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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação strictu sensu em Direito

Fernanda Pascoal Valle Bueno de Castilho

A RELAÇÃO ENTRE A ANTINORMATIVIDADE E O PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO


SOCIAL

Belo Horizonte
2023
Fernanda Pascoal Valle Bueno de Castilho

A RELAÇÃO ENTRE A ANTINORMATIVIDADE E O PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO


SOCIAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Direito Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção
do título de Doutora em Direito Penal nas
Sociedades Democráticas Contemporâneas.

Orientador: Prof. Dr. Cláudio Roberto Cintra


Bezerra Brandão.

Área de concentração: Direito Penal.

Belo Horizonte
2023
A RELAÇÃO ENTRE A ANTINORMATIVIDADE E O PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
SOCIAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Direito Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção
do título de Doutora em Direito Penal nas
Sociedades Democráticas Contemporâneas.

Orientador: Prof. Dr. Cláudio Roberto Cintra


Bezerra Brandão.

Área de concentração: Direito Penal.

______________________________________________________________

Prof. Dr. Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão - PUC Minas (Orientador)

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Guilherme Coelho Colen - PUC Minas (Examinador)

Prof. Dr. Henrique Viana Pereira - PUC Minas (Examinador)

_______________________________________________________________
(Examinador)

_______________________________________________________________
(Examinador)

Belo Horizonte
2023
Ao Jayme, meu amor infinito.
AGRADECIMENTOS

O que são 04 anos na vida de uma pessoa?


Nesses últimos 04 anos no Doutorado, passamos por uma epidemia em que
fomos obrigados a nos isolar em nossas casas, o que não nos permitiu a interagir
com o próximo.
Eu, especialmente, não pude ir à PUCMINAS para assistir às aulas do
Doutorado e auxiliar meu orientador, Professor Doutor Cláudio Roberto Cintra
Bezerra Brandão, nas aulas da graduação.
Não pude conviver com meus queridos colegas que fiz ainda no mestrado e
que hoje são meus amigos.
Se houve momentos de dificuldades, também houve momentos de felicidade.
Nestes 04 anos, eu amadureci profissionalmente e pessoalmente. Fiquei mais
próxima dos meus amigos, solidifiquei relações profissionais, tornei-me tia da Maria.
A vida tem disso. Nestes 04 anos comecei ciclos e terminei outros.
Este é mais um que está se fechando, mas já antevejo um outro cicio se
iniciando neste ano de 2023. E tenho muito a agradecer.
Primeiramente, agradeço a Deus que me deu a vida, que me manteve forte e
me fez alcançar este momento.
Agradeço ao Jayme, por estar comigo neste momento tão importante. Por
entender minhas ausências e por me permitir amá-lo intensamente
Agradeço ao meu pai e à minha mãe, Herculano e Vera, que sempre se
preocuparam em incentivar em mim o gosto pelo estudo.
Agradeço à minha irmã amada Amanda, ao meu cunhado Phelipe e à minha
querida Maria.
Agradeço os meus sogros, Castilho e Lúcia; à minha cunhada Rachel e à
minha sobrinha, Marina, e ao Clésio pelas observações constantes
Agradeço ao meu orientador, Professor Doutor Cláudio Roberto Cintra
Bezerra Brandão por me orientar na elaboração da tese, bem como pelos cafés e
almoços em que eu pude aprender muito sobre a vida.
Agradeço ao Professor Doutor Guilherme Coelho Colen que conheço desde a
graduação e que sempre foi carinhoso comigo.
Agradeço à minha irmã de vida, Carlinha, que sempre esteve comigo nos
bons e maus momentos e que se não fosse por ela, não teria sonhado tão longe. Se
não fosse por ela, eu não estaria aqui hoje.
Agradeço à Flavinha, minha outra irmã de vida, e que conheci ainda fazendo
disciplina isolada no mestrado e hoje somos amigas, colegas de escritório e
parceiras de vida.
Agradeço a cada um dos meus amigos que fiz ainda no mestrado e que
levarei pela vida toda em meu coração: Helena, Alexandre, Rômulo, Rafhael, Thais
e Renatinha. Sem vocês esta louca jornada não seria a mesma.
Agradeço do fundo do meu coração o meu colega de escritório, Eduardo
Milhomens, por me receber e me ensinar todos os dias um pouquinho sobre
advocacia e outros assuntos que só ele sabe.
Agradeço à Amanda Batista pela amizade, pelos conselhos e pelas risadas
sem fim.
Agradeço ao meu amigo Lazaro pelo convívio diário.
Por fim, e não menos importante, em um país em que muitos não saber
assinar o próprio nome, agradeço à CAPES pela bolsa e a oportunidade de fazer
este doutorado.
RESUMO

O presente estudo teve como objetivo analisar o princípio da adequação social, cujo
estudo apresentou grande resistência na doutrina e na jurisprudência tendo em vista
que o seu próprio criador, Hans Welzel, titubeou na sua localização na teoria do
delito. A pesquisa teve como propósito inicial analisar a evolução da teoria do bem
jurídico--penal, utilizando-se do método dedutivo para tanto. Apresentou-se o
conceito de adequação social, sua localização na teoria do delito. Serão levadas em
consideração as principais discussões doutrinárias acerca de seu conceito, sua
correlação com outros institutos e princípios do direito penal, apresentado diferenças
e semelhanças, bem como a determinação de limites para sua aplicação. Para
desenvolver esta pesquisa, a metodologia utilizada incluiu o método descritivo-
analítico, a pesquisa bibliográfica sobre doutrinas pertinentes ao tema em livros,
artigos de periódicos, capítulos de livros. Com base nesta discussão doutrinária,
serão apresentadas hipóteses em que foram julgadas pelos tribunais brasileiros e
analisada a correção ou não das referidas decisões à luz do desenvolvimento do
referido princípio. Por ultimo, analisou-se o instituto da antinormatividade, para tanto
foi feita uma breve digressão sobre o seu desenvolvimento com base na teoria das
normas feita por Karl Binding, sua relação com os elementos do crime, com o
princípio da legalidade, com o bem jurídico e, por último, com a adequação social,
utilizando-se da de pesquisa bibliográfica. Por fim, relação com os elementos da
estrutura do delito – tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade – e com a adequação
social, concluindo-se que ambos serão aberturas valorativas para a contenção do
poder punitivo estatal.

Palavras-chave: Direito Penal. Bem jurídico. Adequação Social. Teoria do delito.


Antinormatividade.
ABSTRACT

The present study aimed to analyze the principle of social adequacy, whose study
presented great resistance in doctrine and jurisprudence, considering that its own
creator, Hans Welzel, hesitated in its location in the theory of crime. The initial
purpose of the research was to analyze the evolution of the theory of the legal-
criminal good, using the deductive method for that purpose. The concept of social
adequacy and its location in the theory of crime were presented. The main doctrinal
discussions about its concept will be taken into account, its correlation with other
institutes and principles of criminal law, presenting differences and similarities, as
well as the determination of limits for its application. To develop this research, the
methodology used included the descriptive-analytical method, bibliographical
research on doctrines relevant to the theme in books, journal articles, book chapters.
Based on this doctrinal discussion, hypotheses will be presented in which they were
judged by the Brazilian courts and the correctness or otherwise of the referred
decisions will be analyzed in the light of the development of the referred principle.
Finally, the institute of anti-normativeness was analyzed, for which a brief digression
was made on its development based on the theory of norms made by Karl Binding,
its relationship with the elements of crime, with the principle of legality, with the good
legal and, finally, with the social adequacy, using the bibliographical research.
Finally, the relationship with the elements of the structure of the crime – typicality,
anti-juridicity and culpability – and with social adequacy, concluding that both will be
value openings for the containment of the state's punitive power.

Keywords: Criminal Law. Very legal. Social Suitability. Theory of crime. Anti-
Normativity.
CURRÍCULO

l presente studio mirava ad analizzare il principio di adeguatezza sociale, il cui studio


ha presentato grandi resistenze in dottrina e giurisprudenza, considerando che il suo
stesso creatore, Hans Welzel, esitava nella sua collocazione nella teoria del crimine.
Lo scopo iniziale della ricerca era quello di analizzare l'evoluzione della teoria del
bene giuridico-penale, utilizzando a tal fine il metodo deduttivo. Sono stati presentati
il concetto di adeguatezza sociale e la sua collocazione nella teoria del crimine.
Verranno prese in considerazione le principali discussioni dottrinali circa il suo
concetto, la sua correlazione con altri istituti e principi di diritto penale, presentando
differenze e somiglianze, nonché la determinazione dei limiti per la sua applicazione.
Per sviluppare questa ricerca, la metodologia utilizzata ha incluso il metodo
descrittivo-analitico, ricerca bibliografica su dottrine pertinenti al tema in libri, articoli
di giornale, capitoli di libro. Sulla base di questa discussione dottrinale, verranno
presentate ipotesi in cui esse sono state giudicate dai tribunali brasiliani e verrà
analizzata la correttezza o meno delle decisioni riferite alla luce dello sviluppo del
principio richiamato. Infine è stato analizzato l'istituto dell'antinormatività, per il quale
è stata fatta una breve digressione sul suo sviluppo basato sulla teoria delle norme
fatta da Karl Binding, il suo rapporto con gli elementi del reato, con il principio di
legalità, con il bene giuridico e, infine, con l'adeguatezza sociale, utilizzando la
ricerca bibliografica. Infine, il rapporto con gli elementi della struttura del reato –
tipicità, antigiuridicità e colpevolezza – e con l'adeguatezza sociale, concludendo che
entrambi saranno aperture di valore per il contenimento del potere punitivo dello
Stato.

Paroli chiavi: diritto penale. Molto legale. Adeguatezza sociale. Teoria del crimine.
Anti-normatività.
LISTA DE ABREVIATURA E SÍMBOLOS
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...............................................................................................3

2 A EVOLUÇÃO DA TEORIA DO BEM JURÍDICO.........................................5


2.1 Feuerbach e a lesão a direitos subjetivos.................................................5
2.2 O jusnaturalismo e Birnbaum...................................................................10
2.3 Positivismo jurídico...................................................................................13
2.3.1 Itália............................................................................................................. 14
2.3.1.1 Positivismo antropológico de Cesare Lombroso...................................14
2.3.1.2 Positivismo sociológico de Enrico Ferri..................................................16
2.3.1.3 Positivismo jurídico de Rafaele Garofalo................................................17
2.4 Alemanha e seu positivismo naturalista..................................................19
2.4.1 Positivismo de Franz von Liszt....................................................................21
2.5 O Neokantismo...........................................................................................25
2.5.1 O nacional-socialismo..................................................................................27
2.6 Finalismo - uma visão ontológica.............................................................32
2.7 Pós finalismo - a visão funcionalista.......................................................34
2.7.1 Claus Roxin................................................................................................. 35
2.7.2 Günther Jakobs........................................................................................... 37
2.7.3 Winfried Hassemer......................................................................................38
2.7.4 Knut Amelung.............................................................................................. 41
2.8 Teorias constitucionais.............................................................................42
2.8.1 Bens jurídicos individuais e coletivos...........................................................48
2.8.2 Função e bem jurídico - distinção................................................................49
2.8.3 A relação do bem jurídico com a política criminal........................................53
2.8.4 A crise (?) do bem jurídico..........................................................................59

3 ADEQUACAO SOCIAL...............................................................................65
3.1 Conceito de ação....................................................................................... 75
3.2 A localização da adequação social na teoria do delito...........................78
3.2.1 A adequação social como um problema do tipo..........................................78
3.2.1.1 Hans Joachim Hirsch................................................................................78
3.2.2 Os elementos normativos do tipo................................................................82
3.3 As normas de cultura.................................................................................97
3.3.1 A adequação social como interpretação do tipo penal..............................106
3.4 Teoria social da ação...............................................................................113
3.4.1 Günther Jakobs..........................................................................................116
3.5 A relação entre o delito culposo e a adequação social........................118
3.6 A relação entre risco permitido e a adequação social..........................120
3.7 Antijuridicidade........................................................................................133
3.7.1 A evolução do conceito de antijuridicidade................................................133
3.7.2 Causas de justificação...............................................................................135
3.7.2.1 Estado de Necessidade...........................................................................136
3.7.2.2 Existência de um perigo atual................................................................137
3.8 Legitima defesa........................................................................................140
3.9 Estrito cumprimento do dever legal.......................................................142
3.10 Exercício regular de um direito...............................................................142
3.11 Causas supra legais de exclusão social ou hipóteses de adequação
social?...........................................................................................................4
3.12 Adequação social e culpabilidade............................................................17
3.12.1 Evolução da teoria da culpabilidade............................................................17
3.12.1.1 Culpabilidade psicológica........................................................................17
3.12.1.2 Culpabilidade normativa...........................................................................18
3.12.1.3 Teoria normativa pura da culpabilidade..................................................20
3.13 As teorias funcionalistas da culpabilidade..............................................22
3.13.1 Günther Jakobs........................................................................................... 22
3.13.1 Claus Roxin................................................................................................. 25
3.13.3 Winfried HASSEMER...................................................................................26
3.13.4 Eugenio Raúl Zaffaroni................................................................................30
3.13.5 Giovanni Fiadanca e Enzo Musco...............................................................32
3.14 A consciência da antijuridicidade e a sua relacao com a adequacao
social...........................................................................................................34
3.14.1 O erro de proibição e a adequação social...................................................38
3.15 O princípio da adequação social na doutrina de Carlo Fiore.................52
3.16 Analise de casos........................................................................................57
3.16.1 A adequação social e as lesões decorrentes de atividades........................57
3.16.2 A adequação social e a correção parental...................................................62
3.16.3 A adequação social e os maus tratos de animais........................................65
3.16.4 Adequação social e o uso de drogas...........................................................74
3.17 A relação da adequação social com outros princípios penais..............81
3.18 Relação do Princípio da Lesividade (ou Ofensividade) e a Adequação
Social...........................................................................................................89
3.19 Limites da adequação social.....................................................................91
1 INTRODUÇÃO

Até a Revolução Francesa, o Direito Penal era utilizado como um meio de


opressão das classes dominantes, no caso, a nobreza, em desfavor de uma minoria,
a população em geral, formada em sua maioria por uma massa de camponeses.
O Direito Penal preocupava-se apenas com a manutenção da paz social e
as punições, que até então eram pecuniárias, tornando-as corporais para impedir
que a massa de camponeses expulsas de suas terras e que não conseguiram
ocupação lícita nas indústrias que floresceram com a ascensão da burguesia a partir
do século XVIII.
A classe burguesa se preocupava com o recrudescimento da legislação
penal no combate dos delitos contra a propriedade e que eram praticados por estes
desempregados.
Como estes eram incapazes de pagar as penas pecuniárias que lhe eram
impostas, elas foram gradativamente substituídas por castigos corporais que, ao
longo do tempo, tornaram-se mais cruéis com o objetivo de dissuadi-los da prática
de delitos, tornando-se verdadeiros suplícios que marcavam nos corpos dos
condenados o símbolo da força da Monarquia Absoluta.
Em razão da crueldade destas penais e da influência dos postulados
Iluministas, os filósofos começaram a estudar uma mudança no sistema de punição.
Era necessário que o Direito Penal tivesse penas proporcionais aos delitos
cometidos, bem como a previsão normativa apropriada para a pena de cada
conduta.
Deste modo, iniciou-se uma reestruturação por completo do direito, sendo
necessário reorganizar e racionalizar o seu estudo, priorizando-se o estudo do crime
e de seus princípios, relegando o estudo da pena a um segundo plano.
Portanto, a pesquisa em torno da limitação da intervenção penal no presente
trabalho, inicia-se, no primeiro capítulo, com a análise da teoria do bem jurídico,
através do seu embrião, já que este nome – bem jurídico – ainda não era utilizado.
O primeiro estudioso do tema foi Johann Anselm von Feuerbach que
entendia que não era qualquer conduta que legitimaria a cominação de uma pena,
mas apenas aquela que colocasse efetivamente em perigo ou expusesse a um risco

3
potencial a existência de um bem jurídico, o que permite o uso da coerção física pela
autoridade com o objetivo de, por exemplo, reparar deste bem.
Os mecanismos de limitação do poder punitivo operada por inspiração das
investigações de Feuerbach, no entanto, não foram plenamente suficientes para
conter os desafios que a modernização das formas de vida exigia, naquela época.
A partir das críticas de Johann Michael Franz Birnbaum há uma
reformulação na concepção de que o delito lesiona um bem, que é, a partir de então,
considerado um valor. No entanto, ainda não é realizada uma formulação exata
deste conceito, o que dificulta o seu melhor entendimento.
Com o positivismo jurídico, a teoria do bem jurídico enfrenta outra mudança
no seu estudo, tendo como representantes na Alemanha Franz von Liszt e Karl
Binding, que partem da ideia de que a pena tem finalidade preventiva especial,
objetivando intimidar o infrator não ocasional, neutralizar os incorrigíveis e
ressocializar os adaptáveis e, via de consequência, a proteção de bens jurídicos.
Com a intenção de superar o Positivismo, o Neokantismo surge como crítica
à compreensão positivista de que o conteúdo do direito está previsto formalmente na
lei e que o substrato material deste existia em uma realidade prévia ao Direito entre
o mundo do ser e o do dever-ser.
A manifestação mais conhecida do Neokantismo foi durante o período do
nacional-socialismo na Alemanha em que houve um gradual recrudescimento da
legislação penal e, especificamente em relação à teoria do bem jurídico, houve um
rechaço a sua herança iluminista – a ideia de que seu titular era o indivíduo –
passando-se a entender que a comunidade era mais importante do que o bem
jurídico, dissolvendo-se o seu conceito.
Em decorrência dos acontecimentos trágicos advindos da aplicação dos
postulados neokantistas, a teoria finalista apresenta uma alternativa: o bem jurídico
conserva a proteção à norma mas com substituição pelos valores éticos-sociais.
Para Hans Welzel, deve ser entendido como um bem vital do grupo ou do
indivíduo. Por tal razão cumprirá o Direito Penal uma de suas missões, qual seja, a
de atrelada à proteção do bem jurídico, está a proteção dos valores ético-ssociais.
Igualmente, serão analisadas as concepções funcionalistas dos bem jurídico,
perpassando pela visão de Claus Roxin de que o bem jurídico não necessariamente

4
deve ter uma concretude física, mas deve garantir a proteção, dentre outros, dos
direitos humanos e do desenvolvimento da personalidade.
Além disso, a definição de bem jurídico deve caminhar lado a lado da politica
criminal para que haja uma efetiva limitação do poder punitivo estatal.
Em sentido oposto ao de Claus Roxin, será apresentado o conceito de bem
jurídico desenvolvido por Günther Jakobs, bem como a noção de que sua lesão será
uma agressão contra a estrutura normativa da sociedade.
Finalizando a análise funcionalista do bem jurídico, cita-se a crítica de
Winfried Hassemer à teoria do bem jurídico, na qual referido autor questiona se ela
de fato limita poder punitivo estatal, tendo em vista o inchaço e a expansão dos tipos
penais, muitos deles de perigo abstrato e cujas vítimas são difusas e/ou
determinadas. De outro modo, será apresentada a visão de Knut Amelung sobre o
bem jurídico atrelado à ideia de danosidade social.
A evolução do conceito de bem jurídico se funda ainda nas pesquisas sobre
as teorias constitucionais, em que tornaremos clara a diferenciação entre as teorias
adotadas na Itália e na Alemanha, havendo igualmente a separação entre bens
jurídicos individuais e coletivos. Será exposta a analise dogmática das funções do
bem jurídico, através da análise de obras de autores nacionais e estrangeiros.
Por fim, questionar-se-á se a teoria do bem jurídico, diante da expansão do
Direito Penal, com o inchaço da legislação penal e a flexibilização das balizas
dogmáticas e que, atualmente, tem mais se preocupado em garantir a segurança
dos cidadãos do que limitar efetivamente a intervenção penal, o que denota a
intercorrência de uma crise na sua aplicação.
No segundo capítulo, será analisada a adequação social como um dos
princípios limitadores do poder punitivo estatal. A referida teoria foi desenvolvida por
Hans Welzel em 1939, podendo ser conceituada resumidamente a partir da intuição
de que comportamentos aceitos ou adequados socialmente não podem ser
considerados crimes. É fato que o próprio Hans Welzel se mostrou indeciso em qual
estrutura do delito a adequação social pertenceria, ora no tipo penal, ora como
causa de justificação em por fim, como princípio hermenêutico.
Na realidade, a adequação social se insere em uma perspectiva normativa e
que traduz uma valoração da ação. Assim, com base na construção doutrinária de
Hans Welzel cujas obras O novo sistema jurídico-penal – uma introdução à doutrina

5
finalista da ação e Derecho Penal Aleman – Parte General (que constituem
verdadeiros marcos teóricos deste trabalho) será feita uma breve digressão do
conceito de ação e a sua correlação com os elementos da teoria do delito.
Posteriormente, ainda sob o enfoque doutrinário, em que foram utilizadas as
obras de Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria - A adequação social da conduta
no direito penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal - e de
Renato Jorge de Mello Silveira - Fundamentos da adequação social em direito
penal- será investigada a correlação entre adequação social e o delito e entre esta e
o risco permitido, sendo que este último, para Hans Welzel, é uma manifestação
concreta da adequação social, apresentando, inclusive, a construção de Günther
Jakobs sobre risco permitido por legitimação histórica.
Por não ser menos importante, abordar-se-á a figura do consentimento do
ofendido, bem como a sua natureza jurídica, apresentando a diferença doutrinária
entre consentimento e acordo. Neste ponto do trabalho não há como não mencionar
um tema bastante controverso e que envolve o consentimento seja expresso ou
presumido: o das intervenções médico-cirúrgicas e sua relação com a adequação
social.
Na sequência, serão analisados doutrinária e jurisprudencialmente,
exemplos de lesões corporais decorrentes de atividades esportivas, a correção
parental, maus-tratos de animais, o uso de drogas e a sua correlação com a
adequação social para que seja avaliado se houve aplicação ou não da adequação
social, apresentando os fundamentos que embasam as referidas decisões.
Em continuidade, é necessária a abordagem da conexão entre adequação
social e os outros princípios penais, especialmente o princípio da insignificância e da
ofensividade como manifestação do princípio da intervenção mínima.
Por fim, serão apresentados como base na doutrina de Renato Jorge de
Mello Silveira os limites da adequação social para facilitar e uniformizar a sua
aplicação no caso concreto.
No terceiro e último capítulo, será abordado o instituto da
antinormatividade, iniciando-se a sua pesquisa com o conceito de norma penal à luz
da teoria de Karl Binding e, posteriormente, sob o enfoque de Hans Welzel.
Após esta apresentação, a antinormatividade será estudada sob a
perspectiva da sua relação com elementos que formam a estrutura do delito, com

6
enfoque neste ponto da tipicidade conglobante elaborada por Eugenio Raúl
Zaffaroni.
Neste ponto, a investigação será apresentada na correlação entre a
antinormatividade e a teoria do bem jurídico, em que este é considerado por Cláudio
Brandão como o conteúdo material do injusto, tornando-se indispensável a relação
entre ambos, pois a antinormatividade será o elemento limitador da norma ao se
realizar o juízo de lesividade do bem jurídico.
Em continuidade, apontar-se-á a conexão da antinormatividade e o princípio
da legalidade. Primeiramente, será demonstrada sua evolução. A posteriori, apontar-
se-á a dificuldade que o intérprete tem em fazer um juízo de antinormatividade em
que ele tent a alcançar o sentido material do tipo e, ao mesmo tempo, obedecer ao
comando extraído do tipo formal que, por sua vez, é a materialização do princípio da
legalidade.
Por fim, finaliza-se a presente pesquisa apresentando a correlação entra a
adequação social e antinormatividade, em que aquela será considerada como um
limite da incriminação estatal e que se amoldará ao valor jurídico da vida em
sociedade e que está insuficientemente regulado pelo tipo penal, quando então o
intérprete fará o juízo da antinormatividade, levando-se em conta a tipicidade
material.

7
2 A EVOLUÇÃO DA TEORIA DO BEM JURÍDICO

O direito penal, como sabido, é o ramo do direito mais violento entre todos os
outros, pois somente ele atua na restrição da liberdade do indivíduo. Por tal motivo,
é necessário que as regras que fazem parte de um Estado de Direito, principalmente
aquelas que limitam a liberdade devam proteger o indivíduo não apenas por meio do
Direito Penal, mas também, e principalmente, da atuação arbitrária do próprio Direito
Penal.1
É necessário, portanto, que uma conduta considerada criminosa, ou seja,
aquela que se subsume à tipicidade, à antijuridicidade e à culpabilidade, seja
também ofensiva a determinados interesses precípuos de uma determinada
sociedade em uma determinada época. Tais interesses são conhecidos, atualmente,
como bens jurídicos. Como assevera Ana Elisa Liberatore Silva Bechara:

[...] a existência de diversas conformações sociais condiciona também a


existência de diferentes modelos de Estado, influindo diretamente no
conteúdo das expectativas de comportamento que vão orientar, por sua vez,
o estabelecimento dos instrumentos formais de controle social. 2

Arremata ainda a autora que não se deve concluir que não existem
ordenamentos jurídicos mais corretos ou menos corretos, mas sim ordenamentos
jurídicos que estejam mais conformados com o modelo de política criminal adotado
por aquele Estado naquela época específica.
Desde o século XIX, observa-se no estudo da dogmática jurídico-penal a
tentativa de definição do conceito de bem jurídico que, diga-se de passagem, até o
século XXI, ainda não é inteiramente consensual entre os estudiosos do Direito
Penal.
Percebe-se, entretanto, que as condutas que são incriminadas em uma
determinada sociedade sofrem a influência de diversos fatores, tais como a vertente
ideológica adotada pelo governo ou a concepção moral prevalecente.
A discussão sobre o conceito de bem jurídico não é recente e, ao que tudo
indica, não parece chegar a um consenso em um horizonte próximo no estudo da
dogmática penal.
A partir deste capítulo, será analisada a evolução do conceito de bem jurídico,
1
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 31.
2
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 31.
4
cujo surgimento se deu com as investigações de Paul Johann Anslem Rotter von
Feuerbach ainda no século XIX, a partir do conceito de lesão a direitos subjetivos.
Posteriormente, coube o seu desenvolvimento por Birnbaum como critica a lesão
aos direitos subjetivos.3,

2.1 Paul Johann Anslem Ritter von Feuerbach e a lesão a direitos subjetivos

Até o advento das ideias iluministas que, como já dito, influenciaram todas as
áreas do conhecimento, não havia um conceito de bem jurídico e tampouco este
nome era utilizado.
Neste sentido, Fernanda Pascoal Valle Bueno de Castilho e Guilherme
Coelho Colen, sublinham que:

Desde que o homem se reuniu em sociedade – apesar de não haver o


conceito e a formação conhecidos por nós atualmente-, verifica-se a
presença do Direito Penal nas sociedades primitivas. Neste período,
percebe-se uma ligação quase umbilical entre Direito Penal e religião. Quem
cometesse alguma infração [...] era punido severamente para desagravar a
divindade. Esta fase foi conhecida como a fase da vingança divina. O
sacerdote era o elo de ligação entre o grupo social e a divindade e possuía
a delegação divina para aplicar penas que eram cruéis, degradantes e
desumanas.4

A partir do Iluminismo, os filósofos

[...]começaram a estudar uma mudança no paradigma do sistema de


punição. O sistema criminal não podia apenas se vingar de forma arbitrária
como até então era feito. Era necessário que os delitos e as penas
existissem previamente e estas fossem proporcionais ao fato praticado. 5

Assim, utilizando-se dos fundamentos da teoria do contrato social, observa-se


uma mudança no conceito de delito, desvinculando-o do conceito de pecado para
vinculá-lo à função do Estado de proteção da segurança dos indivíduos.6
Tal assertiva pode ser confirmada na seguinte passagem da obra de Cesare

3
Vide: TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi,
2004, p. 110 e ss.
4
CASTILHO, Fernanda Pascoal Valle Bueno de; COLEN, Guilherme Coelho. O princípio da
legalidade e a sua influência na segunda revolução científica do direito penal: a construção da
tipicidade. DELICTAE, v. 6, n. 10, p. 33, jan./jun. 2021.
5
CASTILHO, Fernanda Pascoal Valle Bueno de; COLEN, Guilherme Coelho. O princípio da
legalidade e a sua influência na segunda revolução científica do direito penal: a construção da
tipicidade. DELICTAE, v. 6, n. 10, p. 31, jan./jun. 2021.
6
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 90.
5
Beccaria, Dos delitos e das penas, que afirma que os homens, a princípio selvagens
e que viviam em hordas, viram-se forçados a se reunir em sociedade, renunciando a
uma porção de sua liberdade na busca de segurança. Assim, “as leis foram as
condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados, sobre a
superfície da terra.”7
No entanto, foi somente com Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, os
primeiros ensaios sobre o embrião do conceito de bem jurídico, qual seja, a ideia de
lesão a um direito subjetivo. Para o autor, a lesão a um direito subjetivo apresentava
uma diferença entre:

a) a lesão de dever para o Estado;


b) a lesão a um direito individual. 8

Esta última ocorreria quando o ofendido não pudesse exercer sua própria
liberdade frente a atuação de uma terceira pessoa.
Juarez Tavares afirma que o raciocínio proposto por Paul Johann Anselm von
Feuerbach parte da premissa que vítima e ofensor vivem em um estado de
igualdade. A prática do delito, de uma certa forma, rompe com este estado de
igualdade impedindo que uma das partes, no caso a vítima, possa exercê-lo
plenamente.9
Partido de tal pressuposto, Paul Johann Anselm von Feuerbach subordina o
conceito de delito a um princípio material de preservação da liberdade individual, o
que permitiu que o delito fosse visto como uma lesão própria aos bens materiais e
não simplesmente como uma violação de um dever.10
Assim, não é qualquer conduta que legitimaria a cominação de pena pelo
Estado, mas tão somente aquelas que colocariam ou teria potencial de pôr em risco
existência do Estado, ou seja, aquelas condutas que seriam danosas socialmente.
Neste mesmo sentido, afirma Juarez Tavares:

7
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin
Claret, 2015. v. 48.
8
TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004,
p. 18.
9
TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004,
p. 18.
10
TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004,
p. 18.
6
Este conceito de delito constituía, nesse sentido, uma forma de delimitação
da incriminação ao arbítrio estatal na configuração dos tipos penais, porque
representava - no campo jurídico - a preocupação de retratar o direito
subjetivo como símbolo de demarcação do dano social que poderia ocorrer
a conduta criminal.11 (tradução nossa).

O autor prossegue dizendo que “O Estado não poderia, assim, incriminar


qualquer conduta, senão aquelas que implicassem uma valoração do direito
subjetivo e, consequentemente, um dano social.”12 (tradução nossa).13
Em sua obra, Paul Johann Anselm von Feuerbach claramente se filia à teoria
do contrato social, afirmando que a sociedade civil é formada e organizada pela
união de vontade e da energia de todos os cidadãos, tendo como escopo principal a
criação de uma condição jurídica, conforme a obediência às leis e ao direito14,
conferindo ao Estado a criação de institutos coercitivos que impeçam os seus
cidadãos de praticar lesões jurídicas.
Deste modo, Feuerbach afirma que o Estado pode se utilizar de coerção física
para evitar que elas ocorram de forma prévia ou, caso ocorram, para obrigar o seu
autor de repará-la.
No entanto, ele próprio demonstra que nem sempre a coação física estatal é
suficiente para impedir que lesões jurídicas ocorram ou para reparar o status quo
ante, sendo necessário que, atrelada à ela, deva coexistir uma coação psicológica
com objetivo intimidatório. Esta coação psicológica se materializa através da
imposição de uma pena prevista por uma lei, com o objetivo, como já dito,
intimidatório como prevenção de ocorrência de lesões jurídicas.

11
“Este concepto de delito constituía, em esse sentido, uma forma de delimitación de la
incriminación al arbtrio estatal en la configuración de los tipos penales, porque representaba – en el
campo jurídico – la preocupación de retratar el derecho subjetivo como símbolo de demarcación del
dano social que pudiera recorrer la conducta criminal.” TAVARES, Juarez. Bien juridico y función
en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004, p. 18.
12
“El Estado no podría, así, incriminar, cualquier conducta, sino sólo aquéllas que implicaran uma
violación de derecho subjetivo y, consecuentemente, um dano social.” TAVARES, Juarez. Bien
juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004, p. 18.
13
Juarez Tavares, nos dá como exemplo o crime de alta traição ao Estado só poderia ocorrer, se
efetivamente houvesse um ato concreto de hostilidade que violasse a estabilidade do Estado em
um sentido de dano social; logo, não poderiam ser considerados atos contrários à segurança do
Estado a prática de simples atos revolucionários ou subversivos, a não ser que eles causassem um
efetivo dano social. TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires:
Hammurabi, 2004., p. 18.
14
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho penal. Tradução de Eugenio
Raúl Zaffaroni e Irma Hagemaier. Buenos Aires: Hammurabi, 1989, p. 58.
7
O delito, nos dizeres de Hernan Hormazabal Malaree 15, se seculariza. Por sua
vez, a pena passa de uma expiação do pecado a uma forma de retribuição,16 sendo
necessária para que o dano seja reparado.
Paul Johann Anselm von Feuerbach vincula seu raciocínio à teoria do fim do
estado de Kant. Com isso, o autor readapta um dos princípios kantianos de que o
exercício da liberdade de um ser racional não pode ser contrário à liberdade de
nenhum outro ser racional.17
Tomando como base este princípio, Paul Johann Anselm von Feuerbach
diferencia a potestade penal e a potestade policial do Estado. Aquela pessoa que se
excede no exercício da liberdade jurídica lesiona um direito e, ao agir desta forma,
atua contra os fins do Estado, fato que transforma esta conduta em um delito,
mesmo quando o provável direito do Estado não é afetado.18
Ao contrário, quando alguém põe em perigo a ordem jurídica, a segurança
garantida pelo Estado em decorrência do contrato social ou, tratando-se de ações
que põem em perigo o fim do Estado de forma mediata, este realizará uma infração
de polícia, sendo merecedor de uma pena de caráter policial.
Como bem assevera Hernan Hormazabal Malaree19, houve uma limitação do
poder punitivo estatal com uma considerável diminuição dos tipos penais, bem como
a despenalização de determinadas condutas ou do abrandamento de suas penas, 20
principalmente em relação às condutas contra o sentimento religioso e contra a
moral.
O que se observa é que muitos dos delitos foram incluídos no campo das
infrações policiais. Em seu Tratado de Direito Penal, Paul Johann Anselm von
15
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 14..
16
Günther Jakobs, traz como exemplos a mudança do crime de perjúrio. Até a edição do Código
Penal da Baviera em 1813, que foi elaborado por Feuerbach, refeferido delito era um delito religioso
e passa a ser considerado como fraude, enquanto delito contra os direitos de uma pessoa; a
blasfêmia não foi considerada mais como um tipo penal e, por fim, a perturbação da paz religiosa e
dos cultos religiosos dirigiam-se contra a autoridade ou contra a paz pública dos Estados. JAKOBS,
Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 2021, p.
27-28.
17
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 14.
18
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 14.
19
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 17.
20
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 17.
8
Feuerbach21 de forma bem sucinta, classifica quais seriam os delitos policiais, no
entanto, apresenta poucas ou quase nenhuma explicação sobre o que eles seriam,
sendo eles compostos pelas condutas de pela usura, jogos de azar e apostas,
crimes contra os costumes, ebriedade e mendicância; satisfação do instinto sexual,
tais como a prostituição; concubinato; incesto, sodomia; crimes contra a carne
(lenocínio).
Günther Jakobs explica que muitos destes delitos, tais como a sodomia,
foram incluídos no rol dos delitos de polícia e, apesar de não serem classificados
como direitos individuais, ao mesmo tempo, não podem ser afastados da proteção
estatal, pois a sua identidade é determinada por meio de certas instituições, tais
como o matrimônio.22
Jakobs ainda elucida que este modelo dicotômico estabelecido por Paul
Johann Anselm von Feuerbach foi de grande auxílio para entender e interpretar os
delitos contra as pessoas que, na sua essência, lesionavam ou ameaçavam de
lesão um direito, o que não é tão claro fora dos crimes contra a pessoa.
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara 23 concorda com este argumento e
acrescenta que nas infrações de polícia, que violam o dever de obediência, permite-
se a inclusão de ações imorais ou apenas formalmente antijurídicas, sem que haja
uma lesão efetiva e concreta aos direitos subjetivos individuais, em um evidente
continuísmo da intervenção penal sem medidas e que se pretendia limitar.
A despeito de tal incongruência na sua construção dogmática, vislumbra-se a
importância da teoria de Paul Johann Anselm von Feuerbach, pois a seleção de
direitos subjetivos como conteúdos de condutas que eram consideradas criminosas
teve grande importância teleológica, servindo de barreira para a arbitrariedade
estatal, bem como concretamente protegendo uma esfera específica da liberdade
individual.24

21
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de derecho penal. Tradução de Eugenio
Raúl Zaffaroni e Irma Hagemaier. Buenos Aires: Hammurabi, 1989, p. 279 e ss.
22
JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 2021, p.
31.
23
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 93.
24
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 15.
9
2.2 O jusnaturalismo de Johann Michael Franz Birnbaum

Com a Revolução Industrial e o surgimento das inovações tecnológicas


oriundas deste período, tais como o surgimento da máquina a vapor, o
desenvolvimento dos meios de transporte, dentre outras, houve uma drástica
mudança na formação das cidades, havendo, inclusive, uma explosão demográfica
nos novos centros urbanos.
A economia, principalmente a da Inglaterra, era baseada em concepções
liberais, tendo como fundamento a obra de Adam Smith, a Riqueza das Nações, que
tinha postulava a ideia básica de que “[...] os interesses privados em circunstâncias
de economia perfeita, sem intervenção estatal, se desenvolveriam de forma tal que
conseguiriam o melhor para toda a sociedade”.25
Grosso modo, cada indivíduo teria a liberdade de agir perseguindo seus
próprios interesses em concorrência com os demais, sendo que a atuação estatal se
limitaria a manter a segurança, a justiça e certos serviços públicos que o Estado
entendesse necessários para manter para o bem da coletividade. 26
Observa-se que esse modelo econômico, por óbvio, não beneficiou a grande
parcela da população. Apenas os possuidores do capital se beneficiaram, sendo que
a classe trabalhadora foi a mais afetada e se tornou alvo das grandes injustiças
sociais. Aconteciam, nesta época, jornadas de trabalhos longas e exaustivas e em
condições subumanas, além da utilização de trabalho infantil, apenas para
exemplificar.
Diante deste contexto, urge a atuação estatal em uma tentativa de se
minimizar tais abusos e isso não foi diferente na seara do direito penal.
Como bem assevera Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, com estes novos
desafios surgidos após a Revolução Industrial e o novo contexto social, político e
econômico que conformou a sociedade daquela época, a ideia kantiana de exercício
da liberdade – um ser racional não pode ser contrário à liberdade de nenhum outro
ser racional –, exigiu uma maior intervenção penal, não justificando, por
consequência, a manutenção da teoria de Paul Johann Anselm von Feuerbach de

25
ANITUA, Gabriel Inácio. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2019, p. 201.
26
ANITUA, Gabriel Inácio. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2019, p. 201.
10
lesão a direitos subjetivos. 27
Neste contexto, Johann Michael Franz Birnbaum publica em 1834 uma obra
que pretendia restringir o jus puniendi estatal e que se concentra na ideia de que
uma conduta delitiva não lesiona direitos subjetivos. mas sim bens, criticando
abertamente a teoria elaborada por Paul Johann Anselm von Feuerbach.
Estes bens, segundo Johann Michael Franz Birnbaum, não são criados pelo
direito, eles preexistem a ele e são dados aos homens pela natureza, ou são o
resultado da sua revolução social e da sociedade burguesa, sendo necessário
distinguir os delitos entre delitos naturais e sociais, bem como delitos contra a
coletividade ou contra o indivíduo.28
A ideia de lesão de direito desenvolvida por Paul Johann Anselm von
Feuerbach, no entendimento de Gonzalo Fernandéz,29 seria por demais abstrata e
geral para conter o poder punitivo estatal que se intensificou após a Revolução
Industrial, por tal razão foi que Johann Michael Franz Birnbaum desenvolve a
concepção de que o delito lesiona um bem, pois o bem é objeto do direito e se este
é subtraído ou diminuído, o direito permanecerá incólume, enquanto o bem é que
será objeto da lesão.30
Assim, para Johann Michael Franz Birnabaum, os bens devem ser
assegurados de forma igualitária pelo Estado, cuja atuação só poderá ocorrer
através da cominação de uma pena por meio de uma ameaça legal a quem cometer
o delito.
Hernan Hormazabal Malaree31 e Ana Elisa Liberatore Silva Bechara 32 nos
trazem a notícia de que, em razão de tal formulação de Johann Michael Franz
Birnbaum, sedimentou-se o caminho para a incriminação de delitos contra o
sentimento religioso, bem como condutas imorais.
Ambos os autores trazem a informação de que referido conceito de bem não

27
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 94.
28
Neste sentido: MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de
derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990,
p. 29; FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de
fundamentación dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 16
29
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 16.
30
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 16.
31
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 26
32
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 95.
11
foi imune a críticas. De um lado apresentam a crítica de que a teoria do bem
desenvolvida por Johann Michael Franz Birnbaum nada mais é do que uma forma de
correção da teoria da lesão de um direito e que deixa incólume o princípio liberal
essencial da filosofia iluminista.33
Do outro lado, há Knut Amelung34 e Santiago Mir Puig35 que compreendem
que o conceito de bem jurídico dista da postulada concepção de limitador do poder
punitivo estatal, pois para se alcançar o seu conceito, é necessário realizar um juízo
de valor, o que se mostra como uma incongruência, dado ao contexto da teoria do
contrato social e das premissas iluministas que viam a conduta socialmente danosa
de forma objetiva.
Esta valoração que deverá ser feita para se determinar que um dado objeto
é merecedor da proteção e, por consequência, erigido como bem, depende de uma
decisão política, o que comprova este afastamento da ideia de limitação do poder
punitivo estatal.36,37
O que se depreende das críticas aqui trazidas é que a teoria do bem
formulada por Johann Michael Franz Birnbaum carece de uma definição do próprio
conceito de bem, o que nos dizeres de Hernan Hormazabal Malaree, 38 dificulta sua
leitura e compreensão.
No entanto, o autor assevera que esta análise da teoria sobre o bem
formulada por Johann Michael Franz Birnbaum não pode ser efetivada de forma
isolada, isto é, de forma descolada do contexto ideológico político em que foi

33
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 28;
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 98.
34
AMELUNG, Knut. El concepto ‘bien jurídico’ en la teoría de la protección penal de bienes jurídicos.
In: HEFENDEHL, Roland. La teoría del bien jurídico. Tradução de María Martín Lorenzo. Madrid:
Marcial Pons, 2007, p. 233-234
35
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. Buenos
Aires: BdeF, 2003, p. 26
36
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 16.
37
Neste sentido “[...] os bens são aqueles objetos a respeito dos quais um sujeito estima que tem um
valor. Logo, determinar que um objeto é merecedor de proteção penal e, por conseguinte sua
elevação à categoria de ‘bem’depende do sujeito valorante e importa uma decisão de caráter
político.” AMELUNG apud MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y
democrático de derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica
ConoSur, 1990, p. 31, tradução nossa. "[...] los bienes son objetos respecto de los cuales un sujeto
estima que tiene un valor". Luego, determinar que un objeto es merecedor de protección penal y,
por consiguiente su elevación a la categoría de "bien" depende del sujeto valorante e importa una
decisión de carácter político”.
38
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 30.
12
gestada, qual seja a da Restauração e do Estado soberano como expressão do
poder monárquico.39
Neste cenário, o conceito de “bem” nada mais é o de um objeto valorado,
cujo sujeito valorante é o próprio Estado, exercendo, na prática, uma função
restaurativa e legitimadora da punição das condutas que possam perturbar as novas
condições sociais que surgiram após a Revolução Industrial, como por exemplo, a
ascensão e fortalecimento da burguesia40.
Não obstante as críticas aqui apresentadas, observa-se que a teoria do bem
formulada por Johann Michael Franz Birnbaum é de grande importância, pois se
relaciona com uma pessoa, importando em uma objetivação do que antes estava
situado na esfera do direito subjetivo. Os objetos (bens), segundo Ana Elisa
Liberatore Silva Bechara, passam a ter uma concretude, o que permitiu a
diferenciação entre lesão e perigo; consumação e tentativa; bens individuais e
coletivos.41

2.3 Positivismo jurídico

Com o progresso da ciência e das novas tecnologias, – criação de grandes


máquinas, desenvolvimento dos meios de transporte, avanço na medicina com o
surgimento de vacinas – a sociedade daquela época presenciou um progresso sem
precedentes, propiciando o surgimento do positivismo, sob a influência de Auguste
Comte.
No entanto, este modelo liberal começou a se esgotar, sofrendo críticas
principalmente do marxismo, que atacava a classe burguesa que se fortaleceu com
o Iluminismo, em face da necessidade de um novo modelo de estatal que tinha
como objetivo uma maior intervenção, além do combate à criminalidade.
Esta crítica ao individualismo em excesso, oriundo do movimento Reformador,
que propunha uma concepção de Direito Penal mais voltada para a sociedade,
proporcionou uma abordagem das causas sociais do cometimento do crime.
De acordo com Ricardo Brito de Freitas

39
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 30.
40
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 30.
41
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 98.
13
[...] já não bastava ao Estado reprimir o ilícito isoladamente considerado,
mas sim atacar pela raiz a criminalidade entendida como fenômeno social,
buscando compreender a realidade na qual o delinquente encontrava-se
inserido e os fatores de índole variada que o levaram ao crime de modo a
eliminá-los.42

O positivismo nasceu como um contraponto ao jusnaturalismo, cujas


premissas se baseavam em um pensamento metafísico e que, aos olhos dos
positivistas, carecia de qualquer método científico, bem como era insuficiente para
explicar os fatos sociais que surgiram com o advento da Revolução Industrial.
O método positivista tem como premissa a verificação empírica das ciências
naturais e isso se refletiu também no campo das ciências sociais em que o método
passa do dedutivo para o indutivo.
Os positivistas acreditavam que não bastava, portanto, observar os dados da
realidade e analisá-los de forma objetiva. Seria necessário que houvesse uma
relação entre estes dados, a fim de explicar e explicitar as leis que regem a
sociedade e os fatos que dela se originam.43
No campo do direito penal, os penalistas foram convencidos pelas ideias
advindas do positivismo. Na Itália, os principais representantes do Positivismo foram
Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafaele Garofalo, que formaram a Escola
Positivista Criminológica.
Na Alemanha, os representantes do Positivismo que serão estudados nesse
trabalho são Karl Binding e Franz von Liszt.

2.3.1 O positivismo na Itália

2.3.1.1 Positivismo antropológico de Cesare Lombroso

O Positivismo Criminológico surge na Itália com Cesare Lombroso com a


publicação de sua obra O homem delinquente (L’Uomo delinquente) em 1876.44

42
FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 49.
43
FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 49.
44
LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo:
Ícone, 2013. (Coleção fundamentos de direito).
14
Apesar de ser médico e não jurista, propôs o estudo do problema penal sob uma
ótica cientifica.
Como bem assevera Ricardo de Brito Albuquerque Pontes Freitas,45 o estudo
do direito penal, nesta fase, não se preocupava em estudar o conceito de crime e/ou
seus elementos. O objeto da ciência penal passou a ser a análise do homem de
forma individualizada e sua relação com a sociedade que o rodeia.
O crime, a partir deste período, é considerado um fato social e natural, sendo
praticado por um indivíduo que vive em sociedade e cujos motivos se assentam em
03 pilares:

a) antropológico;
b) físico; e
c) social.

Assim, para a análise do crime e sua compreensão, é imprescindível e


inseparável a abordagem do delinquente da realidade social em que vive.
Cesare Lombroso, pretendendo estudar o crime e as suas causas, encontra
no atavismo a resposta a seus questionamentos.
Através do método empírico-individualista, Cesare Lombroso classifica em
diversos tipos, dentre eles o mais conhecido deles, o criminoso nato.
Edmund Mezger afirma que “[...] o delinquente verdadeiro, nato [homo
delinquens, delinquente nato], é uma peculiar espécie humana cognoscível em
virtude de determinadas características corporais e anímicas, uma peculiar species
generis humani”.46 (tradução nossa).
Cesare Lombroso ensina que existem naturezas criminais natas e que podem
ser reconhecidas de acordo com características corporais e anímicas precisas e
reconhecidas externamente com facilidade. Para ele, a natureza cria o delinquente,
mas só a sociedade lhe subministra as condições necessárias para cometer
delitos.47
45
FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 49.
46
“[...] el delincuente verdadeiro, nato [homo delinquens, delinquente nato], es uma peculiar especie
humana cognoscible em virtud de determinadas características corporales y anímicas, una peculiar
species generis humani” MEZGER, Edmund. Criminologia. Tradução de José Arturo Rodríguez.
Santiago, Chile: Ediciones Olejnik, 2018, p. 40.
47
MEZGER, Edmund. Criminologia. Tradução de José Arturo Rodríguez. Santiago, Chile: Ediciones
Olejnik, 2018, p. 40.
15
Ao longo do tempo, a concepção inicial de Cesare Lombroso sobre o
delinquente nato sofreu uma série de críticas mostrando a sua fragilidade. Em razão
disso, ele passou a levar em conta outros fatores com a influência meteorológica e
climática, da cultura, da densidade populacional, alimentação e álcool, econômica,
profissão, dentre outras.48
Edmund Mezger49 revela que o próprio Cesare Lombroso admitia que existia
uma diferença entre o criminoso nato do criminoso ocasional. Este seria um
pseudocriminoso a quem não se poderia chamar de delinquente. Ele nada tem a ver
com o delinquente nato e, por consequência, o seu tratamento jurídico-penal deveria
ser totalmente diverso do tratamento conferido ao criminoso nato.
Como pode ser visto, a teoria do delinquente nato tem grande importância até
os nossos dias, pois foi a primeira que de modo claro abordou o estudo do delito de
forma cientifico-causal e o tratamento do delinquente com base nesta consideração.

2.3.1.2 Positivismo sociológico de Enrico Ferri

Enrico Ferri foi o sucessor de Cesare Lombroso e a ele pode ser imputado o
nascimento da Sociologia Criminal. Reconhece a contribuição de Cesare Lombroso
para o estudo e entendimento da criminalidade, no entanto, aponta que a forma da
abordagem realizada à época por ele é insuficiente para compreender um fenômeno
tão complexo como a criminalidade e que recebe o influxo de diversos fatores, tais
como o antropológico, físico e o social.
Da mesma forma que Cesare Lombroso, Enrico Ferri classifica os criminosos
em:

a) nato ou instintivo ou por tendência cognitiva;


b) louco;
c) habitual;
d) ocasional;
e) passional50.
48
MEZGER, Edmund. Criminologia. Tradução de José Arturo Rodríguez. Santiago, Chile: Ediciones
Olejnik, 2018, p. 45.
49
MEZGER, Edmund. Criminologia. Tradução de José Arturo Rodríguez. Santiago, Chile: Ediciones
Olejnik, 2018, p. 43.
50
Sérgio Salomão Shecaira traz a classificação de delinquente feita por Ferri: “Nato era o criminoso
conforme a classificação original de Lombroso. Caracterizava-se por impulsividade ínsita que fazia
com que o agente passasse à acao por motivos absolutamente desproporcionados à gravidade do
16
Ricardo de Brito Albuquerque Pontes Freitas51 revela que Enrico Ferri foi um
crítico da Escola Clássica e que estudava o delito de forma abstrata e sem levar em
conta o criminoso como objeto da ciência penal.
Para Enrico Ferri, o criminoso não é um homem normal, apresentando uma
anormalidade orgânica e psíquica. Além disso, a punição deve ter como fundamento
a defesa social, que se promove com mais eficácia na prevenção do que na
repressão do delito.52 Tece críticas ao livre arbítrio como pressuposto da
reponsabilidade penal, entendendo o livre-arbítrio como “pura ilusão subjetiva53,
devendo ser substituída por uma responsabilidade social.
Como visto, Enrico Ferri agrega aos estudos de Cesare Lombroso fatores
antropológicos, físicos e sociais, entendendo a criminalidade como um fenômeno
social e que poderia ser evitado, caso o operador do direito pudesse classificá-lo e
quantifica-lo previamente.

