada abrupta do acusado, que
chegou questionando se estava em companhia de outro homem. A vítima pediu que
o amigo se escondesse sob a cama, por medo da reação do acusado. Ao encontrar
o outro homem, foi até a cozinha, pegou uma faca e desferiu 7 (sete) facadas no
amigo da vítima. Também agrediu a vítima com socos na face e a obrigou a ir com
ele a um matagal, onde a estuprou. Após o estupro, afirmou que a mataria, com a
faca em seu pescoço. O acusado teria tido uma visão, desistindo de matá-la e
liberando a vítima. Após a denúncia, o acusado enviou mensagens à vítima,
afirmando que caso ela desse prosseguimento na ação penal, ele terminaria o que
havia começado.
A relatora do acórdão afirma que está prejudicada a alegação de
constrangimento ilegal por excesso de prazo, pois a denúncia foi oferecida entre a
impetração do Habeas Corpus e o acórdão proferido. Entende também que
presentes os requisitos para a manutenção da prisão a fim de proteger a integridade
da vítima, voto que é provido por unanimidade. Tal decisão demonstra a importância
de manter o investigado preso a fim de não demover a vítima com ameaças, embora
tal situação tenha sido resolvida de certa maneira quando o crime de estupro se
tornou de ação penal pública incondicionada.

4.4.2 Paraíba
No Tribunal de Justiça da Paraíba, foi encontrado apenas 1 (um) acórdão que
versa sobre o crime de estupro no âmbito doméstico.
139

a) Habeas corpus nº 0804154-15.2015.8.15.0000

HABEAS CORPUS – CRIMES DE AMEAÇA


E ESTUPRO SUPOSTAMENTE PRATICADOS EM ÂMBITO FAMILIAR –
PRISÃO EM FLAGRANTE – CONVERSÃO EM PRISÃO PREVENTIVA -
POSSIBILIDADE – DECISÃO ‘A QUO’ DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA
– PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 312 DO CPP – LEGALIDADE -
MANUTENÇÃO DO DECRETO PREVENTIVO - DENEGAÇÃO DA ORDEM.

O acórdão decide acerca de Habeas Corpus impetrado em favor de acusado


pelos crimes de ameaça e estupro no âmbito doméstico, preso em flagrante, prisão
que foi convertida em preventiva. A defesa afirma que a prisão é ilegal porque
estariam ausentes os requisitos para sua concessão; requer o relaxamento da
prisão.
O acusado está preso em flagrante pela prática do crime de estupro e
ameaça contra sua companheira. A vítima teria negado as agressões sexuais,
relatando apenas agressões físicas e psicológicas. O relator entende que tais
agressões são suficientes para manter a prisão a fim de preservar a vítima; e que
embora a vítima tenha se posicionado a fim de defender seu companheiro, tal fato é
comum em crimes de violência doméstica pela dependência e medo de retaliação. O
acusado possui outras violências domésticas, de forma que o relator entende que a
vítima pode ser violentada novamente, denegando a soltura do acusado; os demais
desembargadores votaram como o relator. Nessa decisão, o próprio desembargador
reconhece as fragilidades que cercam uma vítima de violência doméstica,
demonstrando adesão aos princípios protetivos à mulher em seu voto.

4.2.3 Piauí
No Piauí, foi encontrada apenas 1 (uma) decisão colegiada que versa sobre
estupro de cônjuge ou companheira.

a) Apelação criminal nº 0001045-40.2011.8.18.0046

PENAL E PROCESSUAL PENAL – APELAÇÃO CRIMINAL – SENTENÇA


CONDENATÓRIA – ESTUPRO (ART. 213 DO CP) – LESÃO CORPORAL
(ART. 129, 9º DO CP) – VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO (ART. 150, 1º DO CP)
– EM CONCURSO MATERIAL (ART. 69 DO CP) – EM AMBIENTE
DOMÉSTICO (LEI 11.340/06) – APELO EXCLUSIVAMENTE DEFENSIVO –
1 ABSOLVIÇÃO – INVIABILIDADE – PROVA SUFICIENTE À
CONDENAÇÃO – 2 DOSIMETRIA – DECOTE DE VETORIAL
140

INDEVIDAMENTE NEGATIVADA – ACOLHIMENTO – PENA BASE


REDIMENSIONADA AO MÍNIMO LEGAL – 3 PARCIAL PROVIMENTO
UNÂNIME.

O acórdão versa sobre apelação interposta por acusado ao crime de estupro,


lesão corporal em âmbito doméstico e violação de domicílio em concurso material,
condenado a 7 (sete) anos e 2 (dois) meses de reclusão e 9 (nove) meses de
detenção, em regime inicial semiaberto. A defesa pleiteia absolvição por
insuficiência probatória e, subsidiariamente, o redimensionamento da pena.
O acusado entrou na casa de sua ex-companheira, com quem viveu por 10
(dez) anos, quebrando objetos por não aceitar o fim do relacionamento. No dia
seguinte, invadiu novamente a casa da vítima e deu um soco em seu olho. Após
alguns dias, invadiu a casa pela terceira vez, e sob ameaças de morte obrigou a
vítima a ter com ele relação anal.
O relator entende serem suficientes as provas colhidas, pois o depoimento
firme e coerente da vítima foi corroborado por testemunhas, de modo que nega a
absolvição. O relator redimensiona a pena, entendendo que as circunstâncias
judiciais desfavoráveis são próprias do tipo penal, afastando-a da pena base;
apenas a agravante genérica foi considerada. Com o concurso material reconhecido,
o acusado teve sua pena redimensionada para 7 (sete) anos de reclusão e 9 (nove)
meses de detenção. Os demais desembargadores votaram conforme o relator.
Como já mencionado, o critério para aplicação de circunstâncias judiciais, na
primeira fase da fixação de pena, deve ser mais claro e específico. Muitos
desembargadores afastam tais circunstâncias no cômputo da pena, alegando serem
próprias do cometimento do crime, de modo que a aplicação das circunstâncias
judiciais é confusa e diverge conforme o Tribunal analisado.

4.4.4 Maranhão
No Estado do Maranhão, foram encontrados 3 (três) acórdãos que versam
sobre o tema pesquisado

a) Habeas Corpus nº 0005280-74.2015.8.10.0000

Penal e Processual Penal. Habeas Corpus. Crime de lesões corporais e


estupro, praticados no âmbito de violência doméstica e familiar contra a
mulher. Prisão preventiva. Alegação de ausência de elementos concretos.
141

Inocorrência. Periculosidade concreta da conduta evidenciada. Predicativos


favoráveis à concessão da ordem. Irrelevância. Ordem denegada.

O acórdão decide sobre Habeas Corpus interposto em favor de paciente


acusado de praticar os crimes de estupro e lesão corporal no âmbito doméstico. A
defesa alega faltar fundamentação concreta a embasar a manutenção da prisão
preventiva, bem como que o acusado tem predicados favoráveis à sua soltura, de
modo que requer o relaxamento da prisão.
O paciente foi preso em flagrante por ter agredido e estuprado sua namorada,
tendo sua prisão sido convertida em preventiva. Laudo médico atesta o estupro. O
relator entende que a prisão deve ser mantida a fim de preservar a integridade física
da vítima. Os demais desembargadores votam conforme o relator. A prisão
preventiva é essencial em casos de tamanha gravidade a fim de resguardar a vítima
e a investigação.

b) Apelação Criminal nº 0000726-46.2013.8.10.0104

APELAÇÃO CRIMINAL. CÁRCERE PRIVADO QUALIFICADO COM FINS


LIBIDINOSOS. ESTUPRO. CONCURSO MATERIAL. DOSIMETRIA.
RETIFICAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS VALORADAS
NEGATIVAMENTE. PENA-BASE REDIMENSIONADA. VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER. AGRAVANTE DO ART. 61,
II, "F"DO CP. INCIDÊNCIA. RECENTE TÉRMINO DA COABITAÇÃO.
RELAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL AINDA CONFIGURADA. CAUSA DE
AUMENTO DE PENA DO ART. 226, II DO CP. APLICAÇÃO. SANÇÃO
PRIVATIVA DE LIBERDADE MAJORADA.

O acórdão decide acerca de apelação criminal interposta pelo Ministério


Público em desfavor de acusado aos crimes de estupro e cárcere privado qualificado
em concurso material, condenado a 9 (nove) anos de reclusão em regime inicial
fechado. O Ministério Público pugna pela reforma da pena, com o reconhecimento
da causa de aumento de pena de crimes sexuais referente ao autor ser companheiro
da vítima, bem como a agravante por ter o acusado cometido o crime em contexto
de violência doméstica. A defesa requer que a pena seja mantida.
Após o fim do relacionamento entre ambos, o acusado teria obrigado a vítima,
sua ex-companheira a ir com ele até um motel, onde obrigou a vítima a ter com ele
coito anal e vaginal sob violência, por não aceitar o fim do relacionamento. O relator
entende que a separação do casal era recente, entendendo que incide a causa de
aumento de pena no crime de estupro e a agravante de violência doméstica em
142

ambos os crimes. O relator dá parcial provimento ao recurso, aumentando a pena


para 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de reclusão.
Em casos como esse, em que o acusado não aceita o fim do relacionamento
e passa a agredir a ex-companheira, é necessário que seja reconhecida a agravante
por cometimento em violência doméstica, já que o crime é praticado com o intuito de
subjugar a vítima na condição de mulher. Quanto à causa de aumento de pena de
estupro, deveria ser aplicada também indiscriminadamente aos ex-companheiros
que cometem tais crimes, já que se enxergam como proprietários da vítima, de
forma que para eles, o relacionamento se mantém de certa forma.

c) Apelação Criminal nº 0089642018

PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. AMEAÇA,


VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO E ESTUPRO. ABSOLVIÇÃO.
IMPOSSIBILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE
COMPROVADAS. PALAVRA DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE
REPRESENTAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. BOLETIM DE
OCORRÊNCIA. INÉPCIA DA INICIAL. PRECLUSÃO. PENA
REDIMENSIONADA. REGIME INICIAL ALTERADO.

O acórdão decide acerca de apelação criminal interposta por acusado aos


crimes de ameaça, violação de domicílio e estupro, condenado a 8 (oito) anos de
reclusão. A defesa pugna pela absolvição e, subsidiariamente, pela fixação da pena
no patamar mínimo. Alega inépcia da inicial por ausência de representação da
vítima.
Por meio de ameaças e agressões, o acusado voltou a morar na casa de sua
ex-companheira, e, na frente de seu filho, de 7 (sete) anos, obrigou que ela
mantivesse com ele conjunção carnal. A vítima fez boletim de ocorrência contra os
crimes, de forma que o relator entende ser evidente o seu desejo de representar,
negando a inépcia da inicial. Quanto à pena, o relator mantém em todos os crimes a
agravante de terem sido cometidos no âmbito doméstico, afastando circunstâncias
judiciais desfavoráveis. Assim, a pena final foi estabelecida em 7 (sete) anos de
reclusão, em regime inicial semiaberto. O acórdão foi provido por unanimidade.
Como já mencionado, as circunstâncias judiciais devem ter um critério mais
específico de aplicação, já que é baseado nas convicções e na discricionariedade
decisória do magistrado.
143

4.4.5 Pernambuco
No Tribunal de Justiça do Pernambuco, foram encontradas 2 (duas) decisões
colegiadas sobre estupro contra companheira ou ex-companheira.

a) Apelação criminal nº 0000334-05.2016.8.17.0170

PENAL E PROCESSO PENAL. ART. 147, ART. 148, 2 E ART. 213 C/C O
ART. 226, II, TODOS DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE E AUTORIA
DOS DELITOS DE ESTUPRO E CÁRCERE PRIVADO COMPROVADAS.
DOSIMETRIA. ART. 148, 2. DO CP. REANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS
JUDICIAIS. INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. CONCURSO FORMAL.
APELO PROVIDO PARCIALMENTE. DECISÃO UNÂNIME.

