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Anais do VII Simpósio Nacional de Pesquisa Estado e Poder

Direitos, Democracia e Lutas sociais em tempos de crise


UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon – PR
30 de setembro a 03 de outubro de 2019 - ISBN 978-65-00-04502-4

CULTURA PATRIARCAL E PODER JUDICIÁRIO: OS LIMITES


PARA A EFICÁCIA DA LEI MARIA DA PENHA

FABÍOLA SCHEFFEL DO AMARAL1


LÉIA PATEK DE SOUZA2

Resumo: A Lei Maria da Penha (11.340/2006) é reconhecida pela Organização das Nações
Unidas (ONU) como a terceira melhor legislação do mundo no combate à violência
doméstica contra a mulher. O Brasil é o quinto país no mundo que mais mata mulheres.
Frente à contradição numérica e material apresentada, entre o que se pretende com a sansão
de legislações para o enfrentamento de questões sociais como a violência doméstica, e o que
é alcançado em mudança social nas vias de fato, este trabalho tem por objetivo construir
considerações a respeito da atuação do Poder Judiciário brasileiro sobre a Lei Maria da
Penha. Abordaremos a cultura patriarcal e os papéis de gênero para compreender as raízes
da violência contra a mulher, bem como a repercussão dessa cultura nos processos jurídicos
que envolvem a Lei Maria da Penha. Somando-se a isso, analisaremos o relatório produzido
pela Comissão Nacional de Justiça (CNJ) este ano (2019), intitulado “O poder judiciário no
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres”. O relatório apresenta
uma análise ampla sobre o tema, contribuindo para o conhecimento e problematização da
situação real em que se encontra o Brasil na luta contra a violência doméstica contra a mulher
pela aplicação da Lei Maria da Penha. Em suma, o trabalho irá expor alguns dos limites e
obstáculos que se apresentam no decorrer dos processos de enfrentamento à violência contra
a mulher, bem como apresentar e propor caminhos a seguir para que o tema discutido possa
avançar no âmbito da vida prática e do debate acadêmico.

Palavras-chave: Violência doméstica; Judiciário; Patriarcado.

Introdução

A iniciativa de construção deste trabalho parte de nosso contato constate com o tema
Lei Maria da Penha e violência doméstica, em razão da atuação como bolsistas no projeto
NUMAPE – Núcleo Maria da Penha da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus
de Marechal Cândido Rondon. Em conjunto com os estudos requeridos sobre o tema as
experiências concretas com os casos de violência doméstica e os atendimentos na
comunidade realizados pelo projeto nos levam a identificar e refletir sobre os avanços
permitidos pela Lei 11.340/2006 no enfrentamento à violência contra a mulher, mas também

1
Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus Marechal Cândido Rondon.
2
Graduada em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus Marechal Cândido Rondon.

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nos permitem refletir sobre as estruturas sociais historicamente construídas que limitam a
efetividade da mesma.
Compreendemos que as leis por si só não são autossuficientes para gerar alterações
na sociedade, mas que sua efetiva aplicação age como um fator de impulso para os processos
de alterações sociais. Nesse sentido, o Estado e mais diretamente o Poder Judiciário, exercem
um papel primordial no que tange a potencialidade transformadora das leis para a sociedade.
Contudo vale pontuar que essas instituições são compostas e geridas por sujeitos sociais e
históricos com especificidades e subjetividades, herdeiros de uma cultura patriarcal. Isso nos
leva a compreender que a atuação dos profissionais diretamente envolvidos nos espaços de
aplicação concreta das leis e suas posturas, são substanciais para o efeito que as mesmas
exercerão, ou não, na completude da sociedade. Esse cenário impõe variadas limitações à
busca por justiça de vítimas pertencentes as minorias representativas na sociedade, como as
mulheres em situação de violência doméstica.
Analisaremos o relatório produzido pela Comissão Nacional de Justiça (CNJ) no ano
de 2019, intitulado “O poder judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar
contra as mulheres” afim construirmos considerações a respeito da permanência da cultura
patriarcal na atuação dos juízes do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra
Mulheres. É válido pontuar que o documento analisado não receberá a característica de fonte
histórica neste trabalho, consideramos que a pesquisa que apresenta fundamenta discussões
teóricas há muito tempo sendo constituídas sobre o tema, servindo como parâmetro para
trabalhos tais quais este.