2.3.1.3 Positivismo jurídico de Rafaele Garofalo

Rafaele Garofalo foi o terceiro nome do Positivismo italiano e, ao contrário de


Cesare Lombroso, que se baseou na antropologia, e de Enrico Ferri, que levou em
conta os fatores sociais, iniciou a fase jurídica do positivismo, tendo, inclusive,
elaborado um conceito de delito.
Introduziu o conceito de temibilidade que, segundo Sérgio Salomão
Schecaira, é “[...] a perversidade constante e ativa do delinquente e a quantidade do

delito. Eram precoces e incorrigíveis, com grande tendência à recidiva. O louco é levado ao crime
não somente pela enfermidade mental, mas também pela atrofia do senso moral, que é sempre a
condição decisiva na gênese da delinquência. O delinquente habitual preenche um perfil urbano. É
a descrição daquele que nascido e crescido num ambiente de miséria moral e material começa, de
rapaz, com leves faltas [mendicância, furtos pequenos, etc] até uma escalada obstinada no crime.
Pessoa de grave periculosidade e fraca readaptabilidade, preenche um perfil que se amolda, em
grande parte, aos perfis dos criminosos mais perigosos. O delinquente ocasional está condicionado
por uma forte influencia de circunstancias ambientais: injusta provocação, necessidades familiares
ou pessoais, facilidade de execução, comoção pública etc; sem tais circunstancias não haveria
atividade delituosa que impelisse o agente ao crime. [...]. Por derradeiro, encontramos o criminoso
passional, categoria que inclui os criminosos que praticam crimes impelidos por paixões pessoais,
como também políticas e sociais.” SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. rev. e atual.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 97.
51
FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 99
52
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 96
53
FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 101.
17
mal previsto que se deve temer por parte deste delinquente”, 54 o que proporcionou
posteriormente o desenvolvimento do instituo da medida de segurança.
Em seu conceito de delito, a que Rafaele Garofalo denomina de delito natural,
seria uma série de crimes que em qualquer sociedade e em todos os tempos e
lugares serão puníveis, tais como o parricídio, assassínio com o intuito de roubo. 55 O
critério para a determinação do delito natural será para Rafaele Garofalo o senso
moral, que será congênito e hereditário.
Como assevera Ricardo de Brito Albuquerque Pontes Freitas,56 há uma
grande dificuldade em se se determinar quais serão estes sentimentos que fazem
parte de um senso moral comum.
Rafaele Garofalo entende que o senso moral seria relativo, mas alguns deles
seriam essenciais em boa parte da espécie humana de forma constante, quais
sejam: a probidade e a piedade.
O conceito de delito natural elaborado por Rafaele Garofalo é

A violação daquela parte do sentido moral que consiste nos sentimentos


altruístas fundamentais de piedade e probidade, segundo o padrão médio
em que se encontram as raças humanas superiores, cuja medida é
necessária para a adaptação do indivíduo à sociedade.57

Apesar de tentar apresentar um conceito de delito, Rafaele Garofalo não se


afastou dos postulados positivistas, classificando os tipos de criminosos, tendo como
base a classificação realizada por Cesare Lombroso.
Como visto acima, os positivistas italianos não se preocuparam em discutir o
conceito de delito ou, mais especificamente, o tema deste capitulo, qual seja, o bem
jurídico, concentrando-se seus esforços na compreensão da criminalidade e tendo
como ponto central a figura do indivíduo. Tal fato não diminui a importância da
Escola Positiva italiana no cenário da evolução do Direito Penal.
Ao contrário. O Positivismo Criminológico foi primordial no estudo do crime
como fenômeno social, bem como a realidade na qual o delinquente se inseria, no

54
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 97
55
GAROFALO apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. rev. e atual. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 97.
56
FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 111.
57
GAROFALO apud SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. rev. e atual. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 98.
18
intuito de eliminar ou diminuir a sua ocorrência.
Apenas com o Positivismo Naturalista, cujas bases foram construídas na
Alemanha com Karl Binding e Franz von Liszt, será elaborado um novo conceito de
bem jurídico.

2.4 Alemanha e seu positivismo naturalista

Gabriel Inácio Anitua informa que um dos primeiros autores que tentaram
incorporar as ideias positivistas ao direito penal foi Franz von Liszt. Referido autor
dividiu o direito penal em três partes: uma dogmática; a científica ou criminológica e
a da política criminal.
À dogmática seria atribuída uma das funções mais importantes do direito
penal que é a de impor limites à função político-criminal, ou seja, ela exerceria o
papel de guardiã do cidadão que delinquiu, sendo-lhe garantido o direito de ser
punido mediante a observância dos pressupostos e limites legais.
O positivismo jurídico tem como fundamento uma teoria objetiva de
interpretação, tendo como essência que o direito tivesse racionalidade e certeza e
livre de toda consideração filosófica ou metajuridica, tendo como como expoente
Karl Binding e justificava o Estado na existência da própria norma e esta seria o
pressuposto necessário das leis penais.58
A essência do direito penal para Karl Binding está conformada por normas
que são deduzíveis à lei penal e anteriores a elas consistentes em um imperativo em
ordem a proibir a realização ou não de determinada conduta e o delinquente não
infringe a lei penal, ao contrário, ele a realiza.59
Assim, conforme Hernan Hormazabal Malaree, que com sua teoria da norma
aliada ao pensamento político e da teoria do estado da sua época, Binding entende
que o delito, como já dito, não é uma violação da lei penal, mas sim da norma, cuja
função precípua é a de determinar ao cidadão o que deve fazer ou não fazer.60
Esse dever jurídico não pode ser apartado de um direito subjetivo, cujo titular

58
ANITUA, Gabriel Inácio. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2019; p.367. FERNANDÉZ,
Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación dogmática. Buenos
Aires: BdeF, 2004, p. 21.
59
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 38-39.
60
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 39.
19
é o Estado; logo, o delito seria uma lesão a um direito subjetivo do Estado.
No entanto, para diferenciar as infrações administrativas dos delitos, Karl
Binding formula o conceito de bem jurídico, que aparece pela primeira vez, como

[...] tudo aquilo em si mesmo que não é um direito, mas que aos olhos do
legislador é de valor como condição da comunidade jurídica, em cuja
manutenção incólume e livre de perturbações tem interesse desde o seu
ponto de vista e que por ele faz esforços através de suas normas para
assegura-lo ante a lesões em perigo não desejadas.61

O conceito de bem jurídico será tudo aquilo que o legislador entende ser
valioso para o desenvolvimento da vida em comunidade, na qual o Estado esteja
interessado.62
Ou, nos dizeres de Ana Elisa Liberatore Silva Bechara que “nem todo bem é
suscetível de proteção penal, mas apenas aqueles dotados de relevância jurídica,
havendo congruência entre a norma e o bem jurídico por ela revelado.”63
Para Karl Binding, o delito será nada mais do que uma infração de
obediência; logo, o injusto será uma violação deste dever jurídico. Toda norma
encerra em si um bem jurídico e a sua desobediência é uma lesão ao bem jurídico
que nela está contido. A norma, portanto, seria uma capa de proteção, cuja violação
se dá através de um fato punível.64
No entanto, Karl Binding entende que da mesma maneira que a norma, os
direitos subjetivos não podem ser objeto de uma agressão delituosa, o direito
subjetivo quando lesionado permanece inalterado, o que será lesionado, portanto,
serão os bens jurídicos.
Karl Binding relembra que é desimportante o real interesse social em sua
proteção em si, a mera escolha do legislador, que pode ser, inclusive, aleatória e
arbitrária.65

61
BINDING apud MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de
derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990,
p. 41.
62
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 19.
63
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
100.
64
JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 2021, p.
34-35
65
BINDING apud BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier
Latin, 2014, p. 100
20
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara66 traz ainda a crítica de que a formulação
da teoria dos bens jurídicos de Karl Binding possui apenas uma função sistemática
e, como mero agrupamento de delitos, exerce uma função dogmática ou
interpretativa permitindo esta operação dentro dos próprios limites vinculantes
estabelecidos pelo próprio Estado.
Por sua vez, Gonzalo Fernández entende que a maneira como Karl Binding
construiu sua teoria caracteriza um modelo autoritário de pensamento.67 68
A determinação de quais são as coisas, as pessoas, os estados que serão
escolhidos como bens jurídicos a serem protegidos nada mais são do que uma
consequência de um juízo de valor do legislador sem qualquer oura limitação,
caracterizando-se como uma decisão política estatal em última instância.
Não se pode olvidar que a teoria do bem jurídico como fora concebida por
Karl Binding foi de grande valia, pois de forma coerente e racional logrou êxito em
assegurar (ou tentar) a proteção da vida em comum contra condutas consideradas
danosas socialmente.69
Ao mesmo tempo, no entanto, observa-se que a proposta normativista de Karl
Binding demonstra o caráter extremamente arbitrário e autoritário do Estado, pois
ele é “[...] o núcleo em torno do qual tudo converge”. 70
E prossegue o autor afirmando que nesta proposta o Estado exerce o
monopólio da criação da norma, perpassado pela seleção de bens jurídicos, bem
como da execução penal. O cidadão sempre está à mercê de uma decisão política
do Estado e a ele cabe apenas obedecer sob pena de sofrer algum tipo de
responsabilização.71

66
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
100.
67
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 16.
68
Comungam deste entendimento: MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y
democrático de derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica
ConoSur, 1990; p. 47-48; BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo:
Quartier Latin, 2014., p. 100.
69
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 56.
70
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 46
71
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 46.
21
2.4.1 Positivismo de Franz von Liszt

Após Karl Binding, outro nome que se destaca no cenário do positivismo


jurídico foi Franz von Liszt que distingue claramente a ciência normativa cujo o
método é o dogmático e as demais ciências penais, das quais se destaca a política
criminal. Segundo Gabriel Ignacio Anitua,72 “nesse programa, há uma concepção
do direito penal como instrumento de luta contra o delito, uma luta dirigida às
‘causas empíricas do delito que se investigam mediante a antropologia e a
sociologia criminais’”.
Para o autor, política criminal e direito penal são ciências independentes,
sendo que o direito penal tem como “[...]função garantidora, ao estabelecer os
pressupostos cuja concorrência autorizam o Estado para castigá-lo sobre
fundamentos estritamente normativos que a política criminal lhe são absolutamente
infranqueáveis”73
O bem jurídico, portanto, se situará no limite entre política criminal e direito
penal, ou melhor, o bem jurídico está além do direito penal no ponto de encontro
entre o direito penal e outras ciências penais tendo como ligação a política criminal.74
Como representante do pensamento naturalista, Franz von Liszt se filiou à
corrente de pensamento que exigia uma objetivação do substrato do delito, o qual
deveria sair do mundo espiritual para o mundo real, devendo o Direito Penal
proteger coisas concretas e objetos do mundo exterior, por exemplo.75
Ao contrário de Karl Binding, que concebia o bem jurídico como uma criação
do legislador vinculada à norma, para Franz von Liszt o bem jurídico é uma criação
da vida, um interesse vital do indivíduo ou da comunidade, ao qual o direito lhe
confere proteção sob a denominação de bem jurídico. Para ele, os bens jurídicos
pertenceriam à teoria geral do direito que expressa no campo do jurídico o que
representam os interesses dos indivíduos nas suas relações vitais e que quando são
assumidas pelo direito, transformam-se em relações jurídicas, dando proteção pelas

72
ANITUA, Gabriel Inácio. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2019, p. 368.
73
Von Liszt apud MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de
derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p.
48.
74
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 48.
75
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 21.
22
normas aos interesses vitais do indivíduo juridicamente protegidos, que serão
denominados de bens jurídicos.76
Como nos informam Hernan Hormazabal Malaree, 77 Gonzalo Fernández78 e
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, 79 Franz von Liszt foi influenciado por Rudolf von
Ihering, de quem foi discípulo. Para Rudolf von Ihering, os interesses são a mola
propulsora que move o mundo social, movendo-se para alcançar um fim.
Conforme Rudolf von Ihering, como as normas também estão inseridas no
mundo social, devem elas ser interpretadas de acordo com o fim a que se quer
alcançar, qual sejam assegurar as condições da vida em sociedade.80
O delito então seria aquilo que colocaria em perigo as condições da vida
social e, em caso de sua infringência, seria cominada uma pena. Rudolf von Ihering
pontua que a pena nada mais do que mais um meio subsidiário de proteção da vida
em sociedade. A situação de perigo ficaria nas mãos do legislador, permitindo-se, a
partir desta conceptualização, uma hierarquização da gravidade do delito de acordo
81
com a condição de vida ou do bem ofendido e graduar a pena aplicada.
Para Franz von Liszt, da mesma forma que para Rudolf von Ihering, a
finalidade da pena não era retributiva e, sim, preventiva, mais especificamente a
preventivo-especial, das quais se extraem três efeitos:

a) a intimidação do infrator não ocasional;


b) a neutralização dos incorrigíveis; e
c) a ressocialização dos adaptáveis82, associando-a, como consequência, à
proteção de bens jurídicos

Tal hierarquização permitiu a classificação em delitos de acordo com seu

76
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 48..
77
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990., p. 49.
78
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 21.
79
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
102.
80
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 50.
81
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 50..
82
ANITUA, Gabriel Inácio. História dos pensamentos criminológicos. Tradução de Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2019, p. 369.
23
titular: delitos praticados contra a pessoa, o Estado e contra a sociedade em sentido
estrito.
Franz von Liszt, então, se utiliza do trinômio de Rudolf von Ihering interesse -
fim - proteção das condições da vida social apresentado seu sintético conceito de
bem jurídico que é um interesse juridicamente protegido 83 , ou seja, as condições
vitais do indivíduo em sociedade.
O Direito Penal, bem como a norma penal e a execução penal terão uma
finalidade em comum, qual seja, a proteção dos bens jurídicos e tudo girará em
torno disso.
84
No entanto como bem assevera Santiago Mir Puig, Franz von Liszt não
conseguiu fornecer o conteúdo do que fosse interesse da vida”, “condição da vida”
ou “interesse juridicamente protegido”, o que dificultou o entendimento de quais
interesses merecem ser protegidos ou de que forma eles serão protegidos.85
Como o bem jurídico será o centro da discussão do Direito Penal, será ele
que conferirá materialidade ao delito, surgindo aí diferenciação entre a
antijuridicidade formal (mera transgressão a uma norma estatal, um mandado ou um
dever) e antijuridicidade material (lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico, isto
é, a um interesse protegido pela norma)
Franz von Liszt, por consequência, se afastará do tratamento normativo
dado por Karl Binding ao delito e dará a ele uma abordagem teleológica como um
bem de homens e não apenas como um bem do direito, refletindo a realidade social
em que está inserido, sujeitando o bem jurídico a uma constante revisão critica.86
Como visto, Karl Binding e Franz von Liszt são representantes do
positivismo. O primeiro, parte de uma concepção formal-normativa de bem jurídico,
enquanto o segundo, parte de um ponto de vista natural-sociológico de bem jurídico,
mas como bem assevera Gonzalo Fernández “[...] cada um desde a sua peculiar
perspectiva, proporciona paradoxalmente ao Estado, como expressão de um modelo

83
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 50.
84
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. Buenos
Aires: BdeF, 2003, p. 113.
85
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del Derecho Penal – Concepto y Método. BdeF:
Buenos Aires, 2003, p. 113.
86
Neste sentido: MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de
derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990,
p. 51.; FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de
fundamentación dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 22.
24
de sociedade que ainda busca sua consolidação, o instrumento legitimador do ius
puniendi.”87
Para Karl Binding, o ius puniendi estatal se encontra legitimado na própria
autoridade da norma que não necessita de qualquer outro pressuposto pois ela é a
própria decisão política de um Estado e a sua lesão constitui uma infração ao direito
subjetivo do Estado. O bem jurídico, por consequência, é um bem do direito88.
De outro lado, para Franz von Liszt, o direito penal se encontra legitimado
pelo seu fim, que nada mais é a necessária proteção dos interesses das condições
necessárias para uma vida em comum. O interesse que será objeto de proteção e
que se materializará no bem jurídico encontra-se na sociedade e não será apenas
fruto de uma decisão política, mas também de um juízo de valor do Estado, um
interesse do Estado.89
Como pode se depreender do exposto, tanto para Karl Binding, como para
Franz von Liszt o conceito de bem jurídico depende da vontade estatal, que em
ambas se assume como o arbitro regulador das condutas de seus indivíduos e como
formador e defensor de um modelo social. Ambas as teorias não logram êxito em
apresentar nenhum critério político-criminal que pudesse orientar e limitar o poder
punitivo estatal.90

2.5 O Neokantismo

O neokantismo é uma tendência filosófica que surge com a pretensão de


superar o positivismo, tendo como um de seus objetivos apontar a suas falhas.
Para o positivismo o conceito de ciência deveria ser reservado a aquelas
atividades que se servem de métodos de observação e do experimento para estudar
de um modo empírico-causal, devendo ser excluídos do seu âmbito de análise as
87
‘[...] cada uno desde su peculiar perspectiva, le proporcionan paradójicamente al Estado, como
expresión de um modelo de sociedade que aún busca su consalidación, el instrumento legitimador
del ius puniendi”. FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de
fundamentación dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 23.
88
Neste sentido: MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de
derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990,
p. 55.; e FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien Jurídico y Sistema Del Delito – Um ensayo de
fundamentación dogmática. BdeF: Buenos Aires, 2004, p. 23.
89
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 56.
90
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 57.
25
atividades tais como o direito, que também se ocupam da observação da realidade,
mas utilizando-se de outros métodos.
Para obter as respostas pretendidas pelo direito, por exemplo, não eram
suficientes os métodos das ciências naturais, era necessário recorrer a outros
métodos de análise privativos das ciências culturais ou espirituais. Enquanto o
método das ciências culturais era causal-explicativo, o das ciências culturais era
compreensivo.
Um dos expoentes do neokantismo foi Gustav Radbruch. Tendo como ponto
de partida a ideia da impossibilidade de se abstrair da realidade a ideia de valores,
de sobrepor o dever ser sobre o ser. Para o autor o mundo dos valores e o mundo
dos fatos coexistem de forma paralela sem se intercruzar e a relação entre ser e
dever ser; valor e realidade é o que ele chama de dualismo metodológico e é o que
diferencia as ciências naturais das jurídicas91.
Francisco Muñoz Conde informa que para Gustav Radbruch existem três
valores fundamentais: a liberdade, o poder e a cultura, sendo que um determinado
momento um pode prevalecer sobre o outro, mas o sistema ideal seria aquele em
que os três atuassem de forma equilibrada.92
A ciência penal, portanto, faz parte do valor cultura, cuja finalidade é a cultura
e que singulariza seu objeto em uma determinada expressão da cultura, a chamada
cultura social. Assim, o direito tem como função proteger os bens culturais e ,
quando esta proteção, se realiza pelo direito penal, estes bens adquirem o caráter
de bem jurídico 93.
O processo de determinação do que seja objeto de proteção jurídica será todo
bem cultural e que seja reconhecido por uma ideia estatal superior e reitora.
Outra contribuição do dualismo metodológico kantiano foi de grande
importância para o direito penal, pois, até então, sob a influência do positivismo,
delito e pena eram estudados sob o mesmo ponto de vista: social, psicológico ou
jurídico. O neokantismo alterou este panorama permitindo que o delito fosse
estudado tanto do ponto de vista causal-explicativo (mundo do ser) através da
criminologia, como fenômeno valorativo, sendo objeto de estudo da ciência do direito

91
RADBUCH apud MUÑOZ CONDE, Francisco. Introduccion Al Derecho Penal . Buenos Aires:
BeDeF, 2001, p. 178
92
MUÑOZ CONDE, Francisco. Introduccion Al Derecho Penal . Buenos Aires: BeDeF, 2001, p. 178
93
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 65.
26
(mundo do dever ser).
Assim discorre Francisco Muñoz Conde:

Ambos os tipos de considerações são, cientificamente falando, legais e até


recomendáveis, e foram justamente autores influenciados por essa corrente
filosófica que passaram a estudar os problemas criminais sob diferentes
perspectivas, causal e valorativa, sem confundi-los ou misturá-los (tradução
nossa)94

Em relação ao bem jurídico, afirma Ana Elisa Liberatore Silva Bechara95 que
os neokantistas criticando a compreensão positivista de que o conteúdo do delito
está previsto formalmente na lei, entendiam que o substrato material destes existia
em uma realidade prévia ao direito, situada no mundo espiritual subjetivo dos
valores culturais, como entreposto no mundo do ser e do dever-ser.

2.5.1 O nacional-socialismo

Com a ascensão do Partido Nazista ao poder na Alemanha presencia-se


uma alteração de todo ordenamento jurídico alemão para legitimar e justificar a
ideologia do novo regime político.
Na seara do Direito Penal, verifica-se um paulatino recrudescimento da
legislação penal com caráter flagrantemente autoritário, como ocorreu com a edição
das Leis de Nuremberg96.
O nacional-socialismo rechaçava o legado do Iluminismo que, como já visto
anteriormente, tinha como um dos seus pilares a importância do indivíduo e o
liberalismo jurídico. Em contrapartida dava-se ênfase ao dever de lealdade com a
comunidade do povo, a honra, a moral e a ligação com o território e cada indivíduo
era obrigado a agir desta forma.97 Demais disso, entendia-se que o sistema penal da
República de Weimar era muito condescendente com os delinquentes, bem como
criticava a função da prevenção especial da pena.
94
No original: “Ambos tipos de consideraciones son, científicamente hablando, lícitas e
recomendables, y fueron precisamente autores influenciados por esta corriente filosófica los que
comenzaron a estudiar los problemas penales desde distintas perspectivas, causales valorativas,
sin confundirlas ni mezclarlas”. MUÑOZ CONDE, Francisco. Introduccion Al Derecho Penal .
Buenos Aires: BeDeF, 2001, p. 180
95
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
106.
96
Colocar as leis mais importantes aqui
97
LLOBLET RODRÍGUEZ, Javier. Nacional-socialismo e antigarantismo penal (1933-1945).
Tradução de Paulo César Busato – 1ª ed. – São Paulo: Tirant Lo Blanch Teoria, 2019, p. 193.
27
Eugenio Raúl Zaffaroni98 noticia que, desde o início do século XVIII, os
penalistas alemães romperam com o positivismo de Franz von Liszt, cuja ciência
principal era a criminologia, que alimentava a política criminal exercendo o Direito
Penal uma função coadjuvante e de mero limitador desta.
Era inconcebível para os dogmatas alemães que o Direito Penal fosse
relegado a este papel secundário, por tal razão se descolaram do positivismo
naturalista de Franz von Liszt, separando as ciências em dois polos: de um lado, as
ciências naturais, regidas pela causalidade, local em que foi acomodada a
Criminologia; do outro lado, as ciências culturais ou do espírito, locus do Direito
Penal.
Para o neokantismo, o Direito faz parte do mundo do dever-ser, é uma
ciência cultural, regida pelos valores. Tais valores que permitirão que cada entidade
se organize em seu devido lugar.99 De se salientar que ditos valores não são, mas,
na verdade, valem para quem os impõe.
Com base nesta nova visão sobre os valores, a dogmática penal alemã
passou a rearranjar os seus conceitos básicos de acordo com os valores nazistas.
Neste período destacam-se dois jovens penalistas: Georg Dahm 100 e
Friederich Schaffstein,101 representantes da Escola de Kiel.102
98
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina penal nazista: a dogmática penal alemã entre 1943 e 1945.
Tradução de Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis: Tiratn Lo Blanch, 2019, p. 130..
99
De forma muito didática Eugenio Raúl Zaffaroni nos explica como ocorre essa organização: “Dito de
forma muito gráfica, o mundo real seria como uma casa à qual se chega em uma mudança, onde
tudo está misturado e, embora exista materialmente, a casa não se pode usar porque não há ordem
e, em consequência, não é habitável, não pode usar-se como casa, não está disponível”.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina penal nazista: a dogmática penal alemã entre 1943 e 1945.
Tradução de Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis: Tiratn Lo Blanch, 2019, p. 131.
100
Georg Dahm nasceu em 10 de janeiro de 1904 e faleceu em 30 de julho de 1963. Escreveu
diversas obras jurídicas, tendo sido admitido como professor em Heidelberg em 1930 sob a direção
de Gustav Radbruch. Em 1933 ingressou no Partido Nacional Socialista alemão. Em 1933 foi
admitido como professor regular em Kiel, sendo reitor da referida universidade entre os anos de
1935 a 1937. LLOBLET RODRÍGUEZ, Javier. Nacional-socialismo e antigarantismo penal (1933-
1945). Tradução de Paulo César Busato. São Paulo: Tirant Lo Blanch Teoria, 2019, p. 197.
101
Friederich Schaffstein nasceu em 28 de julho de 1905 e morreu em Göttingen em 06 de novembro
de 2001. Em 1930 foi professor de Direito Penal na Universidade de Göttingen. Ente 1933 3 1934
foi professor regular de Direito penal e Processual Penal na Universidade de Leipzig. Entre os anos
de 1935 a 1941 foi professor regular de Direito Penal da Universidade de Kiel. Entre 1941 a 1944 foi
professor de Direito Penal na Universidade de Strasburg. LLOBLET RODRÍGUEZ, Javier. Nacional-
socialismo e antigarantismo penal (1933-1945). Tradução de Paulo César Busato. São Paulo:
Tirant Lo Blanch Teoria, 2019, p. 196.
102
Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni, a Escola de Kiel era um centro acadêmico pequeno e fronteiriço,
para onde os professores que não davam aulas nos grandes centros acadêmicos se dirigiram. Com
a ascensão do nazismo e o controle nas diversas esferas da sociedade, inclusive nas
universidades, vários professores judeus e/ou que eram contra a nova ideologia foram destituídos
de seus cargos de professores, surgindo vagas que foram ocupadas por jovens que tinham
28
Especificamente em relação aos bens jurídicos, há um rechace da
concepção de que o Direito Penal os protege. A crítica feita pela Escola de Kiel era
de que o conceito de bem jurídico só se prestava para compreender os interesses
individuais e não os supra individuais; o conceito de bem jurídico é um conceito
unilateral que não compreende os contra interesses presentes em alguns tipos e,
por último, o conceito de bem jurídico deve ser substituído pelo conceito de ‘infração
do dever de fidelidade’, por tratar-se de um conceito mais completo.103
Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni, para Georg Dahm e Friederich Schaffstein,
a lesão a um bem jurídico era uma ideia de cunho liberal e oriunda do Iluminismo e
que necessitava de um indivíduo como seu titular. 104 No entanto, não conseguia
justificar quando os delitos eram praticados contra o Estado, sendo necessário,
através de uma ficção jurídica, criar contratualmente a pessoa estatal.105
Os estudiosos da Escola de Kiel, criticando o liberalismo, passaram a
entender que o “dever” era mais importante que o direito subjetivo, negando ou
dissolvendo seu conceito e, por consequência, do bem jurídico.
Santiago Mir Puig afirma que este rechaço ao bem jurídico ocorreu em um
primeiro momento por ser uma representação do individualismo, fruto do Iluminismo.
No entanto, já nos anos de 1937 e 1938, Georg Dahm e Friederich Schaffstein
passaram a aceitar a compatibilidade do bem jurídico e a ideologia nacional-
socialista.106

pretensão de se tornar catedráticos e que, ao mesmo tempo, nutriam simpatia pelo regime nazista.
A Escola de Kiel era denominada como uma faculdade pelotão de assalto, pois se dedicava à
renovação do direito conforme a ideologia nacional socialista. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina
penal nazista: a dogmática penal alemã entre 1943 e 1945. Tradução de Rodrigo Murad do Prado.
Florianópolis: Tiratn Lo Blanch, 2019, p. 155-156.
103
LLOBLET RODRÍGUEZ, Javier. Nacional-socialismo e antigarantismo penal (1933-1945).
Tradução de Paulo César Busato. São Paulo: Tirant Lo Blanch Teoria, 2019, p. 193.
104
Eugenio Raúl Zaffaroni afirma “[O estado como invenção liberal] Os de Kiel não apenas rejeitaram
o império da lei como uma criação iluminista, mas também subestimaram o próprio Estado, cuja
personalidade era considerada uma espécie de cabide inventada pelo liberalismo para pendurar os
bens jurídicos coletivos”. “[ El estado como invento liberal] Los de Kiel no sólo rechazaban al estado
de derecho como creación iluminista, sino que subestimaban al estado mismo, cuya personalidade
se consideraba como uma suerta de perchero inventado por el liberalismo para colgar los bienes
jurídicos colectivos”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La legalidad penal liberal y autoritaria. In:
GRECO, Luís. MARTINS, Antonio. (org.). Direito penal como crítica da pena. Madrid: Marcial
Pons, 2012, p. 767, (grifos do autor)
105
“Schaffstein sustentava que a ideia de bem jurídico, concebida dentro do modelo contratualista do
liberalismo, quando é levado aos delitos que lesam bens coletivos, é uma camisa de força
conceitual que impõe uma ficção [a do Estado contratual], como produto de uma transformação
artificial do conceito de direito subjetivo”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina penal nazista: a
dogmática penal alemã entre 1943 e 1945. Tradução de Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis:
Tiratn Lo Blanch, 2019, p. 172.
106
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. Buenos
29
A ideia do “dever”, portanto, é levada em consideração para a formulação do
novo conceito de delito, havendo uma reconstrução do Direito Penal com foco na
pessoa do obrigado e do seu círculo de deveres.107
Com base neste raciocínio, o autor tem o “dever de lealdade e fidelidade” ao
Estado e a traição seria uma lesão a este dever 108. Eugenio Raúl Zaffaroni entende
que a traição reconduziria a um novo bem jurídico único, qual seja, a “comunidade
popular”.109
Esta alteração de lesão de direitos subjetivos para lesão de deveres tem
uma consequência muito importante, o desmantelamento do conceito tripartido do
delito, cuja consequência foi o fim da diferença entre tipicidade e ilegalidade.
Outro autor que merece destaque é Edmund Mezger que, além de
desenvolver um conceito de bem jurídico de acordo com o interesse da Comunidade
do Povo, considerou relevante a posição do autor nesta Comunidade, alterando a
concepção do injusto penal. 110
Em seu Tratado de Direito Penal afirma que o bem jurídico é, ao mesmo
tempo, objeto de proteção da lei e objeto de ataque, contra o qual se dirige o delito.
Segundo o pensamento do autor, objeto de proteção da lei e objeto de ataque são

expressões sinônimas, mas não se confundem com o objeto da ação. Cláudio


Brandão elucida que objeto da ação é “[...] o objeto corpóreo sobre o qual a ação
típica se realiza”111, fazendo parte do tipo legal.
Através da interpretação da lei, segundo Cláudio Brandão, Edmund Mezger

Aires: BdeF, 2003, p. 115.


107
“Assim, reconstruía o direito penal a partir do obrigado e do seu concreto círculo de deveres,
fazendo a contraposição do direito penal de ato ao de autor perder sentido, porque
necessariamente deve partir do autor, o que, segundo Schaffstein, resolve a anterior contraposição
em um plano maior, que considerava apto para proporcionar nova configuração ao, muitas vezes,
mal entendido direito penal de vontade”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina penal nazista: a
dogmática penal alemã entre 1943 e 1945. Tradução de Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis:
Tiratn Lo Blanch, 2019, p. 172. (
108
Neste sentido Günther Jakobs afirma que “No período nacional socialista não era a teoria do bem
jurídico que estava em primeiro plano, mas sim a teoria do delito como violação do dever, e na
verdade, nota bene, a violação de um dever em face do povo, da comunidade, e não em face de
outras pessoas lesadas. JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do
direito penal. Tradução, apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto
Alegre: CDS Editora, 2021, p. 49.
109
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina penal nazista: a dogmática penal alemã entre 1943 e 1945.
Tradução de Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis: Tiratn Lo Blanch, 2019, p. 173..
110
Sobre a proximidade de Edmund Mezger com o nacional-socialismo, ver a obra: MUÑOZ CONDE,
Francisco. Edmund Mezger y el derecho penal de si tiemo: estudios sobre el derecho penal em
el nacionalsocialismo. Madri: Tirant lo Blanch, 2003, p. 146-147.
111
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 49
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1.
30
permite-se determinar e conhecer o bem jurídico, descortinando-se, portanto, as
características do tipo penal e de suas diferentes partes. Assim, tal determinação e
conhecimento do bem jurídico nos mostra que a sua função é teleológica e visa a
esclarecer a finalidade da lei penal.112
Afirma que a determinação do bem jurídico realiza-se segundo a lei e esta é
considerada como diretriz obrigatória a ser seguida, no entanto, nenhuma lei esgota
a totalidade do direito e, utilizando-se da expressão de Nagler, afirma que o caráter
fechado do ordenamento jurídico-legal é ‘uma sedutora fábula’, sustentando que o
positivismo legal deixa sem resposta diversas perguntas.
Para ele, portanto, além da observância dos preceitos legais positivados, é
necessário seguir um direito supralegal.113 E continua afirmando que todas as leis
são emanação positiva do Direito e esta só é possível com fundamento em
determinados pressupostos que constituem o total complexo da cultura de onde
surge o direito.114
Assim, nos dizeres de Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, com justificativa
de um pretenso asseguramento da vida em comunidade, foram utilizadas diversas
expressões genéricas e de conteúdo jurídico indeterminado, bem como ao
recorrente uso da analogia.115
Já na 6ª edição de sua obra do ano de 1955, Edmund Mezger ainda se
mantém adepto aos postulados neokantistas, porém, não mais se filia ao
entendimento de que o bem jurídico dever ser regido por valores supralegais. 116 Para
ele, bem jurídico é uma figura ideológica e evidencia-se com ele o valor que possui

112
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 49.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
113
Neste sentido Ana Elisa Liberatore Silva Bechara afirma“E estando o Direito acima do próprio
ordenamento positivado, como expressão social, a vida da comunidade não poderia restar limitada
pelas leis, permitindo a aplicação aos casos concretos soluções não normativa, embora ‘jurídicas’.
O fundamento da (des)valoração da conduta como delito deixou, portanto, de ser representado pela
violação de uma lei formal ou pela ofensa a um concreto interesse social fundamental, passando a
constitui atitude ética do sujeito de infedilidade ante aos valores comunitários. BECHARA, Ana Elisa
Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos normativos do
tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo Horizonte:
Editora D’Plácido, 2018, p. 42. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea,
114
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 49.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
115
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 42. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
116
MEZGER, Edmund. Derecho penal: libro de estudio, parte general. Buenos Aires: Editorial
Bibliográfica Argentina, 1955, p. 159.
31
para o indivíduo, como seu portador direto e para a sociedade como tal. Ë
fundamental que para uma melhor compreensão do conceito de bem jurídico que ele
não se limite apenas a um enfoque individualista, mas também seja a sociedade
como um todo.
Por fim, arremata:

De tal maneira, o bem jurídico está destinado a circunscrever mais


exatamente, sempre, a função protetora de cada fato punível e por ele se
apresente um meio extraordinariamente valioso e imprescindível para
interpretar corretamente a essência íntima dos preceitos do direito penal.
Em virtude do bem jurídico, reconhece-se sempre, com claridade e
evidencia, qual é o interesse do indivíduo e da sociedade protegido pela,
frente a uma situação determinadas de relações sociais. (tradução nossa).117

Criticando esta característica do Direito Penal Alemão no período do Nacional

Socialismo, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara afirma que o Direito Penal é um dos
ramos do direito mais propícios de ser ideologizados, em razão do poder conferido
ao Estado de limitar a liberdade do indivíduo.118
Com bem salientado por Cláudio Brandão,119 a dogmática penal, após a
ruptura com os postulados positivistas, adotou as premissas valorativas do
neokantismo, não mais delas se desvinculando.

2.6 Finalismo - uma visão ontológica

Hans Welzel inicia a sua obra afirmando que uma das missões do direito
penal é amparar os valores elementares da vida em comunidade, ressaltando que
toda ação humana está sujeita à valoração, seja ela vista de maneira positiva ou de
maneira negativa, introduzindo, ainda, a diferenciação entre desvalor da ação e

117
“De tal manera, el bien jurídico está destinado a circunscribir más exatamente, siempre, la función
protectora de cada hecho punible, y por ello se presenta como um médio extraordinariamente
valioso e imprescindible para interpretar correctamente la esencia intima de los preceptos del
derecho penal. Em virtude del bien jurídico, se reconoce siempre, com claridad y evidencia, cuál es
el interés del indivíduo y de la sociedade protegido por la ley, frente a uma situación determinada de
relaciones sociales. MEZGER, Edmund. Derecho penal: libro de estudio, parte general. Buenos
Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1955, p. 159.
118
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 40. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
119
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 49.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1)..
32
desvalor do resultado120.
Pontua que todas as classes de valores têm grande importância para o
direito penal. No entanto, o direito tem como meta primária o amparo a determinados
bens jurídicos que garantem a vida em comunidade, tais como a proteção à vida
humana, a saúde, liberdade, à proteção do próprio Estado. Para tanto, o direito
penal vai se utilizar da pena para punir determinadas ações que vão lesionar ou pôr
em perigo tais bens jurídicos.121
A missão do direito penal não é o amparo dos atuais bens jurídicos, mas,
sim, na verdade, o amparo da pessoa individual, da propriedade, pois para estes
bens jurídicos, ou seja, para os bens jurídicos individuais a resposta pretendida pelo
direito penal, na maioria das vezes, chega de forma tardia.122
A simples proteção dos bens jurídicos só tem uma finalidade preventiva, no
entanto, seu papel mais profundo é de natureza ético-social, pois “(...) ao proscrever
e sancionar o desvio realmente manifesto dos valores fundamentais do pensamento
jurídico, o Estado exprime da forma mais ostensiva que possui, a inviolável validade
destes valores positivos.” (tradução nossa)123
Como bem asseverado por Juarez Tavares,124 na concepção ontológica de
Hans Welzel, o bem jurídico conserva seu sentido de proteção da norma como
ocorrera no neokantismo, mas se vê substituído pelos valores éticos sociais. Ele é
determinado por esta norma e tem sua origem na sociedade em uma instancia pré-
jurídica
O bem jurídico deve ser entendido como um bem vital do grupo ou do
indivíduo, que, em razão de sua significação social, é amparado juridicamente.
Cumpre o direito penal, portanto, uma das suas missões e por detrás da proteção de
tais bens jurídicos está a proteção dos valores ético-sociais. Ou seja, através desta

120
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePalma Editor, 1956, p. 1-2
121
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePalma Editor, 1956, p. 2
122
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePalma Editor, 1956, p. 3
123
No original: “(...) proscribiendo y sancionando el apartamiento realmente manifestado de los
valores fundamentales del pensamiento jurídico, el Estado exterioriza del modo más ostensible de
que dispone, la validez inviolable de estos valores positivos (...).” WELZEL, Hans. Derecho penal
Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque DePalma Editor,
1956, p. 3-4
124
TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004, p.
29.
33
proteção assegurar-se-á as ações que são socialmente aceitáveis, penalizando as
ações desvaloradas. 125
Para Juarez Tavares, Hans Welzel parte da premissa que a função dos
valores ético-sociais é destinada aos indivíduos que tem plena consciência de tais
valores. As proibições ou os mandatos não são oriundas do poder do Estado ou de
algum tipo de poder sobrenatural. Elas se encontram na consciência de cada
indivíduo como um projeto sensível e não se confunde com a ação. Este projeto
proporciona que o ser tenha plena consciência do que ele é e possa orientar suas
condutas de acordo com estes valores, que deverão ser partes inerentes da sua
própria consciência e razão, não podendo ser de forma alguma analisada de forma
dissociada da pessoa sobre a qual recai o dever de fazer ou não fazer algo
determinado.126
Serão elementos de proteção de qualquer Estado, e, por consequência, da
pessoa, a proteção das instituições, tais como a família, patrimônio e comunidade
política, devendo aquele se organizar de forma que estes valores sejam
considerados elementares.127
Juarez Tavares assevera que o fato da consciência inerente a cada ser
humano demonstra o subjetivismo do pensamento de Hans Welzel, relegando a
questão do bem jurídico para um segundo plano, como um desdobramento lógico
dos valores ético-sociais, o que, por consequência, faz com a noção de bem jurídico
perca substância. 128
E, arremata afirmando que

A proteção de valores ético-sociais nada mais é que do que a incriminação


da antissociabilidade, daí não ser incoerente que seus adeptos venham a
conceituar o bem jurídico como um estado social, ou seja, uma determinada
ordem, que se se impõe como bem vital para o indivíduo e da
comunidade.129

125
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePalma Editor, 1956, p. 6

126
TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004,
p. 29
127
TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004,
p. 29.
128
TAVARES, Juarez. Bien juridico y función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004,
p. 32
129
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019,, p. 209.
34
2.7 Pós finalismo - a visão funcionalista

Juarez Tavares inicia sua análise do conceito de bem jurídico afirmando que
o modelo de bem-estar social surgido nas sociedades europeias pós 2ª Guerra
Mundial propiciou a elaboração da ideia de que o fim do Direito Penal é a
estabilidade da norma penal.130
Neste mesmo sentido, Hernan Hormazabal Malaree assevera que o Direito
Penal passa a centrar seu objeto exclusivo de estudo na norma sem levar em conta
considerações sociológicas e/ou políticas e cujo objetivo seria de superação das
insuficiências do modelo positivista.131
Para tanto, Juarez Tavares noticia e diferencia entre os modelos
funcionalistas em estrutural, funcional próprio e funcional impróprio.132
O funcionalismo estrutural parte da parte da premissa que a norma é um
instrumento de controle social, através da qual se legitima o autocontrole do poder
político que se dá mediante a manutenção de um estado de estabilidade, que pode
ocorrer através da convivência ou à organização do sistema.133
Assim, quando houver perturbações do sistema (input) haverá
necessariamente uma reação (output), que se executa através da imposição de uma
sanção. Um dos seus representes é Francisco Muñoz Conde que entende que as
reações decorrentes das perturbações devem levar em conta à utilidade, além da
realidade social e existencial da pessoa humana.134
Já o funcionalismo próprio, cujo represente mais destacado é Günther
Jakobs, parte da premissa que à norma penal só interessa assegurar a expectativa
de uma conduta correta, identificando o bem jurídico com a validade fática destas
normas135.
Por fim, o funcionalismo impróprio, representado por Claus Roxin, pretende
revitalizar o conceito de bem jurídico a partir de uma base político criminal,
fundamentada em preceitos constitucionais, cujo objetivo é limitar o poder punitivo. 136
130
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 210.
131
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 90.
132
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 210.
133
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 210-211.
134
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 211.
135
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 211.
136
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 212.
35
Cada uma destas correntes será analisada pormenorizadamente abaixo
para uma melhor compreensão.

2.7.1 Claus Roxin

A ciência do Direito Penal alemão do pós-guerra tentou limitar o poder de


intervenção jurídico-penal na teoria do bem jurídico. A ideia principal foi que o Direito
Penal deve proteger somente bens jurídicos concretos e não convicções políticas ou
morais, doutrinas religiosas, concepções ideológicas do mundo ou simples
sentimentos. 137
Claus Roxin traz a posição de três autores que entendem que é impossível
limitar a atuação do Direito Penal a apenas à proteção dos bens jurídicos.138
Para Hans Joachim Hirsch, não existe um conceito de bem jurídico
predeterminado para o legislador não sendo ele o objeto adequado para a limitar a
atuação do Direito Penal. Já para Günther Strantewerth, a elaboração de um tipo
penal não teria como função a proteção de bens jurídicos, mas sim determinar se
um comportamento é proibido ou não. Citando Günther Jakobs, afirma que a função
do Direito Penal é a confirmação da vigência da norma e não a proteção de bens
jurídicos.139 Para ele, ao contrário, expressamente se coloca na posição de defensor
do bem jurídico.
Claus Roxin parte da ideia de que o Direito Penal deve ter uma função social
e o que está além desta barreira não pode ser por ele tutelado, isto é, o direito penal
garantirá aos cidadãos daquele Estado uma existência pacífica e livre e só atuará se
outras medidas político-sociais, leia-se, se outros ramos do direito não puderem
garantir tal existência de forma tão gravosa, que é a restrição da liberdade. Toma
como modelo ideal o Estado Democrático de Direito140 em que as normas jurídico-

137
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André
Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018, p.
12.
138
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André
Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018, p.
15.
139
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André
Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018, p.
15.
140
A Constituição da República em seu artigo 1º enuncia que o Brasil é uma República e se constitui
em um Estado Democrático de Direito.
Não é objeto deste trabalho traçar a linha evolutiva das concepções do Estado ao longo da história,
mas é necessário conceituar o que seja Estado Democrático de Direito.
36
penais têm como fim precípuo assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e
livre.
Assim, para que tal escopo seja atendido o estado deve garantir os
instrumentos penais necessários assim como as instituições estatais adequadas.141
E, prossegue afirmando que estes objetos legítimos de proteção das normas
que subjazem estas condições, são o que ele chama de bem jurídico.
Para ele, o bem jurídico não necessariamente precisa ter sentido ou uma
concretude física, exemplificando aqui os direitos humanos, o desenvolvimento da
personalidade ou a liberdade de opinião religiosa.
Baseado em tais premissas, o autor apresenta a sua definição de bem
jurídico

[...] circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida


segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na
sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia
nestes objetivos. A diferença entre realidades e finalidades indica aqui que
os bens jurídicos não necessariamente são fixados ao legislador com
anterioridade, como é o caso, por exemplo, da vida humana, mas que eles
possam ser criados por ele, como é o caso das pretensões no âmbito do
Direito Tributário.142

Pois bem. O Estado de Direito surge com a Revolução Francesa e marca o fim do poder absoluto do
monarca. Assim, a partir desta nova conformação do Estado, o seu governo estará subordinado à
lei, cuja característica principal é a sua generalidade e abstração.
Luigi Ferrajoli entende que na seara do Direito Penal, o Estado de Direito diz repsito ao poder judicial
de apurar e punir crimes, enquanto ao legislativo cabe definir tais condutas. FERRAJOLI, Luigi.
Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2014, p. 789.
No entanto, Luigi Ferrajoli assevera que o “Estado de Direito” não se subsume apenas à observância
do princípio da legalidade. Ou seja, os três poderes que formam um Estado – Executivo, Legislativo
e Judiciário – se subordinam às leis gerais, bem como, quando atuam concretamente, funcionalizam
os direitos e garantias fundamentais FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo
penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 789.
Por sua vez, o Estado Democrático de Direito será aquele em que a vontade geral e, frise-se, isto não
é sinônimo da maioria, prevalece. No Estado Democrático de Direito, o garantismo será “técnica de
limitação e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o que estes não devem e o que
devem decidir”. Prossegue o Autor asseverando que “as garantias sejam liberais ou sociais,
exprimem de fato os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes do Estado, os interesses
dos fracos respectivamente aos fortes, a tutela das minorias” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:
teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 797).
Conclui o Autor que em um Estado Democrático de Direito, o Estado na esfera penal, deve ser
mínimo, ou seja, com diminuição das restrições de liberdade dos cidadãos em contrapartida ao
aumento das vedações em relação à atividade repressiva.
Ao mesmo tempo será máximo da esfera social, ocorrendo uma maximização das expectativas
sociais do cidadão e o aumento progressivo das obrigações políticas em realiza-las. FERRAJOLI,
Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 799.
141
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André
Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018, p.
17-18.
142
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André
37
Claus Roxin entende que o conceito de bem jurídico não deve se
circunscrever aos bens jurídicos individuais. Deve ele abranger também os coletivos,
só que nestas hipóteses só devem ser protegidos se tiverem o objetivo de
proporcionar o desenvolvimento do indivíduo em uma determinada sociedade.

2.7.2 Günther Jakobs

Günther Jakobs diferencia a forma como um determinado bem possa ser


reconhecido como bem jurídico. A primeira delas é a permissão ao detentor deste
bem o direito de defendê-lo contra uma lesão iminente. Tais medidas não se
circunscrevem apenas na esfera cível e/ou administrativa. Ela também existe na
esfera penal.143
A segunda afirma é aquela em que há uma violação culpável de uma norma
protetora de bens. A sua reparação pode se dar sob a ameaça de imposição de uma
pena ou de uma multa, sendo ineficiente tal ameaça se a reparação do dano ocupa
o lugar do bem lesado. Neste ponto, a reparação do dano será guiada pela medida
da culpabilidade do autor e não pela ameaça de lesão ao bem ou a seu dano efetivo.
E prossegue, afirmando que o bem jurídico e a vigência da norma não são a
mesma coisa, sendo que a manutenção da norma passa obrigatoriamente pela
imposição de uma pena. O bem jurídico, por si só, não tem força o bastante, pois, ao
lado do bem a ser protegido, devem ser sopesados a liberdade do autor, que
também é um bem jurídico, e o interesse da sociedade de possibilitar o seu
desenvolvimento.144
Logo, se o bem jurídico é a norma vigente, então o conflito a ser resolvido
será feito por meio da pena não uma agressão feita pelo agente ao seu agressor
agressão do autor contra determinada pessoa, mas sim uma agressão contra a

Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018, p.
18-19.
143
JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 2021, p.
47
144
JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 2021, p.
47.
38
estrutura normativa da sociedade.145
O direito Penal é uma instituição que deve prevenir a sociedade de perigos.
Os seus cidadãos devem agir sem medo para a consecução do seu bem-estar. Para
o autor é a vigência da norma é que é alvo de ataque e não o bem de um indivíduo
em especial.146

2.7.3 Winfried Hassemer

Winfried Hassemer informa que a teoria do bem jurídico que, nos seus
primórdios, tinha como objetivo inicial conter o ilimitado poder punitivo estatal,
atualmente caminha em sentido contrário, em que se presencia um inchaço na
criação de crimes e a utilização do direito penal como a solo ratio para a solução dos
diversos problemas advindos da sociedade pós-moderna.147
Admite que não é das questões mais fáceis se despojar do princípio da
proteção dos bens jurídicos, ao mesmo tempo que se depreende do texto
constitucional de mandados de criminalização. Tal dado assume relevância para
limitar o legislador infraconstitucional ao escolher o que se deve ou não punir.
O autor entende que o princípio da proteção de bens jurídicos, em um
primeiro momento, é um marco na determinação do merecimento de pena, muito
embora não tenha a qualidade e/ou a função de responder a esta questão, até
mesmo porque, em um certo ponto da história de um Estado, uma conduta pode
tender para a criminalização ou não.148
No entanto, assevera que “a conduta que ameaça o bem jurídico é condição
necessária, mas não suficiente para criminalizar esta conduta”.149
145
JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 2021, p.
60.
146
JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 2021, p.
64.
147
HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico. Doctrina Penal:
Teoría y Práctica en las Ciencias Penales, Buenos Aires, v. 12, n. 45/48, p. 275-285, 1989.
148
HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico. Doctrina Penal:
Teoría y Práctica en las Ciencias Penales, Buenos Aires, v. 12, n. 45/48, p. 275-285, 1989.
149
“Uma conducta que amenaza al bien jurídico es la condición necesaria, pero no suficiente para
criminalizar esta conducta”. HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien
jurídico. Doctrina Penal: Teoría y Práctica en las Ciencias Penales, Buenos Aires, v. 12, n.
45/48, p. 278, 1989.
39
A lesão de um bem jurídico será o elemento fundante para o merecimento da
pena, que poderá ser mitigado através do cotejo de outros princípios penais, tais
como a fragmetariedade, proporcionalidade, lesividade e adequação social, tema
deste trabalho.
Winfried Hassemer questiona se a teoria do bem jurídico nos moldes que em
que se desenvolve atualmente cumpre este papel.
Primeiramente critica que a Parte Especial do Código Penal alemão, bem
como as leis especiais, característica que também se repete na legislação penal
especial e extravagante brasileiras, tipificam condutas que violam direitos cujas
vítimas são indeterminadas e/ou difusas, tais como ocorre com a legislação de
proteção ao meio ambiente, nos delitos econômicos, terrorismo, uso de drogas,
dentre outras.
De outra banda, o que se extrai da análise destes tipos penais é que em sua
maioria são crimes de perigo abstrato, sendo suficiente apenas demonstrar a ação
descrita como perigosa.
Nos dizeres de Winfried Hassemer

[...] há algum tempo, não se trata de descriminalizar ou, pelo menos, mitigar
as penas, mas criar novos crimes ou agravar as penas dos já existentes;
cada vez mais se concentra nos tipos penais e nas acusações que lhe são
atribuídas, sem interessar em nada que não sejam as consequências que
lhe são aplicáveis. Ao mesmo tempo, estende seu campo de ação àqueles
setores que a opinião pública considera mais ameaçados: o meio ambiente,
a economia, impostos, drogas, terrorismo e tecnologia da informação.
Esta política criminal não está mais focada nos bens jurídicos clássicos de
alguma forma perceptível pelos sentidos (vida, saúde, liberdade, etcetera),
senão nos bens jurídicos universais que também são descritos tão
vagamente e amplamente que pode justificar qualquer tipo de cominação
pernal. Entre esses bens jurídicos se encontram a protecção do "bem-estar"
humano, a saúde pública, a capacidade de funcionamento do mercado de
capitais, a política de subsídios estatais ou o uso de computadores na
economia ou administração.
Para isso, se instrumentaliza a proteção destes bens jurídicos utilizando-se
da técnica de crimes de perigo (na maior parte, abstratos), em que basta
demonstrar a ação do legislador descrita como perigosa, e não a dos crimes
de dano ou lesão em que não só a produção de danos deve ser
demonstrada, mas isso tem sido causada pelo acusado. (tradução
nossa).150

150
No original”“[...]desde hace ya algún tiempo, no trata de descriminalizar o, por lo menos, de
atenuar las penas, sino de crear unos nuevos delitos o agravar las penas de los ya existentes; cada
vez más se concentra en los tipos penales y en las conminaciones penales que se asignan a ellos,
sin interesarse en nada por las consecuencias que les son aplicables. Al mismo tiempo, extiende su
ámbito de actuación a aquellos sectores que la opinión pública considera más amenazados: el
medio ambiente, la economía, los impuestos, las drogas, el terrorismo y la informática. Esta política
criminal no se orienta ya en los clásicos bienes jurídicos de algún modo perceptibles por los
40
Esta nova conformação, em razão da amplitude e vagueza dos tipos penais
dela decorrentes, dificulta em muito a correção dos rumos da política criminal, que
só funcionaria no âmbito do Direito Penal, chamado de Clássico, em que há a
preponderância da proteção dos bens jurídicos individuais.151
Tal desafio já havia sido enfrentado tanto por Paul Johann Anselm Ritter von
Feuerbach como por Johann Michael Franz Birnbaum que tentaram explicar ou
justificar a proteção penal em relação aos entes coletivos.
Se na suas origens, este problema já era antevisto pelos seus expoentes
como um desafio difícil de solucionar, imagina-se no período que vivemos hoje, o da
pós-modernidade, que com o avanço tecnológico, trouxe uma era de bem estar e
conforto nunca antes vividos pela humanidade, mas, da mesma forma, fez com que
nos deparemos com riscos nunca antes imaginados e que podem influenciar
inclusive gerações futuras.
Em razão destes riscos, questiona Winfried Hassemer como deve proceder a
teoria do bem jurídico. Ela deve se preocupar apenas com os bens jurídicos
clássicos e que resguardam, por exemplo, a vida, a integridade corporal, a
propridade? Ou ela também se aplica a estes bens de titularidade difusa ou coletiva?
Winfried Hassemer parte dos pressupostos de que estes novos desafios e
riscos advindos da pós modernidade não são capazes de funcionalizar os elementos
individuais e pessoais a partir das instituições ou, como ele próprio diz, “[...]
‘socializados’ em consonância com a transformação social”152.
De forma contrária, ele entende que, a despeito da constante transformação

sentidos (vida, salud, libertad, etcétera), sino en los bienes jurídicos universales que además se los
describe de manera tan vaga y a grandes rasgos que pueden justificar cual quier tipo de
conminación penal. Entre estos bienes jurídicos se cuentanla protección del "bienestar" humano, la
salud pública, la capacidad de funcionamiento del mercado de capitales, la política estatal de
subvenciones o el empleo de la informática en la economía o la administración. Para ello se
instmmentaliza la protección de estos bienes jurídicos, utilizando la técnica dé los delitos de peligro
(en su mayor parte, abstracto), en los cuales es suficiente con demostrar la acción que el legislador
há descrito como peligrosa, y no la de los delitos de daño o de lesión en que no sólo hay que
demostrar la producción de un daño sino que este ha sido causado por el inculpado” HASSEMER,
Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación en derecho
penal. Tradução de Francisco Munoz Conde e Maria Del Mar Díaz Pita. Santa Fé de Bogotá: Temis,
1999, p. 44-45.
151
HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la
imputación en derecho penal. Tradução de Francisco Munoz Conde e Maria Del Mar Díaz Pita.
Santa Fé de Bogotá: Temis, 1999, p. 32.
152
HASSEMER, Winfried. Linhas gerais de uma teoria pessoal do bem jurídico. In: GRECO, Luís;
TÓRTIMA, Fernanda Lara. (org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de
incriminar? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 18
41
social pelas quais passamos, é imprescindível ao Direito Penal proteger os
elementos individuais ou pessoais, pois não é a sua tarefa garantir a segurança
geral ou a diminuição dos riscos sociais153.
Neste sentido afirma

Nessa discussão, deve-se de início insistir que um conceito pessoal de bem


jurídico não nega a possibilidade de bens jurídicos da coletividade ou do
Estado, mas que ele funcionaliza esses bens a partir da pessoa humana:
somente pode aceitá-los como condição da possibilidade de servir a
interesses dos seres humanos.154

Logo, o Direito Penal deve funcionalizar os interesses da coletividade e do


Estado a partir do indivíduo, não o contrário.