O acórdão versa sobre apelação interposta por acusado aos crimes de


estupro, cárcere privado qualificado e ameaça, condenando-o a 23 (vinte e três)
anos de reclusão e 6 (seis) meses de detenção em regime inicial fechado. A defesa
requer absolvição por ausência de provas, e, subsidiariamente, requer a redução da
pena-base no crime de cárcere, cuja pena final foi de 8 (oito) anos de reclusão, pena
máxima, entendendo que as circunstâncias judiciais foram erroneamente aplicadas.
O acusado e a vítima conviveram maritalmente por 30 (trinta) anos e tiveram
2 (dois) filhos. O acusado mantinha a vítima e os dois filhos em cárcere privado,
estuprando a vítima por diversas vezes. O acusado mantinha a vítima e os filhos
presos por vários dias, bem como os proibia de falar com outras pessoas. Quando
posto em liberdade, violou medidas protetivas e foi à casa da vítima. Vizinhos
testemunham a rotina de violência sofrida pela vítima, e que ela era proibida de sair
de casa.
O relator entende que as provas apresentadas são suficientes, pois além do
depoimento da vítima e dos filhos, bem como dos vizinhos, o réu já fora denunciado
anteriormente por maus tratos à família, entendendo que os crimes ocorreram por
vários anos. Assim, nega a absolvição. Redimensiona a pena no delito de cárcere
para 6 (seis) anos, porém, leva em consideração os outros dois cárceres cometidos
contra os filhos, aplicando o concurso formal, restando a pena de cárcere fixada em
7 (sete) anos, 9 (nove) meses e 18 (dezoito) dias de reclusão. Assim, dá parcial
provimento ao recurso; os demais desembargadores votam como o relator.
No caso em voga, pode-se observar nos autos que a vítima sofreu agressões
por mais de 10 (dez) anos. Só teve dimensão do que lhe ocorria ao ir a um hospital
por um motivo diverso, momento em que os profissionais perceberam seu
144

comportamento esquivo, conversaram com ela e descobriram sobre as violências,


aconselhando-a sobre o assunto. Assim, fica clara a importância de os profissionais
de saúde terem orientação sobre violência doméstica.

b) Revisão Criminal nº 0004380-57.2019.8.17.0000

PENAL E PROCESSO PENAL. REVISÃO CRIMINAL. ESTUPRO


TENTADO EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. PRELIMINAR
DE AUSÊNCIA DE DEFESA TÉCNICA REJEITDA. CONDENAÇÃO DO
ACUSADO EM HARMONIA COM AS PROVAS DOS AUTOS. PENA
ADEQUADA E PROPORCIONAL À CONDUTA PRATICADA. PEDIDO
INDEFERIDO. DECISÃO UNÂNIME.

O acórdão decide sobre revisão criminal interposta por acusado ao crime de


estupro tentado contra sua ex-companheira, condenado a 4 (quatro) anos e 10 (dez)
meses de reclusão. A defesa alega, preliminarmente, nulidade do processo por
ausência de defesa técnica; no mérito, alega que a condenação foi contrária à
evidência dos autos e requer o redimensionamento da pena, pois seus antecedentes
teriam sido considerados negativos por causa de inquéritos policiais e medidas
protetivas.
O acusado e a vítima estavam separados, mas morando na mesma casa. O
acusado tentou estuprar a vítima, tendo sido impedido pela filha. A relatora
considera preclusa a ausência de defesa técnica, pois nas alegações finais o
acusado já contava com advogado particular, que na época não impugnou a defesa
feita pela Defensoria. Ademais, entende que a pena aplicada é correta, indeferindo o
pedido revisional, voto que é acompanhado pelos demais desembargadores, em
conformidade com os demais acórdãos analisados.

4.4.6 Alagoas
No Tribunal de Justiça do Alagoas, foram encontrados 10 (dez) acórdãos que
decidem sobre o crime de estupro em relacionamentos amorosos.

a) Apelação Criminal nº 0700235-02.2018.8.02.0021

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. LESÃO


CORPORAL EM ÂMBITO DOMÉSTICO E ESTUPRO. PRETENSÃO
ABSOLUTÓRIA. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS.
SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. DOSIMETRIA DA PENA. IRRESIGNAÇÃO
COM A PENA-BASE. INEXISTÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS
145

VALORADAS DESFAVORAVELMENTE. AUSÊNCIA DE INTERESSE


RECURSAL. APELO PARCIALMENTE CONHECIDO E IMPROVIDO.

O acórdão decide sobre apelação interposta por acusado aos crimes de


estupro e lesão corporal no âmbito doméstico, condenado a 10 (dez) anos e 8 (oito)
meses de reclusão e 3 (três) meses de detenção em regime inicial fechado. Pugna
pela absolvição por insuficiência de provas e, subsidiariamente, pelo
redimensionamento da pena-base.
O relator afirma que não há interesse recursal na diminuição da pena-base, já
que foi fixada no mínimo legal, não conhecendo do apelo neste aspecto. Entende
que as provas dos autos são suficientes para ambas as condenações, pois além de
exame de corpo de delito, há depoimento da vítima e das testemunhas a corroborar,
negando provimento ao recurso, voto acompanhado pelos demais
desembargadores.

b) Apelação criminal nº 0700387-23.2018.8.02.0030

PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. LESÃO CORPORAL


EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, ESTUPRO E CÁRCERE
PRIVADO. ABSOLVIÇÃO DOS DELITOS DE ESTUPRO E CÁRCERE
PRIVADO. NÃO ACOLHIMENTO. CONJUNTO PROBATÓRIO ATESTA A
OCORRÊNCIA DOS CRIMES. POSTERIOR RETRATAÇÃO DA VÍTIMA
NÃO CONDIZ COM AS PROVAS CARREADAS AOS AUTOS. HISTÓRICO
DE RELACIONAMENTO VIOLENTO E DE TEMOR DA PESSOA DO RÉU.
DOSIMETRIA DA PENA. REMODULAÇÃO FAVORÁVEL DAS
CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS CULPABILIDADE E CONDUTA SOCIAL.
REJEIÇÃO. CRIMES COMETIDOS DIVERSAS VEZES EM CURTO
ESPAÇO DE TEMPO, CONTRA ESPOSA QUE AMAMENTAVA FILHO
PEQUENO E EM CONTEXTO DE AGRESSÕES AO OUTRO FILHO DO
CASAL. ACUSADO QUE ATEMORIZA AS PESSOAS DA REGIÃO, TENDO
AMEAÇADO A VIZINHA E O PAI DA OFENDIDA QUE CHAMARAM A
POLÍCIA. VETORIAIS QUE MERECEM A FRAÇÃO DE EXASPERAÇÃO
ARBITRADA NA ORIGEM. REPRIMENDA MANTIDA. RECURSO
CONHECIDO E IMPROVIDO.

O acórdão versa sobre apelação interposta por acusado aos crimes de lesão
corporal e estupro em contexto doméstico, bem como por cárcere privado,
condenado a 12 (doze) anos de reclusão em regime inicial fechado. Pede absolvição
dos delitos de estupro e cárcere privado, bem como reanálise da dosimetria da
pena.
A vítima ficou presa em casa durante 4 (quatro) dias, sendo espancada,
ameaçada de morte e estuprada pelo marido. A vítima tinha 18 (dezoito) anos e já
se relacionava com o acusado há 5 (cinco), tendo com ele três filhos. Alega que
146

sempre foi agredida por ele, e que por isso havia fugido para Alagoas, mas ele a
perseguiu até o estado, forçando-a a continuar o relacionamento. Na data dos fatos,
os vizinhos escutaram os pedidos de socorro e ligaram para o pai da vítima, que
ligou para a Polícia. Os policiais encontraram a vítima presa e machucada, sendo
agredida pelo acusado, que foi preso em flagrante. O acusado já havia sido preso
outras vezes por violência doméstica contra a companheira. Em juízo, disse querer
retirar as acusações, mas após tomar conhecimento de que o Ministério Público
prosseguiria com a ação independentemente de seu desejo, relatou os fatos.
O relator entende ser robusto o conjunto probatório, já que há diversas
testemunhas a corroborar os crimes. Quanto ao apenamento, mantém as
circunstâncias judiciais valoradas negativamente pelo juízo de primeiro grau,
negando provimento ao recurso, voto que é acompanhado pelos demais
desembargadores. Como já visto, a aplicação de circunstâncias judiciais negativas
na primeira fase de fixação da pena varia conforme o Tribunal analisado, já que a
maioria deles entende que tais circunstâncias judiciais negativas são próprias do
crime praticado, afastando-as da dosimetria.

c) Apelação Criminal nº 0002381-53.2012.8.02.0058

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO.


MATERIALIDADE E AUTORIA. VÍTIMA QUE NÃO COMPARECEU EM
JUÍZO PARA RATIFICAR DEPOIMENTO PRESTADO PERANTE A
AUTORIDADE POLICIAL. IRRELEVÂNCIA. EXAME DE CORPO DE
DELITO E TESTEMUNHOS DOS POLICIAIS QUE ATENDERAM A
OCORRÊNCIA SUFICIENTES PARA EMBASAR A CONDENAÇÃO.
DOSIMETRIA. CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO. CRIME COMETIDO
CONTRA COMPANHEIRA. IDONEIDADE DA DESVALORAÇÃO.
COMPORTAMENTO DA VÍTIMA. NEGATIVAÇÃO AFASTADA.
REDIMENSIONAMENTO DA PENA. SENTENÇA REFORMADA. APELO
CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

O acórdão decide sobre apelação interposta por acusado aos crimes de


estupro contra sua companheira, condenado a 7 (sete) anos de reclusão em regime
inicial semiaberto. Requer absolvição por insuficiência probatória, por a vítima não
ter deposto judicialmente e, subsidiariamente, o redimensionamento da pena para
afastar circunstâncias judiciais desfavoráveis.
O acusado teria forçado sua companheira a com ele manter relação anal,
tendo-a ameaçado de morte caso o denunciasse. Laudo do IML atesta coito anal. O
acusado foi preso em flagrante. O relator mantém condenação, mas afasta a
147

circunstância judicial negativa quanto ao comportamento da vítima, já que esta só


pode ser positiva ou neutra, fixando a pena em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de
reclusão, voto seguido pelos demais desembargadores. Tal decisão segue
entendimento fixado de que o comportamento da vítima não pode ser tido como uma
circunstância judicial negativa, apenas positiva para o réu ou neutra.

4.5.7 Rio Grande do Norte


Não foi encontrada nenhuma decisão sobre o tema no Tribunal do Rio Grande
do Norte.

4.5.8 Ceará
No Estado do Ceará, foi encontrada apenas 1 (uma) decisão de segundo grau
acerca do crime de estupro marital.

a) Habeas Corpus nº 0622995-86.2018.8.06.0000

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA, ESTUPRO, PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO
PERMITIDO. MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA NA SENTENÇA
CONDENATÓRIA. NEGATIVA DO DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE.
1. ALEGADA CARÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. GARANTIA DA ORDEM
PÚBLICA. PACIENTE PRESO DURANTE A INSTRUÇÃO PROCESSUAL.
SEGREGAÇÃO PAUTADA NA GRAVIDADE CONCRETA DO DELITO,
MODUS OPERANDI E NO RISCO DE REITERAÇÃO DELITIVA. 2.
NEGATIVA DE AUTORIA. NÃO CONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE
REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA NA VIA ESTREITA
DESTE WRIT. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, EM SUA
EXTENSÃO, DENEGADA.

O acórdão analisado versa sobre Habeas Corpus interposto por paciente


acusado aos crimes de estupro e lesão corporal no âmbito doméstico e porte ilegal
de arma de fogo, condenado a 13 (treze) anos e 1 (um) mês de reclusão em regime
inicial fechado. Pugna pelo relaxamento da prisão preventiva, requerendo apelar em
liberdade.
O acusado teria batido na vítima com um chicote de couro e a obrigado a
manter com ele relações sexuais. Ambos mantiveram um relacionamento de 9
(nove) anos e tiveram 2 (dois) filhos, mas nunca moraram juntos por ser o acusado
casado. Após a vítima se recusar a manter relação sexual, o acusado passou a
manipular uma arma. Ao dormir, a vítima pegou a munição para esconder. O
148

acusado ficou nervoso e impediu a vítima de ir embora, e começou a chicoteá-la na


frente do filho; em seguida, obrigou a vítima a manter relações sexuais. O relator
entende que a prisão deve ser mantida, não havendo mais presunção de inocência
em relação ao acusado, já condenado em primeiro grau, bem como a fim de
resguardar a integridade da vítima. Recusa apreciação de provas, por não ser essa
a peça processual adequada. Nega provimento ao recurso, voto seguido pelos
demais desembargadores.

4.5.9 Sergipe
No Tribunal de Justiça do Sergipe, não foi encontrada nenhuma decisão
sobre o tema pesquisado.

4.5 REGIÃO NORTE

4.5.1 Amazonas
No Amazonas, foram encontradas 5 (cinco) decisões colegiadas que tratam
do crime de estupro no âmbito doméstico.

a) Apelação Criminal nº 0207138-74.2009.8.04.0020

APELAÇÃO CRIMINAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER –


ESTUPRO - SENTENÇA NULA – AUSÊNCIA DE FORMALIDADES
ESSENCIAIS - NECESSÁRIO O PROSSEGUIMENTO DO FEITO -
RECURSO PROVIDO.