Cultura patriarcal: a mulher e seu lugar social

Com vistas a avançarmos no enfrentamento à violência contra a mulher e a igualdade


entre os sexos, evidencia-se a importância de compreender o processo histórico de
constituição da realidade social das mulheres, da família e da cultura a respeito de ambos.
Dessa forma, podemos analisar de modo esclarecido as correlações de forças que se
estabelecem ao falarmos de violência contra a mulher e efetividade da Lei Maria da Penha.
Sintoma da vigência de uma estrutura por vezes negada, a fragilidade da Lei Maria
da Penha em sua aplicação nos processos de violência doméstica e familiar contra a mulher
se funda no sistema patriarcal presente em nossa sociedade. A cultura gerada a partir desse
sistema faz a manutenção dos diferentes locais de pertencimento e atuação social entre
homens e mulheres criados com base no gênero, compreendido por Heleieth Saffioti como
“a construção social do masculino e do feminino” (SAFFIOTI, 2015, p. 47).
Ao trabalhar tanto com o conceito patriarcado quanto gênero, Saffioti aponta que o
gênero em si não explicitaria uma desigualdade entre homens e mulheres fora da categoria
patriarcado, uma vez que compreende que gênero é um conceito que se adequa a toda a
história, enquanto patriarcado diz respeito a um determinado período da história da
humanidade, sendo esse iniciado seis ou sete milênios atrás. Dessa forma, o gênero não
pressupõe desigualdade e hierarquia entre os sexos, apenas marca suas diferenças socias,
contudo, a desigualdade que enfrentamos atualmente entre os sexos se dá pela hierarquia
atribuída pelo patriarcado ao gênero (SAFFIOTI, 2015, p. 48).

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Inserir a opressão masculina sob os corpos femininos no processo histórico brasileiro


recente nos leva à vulgarmente conhecida como República Velha (1890 – 1930). Esse recorte
se justifica a partir do processo em andamento de industrialização do país e aumento de uma
massa de trabalhadores operários no perímetro urbano, o que desencadeia da sociedade como
um todo e em especial do Estado e do saber médico, uma atenção exacerbada com a família
de trabalhadores (RAGO, 2014, p. 86). Nesse processo a família, mas especialmente a
mulher e a criança, passam por transformações de seus papeis sociais inseridos na lógica
proletarizada do capitalismo e higiênica incipiente no período. Cada componente da família
passa a ter um papel social a cumprir, sendo o da mulher “frágil e soberana, abnegada e
vigilante” atentar para cada detalhe da vida cotidiana de cada membro da família, desse
modo, a mulher passa a estar restrita ao âmbito da casa enquanto ao marido é separado a
vivência externa do trabalho e da vida pública (RAGO, 2014, p. 88).
Não obstante, na ordem hierárquica familiar estabelece-se uma reprodução da ordem
externa, a família passa a ser uma pontual reprodução da ordem social: o homem é o chefe,
a mulher é subordinada ao homem e a criança é subordinada à mulher. A nova ordem familiar
nuclear passa a preparar os sujeitos para a ordem de dominação do capitalismo, o que ambas
têm em comum é o poder patriarcal como predominante na hierarquia de dominação.
Com o processo de construção da mulher enquanto sexo frágil, maternal, sensível, e
da ordem privada da sociedade, as relações familiares são compreendidas como afora dos
assuntos do Estado. O posicionamento do Estado em relação ao ambiente privado da família
pode ser compreendido como uma conjunção de uma religiosidade que prega a sagrada
família, com os interesses políticos de controle vigilante, constante e dissolvido na
sociedade, com a influência da própria lógica patriarcal na qual os sujeitos constituintes do
Estado estavam imbuídos, que legitima a lógica familiar. Dessa forma, o resultado da
legitimidade cultural e politicamente atribuída ao homem como chefe da casa e da mulher,
somada à renegação do Estado em interferir nas lógica do ambiente familiar privado,
fomentam a lógica da violência contra a mulher como educação, castigo e afins, cabível ao
homem em seu papel de chefe do lar.
A dominação do homem sobre a mulher, inclusive no ato de violência seria
justificada pela própria ordem de dominação masculina, que se impõe como neutra, através
da dinâmica social, que naturaliza o poder masculino. Desse modo, a divisão do trabalho, a
violência física, psicológica, patrimonial, o estupro dentro do casamento, sob os olhos da
cultural patriarcal da sociedade não são violências e sim a ordem natural do âmbito privado
e do casamento. Onde a vítima da violência quando denuncia seu agressor ainda sobre novas
violências e revitimizações por parte da sociedade, que ou a culpabiliza pelo ocorrido ou
compreende sua conduta como o não cumprimento de seu “papel de mulher”.
Ainda que na realidade atual a mulher tenha conquistado avanços em sua condição
social, ainda está sujeita à violência em suas variadas formas por homens em razão do
gênero. A lógica das relações de gênero historicamente construídas na sociedade patriarcal
e capitalista constroem e naturalizam os lugares sociais de cada sexo e de casa sujeito social,
bem como à violência impetrada pelos homens às mulheres e dos homens e mulheres às
crianças por meio da concepções culturalmente postas com base das estruturas do
patriarcado e da ordem social que o capitalismo requer: sujeitos docilizados. Considerando
a constituição dos sujeitos sociais historicamente imbuídos nessa mesma lógica na qual