2.7.4 Knut Amelung

Knut Amelung formulou a sua teoria sobre o bem jurídico relacionando-a com
a danosidade social.
Para o autor serão considerados socialmente danosos os acontecimentos
disfuncionais podendo ser entendidos como “[...] os fenômenos sociais que impedem
ou dificultam ao sistema social a superação dos problemas que obstaculizam seu
progresso”, sendo o delito apenas mais um caso de fenômeno disfuncional.155
Knut Amelung sublinha que vivemos em um sistema de interações e que se
mantém por si próprio superando os problemas do mundo circundante e garantindo
que toda ação alcance a meta, ao fim proposto.
Com base em tal premissa, o que é danoso socialmente será determinado
pela disfuncionalidade social da sua ação.
Assim, será na relação entre o sistema e o indivíduo que se estabelecerá a
danosidade de uma conduta.
O conceito de bem jurídico está intimamente relacionado com a danosidade
153
HASSEMER, Winfried. Linhas gerais de uma teoria pessoal do bem jurídico. In: GRECO, Luís;
TÓRTIMA, Fernanda Lara. (org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de
incriminar? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 18.
154
HASSEMER, Winfried. Linhas gerais de uma teoria pessoal do bem jurídico. In: GRECO, Luís;
TÓRTIMA, Fernanda Lara. (org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de
incriminar? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 18-19..
155
AMELUNG apud MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático
de derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur,
1990, p. 110.
42
social, conceituando o bem jurídico como as condições de existência da vida social,
não fazendo nada mais que determinar o objeto lesado pelo delito.156
Hernan Hormazabal Malaree assentado nos pensamentos de Winfried
Hassemer, critica a teoria do bem jurídico desenvolvida por Knut Amelung pois este
condiciona equivocadamente a legitimação das normas penais à Constituição e esta,
por sua vez, para se legitimar depende da [...] “’estrutura’ do ‘sistema republicano
federal’ do que se deriva a legitimidade da norma penal”.157 não pode coexistir em
um visão funcionalista pois está obrigando a legitimação das normas penais, que
fazem parte de um subsistema, a outro subsistema, que é o do Direito
Constitucional.
Na verdade, argumenta Hernan Hormazabal Malaree esta cadeia de
legitimações encobre as reais necessidades dos indivíduos que fazem parte de uma
sociedade, tornando o desenvolvimento da teoria do bem jurídico elaborada por Knut
Amelung débil para conter de fato ou limitar o poder punitivo estatal.158

2.8 Teorias constitucionais

Ana Elisa Liberatore Silva Bechara reafirma a importância limitadora do bem


jurídico na intervenção penal do Estado, no entanto, ressalva que nem todo bem
jurídico merecerá a tutela penal. Para que exerça tal função limitadora, é necessário
que o bem jurídico seja submetido a valorações jurídico-penais, ou seja, “[...] a fim
de que um bem jurídico possa ser considerado bem-jurídico penal, cabe exigir-lhe
suficiente importância social e necessidade de proteção pelo Direito Penal”. 159
Desde os anos 1970, que se passou a buscar um conceito de bem jurídico
que desse legitimidade ao Direito Penal, afastando-se das arbitrariedades praticadas

156
AMELUNG apud MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático
de derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur,
1990, 110.
157
“[…] ‘estructura’ del ‘sistema social republicano federal’ de la que se deriva la legitimidad de la
norma penal. MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de
derecho: el objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990,
p. 111.
158
MALAREE, Hernan Hormazabal. Bien jurídico y estado social y democrático de derecho: el
objeto protegido por la norma penal. Santaigo, Chile: Editora Jurídica ConoSur, 1990, p. 111.
159
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
120.
43
no período da 2ª Guerra Mundial.160
A Constituição e os princípios fundamentais, principalmente a dignidade da
pessoa humana são levados ao centro da construção do Estado Democrático de
Direito. A partir daí, a intervenção penal e a própria política-criminal passam a ter
como substrato a própria Constituição.161
A Constituição passa a ter, portanto, uma função orientadora ao jus puniendi,
materializada justamente nos bens jurídicos,162 assim ela seria como um quadro de
valores e de hierarquia de bens aos quais o legislador deve se ater para a
construção do sistema de proteção penal e, logo, todos os delitos deveriam se
reescritos para que seus objetos jurídicos reflitam o programa de proteção dos bens
de relevância constitucional.163
Augusto Silva Dias afirma que como os direitos e garantias fundamentais, os
bens jurídicos penais se encontram na Constituição. Para o Autor, a Constituição
não será ponto de partida ou de chegada, mas sim será uma passagem ou um
referencial obrigatório através do qual os bens jurídicos que são merecedores da
tutela penal serão deduzidos da análise hermenêutica da norma constitucional. 164
Para identificarmos e caracterizarmos os bens jurídicos penais através da
interpretação da norma constitucional, será necessário observar o princípio da
proporcionalidade e seus subprincípios (necessidade, adequação e
proporcionalidade em sentido estrito), este último mais especificamente.165
Assim, para que haja uma proteção penal de determinado bem jurídico exige-
se, “[...] equilíbrio ou de igualdade geométrica entre aquilo que se restringe e aquilo
que se tutela” e prossegue afirmando “[...] a exigência positiva de equilíbrio entre a
166
natureza e o valor do que se protege. E tanto mais apertada será essa

160
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
121.
161
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
121.
162
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
122.
163
BRICOLA apud BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier
Latin, 2014, p. 122.
164
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p. 650-651.
165
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p. 651-652.
166
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
44
correspondência quanto mais gravosa for a intervenção de direitos, liberdades e
garantias”167 168
Por sua vez, Claus Roxin tem como ponto de partida a questão do conceito
material do delito para permitir a punição de determinada conduta pelo legislador. 169
O conceito material de delito, ao contrário do conceito formal, permitirá ao
legislador que se utilize da política criminal para escolher o que deve ser
considerado impune ou não.
No entanto, não será qualquer conduta que será tipificada. As condutas
sexuais, por exemplo, tais como a homossexualidade ou o incesto, desde que sejam
praticados entre pessoas maiores e capazes e que tenham o pleno discernimento
acerca do que estão realizando não podem e não devem ser criminalizadas.
Tampouco podem ser incriminadas condutas que só causem “danos” no mundo do
sentimento ou do decoro.,
Para Claus Roxin, o conceito de bem jurídico não pode estar desvinculado de
uma concepção político-criminal. 170
O legislador, ao realizar a escolha de qual bem deve ser protegido pelo
Direito Penal, não age arbitraria e discrionariamente. Ele tem como limite
instransponível a Constituição de seu respectivo Estado naquele determinado
período.
Neste sentido afirma que:

(...) os bens jurídicos são circunstâncias ou finalidades úteis para o indivíduo


e seu livre desenvolvimento no quadro de um sistema social global
estruturado com base nessa concepção de fins ou para o funcionamento do

do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p. 653.
167
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p. 653.
168
E exemplifica: “Se o que se restringe com a pena é a liberdade ambulatória [directa ou
indirectamente, na medida em que, em caso de incumprimento, a pena de multa pode ser
convertida em prisão subsidiária, como vimos], caso expressamente previsto na Constituição de
modo directo, tal restrição só será legítima para preservar um direito ou um bem da mesma
grandeza geométrica. SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise
das descontinuidades do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica.
Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 653.
169
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 51. t. 1.
170
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 55. t. 1.
45
próprio sistema” (tradução nossa).171

Assim, Claus Roxin reafirma que, com base nesta limitação advinda do texto
constitucional, é vedado ao legislador infraconstitucional incriminar condutas que
tenham finalidades ideológicas, como ocorrido na própria Alemanha no período do
Nacional-Socialismo; ou que lesem apenas a moral ou os bons costumes, bem como
aquelas que tenham preceitos que criam ou asseguram a desigualdade entre
determinados grupos de pessoas.
Luís Régis Prado nos traz a informação que, enquanto na Alemanha se
sobressaem as teorias sociológicas do bem jurídico, na Itália, por seu turno,
prevalecem as teorias constitucionais. Grosso modo, elas podem ser entendidas a
partir do raciocínio de que o bem jurídico deve ser inferido e extraído do texto
constitucional, como se fosse um núcleo de onde sairiam as diretrizes para a
institucionalização da política-criminal daquele Estado.172
Tais teorias173 podem ter um caráter amplo ou geral fazendo remissão ao texto
constitucional de forma mais ampla tais como a forma de governo daquele Estado,
bem como aos princípios constitucionais implícitos e explícitos na formação do
sistema punitivo.174
Luís Régis Prado nos informa que para os defensores deste posicionamento
que a escolha feita pelo legislador ordinário para determinar se um valor será alçado
à categoria de bem jurídico, deve-se vincular aos princípios e metas previstos no
texto constitucional. 175

171
“[...] los bienes jurídicos son circunstancias dadas o finalidades que son útiles para el
individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la
base de esa concepción de los fines o para el funcionamiento del propio sistema”. (grifo do
autor). ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del
delito. Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 56. t. 1.
172
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 61.
173
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 61.
174
Mariângela de Magalhaes Gama Gomes afirma que: ”Quanto à identificação dos bens jurídicos
aptos na Constituição, mas também os explícitos. Isso não significa, todavia que a Carta
Constitucional permita a contemplação de qualquer interesse como sendo sujeito à tutela penal,
mas impõe que todas as possíveis incriminações sejam enquadráveis em suas diretrizes, o que há
de ser valorado a partir de argumentação a fortiori ou analógica. No caso dos bens implícitos na
Constituicao, exige-se, para que seja legitima a tutela penal, que estes constituam – pelo menos –
pressupostos logicamente necessários de outros expressos, ou que consistam em bens
instrumentais à proteção de outros expressamente previstos na Constituicao. GOMES, Mariângela
de Magalhaes Gama. A importância dos critérios de seleção de crimes e cominação de penas.
IBCCRIM - 25 anos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 243.
175
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 62.
46
Por sua vez, para as teorias constitucionais estritas o texto constitucional
servirá de base de onde poderão ser extraídas prescrições específicas (explicitas ou
implícitas), a partir das quais se encontram os objetos de tutela e a forma por que
devem se revestir, orientando as atividades do legislador infraconstitucional.
Em uma concepção democrática, Luís Régis Prado176 afirma que a pessoa
surge em primeiro lugar, como um valor absoluto e supremo que não pode ser
tocada e/ou agredida.
E continua:

A liberdade, a dignidade homem – qualidades que lhe são inerentes – e a


possibilidade de desenvolver-se livremente constituem um limite
infranqueável ao Estado. Não se pode esquecer jamais que a pessoa
humana não é um objeto, um meio, mas um fim em si mesmo e como tal
deve ser respeitada.177 178

Assentadas em tais premissas, o Estado, portanto, será um meio cujo fim é o


indivíduo, ou seja, para garantir de forma digna o desenvolvimento do indivíduo.

Conclui Luís Régis Prado que a Constituição e a atividade estatal devem se orientar
em garantir e fomentar esse desenvolvimento do seu cidadão. 179
Assim, a noção de bem jurídico em um estado constitucional surge como
vetor de orientação do legislador infraconstitucional servindo como um limite bem
desenhado ao poder punitivo estatal e encontrando legitimação para incriminar ou
não determinadas condutas.
O primeiro fundamento da ilicitude material é o texto constitucional. A partir
daí, o conceito material de bem jurídico será alcançado quando um valor, que já é
assim reconhecido pela realidade social, é elevado à categoria de bem jurídico. O
texto constitucional, portanto, retratará quais são os valores mais caros àquela
sociedade em um determinado momento histórico, protegendo-os, assim, de forma

176
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 80.
177
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 81.
178
Em A metafísica dos costumes, Immanuel Kant afirma que o postulado supremo da virtude é: “[...]
age de acordo com uma máxima dos fins que possa ser uma lei universal a ser considerada por
todos”. E prossegue: [...] um ser humano é um fim em si mesmo, bem como para os outros, e não é
suficiente não estar ele autorizado a usar a si mesmo ou a outros meramente como meios [uma vez
que ele poderia, neste caso, ainda ser indiferente a eles]; é em si mesmo seu dever fazer do seu
humano como tal seu fim”. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução, textos
adicionais e notas de Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2003, p. 239.
179
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 86.
47
especial. 180
No entanto, a determinação do texto constitucional para que o legislador
ordinário criminalize determinadas condutas, o que é chamado de mandados de
criminalização, que podem ser expressos ou implícitos (p. ex., terrorismo, racismo,
tráfico de drogas, dentre vários outros que estão ao longo do texto constitucional),
ainda assim não retira do legislador infraconstitucional o poder de selecionar as
condutas que devem ou não ser incriminadas.
Assim, o conceito material de bem jurídico se assentará nos valores ou na
realidade social de uma sociedade em um dado contexto histórico.
Luís Régis Prado finaliza seu estudo sobre bem jurídico afirmando que nem
todo bem jurídico será protegido na seara penal.181
Os bens a serem contemplados pelo Direito Penal serão aqueles que, como
já dito, têm um valor social, mas, ao mesmo tempo, devem obter a proteção penal
visando ao seu fim mediato, que será o indivíduo, isto é, referidos bens devem ser
considerados de suma importância tanto para os indivíduos como para a vida social.
Neste mesmo sentido Augusto Silva Dias entende que um determinado valor
só será considerado bem se for tido como valioso tanto para a comunidade, bem
como um valor de utilidade para os indivíduos, os quais ele denomina de “sujeitos
participantes”, de tal maneira que a lesão a eles dirigida possa ser considera como
uma ameaça de dano ou um dano efetivamente ocorrido.182
Para o autor, há um componente relacional entre o sujeito participante e o
objeto que, em um primeiro momento, não é perceptível através dos sentidos,
sendo, na verdade, um objeto de interpretação do sujeito observador. 183
No entanto, apenas através de critérios jurídicos-sociais vigentes é que
teremos conhecimento se aquele objeto é de propriedade ou não do sujeito
observado. Mas não apenas este critério deve ser levado em conta.
Através do conteúdo valorativo de determinados bens, tais como a vida,
integridade física, dignidade sexual, dentre outros, e que tem elevado significado

180
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 88.
181
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 130.
182
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p. 656.
183
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p. 659-660.
48
para a comunidade de pessoas cuja função é satisfazer as suas necessidades
básicas, por tal razão Augusto Silva Dias entende que à relação entre os sujeitos e
os objetos deve ser levada uma dimensão entica, antropológica e comunitária.
E assinala

[...] para nós bens jurídicos são as relações entre pessoas e objetos tidas
consensualmente como valiosas para serem consideradas indispensáveis
para a realização pessoal e para a preservação da ordem social como
ordem reconhecimento. Os bens jurídicos são, neste contexto, entidades
valorativas dotadas de função, isto é, realidade construída”.184

Luís Régis Prado filia-se à doutrina constitucionalista estrita para fazer a


valoração dos bens jurídicos,185 o que, a meu sentir, parece ter sido a escolha do
legislador constituinte de 1988, com a ressalva de que esta escolha não me parece
ter sido expressa.

2.8.1 Bens jurídicos individuais e coletivos

A doutrina que estuda o bem jurídico distingue entre bens jurídicos individuais
(vida, liberdade, propriedade, etc) e bens jurídicos coletivos (meio ambiente, ordem
econômica, etc), havendo duas teorias que enfrentam o tema: a monista e a
dualista.
Para a teoria monista, só existem duas possibilidades de se conceber o bem
jurídico. Uma do ponto de vista do Estado e, neste caso, os bens jurídicos
individuais são simples atribuições jurídicas derivadas da função do Estado. Ou em
relação à pessoa, considerando nesta hipótese que os bens jurídicos universais só
são legítimos se servem para o desenvolvimento pessoal do indivíduo.186
A despeito de os bens coletivos terem se tornado o ponto central da
discussão penal nos últimos anos, isto não significa que a discussão da teoria dos
bens jurídicos deva naqueles se limitar.
Assim, o direito penal deve ser pensado não na perspectiva da sociedade,

184
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in Se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra Editora,
2008, p. 660-661.
185
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 131.
186
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014;
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y al derecho
penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1989, p. 108.
49
mas sim na do indivíduo
Para referida teoria, não há uma repulsa em relação à existência e/ou à
proteção de bens jurídicos coletivos, mas sim que os interesses gerais sejam
funcionalizados, sob o ponto de vista da pessoa, ou seja, os interesses gerais só
podem ser reconhecidos legitimamente na medida em que sirvam aos interesses
pessoais.
Já para as teorias dualistas haverá duas classes de bens jurídicos, cuja
origem se dá em interesses distintos e cuja função será o meio para o
desenvolvimento pessoal do cidadão, bem como do Estado.
Em relação aos bens jurídicos transindividuais, cuja proteção passou a ser
mais premente e exigida com o desenvolvimento da sociedade pós-industrial e o

surgimento de novos riscos dela advindos, Luís Régis Prado adverte que os bens
transindividuais não exercem qualquer relação de preponderância em relação aos
bens jurídicos individuais.187 Ao contrário. Para ele, a relação entre eles é de
complementaridade, exemplificando o caso do meio ambiente em relação à
qualidade de vida do homem (indivíduo), ou seja, o indivíduo deverá ser sempre o
ponto de referência na análise de qualquer bem jurídico, seja ele coletivo ou
difuso.188
Augusto Silva Dias filia-se à corrente personal-dualista cujo titular seria a
pessoa em si mesmo, enquanto os bens jurídicos supra-individuais são aqueles em
que a pessoa, o cidadão é considerado em sua vida comunitária, podendo ser
exemplificado o meio ambiente salubre ou a qualidade de produtos de consumidos
pelo homem.189 De se salientar que mesmo nos bens jurídicos supra-individuais,
haverá uma base antropocêntrica e que reflete a relação social entre pessoas e
objetos tidos por elas como valiosos.190

187
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 131.
188
Luís Régis Prado nos traz a classificação de SANTANA VEGA , que elenca os bens jurídicos em:
“[...] a) bens jurídicos institucionais [públicos ou estatais], nos quais a tutela supra individual aparece
por uma pessoa jurídica de direito público [v.g., Administração Pública, Administração da Justiça];
b) bens jurídicos coletivos, que afetam um número mais ou menos determinável de pessoas [v.g.,
saúde pública, relação de consumo]; e c) bens jurídicos difusos, que têm caráter plural,
indeterminado e dizem respeito à coletividade como um todo [v.g., ambiente, patrimônio cultural]”.
(grifo do autor). PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2019, p. 134..
189
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p. 670.
190
SILVA DIAS, Augusto. Delicta in se e delicta mere prohibita: uma análise das descontinuidades
50
2.8.2 Função e bem jurídico - distinção

A norma penal tem como objetivo proteger bens jurídicos e não suas funções.
Segundo Nicola Abbagnano191 o termo função tem diversos significados que
perpassam pelo campo da filosofia, sociologia, matemática e física. O autor informa
que o conceito de função nas ciências, principalmente na matemática, suplantou a
utilização da causa exprimindo “[...] a interdependência dos fenômenos e permite a
determinação quantitativa dessa interdependência sem pressupor ou assumir nada
sobre a produção de um fenômeno por parte do outro.”192
Já na sociologia, Émile Durkheim nos apresenta a definição do conceito de
função como “[...] a correspondência entre uma instituição e as necessidades de um
organismo social, vale dizer, como a atividade pela qual uma instituição contribui
para a manutenção do organismo.” 193 194
Para Immanuel Kant, função é “[...] a unidade de ação que consiste em
ordenar diversas representações sob uma representação comum.”195 196
No campo jurídico, Juarez Tavares nos traz o conceito de função na seara
administrativa, exemplificando o controle da administração pública na organização
do tráfico viário ou na arrecadação tributária, dentre outras. 197
A função apresenta uma relação de interdependência a determinados
fenômenos, tendo como uma de suas características a ausência de autonomia e a
independência.
O bem jurídico, por sua vez, é considerado “[...] como um valor da pessoa
do ilícito penal moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, p. 671.
191
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 473.
192
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 473-474.
193
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 473.
194
Tal passagem também é citada por Juarez Tavares nas obras: TAVARES, Juarez. Bien juridico y
función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004; TAVARES, Juarez. Teoria do
injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.
195
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujao. 5. ed. Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2001, p. 128.
196
Tal trecho foi igualmente citado por Juarez Tavares nas obras: TAVARES, Juarez. Bien juridico y
función en derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004, p. 57; TAVARES, Juarez. Teoria do
injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 220.
197
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 222-223.
51
humana, que se constitui em objeto de sua preferência e referencia, material ou
ideal, mas real, que independe, para sua existência e essência de qualquer relação
funcional”.198
Partindo dessa breve conceituação de função, deve-se atentar que bem
jurídico e função são conceitos que não são sinônimos e sua distinção, como nos
alerta Juarez Tavares, não é das tarefas das mais fáceis.199
A doutrina penal, ao fazer a diferenciação entre bens individuais e coletivos
ou entre bens concretos e abstratos, ao invés de determinar de forma clara e precisa
os limites do que é típico ou atípico; lícito do ilícito, confunde-se com as suas
características programáticas.
Juarez Tavares propõe que não haja distinção entre bens jurídicos individuais
e coletivos. Todo bem jurídico deve ser entendido como bem pessoal. Esse seria o
primeiro postulado que distinguirá o bem jurídico da sua função. E completa que
nesta operação não serão levados em consideração apenas sujeitos determinados.
Os indivíduos não identificáveis, em um primeiro momento, também serão
contemplados nesta nova classificação. Tal construção é necessária para se evitar a
tipificação de condutas de forma aleatória e simbólica, como presenciamos
atualmente na criação de diversos tipos penais que nada mais são do que uma
forma simplista e populista de dar uma satisfação a sociedade que clama a cada dia
mais por mais punição. 200
Segundo Luís Régis Prado o Direito Penal apresenta algumas funções,201
dentre elas, a função dogmática202 na qual há o reconhecimento da posição central e
de grande importância que o bem jurídico exerce na formação do delito. Em relação
à função de limitação do poder punitivo estatal, o legislador pode ou não tipificar
uma conduta X ou Y, no entanto, essa escolha deve levar em conta a gravidade ou
perigo de lesão causam ao bem jurídico.
198
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 227.
199
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 220.
200
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 220.
201
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 51.
202
Ricardo Robles Planas, afirma que “[...] uma das missões da dogmática jurídica é a de
sistematizar e ordenar o Direito por meio da descoberta de princípios e enunciados teóricos
abstratos que permitam criar um aparato conceitual reduzido, ao qual se remetam as decisões
jurídicas concretas”. E prossegue asseverando que [...] a sistemática permite dar resposta a
questões não pensadas até o momento, oferecendo assim uma maior segurança jurídica em
comparação a outros métodos que não procedem sistematicamente. PLANAS, Ricardo Robles.
Estudos de dogmática jurídico-penal: fundamentos, teoria do delito e direito penal econômico.
Coordenação de Cláudio Brandao. 2. ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p. 26. (Coleção
Ciência Criminal Contemporânea, v. 6).
52
Na função teleológica, o bem jurídico constitui “o núcleo da norma e do tipo.
todo delito ameaça um bem jurídico [...]. Não é possível interpretar nem, portanto,
conhecer a lei penal sem lançar mão da ideia de bem jurídico”, 203 logo, através do
bem jurídico, busca-se entender o sentido e o alcance de tipo legal abstratamente
previsto.
Na função individualizadora, “como critério de sua fixação, levando-se em
conta a gravidade do bem jurídico, influenciando na cominação abstrata da pena de
acordo com a maior ou menor importância do bem jurídico protegido.204 Por óbvio, a
penas dos crimes que lesam ou ameaçam de lesão o bem jurídico vida, por
exemplo, deve ser maior àquelas que tratam dos crimes contra a organização do
trabalho.
Ao contrário de Luís Régis Prado que elenca expressamente as quatro
funções do bem jurídico, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara 205 afirma que ele
desempenha diversas funções, no entanto, frisa que as mais importantes seriam a
dogmática e a política criminal, também chamada de crítica.
Inicialmente, vale trazer o alerta206 de que há uma confusão entre as
terminologias “bem”, “interesse” e “valor” 207 que muitas das vezes são utilizadas
indistintamente como sinônimos de bem jurídico.
O bem jurídico não deve ser visto como algo estático.208 Deve-se verificar se
ele estabelece uma relação entre uma pessoa ou uma coisa, por tal razão, 209 que o
entendimento adequado e que deve ser adotado é que o bem jurídico é um
“interesse” em que há uma evidente vinculação com um sujeito e uma coisa e que
seria “[...] o expoente de uma situação subjetiva-objetiva integrada pela relação
jurídica existente entre um sujeito e um bem”. 210
203
MAURACH-ZIPF apud PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019, p. 51.
204
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 52.
205
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
143.
206
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014. P. 139
207
Sobre a diferença entre bem, interesse e valor, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara nos ensina que:
“[...] ‘bem’, na verdade, refere-se ao objeto capaz de satisfazer uma necessidade; ínteresse’
identifica-se com a relação especifica entre um objeto e seu titular, um sujeito; e ‘valor’ assume
sentindo pluridimensional de transcendência”. BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-
penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 139.
208
PRADO, Luís Régis. Bem jurídico e constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 140.
209
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p
148.
210
KAHLO apud BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier
Latin, 2014, p. 141.
53
Partindo desse raciocínio, portanto, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara
entende que as concepções sociológicas e constitucionais sobre o conceito de bem
jurídico não devem ser afastadas. No entanto, devem ser adotadas
complementarmente.
Em um primeiro momento, deve-se buscar a dinamicidade daquele interesse
no contexto daquela sociedade em especial, para somente depois analisar-se se os
valores insertos na Constituição daquele determinado Estado e para só depois
concluir-se se aquele interesse será objeto da tutela penal, em um evidente juízo
negativo.
Além disso, como já mencionado acima, se o bem jurídico pode ser entendido
como um interesse, não estático, e que se relaciona tanto com um sujeito ou com
um objeto, é necessário que deve ser dada primazia a este sujeito na realidade
social.
Por tal razão, que Ana Elisa Liberatore Silva Bechara entende que a função
dogmática e a político-criminal/crítica são as que devem ser levadas em conta. 211
Através da função dogmática, extrai-se do bem jurídico a norma penal e o seu
objeto de tutela, que será passível de ofensa. Além disso, a dogmática relaciona-se
também com a interpretação de normas penais e sua construção sistemática,
produzindo um efeito de segurança.
Segundo Ricardo Robles Planas, a dogmática não busca apenas solucionar
casos concretos com a consequente imposição de uma pena. Ela vai além. Ela tem
como função identificar os fenômenos da realidade para submete-los a um processo
de abstração formal em que busca uma definição para, posteriormente, alcançar-se
a uma denominação, ou seja, uma fórmula linguística que será utilizada no futuro
para a compreensão dos elementos que fazem parte tanto do conceito de delito,
como dos tipos penais previstos na Parte Especial do Código Penal. 212
O modus operandi dogmático não se reduz apenas à reprodução da lei,
tampouco à sua mera interpretação, “[...] trata-se de um processo de concretização
de uma decisão, na qual confluem de maneira indissolúvel elementos descritivos,

211
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
143-144.
212
PLANAS, Ricardo Robles. Estudos de dogmática jurídico-penal: fundamentos, teoria do delito e
direito penal econômico. Coordenação de Cláudio Brandao. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2016, p. 26. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 6).
54
cognitivos e normativo-valorativos de diversas índoles”. 213
Já em relação à função político-criminal, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara
afirma que se estabelecem quais os interesses serão objetos de tutela penal e a
respectiva vinculação destes com os tipos penais já existentes no ordenamento
jurídico.214
Logo, para que os postulados político-criminais tenham aplicação logica e
racional é necessário, antes de tudo, que se apoiem nas bases científicas da
dogmática. Só assim, o bem jurídico poderá exercer de forma plena a sua função
limitadora do poder punitivo estatal.

2.8.3 A relação do bem jurídico com a política criminal

A expressão Política Criminal é atribuída a Paul Johann Anselm Ritter von


Feuerbach que a conceituou como “o conjunto de procedimentos repressivos pelos
quais o Estado reage contra o crime”.215
A política criminal passou a ter destaque a partir da década de 1970 com
Claus Roxin que propõe que ela seja um dos elementos fundamentadores da
dogmática jurídico-penal, sendo um auxílio na construção do sistema do delito e no
combate à criminalidade.
Grosso modo, Claus Roxin opta, podemos assim dizer, que a “sua” Política
Criminal esteja à serviço de uma limitação do poder punitivo estatal e à proteção do
cidadão.
O autor pretende superar o dualismo existente entre política criminal e
dogmática penal, propondo a inserção da política criminal na elaboração dogmática.
A política criminal proposta por ele tem como objetivo a criação de um
sistema de regras que auxilie os cidadãos em uma convivência pacífica. As
privações de liberdade a que um sujeito seja submetido somente ocorrerá quando a
paz social não puder ser restabelecida por medidas menos incisivas, demonstrando
o caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal.
213
PLANAS, Ricardo Robles. Estudos de dogmática jurídico-penal: fundamentos, teoria do delito e
direito penal econômico. Coordenação de Cláudio Brandao. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2016, p. 23-24. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 6).
214
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
143
215
FEUERBACH apud DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal.
Tradução de Denise Radanovic Vieira. Barueri, SP: Manole, 2014, p. 3.
55
Assim, Claus Roxin pretende superar a concepção de Franz von Liszt de que
delito e pena fazem parte de um sistema fechado pelos preceitos, cuja organização
de forma sistemática garantirá o seu domínio sobre as demais áreas, evitando-se,
portanto, a arbitrariedade216.
Franz von Liszt elaborou a sua política criminal como uma disciplina cientifica
tendo como ponto de partida a concepção positivista e determinista do homem e o
delito como reflexo da sua periculosidade e com o objetivo de evitar o delito usando
de métodos corretivos baseados na psiquiatria quando se direcionar ao indivíduo e
através da política social quando houver consequência nas estruturas sociais.217
Essa construção da política criminal do período lisztiano reproduz a ideologia
positivista do século XIX e que tem como diagnóstico a criminologia empírica e que
acredita que a “cura” é alcançada através da imposição de uma pena em sua
vertente retributiva.
Claus Roxin questiona a dualidade entre dogmática e política criminal levada
a efeito por Franz von Liszt e argumenta que de nada adianta observar os preceitos
dogmáticos e resolver o caso concreto, alcançando-se resultados inequívocos e
uniformes se, contudo, materialmente injustos ou errôneos do ponto de vista político-
criminal.218
Encontramo-nos diante de tal encruzilhada, porque herdamos de Von Liszt e
do positivismo a análise do direito penal com base no primado da lei, afastando-se
dele as influencias sociais e políticas.
O Direito, mais especificamente o direito penal, não é uma ciência
hermeticamente fechada e que está imune a influencias externas. Ao contrário. O
que mais experimentamos na prática diária do direito penal é a influência de fatores
não jurídicos que nos desafiam a resolver as questões penais.
Baseado neste raciocínio é que Claus Roxin entende que a política criminal é
que conseguirá resolver adequadamente os desafios não jurídicos quando impostos
ao direito penal.
Ele próprio ressalva, no entanto, que o princípio do nullum crimen não está

216
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz
Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 34.
217
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Política criminal y persona. Buenos Aires: ADHOC, marco de
2000, p. 15-16.
218
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz
Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 36-37.
56
derrogado. Ele continua e deve continuar a existir, mas como “um instrumento de
configuração social de alta significação”.219 E isto se irradiará por toda a teoria do
delito.
Ele exemplifica a hipótese de alguém que atua em erro de proibição ou que
tenta desistir voluntariamente de praticar o delito, afirmando que tais questões são
de política criminal e que não podem ser respondidas de modo autômato pelos
princípios e postulados encerrados na dogmática penal.220
Claus Roxin reconhece que a sua proposta não é inédita, mas a inovação
trazida por ela é a organização metodológica e sistemática de forma satisfatória e
cujo objetivo é realizar uma correção valorativa da teoria do delito eminentemente
positivista.221 222
Assim, ele entende que a melhor solução é permitir que as valorações
político-criminais penetrem na fundamentação legal do direito penal, evitando-se as
contradições provenientes do sistema positivista e formal proveniente de Franz von
Liszt.223 224
219
“[...] instrumento de configuración social de alta significación” ROXIN, Claus. Politica criminal y
sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz Conde. 2. ed. Buenos Aires:
Hammurabi, 2002, p. 44.
220
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz
Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 44.
221
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz
Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 45.
222
Neste sentido Claus Roxin afirma: “Certamente nada disto é novo. Mas até agora não foram
suficientemente postas em claro as consequências dogmáticas e sistemáticas que devem deduzir-
se e que na comparação com o tipo tem um caráter completamente distinto”. No original:
“Ciertamente no es esto nada nuevo. Pero hasta ahora no han sido suficientemente puesto
enclarolas consecuencias dogmáticas y sistemáticas que deben deducirse y que en comparación
con la interpretación del tipo tiene un carácter coinpletamente distinto”. ROXIN, Claus. Politica
criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz Conde. 2. ed. Buenos
Aires: Hammurabi, 2002, p. 59.
223
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz
Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 49.
224
Neste sentido Claus Roxin afirma: “Isso fica muito bem evidenciado na reforma do sistema
jurídico-penal de sanções e na execução da pena: ressocializar não significa introduzir sentenças
indeterminadas ou dispor por capricho do condenado para tratamento coercitivo do Estado. Em vez
disso, a reforma do mandato constitucional só satisfaz, se o ao mesmo tempo fortalecer a situação
jurídica do condenado com a introdução de métodos modernos de terapia social e a relação
especial de poder for legalmente reestruturada, que até agora tem sido dificilmente acessível à
especulação jurídica” (tradução livre). No original: “Muy claramente se pone esto de relieve en la
reforma del sistema de sanciones jurídico-penales y de la ejecución de la pena: resocializar no
significa introducir sentencias indeterminadas o disponer a capricho del condenado para
tratamientos estatales coactivos. Más bien, únicamente satisface la reforma al mandato
constitucional, si al mismo tempo fortalece la situación jurídica del condenado com la introducción
de modernos métodos de terapéutica social y se reestructura jurídicamente la especial relación de
poder que hasta ahoraha sido poco accesible a la especulación jurídica” ROXIN, Claus. Politica
criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz Conde. 2. ed. Buenos
Aires: Hammurabi, 2002, p. 49-50.
57
Claus Roxin define a Política Criminal não apenas com as escolhas das
sanções que devam ser aplicadas quando do cometimento de um determinado
delito, que para ela são de caráter preventivo e que reputa ser mais eficaz para a
prevenção do cometimento de futuros crimes, mas também de aspectos
fundamentais que são extraídos da Constituição, bem como do Código Penal
vigente naquele Estado e que fixa os pressupostos de punibilidade e de fixação da
pena. 225
O sistema de direito penal será orientado pelos princípios de política criminal
alicerçado na criação de um conjunto de regras que auxilie os cidadãos em uma
convivência pacífica. As privações de liberdade a que um sujeito seja submetido
somente ocorrerão quando a paz social não puder ser restabelecida por medidas
menos incisivas, demonstrando o caráter subsidiário e fragmentário do Direito
Penal226.
Claus Roxin entende que as categorias do delito - tipicidade, antijuridicidade
e culpabilidade - devem se sistematizar de acordo com a função político-criminal que
podem desenvolver.
Os tipos penais tem como motivação e função realizadora o princípio nullum
crimen. A antijuridicidade será o local em que os problemas sociais serão
solucionados quando os interesses individuais se chocam em oposição às
exigências sociais.
Por fim, em relação à análise da culpabilidade não deve se circunscrever
com o poder atuar do indivíduo, o que ele entende como algo difícil de se constatar.
A culpabilidade deverá ser analisada sob o ponto de vista da ocorrência de
circunstancias pessoais irregulares ou condicionadas a uma determinada situação

225
ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el derecho penal y el proceso penal.
Tradução de Carmen Gómez Rivero e Maria del Carmen García Cantizano. Valencia: Tirant Lo
Blanch, 2000, p. 59.
226
Neste sentido, Nilo Batista afirma: “O campo da política criminal tem hoje uma amplitude enorme.
Não cabe mais reduzi-la ao papel de ‘conselheira da sanção penal’, que se limitaria a indicar ao
legislador onde e quando criminalizar condutas. Nem se pode aceitar a primitiva fórmula lisztiana de
sua relação com a política social: esta se ocuparia de suprimir ou limitar as condições sociais do
crime, enquanto a política criminal só teria por objeto o delinquente individualmente considerado.
[...] Por isso mesmo, muito mais do que a histórica tensão entre a política criminal [concebida como
aquela ‘conselheira’ que procura aprimorar a funcionalidade repressiva do sistema penal] e o direito
penal [concebido pela perspectiva garantístico-liberal], tão lapidarmente expressa por Von Liszt [“o
direito penal é a barreira infranqueável da política criminal”], os grandes debates se travam entre
finalidades políticas diversas que pretendem modelar o instrumento jurídico, ou seja, entre políticas
criminais diversas. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2007, p. 35-36.
58
que, em princípio está ameaçada com uma pena.227 228
Deverão ser levadas em
conta a função limitadora de pena, bem como as suas considerações preventivas
gerais e especiais229.
A construção da dogmática penal valorada com aspectos políticos criminais
também se revela na elaboração de novas perspectivas de vários institutos que
constam das partes gerais dos Códigos Penais que, na maioria das vezes, são
caracterizados por conceitos vagos ou que não os regulam de forma adequada
No entanto, Claus Roxin nos alerta que política criminal e dogmática penal
não tem as mesmas competências, sob pena de infringência do princípio
constitucional de separação dos poderes e da legalidade.230
Tampouco, nos adverte, que haverá uma relativização ou abandono da
construção dogmática que nos garante claridade e segurança jurídica e que são,
diga-se de passagem, irrenunciáveis.
Como bem nos relembra Ana Elisa Liberatore Silva Bechara e na esteira de
Claus Roxin, o direito penal materializado na dogmática penal e a política criminal
não pode tomar caminhos paralelos, pois se isto ocorrer ele se tornará um
instrumento descolado da realidade social daquela comunidade e, por conseguinte,
não conseguirá solucionar os conflitos humanos ali surgidos. 231
Assim, a dogmática penal e a política criminal não podem ser analisadas de
forma descolada da realidade de um país em um determinado momento ou sem
levar em conta as suas especificidades sociais, políticas, culturais e econômicas.
No entanto, não podemos deixar de levar em conta as especificidades
227
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz
Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 59.
228
Neste mesmo sentido, Sergio Moccia exemplifica como ocorreria a concretização da política-
criminal no sistema delito. Em relação ao fato típico, ela ocorreria na construção de tipos penais
taxativos, certos e determinados, tais como exige o princípio da legalidade; a antijuridicidade seria o
locus para a solução dos conflitos sociais e, por fim, a culpabilidade seria onde as finalidades
preventivas da pena se realizariam. MOCCIA, Sergio. El derecho penal entre ser y valor: función
de la pena y sistemática teleológica. Tradução de Antonio Bonanno. Buenos Aires: BeDeF, 2003, p.
14.
229
Neste ponto, importante trazer o contraponto de Mireille Delmas-Marty a proposta de Claus Roxin.
Para ela é necessária uma ‘readequação’ da abordagem da política criminal, propondo uma
classificação dos sistemas de política criminal, cujo objetivo principal é garantir a coesão e a
sobrevivência do corpo social e assevera que referidas escolhas refletem a necessidade de
segurança que uma sociedade almeja, cuja influência será exercida pelas ideologias dominantes.
DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Tradução de Denise
Radanovic Vieira. Barueri, SP: Manole, 2014, p. 45.
230
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz
Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 59. p. 59.
231
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
373.
59
regionais232 233
, pois a realidade latino-americana e, especialmente, a brasileira é
completamente diversa da realidade dos países centrais e dos quais importamos os
institutos dogmáticos e propostas políticos criminais que muitas das vezes se
mostram ineficazes quando aqui aplicados. Nesse sentido, “ao materializar-se em
normas penais, a política criminal deve, assim, ser interpretada à luz da política geral
da qual faz parte, ou, ao menos, não a contradizer”.234
A meu sentir, vale salientar, que se quisermos fazer o postulado humanístico
herdado do Iluminismo prevalecer, certos valores como a dignidade humana,
legalidade, igualdade e respeito ao Estado Democrático de Direito são irrenunciáveis
e, portanto, não poderão deixar de ser contemplados se quisermos, de fato, a
existência de uma Direito Penal comprometido com a limitação do poder punitivo
estatal.
Por tal razão, deve-se estruturar e sistematizar os postulados do direito
penal sob o ponto de vista politico-criminal condicionado sempre à ordem
constitucional daquele Estado, observados, como já dito, seus valores inalienáveis.
Sob essa perspectiva, como bem lembrado por Ana Elisa Liberatore Silva
Bechara, mostra-se imprescindível correlacionar, sob um ponto de vista de vista
político criminal, os princípios limitadores do poder punitivo estatal, como o da
intervenção mínima ou legalidade, com o princípio da exclusiva proteção dos bens
jurídicos. 235
Torna-se impossível fazer valer o princípio da exclusiva proteção dos bens
jurídicos, se os tipos penais não são taxativos ou contém conceitos jurídicos
indeterminados, ampliando sua incidência sobre qualquer conduta praticada pelo
agente, assumindo o Direito Penal uma função pedagógica e se revestindo de
instrumento de controle social e incumbido da função de solucionar todos os
problemas de uma sociedade. O que, na verdade, desvirtua a sua concepção
clássica, ferindo de morte o princípio da intervenção mínima, que preconiza que o

232
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
374.
233
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 106. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
234
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
106.
235
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
376.
60
direito penal deve ser entendido como a ultima ratio, devendo proteger os bens
jurídicos mais importantes das lesões mais graves.