O presente acórdão versa sobre apelação interposta pelo Ministério Público


contra decisão do juízo da Vara de Violência Doméstica contra a Mulher que
extinguiu sem resolução do mérito processo de acusado de estupro contra a sua
companheira, mantendo as medidas protetivas concedidas. O processo foi
sentenciado sem resolução de mérito em mutirão, sob a alegação de que tramitava
há longo tempo e que o perigo havia cessado para a vítima após concessão das
medidas protetivas. Assim, o Ministério Público pugna pela anulação da sentença,
sob o argumento de ausência de fundamentação legal. A parte apelada é acusada
de estupro contra sua companheira, que resultou em gravidez.
O relator entende que a sentença originária é nula, determinando o
prosseguimento da ação penal; os demais desembargadores votam em
149

conformidade. Embora os mutirões sejam importantes para o andamento de ações


judiciais, é incabível que o processo seja sentenciado genericamente. Foram
encontrados outros dois julgados de apelação do Ministério Público contra
sentenças genéricas em casos de estupro conjugal. Note-se que são acórdãos
proferidos em 2014, em que ainda era necessária a representação da vítima para a
instauração da ação penal. A ausência de sentença de mérito ignora todo o esforço
dessas vítimas para encerrar a violência e é uma forma de impunidade.

b) Habeas Corpus nº 4004212-23.2014.8.04.0000

HABEAS CORPUS - ESTUPRO/VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - RETRATAÇÃO


DA VÍTIMA - AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO
PREVENTIVA -RATIFICAÇÃO DE LIMINAR DEFERIDA - FIXAÇÃO DE
MEDIDAS PROTETIVAS - ORDEM CONCEDIDA.

O acórdão em apreço trata de Habeas Corpus interposto em favor de


acusado preso em flagrante pela prática de estupro contra sua companheira; a
prisão foi convertida em preventiva. Em depoimento judicial, a vítima negou que o
companheiro tenha praticado os atos, afirmando que fez a acusação em momento
de emoção.
O relator entende que dada a retratação da vítima, deve-se conceder o
Habeas Corpus; contudo, fixa medida protetivas a fim de que a integridade da vítima
seja preservada. Embora conforme os princípios legais que regem o processo penal,
tal decisão desconsidera as dificuldades para a vítima de denunciar o parceiro pela
violência sexual, por ter dependência emocional ou financeira da relação. A negação
da vítima, por si só, não deveria representar falta de perigo à sua integridade ou que
o ato não tenha ocorrido, mas os autos carecem de informações acerca das outras
provas do processo.

c) Apelação criminal nº 0014517-83.2004.8.04.0001

APELAÇÃO CRIMINAL – ESTUPRO – AUTORIA E MATERIALIDADE –


COMPROVAÇÃO – PALAVRA DA VÍTIMA CORROBORADA PELOS
DEMAIS ELEMENTOS DE PROVA – ESPECIAL VALOR PROBATÓRIO –
VERSÃO DO RÉU DESPROVIDA DE PROVAS – CONDENAÇÃO
MANTIDA - APELAÇÃO CRIMINAL CONHECIDA E NÃO PROVIDA.

A decisão versa sobre apelação interposta pelo acusado ao crime de estupro


em contexto doméstico, condenado a 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de reclusão em
150

regime inicial semiaberto. A defesa pugna pela absolvição por ausência de provas,
sob a alegação de que a vítima inventou os fatos porque queria tirá-lo de casa, já
que o acusado não aceitava a separação.
Consta nos autos que o acusado obrigou sua companheira a manter com ele
conjunção carnal e praticar outros atos libidinosos. A materialidade é comprovada
pelo exame de corpo de delito, que atesta conjunção carnal e coito anal, bem como
pelo laudo psicológico da vítima. A vítima afirmou em juízo que o acusado estava
embriagado e que ela estava dormindo quando ele chegou. O acusado a deixou
amarrada após forçá-la aos atos. Em dado momento, a vítima conseguiu fugir e
pedir ajuda a vizinhos, que acreditavam que o acusado estava armado quando o
encontraram, pois ameaçava matar a vítima. Esta afirma que por muitos anos sofreu
violências, inclusive sexual, mas que nesse dia foi muito mais violento, de forma que
procurou ajuda policial.
O desembargador entende que a prova colacionada nos autos é suficiente
para atestar materialidade do delito, pois a vítima apresentava diversos ferimentos à
época e, anos depois, exame confirmou que possui sequelas pelas violências
sofridas. Exame psicológico também atesta inúmeros traumas causados pelo
relacionamento com o acusado. Assim, entende por manter a condenação; ambos
os desembargadores votam em concordância com o relator. Trata-se de processo
que teve início em 2004, cujo recurso de segundo grau foi julgado em 2019. A parte
a demora judicial, que poderia ter consequências graves para a vítima, o acórdão é
coerente com os princípios protetivos contra violência doméstica.

4.5.2 Acre
Foram encontradas 5 (cinco) decisões sobre estupro marital no Estado do
Acre.

a) Habeas Corpus nº 1001321-88.2019.8.01.0000

Habeas Corpus. Ameaça e estupro qualificados pela violência doméstica.


Posse irregular de arma de fogo de uso permitido. Vias de fato. Prisão
preventiva. Existência dos pressupostos e requisitos. Condições pessoais
favoráveis. Decisão fundamentada. Não imposição de medida cautelar
diversa. Constrangimento ilegal. Inexistência.

O acórdão decide sobre Habeas Corpus interposto por acusado de ameaça e


estupro no âmbito doméstico com o emprego de arma de fogo cuja posse era
151

irregular. O acusado teve sua prisão preventiva decretada após a prisão em


flagrante. A defesa afirma que tem boas condições pessoais e que estão ausentes
os requisitos para a prisão preventiva.
O acusado e a vítima foram casados por 6 (seis) anos, mas o acusado não
aceitava o fim do relacionamento e por isso a ameaçou. Por várias vezes, o acusado
obrigou a vítima a ter com ele relação sexual sob ameaça de armas brancas e de
fogo. O acusado nega a prática dos crimes. Foi preso em flagrante por posse
irregular de arma de fogo.
O relator entende que as circunstâncias pessoais favoráveis não são o fator
mais relevante para o relaxamento da prisão, mas sim a ordem pública e o regular
andamento da investigação, o que seria prejudicado com a soltura do acusado.
Entende pela impossibilidade de outras medidas cautelares, pois presentes os
requisitos para a prisão. Assim, os desembargadores denegam a ordem, por
maioria. A interpretação de que em alguns casos de violência doméstica, como a
que culmina em estupro, a prisão preventiva deve ser decretada a fim de resguardar
a vítima e a investigação parece estar consolidada nos Tribunais nacionais.

b) Apelação criminal nº 0005684-71.2015.8.01.0002

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO. AMEAÇA. LESÃO CORPORAL.


CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ALEGADA AUSÊNCIA DE
FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. INOCORRÊNCIA.
PLEITOS ABSOLUTÓRIOS. IMPOSSIBILIDADE. AUTORIA E
MATERIALIDADE DOS DELITOS DEVIDAMENTE COMPROVADAS.
PROVAS ROBUSTAS PARA MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO.
LEGÍTIMA DEFESA. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE EXCLUDENTE DE
ILICITUDE. FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA. PRESENÇA.
DESPROVIMENTO DO APELO.

O acórdão decide sobre apelação interposta por acusado aos crimes de


estupro, lesão corporal e ameaça em contexto de violência doméstica, condenado à
pena de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de reclusão em regime semiaberto. A
defesa alega, preliminarmente, que a sentença não foi devidamente fundamentada,
requerendo o reconhecimento da nulidade; no mérito, alega insuficiência de provas,
razão pela qual requer a absolvição.
Consta nos autos que o acusado chegou de madrugada na casa da ex-
companheira a fim de saber se ela estava com outro homem. Durante a discussão
que se seguiu, jogou-a na cama e tentou furá-la com uma tesoura, lesionando a
vítima. Em seguida, rasgou as roupas da vítima e enfiou os dedos na vagina da
152

vítima sob a alegação de que fazia aquilo para saber se ela teve relação com outro
homem. O acusado juntou as roupas rasgadas e o lençol sujo de sangue e levou
embora, afirmando que mataria a vítima caso ela o denunciasse. Há exame de corpo
de delito e boletim de ocorrência a corroborar o testemunho da vítima. O acusado
alega que a vítima simulou os fatos narrados na denúncia após ele ter recusado
reatar o relacionamento.
O relator rejeita a preliminar suscitada, entendendo que a sentença está
suficientemente embasada. No mérito, aduz que o depoimento da vítima foi coerente
durante todas as fases processuais e que está corroborado por outros meios de
prova, votando pelo desprovimento do recurso. Os demais desembargadores o
acompanham.
Nota-se no caso em voga que o acusado não aceitava o fim do
relacionamento e que o ato libidinoso ao qual a forçou visava controlar sua
sexualidade. Aparenta ter consciência da gravidade de seus atos, de forma que
tenta não deixar vestígios, mas isso não o impede de tentar manter o domínio sobre
o que pensa ser sua propriedade. Também parece ser usual que os acusados
acusem a vítima de não aceitar o fim do relacionamento, quando são eles que não
aceitam o fim do relacionamento e tentam controlá-las por meio de agressões.

c) Revisão criminal nº 1000016-35.2020.8.01.0000

PENAL E PROCESSUAL PENAL. REVISÃO CRIMINAL. ESTUPRO.


LESÃO CORPORAL QUALIFICADA E AMEAÇA. CONSUNÇÃO. (...)
DOSIMETRIA DA PENA. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. JUÍZO
REVISÓRIO. REDIMENSIONAMENTO DA PENA. CAUSA ESPECIAL DE
DIMINUIÇÃO DA PENA. PROCEDÊNCIA PARCIAL.

O acórdão analisado versa sobre revisão criminal, interposta por condenado à


prática dos crimes de estupro, lesão corporal qualificada e ameaça. O acusado
afirma que os delitos de lesão corporal foram inerentes ao crime de estupro, de
forma que requer que seja reconhecido o princípio da consunção. Requer que seja
reformada a dosimetria dos delitos, fixando a pena no mínimo legal.
Consta nos autos que o acusado foi buscar a vítima em casa e que estavam
indo a um motel longe da cidade, quando ele decidiu retornar para casa; estava
tratando a vítima de forma carinhosa. Ao chegarem na residência, o acusado passou
a agredir a vítima batendo em seu rosto e puxando seus cabelos, ameaçando cortá-
los e matar a vítima. O acusado rasgou as roupas da vítima e penetrando-a com os
153

dedos na vagina e no ânus, ofendendo a vítima por não manter com ele relações
anais.
O relator entende que deve ser aplicado o princípio da consunção, pois as
agressões e ameaças constituíram a fase preparatória para o crime de estupro. No
apenamento, entende que deve ser afastada a causa de aumento de pena referente
às consequências do ilícito, pois o constrangimento e a humilhação da vítima são
partes do tipo penal, fixando a pena base em 6 (seis) anos; pela agravante de ter
sido o crime em ambiente doméstico, fixa a pena em 6 (seis) anos e 8 (oito) meses
de reclusão, a ser cumprida em regime semiaberto. A revisão criminal é
parcialmente provida; por maioria, a Câmara seguiu o voto do relator. Tal decisão
parece divergir dos acórdãos já analisados, que não reconhecem o princípio da
consunção nos crimes de lesão corporal e ameaça quanto ao estupro, mas não há
julgados suficientes para definir de fato jurisprudência acerca do tema no âmbito
doméstico.

4.5.3 Rondônia
No Tribunal de Justiça de Rondônia, foram encontradas 2 (duas) decisões
sobre o tema pesquisado.

a) Apelação Criminal nº 0002975-60.2015.8.22.0008

Apelação criminal. Violência doméstica. Lesão corporal (art. 129, §9º CP).
Ausência de representação criminal. Irrelevância. Ação penal pública
incondicionada (Súmula 542 do STJ e ADI 4424). Materialidade e autoria
comprovadas. Ausência de laudo de exame de corpo de delito oficial direto.
Irrelevância. Prova técnica diversa (Ficha de Atendimento Médico) a indicar
a existência de lesões. Laudo Oficial Indireto. Suficiência Depoimento da
vítima. Harmonia com os demais elementos de provas. Condenação
mantida. Estupro (art. 213 do CP). Fato anterior à Lei 13.718/18. Vítima não
vulnerável e maior de 18 anos. Lesão corporal leve. Ação penal pública
condicionada à representação da ofendida. Súmula 608 do STF.
Inaplicabilidade na espécie. Manifestação expressa de não representar.
Decadência configurada. Extinção da punibilidade decretada. Regime
aberto. Procedência. Recurso parcialmente provido.