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vivemos ainda hoje, o Estado e o Poder Judiciário, uma vez que constituídos por sujeitos
filhos de seu tempo, acaba por reproduzir e exercer a manutenção dessas estruturas ao passo
que para além das especificidades de casa ambiente, o privado e o público estão entrelaçados
uma vez que se constituem por pessoas.
A naturalização da violência doméstica tem raízes historicamente construídas e suas
consequências são mortais. Os altos índices de feminicídios no país e no mundo comprovam
esse risco. Contudo, a naturalização da violência doméstica presente no Poder Judiciário tem
consequências ainda mais fortes uma vez que “A má compreensão da natureza das relações
gênero e a decisão judicial baseada no patriarcado ‘naturalizado’ ferem de morte toda a
legislação de proteção aos direitos humanos das mulheres” ainda segundo Passos e Sauaia,

um dos efeitos simbólicos do veredito judicial pode ser a consagração da


ordem estabelecida, que no caso das relações de gênero, é a doxa
masculina, androcênctrica, heteronormativa, patriarcal, num processo de
legitimação da estrutura da qual é resultado.” (PASSOS; SAUAIA, 2016,
p. 145).

Em suma, a má atuação do Poder Judiciário ao não compreender a construção de


gênero, além de agir com injustiça à vítima de violência ao não lhe garantir seus direitos
devidos, ainda reforça a permanência da cultura patriarcal bem como da dominação
masculina por meio da violência, uma vez que o judiciário é detentor de um poder simbólico
que reproduz e autoriza determinadas práticas e princípios (PASSOS; SAUAIA, 2016, p.
145).

A naturalização da violência contra a mulher e sua repercussão jurídica

A violência contra as mulheres é decorrente de séculos de patriarcado e foi autorizada,