2.8.4 A crise (?) do bem jurídico

Vivemos na era da pós-modernidade na qual experimentamos grandes


transformações e novidades em todas as áreas do conhecimento. Essas alterações,
principalmente, as tecnológicas trouxeram um bem-estar para a humanidade sem
precedentes em toda a sua história. Mas a evolução tecnológica não trouxe apenas
benefícios. Há também a sua face negativa. É certo que a existência de riscos é
inerente à evolução humana, mas a utilização de certas técnicas e suas
consequências são ainda desconhecidas, introduzindo um fato de grande incerteza
social.
O conceito de sociedade de risco foi amplamente difundido através da
clássica obra de Ulrich Beck e que, a princípio, pode parecer superada, é
extremamente relevante para se entender o surgimento e a consolidação deste
Direito Penal a ela vinculado, que tem como uma de suas características a
prevenção de fenômenos futuros com a promessa de segurança.236
Referido autor afirma que os riscos não são invenção da era moderna. Desde
a Idade Média já existiam, ressaltando que eram perceptíveis através do olfato, da
visão e da audição e circunscreviam-se no âmbito pessoal.
Os riscos advindos da pós Revolução Industrial, de outro lado, distinguem-se
daqueles em razão do seu alcance global, ameaçando todas as formas de vida no
planeta causando mais pavor e preocupação, pois ameaçam adentrar nossos lares e
destruir nossos corpos, nos dizeres de Zygmut Bauman, pois, na maior parte das
vezes, são sensorialmente imperceptíveis e/ou invisíveis ao ser humano e talvez
seus efeitos não recaiam sobre os afetados e, sim, sobre futuras gerações.237
Portanto, estes riscos ou perigos, cujos efeitos são desconhecidos,
contribuem para que vivamos em um estado latente de insegurança, no qual a
maioria das pessoas se identifica como vítimas em potencial.
Ulrich Beck assevera, contudo, que os riscos a que hoje estamos expostos

236
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução Sebastião Nascimento.
São Paulo.: Ed. 34, 2010. p.26.
237
BAUMAN, Zygmut. Medo líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro. Jorge Zahar
Ed., 2008, p. 11.
61
não podem ser imputados única e exclusivamente ao desenvolvimento tecnológico e
científico decorrentes da modernidade tardia. 238
Coadunando com este pensamento, Jesús María Silva Sánchez, igualmente
afirma que o avanço tecnológico não representa isoladamente a fonte de riscos e
insegurança para a coletividade. Sustenta que o modelo do Welfare State está em
crise já há algumas décadas, tendo se agravado, principalmente no final da década
de 1950 e início da década de 1960, com o aumento da imigração massiva de
refugiados oriundos de países em guerra e que pretendiam viver em condições
melhores tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa, transformando-se, assim,
em fonte de risco iminente para a nossa sociedade, pois ameaçam a estratificação
social, ameaçando o lucro e o processo de industrialização e globalização tão
almejados pelos detentores do poder e dos meios de produção.239
Segundo o aludido autor, o direito penal, coincidentemente, a partir desta
época, começou a sofrer sua grande transformação, deixando de ser subsidiário,
isto é, a ultima ratio, para ser visto como a prima ratio ou, como afirma Sergio
Moccia, “espécie de panaceia ilusória com a qual se quer afrontar, e resolver, os
mais diversos problemas”.240
Este Direito Penal, pensado tal qual uma ciência exata, como a atuarial,
baseada na ponderação entre riscos, ganhos e perdas, tendo como um de seus
pilares a busca pela eficiência pretende a resposta penal mais rápida e eficaz.
Assim, sofre forte influência da teoria da prevenção – geral e especial-, da pena em
que grupos marginais ou, mais especificamente, o “outro”, são considerados
perigosos e qualquer discurso ou legislação que tenha a pretensão de inocuizá-los é
considerada normal, justificando-se a expansão por que passa a legislação penal em
todo mundo e também no Brasil.
O que se observa é que, a despeito da crítica trazida por Winfried Hassemer e
outros estudiosos da chamada “Escola de Frankfurt” 241, nomes de peso do cenário

238
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução Sebastião Nascimento.
São Paulo.: Ed. 34, 2010, p. 26.
239
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2002, p. 32.
240
MOCCIA, Sergio. A difícil relação entre norma e ciência penal na pósmodernidade. In: GRECO,
Luis; MARTINS, Antônio (org.). Direito Penal como crítica da pena: estudos em homenagem a
Juarez Tavares por seu 70º aniversário. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 406.
241
A despeito de não haver consenso sobre a existência de uma “Escola de Frankfurt”, pode ser
entendida como uma reunião de pesquisadores e estudiosos do Direito Penal, destacando-se entre
62
da dogmática penal defendem o expansionismo penal, ao fundamento de que o
Direito Penal Clássico, forjado na Era da Ilustração, nada mais é do que um
reprodutor do discurso das classes burguesas que pretendiam manter-se no poder.
Assim, justifica-se a expansão do Direito Penal para alcançar finalmente estas
classes poderosas e detentoras de poder e capital que até então ficaram ao largo da
aplicação do Direito Penal.242
Também característica deste “novo” Direito Penal a proteção de bens
jurídicos coletivos ou supraindiviuais. Assim, termos como Direito Penal da
Globalização, Direito Penal do Inimigo, criminalidade organizada e transacional são
largamente utilizados, justificando-se, inclusive, a flexibilização não só de garantias
penais, como também das garantias processuais.
Coadunando com este raciocínio, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara afirma
que este “Direito Penal do risco” caracteriza-se pelo reconhecimento de novos bens
jurídicos, o adiantamento das barreiras de punição e a redução das exigências de
imputação, tipificando, inclusive comportamentos que, a princípio, não são
considerados inadequados socialmente.243
Esta nova roupagem do Direito Penal pretende funcionalizar os princípios
fundantes do Direito Penal Clássico, tais como legalidade, subsidiariedade,
fragmentariedade, dentre outros, e que tinham como objetivo primordial proteger os
cidadãos contra as arbitrariedades do poder punitivo estatal. Para tanto, utiliza de
técnicas que os flexibilizam, retirando-lhes o poder de resistência. Para este “novo”
Direito Penal, o Estado deve ser garantidor da segurança do cidadão frente a
ameaças, riscos e violências, que devem ser eficientemente prevenidos, reduzindo
os pressupostos da punibilidade ao admitir a ampla utilização dos delitos de perigo
abstrato, por exemplo.
A normatização excessiva é a tônica desse Direito Penal, que

eles Winfried Hassemer, Wolfgang Naucke, Klaus Luderssesn e Peter-Alexis Albrecht. Os autores
apresentam argumentos críticos ao Direito Penal atual, que se funda na proliferação de riscos, e na
expansão do Direito Penal, e buscam alternativas para o controle da crimninalidade. Cada um deles
à sua maneira, entende que o Direito Penal deve abrigar as funções clássicas de proteção dos
cidadãos, no entanto, têm em comum, o posicionamento de que a expansão do Direito Penal, tal
qual ocorre hoje, deve ser contida. OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos. Hassemer e o direito penal
brasileiro: direito de intervenção, sanção penal e administrativa. São Paulo: IBCCRIM, 2013, p. 24-
28.
242
GRACIA MARTIN apud OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos. Hassemer e o direito penal brasileiro:
direito de intervenção, sanção penal e administrativa. São Paulo: IBCCRIM, 2013, p. 41.
243
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
213.
63
frequentemente, utiliza-se de uma legislação simbólica com argumentação utilitária
como justificativa para a adoção de uma política criminal que satisfaça a população.
O Direito Penal passa então a regular matérias extremamente especializadas.
Elementos normativos são inseridos nos tipos penais, sendo necessário recorrer
cada vez mais ao uso de normas penais em branco, cujo conteúdo é genérico ou
indeterminado, necessitando de complementação para completar a descrição da
conduta típica.
O Direito Penal, assim, passa a se tornar dependente do Direito
Administrativo, sofrendo, inclusive, influências de institutos que são oriundos do
Direito Privado, subvertendo a sua formação original.
E este “novo” Direito Penal não se circunscreve apenas na hipertrofia
legislativa. Alguns conceitos, já há muito assentados na dogmática penal, são
alterados, para justificar a escolha de uma ou de outra teoria, desde que ela seja a
mais coerente ou, melhor, a mais conveniente, para opção de determinada política
criminal.
A política criminal deste Direito Penal da modernidade, ao contrário da política
criminal do direito penal clássico, que se subordinava aos pressupostos dogmáticos,
transmuda-se para uma feição funcionalista, isto é, voltada para finalidades eleitas
para o combate da criminalidade e verifica-se, até mesmo, que as decisões judiciais
são tomadas de acordo com este posicionamento funcional.
Em relação à teoria do bem jurídico, A primeira delas é a proteção de bens
jurídicos que, de acordo com Winfried Hassemer é pedra de toque para o
pensamento funcionalista do Direito Penal Moderno.
Desde as suas origens, a função fundamental da teoria do bem jurídico é
negativa, ou seja, o legislador só pode criminalizar condutas que realmente
ameacem o bem jurídico. Assim, a simples ameaça ou meras violações a
convicções morais como, por exemplo, a moral sexual, não podem e não devem
justificar a criminalização de determinada conduta, donde se pode concluir que a
teoria do bem jurídico tem a dimensão de limite da punibilidade.
No entanto, o que se verifica deste Direito Penal Contemporâneo é a criação
de bens jurídicos, cujas vítimas são indeterminadas ou rarefeitas, tais como a saúde
pública, tráfico de drogas, criminalidade organizada.
Assim, cada vez mais, o legislador recorre ao uso da técnica da criação de

64
crimes de perigo abstrato, nos quais a ocorrência da descrição típica que, por si
mesma, já implica perigo, somada a um conjunto de fatores perigosos não
controláveis ex ante, já é suficiente para a consumação do delito, pouco importando
a ocorrência efetiva do dano no caso concreto.
O que até pouco tempo atrás era considerado como atos preparatórios de um
crime, por exemplo, atualmente é classificado como crime de perigo abstrato.
Os crimes de perigo concreto e abstrato, salienta-se, muito embora sejam um
pouco confusos, diga-se de passagem, não são novidade deste “novo” Direito Penal.
Já integravam a estrutura do Direito Penal, no entanto, o crime de perigo concreto
admite prova em contrário. Já os crimes de perigo abstrato são absolutamente
hipotéticos e dispensa-se a ofensividade da conduta, pois, como já dito, o perigo é
presumido e não admite prova em contrário.
O bem jurídico que no Direito Penal Clássico, repita-se, exercia uma função
delimitadora da punibilidade, transforma-se neste novo Direito Penal assumindo a
roupagem de fundamentador da punibilidade e criminalizador.
De acordo com Winfried Hassemer a utilização da técnica da criação de tipos
penais de perigo abstrato facilita a questão dos fins preventivos deste Direito Penal
do Risco, ao dispensar a prova da existência de um dano a um bem jurídico
determinado.244
É certo que a sociedade do século XXI enfrenta problemas, perigos e
incertezas nunca antes presenciados na história na humanidade, influenciando todos
os ramos do saber e isso não é diferente no campo do direito e, principalmente, no
Direito Penal. O Direito Penal Clássico, forjado no Iluminismo, ocupava-se com
outras exigências que não são as que enfrentamos hodiernamente.
O Direito Penal das sociedades pré-industriais, gestado para a proteção da
burguesia ascendente, preocupava-se tão somente com a proteção dos bens
jurídicos individuais como, por exemplo, da propriedade privada. Como já
mencionado anteriormente, o Direito Penal liberal era voltado para a pequena
criminalidade, restando impune a criminalidade dos detentores do poder econômico
e do político.
Com a crescente industrialização, que culminou em avanços tecnológicos

244
HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la
imputación en derecho penal. Tradução de Francisco Munoz Conde e Maria Del Mar Díaz Pita.
Santa Fé de Bogotá: Temis, 1999, p. 44-45.
65
nunca antes experimentados pela humanidade, aliado a extinção de fronteiras
geográficas rígidas, a eleição de moeda única, no caso da Europa e o acesso a fatos
ocorridos praticamente no momento em que aconteceram, exemplificativamente,
que marcam a globalização como uma nova era, verifica-se que novos riscos
surgiram ou, melhor dizendo, tornaram-se mais perceptíveis aos nossos sentidos,
gerando uma sensação de insegurança, medo e pavor coletivos. À vista disso, estes
novos desafios devem ser enfrentados pelo Direito Penal.
Assim, tem-se um aumento da sensação de insegurança da população que
acredita piamente que as agências estatais são incompetentes para prover-lhes
essa proteção.
O cidadão, a cada dia mais intimidado, clama por leis e penas cada vez mais
severas para satisfazer seu “desejo de tranquilidade”, exigindo do direito penal uma
modernização conforme estas novas características.
O que se observa é a flexibilização das balizas dogmáticas já há muito
assentadas, repercutindo, inclusive, na teoria do bem jurídico tornando-se o direito
penal em um direito penal de intervenção ou administrativo com fins únicos e
exclusivos de assegurar a proteção dos cidadãos, desempenhando funções
meramente simbólicas e populistas, sem, de fato, exercer a sua função primordial,
proteção dos indivíduos de uma sociedade contra o poder punitivo estatal

3 ADEQUACAO SOCIAL

66
A adequação social surge pela primeira vez em 1939. Resumidamente,
pode-se conceituá-la como a ideia de que as todas as atividades que se movem no
âmbito de funcionamento normal de uma determinada sociedade e que foram assim
estabelecidas através da história e dos costumes, não podem ser consideradas
crimes.
Hans Welzel tece criticas a então dogmática penal em que havia uma
dicotomia entre o aspecto causal, no qual se filiava Karl Binding, em que se focava
no aspecto objetivo da ação, enquanto seus aspectos subjetivos – dolo e culpa –
permaneciam na culpabilidade.245 O Autor concorda que tal reelaboração foi
necessária, contudo, ressalva que a colocação dos elementos da ação é que foi feita
de maneira equivocada.
A questão causal, afirma Hans Welzel, se converteu em um dogma causal,
embora ele pudesse ser um problema em um pequeno grupo de delitos. Na grande
maioria, reafirma a questão causal não apresentava qualquer tipo de problema ou
polêmica.
E prossegue asseverando que a questão causal poderia ser considerada
grave em um pequeno grupo de casos, porém, se tornou o ponto central do estudo
da dogmática do delito sem levar em conta a importância dos elementos objetivos e
subjetivos e, limitando a análise do crime apenas ao resultado e ao respectivo
processo causal.
Hans Welzel critica esta herança da dogmática penal, mais especificamente
o sistema neokantista, e entende que a teoria da ação deveria ser reelaborada e
estudada sob outro prisma.
Ele concorda com o raciocínio de Edmund Mezger de que as ciências
empíricas não podem ser abandonadas para uma melhor compreensão do direito
penal. A ação para ele representa vários aspectos e que fogem da estrutura
meramente causalista que até então era acolhida pelo direito penal.246
Neste sentido entendia que “Por outro lado, a ação reflete estruturas que
não podem incorporar-se de modo algum naquele mundo naturalístico quantitativo e,

245
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 15.
246
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 21
67
sem embargo, são também reais com suas relações quantitativas” (tradução
nossa).247
E prossegue afirmando que a realidade jurídica muitas vezes se confunde
com a realidade prática e que é muito mais rica do que o ser naturalístico, por tal
razão deve ser estudada como um fenômeno social.248
Para Hans Welzel, portanto, a ação seria a atividade humana final. Assim, a
tomada de decisão do autor de uma conduta repousa nas representações
valorativas que ele realiza, as quais ele denomina de lado ‘emocional’ da ação e que
se encontra no conteúdo da culpabilidade.249
O elemento da ação final na culpabilidade:

(...) se refere à decisão da vontade a favor do menor valor [desvalor] frente


ao valor mais alto. Dito em sentido jurídico estrito: a reprovação da
culpabilidade leva em conta a decisão de valores a favor da ação injusta, a
qual é levada a cabo com motivo desta decisão (tradução nossa) 250

A capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de atuar conforme este


entendimento corresponderá, portanto, a uma decisão valorativa e que está ligada à
ação. E, por isso, que o dolo não deve pertencer à culpabilidade e, sim, a ação, uma
vez que a valoração é um elemento da culpabilidade.

Em relação à antijuridicidade, Hans Welzel perquire se ela é um fato


autônomo em relação à culpabilidade. A culpabilidade, segundo ele, seria a decisão

247
No original: “Por otro lado, la acción refleja estructuras que no pueden incoroporarse de ningún
modo em aquel mundo naturalístico cuantitativo y, sin embargo, son también reales con sus
relaciones cuantitativas”. WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el
sistema de derecho penal. Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por
Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 22.
248
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 22.
249
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 33.
250
No original: “(...) se refire a la decisón de la voluntad a favor del menor valor [desvalor] frente al
valor más alto. Dicho em estricto sentido jurídico: el reproche de culpabilidade toma em cuenta la
decisión de valores a favor de la acción injusta, la cual es llevada a cabo com motivo de esta
desición”. WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho
penal. Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y
Tea Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 33.
68
feita pelo agente acerca do desvalor da ação, por consequência lógica a vontade
deve vir antes da decisão251.
Este raciocínio, nos dizeres de Hans Welzel é:

“(...) totalmente axiológico e compreensível, que na prática da existência


social aparece em geral quando fazemos juízo de valor ou pretendemos
valorar em todo momento ações, independentemente da culpabilidade ou
não culpabilidade do autor, mediante expressões como ‘justo’ou ‘injusto’
(tradução nossa)252

Este é o ponto em que Hans Welzel reputa para diferenciar antijuridicidade e


culpabilidade. Ele relembra que a antijuridicidade é uma herança dos estudos sobre
o tema feito por Rudolf von Ihering no âmbito do direito civil, cujo foco era a análise
de um resultado desaprovado.253
A antijuridicidade, porém, tal qual foi elaborada pelos dogmatas anteriores a
Hans Welzel, tal como Edmund Mezger, deixava a desejar como modo de realização
de um resultado desaprovado, o que ele considerava irrelevante.254
Ele afirmava, inclusive, que a antijuridicidade não era única, apresentando
conteúdos diferentes, ou seja, diferentes matérias de proibição, e preconizava que a
discussão sobre a sua natureza objetiva era equivocada.255
A análise da antijuridicidade, segundo Hans Welzel, só será objetiva no
sentido de valor geral; o seu objeto, que é a ação, é formada por elementos
objetivos (mundo exterior) e subjetivos256.

251
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 35.
252
No original: “(...) totalmente axiológico y comprensible, que em la práctica existência social aparece
em general cuando nosotros valoramos o intentamos valorar em todo momento acciones,
independientemente de la culpabilidade o la inculpabilidad del autor, mediante expresiones como
‘justo’ o ‘injusto’. WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de
derecho penal. Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo
Eduardo Aboso y Tea Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 36.
253
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 37.
254
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 38.
255
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 39.
256
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Juan Bustos Ramírez y
Sergio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p. 77.
69
No que diz respeito aos bens jurídicos, Hans Welzel critica a teoria que
defendia que os bens jurídicos, metaforicamente, são peças de museu e que
estariam guardados em vitrines ou resguardados de influências prejudiciais.257
Ele assevera que a realidade social é bastante distinta e que os bens
jurídicos só existem quando estão direcionados para uma função.
Assim, “vida, segurança, liberdade, propriedade, etecétera, não está
simplesmente ‘aí’, sendo que sua presença é estar em função, ou seja, provocando
consequências e sofrendo consequências na comunidade social” (tradução
nossa).258
A vida em comunidade, portanto, representa uma enorme quantidade de
realização de atividades perigosas em que há diversas lesões a bens jurídicos ou
que os colocam em perigo.
Com base em tal raciocínio, Hans Welzel entende que se o direito proibir
todas as atividades perigosas com o objetivo de evitar lesão a bens jurídicos, a vida
social e em comunidade estaria, na prática, inviabilizada, e revelar-se-ia aquela
representação dos bens jurídicos como meras peças de museu e cuja função
precípua seria apenas contemplativa.
Para o Autor:

O sentido do direito não consiste em rechaçar toda consequência lesiva de


bens jurídicos incólumes e imagináveis senão as inúmeras funções nas
quais o bem jurídico está presente, participando e sofrendo (...). Não se
proíbe basicamente cada menoscabo de bens jurídicos, senão que lhes
outorga proteção de forma permanente apenas contra formas específicas de
consequências, as quais superam a medida dos necessariamente supostos
menoscabos, nos quais se desenvolve a comunidade ordenada da vida em
funções ativas (tradução nossa)259

257
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 47-48.
258
No original: Vida, seguridade, libertad, propriedad, etecétera, no están simplesmente ‘ahi’, sino que
su presencia és estar em función, és dicir provocando consecuaencias y sufriendo consecuencias
em la comunidade social”. WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el
sistema de derecho penal. Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por
Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 48.
259
No original: “El sentido del derecho no consiste en rechazar toda consecuencia lesiva de biens
jurídicos indemnes e imaginables sino em que, de las innumerables funciones em las cuales el bien
jurídico está presente, participando y sufriendo (...). No se prohíbe basicamente cada menoscabo de
biens jurídicos, sino que lo otorga protección de forma permanente solo contra específicas formas
de consecuencias las cuales superan la medida de los necesariamente supuestos menoscabos, em
los cuales se desarrolla la ordenada comunidade de vida em funciones activas”. WELZEL, Hans.
Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal. Causalidad y
acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. Buenos
Ayres: BedeF, 2003, p. 49-50.
70
Logo, a ação final será considerada como uma causa de um resultado
quando não for considerada um fenômeno de significado social.
Para o conceito de injusto, as ações só serão consideradas como aquelas
que se movem de forma funcional da ordem histórica da vida em comunidade de um
povo, a que Hans Welzel denominou de socialmente adequadas, tendo conceituado-
as da seguinte maneira:

(...) são todas aquelas atividades nas quais a vida em comunidade se


desenvolver segundo a ordem historicamente estabelecida. A viagem
ferroviária é uma atividade socialmente adequada, como também o
conselho de realizar uma viagem ferroviária é uma ação socialmente
adequada (tradução nossa)260

Para Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria, a adequação social dá


destaque e de forma determinante ao desvalor da conduta. E, muito embora, os
tipos penais, a princípio, pareçam ser avalorados ou neutros, o fato é que o
legislador está inserido em uma determinada realidade social e esta influencia a
construção dos tipos, por tal razão dever ser levada em conta na análise da conduta
típica.261
Assim, referida teoria propunha, inicialmente, uma exclusão da tipicidade
para aqueles comportamentos funcionalmente integrados no dia-a-dia de uma
determinada comunidade, mesmo que eles fossem formalmente típicos.
E, muito embora haja críticas262 da doutrina, acerca da imprecisão de sue
260
No original: “(...) son todas aquellas actividades em las cuales la vida em comunidade se desarrolla
según el orden historicamente estabelecida. El viajar em ferrocarril és uma actividad socialmente
adecuada, también el consejo de realizar um viaje en ferrocarril és una acción socialmente
adecuada” WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho
penal. Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y
Tea Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 51.
261
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 32.
262
Neste sentido Claus Roxin afirma: “A ideia até hoje tem encontrado muito interesse, mas sua
historia está tao cheia de mudanças que o princípio da adequação social deve ser computado entre
as figuras jurídicas mais discutidas e cambiantes do direito penal. Por uma parte da literatura é
rechaçada por ser considerada para a segurança jurídica devido a indeterminação de seus
parâmetros e por ser supérfluo em relação aos métodos de interpretação reconhecidos” (ttraducao
nossa). No original: “La idea ha encontrado hasta hoy mucho intrés, pero su historia está tan llena
de câmbios que el principio de la adecuación social debe computarse entre las figuras jurídicas más
discutidas y cambiantes dele derecho penal. Por uma parte de la literatura es rechazado por
peligroso para la seguridad jurídica debido a la indeterminación de sus parâmetros y por supérfluo
em ralción com los métodos de interpretación reconocidos”. ROXIN, Claus. Observaciones sobre la
adecuación social en el derecho penal. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos
Aires, v. 7, n. 12, p. 82, 2001; Sobre o princípio da adequação social, Luís Greco afirma: “Em
primeiro lugar, considera-se a teoria da adequação social excessivamente imprecisa, uma vez que
71
conceito e consequente aplicação, o que pode ser comprovado pela indecisão de
Hans Welzel em qual estrutura do delito a adequação social pertenceria, ora no tipo
penal, ora como causa de justificação e, por fim, como princípio hermenêutico, o fato
é que ele insere a adequação social em uma perspectiva normativa, que se traduz
por uma regra de valoração, isto é, traduz a comunicação entre dois mundos: a
convergência ou equilíbrio entre as valorações ético-sociais regentes numa
comunidade num determinado momento histórico. 263

As fases da Adquacao social no Pensamento de Hans Welzel

A Adequcao social como uma característica do tipo penal

Como já discorrido acima, Hans Welzel, ao elaborar a teoria finalista da


ação, abandona o processo causalístico como mero um acontecimento para
conceber a ação como um acontecer final e que pode ser melhor entendida no crime
doloso.
Neste sentido afirma Manuel Cancio Meliá:

Deste modo, a questão do curso causal, que originariamente não era mais
que ‘uma pequena questão pontual’, se hiperatrofiou até chegar a ser o
problema dominante do lado objetivo do delito. O problema causal ‘...se
colocou no centro do sistema de do Direito penal, tendo absorvido a
totalidade do lado objetivo da ação delitiva...’ (tradução nossa)264

Por tal razão, a valoração será de uma conduta e de suas circunstâncias e


ninguém sabe ao certo o que é socialmente adequado, o que inadequado. A meu ver, o erro
fundamental desta teoria é não deixar claro se ela se trata de uma descrição ou de uma prescrição,
noutras palavras, se ela deve ser compreendida em sentido sociológico-descritivo [referindo-se
àquilo que é socialmente, àquilo que realmente se faz em determinada sociedade] ou em sentido
ético-normativo [referindo-se àquilo que é socialmente adequado, àquilo que, em determinada
sociedade, se considera correto fazer)”(itálicos no original). GRECO, Luís. Cumplicidade através
de ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 23.
ISBN 85-7147-444-3.
263
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 43.
264
No original: “Deste modo, la cuestión del curso causal, que originariamente no era más que una
pequena cuestión punutal’, se habia hipertrofiado hasta llegar a ser ele problema dominante del lado
objetivo del delito. El problema causal ‘... há sabido colocarse em el centro del sistema del Derecho
penal, há absorbido la totalidade del lado objetivo de la acción delictiva...’”. (CANCIO MELIÁ,
Manuel. La teoria de la adecuación social em Welzel. ADPCP, FASC. II, p. 699, 1993.
72
não de um resultado265.
Assentado em tais premissas, Hans Welzel entende que o bem jurídico não
pode ser apreendido como um valor isolado, isto é, imune as forcas sociais que
podem produzir ou não uma agressão.
Na verdade, o que será relativizado, nos dizeres de Maria Paula Bonifácio
Ribeiro de Faria, não são os bens jurídicos e, sim, a ação que os atinge e que
poderá ser considerada crime ou não.266
Para Hans Welzel, portanto, os bens jurídicos integram-se na vida social e
podem ser sujeitos a uma infinidade de lesões. Nesta fase de seu pensamento,
Hans Welzel aponta para a valoração geral e social da conduta267.
Neste mesmo sentido afirma Carlo Fiore:

A relevância da lesão do bem depende em vez disso, como já dito, da


estrutura intrínseca do comportamento: do valor ou do desvalor que isso
traz em si e que com isso se realiza ou não realiza. O tipo legal do ilícito
marca essencialmente a qualificação de uma ação: o intrínseco desvalor
moral e jurídico da conduta, e não o puro simples fato da lesão de um bem
(tradução nossa – grifos do autor) 268

A valoração social também se liga aos elementos descritivos do tipo, em que


eles apresentam um significado social, logo:

“(...) as ações socialmente adequadas, desde o princípio, não podem ser


típicas; o significado das expressões contidas no tipo só pode ser
averiguado em seu contexto social. A adequação social, ao eliminar do teor
literal dos tipos aqueles processos vitais que desde o ponto de vista não se
devem subsumir a eles, é que faz possível que o tipo seja a tipificação do
injusto merecedor de pena (tradução nossa)269

265
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 66.
266
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 66.
267
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 67.
268
No original: “La rilevanza della lesione del bene dipende invece, come si è già detto, dalla struttura
intrínseca del comportamento: dal valore o dal disvalores che esso reca in sè e che com esso si
realiza o non realiza. La fattispecie legale dell’illecito contrassegna essenzialmente la qualità di
un’azione: l’intrinseco disvalores morale e giuridico della condotta, e non il fato puro e símplice della
lesione di um bene” (grifos do autor). FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto
penal. Napoli: Morano, 1966, p. 112.
269
No original:”(...) las acciones socialmente adecuadas, desde um principio, no puden ser típicas; el
significado de las expresiones contenidas em el tipo sólo puede avreiguarse em su contexto social.
La adecuación social, al eliminar del tenor literal de los tipos aquellos processos vitales que desde el
73
Diante de tal raciocínio é que para Hans Welzel, em um primeiro momento, a
análise da adequação social se desenvolve e se insere nos elementos do tipo
penal270.

A Adequcao social como uma causa de exclusão da antijuridicidade

Em um segundo momento, Hans Welzel, o que pode ser comprovado na sua


obra Direito Penal – Parte Geral – de 1956, modifica a sua concepção inicial de que
a adequação social seria uma causa de exclusão do tipo penal – e passou a
entendê- la como uma causa de justificação consuetudinária.
Como bem relembra Renato de Mello Jorge Silveira tal mudança de
concepção ocorreu na análise da diferença entre tipos penais abertos e tipos penais
fechados.271
Hans Welzel afirma que os tipos penais fechados seriam aqueles em que há
uma descrição exaustiva dos pressupostos materiais da antijuridicidade. Em
contrapartida, existem os existem os tipos penais abertos que seriam aqueles cujo
conteúdo precisa ser completado e, que, por si só, não indicam a antijuridicidade.272
Para que se perquira a antijuridicidade nos tipos penais abertos não basta
apenas que haja apenas uma circunstância negativa e que esta seja o fundamento
punto de vista material no deben subsumirse bajo ellos, es la que hace posible que el tipo sea la
tipificación dek injusto merecedor de pena” (CANCIO MELIÁ, Manuel. La teoria de la adecuación
social em Welzel. ADPCP, FASC. II, p. 700, 1993.
270
Harro Otto critica o posicionamento de que a adequação social seria uma causa de excludente do
tipo: “Ao contrário, a aceitação de uma ‘causa de exclusão do tipo’ parece menos apropriada
conceitualmente. O fato de que se dê um elemento do tipo não importa, a respeito deste, uma causa
de exclusão do tipo, senão que a conduta relevante não se encontra alcançada pelos elementos do
tipo. Isto vale, por exemplo, para a coisa própria no delito de furto ou de defraudação e, da mesma
maneira, para o perigo adequado socialmente e, por ele, irrelevante tipicamente em relacao com os
tipos que – desde a perspectiva do resultado – se encontram próximos” (tradução nossa). No
original: “Em cambio, la aceptación de una ‘causa de exclusión del tipo’parece menos apropriada
conceptualmente. El hecho de que no se dé um elemento del tipo no importa, respecto de éste, uma
causa de exclusión del tipo, sino que la conducta relevante no se encuentra alcanzada por
loselementos del tipo. Esto rige, por ejemplo, para la cosa propia respecto del tipo de hurto o de
defraudación y, de la misma manera, para ele perigo adecuado socialmente y, por ello, irrelevante
tipicamente em relación com los tipos que – desde la perspectiva del resultado – se encuentran
próximos”. OTTO, Harro. La adecuación social como principio de interpretación. Revista de
derecho penal y procesal penal, Buenos Aires, n. 10, p. 1709-1710, out.. 2012. Disponível em:
http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=97522. Acesso em: 21 dez. 2022.
271
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 132.
272
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePallma Editor, 1956, p. 87.
74
da justificação.
Para legitimar seu raciocínio, ele traz o exemplo tipo penal previsto no do
§240 – delito do coação – no qual não existe antijuridicidade alguma na realização
do tipo penal em comento, pois existem várias coações na vida em comunidade e
que são completamente adequadas ao direito.273
Para que o fato do § 240 – delito do coação – seja considerado antijurídico
seria necessário que o emprego da violência ou da grave ameaça fossem utilizadas
para se obter o objeto almejado, logo, a antijuridicidade seria averiguada mediante a
realização de um juízo positivo aliado ao dever jurídico do autor.274275
No entanto, o próprio Hans Welzel ressalva que, mesmo nos tipos fechados,
a antijuridicidade não é indicada de forma ilimitada. 276 É fato que toda privação de
liberdade, a princípio, é antijurídica, exceto quando houver hipóteses legalmente
previstas que a admitem.
E prossegue afirmando que existem privações de liberdade em que não se
cogita qualquer tipo de justificação em especial, já que estão completamente
inseridas na vida social de uma comunidade e que são completamente normais ou
socialmente adequadas. É o que ocorre, por exemplo, no transporte público em que
os veículos só param para deixar ou pegar passageiros em lugares já previamente
estabelecidos.277
E conclui:

Tais ações tipicamente adequadas, que se movem completamente dentro


da margem das ordens ético-sociais da vida comum, não constituem delito,
porque nelas a adequação típica não indica a antijuridicidade. A adequação
social não deixa surgir a antijuridicidade de uma conduta socialmente
273
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePallma Editor, 1956, p. 87.
274
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePallma Editor, 1956, p. 88.
275
Em especial sobre este tópico, Renato de Mello Jorge Silveira discorre: “Isto se deu por
dificuldades por ele sentidas na intepretação da ideia de constrangimento, prevista na legislação
penal alemã de então § 240 do Código Penal alemão (StGB). Como o inci. 2º, desse dispositivo,
mencionava um pressuposto de aplicação jurídico-positivo do pensamento da adequação social,
vale dizer, uma situação de antijuridicidade quando fosse percebido uso de força ou ameaça
reprovável na coação, Welzel entendeu válida a ideia de antijuridicidade para a explicação proposta,
o que faria sentido dentro de uma concepção dos elementos negativos do tipo”. SILVEIRA, Renato
Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São Paulo: Quartier Latin,
2010, p. 133.
276
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePalma Editor, 1956, p. 89.
277
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Carlos Fontán Balestra.
Buenos Aires: Roque DePalma Editor, 1956, p. 89.
75
adequada, porque esta conduta, socialmente normal, é, também,
socialmente adequada (tradução nossa)278

Carlo Fiore em crítica a este posicionamento de Hans Welzel constata que, a


despeito da mudança de terminologia adotada – causa de justificação
consuetudinária – considera que não houve alteração substancial na sua posição
dogmática.279
O fato de a ação socialmente adequada, apesar da afirmação de
conformidade ao tipo penal, não é indício de alguma ilicitude material. E, aqui,
comprova-se que Hans Welzel posiciona-se no sentido de que a tipicidade é a ratio
cognoscendi da ilicitude280, o que no entendimento de Carlo Fiore confirma que a
adequação social representa um problema de tipicidade.
Nesse sentido:

O fato é que as ações socialmente adequadas, apesar do alegado


cumprimento do Tatbestand, na realidade não indiciarem qualquer ilícito
material, de fato, ao mesmo tempo, obtemos a confirmação de que a
adequação social constitui um problema de tipicidade já que a confirmação
só tem sentido para as avaliações posteriores da lei penal - e, portanto,
também para o julgamento da existência de uma causa justificativa - na
medida em que tem valor de indício da ilegalidade. Entretanto faz sentido,
isto é, falar de causas de justificação, na medida em que estas intervêm
para excluir a ilicitude efetivamente indicada pela cópia do facto típico.
A verdade é que qualquer causa de exclusão do valor indicativo do facto
típico também exclui a a sua alegada tipicidade (tradução nossa – grifos do
autor)281

No Brasil, Miguel Reale Júnior adota o posicionamento de que a adequação

278
No original: “Tales acciones típicamente adecuadas, que se mueven completamente dentro del
margen de los órdenes ético- sociales de la vida común, no constituyen delito, porque en ellas la
adecuación típica no indica la antijuricidad. La adeciiación social no deja surgir la antijuricidad de
una conducta típicamente adecuada, porque esta conducta, socialmente normal, es, también,
socialmente adecuada”. WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de
Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque DePallma Editor, 1956, p. 89.
279
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 226.
280
O que foi igualmente comprovado por Renato de Mello Jorge Silveira (SILVEIRA, Renato Jorge de
Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p.
134)
281
No original:” Dal fatto che la azioni socialmente adeguate, nonstante l'asserita conformità al
Tatbestand, in realtà non indiziano alcun illecito materiale, si ricava , infatti, al tempo stesso, la
conferma che l'adeguatezza sociale constiuisce un problema di tipicità poiché la confirmità ha un
significato per le successive valuazioni dele diritto penal - e quindi anche per il giudizio sullésistena
di una causa di giustificazione - solo in quanto abbia un valore di indizio dell'antigiuridicità . In tanto
ha un senso, cioè, parlare di cause di giusticazione, in quanto esse intervegano per escludere
l'antigiuridicità effetivamente indiziata dal copimento del fatto típico.
La verità è che qualsiasi causa di esclusione del valore d'indizio del fatto tipico anche la sua asserita
tipcità” (grifos do autor). FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli:
Morano, 1966, p. 226.
76
social seria uma causa excludente da antijuridicidade. Para ele, a pesquisa da
adequação social perpassa pela análise da sua significação social e de seu
conteúdo histórico-valorativo.282
E sustenta que se o injusto é o agir contrariamente a um valor positivado,
muito embora haja uma lesão a um bem jurídico, a ação não será injusta se o
agente atua com o fim de atender a valores de relevância social.283
Para justificar seu raciocínio, o Autor traz o exemplo do boxeador que lesa a
integridade física de seu oponente e o faz porque quer vencer a luta e não porque
tem um menoscabo à integridade corporal deste como valor.
Na verdade, ele está atuando em uma atividade esportiva que é fomentada
pela sociedade em geral, havendo uma coincidência de valores que o fazem
competir e os da comunidade.284
Para Miguel Reale Júnior as ações socialmente adequadas são tão lícitas
quanto as causas de justificação previstas na Parte Geral do nosso Código Penal,
tais como a legitima defesa a titulo de exemplo.285
Ele defende que a licitude de uma socialmente adequada em cotejo com a
legitima defesa, exemplificativamente, é mais perceptível e sensível aos olhos de
quem a presencia, pois é mais do que evidente que não é injusto um cirurgião
lesionar um paciente em uma cirurgia curativa.

A Adequação Social como critério de interpretação literal do tipo legal

Na terceira fase do seu pensamento, Hans Welzel volta a entender a


adequação social como uma causa excludente da tipicidade, mas no viés de sua
interpretação literal.
Maria Paula Ribeiro de Faria afirma que nesta etapa, Hans Welzel não
abandonou a ideia de valoração global da conduta, no entanto, essa “globalidade”
será analisada de como compartimentado naquilo que o legislador nomeou como

282
REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. 2ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 58
283
REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. 2ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 60
284
REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. 2ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 60
285
REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. 2ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 60

77
crime.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria citando Jorge Figueiredo Dias
assevera: “(...) o tipo é expressão de uma ilicitude que o precede, e que terá que ser
reconstruída pelo julgador, atendendo ao problema, e as exigências que este coloca,
em termos de norma, e de sistema”.286
Logo, conclui a Autora que a adequação social terá função delimitadora do
tipo penal, afastando as causas de justificação, cabendo ao juiz a tarefa
interpretativa de considerar o que merece importância ou não para alcançar a
matéria de proibição.287288

3.1 Conceito de ação

O conceito de adequação social está intimamente ligado ao conceito de


ação. Para tanto será necessário fazer uma breve digressão sobre a mudança feita
por Hans Welzel em relação ao conceito de ação, que passa a tratá-la penalmente
relevante, ou seja, aquela que tem uma finalidade como o elemento estruturante de
sua construção finalista.
Para ele “a ação humana é um exercício de uma atividade final”. Rompe
com o dogma causal e elabora a ideia de que o homem, consciente que o seu agir
está direcionado para um final, tem a capacidade de prever as consequências de
sua conduta, designar-lhe fins diversos e dirigir e tal atividade. Desta maneira,
formula a frase que resume perfeitamente o conceito de finalidade de que esta é
vigente, enquanto a causalidade é cega.
Para Hans Welzel a vontade, portanto, será na ação finalista o ponto fulcral

286
FIGUEIREDO DIAS apud FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da
conduta no direito penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto:
Publicações Universidade Católica, 2005, p. 84
287
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 84.
288
Carlo Fiore esclarece que: “O agir socialmente adequado é irrelevante a constituir o Tatbestand,
porque na realidade isso faz parte dos casos que, através de uma interpretação restritica do
Tatbestand [do ponto de vista da adequação social], devem ser excluídos do âmbito de
incriminação”. (tradução nossa) No original: “L’agire socialmente adeguato è irrelevante a costituire il
tatbestand, perchè in realtà esso fa parte dei casi che, attraverso uma interpretazione restirttiva del
Tatbestand legale [dal punto di vista dell ‘adeguatezza sociale], devono essere esclusi dall’ambito
dell’incriminazione” FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli:
Morano, 1966, p. 228-229.
78
do acontecer causal. É ela que configura o acontecer real, pertencendo, portanto, à
ação.289 Afirma que não há ações finalistas em si mas que elas sempre têm relação
com as consequências propostas pela vontade de concreção.
Assim é indiferente se estas consequências refletem o objeto desejado ou se
são os meios empregados ou até mesmo meras consequências secundárias. Ele
exemplifica que uma ação finalista de um homicídio não existe somente quando
ocorre a morte, mas também quando se tem em vista um objetivo ulterior como, por
exemplo, o recebimento de uma herança.
Esta construção welzeliana rompe com o conceito de ação neokantista,
influenciada que fora pelas correntes mecanicistas do fim do século XIX 290 291
e que
separava a vontade de seu conteúdo, construindo, portanto, uma vontade sem
finalidade.292
Segundo a teoria causal, a ação é um processo puramente causal, que se
originou da vontade no mundo exterior (efeito da vontade), sem levar em conta o seu
conteúdo, qual seja, sem que fosse considerado se o agente poderia prever o seu
atuar.293
Para este conceito, como já dito, o conteúdo da vontade (dolo) é excluído da
ação, residindo na culpabilidade, existindo um liame psicológico do autor com o
resultado.
Portanto, diante destas incongruências oriundas da teoria causal da ação,
Hans Welzel construiu a sua teoria finalista da ação, cuja previsão era respeitar os
dados da realidade em total rechaço ao conceito causal, que não levava em conta a
representação feita pelo agente.
Eugenio Raúl Zaffaroni afirma que o conceito de ação de Hans Welzel se
baseia na ética aristotélica e, por tal razão, o desvalor que deve ser feito sobre uma
ação não pode prescindir de sua finalidade.
289
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 32.
290
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 39.
291
Neste mesmo sentido Juarez Tavares afirma: “A referência ao movimento corpóreo está de acordo
com as postulações do positivismo e corresponde à evolução das ciências naturais, principalmente
da mecânica dedicadas a servirem de embasamento teórico para o processo de produção de bens
de consumo. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch,
2019, p. 141.
292
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 403
293
. WELZEL, Hans. Teoría de la acción finalista. Buenos Aires: Astrea, 1951, p. 25
79
Logo, para o finalismo não seria admissível um conceito jurídico penal de
ação sem que fosse levados em conta os dados ônticos (realidade)
E finaliza:

Uma ação com vontade sem finalidade no plano jurídico é uma ação sem
vontade no plano ôntico (porque vontade sem finalidade não existe); e uma
ação sem vontade não é uma ação senão um processo causal, com o qual
o neokantismo havia havia apelado para um conceito valorativo da ação
para fazer que o desvalor do injusto não recaísse sobre uma acao senão
sobre um processo causal.294 (tradução nossa)

Ao dar importância à ação na formulação da sua teoria, Hans Welzel


conseguiu explicar os delitos culposos. Até então, para estes a teoria causal
entendia que o resultado era desvalorado. Para ele, tal qual nos delitos dolosos, o
elemento decisivo no injusto nos delitos culposos, será da mesma forma o desvalor
da ação e não o do resultado, que será apenas um elemento adicional do injusto.295
Outra consequência importante do finalismo foi a transferência do dolo para o
tipo penal.296 Este conceito de dolo não se confunde com o dolus malus , aquele que
compreende o conhecimento da antijuridicidade e, sim, um dolo natural e sem
valoração.
À conduta que será socialmente significativa pouco importa se ela for dolosa
ou culposa. No entanto, no início dos estudos de Hans Welzel a ação socialmente
significativa era dolosa. E vai além a valoração da conduta, de suas circunstâncias
se sobrepõe à consideração ao objeto de tutela da norma.
Nesta fase, há a valoração global e social da conduta, a análise subjetiva ou
294
No original: “Una acción con voluntad sin finalidad en el plano jurídico es una acción sin voluntad
en el plano óntico (porque voluntad sin finalidad no existe); y una acción sin voluntad no es una
acción sino un proceso causal, con lo cual el neokantismo habría apelado a un concepto valorativo de
acción para hacer que el desvalor del injusto no recayera sobre una acción, sino sobre un proceso
causal”. ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 406.
295
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 45
296
Neste sentido Giovanni Fiadanca e Enzo Musco afirmam que “Somente no terreno do fato do
crime comissivo doloso - que por ora constitui o modelo do delito penal objeto de nossa análise - é a
ação sempre caracterizada pela participação efetiva da consciência e da vontade: aliás, neste
sentido, os pressupostos da existência de uma 'ação consciente e voluntária acaba sendo absorvida
por aquelas normativamente exigidas para a configuração do' dolo '; ação consciente e voluntária e
ação 'dolosa', portanto, acabam coincidindo”. (tradução nossa). No original: “Soltanto sul terreno del
reato comissivo dolos - che costituisce per ora il modello di illecito penale oggeto della nostra analisi -
l'azione è sempre caraterizzata dalla partecipazione effetiva della coscienza e volontà: anzi, im questo
senso, i pressupposti dell'esistenza di una'azione cosciente e volontaria finiscono col rimanere
assorbiti da quelli normativamente richiesti per la configuazione del 'dolo'; azione cosciente e
volontaria'e azione 'dolosa' finiscono, dunque, col coincidere”. FIADANCA, Giovanni; MUSCO, Enzo.
2. ed. Diritto penale: parte generale. Bologna: Zanichelli, 1989, p. 167
80
final será feita posteriormente, quando ela se mostrar socialmente inadequada.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria afirma que a valoração social
também alcança os elementos descritivos do tipo e que estes são portadores de um
significado social cuja definição se dá com outros elementos do tipo. No
entendimento da Autora, quase todos os elementos do fato típico são normativos.297
Com base neste raciocínio, o intérprete apreende que, em um primeiro
momento, a adequação social faz parte do tipo penal, mas, ao mesmo tempo, ela
revela características das causas de justificação, consubstanciando uma ligação
entre tipo e antijuridicidade.

3.2 A localização da adequação social na teoria do delito

3.2.1 A adequação social como um problema do tipo

Como já dito, a adequação social com Hans Welzel, em um primeiro


momento, seria um problema do tipo penal e que visava a excluir dele todas as
condutas que “pela sua conformidade social não são capazes de preencher seus
requisitos formais, permitindo-se assim, uma abertura hermenêutica do sistema.298.

3.2.1.1 Hans Joachim Hirsch

Hans Joachim Hirsch, discípulo e sucessor de Hans Welzel, em artigo


traduzido sob o título Adecuación social y teoria del injusto tece crítica à discussão
sobre as condutas socialmente adequadas.
Hans Joachim Hirsch299 afirma que quando Hans Welzel muda o seu
entendimento inicial de que a adequação social seria um problema do tipo,
transferindo a sua análise para o âmbito da antijuridicidade, causa um conflito com o
tipo penal.

297
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 140.
298
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 140.
299
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 12
81
Hans Welzel não adota a teoria dos elementos negativos do tipo. Ele

inclusive critica a construção de Edmund Mezger que une a tipicidade à


antijuridicidade, cujo entendimento que os elementos do tipo e os elementos da
antijuridicidade são as mesmas coisas e as causas de justificação nada mais são do
que circunstancias negativas do tipo300.
Em um primeiro momento, Hans Joachim Hirsch 301 informa que é necessário
reduzir a aplicação da adequação social em várias hipóteses e que ele próprio
reputa como causa de justificação, devendo ser aplicada apenas no Parágrafo 240
StGB considerando a adequação social como critério restritivo de interpretação dos
elementos do fato pertencentes ao tipo com exclusão das causas justificantes.
Traz a crítica feita por Friderich Schaffstein a este seu posicionamento.
Friederich Schaffstein entende que é impossível entender dogmaticamente a
adequação social, enquanto não se reconheça que as causas de justificação fazem
parte do tipo penal como verdadeiros elementos negativos.302
A adequação social seria uma ligação entre o tipo – e aqui adota-se o seu
conceito restritivo – e as causas de justificação “embaçariam” os limites precisos
entre eles. Logo, a adequação social ora atuaria como exclusão do tipo, ora como
exclusão da antijuridicidade.
E prossegue citando Friederich Schaffstein de que não há como perceber a
existência de uma diferença material entre o fato atípico e com o comportamento
justificado, ou melhor, entre a antijuridicidade, e que tal incongruência só pode ser
resolvida no âmbito da teoria dos elementos negativos do tipo, uma vez que ela não
diferencia materialmente a falta de tipicidade e de antijuridicidade.
Hans Joachim Hirsch303 critica este posicionamento de Friedrich Schaffstein
e afirma que, desde que a teoria dos elementos negativos do tipo foi elaborada, os
seus estudiosos partem da premissa que não é necessário para a sua ocorrência o

300
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 69.
301
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 12-13
302
SCHAFFSTEIN apud HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH,
Hans Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires:
Rubinzal-Culzoni, 2002. p. 13.
303
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 14.
82
conhecimento da ausência de todos os pressupostos exigidos para uma causa de
justificação. Basta a ausência de representação e a suposição errônea dos
pressupostos de uma causa de justificação que já seriam suficientes para excluir o
dolo.
Segundo o autor a questão acerca dos elementos do tipo fundamentadores
do injusto penal e os pressupostos de uma causa de justificação dizem respeito a
razões legislativas e não materiais. 304
A discussão dogmática da adequação social não perpassa pela teoria dos
elementos negativos do tipo, tampouco pela doutrina tradicional da tipicidade. Ela
repousa sobre a questão do tipo fundamentador do injusto e deve-se distingui-la dos
pressupostos das justificantes. 305
Para explicar as hipóteses em que a adequação social na teoria dos
elementos negativos do tipo ora se comporta como verdadeira causa de exclusão da
antijuridicidade, ora quando está no tipo penal, Hans Joachim Hirsch traz os
ensinamentos de Ulrich Klug, quando este trata da questão do erro.
A teoria dos elementos negativos do tipo não diferencia materialmente a
ausência de tipicidade e de antijuridicidade, como já dito. Por tal razão à adequação
social é atribuído outro conteúdo, qual seja, de que “[...] são socialmente adequadas
todas as modalidades de conduta que conforme o pensamento [ético-social] geral e
pré-jurídico gerado historicamente estão permitidos”306.
Assim, da mesma maneira e forma excepcional, podem surgir pressupostos
de justificação nos quais pode se inserir a adequação social como uma justificante,
incluindo-se neste conceito todos os pressupostos desde o ponto de vista ético-
social de uma conduta que, a princípio, não está de acordo com a ordem normal da
vida, mas excecionalmente é permitida.
Partindo de tal premissa, a adequação social passa a ser tratada como uma
causa geral de exclusão do injusto fundada em aspectos éticos sociais
Tal posicionamento, segundo Hans Joachim Hirsch307, foi o que inspirou
304
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 15.
305
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 16.
306
307
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
83
Ulrich Klug a diferenciar entre adequação social excludente do tipo e adequação
social justificante. Para Ulrich Klug, “congruência social” seria toda atividade que se
mantém no marco da ordem normal.308 309
Hans Joachim Hirsch, de início, critica a diferenciação feita por Ulrich Klug.
Depois aponta que a adequação social justificante elaborada por ele poderia se
inserir em outros institutos jurídicos, tais como a ponderação de bens, no direito
consuetudinário e nas causas de justificação legais. 310 Conclui311 que o conceito de
adequação social criado por Hans Welzel, a despeito dos entendimentos de
Friedrich Schaffstein e Ulrich Klug, constitui um problema de tipicidade.
Após esta digressão, o autor traz várias hipóteses, dentre elas, limitação de
liberdade no tráfego moderno, intervenção médico-cirurgicas curativas; homicídios e
lesões de inimigos e guerra; interrupção de gravidez em caso de risco de vida da
gestante e se existe a necessidade da aplicação da adequação social. 312
E, vários casos, Hans Joachim Hirsch afirma que já existe a falta de
elementos do tipo penal e que excluiriam a tipicidade sem a necessidade de se
recorrer à adequação social.313
Entende que a teoria da adequação social é totalmente dispensável no
estado atual de desenvolvimento da dogmática jurídico penal, podendo ser utilizados
no lugar da adequação social de conceitos desenvolvidos mais recentemente, como

Culzoni, 2002, p. 19
308
KLUG apud HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, p. 19
309
Neste sentido Renato Jorge de Mello Silveira: “Klug, utilizando-se dos preceitos da teoria dos
elementos negativos do tipo, acabou por cindir a ideia de adequação excludente do tipo e uma
adequação justificante. Ao renomear conceitos, tem em sua congruência social o que Welzel
denominou de socialmente adequado. Contrariamente à tese basilar welzeliana entendeu que a
adequação social tida como causa de justificação, abarcaria as noções de permissividade ético-
social excepcional, servindo unicamente , para elidir os estritos requerimentos da teoria da
ponderação de bens do Direito Consuetudinário. SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos
da adequação social em direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 137-138.
310
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 19.
311
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 20.
312
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 20.
313
HIRSCH, Hans Joachim. Adecuación social y teoría del injusto. In: HIRSCH, Hans
Joachim. Derecho penal: obras completas : libro homenaje - Tomo III. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni, 2002, p. 20
84
na hipótese de autoria do domínio de fato.314

3.3.1 A adequação social como interpretação do tipo penal

A Evolução da Construção do Conceito de Tipo Penal

A palavra tipicidade tem origem no vocábulo alemão Tatbestand, que se


formou da junção de duas outras palavras: i) Tat – significado e ii) Bestand –
existência. O seu significado, portanto, pode ser traduzido como um “ato que existiu
no tempo e no espaço”.315
Prosseguindo na explicação das origens do termo Tatbestand, Cláudio
Brandão informa que a primeira vez que este vocábulo apareceu foi na Ordenança
Criminal da Prússia (1805), mas como tradução da expressão latina corpus delicti,
isto é, como a reunião de circunstância que fazem com que provavelmente um crime
ocorreu, cujo sentido, nos seus primórdios, era eminentemente probatório. 316
Apenas em 1871, com a elaboração de um Código Penal para toda a
Alemanha que a palavra Tatbestand aparece associada ao conceito de crime,
dissociando-o do seu conceito processual. Até então, o delito era definido como
ação antijurídica e culpável e ameaçada com uma pena.
Nos dizeres de Claus Roxin, a tipicidade se escondia na expressão
ameaçada com uma pena. No entanto, tal afirmação é bastante ampla, dificultando
tanto ao cidadão, quanto ao intérprete, discernir sobre qual ação é ameaçada com
uma pena.317
Imputa-se a Ernst von Beling não a criação do termo Tatbestand, mas sim a
inserção dele na dogmática jurídica e, como, decorrência lógica do princípio da
legalidade, como a relação de adequação entre uma conduta e um fato descrito na

314
Conclusao a que Renato Jorge de Melo Silveira também reproduz. SILVEIRA, Renato Jorge de
Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p.
73.
315
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 39.
316
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 41.
317
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 277. t. 1.
85
lei penal, conhecendo-se, a partir daí, a matéria de proibição.
Hans Heirinch Jescheck e Thomas Weigend afirmam que

Segundo Beling, o tipo é a síntese dos elementos dos quais deriva os quais
o crime é tipicamente tratado: “A tipicidade ou adequação do tipo como
qualidade da ação torna-se assim um elemento conceitual do crime” “”.
Desta forma, o tipo alcançou uma posição dominante na estrutura do crime
como ponto de referência para o julgamento da ilicitude e da culpa,
tornando-se o mais importante suporte da função de garantia do Direito
Penal. E assim, no início deste século, Beling formulou o conceito de crime
plenamente desenvolvido nos seguintes termos: “O crime é a ação típica,
ilícita e culposa sujeita a uma liminar adequada e sujeita às condições deste
(tradução nossa)318
A tipicidade, além da função descritiva, revela outra função de grande
importância que será a individualização das condutas humanas relevantes. Entre
umas principais funções do tipo merece destaque a função de garantia, que pode
ser resumida, na seguinte expressão: “somente os comportamentos a eles
subsumísseis podem ser penalmente sancionados”.319
E não basta apenas isso. O intérprete deve analisar qual o elemento subjetivo
(dolo ou culpa) a aquele fato, bem como se este fato lesa um bem jurídico específico
Como se depreende, portanto, a relação entre bem jurídico e tipicidade é de
grande importância, pois será ele que dará o conteúdo material da tipicidade.
Neste sentido Giovanni Fiadanca e Enzo Musco afirmam que

Como a rigor se observou, um facto que não é capaz de ofender o bem


titulado da norma "é apenas uma aparência conforme ou tipo de crime: na
realidade, falta esta conformidade. Daí o contraste entre tipicidade e
ofensividade é ilusório. Tem o efeito deletério de empurrar para buscar uma
esfera de ofensiva fora da única esfera possível, que é constituída pelo
significado da incriminação (tradução nossa)320

318
De acuerdo con Beling el tipo es la síntesis de los elementos de los que se deriva qué delito es
tratado típicamente: "La tipicidad o adecuación al tipo como cualidad de la acción se conviette así
en un elemento conceptual del delito" "". De este modo, el tipo alcanzó una posi- ción dominante en
la estructuta del delito como punto de referencia para el juicio de antijurici- dad y culpabilidad,
llegándose a configurar coino el soporte más importante de la función de garantía de la Ley penal. Y
así, a principios de este siglo Beling fotmulaba el concepto de delito completamente desarrollado en
los siguientes términos: "El delito es la acción típica, antijurídica y culpable sometida a una
conminación penal adecuada y sujeta a las condiciones de ést. JESCHECK, Hans Heirinch;
WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal: parte general. Tradução de Miguel Olmedo
Cardenete. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 216.
319
O conteúdo do princípio da legalidade não se esgota apenas na função de garantia, ao exigir que a
determinação de condutas que sejam consideradas puníveis com a consequente imposição de
penas, também apresenta a função de frenagem frente aos abusos do executivo e do judicial.
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p.
149.
320
“Come è stato esattamente osservato, un fatto , il quale non sia capace di offedenre il bene titelato
della norma, "é solo un apparenza conforme ao tipo de reato: in realtà, tale conformità manca.
Perciò la contrapposizione tra tipicità e offensività è illusoria. Essa ha l'effeto deleterio di spingere a
86
Ou, nos dizeres de Cláudio Brandão que a construção da tipicidade, fruto do
princípio da legalidade, nos revela a sua importância na concepção do método da
dogmática penal, pois, além de se inter-relacionar com os outros elementos do
conceito crime, através dela, teremos conhecimento da matéria de proibição. Logo,
sem que haja demonstração de lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico,
não há que se falar em configuração de violação ao tipo penal. 321
Por sua vez, o tipo penal não se confunde com a tipicidade. Por tipo penal
entende-se um modelo abstrato de comportamento proibido, podendo ser definido
como uma descrição esquemática de uma classe de condutas que possuem
características danosas ou ético-sociais reprovadas, a ponto de serem reputadas
intoleráveis pela ordem jurídica.322
Como já dito, o tipo penal tal qual conhecemos hoje foi obra da construção
dogmática levada a efeito por Ernst von Beling. O tipo é objetivo, avalorado e neutro.
Objetivo, porque os elementos subjetivos (dolo e culpa) se encontram na
culpabilidade. Avalorado, porque a valoração é realizada na antijuridicidade.323
Como decorrência do dogma causal que imperava neste período, o resultado
também faz parte do tipo e, por consequência lógica de todos os delitos, sendo
inconcebível para o sistema causalista a existência de crimes formais ou aqueles em
que não há modificação no mundo exterior.324

ricercare una sfera di offensività al di fuori dell'unico ambito possibile, che è constituito dal significato
della incriminazione”. FIADANCA, Giovanni; MUSCO, Enzo. 2. ed. Diritto penale: parte generale.
Bologna: Zanichelli, 989, p. 142.
321
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 45.
322
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 127.
323
Neste sentido Hans Heirinch Jescheck e Thomas Weigend: “O lado objetivo encontrava sua
expressão nos elementos da tipicidade e antijuridicidade enquanto o subjetivo se dirige na
culpabilidade. De acordo com ele [Beling], a tipicidade foi compreendida como uma descrição
puramente externa do fato da ação sem predicado algum [por exemplo, a morte de uma pessoa na
qual o exame da antijuridicidade pode mostrar que esta constitui uma ação de guerra e resulta
assim justificada]. A valoração deste sucesso deve ter lugar no campo da antijuridicidade e sempre
desde um ponto de vista puramente objetivo”. (tradução nossa). No original: “El lado objetivo
encontraba su expresión em los elementos de la tipicidad y la antijuridicidade mientras que el
subjetivo lo hacia em la culpabilidade. De acordo com ello la tipicidade fue compreendida como uma
descripción puramente externa del hecho de la acción sin predicado valorativo alguno [por ejemplo,
la muerte de una persona en la que el examen de la antijuridicidade pued mostrar que ésta
constituy una acción de guerra y resulta así justificada. Ha valoración jurídica de este suceso debia
tener lugar. JESCHECK, Hans Heirinch; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal: parte
general. Tradução de Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 217.
324
Franz Von Liszt de forma expressa afirma que: “[...] não há crime sem nenhuma mudança operada
no mundo exterior, sem um resultado”. VON LISZT. Franz. Tratado de Direito Penal Alemão.
87
Hans Welzel critica a interpretação do tipo no que diz respeito à ausência de
valoração. Para ele, o Direito Penal, ao escolher as condutas antijurídicas ou não, já
realiza uma valoração, o que comprova que o pensamento de Ernst von Beling
sobre a neutralidade de valoração do tipo é equivocada. No entanto, concorda com o
seu raciocínio de que a tipicidade é um indício da antijuridicidade (ratio
cognoscendi), assunto que será abordado mais adiante.
Diante desses defeitos, podemos assim dizer, a construção dogmática do
sistema feito por Ernst von Beling passou por uma profunda mudança.
Em relação ao tipo penal mais pormenorizadamente, com a descoberta dos
elementos normativos do tipo por Max Ernst Mayer e Edmund Mezger, por exemplo,
desconstruiu-se a ideia sobre a objetividade e neutralidade do tipo penal.
Por elementos normativos, entende-se aqueles elementos em que é
necessário que seja realizado um juízo de valor seja pelo intérprete, seja pelo
legislador325.
Além desta mudança, houve outra de grande importância. Até então, o tipo
penal era considerado como um indício da ilicitude, entendimento que foi elaborado
por Max Ernst Mayer.
Nos dizeres de Cláudio Brandão

Mayer reconhece a importância de se vincular a existência do crime à


existência prévia da tipicidade, porém defende que ela não é uma mera
descrição. Isso se dá porque a tipicidade tem o condão de ser indício dos
demais elementos do crime, especialmente da antijuridicidade.326

Na esteira de Cláudio Brandão, há um giro no estudo da ação feita pelo


autor alemão. Para ele, a ação deve ser estudada no âmbito da tipicidade e, por tal
razão, esta deve ser o primeiro elemento a ser estudado no conceito de crime,
sendo da mesma forma considerada como pressuposto da pena. A tipicidade,
portanto, exercerá uma função indiciária em relação à antijuridicidade (ratio

Tradução José Hygino Duarte Pereira . Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. Editores, tomo 1, 1899, p.
193.