O acórdão versa sobre apelação interposta pelo condenado a 6 anos de


reclusão e 3 meses de detenção, em regime inicial fechado pela prática do crime de
estupro e de lesão corporal. Em preliminares, a defesa arguiu a ilegitimidade do
Ministério Público para propor a denúncia no crime de estupro, pois na ocasião dos
fatos o crime procedia-se apenas mediante representação da vítima, que não
154

ocorreu, bem como nulidade pela ausência do exame de corpo de delito no crime de
lesão corporal. No mérito, pede absolvição por insuficiência de provas;
subsidiariamente, requer aplicação do princípio da consunção e alteração do regime
inicial de cumprimento de pena para o semiaberto.
Consta na denúncia que em 2015, o acusado agrediu e estuprou sua ex-
companheira, com quem havia vivido por 14 (catorze) anos e estava separado há 1
(um) mês. O acusado havia ingerido bebida alcoólica durante o dia, e iniciou
discussão com a vítima a fim de reatar o relacionamento. Dada sua negativa, passou
a agredi-la com socos e chutes. Ato contínuo, obrigou a vítima a manter conjunção
carnal; ao notar que ela resistia, voltava a agredi-la, a fim de consumar o ato, um
ciclo que permaneceu até a testemunha ouvir os gritos e chamar a polícia, quando o
acusado fugiu do local.
As provas trazidas aos autos consistem na Ficha de Atendimento Médico da
vítima, que constata lesões corporais leves. Quando inquirida, 6 (seis) dias após o
fato, afirmou expressamente não desejar representar contra o acusado; em juízo, já
decorrido o prazo decadencial, a vítima reafirmou seu desinteresse.
A relatora afirma que a nulidade por ausência de condição de procedibilidade
da ação penal, no caso a representação feita pela vítima, não é possível no crime de
lesão corporal, pois o STF editou Súmula afirmando que o crime de lesão corporal
no âmbito doméstico é de ação penal pública incondicionada. Quanto ao estupro,
entende que a defesa está com razão, mas que a questão será tratada como
prejudicial de mérito, já que a decadência é norma de direito material. A lei que torna
o crime de estupro de ação pública incondicionada foi editada apenas em 2018,
após a ocorrência do fato, de modo que a vítima deveria ter apresentado
representação; não tendo procedido desta forma, seu direito de representar decaiu.
Quanto à Súmula 608 do STF, que determina que em crimes de estupro cometidos
com violência real dispensa-se representação, afirma que tal súmula apenas é
aplicável nos casos em que decorre lesão corporal grave, pois a de natureza leve já
compõe a tipicidade delitiva. Quanto à outra preliminar suscitada, de ausência de
exame de corpo de delito, entende tratar de valoração probatória, matéria de mérito.
No mérito, a desembargadora afirma em seu voto que de forma excepcional,
pode-se dispensar o exame de corpo de delito em crimes que deixam vestígio e
realizar a prova por outros meios, como fotografias e exames médicos, prática
conhecida como exame de corpo de delito indireto; e que tais provas são suficientes
155

a fim de formar a convicção do juízo, já que não houve desídia das autoridades
investigatórias, que solicitaram a Ficha Médica ao hospital, que demonstra as
lesões. Além das provas físicas, há prova testemunhal da vítima e do policial que
atendeu a ocorrência, de forma que claras materialidade e autoria delitiva. Assim, a
desembargadora decide por dar parcial provimento ao recurso, extinguindo a
punibilidade do agente quanto ao crime de estupro e para modificar o regime inicial
de cumprimento de pena do crime remanescente, lesão corporal leve, para o aberto.
Os outros desembargadores votaram com a relatora.
Essa decisão demonstra a importância da alteração feita pela lei de 2018, que
alterou a espécie de ação penal própria para o crime de estupro. Em casos como
esse, em que há convivência ou relacionamento prévio entre vítima e acusado, a
dependência econômica, financeira ou social pode dissuadir a vítima a dar início à
persecução penal. Ao tornar a ação penal pública incondicionada, tira-se o poder
decisório de pessoas que muitas vezes não são capazes de tomar essa decisão por
culpa ou medo, colocando-o na mão do Estado, que deve agir indiscriminadamente
ao tomar conhecimento do crime.

b) Apelação criminal nº 0001140-34.2015.8.22.0009

Apelação. Ameaça. Estupro. Vias de Fato. Insuficiência de provas. Não


ocorrência. Absolvição. Impossibilidade. Retratação da vítima após
sentença condenatória. Não acolhimento. A retratação da vítima após
sentença condenatória não é suficiente para desconstituir a sentença de
primeiro grau, firmada no harmônico conjunto probatório produzido sob o
crivo do contraditório.

O acórdão trata sobre apelação interposta pelo condenado a 6 (seis) anos de


reclusão, 1 (um) mês de detenção e 15 (quinze) dias de prisão simples, em regime
inicial semiaberto, pelos crimes de ameaça e estupro e da contravenção penal de
vias de fato. Requer a absolvição por ausência de provas; subsidiariamente, o
reconhecimento da prescrição da pretensão executória no crime de ameaça e na
contravenção de vias de fato.
Consta nos autos que o acusado, após tomar conhecimento de que a vítima
havia saído para comer, foi até o local e puxando-a pelo braço, obrigou-a a entrar no
veículo. Ao chegar em casa, passou a afirmar que se ela o deixasse, ele a mataria, e
que iria atrás dela “até no inferno”. Em seguida, obrigou-a a manter com ele relações
sexuais, sem cessar as ameaças de morte. No dia seguinte, em estacionamento
156

público, tentou manter relações sexuais com a esposa; após sua recusa, passou a
agredi-la com tapas no rosto. O acusado, por sua vez, negou o crime. Afirmou que
houve uma briga de casal por entender que a vítima, sua esposa, não deveria estar
comendo em estabelecimento comercial enquanto ele viajava a trabalho. Após a
prolação da sentença condenatória, a vítima afirmou ter inventado a acusação por
não aceitar o fim do relacionamento.
O relator inicia afirmando não vislumbrar prescrição da pretensão executória,
rejeitando a preliminar. No mérito, entende que, dado a posterior afirmação da vítima
de que teria feito a acusação de forma caluniosa, o réu deve ser absolvido do crime
de estupro. O relator também pugna pela absolvição no crime de ameaça, alegando
não possuir provas contundentes do fato criminoso, pois as testemunhas só
presenciaram a discussão e souberam da ameaça pela vítima. O relator afirma que
embora tenha ocorrido discussão entre ambos, as intimidações não tiveram
potencial ofensivo. Quanto à conduta de vias de fato, vota também pela absolvição,
entendendo que a fragilidade do conjunto probatório e a ausência de laudo causam
dúvidas acerca do fato criminoso. Assim, pugna pela absolvição do acusado de
todos os crimes. Ambos os desembargadores votam em sentido contrário ao voto do
relator.
O voto-vista de um deles afirma que a posterior negação dos fatos pela vítima
não tem capacidade para desconstituir a sentença, já que a condenação não se
baseou apenas no depoimento da vítima, mas também no de sua filha e irmã. O
desembargador entende que a retratação da vítima é comum nos crimes em que o
acusado e a vítima têm relações próximas, e que tal declaração não passou pelo
contraditório, de forma que vota de forma contrária ao relator, voto que é
acompanhado pelo terceiro desembargador.
Embora o voto do relator mostre desconhecimento acerca dos mecanismos
de dependência de relacionamentos amorosos violentos, os outros
desembargadores atentaram-se aos princípios legais e mantiveram a condenação. A
retratação da vítima é plenamente compreensível se considerar-se a relação
emocional estabelecida com o acusado, com o qual teve um filho. Mas o conjunto
probatório e seus depoimentos anteriores são plenamente condizentes com o crime.
Note-se que o acusado demonstrou relação de posse com a vítima, ao afirmar que
se irritou ao saber que ela saiu para comer sem ele. Assim, embora a vítima tenha
157

afirmado que inventou o crime por não aceitar o fim do relacionamento, é mais
provável que o acusado tenha cometido o crime, pelo mesmo motivo alegado.

4.5.4 Roraima
Foram encontradas 4 (quatro) decisões sobre o tema pesquisado no Tribunal de
Justiça de Roraima.

a) Apelação Criminal nº 0000164-05.2013.8.23.0030

APELAÇÃO CRIMINAL – SENTENÇA ABSOLUTÓRIA NOS TERMOS DO


ART. 386, VII, DO CPP – RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO –
PRETENSÃO DE CONDENAÇÃO DO APELADO NAS SANÇÕES DO ART.
213, CAPUT, DO CP – IMPROCEDÊNCIA – IMPUTAÇÃO
DE ESTUPRO DE EX-MARIDO CONTRA EX-MULHER – ACUSADO E
OFENDIDA QUE CONVIVIAM NA MESMA CASA, POR QUESTÕES
PATRIMONIAIS – FILHO MENOR DO CASAL QUE DISSE QUE FOI A
MÃE QUEM CHAMOU O PAI PARA DENTRO DO QUARTO – LAUDO QUE
DESCREVE LESÕES DISCRETAS, COMPATÍVEIS COM ENTREVERO
FÍSICO QUE A VÍTIMA TEVE COM O ACUSADO NO DIA SEGUINTE AO
POSSÍVEL ESTUPRO – PALAVRA DA VÍTIMA QUE TEM ESPECIAL
RELEVÂNCIA NOS CRIMES SEXUAIS, MAS NÃO POSSUI VALOR
ABSOLUTO – SITUAÇÃO DÚBIA QUE FAVORECE O APELADO –
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DÚBIO PRO REO – SENTENÇA
ABSOLUTÓRIA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

Trata-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público contra


sentença que absolveu acusado da prática do crime de estupro. A Procuradoria
pugnou pelo provimento do recurso, afirmando que a palavra da vítima relata o crime
de forma pormenorizada e que em crimes como este sua palavra tem especial
relevância.
O filho das partes afirmou em depoimento que dormiam em quartos
separados há dois meses, mas naquela noite a vítima teria chamado o acusado para
dormir no quarto; que havia discussões, mas que jamais presenciou agressões do
acusado contra a vítima; que ela nada disse sobre o estupro e que só tomou
conhecimento do ocorrido após o processo. A filha do casal também negou ter
conhecimento do fato.
A vítima, em uma ocasião, afirmou ter sido segurada à força para a relação
sexual; em outra, afirmou que arma de fogo foi utilizada para ameaçá-la. Não foi
encontrada nenhuma arma de fogo na residência. O relator, então, entende que o
resto do conjunto probatório destoa dos depoimentos da vítima; que a dúvida não foi
158

sanada e, portanto, mantém a absolvição do acusado. Os demais desembargadores


votam em conformidade com o relator.
O relator entende que, dada a duplicidade de relatos sobre o fato, resta
dúvidas acerca da prática delituosa, de forma que necessária a absolvição do
acusado conforme princípios democráticos. Não há discussão acerca da
incapacidade do conjunto probatório em fornecer plena convicção, e em processos
criminais, tal convicção é essencial para a condenação do réu. Há de se dizer, no
entanto, que depoimentos conflitantes da vítima não significam que esta mentiu ou
inventou o fato. O trauma psicológico desencadeado pela violência sexual pode
ocasionar dificuldades de lembrar-se dos fatos de forma lógica, causando conflitos e
ambiguidade. O discurso confuso da vítima não atesta a não ocorrência do fato, mas
tratando-se de processo criminal, impõe-se a absolvição.

b) Apelação criminal nº 0017637-59.2016.8.23.0010

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO PRATICADO NO ÂMBITO


DOMÉSTICO. PLEITO ABSOLUTÓRIO. IMPOSSIBILIDADE.
MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PALAVRAS
HARMÔNICAS DA VÍTIMA, EM AMBAS AS FASES, CORROBORADAS
PELOS DEMAIS ELEMENTOS COLIGIDOS. NEGATIVA DE AUTORIA
ISOLADA APELO CONHECIDO E DESPROVIDO, EM CONSONÂNCIA
COM O PARECER MINISTERIAL. (...)