silenciada e negada nas amplas áreas que compõem a sociedade ao longo da história, não
excluo o poder judiciário. “O direito do exercício de violência contra as mulheres é um
legado de leis antigas e de práticas sociais abertamente aprovadas no passado” (BAKER,
2015, p. 73). O Direito, ao longo do histórico das leis brasileiras, se constituiu como
instrumento legitimador da violência contra as mulheres, uma vez que a mulher era vista
como um objeto/parte durante a instrução processual do que como um sujeito de direitos
propriamente dito.
Dentre tais instrumentos, destaca-se a tese da legítima defesa da honra por muito tempo
empregada na defesa dos autores de violência contra as mulheres. A tese permitia que o
homem matasse a esposa para defender a sua honra, configurando como excludente de
ilicitude. Em uma entrevista, realizada pela organização Human Rights Watch, em
depoimento dado pelos promotores de justiça de Pernambuco, houveram as seguintes
afirmações: “O júri não quer saber sobre a lei, se ela, mulher desprezou o marido, então ele
“lavou a sua honra”, matou-a. Assim, não é o sistema legal, mas a sociedade machista que
absolve o assassino passional” (GOMES apud BAKER, 2015, p. 20). Apenas na década de

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1990 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou a ilegalidade da chamada “tese da


legítima defesa da honra” (BAKER, 2015).
Tais situações evidenciam a naturalização da violência contra a mulher, à medida que
o patriarcado naturaliza a ordem androcêntrica, ou seja, incorpora a relação de dominação
masculina, fazendo com que esta seja vista como natural, reproduzindo na sociedade seus
princípios, valores, relações de poder, papéis e funções destinadas aos indivíduos (PASSOS;
SAUAIA, 2016).
O Direito consentiu por muito tempo com a prática de violência, apoiada no sistema
do patriarcado por séculos, legitimando a posição subordinada das mulheres em relação aos
homens por meio do domínio e do controle que autorizam a violência. O caso emblemático
de Maria da Penha Maia Fernandes, que resultou na Lei 11.340/2006 e deu nome à referida
Lei, revela como a cultura patriarcal naturaliza a violência contra a mulher, não tratando com
o devido valor e seriedade os casos de violência doméstica e familiar.
Maria da Penha sofreu duas tentativas de assassinato pelo seu marido: na primeira, ele
desferiu um tiro de espingarda contra ela, enquanto ela dormia na residência do casal,
tornando-a paraplégica; na segunda, o marido tentou eletrocutá-la durante o banho. Apesar
do marido ser julgado em duas oportunidades distintas por ambos os crimes, ele se valeu de
diversos e sucessivos recursos a fim de protelar a execução da sanção (BAKER, 2015).
Diante disso, Maria da Penha percorreu uma jornada incansável, recorrendo à
Comissão Internacional de Direitos Humanos para ter seus direitos assegurados e o agressor
devidamente punido. Apenas após quase 20 anos de luta desde a primeira tentativa de
assassinato, o Estado Brasileiro foi condenado pela Corte por omissão e negligência, visto
que “o Estado Brasileiro não foi capaz de organizar sua estrutura para garantir os direitos
humanos”. (BAKER, 2015, p. 220-221). Assim, a Lei Maria da Penha é sancionada em 07
de agosto de 2006, criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra
a mulher.
Ocorre que, apesar da Lei Maria da Penha apresentar uma grande conquista acerca dos
direitos das mulheres e ser considerada uma das três legislações mais avançadas para
enfrentamento da violência contra as mulheres no mundo pela Organização das Nações
Unidas (ONU), a sua implementação sofreu vários ataques e resistências por parte dos
doutrinadores e operadores do direito.
A violência contra a mulher tem como pilar o patriarcado e, de modo correlato, a
posição de dominação simbólica masculina. O machismo enraizado e estruturante da
sociedade brasileira é um dos grandes problemas a ser combatido para o fim da violência
contra às mulheres. Deste modo, o Poder Judiciário não poderia ser diferente tampouco
deixaria de ser produto da sociedade patriarcal e machista em que vivemos. Isso porque, “há
um componente subjetivo presente nas ações dos sujeitos humanos, mesmo que estes se
proponham a ser objetivos e imparciais”. (PORTO; COSTA, 2019, p. 480)
O maior ponto de divergências quanto à implementação da Lei Maria da Penha foi o
artigo 41, o qual veda expressamente a aplicação da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e
Criminais (Lei 9.099/95) aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Tal
alteração foi de suma importância para que os crimes de violência doméstica não fossem
mais enquadrados como crimes de menor potencial ofensivo, que antes resultava na