325
Neste sentido, MEZGER: “Aqui, não pode o juiz ater-se à simples descrição da lei, senão deve
realizar um juízo ulterior relacionado com a situação do fato. (tradução nossa).No original: “Aqui, no
pude el juez atener-se a la simple descripción que hace la ley, sino que debe realizar um juicio ulterior
relacionado con la situación de hecho”. MEZGER, Edmund. Derecho Penal – Libro de Estudio –
Parte General. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina S. R. L. 1958, p. 147.
326
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 90.
88
cognoscendi).327
Com Edmund Mezger, no entanto, outra mudança interpretativa no tipo
penal foi levada a efeito. O tipo que até então era o elemento identificador da
antijuridicidade (ratio cognoscendi), passa a ser seu elemento (ratio essendi), sendo
o próprio desvalor da antijuridicidade.328
O tipo, portanto, passa a ser um tipo de injusto, ou nos dizeres de Francisco
de Assis Toledo, “[...] infiltrado pela ilicitude, que lhe dá o verdadeiro conteúdo
material”.329
Este raciocínio de Edmund Mezger está intimamente ligado com a teoria dos
elementos negativos do tipo, que foi elaborada, a princípio, para fundamentar o
tratamento do erro de proibição330.
A teoria dos elementos do tipo tem como ponto de partida o raciocínio de
que os pressupostos de uma causa de justificação integram o tipo como verdadeiros
elementos negativos, configurando o tipo como um tipo total de injusto.
Com o fim da 2ª Guerra Mundial e com as constatações do prejuízo que o
Neokantismo trouxe para o Direito Penal, há uma profunda evolução na teoria do
delito, adotando-se a teoria finalista, elaborada por Hans Welzel e que será
abordada logo abaixo.
O tipo na doutrina finalista elaborada por Hans Welzel tem como conteúdo
as normas proibitivas, tais como “não matar”, “não furtar”, etc. Tanto o tipo, como a
norma proibitiva, segundo ele, fazem parte do mundo do dever-ser.
O tipo será, portanto, a descrição da conduta proibida, do conteúdo da
matéria da norma e nada mais do que uma figura puramente conceitual.331
Como pode ser visto da própria definição feita pelo próprio Hans Welzel do
que seja tipo, percebe-se uma importância da ação como um de seus elementos e,
como já mencionado neste trabalho, a ação humana é um exercício da atividade

327
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 91
328
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 95.
329
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 124.
330
Ver; TAVARES, Juarez. Teorias do delito (variações e tendências). São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1980, p. 44; TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.
ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 136.
331
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Juan Bustos Ramírez y
Sergio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p.31
89
final.332
A finalidade, portanto, será a “espinha dorsal da ação finalista” 333 e a vontade
será o fator de direção que configura o acontecer causal e o converte em uma ação
dirigida finalisticamente e que compreenderá a proposição do fim, a escolha dos
meios necessários e a representação dos efeitos colaterais.
De acordo com esta variação dos meios causais e os fins projetados,
teremos a diferenciação dos delitos em dolosos, culposos e omissivos, sendo que
para estes dois últimos, Hans Welzel afirma que necessitam de um complemento
feito pelo julgador (tipos abertos).334
No entanto, o que revolucionou o estudo do Direito Penal com o advento da
teoria finalista foi o deslocamento dos elementos subjetivos (dolo e culpa), que até
então se encontravam na culpabilidade, para o tipo penal.
Até então, a doutrina causalista da ação entendia que esta era um mero
acontecer causal, como já dito, despido de qualquer elemento anímico ligado ao
agente, ou seja, era uma mera modificação do mundo exterior.
Contudo, informa Hans Welzel335 336
que com a descoberta dos elementos
subjetivos do injusto, houve uma ruptura na dicotomia objetivo-subjetivo, pois se
verificou que em muitos delitos era difícil a sua explicação de modo puramente
objetivo como, por exemplo, no “crime de furto” ou no “crime de apropriação” em que
é necessário o ânimo de lucro no primeiro ou de apropriar-se no segundo.
Na verdade, a comprovação de que o raciocínio de Hans Welzel estava
correto ocorreu na análise da tentativa.
Hans Welzel afirma que se analisarmos apenas objetivamente o delito
tentado sem levar em conta a real intenção do agente, jamais saberemos o crime
que foi praticado. Se alguém dispara uma arma de fogo, não saberemos se será
uma tentativa de homicídio, tentativa de lesão corporal ou um mero disparo de arma
de fogo.337

332
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 31.
333
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 32.
334
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 155.
335
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Juan Bustos Ramírez y
Sergio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p. 98-99.
336
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 84-85.
337
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
90
Apenas saberemos a vontade, a real intenção do agente através da
materialização do dolo; logo, sem termos ciência deste jamais teremos como saber
qual a tipicidade daquele ato.
Assim, se o dolo é elemento do injusto na tentativa, com mais razão deve
fazer parte do tipo nos delitos consumados. Para Hans Welzel, por consequência,
“[...] chega-se à conclusão de que o dolo não é apenas um elemento da
culpabilidade, mas sim um elemento constitutivo do tipo.”338 e tal raciocínio deve-se
estender para todos os delitos.
Por sua vez, em relação aos delitos culposos, a ação típica não está definida
pela lei, sendo necessária que a sua complementação seja efetivada pelo juiz, que
deverá proceder a sua análise no ponto central que rege estes delitos, qual seja, a
inobservância do dever de cuidado.
Como bem asseverado por Francisco de Assis Toledo339 em relação aos
crimes culposos, a finalidade da ação humana, ainda que de forma diferente
desempenha papel fundamental e prossegue afirmando que “de qualquer ângulo
que se examine a questão, topamos com a ‘finalidade’ da ação humana”.340
Hans Welzel afirma que a produção de um resultado só terá relevância se ele
foi causado por uma ação que não corresponda ao cuidado devido, pois, do
contrário, não pertencerão ao tipo dos delitos culposos, restando evidenciado,
portanto, um desvalor da ação.
Por fim, o finalismo filia-se à corrente da ratio cognoscendi que entende que a
tipicidade é um indício da antijuridicidade, contudo, vale ressaltar que tipicidade e
antijuridicidade não são idênticas.341
A realização do tipo é uma infração da norma proibitiva, enquanto a
antijuridicidade é a contrariedade de uma conduta em relação a todo ordenamento
jurídico, podendo em algumas hipóteses, existir normas permissivas que afastam a
antijuridicidade da conduta, mas não a sua tipicidade.342

ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 85.
338
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 86.
339
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 101.
340
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 104-105.
341
Ver WELZEL qual?? wlezel
342
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 77..
91
Por tal razão, Hans Welzel aponta a incongruência a doutrina dos elementos
negativos do tipo, que entende que uma causa de justificação exclui a tipicidade
dando o clássico exemplo de que uma morte de um ser humano equivale a de uma
mosca, pois de forma absurda não reconhece os preceitos permissivos.343

3.4 Teoria social da ação

No funcionalismo será abordado alguns autores que tratam sobre o assunto.


Iniciar-se-á por Claus Roxin. Para ele, o tipo penal cumpre três funções: uma
sistemática, uma dogmática e uma política-criminal.
A função sistemática compreende o conjunto de elementos que nos permitem
saber que determinada conduta será ameaçada com uma pena.
Por sua vez, a função político-criminal se relaciona diretamente com o
princípio da legalidade, mais especificamente com seu corolário nullum crimen sine
lege e que veta o direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato. 344
Por fim, a função dogmática consiste em descrever em quais hipóteses
haverá exclusão do dolo.
Para Claus Roxin,345 a imputação objetiva ao tipo será considerada um
problema da parte geral, quando o tipo requer um resultado no mundo exterior
separado no tempo e espaço da conduta do autor.
Assim, nos delitos de resultado, prossegue afirmando que o intérprete deverá
analisar se o dano causado ou não a uma determinada pessoa ou objeto, é obra
daquele sujeito ativo. E conclui que a imputação objetiva é impossível de ser
aplicada nos delitos comissivos se o sujeito ativo não tenha causado o resultado.346
Por isso, o nexo causal recebe tanta importância por Claus Roxin no
desenvolvimento da sua teoria da imputação objetiva, pois “[...] o primeiro
343
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 105.
344
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 277.
345
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 345
346
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 345
92
pressuposto da realização do tipo é sempre que o autor tenha causado o resultado”
(tradução nossa).347
O autor demonstra que a teoria da equivalência é utilizada tanto pela doutrina
como pela jurisprudência para comprovar a relação de causalidade. Assim, será
considerada válida toda causa, toda condição sem a qual haja produzido o
resultado.
Com base nessa fórmula, haverá a determinação de quem será o
responsável pela pratica de um determinado crime. No entanto, referida teoria
apresenta seus problemas como o regresso ao infinito e que são apresentados pelos
seus críticos.
Se, por exemplo, A mata B com um revólver, como base nesta fórmula, são
causas deste homicídio o fabricante da arma de fogo, os pais de quem cometeu o
delito, o fabricante da cama em que eles o conceberam e por aí vai.
Afirma Claus Roxin que embora tenha prevalecido sobre outras teorias
causais (por exemplo, a que entendia que seria causa em sentido jurídico a da
condição mais eficaz ou a da condição promotora), não significa que ela é mais
correta. No entanto, é a que resolve mais adequadamente a relação entre causa e
resultado levando-se em conta não a totalidade de condições, mas especificamente
o liame entre um determinado ato com o resultado.348
O autor reconhece que o nexo causal na teoria dos equivalentes em relação
aos delitos comissivos é uma condição necessária, embora não seja suficiente e
única para a imputação do tipo objetivo e, em muitas hipóteses, pode induzir aos
erros.349
Outra teoria que também exerceu grande influência na solução de questões
referentes à causalidade foi a teoria da adequação. Elaborada por Johannes von
Kries, só seria considerada causa uma conduta que possui uma tendência geral a
provocar o resultado típico, mesmo que as condições que apenas por causalidade

347
“[...] pues el primer pressuposto de la realización de tipo és siempre que el autor haya causado el
resultado”. ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría
del delito. Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de
Vicente Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 346.
348
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 348
349
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 349
93
tenham desencadeado o resultado. 350
Os méritos desta teoria são o de limitar o regresso ao infinito como acontecia
na teoria da equivalência ou a exclusão de tipos causais extravagantes como, por
exemplo, no caso de uma vítima que foi alvejada por uma arma de fogo disparada
por seu desafeto e é levada a um hospital e lá morre porque o prédio se incendiou.
Tal teoria foi refinada ao longo dos anos e mais recentemente entendeu-se
que uma condição será adequada se ela aumentou a possibilidade de ocorrência do
resultado de maneira relevante.
Convencionou-se que este juízo será feito com base em prognóstico objetivo-
posterior no qual
“[...] o juiz deve colocar-se posteriormente [ou seja no processo] no ponto de
vista de um observador objetivo que julgue antes do fato e disponha dos
conhecimentos de um homem inteligente do correspondente setor do
tráfego e o que mais souber de especial do autor (tradução nossa) 351

Claus Roxin conclui que a teoria da adequação não pode ser considerada
uma teoria causal, mas na verdade uma teoria da imputação e que não tem a
pretensão de definir o que é a causa de uma resultado, mas sim de apontar qual ou
quais circunstancias são juridicamente relevantes e podem ser imputadas a um
agente. Ela atuaria, na prática, como complemento à teoria da equivalência e como
esta o problema da imputação. O seu mérito reside em limitar a imputação nos
cursos causais anômalos.
Com base em tais premissas, afirma Claus Roxin que o tipo objetivo se
configuraria com a ocorrência do liame entre o resultado e a sua causa. E vai além,
criticando o clássico exemplo dado por Hans Welzel do sobrinho que queria matar
seu tio, pois tinha a intenção de receber uma herança, sugere que ele faça um
passeio quando começa uma tempestade na esperança que o mate.352
Na estrutura finalista, se o resultado ocorrer, o fato será atípico por ausência

350
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 360.
351
“[...] el juez debe colocarse posteriormente [o sea en el processo] en el punto de vista de um
observador objetivo que juzgue antes y disponga de los conocimientos de un hombre inteligente del
correspondiente sector del tráfico y además del saber especial del autor”. ROXIN, Claus. Derecho
penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Tradução de Diego-
Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2. ed. Madrid:
Civitas, 1997. t. 1, p. 360.
352
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 361.
94
de dolo do sobrinho, a despeito do tipo objetivo ter sido realizado.
Claus Roxin critica situações como esta, “[...] pois é indiscutível que o autor
subjetivamente queria aquilo que se produziu objetivamente; e o planejamento e o
curso real coincidem entre si” (tradução nossa).353
Logo, a primeira função da imputação é indicar as circunstâncias que fazem
de uma causa uma ação típica para, posteriormente, discutir-se o elemento subjetivo
(dolo). 354
Além disso, para que haja a imputação do tipo objetivo é necessário que o
resultado causado pelo agente só se pode imputar ao tipo objetivo se houve a
criação de um perigo não abarcado por um risco permitido dentro do alcance do tipo.
Sobre a criação de um risco não permitido Claus Roxin exclui a imputação em
casos de sua diminuição; se falta a criação do perigo; e na criação do perigo e
cursos causais hipotéticos ; nos casos de risco permitido, este, o autor Sobre a
realização do risco não permitido.355
Já nas hipótese de realização do risco não permitido, Claus Roxin elenca as
hipóteses da exclusão da imputação se falta a realização do perigo; ROXIN (ano)
lista as hipóteses de sua exclusão se falta a realização do perigo; se falta a
realização do risco não permitido; em caso de resultado que não está coberto pelo
fim de proteção da norma de cuidado; conduta alternativa conforme ao Direito e a
teoria do incremento do risco; a combinação da teoria do risco e o fim de proteção. 356
Há ainda um grupo de casos que Claus Roxin trabalhou que são aqueles
em que há uma auto colocação em perigo dolosa; A colocação em perigo de terceiro
aceita por este último e a imputação do resultado em um âmbito de
responsabilização alheia.357
353
“[...] pues es indiscutible que el autor subjetivamente queria exatamente aquello que há producido
objetivamente. ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la
teoría del delito. Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de
Vicente Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 362.
354
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 363.
355
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 365-373
356
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 373-386.
357
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 387-402.
95
Como se depreende, Claus Roxin entende que o tipo penal objetivo não se
resume apenas entre uma relação entre conduta e o resultado. Além disso, é
necessário que o intérprete perquira se o resultado ocorreu em decorrência do risco
criado pelo seu agente, logo, não bastam apenas a causalidade e a finalidade do
autor do delito.
Além disso, é necessário que critérios normativos classifiquem esta ação e a
considerem imputável ao sujeito que a praticou, principalmente na análise da figura
do incremento do risco, pois o intérprete deverá verificar se a validade da norma
formulada ex ante ainda é possível de aplicação, após tomar conhecimento das
minúcias do caso (juízo ex post) e se será o caso de confirmar a imputação do
resultado ao tipo objeto ou se haverá alguma hipótese de sua exclusão no rol acima
narrado.

3.4.1 Günther Jakobs

Para Günther Jakobs, o tipo objetivo “é a parte externa do delito e com sua
realização surge o delito como magnitude social e, portanto, penalmente relevante” (
tradução nossa)358. Para ele, a teoria da imputação objetiva trata da determinação
dos requisitos objetivos e gerais de um comportamento imputável, tendo como pano
de fundo a causalidade e que esta tem importância nos crimes materiais.359
Por esta razão, o autor entende necessária a criação de regras de imputação
para determinar se e quando um comportamento será imputável ao seu autor.
Günther Jakobs trabalha com dois pilares.360 Primeiramente, a finalidade
própria do direito penal é a de garantir as expectativas de segurança. Por
consequência, compreende que os comportamentos socialmente adequados não
podem ser atribuídos como injusto, mesmo que eles tragam algum tipo de resultado

358
No original: “El tipo objetivo es la parte externa del delito; com el tipo objetivo surge el delito como
magnitude social, y por tanto penalmente relevante”. JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte
Geneal: Fundamentos y teoría de la imputación Traducción: Joaquín Cuello Contreras Y José Luis
Serrano González De Murillo. 2.' edición, corregida. Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 223
359
JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte Geneal: Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción: Joaquín Cuello Contreras Y José Luis Serrano González De Murillo. 2.' edición,
corregida. Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 224.
360
JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte Geneal: Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción: Joaquín Cuello Contreras Y José Luis Serrano González De Murillo. 2.' edición,
corregida. Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 225

96
danoso.
Ele entende que a conduta socialmente adequada está permitida afirmando
expressamente que os critérios decorrentes deste primeiro pilar são:

a) o risco permitido;
b) princípio da confiança;
c) atuação do garante; e
d) a proibição do regresso, e nada mais são do que figuras em desenvolvimento
da adequação social.361

O segundo pilar se assenta na regulamentação predominante do direito penal


no que diz respeito aos delitos de resultado. Nesta hipótese, Günther Jakobs
acredita que as regras desenvolvidas para a causalidade serão observadas. Para
tanto, entende que para que a consumação ocorra, é necessário que o autor tenha
realizado um risco de modo não permitido.
Como visto, Günther Jakobs parte do desenvolvimento do conceito da
causalidade para um aprimoramento da sua teoria da imputação objetiva. Para ele a
causalidade deve ser entendida como a condição para a ocorrência de um resultado,
ou seja, em seu sistema é importante saber se um comportamento deu causa a um
resultado.362
A condição, portanto, deve exercer influência em uma perspectiva ex post e
não sob o aspecto ex ante, uma vez que o resultado pode ter ocorrido por uma
condição antecipada363.
Vale ressaltar que a causalidade na teoria da imputação objetiva de Günther
Jakobs não é o único pressuposto na relação entre comportamento e a ocorrência
do resultado, mas deve ser entendida como um elemento importante e que se junta
a outro elemento que é o subjetivo.
Este desenvolvimento é importante para entender como os tipos penais foram
361
JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte Geneal: Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción: Joaquín Cuello Contreras Y José Luis Serrano González De Murillo. 2.' edición,
corregida. Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 225
362
JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte Geneal: Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción: Joaquín Cuello Contreras Y José Luis Serrano González De Murillo. 2.' edición,
corregida. Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 229
363
JAKOBS, Günther. Derecho Penal – Parte Geneal: Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción: Joaquín Cuello Contreras Y José Luis Serrano González De Murillo. 2.' edición,
corregida. Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 229
97
construídos e sua relação ou não com a adequação social.

3.5 A relação entre o delito culposo e a adequação social

O finalismo apresenta uma certa dificuldade em explicar a conceituação do


delito culposo. O ponto principal da teoria finalista do delito é o fato de que a ação é
uma atividade consciente dirigida a um fim. O indivíduo antecipa mentalmente seus
objetivos, isto é, o fim a ser alcançado, escolhendo os meios necessários para a sua
realização e, ao final, realiza ou não a atividade planejada alcançado este fim
pretendido.
No ilícito culposo, observa-se, portanto, como dito acima, uma demonstração
de um elemento finalístico, vigorando, assim, o desvalor da própria ação, segundo a
sua forma de execução, dependerá de um critério de valoração social e objetivo da
conduta, o que não ocorrerá no crime doloso.364
No entanto, não será qualquer ação que será levada em conta, mas sim e tão
somente aquela em que a vontade seja dirigida à produção de um resultado
socialmente indesejável quer seja através de seu fim de agir ou através dos meios
empregados ou aquelas em que o autor não pretende que ocorra um resultado
indesejado ou até mesmo não tenha pensado na sua produção.
No caso dos delitos culposos, afirma Juarez Tavares que o resultado advindo
não é querido pelo agente, mas sim porque ele agiu de modo descuidado. 365
O modelo do delito culposo se estabelece com base em uma conduta
socialmente adequada, ou seja, conforme o cuidado e orientada a evitar
consequências socialmente inadequadas.366
Assim, conclui Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria que a adequação social
exercerá um papel fundamental da noção da definição de ilícito negligente, pois a
relevância da conduta negligente dependerá da valoração global da ação.367
364
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 835.
365
TAVARES. Juarez. Teoria do crime culposo. 5. ed. rev. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p.
73.
366
TAVARES. Juarez. Teoria do crime culposo. 5. ed. rev. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p.
73
367
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 836.
98
Nos delitos culposos, o que ocorre é a inobservância de um dever objetivo de
cuidado em que o agente violará as exigências de comportamento, logo, o ilícito,
como já visto, caracteriza-se com o desvalor da ação, cuja característica é a de não
ter a finalidade como causa determinante como no tipo doloso.
As normas que regulam o dever de cuidado não estão descritas
exaustivamente pelo legislador, no entanto, devem corresponder a um juízo
socialmente relevante de previsibilidade e evitabilidade, dependendo de uma
valoração global das circunstancias do caso concreto.368
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria assevera que as normas extrapenais,
técnicas e que regulam o dever seriam apenas critérios auxiliares e empíricos para
definir a violação objetiva de cuidado, pois a sua força integrativa ou interpretativa
seria bem reduzida, devendo prevalecer em todo delito negligente uma valoração
social mais abrangente. Esta deve ser capaz de confirmar que se está diante de um
resultado previsível e evitável. 369
Para exemplificar seu raciocínio, a autora, nos traz o exemplo do controlador
de voo que deixa de cumprir as regras técnicas de sua profissão, adotando uma
rotina alternativa, que seria o comportamento utilizado por todos os controladores na
prática,
Estaríamos, portanto, diante de um ilícito negligente ou tal comportamento
seria adequado por estarmos diante de um juízo de normalidade?
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria responde este questionamento
trazendo o pensamento de Faria da Costa o qual admite a dimensão social do dever
de cuidado e, por consequência, o juízo sobre a observância de uma rotina, de uma
valoração de normalidade face às circunstâncias, dando-se uma maior credibilidade
da rotina, do uso na formulação de um juízo de adequação social do que a
observância da regra técnica.370
Assim, se fossem colocados no mesmo plano usos e norma técnica, aqueles
ficariam em um primeiro plano dada a sua maior proximidade dos fatos e da

368
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 938.
369
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 240.
370
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 945.
99
realidade social.
Esta posição, contudo, não exerce forca vinculante e tampouco configura uma
hierarquia. Ela será apenas um reconhecimento de que a valoração social prevalece
no caso concreto em detrimento da regra técnica.
Carlo Fiore, no entanto, tem entendimento contrário. Para ele, nos casos de
delitos imprudentes que, apesar da possibilidade inicial absolutamente predominante
de um desfecho infeliz, pode ser excluída a imprudência, e com ela a culpa, se a
ação for, de qualquer forma, realizada em condição de adequação ao nível
historicamente dado de conhecimento técnico-científico e com um uso consciente
dos meios colocados no caso específico à disposição no caso concreto. 371
E conclui que, as regras de experiência e de outras normas de
comportamento que são postas à proteção do bem jurídico comportam como
consequência que a lesão do bem, não obstante a observância de todas as regras
de cautela prescritas afastam a ilicitude pela impossibilidade de um juízo de desvalor
da ação.
Diferentemente, Carlo Fiore relaciona a ocorrência da negligencia com os
limites do risco permitido e que coincidem com a adequação social e sua relação
com necessidades de desenvolvimento da vida coletiva e com a exigência
fundamental de respeito pelos bens.372
Apesar de uma conduta ser lesiva a um determinado bem jurídico e
representar um risco que, por sua característica é adequado socialmente e permitido
pelo próprio ordenamento jurídico, So quando é excedida a medida de um risco
admissível, socialmente adequado, que se realiza o desvalor característico do ilícito
culposo.

3.6 A relação entre risco permitido e a adequação social

A medida que a sociedade foi se desenvolvendo e novas tecnologias foram


surgindo, na mesma proporção novos riscos emergiram ou se tornaram mais
perceptíveis para o ser humano.
No estágio do desenvolvimento tecnológico em que vivemos atualmente, é
371
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 173.
372
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 178.
100
quase impossível que não exista um risco nos contatos sociais, por menor que ele
seja.
Günther Jakobs373 antevendo o futuro traz como exemplo que um simples
apertar de mãos, a despeito de todas as precauções, pode transmitir uma infecção.
Tal exemplo demonstra perfeitamente o que a população mundial vivenciou a partir
do ano de 2020 com a pandemia da COVID-19, que obrigou a todos a viver em
isolamento social.
O risco permitido, segundo Claus Roxin, é uma conduta que cria um risco
juridicamente relevante, mas que de um modo geral não se confunde com as causas
de justificação, excluindo, portanto, a imputação ao tipo objetivo.374
Claus Roxin menciona como exemplo de risco permitido a questão do tráfego
rodoviário e assevera que, muito embora o condutor observe todas as regras de
direção e circulação, ainda assim é uma atividade que apresenta um risco inerente a
ela, o qual é mitigado, pois o interesse do bem comum é preponderante em relação
ao risco dela decorrente.375
Além do tráfego viário, inclui-se também no âmbito do risco permitido a
atividade industrial, principalmente aquelas atividades perigosas, como a nuclear
dentre outras, além das intervenções médico-cirúrgicas.
O estudo sobre o risco permitido vem sofrendo uma evolução ao longo dos
anos, havendo uma discussão doutrinária acerca da natureza jurídica do risco
permitido. Se ele seria uma causa excludente do tipo penal, uma causa de exclusão
da ilicitude ou, até mesmo, uma figura autônoma376.
Na esteira de Claus Roxin, Günther Jakobs noticia que os comportamentos
que geram riscos permitidos não tem razão de estar inscritos em um contexto
especial para serem tolerados socialmente, mas sim tolerados de uma forma geral,

373
JAKOBS, Günther. La imputación objetiva em derecho penal. Tradução de Manuel Cancio
Meliá. Madrid: Editoria Civitas, 1996, p. 43
374
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 371
375
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 371.
376
Manfred Maiwald aponta que o risco permitido não pode ser considerado como uma figura
autônoma, porque ele expressa nada mais, nada menos a circunstância de que alguém pode atuar
em situação de risco, enquanto a razão material de seu fundamento pode ser encontrada em outras
estruturas do delito, por sinal, já existentes. MAIWALD, Manfred. De la capacidad de rendimiento del
concepto de riesgo permitido para la sistemática del derecho penal. Cuadernos de doctrina y
jurisprudencia penal, Buenos Aires, v. 2, n. 1/2, p. 160, 1996.
101
motivo pelo qual ele entende que o risco permitido deva ser considerado como
elemento que não pode ser entendido como uma justificante.377378
Por outro lado, Juarez Tavares noticia, por exemplo que Hans Heirinch
Jescheck, em um primeiro momento, compreendia o referido instituto como uma
causa de justificação, alterando seu posicionamento para posteriormente entende-lo
como um princípio estrutural comum para diversas justificantes. 379
Tal fato pode ser comprovado em sua obra Tratado de Derecho Penal de
1981, na qual Hans Heirinch Jescheck afirma que existem diversas ações que são
praticadas atualmente que, pela sua própria natureza, põem em perigo ou causam
lesões a determinados bens jurídicos e que não podem ser proibidas, tendo em vista
o benefício que trazem para a sociedade de um modo geral. 380
No Brasil, Juarez Tavares reconhece que o risco permitido poderia ser
utilizado como “(...) meio de tornar menos rígidos os limites das causas de
justificação (...)”381, no entanto, deva ser reconhecido como causa de exclusão no
âmbito do tipo penal.
Filio-me ao entendimento de que o risco permitido deva ser considerado como
uma figura jurídica que exclui o tipo penal. As ações que são intrinsecamente
consideradas perigosas, tais como o tráfego viário ou a atividade industrial, se
estiverem dentro das regras legais de funcionamento ou atuação e, mesmo assim,
causem algum dano, este não poderá ser imputado ao seu agente, uma vez que se
trata de elemento que está ligado ao processo de imputação do resultado.
E, muito embora o Direito Penal nem sempre se manifeste em tais situações
ou quando se manifesta não o faz a contento, tem intentado preencher tal lacuna.

377
JAKOBS, Günther. La imputación objetiva em derecho penal. Tradução de Manuel Cancio
Meliá. Madrid: Editoria Civitas, 1996, p. 43
378
Na mesma direção, Jaime E. Malamud Goti sustenta que o risco permitido apresenta algumas
semelhanças com o estado de necessidade justificante mas a diferença entre ambos é que no
estado de necessidade justificante é necessário que haja a comprovação de que o prejuízo é inferior
ao benefício e que o primeiro é necessário para a obtenção do segundo, sendo que sua análise
será efetivada caso a caso. Já na hipótese do risco permitido, tendo em vista que o dano é
frequentemente maior, predominando a normalidade da situação, seria ele uma causa de exclusão
no âmbito do tipo penal. MALAMUD GOTI, Jaime E. El riesgo permitido en el derecho
penal. Doctrina Penal: teoría y práctica en las ciencias penales, Buenos Aires, v. 1, 1/4, p. 738,
1978.
379
TAVARES. Juarez. Teoria do crime culposo. 5. ed. rev. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p.
418.
380
JESCHECK, Hans Heirinch. Tratado de derecho penal: parte general. Tradução de Santiago Mir
Puig e Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981, p. 553. v. 1.
381
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 262.
102
Hans Heirinch Jescheck informa que a tentativa de regular este lugar vazio se dá,
dentre outros institutos, através do desenvolvimento da teoria da adequação social e
que abrange o conceito de risco permitido. 382
É fato que há uma certa aproximação entre adequação social e o risco
permitido, no entanto, após uma análise mais pormenorizada conclui-se que eles
apresentam realidades diversas e importantes.
A teoria da adequação social será uma causa de exclusão do tipo, enquanto
o risco permitido seria uma causa de justificação. A adequação social seria um
instrumento para subtrair do tipo dos preceitos penais correspondentes ações que,
muito embora impliquem em bens jurídicos protegidos são necessários para o bom
desenvolvimento de uma certa sociedade. 383
Ele lista diversas atividades tais como tráfego aéreo, naval e automotivo,
atividades médico-terapeutas, utilização de energia nuclear que, a princípio, são
perigosas, mas que são socialmente úteis.
Nestas hipóteses em que muitas delas por natureza já são perigosas e,
mesmo assim, causem algum dano ou ponham em perigo determinado bem jurídico,
a despeito da observância de todos os cuidados devidos, haverá a exclusão da ação
típica.
Para o risco permitido, o entendimento será diametralmente oposto

Aqui a ação parece perigosa para a comunidade e é basicamente proibida


porque o risco envolvido é muito grande para ser aceito de imediato no
interesse do livre desdobramento do desenvolvimento social (p. ex., a
colocação em perigo da honra por meio de afirmações proferidas na
salvaguarda de interesses legítimo 193). Se fracassa a prova da verdade a
respeito de uma afirmação de fatos que afetam a honra se realizará o crime
de difamação; por consequência, a salvaguarda de interesses legítimos só
funcionará como causa de justificação.384 (tradução nossa).

Hans Heirinch Jescheck abarca os casos de risco permitido nas hipóteses da


382
JESCHECK, Hans Heirinch. Tratado de derecho penal: parte general. Tradução de Santiago Mir
Puig e Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981, p. 552. v. 1.
383
JESCHECK, Hans Heirinch. Tratado de derecho penal: parte general. Tradução de Santiago Mir
Puig e Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981, p. 553. v. 1.
384
No original: :Aquí la acción aparece como peligrosa para la comunidad y se halla básicamente
prohibida porque el riesgo que conlleva es demasiado importante para que pueda aceptarse sin
más en interés del libre despliegue del desarrollo social (por ej., la puesta en peligro del honor por
medio de afirmaciones proferidas en salvaguardia de intereses legítimos, § 193). Si fracasa la
prueba de la verdad respecto de una afirmación de hechos que afectan al honor, se realizará el tipo
de la difamación; por consiguiente, la salvaguardia de intereses legítimos sólo operará como causa
de justificación”. JESCHECK, Hans Heirinch. Tratado de derecho penal: parte general. Tradução
de Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981, p. 554. v. 1.
103
culpa consciente ou do dolo eventual, abarcando as seguintes hipóteses para a sua
configuração: em casos de estado de necessidade justificante; ações que põem em
perigo bens jurídicos de interesse de uma generalidade do autor ou do lesado e, por
último, nas hipóteses de administração de patrimônio alheio, em que se efetuam
negócios de especulação perigosa, mas que, a princípio, não são proibidos, que
excedem uma gestão patrimonial exercida de forma diligente, mas que atenuadas as
circunstancias prometem ganhos consideráveis.385
Já na edição do livro de 2002, Hans Heirinch Jescheck e Thomas Weigend
alteram o posicionamento e afirmam que o risco permitido não configura uma causa
de justificação autônoma, mas sim um princípio estrutural comum para diversas
causas de justificação. Elas têm como características comum o fato de que são
ações que permitem um avanço no desenvolvimento social, mas tendem à criação
de um risco. 386
Elas estarão presentes nas hipóteses de consentimento presumido e no
resguardo de interesses juridicamente reconhecidos em delitos contra a honra e atos
relacionados ao poder de polícia.387
Luís Régis Prado e Erica de Carvalho afirmam que as teorias da imputação
objetiva transferiram para a análise do tipo penal alguns conteúdos que, a princípio,
se encontravam inseridos no desenvolvimento da teoria da adequação social.388
De se se salientar que para Hans Welzel, o risco permitido seria um caso
especial de adequação social, isto é, uma manifestação concreta da adequação
social389, diferenciando-se desta apenas pelo grau de colocação em perigo do bem
jurídico.390

385
JESCHECK, Hans Heirinch. Tratado de derecho penal: parte general. Tradução de Santiago Mir
Puig e Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981, p. 555-557. v. 1.
386
JESCHECK, Hans Heirinch; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal: parte general.
Tradução de Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 430
387
TAVARES. Juarez. Teoria do crime culposo. 5. ed. rev. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p.
419.
388
PRADO, Luiz Regis; CARVALHO, Érika Mendes de. Teorias da imputação objetiva do
resultado: uma aproximação crítica a seus fundamentos. 2. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 1.
389
Neste sentido FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no
direito penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações
Universidade Católica, 2005, p. 947.
390
WELZEL, Hans. Estudios de Derecho Penal – Estudios sobre el sistema de derecho penal.
Causalidad y acción. Derecho Penal y filosofia. Traducción por Gustavo Eduardo Aboso y Tea
Löw. Buenos Ayres: BedeF, 2003, p. 52.
104
Para justificar seu raciocínio, ele391 dá o exemplo dos pais que mandam seus
filhos para a escola ou de quem encera os degraus de uma escada. Em ambas as
hipóteses, haverá a exposição a perigos na realização das referidas ações que para
ele são socialmente adequadas, sendo nossa função atuar observando o dever de
cuidado objetivo, a fim de que não haja um aumento do risco de elas correrem.
Outro caso de perigo socialmente adequado é o risco permitido de empresas
que exercem atividades perigosas (por exemplo, empresas ferroviárias, aéreas, de
medicina curativa, etc, e que se inserem no âmbito da tipicidade.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria392 afirma de maneira muita didática que
o risco permitido nada mais é do que uma permissão formal de risco e o agente,
diante de uma determinada situação, deverá realizar um juízo de ponderação entre
os interesses conflitantes e o que preveem as normas de incriminação.
Noticia Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria que a figura do risco permitido
já existia, ainda que de forma embrionária, na Roma Antiga e regulava lesões
causadas nos esportes para depois ser desenvolvimento mais aprofundadamente
após a Revolução Industrial.393
A autora afirma, portanto, que a história do risco permitido remonta a uma
necessidade social,

Se determinadas utilidades e vantagens sociais se deixam a associar a


custos, a conclusão é óbvia: ou se toleram as respectivas atividades não
obstante as suas consequências indesejáveis, ou se prescinde da utilidade
que lhes anda subjacente e proíbem-se tais activdades ou
comportamentos.394

Por ser de grande relevância para uma melhor compreensão do assunto,


utilizar-me-ei da evolução do conceito de risco permitido apresentado por Maria
Paula Bonifácio Ribeiro de Faria.

391
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Juan Bustos Ramírez y
Sergio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p. 141
392
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 947
393
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 949.
394
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 949.
105
A autora afirma que a figura do risco permitido em um primeiro momento
surgiu como critério de imputação com von Bar tendo construído seu raciocínio a
partir da premissa que “[...] a vida em comunidade, da qual o indivíduo retira as
maiores vantagens exige que o indivíduo também tenha que tolerar determinar
efeitos danosos que resultam da actuação alheia [...]”.395
Prossegue afirmando que se houver um alto grau de responsabilização, a
indústria não se desenvolverá e o indivíduo será prejudicado na sua liberdade de
ação e na utilização de sua propriedade396.
O próprio Hans Welzel se inclinou para vários sentidos para a conceituação
do risco permitido, apresentando, ao fim, o entendimento de que da mesma forma
que a adequação social, seria uma causa de exclusão da tipicidade.
No entanto, adverte Renato Jorge de Mello Silveira que não se chegou a um
consenso de qual a razão da atipicidade da conduta seja por consequência do
cumprimento do dever de cuidado objetivo ou pela adequação social da conduta. 397
O fato é que tanto o risco permitido e adequação social andam juntos. No
entanto, o primeiro trata-se de uma forma arriscada em determinadas circunstancias,
criando-se um risco tolerado.398
A adequação social, por sua vez, seria uma figura de contornos fáticos, mas
que não apresenta de forma expressa os motivos que levam uma conduta ser
socialmente aceita ou tolerada e que, inclusive, pode servir de fundamento à
caracterização de um risco permitido.399
O risco permitido é um critério formal e não existe correspondência entre ele e
a adequação social, pois o risco permitido será sempre uma escolha.400 A adequação
social, por seu turno, é um juízo mais abrangente, no qual o risco permitido é uma
395
VON BAR apud FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no
direito penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações
Universidade Católica, 2005, p. 949.
396
VON BAR apud FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no
direito penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações
Universidade Católica, 2005, p. 950.
397
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 276.
398
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 953.
399
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 953.
400
Conclusão a que Renato Jorge de Mello Silveira também reproduz. SILVEIRA, Renato Jorge de
Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p.
278.
106
parte dele.401
Para Claus Roxin, um resultado só pode ser imputado ao agente se a conduta
do autor criou um perigo para o bem jurídico não coberto pelo risco permitido.402
Assim, não haverá imputação se o risco é permitido, considerando-se aqueles
que resultam de condutas que são importantes socialmente e que decorrem de uma
aceitação, ainda que tácita, por toda a sociedade e tem a função de lhe proporcionar
um melhor conforto.
Além disso, é necessário que o agente observe as regras exigidas para o
pleno funcionamento destas atividades. Juarez Tavares traz o exemplo do pai que
tem a autorização para porte e posse de arma de fogo e a guarda em local de difícil
acesso, não podendo ser responsabilizado se o seu filho adolescente, às
escondidas, pega essa arma e manuseando-a mata um amigo. 403
Se o pai, deixasse esta arma em local de fácil acesso, ele atuaria com
violação do risco permitido com o incremento deste risco, sendo-lhe imputado o
resultado morte.
Claus Roxin, analisando a adequação social, entende que há outros meios
interpretativos que podem auxiliar nos exemplos tratados como hipóteses de
adequação social. Para tanto, ele faz uma divisão em dois grandes grupos. 404
O primeiro, é o do risco juridicamente irrelevante ou permitido. Para ele 405, as
atividades de tráfego aéreo, ferroviário, viário, atividades industriais, dentre outras,
se são observadas apropriadmaente, manter-se-ão dentro do risco usual e, caso
haja a ocorrência de algum resultado lesivo, este não pode ser considerado típico
tendo como melhor fundamentação a teoria da imputação objetiva, sendo
desnecessária a utilização da adequação social.
Para justificar tal raciocínio, Claus Roxin utiliza o exemplo do sobrinho que,
pretendendo herdar uma fortuna do seu sobrinho, manda-o passear em uma floresta
401
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 278.
402
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 295.
403
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 301.
404
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 295.
405
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 295
107
em um dia de chuva, na expectativa de que um raio atinja e o mate, o que
efetivamente acontece.
Para ele as regras de imputação objetiva conseguem responder com mais
eficiência a limitação da responsabilidade do sobrinho em detrimento da teoria da
adequação social.
Por sua vez, Günther Jakobs aponta que a imputação objetiva tem como
pilares dois fundamentos:

a) o primeiro diz respeito à finalidade própria do Direito Penal em garantir a


segurança das expectativas;
b) o segundo, diz respeito que, desta finalidade de regulação deriva o
comportamento de condutas socialmente adequadas não podem ser
consideradas típicas, sendo o risco permitido um dos critérios decorrentes da
adequação social.
No funcionalismo radical sistêmico, Günther Jakobs para fundamentar este
raciocínio sobre o risco permitido aponta inicialmente o principal defeito da teoria da
equivalência, cuja preocupação maior se encontra na análise dos dados estatísticos
ou a modelos perceptíveis sensorialmente, quando, na verdade, deveria observar as
finalidades das normas penais. 406
Para ele, as normas penais regulam o comportamento humano para
possibilitar a vida social que não pode existir sem a segurança das expectativas.
Assim, à medida que haja um aumento da regulação, mais se evita a fraude
de expectativas, permanecendo, em sua concepção, estereótipos padronizados,
mas não perigosos.
Para Günther Jakobs, a fundamentação do risco permitido tem como ponto de
partida a tensão existente entre liberdade de atuação e segurança. Assim, quanto
maior as expectativas de segurança, menor serão o número de atividades
permitidas. Por sua vez, a liberdade de atuação será ampliada na medida em que
um risco for aceito como permitido. Será necessário, portanto, para que as relações
sociais se desenvolvam que algumas expectativas de segurança sejam
defraudadas. 407
406
JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. 2. ed. Madrid:
Corregida, 1997, p. 424.
407
JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general Fundamentos y teoría de la imputación
108
O autor, se utiliza, portanto, dos requisitos do estado de necessidade. Ele não
os equipara, apenas usa de seus requisitos – a magnitude do risco não é avaliada
isoladamente, mas também a utilidade e o prejuízo ancorados em parâmetros
jurídicos. No entanto, tais parâmetros não são os únicos critérios. Eles determinam o
que seria usual ou preferível, mas não resolvem o problema da valoração.
E continua afirmando que, mesmo que os riscos sejam reconhecidos, nem
sempre será utilizado o binômio custo-benefício, como se fosse uma equação
matemática, pois falta um modelo social suficientemente concreto e, às vezes,
vinculante em relação com o que é possível determinar a classe e a medida dos
desvios.
Ele dá o exemplo do tráfego rodoviário não industrial e que não pode ser
comparado com uma sociedade fictícia sem tráfego rodoviário não industrial, já que
falta a necessária determinação prévia das formas sociais legítimas em relação com
as quais pode-se definir a diferença como negativa ou positiva.408
O próprio Günther Jakobs adverte, porém, que não há um modelo de
sociedade que será utilizada como referência. Logo, ao lado do risco permitido por
ponderação surge o risco permitido por legitimação histórica, o qual Jakobs entende
que determinadas formas de atividades permitidas foram consagradas pela
legitimação histórica, forçando em algumas hipóteses, como no caso do tráfego
rodoviário a sua aceitação como figuras socialmente adequadas.
Neste ponto, o autor conclui que

[...] o que é socialmente adequado, especialmente também quando aparece


na forma de permissão de um risco, não é legitimado por referencia ao
Direito, mas é legitimado historicamente, ou seja, por sua própria evolução.
O Direito acaba definindo o contorno do socialmente adequado e o delineia.
Isso, como veremos, ocorre em parte até mesmo por meio de normas
jurídicas; o Direito, no entanto, não desempenha mais que esta função
auxiliar. (tradução nossa).409

Traducción de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. 2. ed. Madrid:
Corregida, 1997, p. 243.
408
JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. 2. ed. Madrid:
Corregida, 1997, p. 244.
409
“Ha de llegarse a la conclusión de que lo socialmente adecuado, especialmente también cuando
aparece en forma de la permisión de un riesgo, no queda legitimado por la referencia al Derecho,
sino que se legitima de manera histórica, es decir, por su propia evolución. El Derecho termina de
definir el esbozo de lo socialmente adecuado y lo perfila. Esto, como veremos, tiene lugar en parte
incluso a través de normas jurídicas; el Derecho, sin embargo, no desempeña más que esta función
auxiliar.” JAKOBS, Günther. La imputación objetiva em derecho penal. Tradução de Manuel
Cancio Meliá. Madrid: Editoria Civitas, 1996, p. 122
109
E prossegue
A última forma de risco permitido só é possível porque o Direito Penal não
tem de proteger um arsenal de bens em repouso, nem apenas maximizar os
bens, mas tem de estabilizar expectativas em relação a certos modos de
comportamento. Se, no caso de certas formas de comportamento, bens são
lesados, mas não se defraudam expectativas porque sua aceitação se
converteu em um costume, isso só se constituirá uma contradição se a
segurança dos bens é considerada publicamente. (tradução nossa)410

O risco permitido para Günther Jakobs411 tem um conceito negativo, ou seja,


não será permitido aquele comportamento que o próprio Direito define como tal,
proibindo sua prática seja em razão da sua perigosidade concreta, seja porque é
abstratamente perigosa, estando, portanto, excluído do que é socialmente adequado
e cuja definição é a de perturbação da vida social e isto acontece pela simples
realização de um comportamento assim configurado sem se levar em conta o
resultado produzido.412
Deverá haver, portanto, uma ponderação, como já dito, que não será simplista
ao ponto de se escolher entre liberdade e segurança. Um risco só será permitido a
partir de uma valoração em cotejo com as consequências negativas ou positivas que
uma referida atividade implica.
Mesmo no risco permitido por legitimação histórica, Mario Maráver Gomez
informa que Günther Jakobs também parte do pressuposto da ponderação para a
sua análise. Para tanto, será necessário explanar o que é aceito histórica e
socialmente e o que condicionará esta ponderação.413

410
“ La forma de riesgo permitido mencionada en último lugar sólo es po- sible porque el Derecho
penal no tiene que proteger un arsenal de bienes en reposo, ni únicamente maximizar los bienes,
sino que tiene que estabilizar expectativas en relación con determinados modos de comportamento
una conducta ciertamente daña bienes, pero sin embargo no defrauda expec- tativas, porque su
aceptación se ha convertido en costumbre, esto sólo consti- tuirá una contradicción si la seguridad
de los bienes se considera «policialmente»”. JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general
Fundamentos y teoría de la imputación Traducción de Joaquín Cuello Contreras e José Luis
Serrano González de Murillo. 2. ed. Madrid: Corregida, 1997, p. 244.
411
JAKOBS, Günther. La imputación objetiva em derecho penal. Tradução de Manuel Cancio
Meliá. Madrid: Editoria Civitas, 1996, p. 125.
412
Günther Jakobs exemplifica que quem dirige um veículo em estado de embriaguez ou em
velocidade acima da permitida ou infringe qualquer norma de circulação viária, cria um risco
permitido; da mesma forma se comporta de maneira não permitida quem manipula materiais
venenosos ou radiotivos. JAKOBS, Günther. La imputación objetiva em derecho penal. Tradução
de Manuel Cancio Meliá. Madrid: Editoria Civitas, 1996, p. 125.
413
MARÁVER GOMEZ, Mario. Riesgo permitido por legitimación histórica. In: BERNAL CUÉLLAR,
Jaime et al. El funcionalismo en derecho penal: libro homenaje al profesor Günther Jakobs.
Coordenação de Eduardo Montealegre Lynett. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003,
p. 212, v. 2.
110
A ponderação no risco permitido por legitimação é levada a efeito pela
sociedade que reconhecerá socialmente um risco e o valorará. O Direito levará em
conta tal reconhecimento e valoração como ponto de referência.
Assim, Günther Jakobs explicará os exemplos de risco permitido por
legitimação histórica com os que acontecem no tráfego rodoviário, mas também em
situações que são explicadas à luz da adequação social, como no caso das touradas
na Espanha.
Da mesma forma que o risco permitido, a adequação social também tem
como objetivo limitar a responsabilidade penal. Ambos são tão próximos que a
adequação social nada mais é do que uma tentativa de fundamentar o risco
permitido.
Tal raciocínio pode ser corroborado pelo pensamento de Renato Jorge de
Mello Silveira que noticia que Günther Jakobs, ao citar o risco permitido por
legitimação histórica ao lado do risco permitido por ponderação, estaria anuindo com
a afirmação de Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria de que o risco permitido se
inseriria no contexto da adequação social. 414
E continua Renato Jorge de Mello Silveira que haverá uma legitimação
histórica anterior ao aperfeiçoamento típico, sendo que o risco só seria analisado
após a prática do tipo penal dentro deste contexto histórico ou cultural, verificando-
se se este risco será permitido ou não. 415
Com fundamento no último pensamento de Hans Welzel sobre a adequação
social – critério hermenêutico dentro do tipo penal - Mario Maráver Gómez entende
que a adequação social não se reduz aos casos de risco permitido. Ela afetará todos
os tipos de delitos, desde os de resultado até os de mera conduta, bem como nos
casos de posição de garante nos crimes omissivos impróprios.416
Portanto, todo risco socialmente adequado será também um risco por
legitimação histórica de modo que não haverá que se reconhecer que não existem
riscos permitidos que não dependam de valorações sociais.