Trata-se de apelação proposta pelo condenado a 8 (oito) anos de reclusão em


regime inicial semiaberto pela prática do crime de estupro no âmbito de relação
doméstica. Primariamente, a defesa requer a absolvição, afirmando que o ato teria
sido consentido; requer de forma subsidiária a desclassificação do delito para a
contravenção de importunação ao pudor.
Consta na denúncia que o denunciado estuprou sua companheira, que estava
em via pública ao ser abordada pelo acusado. Este, em posse de uma faca, a
ameaçou para acompanhá-lo a uma casa que estava fechada. Com a aproximação
de um transeunte na rua, jogou a faca no terreno de uma casa. Contudo, continuou
forçando a vítima a acompanhá-lo. Ao chegar ao imóvel vazio, fez a vítima entrar por
uma janela arrombada, afirmando que ela não devia fazer escândalo, pois seria pior.
No interior do imóvel, passou a ameaçá-la com uma garrafa de cerveja vazia que
encontrou no local; tirou a roupa da vítima e ordenou que ela praticasse sexo oral. A
vítima, ao negar-se, foi novamente ameaçada, e acabou praticando o ato. Em
159

seguida, o acusado praticou penetração anal de forma extremamente violenta; após,


manteve penetração vaginal. Enquanto cometia os atos, falava à vítima diversas
palavras degradantes e empregava violência física contra ela, com tapas e puxões
de cabelo. Finalmente, disse que se a vítima denunciasse, ele a mataria. O acusado
teria procedido a esses atos devido o fim do relacionamento, a fim de coibir a vítima
de contrair novas relações amorosas.
Nos autos, presentes exame pericial da faca apreendida e da casa
abandonada, bem como laudo de exame de corpo de delito que demonstrou lesões
corporais e conjunção carnal. Depoimento do policial que atendeu a ocorrência
atesta que a vítima já possuía medida protetiva contra o acusado, e que viu o
acusado descumprindo-a, estando no quintal da vítima. Assim, o relator votou por
negar provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelos demais
desembargadores.
No acórdão em voga, fica evidente que o acusado mantinha relação de posse
com a vítima, não concebendo que esta não quisesse ficar com ele. O acusado
entende a violência cabível a fim de estabelecer na vítima sentimento de
propriedade, para que esta não mantivesse relações com nenhum outro homem.
Além do depoimento da vítima, o conjunto probatório mostra a coesão dos fatos
narrados. O desrespeito do acusado às medidas protetivas demonstra seu intuito
claro de ameaça-la, fazê-la sentir-se em perigo, bem como a certeza da impunidade.

c) Apelação Criminal nº 0830251-29.2017.8.23.0010

APELAÇÃO CRIMINAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – LESÃO CORPORAL,


AMEAÇA E ESTUPRO – ARTIGOS 129, § 9º, 147 E 213, TODOS DO
CÓDIGO PENAL, C/C ARTIGO 7º, I, II E III, DA LEI 11.340/06 (...) -
ABSOLVIÇÃO DE TODOS OS CRIMES IMPUTADOS – IMPOSSIBILIDADE
– AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADA – LAUDO PERICIAL É
CONCLUSIVO PARA OCORRÊNCIA DE CRIME DE LESÃO CORPORAL,
SOMADO AOS DEPOIMENTOS DA VÍTIMA E DOS POLICIAIS - CRIME
DE ESTUPRO: LAUDO INCONCLUSIVO NÃO AFASTA A CONDENAÇÃO -
PALAVRA DA VÍTIMA POSSUI ESPECIAL RELEVÂNCIA NOS CRIMES
SEXUAIS - CRIME DE AMEAÇA: DEPOIMENTO DA PRÓPRIA VÍTIMA
POSSUI VALOR DIFERENCIADO NO CONTEXTO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA - PRECEDENTES DO C. STJ - CONDENAÇÃO MANTIDA -
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO, EM CONSONÂNCIA COM O
MINISTÉRIO PÚBLICO GRADUADO.

O acórdão é proferido em apelação proposta pelo condenado a mais de 7


(sete) anos de reclusão e também por detenção pelos crimes de estupro, lesão
160

corporal e ameaça no âmbito doméstico, requerendo absolvição. A defesa afirma


que o conjunto probatório não é suficiente para a condenação do acusado. O
acusado nega a prática de todos os delitos.
A vítima afirmou que havia combinado de se encontrar com o acusado, e que
chegando ao local ele entrou em seu carro muito alterado, já lhe desferindo um
murro na boca. Ao tentar se defender, o acusado ficou ainda mais alterado e
desferiu um murro no para-brisa do carro, que quebrou. Em seguida, a empurrou
para o banco do passageiro e assumiu a direção do veículo, dirigindo-se à casa do
casal. A vítima atesta que durante toda a viagem foi agredida e que na porta da
residência, tentou pular no carro, mas que o acusado trancou as portas; ao
estacionar, ordenou que ela descesse, no que ela se recusou e pediu para ir
embora. Nesse momento, ele teria aberto a porta do passageiro e puxado a vítima
pelo cabelo, jogando-a no chão da garagem, deferindo chutes. Levou-a para dentro
da casa, trancou a porta e foi em direção à cozinha buscar uma faca. No quarto,
obrigou que a vítima suportasse conjunção carnal, com a faca ao lado, e também a
enforcou; não houve ejaculação. A vítima atesta que após as agressões sentia-se
zonza, e que após o estupro o réu acalmou-se e a vítima pediu novamente para ir
embora; o acusado pediu para que a vítima não chamasse a polícia. Após muita
insistência, o acusado permitiu que a vítima fosse embora, sob a condição de que
não contasse os fatos a ninguém, afirmando que a mataria e à sua família. O
acusado cedeu e finalmente desceu do carro, assim, a vítima ligou para a polícia.
Os policiais que atenderam a ocorrência afirmam que a vítima estava com
diversos machucados pelo corpo, e que lhes disse sobre a agressão e ameaça, e
posteriormente sobre o estupro. Ao entrar na residência, o acusado recusou-se a
acompanhar os policiais à delegacia, sendo necessário uso de força para contê-lo.
Os policiais atestam que o acusado afirmou não se lembrar do crime de estupro,
pois não sabe se realmente teria havido consumação.
Os exames de corpo de delito comprovam lesão corporal e são inconclusivos
acerca da conjunção carnal. A vítima apresentava múltiplas lesões compatíveis com
agressão. O relator afirma que no crime de estupro, mesmo com ausência de laudo
conclusivo, a palavra da vítima tem valor especialmente relevante, assim como no
crime de ameaça em âmbito doméstico. O depoimento da vítima e das testemunhas
corroboram as provas periciais. O relator nega provimento ao recurso, e os
desembargadores acompanham o voto.
161

Os autos não mencionam a ocorrência de violência prévia no relacionamento


do casal. A extrema força e agressividade utilizadas pelo acusado e comprovadas
nos laudos periciais atestam que a companheira foi objeto utilizado pelo acusado
para descarregar sua raiva. O estupro foi utilizado como exacerbação da violência, a
fim de impor a violação mais dolorosa que o acusado achou possível infligir.

4.5.5 Tocantins
No Tocantins, há apenas 1 (uma) decisão sobre estupro marital cujo inteiro
teor não é coberto por segredo de justiça.

a) Apelação Criminal nº 0013415-38.2014.827.0000

APELAÇÃO. ESTUPRO DA EX-COMPANHEIRA. CÁRCERE PRIVADO.


FRAGILIDADE DA PROVA. INOCORRÊNCIA. MATERIALIDADE E
AUTORIA COMPROVADAS. DESNECESSIDADE DE PERÍCIA
CONCLUSIVA. PALAVRA DA VÍTIMA. HARMONIA COM DEMAIS
ELEMENTOS PROBATÓRIOS. CONDENAÇÃO MANTIDA. (...)
DOSIMETRIA DA PENA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS.
CULPABILIDADE, MOTIVOS, CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQÜÊNCIAS
DESFAVORÁVEIS. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. DECOTE QUE SE
IMPÕE. (...) PRISÃO PREVENTIVA – RÉU QUE PERMANECEU PRESO
DURANTE TODA A INSTRUÇÃO PROCESSUAL – MANUTENÇÃO.

O acórdão trata de apelação interposta por acusado ao crime de estupro e


cárcere privado contra sua ex-companheira em concurso material e continuidade
delitiva, condenado a 18 (dezoito) anos de reclusão. Requer absolvição por
insuficiência probatória, pois a vítima teria utilizado o sexo para acalmar o acusado
durante o cárcere, tendo havido consentimento. Requer também o afastamento da
qualificadora do crime de cárcere, pois entende não estar comprovadas lesões à
integridade da vítima. Subsidiariamente, pleiteia pela diminuição da pena imputada,
afastando circunstâncias judiciais desfavoráveis, bem como a redução da majorante
da continuidade delitiva para 1/6. O Ministério Público também apela da decisão,
entendendo que os crimes de estupro não ocorreram em continuidade delitiva e sim
o concurso material de crimes, pois ocorreram em diferentes cidades e momentos,
requerendo que a pena seja de 22 (vinte e dois) anos.
O acusado conviveu maritalmente com a vítima por 1 (um) ano e 6 (seis)
meses. Inconformado com o fim do relacionamento passou a ameaçá-la e violentá-
la. Violando medidas protetivas, no dia dos fatos foi até a residência da vítima e a
forçou a manter com ele conjunção carnal. Após o estupro, obrigou a vítima a ir com
162

ele e a manteve em cárcere por 3 (três) dias dentro de matas, constantemente


ameaçando a vítima de morte e obrigando-a a manter relações sexuais, já que
portava um canivete. Após a vítima afirmar que reataria o relacionamento com ele, a
abandonou em um posto rodoviário. Tempos depois, foi encontrado na cidade e
preso em flagrante.
A relatora entende que a prova dos autos, em especial o depoimento da
vítima, que afirmou que manteve relações sexuais sob ameaça e temendo por sua
vida, são suficientes para a condenação. Quanto ao alegado pelo Ministério Público,
afirma que há continuidade delitiva nos crimes de estupro, pois praticados em
comarcas contíguas, dando improvimento ao recurso do órgão acusatório. Entende
que está presente a qualificadora no crime de cárcere, já que o acusado não
alimentou a vítima e obrigou-a a adentrar mata fechada. A relatora afasta as
circunstâncias judiciais desfavoráveis, fixando a pena de cárcere privado em 2 (dois)
anos de reclusão; quanto ao estupro, fixa a pena-base em 6 (seis) anos,
aumentando a pena em 1/3, com pena final de 8 (oito) anos para o crime de estupro,
totalizando a pena de 10 (dez) anos de reclusão em regime inicial fechado. Recusa
o pedido de relaxamento da prisão preventiva, negando parcialmente o recurso. O
voto da relatora foi provido por unanimidade.
A relatora entende que estão ausentes as circunstâncias judiciais
desfavoráveis, afirmando que as consequências, culpabilidade e motivos do crime
são inerentes a prática dos tipos penais descritos, ignorando, por exemplo, que os
filhos da vítima estavam presentes quando as agressões se iniciaram. Tais
circunstâncias judiciais devem ser avaliadas com mais cautela, pois são um
importante fator na definição da pena do acusado e consequentemente no regime
inicial de cumprimento de pena.

4.5.6 Pará
No Tribunal de Justiça do Pará foram encontradas 6 (seis) decisões acerca do
crime de estupro cuja vítima é esposa ou companheira do acusado.

a) Revisão Criminal nº 0000964-65.2019.814.0000

REVISÃO CRIMINAL. ESTUPRO. PROVA NOVA. RETRATAÇÃO DA


VÍTIMA EM PROCEDIMENTO DE JUSTIFICAÇÃO CRIMINAL.
DESCONSTITUIÇÃO DA PROVA QUE FUNDAMENTOU A CONDENAÇÃO.
(...) AÇÃO CONHECIDA E PROCEDENTE, COM RATIFICAÇÃO DE
163

LIMINAR. UNANIMIDADE.

A decisão colegiada versa sobre revisão criminal interposta por acusado ao


crime de estupro condenado a 9 (nove) anos de reclusão em regime inicial fechado.
Alega que após a condenação, a vítima lhe enviou carta pedindo desculpas pelas
falsas acusações que teria proferido. Em juízo, a vítima ratificou o conteúdo da carta,
provando a inocência do acusado. O laudo de conjunção carnal retornou negativo,
de forma que a condenação baseou-se unicamente no depoimento da vítima,
requerendo absolvição.
Nos autos do processo que lhe condenou, a vítima afirmava que ao
retornarem de madrugada de um aniversário, o acusado a agrediu com socos e
chutes após ela recusar-se a manter relações sexuais, e desmaiou com as
agressões. Alegou que acordou com o acusado tentando estuprá-la, razão pela qual
se defendeu com mordidas e arranhões, fato esse presenciado pela irmã da vítima.
Tais agressões eram comuns no relacionamento do casal.
A relatora entende que a prova nova colhida pela defesa justifica a revisão
criminal, pois a vítima afirmou posteriormente em juízo que a relação sexual foi
consentida e que inventou os fatos após descobrir traições de seu companheiro, e
que não voltou atrás antes da condenação por medo de sofrer consequências;
assim, manifesta-se pela procedência da revisão criminal para absolver o réu. Os
demais desembargadores votam conforme a relatora.
O acórdão em questão trata de um relacionamento abusivo, cuja relação era
permeada de agressões antes mesmo da acusação de estupro. Embora a vítima
alegue que inventou o crime por ciúmes, pode ter negado os fatos anteriormente
narrados por dependência emocional do companheiro. Assim, dado a incerteza
sobre os fatos, é correto que o acusado seja absolvido em consonância com os
princípios legais.

b) Apelação Criminal nº 0000027-38.2015.8.14.0051

RECURSO DE APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE ESTUPRO (ART. 213


DO CPB). MÉRITO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE.
AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. REDIMENSIONAMENTO
DA PENA. IMPOSSIBILIDADE. PENA ADEQUADA EM TODAS AS SUAS
FASES. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