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aplicação de penas mais brandas, consequentemente não havia uma punição à altura da
gravidade do crime.
Assim, houve a necessidade do Supremo Tribunal Federal (STF) julgar em 2012 pela
declaração de constitucionalidade do referido dispositivo legal, através da Ação Direta de
Constitucionalidade (ADC) n. 19/DF, afastando a aplicação da Lei 9.099/95 aos casos de
violência doméstica e familiar. O Ministro Gilmar Mendes (apud BAKER, 2015, p. 242)
argumenta que “o princípio da igualdade contém uma proibição de discriminar e impõe
legislador a proteção da pessoa mais frágil no quadro social”, ou seja, há de se proteger a
mulher das manifestações de desigualdade de gênero.
Diante disso, resta comprovado que a entrada em vigor de uma norma jurídica per si
não possui poder de mudar a realidade social, sendo imprescindível a atuação dos agentes
estatais na interpretação e aplicação da lei, afim de assegurar a vontade do legislador,
combatendo as manifestações da desigualdade de gênero e todas as formas de violência
contra a mulher (PASSOS; SAUAIA, 2016).

A inefetividade da política judiciária de enfrentamento à violência contra a mulher

A perpetuação da violência contra a mulher ocorre de forma sorrateira e sutil, em que


os processos de dominação e de relação social encontram-se tão normatizados que num
primeiro instante parecem “naturais”, se impondo de maneira neutra através da dinâmica
social. Nesse contexto, é de suma importância a análise do conteúdo dos discursos jurídicos
a fim de verificar as ações ou omissões do Poder Judiciário no enfrentamento à violência de
gênero, analisando as formas de reprodução da dominação masculina, em especial, pelo fato
do nosso direito ser masculino, inflexível e patriarcal (CHAI; SANTOS; CHAVES; 2018).
Nessa perspectiva, Passos e Sauaia (2016, p. 146) realizaram um estudo de caso de
ação penal que tramitou na Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
da Comarca de São Luís – MA. No caso, houve o oferecimento de denúncia em junho de
2015 pelo crime de ameaça, mas a decisão judicial dispensou a instrução do feito e absolveu
sumariamente o réu, alegando que não houve intimidação suficiente da vítima e a discussão
ocorreu em “semelhante nível de animosidade”.
Ocorre que, a supracitada decisão judicial descaracterizou as formas cotidianas de
violência, diminuindo à “uma discussão de ânimos exaltados”, demonstrando o
desconhecimento do magistrado acerca das especificidades da violência de gênero contra a
mulher. Não obstante, o juiz ignorou a violência psicológica e precedentes do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) de que “nos crimes de
ameaça ocorridos no ambiente doméstico a palavra da vítima assume valor probatório de
maior robustez, suficiente para lastrear a persecução penal” (PASSOS; SAUAIA, 2016, p.
148-149).
A difícil realidade enfrentada pelas mulheres vítimas de violência doméstica e familiar
no Poder Judiciário também é objeto de estudo de Porto e Costa (2010), os quais analisaram
o conteúdo de 15 sentenças, proferidas entre setembro de 2006 e agosto de 2007,
correspondente ao primeiro ano de vigência da Lei Maria da Penha. O estudo qualitativo