414
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 278.
415
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 279.
416
MARÁVER GOMEZ, Mario. Riesgo permitido por legitimación histórica. In: BERNAL CUÉLLAR,
Jaime et al. El funcionalismo en derecho penal: libro homenaje al profesor Günther Jakobs.
Coordenação de Eduardo Montealegre Lynett. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003,
p. 232, v. 2.
111
Por sua vez, Manfred Maiwald opina sobre a discussão em torno da definição
entre risco permitido e adequação social. Para ele, os dois conceitos se encontram
em planos intelectuais distintos, sendo que o conceito de adequação social
caracteriza a razão material de porque é lícita uma ação e, sobre este aspecto, se
remete à organização da vida historicamente ordenada.417
Por sua vez, o risco permitido só aponta que uma determinada ação, qualquer
que seja a sua razão, pode ser executada representando, portanto, um conceito
formal que haverá apenas de obter seu conteúdo por meio das razoes que
conduzem à permissão do risco.
Assim, para Manfred Maiwald ambas as figuras apresentam uma função
sistemática no Direito Penal, de forma distinta, no entanto.418
O conceito de risco permitido expressa que, sob determinados pressupostos
podem ser criados riscos, enquanto o conceito de adequação social caracteriza um
complexo de razões materiais que pode configurar, junto a outras numerosas
razões, o pressuposto de tal conduta lícita e de risco.
Por fim, vale acrescentar a crítica feita por Ana Elisa Liberatore Silva Bechara
que Günther Jakobs desenvolveu sua teoria do risco permitido por legitimação
histórica não é a mais adequada no contexto de multiculturalidade, pois a
consideração do risco permitido está condicionada à sua aceitação social no sentido
histórico, subordinando-se aos interesses de uma determinada cultura que, diga-se
de passagem, será a hegemônica e que não leva em consideração as diversidades
culturais de uma dada sociedade. 419

3.7 Antijuridicidade

3.7.1 A evolução do conceito de antijuridicidade

Após a verificação de que uma conduta se amolda a um determinado fato

417
MAIWALD, Manfred. De la capacidad de rendimiento del concepto de riesgo permitido para la
sistemática del derecho penal. Cuadernos de doctrina y jurisprudencia penal, Buenos Aires, v. 2,
n. 1/2, p. 145-165, 1996.
418
MAIWALD, Manfred. De la capacidad de rendimiento del concepto de riesgo permitido para la
sistemática del derecho penal. Cuadernos de doctrina y jurisprudencia penal, Buenos Aires, v. 2,
n. 1/2, p. 145-165, 1996, p. 149.
419
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 308. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
112
típico, passamos para a análise do segundo elemento do conceito tripartido de
crime, a antijuridicidade.
A antijuridicidade apresenta o seu aspecto formal, que, sinteticamente, pode
ser definido como a contrariedade de um fato ao direito.
No entanto, esta análise se mostra, em um primeiro momento, insuficiente,
sendo necessário examinar o desvalor do resultado em decorrência da pratica de
uma determinada conduta, comprovando-se se houve uma efetiva lesão ao bem
jurídico, quando então estaremos diante da antijuridicidade material.
Em sua tese doutoral, Fernando Molina Fernandez nos traz a notícia de duas
correntes que tratam da diferenciação entre a antijuridicidade formal e a material. A
primeira, a da independência, posiciona-se no sentido de que ambos os conceitos
são distintos entre si. A segunda, a da correspondência, parte da premissa lógica
que ambas são dois aspectos de um mesmo conceito. 420
O autor afirma que para a corrente da independência, o conceito de
antijuridicidade material seria sociológico, devendo ser levado em conta a lesividade
social de um fato em cotejo com o ordenamento jurídico, donde se conclui-se que
em alguns momentos o conceito de antijuridicidade formal e material serão idênticos
e em outros não. Além disso, muitas das vezes, um fato pode ser formalmente
antijurídico, embora não o seja materialmente antijurídico, e vice-versa.421
Ernst von Beling criticava este posicionamento, descartando alternativas ao
conceito de antijuridicidade e, por ter uma formação eminentemente positivista,
acreditava que um fato só poderia ser antijurídico se fosse contrário ao direito e não
à sociologia ou às normas de cultura, por exemplo.422
De outro lado, Franz von Liszt entendia a antijuridicidade formal como uma
transgressão de uma norma estabelecida pelo Estado, enquanto a antijuridicidade
material seria uma conduta contrária à sociedade (antissocial). Como este autor
trabalhava com a noção de bem jurídico, ele entendia que uma conduta só seria
materialmente antijurídica e, por consequência, lesionaria ou colocaria em perigo um
bem jurídico, se houvesse uma ofensa às finalidades protetivas da ordem jurídica

420
MOLINA FERNANDEZ, Fernando. Antijuridicidad penal y sistema del delito. 1998. Tese
(Doutorado em Direito) - Facudade de Derecho, Universidad Autonoma Madrid, Madrid, 1998, p. 33.
421
MOLINA FERNANDEZ, Fernando. Antijuridicidad penal y sistema del delito. 1998. Tese
(Doutorado em Direito) - Facudade de Derecho, Universidad Autonoma Madrid, Madrid, 1998, p.33
422
MOLINA FERNANDEZ, Fernando. Antijuridicidad penal y sistema del delito. 1998. Tese
(Doutorado em Direito) - Facudade de Derecho, Universidad Autonoma Madrid, Madrid, 1998, p. 33
113
em face das relações de convivência.423 424
Ou seja, o ilícito material preexistirá à antijuridicidade formal e à lei penal,
consequentemente, ele existirá inclusive anteriormente à atividade do legislador, que
terá como função apenas formalizar na lei o que já é materialmente ilícito.425
Como visto, a noção de antijuridicidade estará atrelada à teoria das normas
elaborada por Karl Binding, em face do ordenamento jurídico como um todo e não
apenas ao Direito Penal, relacionando-se com a valoração do bem jurídico.
Por sua vez, assevera Fernando Molina Fernandez que a doutrina moderna
da antijuridicidade filiou-se à corrente da correspondência, cujo entendimento reside
na perfeita identificação entre antijuridicidade formal e material como duas
perspectivas da antijuridicidade. 426
E completa

A ação formalmente proibida o é por ter um conteúdo material desvalioso:


por lesionar ou por em perigo algum bem que o legislador tenha estimado
ser merecedor de proteção. A antijuridicidade material se deduz da norma
proibitiva [...] (tradução nossa).427

No entanto, é necessário que se consiga alcançar um aspecto prático na


diferenciação entre antijuridicidade formal e material, sendo que esta última não terá
a única função de destacar o aspecto lesivo do fato proibido, mas também:

a) será um guia para o legislador criar tipos penais;


b) será um limite ao jus puniendi do Estado;
c) permitir a gradação do injusto; e
d) forma de ampliar de ampliar as causas de justificação e seus pressupostos

423
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 348.
424
“A essência da antijuridicidade reside na lesão ou perigo a um bem jurídico protegido pela norma
infringida por meio da pratica do comportamento”. BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem
jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 172
425
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 134.
426
MOLINA FERNANDEZ, Fernando. Antijuridicidad penal y sistema del delito. 1998. Tese
(Doutorado em Direito) - Facudade de Derecho, Universidad Autonoma Madrid, Madrid, 1998, p. 39.
427
“La acción formalmente prohibida, lo está por tener un contenido material disvalioso: por lesionar o
poner •en peligro algún bien que el legislador ha estimado merecedor de protección. La
antijuridícidad material se deduce de la propia norma prohibitiva [...]”. MOLINA FERNANDEZ,
Fernando. Antijuridicidad penal y sistema del delito. 1998. Tese (Doutorado em Direito) -
Facudade de Derecho, Universidad Autonoma Madrid, Madrid, 1998, p. 40.
114
para hipóteses na previstas legalmente.428 429

3.7.2 Causas de justificação

As causas de justificação são os motivos jurídicos para executar um


comportamento em si proibido.
Claus Roxin430 imputa a estruturação das causas de justificação a adesão ao
enfoque pluralista, sendo necessária a observância de princípios que atuarão como
verdadeiros vetores interpretativos, dentre eles o princípio da proteção, o da
proporcionalidade e o da ponderação de bens, dente outros.
Independentemente da teoria a ser acolhida, o fato é que, após realizado o
juízo de tipicidade, o interprete deverá verificar se aquela conduta é antijurídica.
Excepcionalmente haverá hipóteses em que uma conduta, a princípio,
antijurídica será permitida.
As causas de justificação podem ser classificadas em legais, ou seja,
previstas na legislação. No Direito Penal as causas de justificação estão previstas no
artigo 23 do Código Penal.431
Há também as causas supralegais que são aquelas que são reconhecidas
pela doutrina, tais como o consentimento do ofendido e o consentimento presumido,
o direito de correção dos pais e as que dizem respeito ao processo de
marginalização social.
428
MOLINA FERNANDEZ, Fernando. Antijuridicidad penal y sistema del delito. 1998. Tese
(Doutorado em Direito) - Facudade de Derecho, Universidad Autonoma Madrid, Madrid, 1998, p. 41.
429
Neste mesmo sentido Juarez Tavares quando afirma que “Embora rechaçada por alguns autores,
a separação entre antijuridicidade formal e material pode contribuir para elucidar alguns pontos da
teoria do delito. Nesse sentido, entende ROXIN que o conceito de antijuridicidade material pode
atender a três propósitos: estabelecer uma gradação do injusto, elucidar acerca das extensão dos
respectivos tipos e fundamentar as causas supra legais de justificação”. TAVARES, Juarez.
Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p. 348.
430
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 575
431
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:
(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - em estado de necessidade; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - em legítima defesa; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (Vide ADPF 779)
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (Incluído pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)
Excesso punível (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso
doloso ou culposo. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7
de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [2022].
115
Não é objetivo deste trabalho analisar profundamente as causas legais de
exclusão da ilicitude. Serão apenas mencionados seus conceitos e requisitos.
Já em relação às supralegais, tendo em vista sua proximidade com a
adequação social, serão abordadas mais pormenorizadamente.

3.7.2.1 Estado de Necessidade432

Cláudio Brandão noticia que desde o Império romano já havia formulação


através do brocardo jure necessitatis de um postulado que tratasse de situações em
que houvesse um sacrifício de um bem para a preservação de outro.433
Prossegue o autor que o Direito Alemão, da mesma forma, previa o estado
de necessidade para hipóteses específicas no caso de viajantes, mulheres grávidas
e pobres.434
O fundamento do estado de necessidade, portanto, é que haja uma colisão
de interesses sendo essencial que o bem sacrificado seja de menor valor que o bem
protegido. Este é o estado de necessidade justificante.
No entanto, existe também a hipótese do estado de necessidade exculpante,
que excluirá a culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta.
Segundo a teoria diferenciadora, dominante na doutrina alemã e que
resultou da concepção normativa da culpabilidade – inexigibilidade de conduta
diversa -, o agente que estiver diante de uma situação de perigo for obrigado a
sacrificar um bem de igual ou maior valor que o bem protegido, terá sua
culpabilidade eximida435.
O Código Penal brasileiro adverte Francisco de Assis Toledo adotou o
432
No Brasil, o estadoo de necessidade é regulado pelo artigo 24 do Código Penal, verbis:
Estado de necessidade
Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual,
que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo
sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o
perigo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida
de um a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). BRASIL. Decreto-lei nº
2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [2022].
433
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 49.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
434
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 49.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1
435
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal: arts. 11 a 27. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1978, p. 588. v. 1. t. 1.
116
estado de necessidade justificante sem as minúcias da legislação alemã. 436 O
estado de necessidade que exclui a culpabilidade será reconhecido como um estado
de necessidade supralegal.437 438
Para que o estado de necessidade seja reconhecido, é necessária a
configuração de alguns requisitos, que serão analisados logo abaixo.

3.7.2.2 Existência de um perigo atual

Para Cláudio Brandão, “perigo é a probabilidade de dano, essa


probabilidade de dano ao bem jurídico será sempre atual, caso ela não seja
afastada, o dano se verificará”. 439
A atualidade do perigo é verificada no fato de que deve ser verificada no fato
de que ser contida imediatamente e que demonstre sinais de permanência.,440
Este perigo, por sua vez, pode ter a sua origem em forças da natureza, caso
fortuito ou forca maior, ação humana lícita e ataques de animais, dentro outros.
De se salientar que não apenas os bens jurídicos, tais como a vida, a
liberdade, integridade física podem ser protegidos, bem como a propriedade, que
também faz parte do âmbito de proteção do estado de necessidade.

436
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 174.
437
O Código Penal Militar adota o estado de necessidade como excludente da culpabilidade,
conforme disposto no artigo 39, verbis:
Estado de necessidade, com excludente de culpabilidade
Art. 39. Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou de pessoa a quem está
ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual, que não
provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao direito
protegido, desde que não lhe era razoàvelmente exigível conduta diversa. BRASIL. Decreto-lei nº
1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. Brasília, DF: Presidência da República,
[2017].)
438
O Código Penal de 1969, que nunca entrou em vigor, diga-se de passagem, reconheceu
expressamente a figura do estado de necessidade exculpante em seu artigo 25, verbis:
Art. 25. Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou de pessoa a quem está
ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual, que não
provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao direito
protegido, desde que não lhe era razoàvelmente exigível conduta diversa. (Estado de necessidade
como excludente de culpabilidade) BRASIL. Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969.
Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [1974].
439
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 173.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
440
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p.
357.
117
a) Ameaça a direito próprio ou alheio – diante tal redação conclui-se que o nosso
ordenamento jurídico reconhece o estado de necessidade próprio e o estado
de necessidade de terceiro.

No caso do estado de necessidade de terceiro, o legislador não exige


qualquer relação jurídica específica do agente com o titular do bem preservado,
bastando que os interesses em conflito sejam tutelados pelo Estado.441
No caso do bem jurídico a ser salvo seja disponível, tal como o patrimônio, é
necessário que o seu titular consinta para o cometimento da lesão. Já em relação a
bens indisponíveis, como a vida humana, o estado de necessidade de terceiro
implica em um verdadeiro poder de agir.

b) Que não tenha provocado o perigo por sua vontade – a referida redação
trouxe divergência na doutrina nacional, em que uma parcela se posiciona no
sentido de que quem causou o perigo dolosamente (a vontade na redação do
artigo) não pode alegar o estado de necessidade.

Para Cláudio Brandão442 e Juarez Tavares443 somente nas hipóteses em que


o estado de necessidade tenha sido provocado dolosamente afasta-se o
reconhecimento da causa de justificação.
De outro lado estão os autores que entendem que quem provocou o perigo
tanto dolosamente, como culposamente pode alegar o estado de necessidade.
Para Cezar Roberto Bitencourt a expressão utilizada pelo Código Penal
deve ser entendida como sinônimo de que provocou intencionalmente o delito. 444
Neste mesmo sentido, Francisco de Assis Toledo entende também afastar a
incidência do perigo causado culposamente, diferenciando a provocação do perigo
da provocação do resultado. 445

441
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 19. ed. rev. ampl. e autal.
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 419.
442
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 175.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
443
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 357.
444
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 19. ed. rev. ampl. e autal.
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 419.
445
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal: de acordo com a Le n. 7.209,
de 11-7-1984 e com a da Constituição Federal de 1988. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 183-
118
c) Inexistência de dever legal de enfrentar o perigo – algumas profissões, tais
como policias, bombeiros, essencialmente enfrentam um certo grau de perigo
em seu exercício diário.

No entanto, esse dever não tem caráter absoluto, ou seja, a pessoa que
enfrentará o perigo não é obrigada a colocar a própria vida em perigo para
salvaguardar outrem.

d) Inevitabilidade da lesão – para que seja reconhecido o estado de


necessidade, é necessário que a lesão seja inevitável, isto é, que não exista
outro meio de evitar o perigo, estando este requisito intimamente interligado
com o princípio da ponderação de bens e valores.

e) Conflito e ponderação de bens e deveres – o estão de necessidade


pressupõe conflito entre bens e interesses legítimos. Se eles não forem
legítimos, não se pode alegar o estado de necessidade, porém, a legitimidade
não é sinônimo de titularidade. Como já dito acima, é possível o estado de
necessidade para salvaguardar bem de terceiro.

Além disso, é necessário que haja uma ponderação entre os bens e deveres
a serem protegidos ou sacrificados, preponderando nesta fase o princípio da
razoabilidade.
Assim, para que se configure o estado de necessidade exige-se que o bem
sacrificado seja, ao menos, de igual ou maior valor do que o bem protegido. Caso
contrário, estaríamos diante de um estado de necessidade exculpante.

3.8 Legitima defesa

Nos dizeres de Cláudio Brandão446 a legítima defesa guarda uma relação de


espécie e gênero em relação ao estado de necessidade, estando prevista no artigo

186.
446
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 178.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
119
25 do Código Penal brasileiro.447
Pode ser definida como uma reação a uma agressão injusta, atual ou
iminente. Diferentemente do estado de necessidade, ela é direcionada a atos de
agressão, enquanto aquele se direciona a uma situação de perigo.
Seus requisitos são os seguintes:

a) agressão injusta:
 é aquela agressão antijurídica, por consequência, se a agressão for
autorizada pelo direito não caberá legítima defesa448, tampouco é
necessário que seja uma conduta tipificada como crime. Francisco de
Assis Toledo nos traz o exemplo do furto de uso que não é previsto como
crime, mas é um ilícito civil;449
b) agressão atual e iminente:
 entende-se por agressão atual aquela que está em curso no momento da
reação defensiva;

Por seu turno, agressão iminente é aquela que está prestes a acontecer, isto
é, sinônimo de perigo concreto de agressão e não se confunde com agressão futura.
Nos dizeres de Cláudio Brandão, “enquanto a agressão iminente é aquela
que, se não for elidida, se concretizará, a agressão futura poderá acontecer ou
não.450
A exigência legal para a caracterização da legitima defesa é que a agressão
seja injusta, sendo desnecessário que o agente seja culpável, logo, ela é admitida
contra agressões praticadas por ébrios, menores de 18 anos, doentes mentais e etc.

447
Legítima defesa
Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários,
repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984) (Vide ADPF 779)
Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em
legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima
mantida refém durante a prática de crimes. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vide ADPF 779).
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência
da República, [2022].
448
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1, p. 180.
449
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal: de acordo com a Le n. 7.209,
de 11-7-1984 e com a da Constituição Federal de 1988. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 195.
450
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019., p.
181(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
120
c) uso moderado dos meios necessários:
 não é todo ato de defesa que será considerado legitimo. A lei exige, diante
da presença dos requisitos supra citados - agressão injusta, atual ou
iminente - que os meios sejam os necessários e moderados;

Por meios necessários, entende-se aqueles que são os eficazes e


suficientes para afastar a agressão.
Francisco de Assis Toledo dá o exemplo da diferenciação do porte físico dos
contendores. Assim, se a força física do agredido for ineficaz para repelir a
agressão, o uso de uma arma é um meio necessário. Do contrário, se o porte físico
do agressor e agredido forem equivalentes, o uso da arma será desnecessário.451
Cláudio Brandão deste ponto da aplicação do princípio da proporcionalidade
em que se exige uma ponderação ente o bem agredido pela acao injusta e o bem
agredido pela reação da defesa. Para tanto, traz um exemplo do paraplégico que,
para proteger o seu pomar de um furto de uma maçã realizada por uma criança, usa
de uma escopeta para tanto. Tal reação é totalmente desproporcional não
caracterizando a legitima defesa. 452
Por sua vez, o requisito da moderação é aquele que se defende cresca em
inensidade (já estava com esta marcação). Trago o exemplo de Francisco de Assis
Toledo que afirma que o agredido que se prostra perante o agressor após um único
golpe ter sido deferido, não pode prosseguir até mata-lo. 453

d) animus defendendi:
 como ocorre no estado de necessidade, é imprescindível a presença do
elemento subjetivo, qual seja, a intenção, os motivos que se revelam no
intuito de se defender;
e) direito próprio e alheio:
 tal como o estado de necessidade, a legítima defesa pode ocorrer quando
o titular de bem jurídico agredido é quem reage, classificando-a em

451
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal: de acordo com a Le n. 7.209,
de 11-7-1984 e com a da Constituição Federal de 1988. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 201.
452
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 182.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
453
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 204
121
legítima defesa própria. De outro lado, temos a legítima de defesa de
terceiro em que o executor da reação não é o titular do bem jurídico.

3.9 Estrito cumprimento do dever legal

Segundo o disposto no artigo 23, inciso III, primeira parte, do Código Penal
não há crime por quem age em estrito cumprimento do dever legal.
Como bem lembrado por Cláudio Brandão, o Código Penal não conceitua o
que seja estrito cumprimento e se o do dever legal e exercício regular do direito,
sendo os seus respectivos conceitos inferidos de preceitos jurídicos e se direciona
geralmente a agentes públicos, cuja conduta está prevista legalmente.454

3.10 Exercício regular de um direito

A conduta que é permitida pelo Direito, ao mesmo tempo não pode por ele
ser considerada antijurídica. Neste caso se inserem as lesões provocadas pelo
médico para salvar a vida de um paciente; ou o de correção entre pais e filhos.
Como todos estes exemplos se aproximam da adequação social serão estudados
separadamente e mais minuciosamente.

454
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 184.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
122
3.11 Causas supra legais de exclusão social ou hipóteses de adequação
social?

A doutrina penal distingue entre acordo e consentimento. Em relação ao


primeiro, Claus Roxin455 informa que a sua anuência exclui o tipo penal, justificando
a sua assertiva com o exemplo da invasão de domicílio, isto é, se a entrada do
visitante for acolhida pelo proprietário da residência, falta a invasão exigida pelo tipo
em comento.
Já em relação ao consentimento, ao contrário, pois este, quando dado pelo
titular do bem jurídico seria causa de justificação, mas não de exclusão do tipo legal,
o que ocorre, por exemplo, nos crimes de dano.
Claus Roxin456 elenca algumas diferenças que entende ser essenciais entre
acordo e consentimento e que auxiliam na sua distinção na análise concreta da
constelação de casos que se apresentam ao operador do direito. São elas:

a) em relação ao acordo, leva-se em conta apenas a vontade de quem


assentiu, ainda que ela não tenha sido exteriorizada. Já para o
consentimento, é necessário algum tipo de exteriorização, seja através
de palavras, seja através de ações, para o seu reconhecimento;
b) para a eficácia do acordo é necessário apenas a vontade natural da
vítima, mesmo quando não haja uma capacidade de compreensão em
razão da idade ou de alguma perturbação mental.
Já na hipótese de consentimento, mister que o indivíduo tenha plena
consciência sobre o alcance de sua manifestação de vontade e possa,
ainda que mentalmente, abstrair os prós e os contras da emissão desta
vontade;
c) Os vícios de vontade (erro, dolo, coação) nos casos de acordo são
irrelevantes. Já em relação aos casos de consentimento, tornam- os
ineficazes.

455
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 512.
456
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 513.
No que diz respeito às intervenções médico-cirúrgicas, Claus Roxin 457
afirma que o consentimento só será eficaz se a informação dada pelo
médico (dever de informação) for prestada sem erro, pois, do contrário,
ele responderá por alguma lesão decorrente de seu atuar;
d) em relação ao erro – não como vício de vontade do Direito Civil – se
afeta uma acordo, exclui apenas o dolo, logo, excluirá o tipo penal.
De outro lado, quem assume equivocadamente o consentimento da
vítima, erra de acordo com Claus Roxin458 sobre os pressupostos fáticos
de uma causa de justificação, que nada mais é do que um erro de tipo,
que também afastará o dolo e, por consequência, o tipo penal.

Para Claus Roxin459, se o bem jurídico serve para o livre desenvolvimento da


pessoa individual, não haverá lesão a ele quando a ação se basear em um
desinteresse de seu titular e que não prejudica seu desenvolvimento.
O efeito excludente do tipo que o consentimento produz, prossegue Claus
Roxin460, é decorrência da garantia constitucional de poder agir livremente 461, desde
que a lei assim não o proíba, impedindo que uma lesão ao bem jurídico corresponda
a uma realização do tipo penal.
Diante de tais premissas, conclui o Autor 462 que com o consentimento eficaz

457
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 514.
458
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 517.
459
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 517.
460
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 517.
461
No Brasil o dispositivo que se compara ao previsto no ordenamento constitucional alemão está
previsto no artigo 5º, inciso II da Constituicao da República que prevê:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. BRASIL.
[Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós,
representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, [...].
Brasília, DF: Presidência da República, [2022].
462
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 518.
5
não existe lugar para o desvalor do resultado e, sim, para o desvalor da ação que,
por consequência, excluirá o tipo penal.
Assim, quem faz a barba de um cliente ou, em nome de um proprietário corta
uma árvore não menospreza o resultado típico fundamentado pelo consentimento,
pois já de antemão há uma depreciação da ação que não realizará o tipo penal,
excluindo-o.
De outro lado, há quem entenda que o consentimento do ofendido emitido
eficazmente localiza-se na estrutura do delito na antijuridicidade, mais
especificamente como uma causa de justificação.
Neste sentido, Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend afirmam que os
bens jurídicos são objetos de proteção no âmbito do tipo penal. Dessa maneira,
integridade corporal, propriedade, vida, honra, dentre outros, são tutelados
constitucionalmente, sendo protegidos inclusive da própria vontade de seu titular.463
Prosseguem os Autores que, apesar do consentimento, o fato é criminalmente
relevante e não um indiferentemente penal, que excluirá o tipo, logo, a vontade de
seu titular tem a sua eficácia condicionada a determinadas condições orientadas a
evitar que venha se prejudicar.464
Para que o consentimento seja considerado uma causa de justificação é
necessário que:

a) seja dado pelo ofendido de forma livre, sem coação;


b) que o ofendido tenha condições de compreender o significado e as
consequências de sua decisão;
c) que o bem jurídico lesado ou ameaçado seja disponível.
Claus Roxin rechaça este posicionamento de que o consentimento possa ser
considerado como uma causa de justificação ao argumento de que ele seria um
“(...) corpo estranho no sistema das causas de justificação”.465
O Autor prossegue afirmando que as causas de justificação se assentam na
ponderação de interesses e necessidade, isto é, quando houver conflitos de

463
JESCHECK, Hans Heirinch; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal: parte general.
Tradução de Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 403
464
JESCHECK, Hans Heirinch; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal: parte general.
Tradução de Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 403
465
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 521.
6
interesse, deverá haver um sopesamento e uma escolha posterior, sendo legitimo
sacrificar um interesse de menor valor para a proteção de uma interesse de maior
valor.
No entanto, quando se faz uma análise da emissão de consentimento por
seu titular, a conclusão a que se chega é que não está em jogo o conflito de
interesses entre quem consente, tampouco acerca sobre a necessidade do ato 466,
logo, o consentimento será causa de exclusão no âmbito do tipo penal, posição que
eu entendo a mais correta.
No Brasil, Nelson Hungria afirma que nos casos de delitos contra o
patrimônio nos quais “(...) o constrangimento, o engano ou o arbítrio por parte do
agente entram como condições essenciais”467, o consentimento do ofendido será
elemento constitutivo do tipo legal de crime, sendo causa ensejadora de sua
exclusão.
Por sua vez, deve ser analisada a hipótese de quando o titular do bem
jurídico esteja impossibilitado de emitir este conhecimento, restando configurado o
consentimento presumido.
José Herique Pierangeli parte da premissa que no consentimento presumido
não existe realmente na consciência do ofendido, devendo-se pressupor a sua
existência diante das circunstâncias do caso concreto,468 como ocorre nas hipóteses
de uma cirurgia de urgência em que o paciente encontra-se em estado de
inconsciência ou seu representante legal ou nos casos em que o consentimento foi
dado para uma procedimento cirúrgico em especifico e o médico, ao se deparar com
a situação fática, precisa realizar outro procedimento não sendo possível alcançar o
consentimento expresso do paciente, que se encontra anestesiado469
Claus Roxin470 e Juarez Tavares471 têm entendimento que o consentimento

466
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal.
2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 521.
467
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal: arts. 11 a 27. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1978, v. 1. t. 1, p. 269
468
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 161
469
SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. 1ª ed. São Paulo:
Marcial Pons, 2019, p. 313
470
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 765
471
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 395.
7
presumido se situa no âmbito da antijuridicidade.
Claus Roxin, inclusive, afirma que o consentimento presumido se encontra
em uma zona entre o consentimento propriamente dito e o estado de necessidade
justificante, mas apresenta autonomia frente a ambos. Prossegue afirmando que a
principal diferença entre o consentimento presumido e o consentimento
propriamente dito, além do fato de ser uma causa de justificação, é o fato de ser
uma construção normativa, enquanto o consentimento propriamente dito é uma
manifestação de vontade.472
O consentimento presumido é invocado no direito médico, quando não se
pode contar com o consentimento expresso de seu paciente ou de seu
representante legal para uma a realização de uma intervenção médica,
principalmente naquelas cirurgias curativas.473
Flávia Siqueira entende que o consentimento presumido se encontra
ancorado em um juízo de ponderação de interesses e que fundamenta a sua
natureza de causa justificante. Afirma a Autora que em certas situações, tais como
nos casos de amputação de um órgão para o salvamento de uma vida, o médico
enfrentará uma colisão de interesses, devendo realizar um juízo de ponderação
entre a vida do paciente ou à lesão a sua integridade física.474
Renato Jorge de Mello Silveira, em sentido contrário, entende que as
cirurgias médicas se encontram inseridas no âmbito das causas de justificação,
diferenciando-as em optativas, aquelas em que o consentimento do ofendido é
sempre presente; das curativas, em que nem sempre é possível a obtenção desse
475
consentimento. E continua informando que é possível a exclusão da
responsabilidade penal aplicando-se a teoria da adequação social
Sobre as intervenções médico cirúrgicas, Maria Angéles Rueda Martín
distingue aquelas que têm um fim terapêutico com êxito daquelas que não têm êxito.
Para a Autora,

472
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1, p. 765
473
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 397.
474
SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. 1ª ed. São Paulo:
Marcial Pons, 2019, p. 316.
475
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 354.
8
às cirurgias cujo resultado é favorável devem ser aplicados critérios de
exclusão do desvalor do resultado que repercutem na significação social da
conduta, afirmando o seguinte[...] inexiste um desvalor penal do resultado
porque entao se se alcacnca o fim desejado [a cura do paciente], do estar
subordinado o bem jurídico integridade corporal à realização de uma função
como é salvar a vida deste paciente ou melhorar a sua saúde e é, portanto,
consubstancial esta afetação da integridade corporal do exercício daquela
atividade criativa. (tradução nossa). 476

E prossegue afirmando que o critério valorativo a ser utilizado para a exclusão


da tipicidade será de natureza extrassistêmica, cujo núcleo é algo mais geral do que
o simples desvalor do resultado, que subordinará à realização da função de outro
bem jurídico de maior envergadura e cuja finalidade é curativa477.Estes elementos de
natureza extrassistêmica nada mais são do que a adequação social com ênfase na
valoração do resultado.
Não se pode perder de vista que, no âmbito de valoração da ação, verifica-se
que ele foi empregado com um fim terapêutico socialmente e que determina que a
ação tenha um sentido social terapêutico juntamente com a afetação do bem
jurídico.
E afirma Maria Angéles Rueda Martín

O juízo valorativo que recai sobre a afetação do bem jurídico envolvido de


uma forma consubstancial na realização de uma intervenção médico-
cirurgica que implica, ademais, que o conteúdo da vontade do médico seja
curar o paciente, muito embora a sua integridade física tenha sido afetada e
isto que dota de conteúdo a adequação social (tradução nossa)478

Não haverá conduta típica, portanto, porque o sentido social da ação do


médico não é lesionar senão curar. Assim, o conteúdo de sua vontade será
determinado juntamente com a adequação social.
476
No original: “[...] que las intervenciones quirúrgi- cas realizadas con un fin terapéutico y con un
resultado favorable no existe un desvalor penal del resultado, porque entra en juego un crite- rio de
exclusión que actúa directamente sobre el ámbito del desvalor del resultado si se alcanza el fin
deseado (la curación del paciente), al estar subordinado el bien jurídico integridad corporal a la
realización de una función como es salvar la vida de ese paciente o mejorar su sa- lud, y es, por
tanto, consustancial esta afección de la integridad corpo- ral al ejercicio de aquella actividad
curativa. RUEDA MARTÍN, Maria Angéles. La adecuación social y el delito de detenciones ilegales.
Revista de Derecho Penal Y Criminología, n. 7, p. 457, 2001.
477
RUEDA MARTÍN, Maria Angéles. La adecuación social y el delito de detenciones ilegales. Revista
de Derecho Penal Y Criminología, n. 7, p. 457, 2001.
478
No original: “El juicio valorativo recae sobre la afección del bien ju- rídico involucrado de una forma
consustancial en la realización de una intervención médico-quirúrgica que implica, además, que el
conteni do de la voluntad del médico sea curar al paciente aunque haya afecta- do su integridad
física y esto es lo que dota de contenido a la adecuación social”. RUEDA MARTÍN, Maria Angéles.
La adecuación social y el delito de detenciones ilegales. Revista de Derecho Penal Y
Criminología, n. 7, p. 458-459, 2001.
9
José Henrique Pierangeli entende que a atividade médico-cirúrgica com
finalidade terapêutica deve se distinguir daquela intervenção médico-cirúrgica sem
fim terapêutico, principalmente daquelas de natureza estética, entendendo que a
primeira, é conglobadamente atípica por ser fomentada pela ordem jurídica,
enquanto a segunda será considerada uma causa de justificação – exercício regular
de um direito – pois é apenas tolerada e/ou permitida.479
Em relação às cirurgias curativas cujo resultado não seja favorável, em que
há um desvalor do resultado, deve-se concluir que, a despeito dele, haverá exclusão
do tipo penal pois ainda assim não haverá desvalor da ação, cuja finalidade mediata
é melhorar a saúde ou salvar a vida do ofendido.
Assim, mesmo que o resultado não seja favorável, mas ainda assim houve a
cura do paciente ou a melhora da sua saúde, a atividade curativa é socialmente
favorável.
Neste mesmo sentido é o entendimento de José Henrique Pierangeli que
entende que “se a atuação do médico observa a lex artis, mesmo quando o
resultado for negativo, é de ser atípica a conduta”.480
Em contrapartida, nas hipóteses em que há uma piora da saúde do paciente
ou até mesmo a sua morte, afirma Maria Angéles Ruéda Martin 481 que não serão
cobertos pela adequação social porque a afetação do bem jurídico não foi
instrumento para uma melhora ou até mesmo a cura do paciente, devendo tais
hipóteses ser analisadas à luz do risco permitido.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria,482 ao tratar da questão das
intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos previstos no artigo 150º do Código
Penal Português,483 a despeito de em um primeiro momento, afirmar que seria uma
479
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 208
480
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 211.
481
RUEDA MARTÍN, Maria Angéles. La adecuación social y el delito de detenciones ilegales. Revista
de Derecho Penal Y Criminología, n. 7, p. 460, 2001.
482
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 473.
483
“Artigo 150º
Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos
1 - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da
medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um
médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar
ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram
ofensa à integridade física.
10
cláusula de adequação social, posteriormente ela questiona se tais intervenções
fariam parte da adequação social.
A Autora constata que o não reconhecimento das lesões à integridade física
decorrentes de intervenções medico-cirúrgicas trata-se de uma escolha político-
criminal, mas manifesta-se de forma expressa se tal comportamento é socialmente
adequado.484
Para ela, o comportamento descrito no artigo 150 do Código Penal Português
não é sinônimo de adequação social, pois lhe falta um elemento ou critério de
valoração para que a conduta seja considerada socialmente adequada, qual seja, a
vontade do paciente.485
Assim, o tipo penal previsto no artigo 150 do Código Penal Português não
será considerado um comportamento adequado socialmente e para ser levada em
consideração para o delito de lesão corporal abrange, ainda que tangencialmente, a
autodeterminação da pessoa.
Apesar de Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria entender que a atipicidade
da intervenção médico-cirúrgica seja uma opção político-criminal e que não seja
hipótese de adequação social, excepcionalmente ela admite o seu reconhecimento
na realização de tatuagens ou de furos nas orelhas, ressalvando o seguinte

[...] uma vez que o âmbito de tutela das ofensas contra a integridade física
apenas compreende marginalmente a autonomia da pessoa a realização de
uma intervenção médica sem o consentimento do doente nunca chegará a
adquirir verdadeira relevância típica à luz dos arts. 144 e seguintes,
aplicando-se a estes casos as normas que garantem a liberdade do sujeito.
Todavia, apenas se poderá falar de adequação social da conduta do agente
em relação a estas incriminações onde for respeitada a autodeterminação
do titular do bem jurídico.486

E neste ponto a autodeterminação do paciente, além daquelas hipóteses de

2 - As pessoas indicadas no no anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem
intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida
ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2
anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra
disposição legal”. PORTUGAL. Código Penal. Coimbra: Edições Almedina, 1982.
484
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 474.
485
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 474
486
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 476.
11
lesão à integridade, será o definidor da adequação social.
Naqueles casos em que não há tratamento consolidado na literatura médica,
entre esperar a morte do paciente ou aplicar o único tratamento existente, ainda que
pequenaa chance de cura, este último deve ser utilizado.
O consentimento do paciente não será dado para a morte, por óbvio, até
porque ele seria inválido. O consentimento seria fornecido para a realização deste
tratamento experimental, que seria a sua última chance de sobrevivência.
Este consentimento, portanto, será um dos pontos de apoio para a valoração
da conduta do médico e a sua inserção nos critérios de adequação social.
José Henrique Pierangeli, por outro lado, posiciona-se no sentido de que em
casos em que não haja eficácia comprovada do tratamento a ser utilizado para o
tratamento de um doente, haverá violação do dever de observância das regras da
arte médica, que não será justificada pelo consentimento do paciente.487
Tal hipótese só será excepcionada quando não existir outro meio que permita
salvar a vida do paciente ou outro dano e desde que a lesão produzida não seja
maior ou mais grave do que aquele que se pretende evitar.488
Pode-se argumentar também que nestas hipóteses, em que o paciente seja
capaz, conhecedor do risco e, mesmo assim, consente com a realização de tal
cirurgia perigosa, configurará a heterocolcação em risco que se equipara com a
autocolocação em risco e, com fundamento na autonomia e na autorreposnsabilidde
da vitima e que excluiria a imputação.489
Uma questão que vem sido discutida nos últimos anos, além de ser muito
polêmica, diz respeito à hipótese do paciente decidir e consentir juntamente com seu
médico a limitar ou suspender tratamentos, no caso de doença grave sem
possibilidades de cura, e a ofertar cuidados paliativos, desde que com
consentimento do paciente ou seu representante legal.490
487
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 211
488
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 211
489
SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. 1ª ed. São Paulo:
Marcial Pons, 2019, p. 218
490
Assim dispõe a Resolução 1806/2006 do Conselho Federal de Medicina:
“RESOLUÇÃO CFM Nº 1.805/2006
(Publicada no D.O.U., 28 nov. 2006, Seção I, pg. 169)
Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou
suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo- lhe
os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva
de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.
12
Com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e na
autodeterminação da pessoa em escolher o seu destino quando é portadora de uma
doença incurável e cujo prognóstico de sobrevida a colocará em uma situação de
sofrimento físico e mental, passou-se a admitir a ortotanásia.
A princípio, é contraditório que a ortotanásia seja um procedimento
autorizado pelo Conselho de Federal de Medicina e, ao mesmo, tempo, ser definida
como um crime, seja de homicídio ou de omissão de socorro,
Miguel Reale Júnior entende que a ortotanásia não deve ser considerada

O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de
setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004,
regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e CONSIDERANDO que os
Conselhos de Medicina são ao mesmo tempo ju lgadores e disciplinadores da classe médica,
cabendo - lhes zelar e trabalhar, por todos os meios ao seu
alcance, pelo perfeito desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito da
profissão e dos que a exerçam legalmente;

CONSIDERANDO o art. 1º,


inciso III, da Constituição Federal, que elegeu o princípio da
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil;

CONSIDERANDO
o art. 5º, inciso III, da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será submetido a tortura
nem a tratamento desumano ou degradante”;

CONSIDERANDO que cabe ao médico zelar pelo bem


- estar dos pacientes;

CONSIDERANDO que o art. 1° da Resolução CFM n° 1.493, de 20.5.98 determina ao diretor


clínico adotar as providências cabíveis para que todo paciente hospitalizado tenha o seu
médico assistente responsável, desde a internação até a alta;

CONSIDERANDO que incumbe ao médico diagnosticar o doente como portador de


enfermidade em fase terminal;

CONSIDERANDO, finalmente, o decidido em reunião plena ria de 9/11/2006,

RESOLVE:
Art. 1º
É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a
vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da
pessoa ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as
modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião
médica.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que
levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíq uico, social e
espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar”. CONSELHO FEDERAL DE
MEDICINA. Resolução 1806, de 28 nov. 2006, Seção I, pg. 169. Na fase terminal de
enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender [...]. Brasília,
DF, [2022]
13
como uma causa excludente do crime “(...) mas antes uma ação socialmente
adequada, quando só se lesiona um bem jurídico, ao se visar exatamente a
preservar este valor, ou seja, a vida como vida digna que compreende a morte
digna”.491
E justifica o seu entendimento apresentando o seguinte argumento

(...) verifica-se a licitude da conduta movida por valores do respeito à


decisão do paciente, de prestígio à dignidade da pessoa humana em uma
situação limite impedindo que em seu final a existência da vida seja
destituída de dignidade, torturada por ações obstinadas e inúteis de
tentativa de uma cura impossível, com prolongamento de agonia sem fim
que o paciente conscientemente não deseja492

A despeito dos fundamentos trazidos por Miguel Reale Júnir entendo que de
fato o procedimento da ortotanásia é de fato atípico, mas não por ser uma conduta
socialmente adequada e, neste ponto, concordo com o posicionamento de Maria
Paula Bonifácio Ribeiro de Faria de que nas hipóteses de morte assistida não há
como se aplicar a adequação social.
A meu ver, o médico, diante de uma declaração livre e consciente de seu
paciente, que não pretende ter seu tratamento prolongado indefinidamente, deve
respeitar a sua vontade e a autonomia de não ser tratado, com fundamento nos
termos do artigo 5º, inciso II, da Constituição da República que determina que
ninguém é obrigado a fazer ou deixar a fazer alguma coisa em virtude de lei.
Nestes casos, a morte “provocada” pelo médico de acordo com o
consentimento do paciente representam um exercício de liberdade do fruir e gozar
de seus bens jurídicos individuais e, por tal razão, não haverá ofensa ao bem
jurídico e, consequentemente, ausente a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, o
consentimento tornará a conduta do médico atípica.
Em relação a questão referente às lesões médico-cirúrgicas, Carlo Fiore
inicia seu estudo asseverando que se o direito fosse uma disciplina exata, a
intervenção médica seria considerada ilícita não apenas quando faltasse consenso,
mas também quando tratasse de bem ou interesse não disponível da parte do
sujeito, a menos que não se recorra a uma situação de absoluta necessidade que

491
REALE JÚNIOR, Miguel. Consentimento - ortotanásia e adequação social. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 121,, p. 220, jul.. 2016.
492
REALE JÚNIOR, Miguel. Consentimento - ortotanásia e adequação social. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 121, p. 220, jul.. 2016.
14
legitimaria à iniciativa médica. 493
Carlo Fiore afirma que não se pode pôr em dúvida o fato que o médico deva
agir contra a manifestação de vontade do paciente, sendo bastante difícil determinar
o requisito de validade do consenso e de individualizar seu titular quando o paciente
é um menor ou incapaz. 494
Mesmo que se entenda que exista uma presunção de consentimento, isso
significa substituir a regra normativa da justificação decorrente do consenso do titular
do direito a um critério extralegal de balanceamento de interesse, no qual a
presunção deve prevalecer por não ser arbitrária.
Tal situação é particularmente evidente em relação a alguns procedimentos
médico-cirúrgicos nos quais, mais que a questão sobre a questão sobre o
consentimento do paciente, o que se discute é a adequação clínica da sua
intervenção ou a sua eventual contradição com a lei com argumentos de
observância da critérios que obedeçam a ordem pública ou os bons costumes, o que
ocorre, por exemplo, nos transplantes de órgãos, aborto terapêutico, cirurgia
estética, dentre outras.
Ele entende que se a licitude da intervenção depende do consenso do
paciente, também deve-se admitir que, caso haja algum vício de consentimento, o
médico será punido por homicídio ou por lesão culposa, segundo a norma do artigo
59 do Código Penal Italiano, 495 se o erro é oriundo de culpa e também se a

493
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 18.
494
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 18.
495
“Delle circostanze del reato
Art. 59.
Circostanze non conosciute o erroneamente supposte.
Le circostanze che attenuano o escludono la pena sono valutate a favore dell'agente, anche se
da lui non conosciute, o da lui per errore ritenute inesistenti. Le circostanze che aggravano la pena
sono valutate a carico dell'agente soltanto se da lui conosciute ovvero ignorate per colpa o ritenute
inesistenti per errore determinato da colpa. Se l'agente ritiene per errore che esistano circostanze
aggravanti o attenuanti, queste non sono valutate contro o a favore di lui.
Se l'agente ritiene per errore che esistano circostanze di esclusione della pena, queste sono sempre
valutate a favore di lui. Tuttavia, se si tratta di errore determinato da colpa, la punibilità non è
esclusa, quando il fatto è preveduto dalla legge come delitto colposo”.
“As circunstâncias do crime
Art. 59.
Circunstâncias desconhecidas ou assumidas erroneamente.
Circunstâncias que atenuam ou excluem a pena são apreciadas em favor do agente, ainda que
não conhecido por ele, ou por ele erroneamente considerado inexistente. As circunstâncias
agravantes da pena só são imputadas ao agente se por ele conhecidas ou ignoradas por culpa ou
julgadas inexistentes por erro causado por culpa. Se o agente erroneamente acreditar que existem
circunstâncias agravantes ou atenuantes, estas não são avaliadas contra ou a seu favor.
Se o agente erroneamente acreditar que existem circunstâncias de exclusão da pena, estas são
sempre avaliadas a seu favor. No entanto, no caso de erro causado por culpa, não se exclui a
15
intervenção desfavorável. E isso tudo independentemente do fato que na conduta do
médico houve, ao menos, negligencia, imperícia ou imprudência, segundo as regras
médicas.496
Este mesmo raciocínio vale para cada outra hipótese de causa de justificação,
incluindo aquelas que, ao lado do consenso do titular, invoca a justificante do estado
de necessidade.
Ele entende que o estado de necessidade só pode ser alegado em poucas
hipóteses em que funciona como causa de justificação, por exemplo, nos casos de
inconsciência, espontânea ou não, em virtude do uso de narcótico.
Ele questiona, por exemplo, se é possível alegar o estado de necessidade em
intervenções cirúrgicas, a princípio, simples em que se retira o útero de uma
paciente em prevenção ao agravamento futuro da doença.
Outra causa que Carlo Fiore entende de aplicação controversa é o do
exercício regular do direito que interfere na exigência do consenso do titular do
direito, a cuja eficácia da outra parte resulta definitivamente aos ditames do artigo 5º
do Código Civil Italiano497 que determina que são proibidos os atos de disposição do
próprio corpo quando causarem uma diminuição permanente da integridade física,
ou quando de outra forma forem contrários à lei, à ordem pública ou à moral.
Ele assevera que a tendência de incluir a licitude do tratamento médico
cirúrgico é condicionada desde uma concepção naturalística da ação, não sendo
possível diferenciar no plano da conduta a atividade médico-cirúrgica da lesão
pessoal, ou seja, as duas condutas, sob o ponto de vista naturalístico serão
idênticas.498
Carlo Fiore entende que pode se sustentar que a a intervenção médico-

punição, quando o fato estiver previsto na lei como crime culposo “(tradução nossa) ITÁLIA. Codice
penale, Libro II, Titolo XI: Dei delitti contro la famiglia. [Roma]: Altalex, 2021.
496
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 20.
497
“Art. 5.
Atti di disposizione del proprio corpo.
Gli atti di disposizione del proprio corpo sono vietati quando cagionino una diminuzione permanente
della integrità fisica, o quando siano altrimenti contrari alla legge, all'ordine pubblico o al buon
costume”.
“Art. 5.
Atos de disposição do próprio corpo.
São proibidos os atos de disposição do próprio corpo quando causarem uma diminuição permanente
da integridade física, ou quando de outra forma forem contrários à lei, à ordem pública ou à moral”
(tradução nossa). ITÁLIA. Codice penale, Libro II, Titolo XI: Dei delitti contro la famiglia. [Roma]:
Altalex, 2021.
498
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 21.
16
cirúrgica do ponto de vista de eficácia causal, não poderia ser considerada um
prejuízo à segurança pessoal, pois isso só ocorreria quando houvesse prejuízo ao
interesse de sentir bem, de se sentir melhor ou de aparentar estar são. 499
O autor conclui que não é difícil perceber que essa concepção se baseia em
uma variante puramente terminológica na definição do objeto de proteção que em
nada faz referência ao dando ao bem jurídico e deixa inalteradas uma das maiores
dificuldades dogmáticas que seria a necessidade de revisão do ponto de vista
tradicional da ação típica.
Basta lembrar que não se pode de modo algum negar a existência de uma
real lesão ao interesse à vida, à integridade física, quando o ato cirúrgico não for
exitoso.

3.12 Adequação social e culpabilidade

Como a tipicidade e a antijuridicidade, o bem jurídico igualmente se


relaciona com o terceiro elemento do conceito tripartido de crime, a culpabilidade.
No entanto, será necessário fazer um breve apontamento sobre a evolução
do conceito da teoria da culpabilidade para uma melhor compreensão deste assunto.

3.12.1 Evolução da teoria da culpabilidade

3.12.1.1 Culpabilidade psicológica

A culpabilidade como instituto tem suas raízes no direito romano e,


posteriormente, foi desenvolvido pelo direito canônico.500
De todo modo, os conceitos aqui estudados limitar-se-ão dentro da moderna
teoria do Direito Penal.
Juarez Tavares noticia que coube a Franz Von Liszt o primeiro conceito
moderno de culpabilidade e que seria o vínculo subjetivo entre o autor e o fato

499
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 21.
500
FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 188.
17
(concepção psicológica da culpabilidade).501
Assim, o conceito psicológico da culpabilidade surgido na metade do século
XIX floresceu no contexto do positivismo no qual a responsabilidade não só se
materializava em uma relação de causa-efeito (objetiva), mas também como uma
causalidade psíquica (dolo e culpa stricto sensu) com o resultado.
A culpabilidade será, portanto, uma determinada relação com o resultado,
apreciado o vínculo e com neutralidade descritiva.502
Neste sentido, Eugénio Raúl Zaffaroni afirma que “[...] assim como o injusto
não passava de ser a mera descrição da objetiva ou faze externa do delito,
pretendia-se que a culpabilidade fosse a descrição de sua face interna” (tradução
nossa).503
Para esta teoria, portanto, a culpabilidade seria um conceito vazio e livre de
valorações e que se esgota no dolo e na culpa stricto sensu.504
Este conceito psicológico de culpabilidade apresentou diversas falhas. A
primeira delas é de que seria quase impossível se sustentar um juízo psicológico
puro e sem que fosse realizado um juízo de valor.505
Além disso, relembra-nos Eugénio Raúl Zaffaroni506 a imputabilidade,
pressuposto da culpabilidade, nada mais é do que um requerimento de
compreensão de valor.
De outro lado, a teoria psicológica da culpabilidade não conseguiu explicar a
culpa inconsciente ou as causas de exculpação.
Como visto, não havia como se sustentar uma concepção puramente
psicológica na dogmática penal, havendo uma paulatina evolução do seu conceito
com a inserção de elementos valorativos que deram origem posteriormente às

501
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 459.
502
FRANK, Reinhard. La estructura del concepto de culpabilidad. Buenos Aires: BdeF, 2004, p.
15.
503
No original: “[...] así como el injusto no pasaba de ser la mera dscripción de la objetividade o cara
externa del delito, se pretendia que la culpabilidade era la descripción de su cara o face interna
“ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, tomo IV, p. 18.
504
FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 189.
505
Neste sentido: ZAFFARONI, p. 17 ; FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito:
um ensayo de fundamentación dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 189.
506
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, tomo IV, 2002, p. 18.

18
concepções normativas da culpabilidade, as quais serão analisadas a seguir.