O acórdão trata de apelação interposta por acusado ao crime de estupro,


condenado a 9 (nove) anos de reclusão em regime inicial fechado, absolvido do
164

crime de ameaça pelo princípio da consunção. O acusado alega insuficiência


probatória, requerendo absolvição. Subsidiariamente, requer a diminuição da pena.
O acusado não aceitava a separação de sua ex-companheira, que passou a
relacionar-se com mulheres após o fim do relacionamento, fato este que ele também
não aceitava. Assim, por diversas vezes obrigou que ela mantivesse com ele
conjunção carnal sob ameaças de morte. Além do depoimento da vítima, há laudo
de exame de corpo de delito que atesta conjunção carnal e testemunha que atesta a
agressividade do acusado. O acusado alega que houve consentimento da vítima.
O relator entende que as provas trazidas aos autos, em especial o
depoimento firme e coerente da vítima, são suficientes para manter a condenação.
Entende que estão ausentes 4 (quatro) circunstâncias judiciais desfavoráveis ao réu,
mantendo a pena base em 8 (oito) anos de reclusão. Na fase intermediária,
considera a agravante genérica de crime praticado em âmbito doméstico,
aumentando a pena em 1 (um) ano. Assim, mantém a pena final em 9 (nove) anos
negando provimento ao recurso. Os demais desembargadores votam de acordo com
o relator.
Trata-se da única decisão analisada em que conduta social, culpabilidade,
personalidade e motivos e consequências do crime, são analisadas de maneira
negativa a fim de estabelecer circunstâncias judiciais negativas na pena-base do
acusado. A conduta social, por exemplo, foi estabelecida negativamente por ser o
acusado ex-companheiro e pai do filho da vítima. Tais circunstâncias judiciais
desfavoráveis na maioria das vezes são desconsideradas como próprias do
cometimento do crime, mas devem ser observadas na fixação da pena a fim de
estabelecer a reprovabilidade social da conduta.

c) Apelação Criminal nº 0013324-27.2018.814.0401

APELAÇÃO CRIMINAL - ART. 213 c/c ART. 226, II TODOS DO CPB –


PLEITO ABSOLUTÓRIO – INSUFICIÊNCIA DE PROVAS – IN DUBIO PRO
REO - IMPROCEDÊNCIA – AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVA
COMPROVADAS –DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS -– PALAVRA DA
VÍTIMA POSSUI ESPECIAL RELEVÂNCIA – IMPROCEDÊNCIA –
INAPLICÁVEL O PRINCÍPIO DO IN DIBUI PRO REO – AUSÊNCIA DE
DÚVIDA – ACERVO PROBATÓRIO CAPAZ DE FORMAR A CONVICÇÃO
DO JULGADOR – MANUTENÇÃO DA CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO
DE PENA DO ART. 226, II DO CP – RÉU EX-COMPANHEIRO DA VÍTIMA -
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
165

O acórdão trata de apelação criminal interposta por acusado ao crime de


estupro contra sua ex-companheira, condenado a 9 (nove) anos de reclusão em
regime inicial fechado. Requer absolvição por insuficiência de provas e,
subsidiariamente, requer a exclusão da causa de aumento de pena de crimes
sexuais praticados contra companheira ou esposa.
A vítima e o acusado estavam separados há 8 (oito) meses, mas continuaram
residindo juntos. Por volta de 3 (três) semanas antes do fato, o acusado passou a
ameaçar a vítima e andar nu pela casa afirmando que ela deveria manter relações
sexuais com ele. No dia dos fatos, abordou a vítima nas proximidades da casa em
que moravam com socos, mandando que ela o acompanhasse sob ameaças de
morte. Mediante o uso de uma faca, fez com que ela entrasse na casa afirmando
que se ela não mantivesse relações sexuais com ele, ele a mataria. Arrastou a
vítima pelos cabelos e fez com que sentasse em uma cadeira, momento em que
passou a oferecer dinheiro para a vítima se relacionar com ele. Mediante a negativa,
encostou a faca em seu corpo. Temendo pela sua vida, a vítima cedeu às investidas
do acusado e esperou que ele dormisse para fugir da casa e acionar a Polícia. Ao
ser capturado pelos policiais, afirmou que mataria a vítima quando fosse solto. O
acusado nega as acusações, afirmando que a relação que mantiveram foi
consensual.
O relator entende que as provas dos autos são suficientes para a
condenação, dado o depoimento sem contradições da vítima. Além disso, há
testemunhas que presenciaram o início das agressões, bem como exame de corpo
de delito que atestou a conjunção carnal. Acerca da causa de aumento de pena,
entende que deve ser mantida, porque embora estivessem separados, moravam na
mesma casa, o que reforça a posição de autoridade do acusado. Assim, vota pelo
não provimento do recurso; a Câmara decidiu por unanimidade de votos.
Trata-se de mais um exemplo de acusado que não aceita o fim do
relacionamento e tenta submeter a vítima por meio de violência sexual. A
importância da causa especial de aumento de pena previsto no artigo 226 do Código
Penal é que aumenta a pena em até metade, o que torna a pena mínima no delito
conjugal de 9 (nove) anos, de forma que o regime inicial de cumprimento de pena é
o fechado, mantendo o acusado no sistema prisional pela gravidade imputada ao
delito.
166

4.5.7 Amapá
No Estado do Amapá, foram encontradas 2 (duas) decisões sobre estupro no
âmbito doméstico contra esposa ou companheira.

a) Apelação criminal nº 0005329-15.2012.8.03.0001

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE COMPANHEIRA NO ÂMBITO DA


CONVIVÊNCIA. PALAVRA DA VÍTIMA. NÃO DISSONANTE DOS DEMAIS
ELEMENTOS PROBATÓRIOS. AUTORIA E MATERIALIDADE
COMPROVADAS.

O acórdão trata de apelação interposta em favor de acusado pelo crime de


estupro condenado a pena de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de reclusão em regime
inicial semiaberto. Alega insuficiência probatória, pois a condenação teria sido
embasada apenas no depoimento da vítima. A Procuradoria de Justiça entende ser
o conjunto probatório frágil para embasar a condenação, opinando pelo provimento
do recurso, embora o Ministério Público tenha afirmado que a condenação deve ser
mantida.
Consta nos autos que o acusado e a vítima foram companheiros por 6 (seis)
anos, relacionamento conturbado e agressivo. A vítima afirma que quando quis se
separar do acusado, este passou a obrigá-la a manter relações sexuais contra sua
vontade, e que lhe batia quando ela se recusava. Nas últimas agressões, o acusado
teria empunhado uma faca a fim de forçá-la ao ato sexual. O acusado alega que tais
relações foram consensuais.
A relatora entende que a ausência do depoimento de outras pessoas sobre o
crime não invalida o conjunto probatório, já que testemunha afirmou saber que o
acusado era agressivo. O acusado já havia sido condenado anteriormente por
lesões corporais contra sua ex-companheira, de forma que entende que o cenário
fático é desfavorável ao réu, mantendo a condenação. Os demais desembargadores
votaram em consonância com a relatora, embora a Procuradoria tenha entendido
que o depoimento da vítima era insuficiente para embasar a condenação.

b) Apelação criminal nº 0033101-74.2017.8.03.0001

PENAL E PROCESSUAL PENAL – APELAÇÃO CRIMINAL – ESTUPRO E


CÁRCERE PRIVADO NO ÂMBITO DOMÉSTICO – LEI MARIA DA PENHA
– VÍTIMA PRIVADA DE SUA LIBERDADE POR CONSIDERÁVEL
PERÍODO DE TEMPO – EXISTÊNCIA DE PROVAS SUFICIENTES DE
167

AUTORIA E MATERIALIDADE A ENSEJAR A CONDENAÇÃO – PLEITO


ABSOLUTÓRIO – REJEIÇÃO – SENTENÇA MANTIDA.

O acórdão analisado trata de apelação criminal interposta por acusado a


prática do crime de estupro e cárcere privado em relação doméstica, condenado à
pena de 8 (oito) anos e 2 (dois) meses de reclusão em regime inicial fechado. Pugna
pela absolvição por ausência de provas; subsidiariamente, requer a aplicação do
princípio da insignificância.
O acusado teria mantido em cárcere por 4 (quatro) dias sua companheira,
além de forçá-la a atos sexuais mediante ameaça. As acusações são corroboradas
pelo depoimento da vítima e laudo de exame de corpo de delito que atesta violência
e conjunção carnal, bem como por auto de prisão em flagrante.
O relator entende que o conjunto probatório é suficiente para a condenação
do réu, e que o princípio da insignificância não se aplica ao caso em voga, negando
provimento ao recurso. Os demais desembargadores votam em unanimidade com o
relator. O crime de estupro é de alto potencial ofensivo e causa graves lesões à
integridade física e psicológica da vítima, de forma que correto o afastamento do
princípio da insignificância no caso em voga.

4.6 QUADRO ANALÍTICO


168

Espécie recursal e Local do crime Outros Modalidade Resultado Pena Fundamentação


número do processo crimes (tentado/con
cometidos sumado)
em concurso
Apelação Criminal nº Local público/ casa Sequestro e Consumado Absolvição - Ausência de provas/ vítima não
70047652946 da mãe do acusado cárcere pediu ajuda
privado para
fins
libidinosos
Apelação Criminal nº Casa do Ameaça e Consumado Condenação 7 anos e 6 Suficiência probatória
0032736- casal/hospital lesão meses de
37.2018.8.21.7000 corporal em reclusão
âmbito
doméstico
Habeas Corpus nº - - Consumado Denegação. - Risco de reiteração
0115079- delitiva/proteção à integridade da
22.2020.8.21.7000 vítima
Apelação Criminal n° Carro Lesão Tentado Absolvição - Incongruência nos depoimentos
0035267- corporal no da vítima
14.2016.8.16.0014 grave estupro/cond
enação na
lesão
Apelação Criminal nº Carro/casa Lesão Consumado Condenação 12 anos e 3 Suficiência probatória
0004085- corporal e no crime de meses de
169

10.2011.8.24.0031 ameaça estupro/reco reclusão


nhecimento
da prescrição
punitiva na
ameaça e
lesão
corporal
Apelação Criminal nº Casa - Consumado Condenação 7 anos de Suficiência probatória
0001263- reclusão
59.2017.8.24.0024
Apelação Criminal nº Casa Ameaça Consumado Condenação 15 anos de Suficiência probatória/depoimento
0001325- reclusão agressivo do acusado
25.2016.8.26.0624
Apelação criminal nº Casa - Consumado Condenação 7 anos de Suficiência probatória
0033107- reclusão
52.2017.8.26.0224
Apelação Criminal nº Casa - Tentado Condenação 3 anos de Suficiência probatória
1514473- reclusão
34.2019.8.26.0071
Apelação criminal nº Festa - Consumado Absolvição - Insuficiência probatória/vítima não
2198322- pediu ajuda aos presentes
93.2008.8.13.0686
Apelação criminal nº Casa Ameaça e Consumado Deferidas - Risco de reiteração delitiva/
0296002- lesão medidas perigo para a integridade da
75.2017.8.13.0079 corporal protetivas de vítima
170

urgência
Habeas Corpus nº Casa Lesão Consumado Denegado - Risco de reiteração delitiva/perigo
5531577- corporal, para a integridade da vítima
16.2020.8.13.0000 constrangime
nto ilegal,
sequestro e
cárcere
privado,
violação de
domicílio e
tortura
Apelação criminal nº Casa Ameaça Consumado Absolvição - Ausência de provas/ vítima
307907- continuou com o acusado após os
05.2014.8.09.0076 crimes
Apelação criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 10 anos e 6 Suficiência probatória
14008- corporal meses de
95.2018.8.09.0172 reclusão
Apelação Criminal nº Casa - Consumado Nulidade - Ausência de condição de
0001502- procedibilidade (representação da
39.2018.8.07.0012 vítima)
Apelação Criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 9 anos e 9 Suficiência probatória
0002188- corporal e meses de
37.2018.8.07.0010 ameaça reclusão
Habeas Corpus nº Casa Ameaça, Consumado Denegação - Risco de reiteração
0716699- sequestro, delitiva/proteção à integridade da
171

92.2019.8.07.0000 cárcere vítima


privado,
lesão
corporal e
desobediênci
a
Apelação Criminal nº Casa - Consumado Condenação 7 anos de Suficiência probatória
0011635- reclusão
69.2017.8.12.0002
Apelação criminal nº Casa Lesão Consumado Absolvição - Atipicidade da conduta
0001390- corporal
59.2015.8.12.0037
Apelação Criminal nº Casa Ameaça, Consumado Condenação 7 anos de Suficiência probatória
0028741- furto e reclusão
86.2013.8.12.0001 violação de
domicílio
Habeas Corpus nº Carro Descumprim Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
1003136- ento de proteção à integridade da vítima
73.2021.8.11.0000 medidas
protetivas
Habeas Corpus nº Casa - Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
1009976- proteção à integridade da vítima
41.2017.8.11.0000
Habeas Corpus nº - Lesão Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
1000041- corporal proteção à integridade da vítima
172

35.2021.8.11.0000
Apelação criminal nº Casa - Consumado Condenação 9 anos e 4 Suficiência probatória/crime
0504414- meses de cometido por meio de ardil
64.2016.8.05.0274 reclusão
Apelação Criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 10 anos e 6 Suficiência probatória
0523877- corporal meses de
30.2019.8.05.0001 reclusão
Habeas Corpus nº Casa/ matagal Lesão Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
0013621- corporal, proteção à integridade da vítima
30.2015.8.05.0000 constrangime
nto ilegal e
ameaça
Habeas corpus nº - Ameaça Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
0804154- proteção à integridade da vítima
15.2015.8.15.0000
Apelação criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 7 anos de Suficiência probatória
0001045- corporal e reclusão
40.2011.8.18.0046 violação de
domicílio
Habeas Corpus nº - Lesão Consumado Denegação - Risco de reiteração delitiva/
0005280- corporal proteção à integridade da vítima
74.2015.8.10.0000
Apelação Criminal nº Motel Cárcere Consumado Condenação 14 anos e 6 Suficiência probatória
0000726- privado meses de
46.2013.8.10.0104 reclusão
173