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buscou compreender quais os valores e crenças dos juízes que julgam a partir da Lei
11.340/06 (PORTO; COSTA, 2010, p. 482).
A pesquisa proporcionou a divisão das sentenças em duas categorias semânticas
principais: o contexto da situação de violência e a violência contra as mulheres. A primeira
categoria se refere como os juízes entendem o contexto da violência contra as mulheres,
sendo as constatações divididas em subcategorias: a) reconciliação – em que a reconciliação
da vítima com o réu descaracteriza o crime, afastando a possibilidade de imputação de pena;
b) idealização da família – a mulher tem seu direito de viver uma vida sem violência
minimizado em nome da união familiar; c) ambiguidade quanto à prova material do crime –
apesar de comprovada a materialidade do crime, a palavra do réu é tomada como verdade,
em detrimento da palavra da vítima; e, d) negação da violência conjugal como crime – as
violências cometidas no “calor” do litígio conjugal não caracterizam crime (PORTO;
COSTA, 2010, p. 483-485).
Na segunda categoria, observou-se a forma com que os juízes significam e
caracterizam a violência vivida pelas mulheres: a) justificativa à agressão pelo uso de
álcool/drogas – os magistrados entendem que alguém alcoolizado ou dependente químico
não tem condições de discernimento, logo, há inexistência de dolo e tal ato não deve ser
enquadrado na Lei Maria da Penha; b) inconformismo/não aceitação da separação – a
violência é esperada e justificada devido ao inconformismo do homem pelo fim do
relacionamento amoroso; e, c) proteção da mulher contra privações econômicas – o
magistrado supõe que eventual condenação do réu traria maiores transtornos para a mulher
e família, acreditando estar protegendo a mulher de dificuldades mais graves (PORTO;
COSTA, 2010, p. 485- 486).
O relatório “O Poder Judiciário no Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar
contra as Mulheres”, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria
com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o qual analisa o atendimento
prestado pelo Poder Judiciário às mulheres em situação de violência doméstica e familiar,
verificou que a aplicação da Lei Maria da Penha não é padronizada nas unidades judiciárias
e os magistrado apresenta distintas compreensões sobre os casos de violência doméstica e
familiar (CNJ, 2019, p. 25-27).
A presente pesquisa analisou os tipos de juízes/as e sua forma de atuação, a estrutura
das unidades judiciais, aspectos processuais observados, atenção direcionada às mulheres,
responsabilização dos agressores e a interação do sistema de justiça e a rede especializada.
No tocante aos perfis de juízes/as, houve a divisão em três tipologias: comprometidos/as,
moderados/as e resistentes, conforme imagem abaixo:

Figura 01: Tipologia de juízes/as de Violência Doméstica e Familiar contra Mulheres.

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Fonte: Conselho Nacional de Justiça. Relatório “O Poder Judiciário no Enfrentamento à


Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres”. Brasília, 2019. p. 26.

Os perfis traçados pela pesquisa possuem relação com a motivação que levaram os
magistrados a assumirem varas e juizados responsáveis pelos feitos de violência doméstica
e familiar contra mulher. Os “comprometidos/as” são aqueles que identificam a questão
como relevante, com a qual gostariam de contribuir. Em tal perfil constatou-se parcela de
operadores de direito que se identificam com a matéria e que, inclusive, realizaram cursos
sobre a temática. Por outro lado, os magistrados tidos como “resistentes” configuram juízes
que não possuíam interesse em trabalhar com a matéria ou fizeram por motivos pragmáticos,
tais como o desejo ser transferido para determinada cidade ou reduzir sua carga de trabalho,
por exemplo. Dentre os entrevistados, destaca-se um magistrado que “aplica a Lei Maria da
Penha apenas para casos de relacionamentos conjugais – excluindo outras relações íntimo-
afetivas, domésticas e familiares – e apresenta muitas reservas à concessão de medidas