3.12.1.2 Culpabilidade normativa

Como dito acima, tornou-se insustentável uma concepção avalorada de


culpabilidade. Lentamente, os elementos normativos foram inseridos.
Em um primeiro momento, ao lado dos elementos subjetivos (concepção
psicológica-normativa). Posteriormente, dolo e culpa foram transferidos para a
tipicidade, deixando a culpabilidade apenas com elementos normativos (concepção
normativa pura da culpabilidade).
Reinhard Frank em 1907 foi o primeiro autor que contribuiu para o
desenvolvimento da teoria psicológico-normativa da culpabilidade. Para ele a
culpabilidade, não estava integrada apenas pelos seus elementos subjetivos (dolo e
culpa stricto sensu), mas, sim, por três elementos, que são:

a) a normalidade;
b) relação psíquica do sujeito com o fato ou ao menos a possibilidade das
mesmas;
c) normalidade das circunstancias em que atua.,

Posteriormente, Gosldshimdt desenvolveu a ideia de reprovabilidade como


um descumprimento de uma “norma de dever”, que seria nada mais do que o
gérmen para uma melhor elaboração do conceito de inexigibilidade, que entendia

a culpabilidade implica reprovar o fato do agente por haver se comportado


como o fez ao invés de um modo distinto, entao nada se pode reprovar a
quem não se pode exigir um comportamento diferente do que levou a cabo
diante das circunstancias concretas do caso.507

Por fim, com Edmund Mezger desenvolve-se a teoria normativa complexa,


na qual a culpabilidade é a soma dos requisitos que fundam uma reprovação
pessoal do autor e mostram o fato como expressão juridicamente desvalorada da
personalidade do autor, isto é, uma relação psicológica contrária ao dever e

507
PLANAS, Ricardo Robles. Estudos de dogmática jurídico-penal: fundamentos, teoria do delito e
direito penal econômico. Coordenação de Cláudio Brandao. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2016, p. 160. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 6).
19
reprovável mediante valoração jurídico-penal.
A culpabilidade para Edmund Mezger será formada pelo dolo e pela culpa
stricto sensu, além da imputabilidade e causas excludentes da culpabilidade. Para
ele, o dolo tinha que ter a consciência da antijuridicidade.

3.12.1.3 Teoria normativa pura da culpabilidade

Quando a doutrina finalista foi formulada por Hans Welzel, como já visto
anteriormente, a essência normativa da culpabilidade já estava assentada.508
O juízo de reprovação fundado no poder de agir de forma diferente já era

admitido, assim as ideias de Hans Welzel não introduzem qualquer inovação


original, o que foi expressamente admitido por ele.509
Na verdade, ele apenas “rearrumou”, nos dizeres de Cláudio Brandão, 510 511

seus elementos, transferindo o dolo e a culpa stricto sensu para a tipicidade.


A concepção finalista da culpabilidade se apoia na teoria da ação que

trasladou o dolo e a culpa stricto sensu para a tipicidade. Para Hans Welzel, a ação
humana é o exercício de uma atividade final e não puramente causal. Assim, o
homem pode prever o seu atual, antecipando suas consequências e dirigir o seu
atuar para a consecução destes fins.512
Por tal razão, Hans Welzel diz que “a finalidade é vidente, enquanto a

508
FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 195.
509
Neste sentido: “Así, la teoría finalista de la acción no se imagina de ninguna manera haber
introducido algo fundamentalmente nuevo en la dogmática, sino solamente haber colocado la
piedra final a la que ha aspirado ya la teoría reinante”. “Assim, a teoria finalista da ação não imagina
de modo algum ter introduzido algo fundamentalmente novo na dogmática, mas apenas ter lançado
a pedra final a que a teoria reinante já aspirou”(tradução nossa). WELZEL, Hans. Teoría de la
acción finalista. Buenos Aires: Astrea, 1951, p. 33..
510
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 230.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
511
Igualmente Francisco de Assis Toledo afirma: “Vê-se, pelo exposto, que a missão de Welzel
limitou-se a apanhar os resultados da teoria psicológica e da teoria normativa e, a partir da
arrumação de um novo quadro (neues Bild) do sistema penal, dar uma nova redistribuição
sistemática dos elementos estruturais do crime. E, com isso, possibilitou-se uma separação de
impasses a que haviam chegado penalistas anteriores, em alguns aspectos importantes”. (grifo do
autor). TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 1994, p. 228.
512
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 31.
20
causalidade é cega”,513 logo, para ele o cerne da ação finalista é a vontade
consciente do fim, no entanto, esta vontade configura objetivamente o acontecer
causal e pertence à ação.
Tal formulação também se mostra como uma crítica à teoria causal da ação,
pois, a despeito de ser a vontade o elemento do reitor causal, a concepção
causalista desconhece esta função constitutiva da vontade.
Por sua vez, Hans Welzel afirma que o injusto como fora concebido pelo
sistema causalista do delito, era formado apenas por elementos objetivos, enquanto
os elementos subjetivos (dolo e culpa stricto sensu) se encontravam na
culpabilidade.
Ele afirma
O fundamento doutrinário dessa concepção era sustentado pela doutrina da
ação causal, que separava taxativamente a ação, como um mero processo
causal externo, do conteúdo subjetivo da vontade; desse modo, incluiu-se
todo o “externo” na antijuridicidade e todo o “interno” na culpabilidade.514

Esta separação entre externo e interno, porém, era impossível de ser feita,
tanto isso é verdade que ele exemplifica a insustentabilidade do tratamento do erro
pela teoria psicológica da culpabilidade.
Hans Welzel afirma, porém, que há muitos tipos nos quais o injusto não
pode ser concebido de forma eminentemente objetiva, como no caso do crime de
furto, em que a ação não se esgota simplesmente na subtração de coisa alheia,
sendo necessário o ânimo de lucro é o elemento que converte tal subtração em
delito contra o patrimônio; ou, mais especificamente, no caso do delito de
apropriação em debita em que fica mais evidente o elemento anímico.515
Na hipótese dos delitos tentados, o dolo já era integrante do injusto,
consequentemente, já pertencia ao tipo penal como elemento subjetivo e não
apenas à culpabilidade. Por consequência lógica, se o dolo já fazia parte do tipo
penal na tentativa, com mais razão deveria fazer do tipo se o delito se consumar.
Isso abriu uma brecha na doutrina da ação causalista, sendo obrigada a
reconhecer o dolo como elementos constitutivo do injusto em todos os tipos

513
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 32.
514
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 83..
515
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
21
culposos.
Mas ele não se ateve apenas a isso. Hans Welzel percebeu que a
manutenção da consciência da antijuridicidade e a exigência de sua atualidade,

como era o entendimento de Edmund Mezger, por exemplo, não conseguia explicar
os delitos de tendência. Assim, com a retirada da consciência da antijuridicidade do
dolo, põe-se fim ao dolus malus.
De todo modo, como esclarece Francisco de Assis Toledo

[...] essa nova operação não traria qualquer prejuízo para a culpabilidade
normativa, visto como a consciência da ilicitude poderia ser melhor situada
no interior da culpabilidade. Além disso, poder-se-ia elaborar aquele
conceito normativo para transformá-lo na “consciência potencial da ilicitude”
(grifo do autor).516

A culpa, por sua vez, também foi deslocada para o tipo penal. A ação nos

tipos culposos, nos dizeres de Hans Welzel517, não está na lei, porque são tipos
abertos, que precisam ser necessariamente complementados pelo juiz.
No tipo culposo, há uma ação empreendida e o cuidado objetivamente
necessário causando um desvalor do resultado, que para ele tem apenas uma
“significação delimitadora”518,enquanto na verdade o fundamento da punibilidade se
radica no desvalor da ação.
Assim, com a transferência do dolo e da culpa stricto sensu para o tipo
penal, culpabilidade, por seu turno, será reconstruída com elementos normativos
apenas e com base em um juízo de reprovação.
A reprovabilidade seria a essência da culpabilidade, 519 sendo esta formada
por um elemento intelectivo, que seria o conhecimento ou o potencial conhecimento
da antijuridicidade e de um elemento volitivo, que seria a exigibilidade de obediência
ao direito, além, é claro, da imputabilidade.

516
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 228.
517
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 97.
518
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 97.
519
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 111.
22
3.13 As teorias funcionalistas da culpabilidade

3.13.1 Günther Jakobs

Günther Jakobs, com base na teria dos sistemas520 de Niklas Luhmann,


desenvolve o seu conceito funcional de culpabilidade.
Ao contrário da concepção normativa pura da culpabilidade, que imputa ao
autor de fato típico e antijurídico, um juízo de reprovação, para Günther Jakobs, da
mesma forma que o injusto, a culpabilidade insere-se na estrutura de uma sociedade
e depende dela.
Neste sentido, afirma

[...] a fim de determinar a culpabilidade há de se estabelecer quantas


pressões sociais se podem culpar o autor afetado pela atribuição de
culpabilidade e quantas qualidades perturbadoras do autor hão de ser
aceitas pelo Estado e pela sociedade ou hão de ser suportadas por terceiros
– inclusive a vítima. (tradução nossa)

Assim, o autor parte da premissa que a culpabilidade depende da


organização estrutural da sociedade e seu conteúdo estará inserido nesta
organização. Além disso, o conteúdo da culpabilidade também deve estar de acordo
com os fins da pena que, na sua concepção, só pode ser do tipo preventivo-geral,
tratando-se de manter o reconhecimento geral da norma, 521 não no sentido
intimidatório, senão como exercício da fidelidade em direção ao Direito.522
520
Segundo ele: “De acuerdo com el entendimeiento de la teoria de los sistemas, al que sigo em este
punto, la sociedade es comunicación. Desde esta perspectiva, por ejemplo, lo social em um
homicídio no es la lesión de la carne de la víctima, o la destrucción de su consciência, sino la
afirmación contenida de modo concluyente y objetivada em el hecho punible de no deber respetar el
cuerpo y la consciência de la víctima como elementos de uma persona, sino de poder tratarlos como
um entormo indiferente. Mediante esta afirmación se cuestiona la norma, es devir, la regulación
entre personas: por lo tanto, ele delito es la desautorización de la norma, o vuelto a referir la
persona delincuente, falta de fidelidade al ordenamento jurídico actuada.” De acordo com o
entendimento da teoria dos sistemas, que sigo neste ponto, a sociedade é comunicação. Nessa
perspectiva, por exemplo, o que é social no homicídio não é a lesão na carne da vítima, ou a
destruição de sua consciência, mas a afirmação conclusivamente contida e objetivada no ato
punível de não ter que respeitar o corpo e a consciência de a vítima como elementos de uma
pessoa, mas de poder tratá-la como um ambiente indiferente. Por meio dessa afirmação questiona-
se a norma, ou seja, a regulação entre as pessoas: portanto, o crime é a desautorização da norma,
ou o delinquente é reenviado, falta de fidelidade à ordem jurídica atuada “ (tradução nossa).
JAKOBS, Günther. Que protege el derecho penal. Mendonza: Ediciones Jurídicas Cuyo, 2001, p.
57.
521
JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. 2. ed. Madrid:
Corregida, 1997, p. 584.
522
JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Traducción al castellano y Estudio Preliminar de
Enrique Peñaranda Ramos, Carlos J. Suárez González y Manuel Cancio Meliá. Madrid: Editorial
23
Günther Jakobs rechaça a ideia de livre-arbítrio do autor, apesar de
reconhecer uma relação entre responsabilidade e liberdade, que não está atrelada a
este livre-arbítrio e, sim, na falta de obstáculos juridicamente relevantes para praticar
seus atos para seus atos de organização. 523
Ele critica a generalização acerca do fato de que um terceiro na posição do
agente poderia agir de outro modo, ressaltando que ela só funcionaria quando é
inserida na sua formulação um dado finalístico, pois, do contrário, não há como se
perquirir o que deve ser tomado como generalização e o que deve ser tomado como
individual, de acordo com a situação do autor 524. E este dado inserido diz respeito ao
fim da pena.
Para Günther Jakobs, portanto, a culpabilidade será a falta de fidelidade do
agente de acordo com um juízo objetivo e social, ou seja, que a sua comunicação
com as estruturas sociais, com o sistema previamente organizado de uma sociedade
vai contra ele e não pode ser seguido pelos demais indivíduos desta mesma
sociedade. 525
O estabelecimento da culpabilidade do agente, portanto, será feita
objetivamente e esta objetivação se dará mediante a pena, punindo-o e privando-o
de sua liberdade. A culpabilidade, portanto, a falta de fidelidade ao Direito, enquanto
desautorização da norma, por sua vez, é um assunto social e não pode ser
analisada na psiquê do autor.526
Resumindo: o agente, pessoa livre, atua sem levar em conta a norma,
infringindo-a. O fato e a pena que a ele será imputada se encontram no mesmo
plano.
O fato é a negação da estrutura da sociedade, a pena, por sua vez, a
confirmação desta estrutura, desta organização. Pouco importa para Günther Jakobs

Civitas, 1997, p. 78.


523
JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. 2. ed. Madrid:
Corregida, 1997, p. 584-585.
524
JAKOBS, Günther. Derecho penal parte general Fundamentos y teoría de la imputación
Traducción de Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. 2. ed. Madrid:
Corregida, 1997, p. 586.
525
JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Traducción al castellano y Estudio Preliminar de
Enrique Peñaranda Ramos, Carlos J. Suárez González y Manuel Cancio Meliá. Madrid: Editorial
Civitas, 1997, p. 59.
526
JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Traducción al castellano y Estudio Preliminar de
Enrique Peñaranda Ramos, Carlos J. Suárez González y Manuel Cancio Meliá. Madrid: Editorial
Civitas, 1997, p. 58
24
que a pena tenha caráter intimidatório, dissuasório, individual ou coletivo. Este não
são os seus objetivos finais. 527
O que ele pretende com a sua conceção finalística de culpabilidade é que a
responsabilidade de um individuo que infringiu a norma de uma sociedade seja a ele
imputada de forma objetiva no sentido da conceção preventivo geral da pena, cujo
fim é restabelecer e manter a confiança geral na norma, para que todos os cidadãos
de uma sociedade possam manter a finalidade ao Direito, como um fato que é
requisito da estabilidade do próprio sistema social. A pena remanesce após tal
infringência em uma clara tentativa de restabelecimento da ordem infringida.528

3.13.1 Claus Roxin

Claus Roxin reconhece a importância do conceito normativo da culpabilidade


e que ele representou um grande avanço em relação ao conceito psicológico.529
No entanto, a reprovavbilidade, que é a considerada a essência da concepção
finalista da culpabilidade, não consegue explicar adequadamente a responsabilidade
que deve ser imputada a um sujeito. Para ele, a culpabilidade continua sendo o
pressuposto da responsabilidade jurídico-penal, mas não é o único. Aliado a isto,
entende necessária a relação do fim preventivo geral da pena como forma de
limitação do poder punitivo estatal.530
Através de sua formulação, Claus Roxin critica a dificuldade de rendimento do
conceito normativo puro da culpabilidade para cumprir esta missão.
Tal afirmação parte da premissa de que a concepção normativa pura só
entende que uma conduta é reprovável, sem, no entanto, elencar quais são os
pressupostos materiais para tanto.
Para Claus Roxin, na concepçao por ele defendida, a culpabilidade tem um
caráter empírico-normativo, ou seja, é empiricamente constatável a capacidade de
527
JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Traducción al castellano y Estudio Preliminar de
Enrique Peñaranda Ramos, Carlos J. Suárez González y Manuel Cancio Meliá. Madrid: Editorial
Civitas, 1997, p. 61.
528
FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 205
529
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 797. t. 1.
530
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 798. t. 1.
25
autocontrole e acessibilidade normativa que com ele se produz, bem como o
elemento normativo continua sendo a conduta conforme o Direito.531
Ele entende vantajosa esta concepcão, pois ela limita a atuação do direito
penal ao que é “absolutamente necessário socialmente”,532 ou seja, a paz e a
segurança jurídica resultam da expectativa de que os indivíduos daquela sociedade
se comportarão de acordo com as normas jurídicas.
Portanto, a culpabilidade

[...] não depende de necessidades preventivo-especiais ou preventivo-


gerais vagas e mutáveis, reais ou presumidas, senão a capacidade de
controle do sujeito e com ele de um critério suscetível em princípio de
constatação empírica, que põe limite ao poder punitivo estatal. 533 (tradução
nossa).

A responsabilidade, portanto, dependerá da culpabilidade e da necessidade


preventivo-geral da pena.
O sujeito atuará culpavelmente, quando realizar um injusto jurídico-penal, se,
podendo atuar conforme o Direito, não o faz. Atrelado a isso, surge a necessidade
preventivo-geral da pena, que não precisará de uma fundamentação especial.
A falta da culpabilidade e, aqui, se inserem, por exemplo, as causas
exculpantes e o erro de proibição,534 bem como a falta de necessidade preventivo da
pena, afastarão, por óbvio, a responsabilidade jurídico-penal.
Por fim, na esteira de Gonzalo Fernández, vale ressaltar que o esquema
teleológico-funcional de Claus Roxin se desdobra em injusto e responsabilidade,
exercendo a pena a função prevenção geral como um complemento à culpabilidade

531
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 798. t. 1.
532
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 810. t. 1
533
“[...] no depende de necesidades preventivoespeciales o preventivogenerales vagas y cambiantes,
reales o presuntas, sino de la capacidad de control del sujeto y con ello de un criterio susceptible en
principio de constatación empírica, que pone un límite a la potestad punitiva del Estado”. ROXIN,
Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito. Tradução
de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. 2. ed.
Madrid: Civitas, 1997, p. 811. t. 1.
534
Claus ROXIN entende que, na verdade, as causas exculpantes ou o erro de proibição não são
causas apenas de exclusão da culpabilidade, mas da própria responsabilidade baseadas nos fins
da pena. ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría
del delito. Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de
Vicente Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997, p. 815. t. 1.)
26
e de forma mais branda que no funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs.535

3.13.3 Winfried Hassemer

Winfried Hassemer536 aponta que o princípio da culpabilidade vem sendo


questionado e que sua real função foi reduzida a simples meio e medida da pena e
como critério de imputação e exculpação.
Na verdade, a culpabilidade se transformou como mero indicador de
responsabilidade do sujeito em um evidente direito penal autoritário sem que haja
uma a correspondente responsabilização da sociedade.537
Winfried Hassemer entende que é possível estudar o princípio da
culpabilidade sem abandoná-lo, mas, ao mesmo tempo, afastando-se da ideia do
“poder agir de outro modo”. Para ele, este conceito é débil, pois não se sabe com
precisão qual o conceito de ‘homem médio’, tampouco o que este homem fará em
uma determinada situação.538 Ou seja, não há como se aferir se este indivíduo tenha
liberdade para escolher alternativas à sua atuação. Para ele, o homem médio, com
cujas capacidades se mede o acusado na reprovação da culpabilidade, nada mais é
do que “uma figura imaginária”. 539
A despeito desta crítica inicial, Winfried Hassemer540 aponta elementos
concordantes sobre o conceito de culpabilidade, tais como a manutenção imputação
subjetiva, sob pena de empreendermos um renascimento da responsabilidade
objetiva pelo resultado. Demonstra que existem critérios de participação interna
como critério de imputação subjetiva, que seriam o dolo e a culpa. Em consequência
desta distinção dos graus de participação, necessário se faz a sua valoração. Para

535
FERNANDÉZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: um ensayo de fundamentación
dogmática. Buenos Aires: BdeF, 2004, p. 209.
536
HASSEMER, Winfried. Alternativas al principio de culpabilidad?. Doctrina Penal - Teoria y
Práctica em las Ciencias Penais - Revista Trimestral, Buenos Aires, ano 5, n. 17-20, p. 235-244,
1982.
537
HASSEMER, Winfried. Alternativas al principio de culpabilidad?. Doctrina Penal - Teoria y
Práctica em las Ciencias Penais - Revista Trimestral, Buenos Aires, ano 5, n. 17-20, p. 235-244,
1982.
538
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 316.
539
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 309.
540
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 298.
27
ele, dolo e culpa não são simplesmente fenômenos descritivos, mas também
normativos.
A reprovação, portanto, será mensurada não apenas com o grau de
participação interna do que o observador vê ou percebe do acontecimento exterior. 541
Os graus de participação interna fazem parte de uma escala sendo que a culpa
inconsciente se encontra na base desta escala, enquanto o dolo está no seu vértice.
Por fim, a última concordância diz respeito à determinação da pena como
como consequência no grau de participação interna no evento. É necessário que
seja sopesado o binômio causa-efeito para que ocorra a reação, no caso, a
determinação de uma pena, devendo ser observados de fato os princípios da
proporcionalidade, proibição de excesso ou de igualdade no sacrifício.
A fixação da pena, portanto, parte do pressuposto de que “[...] ninguém pode
ser sobrecarregado ou lesionado por medidas jurídicas desproporcionais”542. Assim,
como dolo e culpa se encontram em posições diferentes na escala de grau de
participação interna, exigem que a reação penal (pena) também seja distinta. Além
deste critério, outros também devem ser levados em conta, tais como a categoria do
bem jurídico lesionado; a intensidade da lesão ao bem jurídico; comportamento da
vítima na produção do resultado e, até mesmo, a relação do autor com a vítima.543
O próprio Winfried Hassemer544 aponta que o princípio da proporcionalidade é
um problema que ainda não foi solucionado pela dogmática penal, porque ainda não
há uma teoria da pena e de sua medida qual o critério adequado para se mensurar a
gravidade da sanção e a sua intensidade.
Ele propõe que esta teoria da pena a ser elaborada deveria sobre a
intensidade da lesão ao bem jurídico, sobre a hierarquia dos bens jurídicos, partindo
das lesões dos mais graves ao menos graves (ou vice-versa, se preferir), sobre os
graus de participação interna no acontecimento exterior (dolo-culpa) e sobre a
suscetibilidade e a sensibilidade à pena dos indivíduos condenados.545

541
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 298.
542
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 300.
543
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 302.
544
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 321.
545
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 321.
28
Apesar de trazer as dificuldades da relação entre a gravidade do delito e
medida da pena a ser atribuída ao autor do fato, bem como de propor alguns

critérios que poderiam orientar o intérprete no momento da fixação pena, Winfried


Hassemer não apresenta como isto poderia se efetivar na prática, apenas,
ressalvando que é “[...] necessário trabalhar e aperfeiçoar os critérios diferenciados
da proporcionalidade, que o direito positivo oferece em abundância e que nós já
observamos”.546
Por sua vez, em relação à suscetibilidade e a sensibilidade à pena dos

indivíduos condenados, Winfried Hassemer da mesma forma não mostrou como


poderia ser implementada e tampouco faz uso dos estudos de Eugenio Raúl
Zaffaroni sobre a culpabilidade pela vulnerabilidade – a ser analisada no próximo
tópico - e que, muito embora, não trate de forma idêntica a proposição feita por

Winfried Hassemer, serviria de auxílio para uma solução para este questionamento.
Inclusive o próprio conceito de reprovabilidade de Winfried Hassemer de que
um delito não é mera obra de um indivíduo isoladamente, mas que recebe o influxo
de outras circunstancias que ele expressamente nomeia, tais como o desemprego, a
agressiva competitividade e a pressão do resultado na divisão social do trabalho,
não autorizam o direito penal a renunciar à imputação subjetiva quando ocorrido o
injusto penal.547 Neste ponto, a teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade de
Eugenio Raúl Zaffaroni serviria de auxílio para tentar solucionar a crítica apontada.
Tal qual Claus Roxin, Winfried Hassemer entende que a moderna dogmática
da culpabilidade busca resposta nos fins da pena que, segundo ele, são
considerados fontes de orientação para se alcançar um juízo concreto de
culpabilidade.
A ligação entre o juízo de culpabilidade e os fins da pena dar-se-á da seguinte
maneira: onde o direito penal puder alcançar a ressocialização do autor, a
intimidação do autor em potencial ou estabilização da consciência normativa da
população (função preventiva da pena), será razoável reprovar o autor do seu desvio
de poder agir de outro modo, será feito o juízo de culpabilidade.548
546
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 321.
547
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 320.
548
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 312.
29
De outro lado, se não houver como se alcançar o fim preventivo da pena, “[...]
é absurdo [e injusto] construir regras de um poder geral [...]”, 549 pois a possibilidade
de ressocialização daquele autor em particular, de intimidação ou estabilização das
normas estaria contrária à realidade fática.
Diante deste cenário, a solução por ele apresentada é a de que o intérprete
aplicaria as causas exculpantes – as já existentes, diga-se de passagem, orientadas
para se obter os fins da pena.
Winfried Hassemer expressamente se filia e adapta o seu juízo de
culpabilidade à teoria funcional sistêmica de Luhmann e afirma que tal adaptação se
dá perfeitamente, porque o juízo de culpabilidade se torna um subsistema do direito
penal e “[...] recebe um papel criativo face aos fins que o Direito pretende
alcançar”.550
O motivo e o fundamento da atividade jurídico-penal não resultam da culpa
reprovável de um indivíduo. Na verdade, a atuação do sistema jurídico-penal se
justifica para solucionar os conflitos sociais cujo êxito não poderia ser alcançado em
outras searas menos intensas que a do Direito Penal, por tal razão “a culpabilidade
dos participantes é necessária para a justiça penal somente como limite da
imputação subjetiva, não como fundamentação de sua atuação.” 551

3.13.4 Eugenio Raúl Zaffaroni

Eugenio Raúl Zaffaroni parte da premissa que o poder punitivo estatal,


auxiliado pelas agências de controle oficiais, seleciona alguns candidatos à
criminalização, baseados em estereótipos previamente escolhidos.
Determinados delitos, tais como crimes contra o patrimônio, tráfico de drogas,
dentre outros, serão imputados à classe dos indesejados. Outros, por exemplo,
crimes do “colarinho branco”, e que, em sua maioria, são cometidos por aqueles que
se encontram fora do estereótipo apresentam mais brandas ou apresentam a
possibilidade de obtenção de benefício durante a execução penal de forma mais
célere, permitindo que seus autores não sejam encarcerados ou saiam do cárcere
549
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 312.
550
551
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo
Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2005, p. 321
30
de forma mais rápida.
Diante deste cenário, Eugenio Raúl Zaffaroni critica o conceito jurídico de
delito que separa a ação em tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, afirmando

[...] a síntese dos requisitos que devem estar presentes em qualquer ação
conflituosa de um autor selecionado pelo poder do sistema penal para que a
agência judicial responda afirmativamente quanto ao prosseguimento do
processo de criminalização já em curso.552

E prossegue

[...] ‘teoria do delito’ é somente o ‘nomen juris’ de uma parte do discurso


jurídico-penal que explicita de forma orgânica o conjunto dos requisitos que
a agencia judicial deve exigir antes de decidir-se afirmativamente pelo
prosseguimento do processo de criminalização. (grifo do autor).553

Assim, quando estes requisitos se cumprem haverá a caracterização do


injusto penal, formado pela tipicidade e pela antijuridicidade.
Em relação à culpabilidade, Eugenio Raúl Zaffaroni afirma que a culpabilidade
normativa baseada na reprovabilidade do agente entrou em crise com a
“deslegitimação do poder seletivo penal”554 e tampouco apresenta respostas para
este juízo de reprovação.
Eugenio Raúl Zaffaroni ressalta que se já é difícil de se realizar este juízo de
reprovabilidade nas hipóteses já previstas pela dogmática tradicional, tais como nos
casos de inimputabilidade e erro de proibição, esta operação se torna tarefa quase
impossível, quando o agente se encontra inserido na criminalidade e “[...] seu âmbito
de autodeterminação estava tão reduzido pelas circunstâncias objetivas que também
a exigibilidade aparecia como sumamente reduzida [...]”.555
A conclusão a que se chega é que o processo de criminalização levado a
efeito pelas agências estatais não pode prosseguir. Para tanto, ele propõe uma nova

552
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2018, p. 247.
553
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2018, p. 248
554
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2018, p. 259.
555
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2018, p. 259.
31
concepção de culpabilidade a partir do grau de vulnerabilidade que a pessoa oferece
ao exercício do poder punitivo estatal.556
De acordo com tal proposta, será o grau de vulnerabilidade em que uma
pessoa se encontra que será o fator determinante para ela ser selecionada pelo
sistema e não o cometimento do injusto penal.
Assim, o grau de esforço que uma pessoa despende para se colocar em uma
situação de vulnerabilidade será proporcional à sua contribuição para a legitimação
do sistema penal que, por consequência, terá menos espaço para impedir ou
minimizar a produção de sua resposta.
A vulnerabilidade, por sua vez, apresenta graus de acordo com a posição ou
estado de vulnerabilidade em que o indivíduo se encontra ou o esforço individual
para a auto colocação na situação de vulnerabilidade.
A posição ou estado de vulnerabilidade está ligado ao estrato social no qual
um indivíduo está inserido. Leva-se em conta aqui a classe ou grupo sociais, raça,
gênero, dentre outros e que serão variáveis de acordo com o estereótipo almejado e
escolhido pelo sistema penal.
Já a capacidade de se auto colocar em uma situação de vulnerabilidade é
individual e consiste “no grau de perigo ou risco em que a pessoa se coloca em
557
razão de um comportamento particular”. De se salientar que este esforço
praticado pelo agente é graduável e será, como já dito, proporcional à resposta dada
pelo sistema penal.
Com base neste raciocínio, se um indivíduo for enquadrado naquele
estereótipo pré-concebido, menos autonomia terá para sair dele, logo, “em regra, a
posição ou estado de maior vulnerabilidade dará origem a um baixo de nível de
culpabilidade pela vulnerabilidade, porque o esforço pessoal para a vulnerabilidade
por parte da pessoa não é elevado”. 558
De outro lado, quanto maior for o grau de culpabilidade pela vulnerabilidade, a
agencia estatal terá menos interesse em limitar a penal.

556
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Hacia um realismo jurídico penal. Caracas: Monte Avila
Latinoamericana, 1992, p. 110.
557
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2018, p. 270.
558
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2018, p. 273.
32
A proposta de culpabilidade pela vulnerabilidade feita por Eugenio Raúl
Zaffaroni é ousada e desenvolve a ideia de coculpabilidade, mas ele próprio ressalta
que a culpabilidade deve ser entendida como um juízo de reprovação baseado na
autodeterminação do autor no momento do fato, segundo a concepção assentada
pela dogmática penal atual, mas também deve ser levado em conta o juízo de
reprovação pelo esforço que o agente despendeu para alcançar a posição de
vulnerabilidade na qual o sistema penal o tenha rotulado, descontando de sua pena
o seu mero estado de vulnerabilidade.559

3.13.5 Giovanni Fiadanca e Enzo Musco

Giovanni Fiadanca e Enzo Musco entendem que o enfraquecimento do


debate sobre a libre arbítrio é também uma consequência da relação alterada entre
a categoria de culpabilidade e a concepção da função da punição. enquanto a
concepção retributiva predominou, a punição foi concebida como uma reação cujo
objetivo era comprar a culpa do delinquente: e, nesta perspectiva eticamente
orientada, não teria feito qualquer sentido falar de compensação pela culpa se o
crime não tivesse sido o resultado de uma escolha baseada na liberdade da vontade
do sujeito.560
Eles entendem que, no momento atual do estudo do Direito penal, em que há
uma retirada de elementos eticizantes, mantendo-se o seu caráter secular e laico e
com o predomínio da teoria preventiva da pena - geral e especial -, a culpabilidade
perde o seu tradicional papel de fundamento da punição.
Giovanni Fiadanca e Enzo Musco afirmam que a culpabilidade sempre foi
pano de fundo de uma discussão intensa no Direito Penal e apontam que houve
uma ruptura na ligação culpabilidade – teoria retributiva da pena. No passado, a
teoria retributiva era reconhecida porque era compreendida como uma reação a um
mal cometido. 561
Com a entrada em crise do tradicional conceito retributivo da pena, que tem
559
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 656.
560
FIADANCA, Giovanni; MUSCO, Enzo. 2. ed. Diritto penale: parte generale. Bologna: Zanichelli,
1989, p. 295
561
FIADANCA, Giovanni; MUSCO, Enzo. 2. ed. Diritto penale: parte generale. Bologna: Zanichelli,
1989, p. 296
33
vários motivos, dentre eles a falência da prática penal, bem como a orientação
interventista do Estado Social de Direito, que sempre tem como uma de suas
finalidades a erradicação ou a tentativa de diminuição das causas de delinquência,
eleva-se o problema de uma nova justificação da categoria da culpabilidade.
Porém, dada a ligação estreita entre culpabilidade e função do Direito Penal,
a legitimidade da culpabilidade não pode se desconectar do que é atribuído hoje à
sanção penal, qual seja, a proteção dos bens jurídicos através das técnicas de
prevenção geral e especial.
A culpabilidade neste Direito Penal com fins preventivos gerais e especiais
não é consequência imutável de uma acertada culpabilidade. Esta é uma condição
necessária, mas não suficiente da punibilidade.
Giovanni Fiadanca e Enzo Musco questionam se a possibilidade de agir de
outro modo pode ser considerada como pressuposto da culpabilidade, ou seja, se o
juiz, ao tomar conhecimento do injusto penal se ele deve valorar tal característica
concretamente com base nas características especificas daquele sujeito ou deve
levar em conta a figura do homem médio, inspirado no aspecto normativo-social e
que, por sua vez, à necessidade de prevenir lesões a bens jurídicos. 562 Filiam-se ao
entendimento de que é necessário que se avalie a capacidade individual de agir ,
pois, do contrário, a análise da culpabilidade baseada no homem médio privará o
referido juízo de fundamento real e sem conteúdo porque completamente
escravizada da exigência de prevenção.
Logo, se a culpabilidade for privada do requisito individual e autônomo e
alguns de destes requisitos deveriam integra-lo são reconstruídos à luz dos objetivos
da pena, é que a culpabilidade crível que esta possa das lugar ao invés do que se
pretende, ao papel de presídio da liberdade e da dignidade da pessoa humana no
confronto de uma eventual política criminal liberal.
Assim, o poder de agir de outro modo fundamentará o juízo de reprovação
como limite.

3.14 A consciência da antijuridicidade e a sua relação com a adequação social

562
FIADANCA, Giovanni; MUSCO, Enzo. 2. ed. Diritto penale: parte generale. Bologna: Zanichelli,
1989, p. 296,
34
Para que seja imputada a culpabilidade de um fato a um indivíduo, é
necessário que ele conheça ou pudesse conhecer a sua antijuridicidade.
Cláudio Brandão reputa à consciência da antijuridicidade a base do juízo de
culpabilidade, afirmando que a consciência da antijuridicidade não se confunde com
a consciência da lei, pois “enquanto a lei é um ato próprio do poder legislativo, a
antijuridicidade é um juízo de desvalor e é enquanto percepção do desvalor que
conceituamos a referida consciência da antijuridicidade”.563
Giovanni Fiadanca e Enzo Musco ressalvam que basta apenas a
possibilidade de conhecimento da antijuridicidade para a censura da culpabilidade.564
Neste mesmo sentido, Eugénio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli
ensinam que a lei não exige uma efetiva compreensão da antijuridicidade, mas tão
somente a possibilidade exigível de sua compreensão, sendo esta condição
suficiente, mas também necessária do requerimento de culpabilidade.565
No entanto, é necessário um cuidado na utilização do termo ‘consciência da
antijuridicidade’ que pode significar tanto a própria possibilidade exigível de
compreensão da antijuridicidade como requisito indispensável para a reprovabilidade
de culpabilidade do ato, como um conhecimento efetivo da antijuridicidade ou com a
compreensão atual da antijuridicidade, que é requisito que a lei Argentina nem a do
Brasil exigem, mas que, caso ocorra, quase nunca será completa. 566
Para a teoria extremada do dolo, este era elemento da culpabilidade e
consciência da antijuridicidade também se encontrava nele. O dolo, portanto, será
um dolo normativo, o dolus malus dos romanos, formado pela vontade, previsão e
conhecimento que realiza uma conduta proibida – consciência atual da ilicitude.567
Para esta teoria, qualquer erro, seja de tipo ou de proibição, o dolo será
exlcuido. Se o erro for de tipo, exclui-se a vontade de praticar o injusto penal,
eliminando-se o seu elemento psíquico. Por outro lado, se o erro for de proibição, a
consciência da antijuridicidade será excluída e, consequentemente, o elemento

563
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 283.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
564
FIADANCA, Giovanni; MUSCO, Enzo. 2. ed. Diritto penale: parte generale. Bologna: Zanichelli,
1989, p. 296.
565
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011 p. 677. v. 1.
566
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, v. 1, p. 282
567
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 282.
35
normativo do dolo568.
Por sua vez, a teoria limitada do dolo teve a intenção de aperfeiçoar a teoria
estrita ou extremada do dolo, substituindo o conhecimento atual da ilicitude pelo
conhecimento potencial, além de se exigir que a antijuridicidade não fosse apenas
formal, mas também material.
Entende-se por antijuridicidade formal, quando há conhecimento pelo sujeito
da norma jurídica que atribui ao fato o caráter de antijurídico. Por seu turno, a
consciência da antijuridicidade material é o conhecimento da antissocialidade da sua
ação, ou seja, não basta que o autor tenha conhecimento ou não da proibição de
uma determinada norma, é imprescindível que formue ele saiba que seu
comportamento é antijurídico.569
Juarez Tavares afirma que, com a crescente influência do neokantismo no
Direito Penal e, para atender à necessidade cada vez mais autoritária do Estado
Nacionalsocialista alemão, noticia a formulação por Edmund Mezger da teoria da
cegueira jurídica ou inimizade ao direito.570
Por sua vez, Eugénio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli 571 informam
que Edmund Mezger, nesta sua concepção, entendia que em determinados casos
haverá dolo, a despeito da inexistência do conhecimento efetivo da antijuridicidade,
ou seja, aquele indivíduo que tem dúvidas se a sua conduta é ou não antijurídica,
mas que não tem interesse em averiguar o fato, porque lhe é indiferente, demonstra,
portanto, um menosprezo pela ordem jurídica talvez maior que aquele que sabe qual
o seu comportamento é antijurídico. Assim, ele cria um substituo para o dolo que é a
cegueira para o direito, cujo nome posteriormente foi alterado para inimizade ao
direito.572
568
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 242.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
569
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 235.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
570
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020..
571
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 283.
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte
geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, v. 1, p. 282
572
Sobre a técnica de mudança de nomes, Eugénio Raúl Zaffaroni é certeiro: “esta técnica de mudar
os nomes às vezes pode ser ingênua, mas no direito penal costuma ser perversa e a conhecemos
da inquisição: a declaração espontânea da bruxa torturada por exemplo. Nos casos dos nazistas, o
rebatizo ou a eufemização era particularmente grave: solução final (Endlösung) era o extermínio
(Sonderbehandlung), a execução; e instalações especiais (Spezialeinrichtungen), as câmaras de
gás. O caso de chamar culpabilidade ao que não é culpabilidade é uma eufemização que também
tende a desconcertar.”(grifo do autor). ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina penal nazista: a
36
E finalizam afirmando que estes conceitos (cegueira para o direito e inimizade
ao direito) nunca foram suficientemente desenvolvidos e elaborados, tendo como
função principal justificar a expressão “são sentimento do povo alemão.573
Pode-se concluir, na esteira de Francisco de Assis Toledo que este modelo
desenvolvido por Edmund Mezger não explicou a culpabilidade penal e, na verdade,
nada mais era do que uma classificação criminológica de determinados agentes e a
busca da legitimação da sua punição sem a exigência atual da antijuridicidade. 574
Com o finalismo, a teoria do dolo foi substituída pelas teorias da culpabilidade.
A primeira a ser analisada será a teoria extremada que parte da reelaboração dos
conceitos de dolo e culpabilidade. Parte-se, portanto, da separação da consciência
da ilicitude do dolo. Este é deslocado para o injusto fazendo parte do tipo penal,
enquanto a consciência da antijuridicidade, que será potencial não mais se
cogitando se ela é real ou atual, permanece na culpabilidade como um elemento
autônomo e pressuposto do juízo de censurabilidade.
Portanto, para a teoria extremada da culpabilidade haverá a separação entre
o erro de tipo e o erro de proibição. No erro de tipo haverá uma percepção errada da
realidade, ou seja, haverá um vício no elemento intelectual do dolo – a
previsibilidade -, impedindo que os elementos do tipo se concretizem. 575 Assim, se o
erro de tipo for invencível, o fato será atípico. No entanto, se vencível haverá
punição pelo crime culposo, se previsto em lei.
Já no erro de proibição, que viciará a consciência da antijuridicidade, se for
invencível, excluir-se-á a culpabilidade; se vencível, haverá uma diminuição de pena.
Para a teoria extremada da culpabilidade, todo e qualquer erro que recaia
sobre uma causa de justificação, será erro de proibição, o que no entendimento de
Francisco de Assis Toledo “[...] impossível a condenação por fato culposo ou
excesso culposo [...]”576, pois se um erro de proibição é inevitável, o agente deve ser
absolvido e, se for evitável também, porque não é possível que um fato seja doloso

dogmática penal alemã entre 1943 e 1945. Tradução de Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis:
Tiratn Lo Blanch, 2019, p. 219.
573
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, v. 1, p.283
574
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 240.
575
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 284.
576
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 285.
37
e culposo ao mesmo tempo.
Este é o principal problema da teoria extremada da culpabilidade, que sofreu
correções a partir da teoria limitada.
Os fundamentos da teoria limitada da culpabilidade são quase idênticos ao da
teoria extremada. O que os difere, no entanto, é o tratamento dado ao erro sobre as
causas de justificação.
Para a teoria limitada o erro sobre uma causa de justificação é subdivido em
dois tipos de erro: um que recairá sobre seus pressupostos fáticos e será
considerado como erro de tipo permissivo e será tratado como um verdadeiro erro
de tipo com as consequências dele advindas.
A outra solução é apresentada para o erro sobre a existência ou os limites de
uma causa de justificação, o chamado erro de permissão e que será tratado como
um erro de proibição. O Código Penal Brasileiro adotou esta teoria em seu artigo 20,
Parágrafo 1º. 577

3.14.1 O erro de proibição e a adequação social

Como visto, portanto, o erro seria a falsa percepção da realidade e tampouco


deve ser confundido com a ignorância, que pode ser conceituada como a falta de
conhecimento acerca de um objeto.578
A classificação do erro, segundo Cláudio Brandão remonta ao Direito
Romano, que diferenciava o erro de facto (error facti) e erro de direito (error jus),
classificação que perdurou até o finalismo de Hans Welzel que, com uma nova
concepção normativa da culpabilidade consolidou a nova dicotomia do erro em erro
de tipo e erro de proibição.579
Nas palavras de Francisco de Assis Toledo “Quebra-se por esse modo a
577
Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a
punição por crime culposo, se previsto em lei. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Descriminantes putativas (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação
de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de
culpa e o fato é punível como crime culposo.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência
da República, [2022].
578
FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio. A teoria do erro de proibição em Cláudio Brandão. Delictae
Revista De Estudos Interdisciplinares Sobre O Delito, v. 5, n. 8, p. 68-113, jan./jun. 2020, p. 70.
579
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 268.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
38
longa tradição romanística que nos prendia no anel de ferro da velha dicotomia erro
de fato – erro de direito, responsável por algumas insuperáveis contradições nas
práxis e na dogmática penal.580
O erro de proibição será, portanto, o erro quanto ao caráter proibido do fato,
isto é, sobre a antijuridicidade do comportamento, cuja análise deve ser realizada
sob o prisma material, levando-se em conta que o agente tenha o conhecimento da
antissocialidade de sua ação.581
Existem várias formas de erro de proibição (direto, indireto e mandamental).
Para a abordagem do tema deste trabalho será analisado o erro de proibição direto.
O erro de proibição direto pode ser conceituado como aquele em que o
agente pratica uma conduta proibida por desconhecer a norma proibitiva, ou por
conhecê-la mal ou por não compreender o seu verdadeiro alcance.
No erro de proibição direto, portanto, o agente sabe, tem a vontade e a
consciência de realizar os elementos que estão contidos em um tipo penal, porém,
como assevera Marco Aurélio Florêncio Filho não tem o conhecimento sobre a
reprovação de sua conduta ou faz uma má interpretação da reprovabilidade de seu
comportamento. 582
E continua afirmando que a consciência da antijuridicidade não se identifica
com tipo penal e é, inclusive, irrelevante o conhecimento deste, bastando que o
agente conheça a antissocialidade de sua ação. A ideia de antijuridicidade será
formada pelos valores sociais de uma sociedade na qual um indivíduo está
inserido.583
Se o indivíduo não tem consciência da antijuridicidade, estaremos diante de
erro de proibição. Para tanto, ele extrai conceitos do meio social em que vive para
compreender a antissocialidade de seu comportamento, que será alcançada através
da valoração na esfera do profano.584
O seu desenvolvimento foi feito por Edmund Mezger e pode ser conceituada

580
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 277.
581
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 278.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1)
582
FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio. A teoria do erro de proibição em Cláudio Brandão. Delictae
Revista De Estudos Interdisciplinares Sobre O Delito, v. 5, n. 8, p. 68-113, jan./jun. 2020, p. 73.
583
FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio. A teoria do erro de proibição em Cláudio Brandão. Delictae
Revista De Estudos Interdisciplinares Sobre O Delito, v. 5, n. 8, p. 68-113, jan./jun. 2020, p. 73.
584
FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio. A teoria do erro de proibição em Cláudio Brandão. Delictae
Revista De Estudos Interdisciplinares Sobre O Delito, v. 5, n. 8, p. 68-113, jan./jun. 2020, p. 79..
39
como

[...] uma apreciação da ação no circulo de pensamentos da pessoa


individual e no ambiente do autor, orientada no mesmo sentido que a
valoração legal-judicial da ação. Mediante ela deve ser caracterizada dita
ação como antijurídica” (tradução nossa)585.

586
Como bem lembrado por Marco Aurélio Florêncio Filho, haverá uma
análise interna (pensamento do autor) e externa (religião, normas de culturas, dentre
outras) para que se perfaça a consciência da antijuridicidade. Será necessário,
portanto, que o agente saiba que faz algo errado e se é possível valorar de acordo
com seu pensamento e seu ambiente que seu comportamento é jurídico ou injusto.587
Como já explanado anteriormente, o conceito de adequação social foi
desenvolvido por Hans Welzel para regular determinadas condutas que, a princípio,
são proibidas e não podem ser consideradas como tal se estão socialmente
adequadas de acordo com a ordem ético-social normal histórica da comunidade,
vigente. E, muito embora ele saliente que as condutas socialmente adequadas não
sejam exemplares, são condutas que estão dentro dos limites da liberdade de
atuação social.588
O questionamento que se faz é se a conduta socialmente adequada pode
induzir a um erro de proibição.
Nesta toada, verifica-se que um Estado Democrático de Direito é formado por
um grande número de normas. Juarez Tavares assevera que se as normas deste
Estado forem elaboradas levando-se em conta o devido processo legislativo e a
vontade da maioria, presume-se a sua legitimidade, bem como a presunção de que
serão observadas por todos.589
No entanto, sabemos que uma sociedade é composta por uma pluralidade de
grupos humanos que, muitas das vezes, obedecem aos preceitos de seus grupos

585
No original: “(…) una apreciacion de la acción em el ambiente del autor, orientada em el mismo
sentido que la valoración legal-judicial de la acción. Mediante ella debe ser caracterizada dicha
acción como antijurídica (MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal. Madrid: Editorial Revista
de Derecho Privado, t. 2, p. 149 1957.
586
FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio. A teoria do erro de proibição em Cláudio Brandão. Delictae
Revista De Estudos Interdisciplinares Sobre O Delito, v. 5, n. 8, p. 68-113, jan./jun. 2020, p. 80.
587
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, 2019, p. 240.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
588
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 32.
589
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 193.
40
sociais, étnicos ou religiosos.
Sobre o tema Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria posiciona-se no sentido
de que não é possível invocar erro de proibição, principalmente em temas sensíveis
relacionados a praticas religiosas.590 A autora entende que, por exemplo, no caso de
uso de drogas por parte de uma seita nativa americana ou a mutilação genital feita
na mulher em algumas correntes do islamismo, são condutas que não se
enquadram no que se entende por socialmente adequado.591
E, muito embora reconheça que a questão do multiculturalismo deva ser
respeitada, a maioria destes comportamentos não é licito e acaba por colidir como
princípios ligados à dignidade da pessoa humana.592
Neste sentido, ela assume que, na maior parte das vezes, o sujeito não tem a
consciência da ilicitude de seu comportamento, afirmando que há uma falta de
representação da realidade, cuja valoração o agente “[...] desconhece, ou que
conhecem nas subjectivamente se recusa a conhecer”.593
O indivíduo provavelmente sabe que aquela prática é proibida no país em que
reside, mas não a interioriza. Em um verdadeiro jogo de palavras, Maria Paula
Bonifácio Ribeiro de Faria afirma que existe a consciência do ilícito, mas não existe ,
“[...] como se a consciência do ilícito não entrasse no interior da pessoa, ficasse fora
dela, não sendo, ao fim e ao cabo, verdadeira consciência de um padrão de
ilicitude”. 594
No entanto, abre exceção apenas para aquelas hipóteses da presença da
censurabilidade em relação a grupos de imigrantes que acabaram de chegar em um
país ocidental ou em relação a grupos que se encontram culturalmente isolados em
que inexiste o contato com a sociedade de um modo geral. E tão somente nesta

590
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 667
591
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 667.
592
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 667.
593
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 669.
594
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 669.
41
hipótese.595
Em contrapartida, nos casos em que o indivíduo não interioriza a consciência
da ilicitude de seu comportamento, haveria um erro sobre a validade do comando,
isto é, no fundo o agente tem a consciência formal da ilicitude, porém, não tem a sua
consciência concreta, o que para ela seria “[...] a tradução mais acabada do erro
sobre a adequação social da conduta”. 596
Contraditoriamente, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria soluciona a
dificuldade em que tais casos são inseridos como hipóteses de erro, o que, no início
da sua análise sobre o tema, rechaçou peremptoriamente.
Pois bem. A partir da 2ª metade do século XX e início do século XXI,
presenciou-se um aumento da imigração de pessoas oriundas do Oriente Médio e
da África seja em razão das constantes guerras em seus países de origem, seja em
razão de uma melhor qualidade de vida que só pode ser alcançada nos países
europeus, Estados Unidos da América e Canadá.
Em sua grande maioria estes imigrantes professam o islamismo, que tem as
suas peculiaridades que diferem totalmente da matriz judaico-cristão que se assenta
no Ocidente.
É fato que os imigrantes continuam a professar a sua fé e viver como se
estivessem em seus países de origem, muita das vezes tendo comportamentos
exóticos para sociedade, nascendo a partir de ai um ponto de atrito que deve ser
analisado e que esbarra no Direito Penal, como no caso das mutilações genitais em
mulheres ou o uso de véus em locais públicos.
Em um primeiro momento, poderíamos argumentar a ocorrência do erro
culturalmente motivado em que o agente

[...] conhece ou pode conhecer a norma proibitiva, mas estará incapacitado


de se orientar por esse conhecimento por força de seu condicionamento a
padrões culturais diversos, internalizados na própria formação de sua
personalidade. 597

595
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 670..
596
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 671.
597
VILLAVICENCIO TERREROS apud TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed.
São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p. 533.
42
Um dos casos que Cristina de Maglie nos traz é o do relato do Caso Kargar

Em 25 de junho de 1993, Mohammad Kargar, um afegão refugiado há


quatro anos nos Estados Unidos com a família, é surpreendido por uma
vizinha enquanto beija o pênis do filho de 18 meses, sendo denunciado para
a autoridade local.58 A polícia, acompanhada por dois detetives, um
assistente social e um intérprete, apresenta-se à habitação de Kargar.
Durante a vistoria, encontra-se em um álbum de família “inclusive” uma
fotografia que retrata Kargar enquanto beija o órgão sexual do filho. Por
força disso, Kargar é preso e acusado de gross sexual assault. Segundo o
Código Penal do Estado de Maine, pune-se como violência sexual “qualquer
contato entre a boca de um adulto e o órgão genital de uma criança”,
enquanto não é exigida para a configuração do tipo a prova da intenção da
gratificação sexual. 598

No caso em comento, a defesa alegou a inofensividade do comportamento


de Kargar, trazendo relatos de que no Afeganistao tal pratica é normal e demonstra
uma manifestação de amor do pai em relação ao filho, sendo costume beijar o filho
homem em todas as partes do corpo. A despeito de tais alegações, Kargar é
condenado em primeiro grau.599
A sua defesa alega que a decisão de 1º grau “errou em questão de direito,
porque considerou a cultura do imputado, a ausência de ofensa ao bem tutelado e o
seu inocente estado mental irrelevantes para a configuração”.600
A Corte de Apelação acolhe todos os pedidos defensivos e absolveu,
observando que

o background, a experiência, o caráter do imputado, que podem indicar se


ele podia ou não compreender a ilicitude do seu comportamento; a
consciência das consequências penais da sua conduta; conduta; as
circunstâncias relativas ao crime; o dano […] ou o perigo ocasionado; o
impacto social do delito; a gravidade do crime em termos de sanção […] e
qualquer outro elemento útil para dar indicações acerca da natureza do
dano e sobre o grau de culpabilidade do agente. 601

Este caso, a meu ver, se encaixa perfeitamente na hipótese de erro de


proibição culturalmente motivado no qual o autor tem a consciência de que, de
598
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
599
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book
600
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
601
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
43
acordo dos seus costumes, o fato é permitido.
Sobre o tema, Renato Jorge de Mello Silveira assevera que as diferenças
culturais nas sociedades ocidentais, principalmente após a globalização devem ser
respeitadas e defende que, muito embora possa ser utilizado o erro culturalmente
motivado, ao qual ele não anui por completo, pode ser respondido em sede pré-
típica como o reconhecimento da adequação social. 602
Como se depreende, há uma diversidade de solução apresentada pela
doutrina sobre o tema, demonstrando a sua dificuldade em obter uma reposta de
modo satisfatória. E tal divergência não se resume apenas ao campo dogmático.
Por sua vez, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara propõe que a solução
envolvendo a questão da multiculturalidade e a intervenção penal deve ser analisada
a partir do âmbito da norma.603
Caso o juiz se depare com um delito que envolva a multiculturalidade,
deverá julgar não apenas de acordo com o texto frio da lei positivada, deverá,
outrossim, levar em conta valores culturais para poder interpretar a norma, a fim de
lhe conferir o sentido mais justo possível no caso concreto.
Tal tarefa não é fácil, pois o magistrado está inserido em uma realidade
cultural e deverá se despir dos seus preconceitos para alcançar um equilíbrio e
julgue o caso com “justiça”.
Na prática, percebe-se que os operadores do direito não dominam, ainda
que minimamente, os postulados básicos da adequação social. Muitas das vezes,
casos levados ao Judiciário e que poderiam ser solucionados pela aplicação do
referido princípio sequer é cogitada. Em outros, a aplicação do princípio é até
aventada no corpo da sentença ou acórdãos, mas com fundamentos totalmente
equivocada, o que, a meu ver, desvirtua e dificulta a aplicação prática da adequação
social pelos tribunais brasileiros.
Confira-se o caso que chegou ao Poder Judiciário de São Paulo.
Uma mãe foi denunciada pelo Ministério Público da Comarca de Campinas –
São Paulo604 pela suposta prática do crime de lesão corporal com violência

602
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 331.
603
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 316 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
604
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Processo n. 1507648-71.2021.8.26.0114 - Ação Penal -
44
doméstica, pois, segundo consta da denúncia, a mãe que pertence ao candomblé,
levou a filha a um ritual religioso no qual a menina sofreu cortes provocados por
gilete e navalha, causando-lhe lesões corporais de natureza leve.
Trata-se de processo de escarificação, muito comum nas práticas de
religiões de matriz africana e consiste na produção de pequenas incisões na pele
para oferecer proteção à pessoa.
Nota-se que houve realização de exame de corpo de delito em que se
constatou a presença de micro lesões na pele da criança, verbis: “Trata-se de lesão
ínfima, insignificante, que não causou prejuízo físico, psicológico ou sequer estético
à criança.
O fundamento utilizado pelo juiz de primeira instância para absolver a mãe
sumariamente foi o seguinte

A tipificação dessa conduta como crime de lesão corporal revela inaceitável


intolerância religiosa basta ver que [felizmente] jamais se cogitou
criminalizar a circuncisão religiosa, que é muito comum entre judeus e
muçulmanos”. A escarificação religiosa, assim como a circuncisão, ainda
que formalmente típica, está em consonância com valores constitucionais e
jamais pode ser considerada conduta criminosa. 605

Não se olvide que as religiões de matriz africana sofrem um alto de grau de


discriminação por parte da sociedade brasileira, de maioria cristã, e isso repercute
nas práticas tanto do Ministério Público e da magistratura, afinal seus membros são
oriundos da maioria cristã do Brasil.
A criminalização de tais comportamentos em decisões judiciais também
refletem o racismo estrutural dos órgãos públicos evidenciando a intolerância
religiosa velada (ou em muitos casos nem tão velada assim) da nossa sociedade.
A crítica que aqui se faz a esta decisão é do fato de a adequação social não
foi sequer mencionada na solução do caso em concreto.
Observa-se que a própria defesa da acusada, em sede de defesa prévia,
argumentou “A prática da escarificação religiosa não configura crime, porque se trata
de lesão ínfima e a Constituição Federal assegura a liberdade religiosa, inclusive a
possibilidade de transmissão familiar de crenças e culturas”. 606

Procedimento Sumário. Campinas: TJSP, 15 jul. 2021.