Apelação Criminal nº Casa Ameaça e Consumado Condenação 7 anos de Suficiência probatória


0089642018 violação de reclusão
domicílio
Apelação criminal nº Casa Cárcere Consumado Condenação 23 anos e 3 Suficiência probatória
0000334- privado e meses de
05.2016.8.17.0170 ameaça reclusão
Revisão Criminal nº Casa - Tentado Manutenção 4 anos e 10 Regularidade do processo
0004380- da meses de
57.2019.8.17.0000 condenação reclusão
Apelação Criminal nº - Lesão Consumado Condenação 10 anos e 8 Suficiência probatória
0700235- corporal meses de
02.2018.8.02.0021 reclusão
Apelação criminal nº Casa Lesão Consumado Condenação 12 anos de Suficiência probatória/ pena
0700387- corporal e reclusão fixada corretamente
23.2018.8.02.0030 cárcere
privado
Apelação Criminal nº - - Consumado Condenação 6 anos e 6 Suficiência probatória/pena
0002381- meses de reformada
53.2012.8.02.0058 reclusão
Habeas Corpus nº - Lesão Consumado Denegação 13 anos e 1 Condenação em primeiro grau/
0622995- corporal e mês de proteção à integridade da vítima
86.2018.8.06.0000 porte ilegal reclusão
de arma de
fogo
Apelação Criminal nº - - Consumado Absolvição - Nulidade da sentença que
174

0207138- absolveu o réu


74.2009.8.04.0020
Habeas Corpus nº - - Consumado Concessão - Retratação da vítima/ fixação de
4004212- medidas protetivas
23.2014.8.04.0000
Apelação criminal nº Casa - Consumado Condenação 6 anos e 6 Suficiência probatória
0014517- meses de
83.2004.8.04.0001 reclusão
Habeas Corpus nº - Ameaça e Consumado Denegação - Manutenção da ordem pública e
1001321- posse resguardo da investigação e da
88.2019.8.01.0000 irregular de vítima
arma de fogo
Apelação criminal nº Casa Ameaça e Consumado Condenação 6 anos e 4 Suficiência probatória
0005684- lesão meses de
71.2015.8.01.0002 corporal reclusão
Revisão criminal nº Casa Lesão Consumado Provisão 6 anos e 8 Aplicação do princípio da
1000016- corporal e parcial/redim meses de consunção nos crimes de lesão
35.2020.8.01.0000 ameaça ensionament reclusão corporal e ameaça
o da pena
Apelação Criminal nº Casa Lesão Consumado Nulidade/ - Ausência de representação da
0002975- corporal extinção da vítima
60.2015.8.22.0008 punibilidade
Apelação criminal nº Carro/casa Ameaça Consumado Condenação 6 anos de Suficiência probatória
0001140- reclusão
34.2015.8.22.0009
175

Apelação Criminal nº Casa - Consumado Absolvição - Insuficiência probatória


0000164-
05.2013.8.23.0030
Apelação criminal nº Rua/imóvel - Consumado Condenação 8 anos de Suficiência probatória
0017637- abandonado reclusão
59.2016.8.23.0010
Apelação Criminal nº Carro/casa Lesão Consumado Condenação 7 anos de Suficiência probatória
0830251- corporal e reclusão
29.2017.8.23.0010 ameaça
Apelação Criminal nº Casa/matagal Cárcere Consumado Condenação 10 anos de Suficiência probatória
0013415- privado reclusão
38.2014.827.0000
Revisão Criminal nº Casa - Consumado Procedência - Retratação posterior da vítima
0000964-
65.2019.814.0000
Apelação Criminal nº - - Consumado Condenação 9 anos de Suficiência probatória
0000027- reclusão
38.2015.8.14.0051
Apelação Criminal nº Casa - Consumado Condenação 9 anos de Suficiência probatória
0013324- reclusão
27.2018.814.0401
Apelação criminal nº - - Consumado Condenação 6 anos e 9 Suficiência probatória
0005329- meses
15.2012.8.03.0001
Apelação criminal nº - Cárcere Consumado Condenação 8 anos e 2 Suficiência probatória
176

0033101- privado meses


74.2017.8.03.0001
177

Os acórdãos analisados demonstram a relevância que a palavra da vítima


tem adquirido nos processos de crimes sexuais. Desde antes da promulgação das
legislações protetivas à mulher, a palavra da vítima possuía especial relevância nos
processos de crime sexuais, embora devesse estar corroborada por outros
elementos probatórios. No entanto, nos crimes sexuais ocorridos no interior de
relacionamento amoroso, uma vez que é presumido que haja relações sexuais, a
palavra da vítima deve ser especialmente considerada, já que é ela que atesta a
ausência de consentimento. Embora tal entendimento venha sendo continuamente
empregado pelo Judiciário, não houve formação obrigatória em gênero316; ao que
parece, tal entendimento vinha sendo aplicado de forma orgânica pelos
desembargadores. Foi só em 2018 que o STJ publicou Jurisprudência em Tese
sobre o conteúdo, consolidando o entendimento de que “nos delitos praticados em
ambiente doméstico e familiar, geralmente praticados à clandestinidade, sem a
presença de testemunhas, a palavra da vítima possui especial relevância,
notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios acostados aos
autos.”317
É notável, na observação dos acórdãos, que a violência sexual é muitas
vezes acompanhada de violência física. Assim, em boa parte dos estupros
conjugais, a violência sexual é uma maneira de infligir violência de forma mais
gravosa. Também pode ser observado que em grande parcela dos crimes
analisados, a motivação para o cometimento do estupro foi a separação e a
possessividade dos acusados. Os criminosos não aceitam o fim do relacionamento
ou que a vítima se relacione com outro homem; consideram que sua propriedade
lhes foi tirada e a violência sexual é a forma que encontram de retaliar tal
circunstância que entendem afetar sua masculinidade, bem como dominar e
humilhar a vítima.
Outra questão que salta aos olhos são as alegações da defesa na grande
maioria dos acórdãos. A alegação mais comum nas decisões analisadas foi de que a
vítima consentiu com o ato sexual e prestou denúncia a fim de prejudicar o acusado.

316
O CNJ editou, em 2020, a Recomendação nº 79, a fim de que magistrados que atuarem na
aplicação da Lei Maria da Penha sejam treinados em gênero. CNJ. Recomendação Nº 79 de
08/10/2020. Dispõe sobre a capacitação de magistradas e magistrados para atuar em Varas ou
Juizados que detenham competência para aplicar a Lei nº 11.340/2006. Disponível em:
<https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3514>. Acesso em: 05 maio 2021.
317
STJ. Jurisprudência em Teses. Edição nº 111: Das provas no Processo Penal – II. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp>. Acesso em: 05 maio 2021.
178

Também buscam desqualificar o depoimento da vítima. As defesas agem


majoritariamente no intuito de reforçar visões patriarcais sobre as vítimas de estupro,
utilizando-se de estereótipos a fim de desacreditá-las e de fazer os réus serem
vistos como vítimas de mulheres vingativas que imputaram o crime falsamente. O
local de ocorrência dos delitos demonstra a importância do Estado na intervenção no
domínio considerado privado, já que é neles que as mulheres sofrem as maiores
violações.
Embora as decisões analisadas revelem, em sua maioria, razoabilidade do
Judiciário no que tange às questões de gênero e violência sexual, algumas mostram
que os magistrados não estão plenamente preparados para lidar com esses crimes.
Desacreditar a vítima por não pedir ajuda imediatamente aos fatos ou por apresentar
versões conflitantes demonstra desconhecimento das consequências psicológicas
da violência e do trauma.
Merece atenção, ainda, a aplicação das circunstâncias judiciais na primeira
fase da fixação de pena, que varia não só entre os Estados, mas dentro dos próprios
Tribunais. Os critérios não são claros e dependem da convicção do magistrado, mas
tem grande impacto na fixação da pena. Finalmente, embora o Judiciário lide de
forma razoável com a questão do estupro no interior de relacionamentos amorosos,
a contagem de decisão conforme os Tribunais demonstram que ainda são poucos
crimes que chegam a alguma resolução judicial, demonstrando a subnotificação dos
crimes de estupro nesse contexto.
179

CONCLUSÃO

Por quase toda a história da humanidade, as mulheres foram relegadas ao


último plano. Sua existência estava condicionada às benesses do homem que a
possuísse, pai ou marido, jamais se constituindo um sujeito de fato. A luta pelo
reconhecimento dos direitos humanos na Europa as excluiu expressamente; a sua
posse e propriedade foi reconhecida legalmente pelo Estado como sendo
masculinas. Assim, os homens controlaram a sociedade civil através da fraternidade
entre os homens para dominar e explorar as mulheres. O casamento foi instituído
como único meio de relacionamento amoroso e sexual, uma forma de controlar a
sexualidade feminina, bem como de mantê-la em casa sob vigilância, embora a
sexualidade e a liberdade masculina não fossem afetadas pelo casamento.
A doutrina das esferas separadas demonstra a exploração tanto da
sexualidade quanto do trabalho das mulheres no interior do lar, que embora
exaustivo, não é remunerado – um trabalho do qual os homens se beneficiam, já
que é necessário para a reprodução da vida. Quando absorvidas pelo mercado de
trabalho, têm piores condições de emprego e menores salários, bem como menor
estabilidade. O desenvolvimento das sociedades capitalistas é dado pela exploração
de vários grupos minoritários, inclusive as mulheres.
As mulheres, então, são controladas tanto no interior da família, tanto pela
sociedade civil que as exclui expressamente. Antes disso, pode-se afirmar que já
havia na sociedade uma divisão de gênero, baseada na superioridade do masculino;
tais características não são biológicas, mas culturalmente formadas, partes das
relações sociais. Mas foi com o advento da idade moderna que tal sistema tornou-se
uma norma reguladora a fim de definir a sexualidade feminina nos moldes
masculinos. O masculino tornou-se o universal, a norma, enquanto o feminino era o
“outro”, o diferente. A maior parte das justificativas para esse modelo de
desigualdade baseia-se na natureza, em habilidades naturais, especialmente a
maternidade – embora ignore que a reprodução da vida é responsabilidade de toda
a sociedade, e que a gravidez e o parto são naturais, mas o cuidado é social.
Ainda que as mulheres venham sendo cada vez mais presentes na sociedade
civil e no mercado de trabalho, tais ideologias ainda são transmitidas culturalmente.
Mesmo que sejam bem remuneradas, ainda são as principais cuidadoras do lar e
dos filhos, trabalho que normalmente secundarizam pra outra mulher, mas mantendo
180

a responsabilidade sobre elas mesmas. As desigualdades não são naturais, mas


estabelecidas culturalmente pelas práticas de homens e mulheres, muitas vezes
inconscientemente.
A subordinação civil e social não se exaure na subalternidade, mas tem
consequências ainda mais tangíveis. A violência doméstica é a exasperação das
ideologias patriarcais e de gênero, que colocam a mulher como um objeto sobre o
qual se derrama expectativas e frustrações. É exatamente porque a mulher é vista
como um ser inferior, sub-humano, que se autoriza que seja violada em diferentes
dimensões; os violentadores exploram suas dependências e fragilidades, a fim de
exercer força e provar o domínio sobre quem eles consideram inferiores. Os
violentadores normalmente culpam a vítima pelas agressões porque, de alguma
maneira, elas desafiaram sua noção de superioridade, de forma que recorrem à
violência a fim de provar a elas que são mais fracas e por isso são inferiores.
As mulheres brasileiras não são exceção, embora talvez tenham sido ainda
mais vitimadas. A influência religiosa contribuiu para uma maior discriminação, pois
eram vistas como as portadoras do pecado, embora tenham sido os homens que
estupraram as índias que aqui estavam. As mulheres brancas podiam ter melhores
condições de vida, mas ainda assim não escolhiam seu casamento. Tinham sua
sexualidade controlada enquanto seus maridos engravidavam suas escravas, que
não tinham escolha a não ser ceder ao senhor e posteriormente dar à luz a mais um
escravo. A exclusão das mulheres era total em todos os aspectos sociais e civis; não
aprendiam a ler ou a escrever; não eram seres humanos, mas futuras esposas de
alguém.
Com a influência da luta feminista europeia e americana, movimentos
culturais e sociais ao redor do mundo, bem como da pauta abolicionista, as
mulheres brasileiras passaram a lutar pela educação. Tornou-se um privilégio a que
algumas poucas mulheres ricas tinham acesso – embora tal panorama não tenha
sido profundamente alterado, já que as meninas pobres continuam abandonando os
estudos por falta de condições.
O primeiro Código Criminal do Brasil demonstra o seu claro viés de gênero,
em vários aspectos; primeiramente, criminalizando o aborto. O adultério tem
diferentes critérios conforme o sexo do agente ativo – para a mulher, bastava
relacionar-se com outro homem; o homem, no entanto, deveria sustentar outra
mulher para ter sua conduta criminalizada. A mulher devia preservar a sua
181