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protetivas de urgência, exigindo, para tanto, provas “concretas” de violência”. (CNJ, 2019,
p. 28)
O estudo também aborda a falta de estrutura das unidades judiciárias, sendo os espaços
insuficientes para atender as especificidades dos conflitos no âmbito doméstico e familiar.
Há ausência ou inutilização de salas para atendimento às vítimas nas unidades judiciais; falta
de acessibilidade – em que as unidades judiciárias podem ser classificadas como a) com
nenhuma acessibilidade, b) com acessibilidade incompleta e c) com acessibilidade
semiplena; e, precariedade em algumas das estruturas.
No tocante aos aspectos processuais observados, há unidades judiciárias que,
independentemente de solicitação da vítima, realizam a audiência prevista no artigo 16 da
Lei 11.340/06 para todas as ações condicionadas à representação criminal da vítima,
divergindo do disposto em Lei. Não obstante, há audiências que são conduzidas por
servidores, sem a presença do juiz. Há também as divergências entre os operadores do direito
sobre o peso do depoimento da vítima.
Quanto à atenção às mulheres em situação de violência nas unidades judiciais, o sexto
capítulo do relatório detalha que as informações fornecidas às mulheres não são suficientes
e é comum elas afirmarem que ninguém lhes explica sobre a Lei Maria da Penha. Há casos
em que a mulher chega desavisada quanto à finalidade da audiência. O relatório também
dispõe sobre a responsabilização dos agressores. Parte dos atores jurídicos entrevistados
diferenciam os agressores de violência doméstica e familiar de criminosos comuns, pois os
primeiros têm possibilidade de serem recuperados já que não têm experiências criminais.
Segundo uma defensora pública entrevistada, as penas costumam não serem altas e o juiz
costuma sempre dar o mínimo.
Por fim, o último capítulo destina-se ao estudo da interação com o sistema de justiça e
a rede especializada. Os juízes tidos como resistentes acham que o trabalho das
Coordenadorias Estaduais de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher dos Tribunais
de Justiça está suficiente e já é bem extenso, enquanto os juízes enquadrados no perfil
comprometido são amis críticos e acreditam que as coordenadorias estaduais poderiam fazer
mais. Além disso, verificou-se que as unidades judiciais situadas no interior, sobretudo as
não especializadas, tem menos integração com esses órgãos. O relatório apresenta que há
atores jurídicos que não têm contato com a rede de atendimento, tampouco reconhece o
Judiciário como parte desta.
Diante dos estudos de caso apresentados e dos resultados do relatório elaborado pelo
CNJ, resta evidente que a política judiciária de enfrentamento à violência doméstica e
familiar opera em um cenário heterogêneo de condutas dos agentes estatais, sendo que a
resposta do Poder Judiciário ao fenômeno social de desigualdade de gênero depende de
fatores pessoais e institucionais.

Enquanto os magistrados tiverem como referência suas próprias crenças –


construídas numa sociedade patriarcal em que os papéis de homens e
mulheres distinguem-se a partir das diferenças de acesso ao poder -, as
mulheres correm risco de ter seus direitos, agora expressos na lei,
desconsiderados e pensados a partir de representações patriarcais.
(PORTO; COSTA, 2019, p. 480)

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Um dos maiores desafios à efetividade da Lei Maria da Penha está dentro do próprio
Judiciário, havendo necessidade de capacitação dos servidores sobre questões de gênero e
garantir que as vítimas não sejam atendidas por alguém que repita os padrões da sociedade
machista, mas sim acolhidas. Além disso, a complexidade do fenômeno social da violência
contra a mulher requer não apenas um sistema especial de proteção, mas também a
mobilização de instrumentos educativos, que alterem o modo de pensar e agir em relação às
mulheres.

Considerações Finais

O relatório “O Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar


contra as mulheres” – CNJ e IPEA, e as análises que apresenta, se mostram como parte de
um processo histórico da condição da mulher vítima de violência doméstica no que diz
respeito ao poder jurídico, que se constitui desde muitas décadas antes da promulgação da
Lei Maria da Penha (11.340/2006) como produto de uma sociedade patriarcal que, por
conseguinte encontra no Estado, logo, no Poder Judiciário agentes imbuídos na cultura
patriarcal. Dessa forma, os desdobramentos de processos vinculados à Lei Maria da Penha
vão ser espaços propícios à existência constante e nociva de manifestações da cultura
patriarcal, bem como de novas violências à mulher. A cultura patriarcal se coloca então como
agente limitador da plena eficácia da Lei Maria da Penha enquanto mecanismo de proteção
de mulheres e instrumento para sua possível libertação social.

Referências bibliográficas:

BAKER, Milena Gordon. A tutela da mulher no direito penal brasileiro: a violência física
contra o gênero feminino. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
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Violência institucional contra a mulher: o Poder Judiciário, de pretenso protetor a efetivo
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