sexualidade para o marido; este, no entanto, devia apenas a subsistência, sem


necessidade de fidelidade. O crime de estupro tinha penas diversas conforme o
agente passivo – mais grave para a mulher honesta, mais brando para a prostituta.
O estuprador seria isentado de pena caso na hipótese de se casar com a vítima. A
ideia não era de que o estupro violava a integridade corporal de um ser humano,
mas sim que retirava o valor de um bem por usá-lo. Como a única finalidade da
mulher era o casamento, e ter sido “usada” dificultava encontrar um marido, tendo
sido estabelecido o casamento, não importa com quem, não havia danos. A
prostituta já tinha tido sua chance de casamento arruinada por si mesma, de modo
que ser violada por um homem, mesmo com violência, era menos grave.
O Código Civil de 1916 é alheio às transformações pelas quais a sociedade
passava naquele período. O Código consagrou o pátrio poder sobre a família,
mantendo autoridade e poder decisório do marido sobre a esposa e os filhos. Caso a
mulher não fosse virgem, o casamento podia ser desfeito. A mulher necessitava de
autorização de seu marido para diversos atos da vida civil, inclusive para trabalhar.
Ou seja, por mais que as mulheres começassem a ter acesso à educação e à vida
pública, ainda precisavam da autorização de seu marido para a maioria dos seus
atos. Eram incapazes e dependentes do marido. O divórcio ainda não era uma
possibilidade, e o desquite trazia graves consequências sociais. A perspectiva do
Código é permeada de valores patriarcais que enxergavam e positivavam a mulher
como inferior e subordinada ao homem, bem como continuavam mantendo o
casamento como única possibilidade de vida para as mulheres.
O movimento feminista pelo voto, que se seguiu, foi moldado conforme a luta
pela educação, ou seja, feito por mulheres ricas e para mulheres ricas, em sua
maioria. A grande parte das mulheres, porém, as trabalhadoras e operárias, no
mesmo período, lutavam pelo reconhecimento de seus direitos por meio de greves.
O direito ao voto foi conquistado antes, já que a elite passou a apoiá-lo para que
suas mulheres também fossem inclusas.
O período Vargas fez com que a grande massa das mulheres – as
trabalhadoras – adquirisse direitos básicos no que diz respeito ao seu trabalho,
muito embora com forte viés patriarcal e protecionista, excluindo-as de trabalhos
considerados pesados e de grande parte do trabalho noturno. Excluiu também as
trabalhadoras e trabalhadores rurais, que eram a maior parte da força de trabalho do
país. Mesmo assim, a CLT foi essencial para garantir a integridade dos
182

trabalhadores industriais, em especial das mulheres. O Estatuto da Mulher Casada


também foi importante, pois estabeleceu, ainda que formalmente, a igualdade no
casamento e a liberdade da mulher para o trabalho e a vida pública.
A ditadura civil-militar representou um grande retrocesso e é uma mácula na
história do país. As mulheres foram usadas como massa de manobra pela elite
conservadora e certamente foram as mais prejudicadas pela extrema pobreza que
acompanhou o crescimento econômico. Por outro lado, as maiores mobilizações –
pelo fim da ditadura, por anistia, pela procura dos mortos, pelo fim da pobreza –
foram compostas de mulheres que lutavam pela democracia e pelo reconhecimento
dos direitos humanos e sociais. Os direitos pelos quais as mulheres lutavam não
eram para elas, mas pelo desenvolvimento de uma sociedade mais justa e
igualitária; direitos esses que hoje são legalmente garantidos, muito embora pouco
cumpridos. O direito à creche, a ensino, saúde, moradia, não são direitos que
beneficiam apenas as mulheres trabalhadoras, mas a toda sociedade, pois são
serviços essenciais à sua manutenção. A pauta da violência doméstica surge nesse
período, quando as mulheres se reúnem a fim de lutar pelas necessidades mais
prementes. O divórcio tornou-se uma possibilidade, ainda no período ditatorial. A
transição democrática e a Constituição de 1988 são signatárias das lutas das
mulheres nesse período.
A Constituinte de 1987, embora pouco representada por mulheres, teve
grande influência do movimento feminista organizado. Com exceção do direito ao
aborto, foi reconhecida a maior parte dos direitos pelos quais as mulheres lutavam.
As organizações internacionais, especialmente a ONU, tiveram certa influência, mas
não se deve ignorar a pressão popular exercida pelo movimento de mulheres.
Após a Constituição de 1988, norteada pelo princípio da igualdade, cada vez
mais direitos têm sido reconhecidos, inclusive ações positivas do Estado a fim de
garantir que a igualdade seja material e não apenas formal. O Código Civil de 2002
estabeleceu plena igualdade familiar entre os cônjuges, afastando a autoridade do
homem na família. Conforme previsão constitucional, bem como por pressão
internacional, a Lei Maria da Penha passou a trazer proteção legal à mulher que
sofre de violência doméstica, criminalizando o agressor. Também por pressão
internacional, o Brasil reconheceu o crime de feminicídio, tendo, portanto, um largo
arcabouço legal para lidar com os crimes de gênero. O debate sobre violência
doméstica incitou a discussão acerca da violência sexual, um tema antes
183

minimizado e muitas vezes silenciado, de extrema importância para a garantia dos


direitos humanos básicos das mulheres.
Durante grande parte da história do país, o estupro não era um crime contra a
integridade física, mas contra a honra da mulher e da sua família – principalmente
do pai ou do marido. Para garantir o casamento, era necessária a virgindade. Se lhe
fosse tirada, perdia todo o seu valor – afinal, as mulheres tinham como única e
exclusiva perspectiva o casamento. Por isso, se o estuprador se casasse com ela
não havia crime, ficando sanado o dano. O intuito da lei é claro quando se observa,
por exemplo, o crime de sedução. A lei não protegia mulheres, mas as propriedades
dos homens.
As grandes mudanças legislativas ocorrem após a Constituição de 1988, que
muda o paradigma institucional e passa a reconhecer as mulheres como sujeitos
plenos de direitos. O crime de assédio foi tipificado a fim de minar algumas das
desigualdades que as mulheres sofrem no ambiente de trabalho. Em 2005, a figura
da mulher honesta foi definitivamente eliminada do ordenamento jurídico. Em teoria,
isso significa que as mulheres não são mais protegidas conforme o valor que é dado
a elas, mas como sujeitos plenos de direitos humanos independentemente das
escolhas feitas na vida, assim como os homens o são.
Também foi só em 2005 que foi eliminada de vez a excludente de ilicitude do
casamento do estuprador com a vítima. Além disso, cônjuge ou companheiro
passam a ser citados na lei como agentes que merecem especial reprovabilidade ao
estuprar a vítima, pela relação de confiança que mantém com ela. Ou seja, a lei
passa a expressar o entendimento literal de que não é aceitável forçar uma mulher a
manter relações sexuais, e é ainda mais grave forçá-la sendo seu companheiro ou
marido. Através da evolução legislativa, o crime de estupro deixa de ser um crime
contra a honra ou os costumes e passa ser um crime contra a dignidade, a
sexualidade da mulher – direitos esses que são reconhecidos como inalienáveis.
Eventualmente, foram reconhecidos mais alguns direitos a fim de proteger a
sexualidade de mulheres, meninas e meninos, de violadores. A mais importante,
porém, foi a que tornou os crimes sexuais de ação pública incondicionada, fazendo
com que seja de total responsabilidade do Estado a persecução criminal do
estuprador.
O estupro é um crime grave de violação física e sexual e recebe pouca
visibilidade, em especial porque é um crime cometido, na maioria das vezes, contra
184

mulheres. O estuprador, embora muitas vezes visto como um doente é, na verdade,


uma pessoa comum que utiliza a sexualidade para extravasar raiva ou demonstrar
poder sobre a vítima. O objetivo principal não é satisfazer a sexualidade, mas sim
agredir ou dominar. Embora o estupro não seja primordialmente sobre sexualidade,
a dominação é erotizada pelos homens, e a pornografia endossa essa concepção.
Não é dizer que a pornografia cause o crime de estupro, mas muitas vezes sexualiza
a violência contra atrizes, confundindo homens acerca dos limites de relações
sexuais com mulheres comuns.
A vítima do crime tende a se culpar, em especial pelas concepções sociais
ultrapassadas de que o estupro é sobre sexualidade, e que, portanto, alguma ação
das vítimas tenha contribuído com o crime. Essas concepções caem por terra
quando se observa que o maior número dos estupros tem como vítima crianças, que
de maneira alguma poderiam ter contribuído para despertar a lascívia de alguém.
Mas, em segundo lugar, estima-se que a maior parte dos estupros contra mulheres
adultas seja cometida por alguém de seu convívio, principalmente em relações
amorosas. Esses crimes possuem baixíssima visibilidade, seja porque ainda se
cogita o conceito ultrapassado de dever conjugal, seja porque simplesmente as
mulheres não sabem que podem ser estupradas num relacionamento amoroso.
Os homens estupram suas companheiras como uma exacerbação da
violência doméstica ou para impor autoridade no relacionamento. É especialmente
traumático para a vítima, já que a violência foi cometida por alguém em quem
confiavam. Assim como no caso da violência doméstica, os estupradores costumam
negar o crime, atribuindo culpa a vítima por tê-lo desafiado. Eles veem as vítimas
como culpadas por não terem seguido o papel a elas atribuído, por não aceitarem
sua subordinação e por não reconhecerem a superioridade masculina no
relacionamento, de forma que a violência torna-se o último recurso para aquele
homem readquirir sua suposta autoridade.
O Judiciário brasileiro, pelas decisões analisadas, parece aplicar os princípios
protetivos da integridade física e sexual das mulheres no âmbito doméstico. O delito
de estupro é considerado grave, ensejando prisão preventiva e provisória para
acusados, afastando-os desde logo do lar conjugal. Os depoimentos das vítimas são
especialmente valorizados como provas, sendo, muitas vezes, o único meio
probatório a ensejar a condenação. Algumas questões processuais, como as
circunstâncias judiciais valoradas na primeira fase de fixação de pena apresentaram
185

total discrepância conforme o estado analisado. A falta de conhecimento


especializado em violência sexual fica clara quando, por exemplo, os juízes
desacreditam a vítima por não pedir ajuda ou por não ter lembranças claras do
ocorrido.
Note-se, porém, que há ausência de conhecimento específico sobre gênero e
violência não apenas no Judiciário, mas em toda a formação jurídica nacional, de
forma que são praticamente ignoradas as violações de direitos humanos das
mulheres. Recebem mais atenção as questões ditas universais – que, na realidade,
ignoram a especificidade das experiências sociais e culturais do gênero feminino.
A análise das decisões mostra a prevalência do pensamento patriarcal entre
os homens que cometeram o crime. A maior parte deles o fez por enxergar a mulher
como sua propriedade, e não aceitar a separação. Muitos deles o fizeram como uma
etapa das agressões físicas infligidas à vítima, e outros até mesmo por ciúmes.
Observa-se que o crime é, muitas vezes, cometido em concurso com outros crimes.
Nota-se que muitos deles têm consciência de que estão cometendo um crime, mas o
praticam mesmo assim, pois é o único crime que tem a capacidade de impor
tamanha dominação sobre a vítima. A violência doméstica permite que a vítima seja
dominada em diversos aspectos – física, psíquica, financeiramente – mas a violência
sexual permite que a sua sexualidade seja controlada e dominada.
Mas as mulheres não são mais propriedade de seus pais ou maridos.
Constituem-se sujeitos de direitos humanos plenos e qualquer violação de sua
integridade física, psicológica ou sexual, como a violência doméstica e o estupro,
colocam em questão os direitos humanos de toda a sociedade.
Assim, embora o judiciário mostre-se permeável às desigualdades de gênero
e às violências que as mulheres sofrem no âmbito doméstico, o grande problema
prevalece sendo a informação. Conforme já mencionado, muitas mulheres
simplesmente não sabem que o estupro pode acontecer dentro de um
relacionamento amoroso, seja porque a violência sexual é uma etapa da violência
doméstica, seja porque entendem que tem o dever de atender aos desejos sexuais
de seu companheiro ou marido. Assim como foi feito com a violência doméstica –
campanhas de conscientização, formação específica para os profissionais de saúde,
telefones gratuitos para atendimento imediato de vítimas –, deve ser feito quanto ao
estupro no âmbito doméstico. O assunto precisa ser exaustivamente discutido pelo
186

maior número de pessoas, pois a mobilização popular mostra-se o melhor caminho


para o amplo reconhecimento e respeito aos direitos humanos das mulheres.
187

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vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir
como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo; e revoga
dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções
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