605
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Processo n. 1507648-71.2021.8.26.0114 - Ação Penal -
Procedimento Sumário. Campinas: TJSP, 15 jul. 2021.
606
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Processo n. 1507648-71.2021.8.26.0114 - Ação Penal -
Procedimento Sumário. Campinas: TJSP, 15 jul. 2021.
45
Como se vê, não foi aventada a questão de que a mãe não tinha a
consciência da ilicitude de seu comportamento, por ser uma pratica reiterada do
candomblé, fé que professa.
E nem vamos tão longe e argumentar a possibilidade do reconhecimento do
erro de proibição culturalmente motivado que, para Juarez Tavares, deve preencher
alguns requisitos, dentre eles:

a) que o agente deve pertencer desde o nascimento a um grupo cultural diverso


daquele para o qual vigem, de modo geral, as normas proibitivas;
b) que o ato tenha sido realizado sob a consciência de sua ilicitude perante
normas de seu grupo;
c) a internalização das normas de seu é vinculante para a sua atividade, de
modo a não se pode afirmar a legitimidade de uma opção diferente;
d) que o agente não tenha se desvinculado de seu grupo originário nem aceitou
viver, incondicionalmente, sob as normas do território em que se encontre e,
e) que o agente tenha se orientado de conformidade com as regras originárias
de seu grupo.607

Presentes estes requisitos, seria o caso de se reconhecer o erro


culturalmente motivado, que se equipara ao erro de proibição inevitável. Como não
temos estes dados, no caso da mae, poderia ser reconhecido em seu favor o erro de
proibição comum.
Talvez a proposta de Renato Jorge de Mello Silveira de que a solução mais
correta seria a pré-típica, na qual o fato seria atípico por ser socialmente
adequado.608
No entanto, o que se percebe que a adequação social sequer foi suscitada
tanto pela defesa, quanto pelo magistrado, o que demonstra o total
desconhecimento do tema por parte dos operadores do Direito, o que seria uma
fonte auxiliar nas soluções de determinadas questões, ainda que bastante
específicas como esta.

607
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 537.
608
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 331
46
TRATAMENTO DO INDÍGENA BRASILEIRO

Quando o nosso país foi descoberto pelos portugueses, viviam no Brasil


diversas tribos indígenas que se espalhavam em todo o território nacional. Com a
crescente ocupação portuguesa, iniciou-se uma relação muito próxima entre o
homem branco – o português – com o nativo – o índio.
Inicialmente, o indígena brasileiro foi utilizado como mão de obra para o
trabalho e a conquista do interior do território da então colônia. E, ao contrário dos
astecas e incas na América Espanhola, não apresentou qualquer resistência à
dominação portuguesa, fato que não fez nascer em Portugal a necessidade da
prática do seu extermínio como ocorrera no México e Peru, respectivamente609. À
mulher indígena reservou-se o papel sexual para servir de distração aos
portugueses, bem como os afazeres domésticos.
À esta relação entre o indígena e o português, Gilberto Freyre afirma que
aquele perdeu “(...) a capacidade de desenvolver-se autonomamente tanto quanto
de elevar-se de repente, por imitação natural ou forcada, aos padrões que lhe
propõe o imperialismo colonizador”.610
Não se pode olvidar que a colonização do Brasil não foi empreendida
apenas pelo governo português. Os jesuítas exerceram papel preponderante na
colonização dos índios, destruindo ou, ao menos tentando castrar, qualquer
expressão cultural ou artística indígena e que estava em desacordo com a moral
católica e/ou europeia611612

609
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala – Formacao da Família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 1ª ed. digital. São Paulo: Global Editorial, 2019, E-book.
610
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala – Formacao da Família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 1ª ed. digital. São Paulo: Global Editorial, 2019, kindle
611
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala – Formacao da Família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 1ª ed. digital. São Paulo: Global Editorial, 2019, E-book.
612
Segundo Gilberto Freyre: “Se atentarmos no quadro organizado por Pitt-Rivers, das influências
deletérias – despovoamento, degeneração, degradação – que o antropólogo inglês atribui ao
contato das raças atrasadas com as adiantadas,283 verificamos que grande, senão o maior
número, são influências que no Brasil operaram sobre o índio através da catequese ou do sistema
moral, pedagógico e de organização e divisão sexual do trabalho imposto pelos jesuítas. Das quinze
ali classificadas parece-nos que nove, pelo menos, caberiam, em um ajuste das responsabilidades
europeias na degradação da raça e da cultura indígena no Brasil, ao sistema civilizador dos
jesuítas: 1) a concentração dos aborígines em grandes aldeias (medida por que muito se
esforçaram os missionários no Brasil);284 2) vestuário à europeia (outra imposição jesuítica aos
catecúmenos);285 3) segregação nas plantações;286 4) obstáculo ao casamento à moda indígena;
5) aplicação de legislação penal europeia a supostos crimes de fornicação; 6) abolição de guerras
entre as tribos; 7) abolição da poligamia; 8) aumento da mortalidade infantil devido a novas
condições de vida; 9) abolição do sistema comunal e da autoridade dos chefes (acrescentemos: da
47
A este paulatino e crescente sufocamento das especificidades e
peculiaridades, o indígena brasileiro foi sendo docilizado ao longo dos séculos,
sendo tratado como uma “criança” grande e que precisava ser tutelado pelo Estado
não como um indíviduo autônomo que, na verdade, é.
Até a Constituição da República 1988 e do Código Civil (Lei no
10.406/2002), a doutrina e a jurisprudência interpretavam a imputabilidade penal dos
índios à luz do art. 26 do Código Penal613, e do art. 4o do Estatuto do Índio (Lei no
6.001/1973)614, segundo o qual os índios são considerados isolados, em vias de
integração, e integrados. O entendimento predominante, em síntese, era no sentido
da inimputabilidade dos índios isolados, da imputabilidade dos integrados, e da
necessidade de exame pericial para aferição da responsabilidade penal dos índios
em vias de integração.
A Constituição da República de 1988 estabelece no seu art. 231, caput, que
“são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens a

autoridade dos pajés, mais visados que aqueles pela rivalidade religiosa dos padres e mais
importantes que os morubixabas0”. FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala – Formacao da
Família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 1ª ed. digital. São Paulo: Global
Editorial, 2019, p. 146-147, E-book.

613
Assim é a redação do artigo 26 do CP
“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito
do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Redução de pena
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de
perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era
inteiramente capaz de entender o caráter ilícicito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento”. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília,
DF: Presidência da República, [2022]
614
“Art 4º Os índios são considerados:
I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos
informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;
II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos,
conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e
modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando
cada vez mais para o próprio sustento;
III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos
direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura”.
BRASIL. Lei nº 6.001, de 21 de dezembro de 1973. Estatuto do Índio. Brasilia, DF: Presidência da
República, [2022]
48
assumindo a pluralidade étnica e cultural do país, tal previsão constitucional foi
reforçada pela ratificação pelo Brasil da Convenção 169 da OIT615
Para complementar, o artigo 8,1 da referida Convencao 169 tem a seguinte
orientação, “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser
levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”616
Já no sistema regional interamericano, a Declaração Americana sobre
Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Organização dos Estados Americanos
– OEA -, em 15 de junho de 2016, prevê o reconhecimento e respeito aos sistemas
jurídicos indígenas pela ordem jurídica nacional, regional e internacional, assim
como o direito à plena representação com dignidade e igualdade perante a lei na
condução pelo Estado de assuntos relativos aos seus direitos ou interesses,
cabendo aos Estados tomar medidas eficazes em conjunto com os povos indígenas
para asseverar a implantacão de todas estas recomendações617.
A despeito de todos estes instrumentos normativos estejam positivados seja
constitucionalmente, infraconstitucionalmente e no sistema interamericano, o que se
observa é que, na prática, nossos indígenas apresentam valores, forma de viver
diferentes dos padrões estabelecidos pela cultura hegemônica, sendo negado a eles
um tratamento diferenciado.

615
Dispõem os artigos 9º, 10 e 11 da Convenção 169 da OIT:

“ARTIGO 9o
1. Desde que sejam compatíveis com o sistema jurídico nacional e com direitos humanos
internacionalmente reconhecidos, os métodos tradicionalmente adotados por esses po- vos para
lidar com delitos cometidos por seus membros deverão ser respeitados.
2. Os costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em consideração pelas
autoridades e tribunais no processo de julgarem esses casos.

ARTIGO 10
1. No processo de impor sanções penais pre- vistas na legislação geral a membros desses povos,
suas características econômicas, sociais e culturais deverão ser levadas em consideração.
2. Deverá ser dada preferência a outros métodos de punição que não o encarceramento.

ARTIGO 11
A imposição de serviços pessoais compul- sórios de qualquer natureza, remunerados ou não, a
membros dos povos interessados deverá ser proibida e passível de punição legal, exceto nos casos
previstos na lei para todos os cidadãos. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO.
Convenção 169. Genebra: Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho,
07 jun. 1989
616
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção 169. Genebra: Conselho de
Administração da Organização Internacional do Trabalho, 07 jun. 1989.
617
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Declaração Americana
Sobre Os Direitos Dos Povos Indígenas. San Jose, 26 fev. 1997.
49
No nosso território nacional existem diversos grupos étnicos, que
apresentam diferenças tanto organizacionais, quanto sociais, e o Estado brasileiro
nega a possibilidade de convivência destes sistemas jurídicos.618
Já em relação ao Direito Penal especificamente, repita-se, embora haja o
reconhecimento a admissão da diversidade étnica e cultural e a necessidade de um
tratamento especializado em razão destas peculiaridades que lhe são inerentes, o
que se verifica da atuação dos nossos operadores do direito, é um total
descompasso, reforçando a ideia de que o tratamento jurídico-penal destinado aos
indígenas baseia-se na superioridade da cultura ocidental em detrimento dos
costumes tribais.
Neste sentido afirma Juliana de Azevedo Santa Rosa Câmara que:

“(...) numa sociedade multicultural, não há lugar para a defesa de


superioridade culutral ou hierarquização de valores morais. Assim, o
reprocheao direito indígena é fruto de esterótipos e preconceitos ladeados
ao monismo jurídico predominante do cenário jurídico brasileiro”.619

O reconhecimento da singularidade dos indígenas não implica em isentá-los


de qualquer tipo de responsabilização penal, até mesmo porque o Estatuto do Indio
no seu artigo 57 estebelece, verbis: “Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais,
de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os
seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em
qualquer caso a pena de morte.”620
O que se depreende do referido dispositivo legal é que sua aplicação não
ocorre de forma automática mediante a mera constatação do envolvimento de um
indígena na pratica de um fato típico ou à sua aplicação quando uma das partes não

618
Neste sentido: As relações de família, propriedade, sucessão, casamento e crime, são, numa
sociedade indígena, nitidamente reconhecidas por toda a comunidade, de tal forma que se
estabelece um sistema jurídico complexo,com normas e sanções. A variedade de sanções
corresponde a importâncias da transgressão e a legitimidade da forma e da sanção não é
questionada, porque não deriva de um poder acima da comunidade, mas da própria comunidade
que as estabelece no processo social,de acordo com as necessidades do grupo . ORGANIZAÇÃO
DOS ESTADOS AMERICANOS. Declaração Americana Sobre Os Direitos Dos Povos
Indígenas. San Jose, 26 fev. 1997.
619
CÂMARA, Juliana de Azevedo Santa Rosa. A sanção criminal no direito penal indígena: do
pluralismo jurídico ao reconhecimento de resolução de conflitos penais. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 25, n. 133, p. 75, jul.. 2017.
620
BRASIL. Lei nº 6.001, de 21 de dezembro de 1973. Estatuto do Índio. Brasilia, DF: Presidência da
República, [2022]
50
seja indígena621, sendo essencial que a pratica delituosa seja praticada nos limites
territoriais das aldeias indígenas.
Muitas das vezes, o Poder Judiciário, ao julgar casos envolvendo indígenas,
simplesmente admitem a alegação de que eles se encontram inseridos na sociedade
brasileira, sendo imputáveis e passiveis de responsabilização penal sem se
atentarem para os valores decorrentes da organização ético e moral da sociedade
indígena.
Mais recentemente observa-se uma mudança, ainda que tímida, dos
operadores do direito quando se deparam com noticias de punição decorrentes do
direito indígena, deixando de denunciar supostos acusados com fundamento de que
determinadas condutas são normais e aceitas naquele grupo, impedindo a aplicação
do Direito Penal estatal.
Confira-se a Notícia de Fato no 1.23.008.000394/2015-61 oriunda de
Santarém no Estado do Pará

NOTÍCIA DE FATO. HOMICÍDIO DE INDÍGENA POR ARMA DE FOGO


(ART. 121 DO CP). CORPO ESQUARTEJADO. RITUAL TRADICIONAL
DENOMINADO “PAJELANÇA BRAVA” DA ETNIA MUNDURUKU
RECONHECIDA CULTURALMENTE PELOS INDÍGENAS.
HOMOLOGAÇÃO DO ARQUIVAMENTO.

1. Procedimento instaurado a partir de termo de declarações prestados por


uma mulher indígena, no dia 24-07-2015, na Delegacia de Polícia Civil de
Itaituba/PA. A mulher indígena relata, basicamente, o seguinte: (a) a morte
de seu filho de 16 anos de idade, no dia 21-06-2015, por disparo intencional
de arma de fogo, condutas praticadas por outros dois indígenas, na aldeia
Sai Cinza. (b) a morte do adolescente ocorreu no contexto de um ritual
tradicional da etnia Munduruku denominado “pajelança brava”. Ele foi morto
dentro de casa, a tiros de espingarda, teve seu corpo arrastado até o rio
Cabitutu, distante aproximadamente 10 km, onde foi esquartejado em
pequenos pedaços, retiraram seu fígado e coração, triturando-os, e as
demais partes do corpo foram amarradas em uma pedra e jogadas no rio
2. Consta do relato que no dia 01/06/2015 um indígena morreu em um
suposto afogamento e que após os pais da vítima consultarem ao Pajé, ao
Capitão, ao Cacique e Lideranças da aldeia, a morte dele foi atribuída a
feitiçaria que o adolescente teria feito. Isso ocasionou a sua morte com
fundamento no ritual da “pajelança braba”, visto que ele era apontado como
“pajé brabo” ou feiticeiro, devendo ser executado pela comunidade
respectiva em razão da prática de magia negra, que é a única conduta
passível de pena de morte (Informação Técnica n. 002/2016/FUNAI).
3. O Procurador da República oficiante promoveu o arquivamento em razão
de Parecer Técnico, confeccionado por Analista do MPU/Antropologia, e
Nota Técnica que revelaram que a dinâmica dos fatos praticados indicaram

621
CÂMARA, Juliana de Azevedo Santa Rosa. A sanção criminal no direito penal indígena: do
pluralismo jurídico ao reconhecimento de resolução de conflitos penais. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 25, n. 133, p. 90, jul.. 2017.
51
efetivamente a prática de um ritual próprio dos indígenas e que faz parte da
histórica formação de novas aldeias.

(...)

6. Ao que restou demonstrado, o adolescente morto, por ser um praticante


de magia negra, na interpretação dos líderes indígenas da comunidade,
seria o responsável pela morte de outro indígena. Diante disso, foi
submetido ao ritual tradicional da “pajelança braba”, com a consequente
aplicação da pena máxima, que é a morte.

7. Conforme disposto pelo Procurador da República oficiante, “o


reconhecimento de que os povos indígenas são culturalmente
diferenciados, e que procuram permanecer como tal, é traduzido no campo
jurídico, pois muitas de suas aspirações encontram espaço nos dispositivos
constitucionais e infraconstitucionais e em regulamentações internacionais.
Assim, os índios de acordo com seus usos e costumes, aplicam sanções
aos que transgridem as normas de convivência estabelecidas pelo grupo a
que pertencem, observadas certas particularidades decorrentes de seu
modo de vida, tradições e crenças. Trata-se de uma das formas de
expressão do direito ao autorreconhecimento”

(...)

12.No caso concreto, conforme amplamente dissertado no Parecer Técnico


no 58/2016 do MPF e na Nota Técnica no 02/2016 da FUNAI, “no código
criminal dos índios Munduruku, a prática de magia negra é a única conduta
possível de pena máxima e que os indígenas se mostram extremamente
insatisfeitos com a exposição do caso para fora da sociedade Munduruku.
Eis que a crença na pajelança braba está intimamente ligada a saúde do
povo da aldeia, ligado a momentos em que a comunidade se sente
ameaçada
por grande crise, males, doenças e mortes inexplicáveis”

13. “Ainda que as comunidades indígenas tenham um elevado nível de


comunicação com a sociedade envolvente, com base no qual se poderia
concluir pelo conhecimento da proibição e de seus efeitos, os diferentes
sistemas de valores éticos e culturais importam na consideração de que
aquela conduta é normal e aceita dentro do grupo a que pertencem,
impedindo que a norma seja internalizada”.

(...)

14. Os que praticaram a conduta ora relatada não reconhecem ter feito algo
proibido – e pautado pelo reconhecido constitucional do
autorreconhecimento realmente não o fizeram. Para eles a norma penal
não alcança a pretendida função motivadora, tampouco alcançaria qualquer
fim preventivo, geral ou especial, a imposição de uma pena.

15. Além da imperiosa necessidade de resguardar a manifestação cultural


da etnia, praticada dentro da coletividade, nos limites da aldeia, em
diversas passagens do procedimento investigatório criminal fica claro que
qualquer ato de investigação judicial tendente a apurar os fatos, representa
indesejável ofensa aos meios culturais de aplicação da justiça e encontrará
expressiva resistência dos indígenas.

16. Homologação do arquivamento622 (grifos no original)

622
PARÁ. Ministério Público Federal. Procuradoria da República do Estado do Pará. Notícia de Fato
No 1.23.008.000394/2015-61. Santarém: MPF, 2021.
52
Como bem asseverado por Renato de Mello Jorge Silveira623, a existência de
tais tradições e costumes indígenas podem causar repugnância em razão do seu
modus operandi e representam uma questão complexa e cheia de facetas, que não
pode ser invisibilizada pelo operador do direito.
Em relação à prática por algumas etnias indígenas da morte de bebês com
má formação congênita e decorrentes de gravidez gemelar, Ana Elisa Liberatore
Silva Bechara relata que os filhos nascidos destas gestações e com estas
características não são considerados pessoas de acordo com a cultura do grupo a
que pertençam, por tal razão preconiza que a morte realizada por estas etnias não
equivale a “matar alguém” ou de “matar o próprio filho” previstas no nosso CP. 624
A Autora reitera o raciocínio aqui já reproduzido de que o modelo jurídico-
penal instituído em nosso país suprime as diferenças culturais, étnicas, de cor,
dentre outras, advertindo que o Direito Penal não seria a melhor opção para
solucionar tais casos.625
Para decidir tais demandas, em que há uma diversidade de culturas, Ana
Elisa Liberatore Silva Bechara propõe que o intérprete deverá atuar ou, ao menos,
tentat atuar, livre dos preconceitos difundidos nas sociedade em que vive.
E, conlcui que:

(...) a norma apenas poderá ser interpretada por meio de uma complexa
operação de heterointegração. O juiz deve, então, enxergar para além do
plano positivado, recuperando do contexto social as noções, valores e
elementos de juízo, os estereótipos e os modelos dos quais deve servir-se
para interpretar a norma, a fim de conferir-lhe o sentido mais justo possível
no caso concreto.626

Desse modo, para a Autora, quando for necessária a realização de um juízo


valorativo de elementos normativos do tipo extrajurídicos, o magistrado deverá levar

623
SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 333.
624
Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos
normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo
Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 314, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1).
625
Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos
normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo
Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 315, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1).
626
Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos
normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo
Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 317, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1).
53
em conta os elementos culturais dentre os quais o agente se encontra inserido 627,
afastando, por via de consequência, o âmbito da intervenção penal, uma vez que
tais comportamentos lesivos serão analisados fora do âmbito normativo.
A Autora entende que a solução a ser aplicada no caso em comento seria
através do reconhecimento do erro de proibição, mais especificamente com
fundamento no erro culturalmente motivado, a meu ver, seria mais eficaz a solução
de que referidas condutas são atípicas, pois são condutas socialmente adequadas e
que se inserem em um contexto de normalidade social da sociedade indígena.

3.15 O princípio da adequação social na doutrina de Carlo Fiore

Carlo Fiore em sua obra L’Azione Socialmente Adeguata nel Diritto Penal, 628
inicia os estudos sobre o tema afirmando que a doutrina tradicional encontra-se em
dificuldades quando se parte do pressuposto de que os termos da incriminação não
se concretizam na proibição da lesão ou ameaça de lesão de um bem jurídico, mas
essencialmente na proibição de um determinado comportamento lesivo ao bem, ou
seja, a mera lesão a um bem jurídico de per si não significa que tal comportamento é
considerado um injusto culpável.
Por detrás da ideia de bem jurídico, na sua tradicional formulação
dogmática, há a falsa perspectiva criada da velha doutrina da antijuridicidade no
ponto em que veio para estabelecer uma equação entre a lesão ao bem jurídico e a
espécie de conduta penalmente relevante.
Segundo Carlo Fiore esta questão se resolve pela negação da exigência
fundamental que está na base da previsão expressa do tipo de crime, enquanto
reduz o inteiro sistema de incriminação e o mesmo princípio de certeza do direito
penal à determinação preventiva pela lei dos bens e interesses que não devem em
caso algum ser prejudicado. Ressalta que não é levado em conta um dos pontos
mais importantes e vinculantes e que se localiza na norma incriminadora – a conduta
do sujeito. 629
627
Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos
normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo
Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 317, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1).

628
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966.
629
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 99-
100.
54
Para ele, não se deve identificar um fato como proibido simplesmente
analisando-o como uma lesão ao bem jurídico. Deve-se reafirmar o princípio nullum
crimen sine lege e que contém a descrição típica; não o dano ao patrimônio, mas
especificamente a ação ou omissão que o realiza e, de fato, seria o objeto essencial
da proibição contida na lei.630
Partindo de tal premissa, Carlo Fiore entende que há um valor determinante
para a configuração do ilícito e que deve ser retirado da norma: a ação. Esta não
deve ser levada em consideração não apenas pelos efeitos que causa, mas deve se
levar em conta também a sua qualidade de agir como tal. 631 Percebe que limitar a
análise da ação apenas com base nas consequências que ela causa a reduz de um
simples instrumento a uma mera finalidade, concluindo que é necessária uma
fundamental distinção ética entre a categoria do valor do ato e do valor do evento,
imprescindível, no seu entender, par determinar a estrutura do fato para a aplicação
de uma pena.632 633
Sob este raciocínio, a aplicação da pena a condutas que violam os valores
ético-sociais cumpre a finalidade do ordenamento jurídico, que consiste na
conservação do bem jurídico, mas não de todos indistintamente, mas sim daqueles
bens cuja proteção é essencial para uma convivência social de forma ordenada.
O dolo e culpa não constituem duas hipóteses de condutas típicas. Na
verdade, seriam diferentes estruturas sociais do agir e tal postulado confirma o seu

630
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 100.
631
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, 100.
632
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 104.
633
Sobre a ética, afirma Carlo Fiore: “Isso não envolve de forma alguma a identificação do Direito
Penal com a moral. Como foi oportunamento sublinhado, o destaque da ética é evidente, pelo
menos sob dois aspectos: em primeiro lugar, a avaliação do ordenamento jurídico, ao contrário da
avaliação moral, só pode ser dirigida contra uma ação que concretizou de forma efetiva o desvalor
do ato infrator e não contra uma mera tendência imoral da vontade; em segundo lugar, os valores
do ato que representam o substrato ético positivo das normas penais são particularmente
circunscritos de acordo com a sua necessária ligação como os bens cuja proteção o sistema de
incriminação está preordenado: isto é, não se pune qualquer intenção imoral ou criminosa ou
genericamente antijurídica, mas sim a intenção contrária ao valor do ato protegido”(tradução nossa:
“ Ciò non comporta affatto l’identificazione del diritto penale con la morale. Come è stato
opportunamente sottolineato, il distacco dall’etica è evidente perlomeno sotto due profili: in primo
luoogo, la valutazione morale, può dirigersi soltanto contro azioni che concretamente realizzato il
disvalore di atto incriminato e non anche contro uma mera tendenza immorale della volontà; in
secondo luogo, i valori di atto, che rappresentado il substrato positivo ético-sociale delle norme
penali, risultano circoscritti particolarmente, in funzione della loro necessária conessione com i beni
ed valori alla cui tutela è preordinato il sistema delle incriminazione. Non si punisce, cioè, uma
qualsiasi intenzione immorale o criminosa o genericamente antigiuridica, ma la specifica intenzione
contraria al valore di atto tutelato”. FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto
penal. Napoli: Morano, 1966, p. 107.
55
posicionamento de que a relevância da ação para o direito penal depende não tanto
da sua eficácia causal em provocar uma lesão ao bem mas ao significado de sua
lesão. 634
A avaliação jurídica não se refere a um processo causal, mas sim ao seu
significado e ao seu conteúdo valorativo como fenômeno das relações; logo, o
desvalor jurídico do ilícito deriva da complexa estrutura que é formada por elementos
que dão valor a um determinado significado ético-social ao conteúdo da ação.
Para os defensores do conceito social da ação, conforme Carlo Fiore, o
ilícito penal é um ilícito pessoal, que diz respeito ao seu autor e é marcado não
apenas pelo seu valor negativo - lesão de bens sociais - do evento, mas também por
um desvalor específico da conduta, cuja descoberta, no entanto, é completamente
635
independente da referência ao elemento psicológico da ação. A existência do
ilícito, portanto, dependerá do específico relacionamento fato-autor.
No entanto, o fato do autor é considerado exclusivamente em sua realidade
social, externa, enquanto a sua realidade individual (consciência e vontade) será
analisada apenas na culpabilidade. Assim, a intenção do autor não deve ser
analisada no elemento pessoal do ilícito, pois isso diz respeito exclusivamente à
violação de um dever como um dado objetivo avaliável do ponto de vista da
sociedade.
O ilícito, portanto, será a resultante de uma duplicidade de elementos
objetivos: a lesão de um interesse social e a violação de uma norma de
comportamento, isto é, a violação de um dever derivante da específica posição do
autor na sociedade.
Assim, a violação do dever social do autor constitui o fundamento de uma
reprovação pelo fato, so enquanto é perceptível pelo direito as consequências
reprováveis e que modificam o mundo exterior.
Nesta nova formulação, assevera Carlo Fiore que à conduta é despojado
seu conteúdo psíquico, devendo ser aferido apenas com base em suas
consequências objetivamente calculáveis na esfera social. 636
A ação, portanto, seria um comportamento social cuja figura jurídica é
constituída pela conduta de forma objetiva e que se direciona à lesão de um bem

634
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 109.
635
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 119..
636
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 120.
56
social, portanto, o conceito de ação, como pedra fundamental da dogmática penal,
refletirá, a princípio, um dado amorfo, cuja qualificação será dada pela conexão com
uma realidade superordenada pelo sistema pré-constituído dos bens sociais.
Havendo a lesão a tais bens, exaure-se o conteúdo do ilícito penal.637
Carlo Fiore afirma que o sentido do comportamento na esfera social é, de
fato, dado justamente pelo elemento psíquico que o sustenta e que se objetiva em
sua fisionomia típica. Portanto, a consideração da conduta como fenômeno social
juridicamente relevante só é possível na indissolubilidade do dado objetivo da
conduta de seu conteúdo espiritual.638
E avança asseverando que a atual doutrina da ação que se funda no fato de
que de que a vontade é uma das formadoras das espécies de manifestação do
comportamento no mundo exterior, obsta a sua valoração jurídica (da vontade) como
expressão de um conteúdo intencional que também é o base do seu significado
como processo social.639
E conclui que:

quando se propõe um conceito ‘social’ da ação que prescinde do conteúdo


intencional do ato ou do comportamento, mostra-se a não compreensão que
o significado social da atitude psíquica – como demonstrou a doutrina
contemporânea da ação – pertence à estrutura categórica da conduta
humana. A finalidade da ação na esfera social já está implícita na vontade
do sujeito pelo seu movimento na vida da associação para a integração da
experiência individual na experiência do mundo social. (tradução nossa)640

Para Carlo Fiore, o conceito de adequação social serve para uma


determinação do objeto de proteção normativa e, ao mesmo tempo, dos termos da
proibição contida na incriminação, sendo que seu significado está presente na
valorização da natureza social do interesse protegido pela disposição incriminadora.

637
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 121-
122.
638
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 121-
123.
639
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 121-
123
640
“Quando si propone um concetto sociale dell’azione che prescinde dal suo contenuto intenzionale
di atto e di comportamentom si mostra di non comprendere che il significato sociale
dell’attenggiamento psichico – come ha dimostrato la dottrina contemporânea dell’azione –
appartiene alla strutura categoriale della condotta umana. La portata dell’azione nella sfera sociale è
già implícita nella volontà del soggetto, per il suo stesso muoversi nella vita asscociata, per l’inserirsi
dell’esperienza individuale nell’esperienza vivente del mondo sociale”. FIORE, Carlo. L’Azione
socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 124.
57
641

Portanto, a adequação social seria nada mais, nada menos, do que uma
interpretação dos princípios relativos ao ordenamento jurídico, à ação típica e ao
interesse protegido, partindo de uma releitura do significado tradicional do conceito
de bem jurídico, com o escopo de substituir a sua função estática e individualista
para a sua real função no contexto da atividade social. 642
Assinala que o estudo da ação socialmente adequada não significa a
introdução de figuras metajurídicas no discurso jurídico e, sim, reflete que uma
determinada ação não será considerada uma agressão juridicamente relevante a um
bem jurídico, apesar do perigo que este corre, porque o ilícito não é um dado
unicamente do desvalor do evento unido à ação em um processo causal, mas
também ao próprio desvalor da ação que para o direito resulta essencialmente do
significado intencional do ato e do fenômeno social.643
Carlo Fiore também relembra que o conceito de adequação social nos remete
a um significado de que um determinado comportamento usual, ordinário no
contexto de uma vida em comunidade, mas, ao mesmo tempo restringe a sua
aplicação a determinados casos em que não será assim considerada pelos meios de
execução ou da normalidade exterior do comportamento, devendo ser levado em
conta, no entanto, o valor intrínseco do comportamento subjetivo, que excluirá uma
efetiva lesão. 644
Por sua vez, ele acentua a importância da figura dogmática da adequação
social para individualizar em qual estrutura da teoria do crime ela se insere; se se
trata de uma causa de justificação ou se será uma causa de exclusão do fato típico,
entendendo ser ela um ponto de ruptura do conceito de tipo neutro, avalorado
formulado Ernst von Beling.
O novo conceito finalista da ação e a reafirmação da função originária do
bem jurídico feito por Hans Welzel foram essenciais para a utilização prática da
adequação social, pois o alargamento do conceito de bem jurídico e que visava a
abranger tudo que a norma penal pretendia tutelar se mostrava supérfluo.

641
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 131-
132.
642
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 133.
643
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 134
644
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 141-
142.
58
Assim, toda ação, em tese, constitui uma agressão ao bem jurídico e seria
considerada típica, devendo, ao mesmo tempo, ser observada a natureza social que
ele tem para ser incluído no espectro de proteção da norma penal.
O bem jurídico, no entendimento de Carlo Fiore, só por exercer uma função
na coletividade é automaticamente exposto a risco de agressão ou a uma lesão
efetiva, representando apenas um momento vital de sua própria funcionalidade
como instrumento da vida em sociedade. 645
A relativização da ideia de bem jurídico e consequente subordinação de sua
lesão ao desvalor da ação leva a uma diferente determinação do Tatbestand, na raiz
do qual é inspirada a doutrina da adequação social.646
E o próprio Carlo Fiore nos responde tal indagação, afirmando que o conceito
finalista Welzeliano de ação será insuficiente para nos fornecer a real dimensão de
sua importância como elemento constitutivo do fato típico, ou seja, o conceito de
ação será uma abstração se não for concebida como um fenômeno socialmente
significativo como uma ação no âmbito da vida social.647

3.16 Analise de casos

3.16.1 A adequação social e as lesões decorrentes de atividades esportivas

O esporte é um meio de interação social entre os sujeitos que formam uma


sociedade. A prática esportiva gera diversos benefício para o corpo e a mente das
pessoas, aliviando o estresse da rotina diária, bem como é um meio auxiliar de
prevenção para o surgimento de doenças.
Existem atividades esportivas que, devido ao contato físico entre seus
participantes, podem lhes causar lesões.
O questionamento que se faz neste ponto do trabalho é se tais lesões
podem ser consideradas socialmente adequadas.
Um ponto muito importante e que deve ser levado em consideração na
análise das atividades esportivas é o consentimento dos participantes daquele
esporte. José Henrique Pierangeli informa as teorias que tratam do consentimento

645
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 198..
646
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 199.
647
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 199.
59
dos contendores, elencando-as em dois grupos: as teorias afirmativas e as teorias
negativas.648
As teorias afirmativas exigem um tratamento jurídico para as lesões
esportivas, havendo a punição do participante a título de dolo ou, eventualmente, por
preterdolo ou culpa649.
Já as teorias negativas se subdividem em:
a) teoria da inexistência do dolo – esta teoria parte do pressuposto que os
participantes não têm qualquer tipo de ressentimento entre si, logo, não há intenção
nas lesões eventualmente produzindo, não restando caracterizado o dolo e havendo
a punição por culpa de forma residual650;
b) teoria do móvel contrário ao direito – esta teoria ainda se divide em
móvel jurídico expresso, na qual seus participantes recebem remuneração para
exercê-las; logo, estariam abrangidas pelo exercício regular de um direito651.
Já a segunda divisão – móvel jurídico tácito – prevê que o participante que
provoca lesões no adversário atua com dolo, mas a sua ação seria justificada
porque atuou em um móvel que não é contrário ao Direito, o móvel esportivo652.
c) teoria da realização de um fim reconhecido pelo estado – para esta
teoria a antijuridicidade é excluída, porque se trata de um exercício regular de uma
atividade autorizada pelo Estado;653
d) teoria da autorização estatal mediante permissão da autoridade – esta
teoria, segundo José Henrique Pierangeli, seria uma variação da teoria anterior,
galtando-lhe a antijuridicidade porque a ação estaria autorizada por leis,
regulamentos e pelos entes estatais, sendo indispensável que se trate de esporte
autorizado e que a conduta não seja proibida pelas regras do esporte.
Inicialmente devemos destacar que nem todas as lesões decorrentes de
atividades esportivas serão consideradas irrelevantes.

648
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 169
649
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 169
650
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 170
651
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 170
652
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 171.
653
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 171.
60
Assim, em um primeiro momento, deve-se levar em conta a intensidade da
lesão sofrida, a modalidade da competição esportiva e se houve ou não observância
das regras e o contexto em que elas ocorreram.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria traz um critério para separar as
atividades esportivas entre aquelas em que o uso de violência é intrínseco à sua
prática, tais como no boxe, artes marciais, por exemplo, e aquelas em que o contato
físico é eventual como no futebol e, por fim, naquelas hipóteses em que inexiste
contato físico. 654 Traz, também, o posicionamento de Albin Eser, como o qual ela
não concorda, de que qualquer tipo de lesão causada dentro das regras do esporte,
seja de qualquer natureza, seriam socialmente adequadas. 655
De outro lado, ela concorda parcialmente com o entendimento de Heinz Zipf
que a adequação social seria uma fórmula geral de exclusão da tipicidade, mesmo
que as lesões tenham ocorrido em contrário às regras do jogo, pois para ele deve
preponderar o interesse social da prática esportiva em detrimento da proteção do
bem jurídico individual.
As regras do jogo seriam apenas um meio auxiliar para valorar o
comportamento do agente, uma vez que estabelecem de forma abstrata as
modalidades de condutas admitidas e os limites de sua licitude. 656
A autora pontua que a adequação social não será um juízo estático,
devendo ser levado em conta o contexto espaço-temporal em que a lesão ocorre,
aliado ao dolo do agente e, assim, o juiz poderá considerar ilícitas condutas
praticadas dentro das regras do jogo e lícita lesões que foram produzidas, ainda que
as regras do jogo não tenham sido observadas. 657
Em relação aos esportes que envolvem contato corporal intenso, como no
caso do boxe ou jiu-jitsu, por exemplo, pode-se argumentar que seria uma atividade
esportiva autorizada, devendo ser tratada no âmbito do risco permitido.

654
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 510-511.
655
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 513.
656
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 515.
657
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 516.
61
No entanto, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria se opõe a este
tratamento jurídico-penal. Ela entende que as lesões praticadas no pugilismo ou nas
artes marciais são incompatíveis com o princípio constitucional que tutela a
inviolabilidade física, considerando-as típicas. 658
Em relação a outras atividades desportivas perigosas, que não sejam o
boxe, ela entende que seria necessário o recrudescimento das regras de segurança
aproximando-se o risco permitido da adequação social para se afastar a
responsabilidade penal causador de uma morte, por exemplo, se ele agiu de forma
destoante das regras pré-estabelecidas para aquela atividade esportiva.
De outro lado, temos a posição de Renato Jorge de Melo Silveira que divide
as lesões decorrentes das atividades esportivas desde que obedecidas regras da
modalidade seriam lícitas, do contrário seriam ilícitas. E um segundo grupo em que
há violação das regras previstas e que acabam por gerar lesões não puníveis,
mesmo que graves.659
Para este último grupo de casos, Renato Jorge de Melo Silveira traz o
raciocínio de Santiago Mir Puig para quem se deve observar o caso em concreto,
cotejando-se a ideia de adequação social e insignificância, inevitavelmente aliados
ao consentimento da vítima, afirmando “sem o consentimento em particular no
esporte não cabe nem considerar um ‘direito’[...], nem socialmente adequada a
prática do esporte”. (tradução nossa)660
Especificamente em relação ao boxe, bem como em outros esportes que
têm contato físico, Renato Jorge de Melo Silveira se opõe ao raciocínio de Maria
Paula Bonifácio de Faria. Para ele a questão não se resume ao consentimento, que,
por óbvio, está presente. Na hipótese de uma lesão decorrente deste esporte a
análise deveria ser feita em sede pré-típica não havendo que se responsabilizar
penalmente o causador.661 Ressalva que para a adequação social seja aceita, é
mister que o esporte seja reconhecido e aceito, pois do contrário não será

658
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 519.
659
MIR PUIG apud SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em
direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 363
660
“Sin el consentimento em particular em el deporte no cabe ni considerar presente um ‘derecho’[...],
ni socialmente adecuada la pratica del deporte”. MIR PUIG apud SILVEIRA, Renato Jorge de Melo.
Fundamentos da adequação social em direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 363.
661
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 365
62
socialmente adequado.662
Em relação às lesões decorrentes da atividade esportiva, incluindo nestas
hipóteses a morte de um dos praticantes, Carlo Fiore entende que a solução a ser
aplicada é bastante semelhante a das intervenções médico-cirúrgicas.663
Inicialmente se invoca nesta hipótese como causa de justificação o
consentimento do titular do direito. Na violência esportiva, configuram-se uma série
de agressões recíprocas entre seus praticantes que seriam justificadas pelos
consentimentos do sujeito passivo que aceita a atividade esportiva com seus riscos,
mas também, ao mesmo tempo, permitiria tacitamente que situações prejudiciais,
acaso ocorressem e desde que derivassem do desenvolvimento da competição de
acordo com as regras do jogo.
No entanto, o raciocínio de que o atleta consentiu previamente, ainda que
condicionado às regras daquele esporte específico, a lesão ocorrida ou até mesmo a
sua própria morte revela a dificuldade que se tem de aceitar o consentimento como
causa de justificação nestes casos.664
Para Carlo Fiore, o consentimento não tem validade quando se tratar de
bens jurídicos indisponíveis, como a vida. Já em relação aos bens jurídicos
disponíveis, deve o intérprete analisar se houve eventual erro na sua existência,
validade ou alcance. 665
Por sua vez, José Henrique Pierangeli666 traz a distinção, já apresentada
acima, entre os esportes necessariamente violentos daqueles que são
eventualmente violentos e mistos, que podem resultar em lesões corporais ou, até
mesmo, a morte.
Nos esportes eventualmente violentos, o Autor noticia que as lesões
decorrentes destas atividades estariam justificadas pelo consentimento dos
participantes. Em caso de excesso, a conduta não poderia ser justificada,
subsistindo o delito667.
Já nos esportes necessariamente violentos, ele continua afirmando que seria
662
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010., p. 365
663
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 22.
664
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 23.
665
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 23.
666
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 179
667
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 174.
63
uma espécie de dolo eventual que o consentimento deixa justificado, pois a
agressão seria um dado intrínseco àquele esporte e os participantes já
representaram a sua ocorrência.668
A despeito de trazer os posicionamentos doutrinários acima mencionados,
nos esportes necessariamente violentos e eventualmente violentos, em que a pode
ocorrer uma lesão em razão do contato físico, entre os sues praticantes, e que haja
uma regulamentação minimamente estabelecida, José Henrique Pierangeli, entende
que tais condutas, embora sejam típicas, não são consideradas antinormativas, por
não afetarem bens juridicamente protegidos669.
Já em relação aos esportes que não são oficiais e que não têm regras
estabelecidas, José Henrique Pierangeli propõe que se deve ocorrer aos usos e
constumes, que também assumirão relevância jurídica, quando houver
regulamentação oficial, mas algum fato em especifico não se inserir neste
regulamentação, podendo-se, nesta hipótese, a meu sentir ser alegada a adequação
social, que ensejará a exclusão da tipicidade da conduta.

3.16.2 A adequação social e a correção parental

A legislação civil brasileira, principalmente o Estatuo da Criança e


Adolescente e o Código Civil vedam o castigo imoderado em desfavor dos filhos
como forma de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, ainda que
seja pelos pais ou qualquer integrante da família. No entanto, a lei não veda apenas
o castigo físico. Ela veda também a humilhação ou ridicularização, como a hipótese
de xingamentos ou isolamento ou privação da criança e adolescente de brincarem e
se divertirem ou de terem contato com pessoas que gostem.
Tais dispositivos legais complementam a doutrina da proteção integral, que
visa a tutelar (proteger) os direitos das crianças e adolescentes a uma criação
saudável, livre de agressões e humilhações, durante o período de desenvolvimento.
Estas novas determinações legais demonstram a mudança que o direito de
correção sofreu ao longo dos séculos. Se antes o direito de correção também era

668
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 174
669
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 180.
64
considerado um dever de correção, sendo permitido inclusive a prática de maus
tratos. Atualmente, a violência tanto física, quanto psicológica está sendo rediscutida
e rechaçada a sua aplicação.
Verifica-se que as mudanças sofridas na conformação da sociedade no
século XX e XXI, também influenciaram na alteração do próprio conceito de família
que agora se baseia na afetividade e na compreensão de seus membros, incluindo
neste aspecto o poder de correção paternal.
Neste contexto é que se insere a discussão da adequação social tanto nos
castigos físicos praticados pelos pais em relação aos seus filhos menores, como
também dos professores, tutores, educadores de modo geral em relação aqueles
indivíduos que estão sob sua guarda ou tutela, ainda que por curtos lapsos
temporais.
Em relação ao ius corrigendi, Carlo Fiore noticia que o pai que pune o filho
exerceria o seu poder disciplinar referente ao poder familiar, estando abrigado,
portanto, sob uma causa de justificação.670
Prossegue afirmando que, havendo abuso dos meios de correção por um
dos pais, o artigo 571 do Código Penal Italiano671 672 só seria aplicado se os limites do
670
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 26..
671
“Art. 571.
Abuso dos meios de correção ou disciplina.
Qualquer pessoa que abuse dos meios de correção ou disciplina em detrimento de uma pessoa sob
sua autoridade, ou confiada a ele para fins de educação, instrução, cuidado, vigilância ou custódia,
ou para o exercício de uma profissão ou arte, será punida se o fato resultar no perigo de uma
doença no corpo ou na mente, com prisão de até seis meses.
Se o ato resultar em lesão corporal, aplicam-se as penalidades previstas nos artigos 582 e 583,
reduzidas a um terço; se o resultado da morte, a prisão de três a oito anos se aplica. (tradução
nossa)
Abuso dei mezzi di correzione o di disciplina.
Chiunque abusa dei mezzi di correzione o di disciplina in danno di una persona sottoposta alla sua
autorità, o a lui affidata per ragione di educazione, istruzione, cura, vigilanza o custodia, ovvero per
l'esercizio di una professione o di un'arte, è punito, se dal fatto deriva il pericolo di una malattia nel
corpo o nella mente, con la reclusione fino a sei mesi. Se dal fatto deriva una lesione personale, si
applicano le pene stabilite negli articoli 582 e 583, ridotte a un terzo; se ne deriva la morte, si applica
la reclusione da tre a otto anni” ITÁLIA. Codice penale, Libro II, Titolo XI: Dei delitti contro la
famiglia. [Roma]: Altalex, 2021.
672
No Brasil, temos o delito de Maus Tratos, previsto no artigo 334 do CP, que assim dispõe:
“Maus-tratos
Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para
fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados
indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de
correção ou disciplina:
Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.
§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
§ 2º - Se resulta a morte:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
65
ius corrigendi forem ultrapassados e, ainda sim, se houvesse perigo de causação de
uma lesão, seja ela física ou psicológico, ou, até mesmo, a morte do filho.673
Assim, para Carlo Fiore, a interpretação que deve ser feita da análise do
artigo 571 do CP Italiano é a de que, mesmo que tenha havido excesso na utilização
dos meios disciplinares e que não tenha havido repercussões mais graves, tais
lesões seriam indiferentes.674
A justificativa utilizada para a não aplicação do artigo 571 do CP Italiano é a
de que faltaria o evento descrito pela norma incriminadora, mas, por outro lado,
referida disposição, porque representa o único limite criminalmente relevante,
segundo o exercício do ius corrigendi, permitiria considerar não puníveis certas
condutas que, se não constituíssem uma manifestação do poder disciplinar parental,
deveriam ser punidas como crime.
Assim destaca Carlo Fiore

[...] o pai pode agredir o menor, ofendê-lo em sua honra, privá-lo da


liberdade pessoal sem que tais fatos sejam considerados antijurídicos. Só
haveria ilicitude no caso de abuso: isto é, sempre que todos os elementos
do fato típico subsistissem. (tradução nossa)675

A finalidade corretiva ou disciplinar do agente é que conferirá à ação a sua


inconfundível fisionomia distinguindo-a daquelas condutas que caracterizam os
676
crimes de lesão corporal ou de cárcere privado, dentre outros, por exemplo.
Assim, a finalidade corretiva não deve ser considerada como um mero dado
psíquico, mas sim como um elemento psicológico de um comportamento objetivo,
que nada mais é do que a soma da qualidade do seu autor, da ocasião, da
qualidade e da intervenção corretiva, do grau de ataque à incolumidade do sujeito
passivo, da relação entre o educador e o educando.
Mas não bastará a soma entre os elementos objetivos e psicológicos, sendo
necessário também a avaliação da ação não só pela direção subjetiva da vontade,

§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze)


anos. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF:
Presidência da República, [2022]
673
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 26.
674
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 26.
675
“[...] il genitore può percuotere il menore, offenderlo nel suo onore, privarlo dela libertà personale
senza che tali fatti debbano riteresi antigiuridici; l’illiceità ci sarebbe solo in caso di abuso: sempre,
cioè, che sussitano tutti gli elementi oggetivi della fattispecie descrita dall’art 571 c.p.” FIORE, Carlo.
L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 27.
676
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 35..
66
mas também pela sua real destinação a uma função corretiva e disciplinar.
Carlo Fiore conclui que os atos de disciplina ou correção, mesmo que causem
algum tipo de lesão ou perigo de lesão, como ele próprio exemplifica o caso do
educador que mesmo sabendo que uma simples advertência seria mais adequada
em razão de uma falta praticada por um garoto, prefere golpeá-lo na intenção de
prevenir a repetição de tais atos, não elimina o seu valor corretivo, restando excluída
a hipótese da pratica de algum crime. 677
E afirma
A ação, que corresponde à normal utilização dos tradicionais instrumentos
pedagógicos no âmbito das tarefas educacionais mais complexas confiadas
ao agente, mesmo que sejam prejudiciais a um bem ou interesse corrigendo
– desde que no limite que não não se comprometa o equilíbrio físico-
psíquico – não constitui ilícito, pelo significado que tem como atividade da
vida, pela finalidade que o inspirou e ainda que não vise o assédio do sujeito
passivo, mas à sua formação espiritual. (tradução nossa) 678

Muito embora Carlo Fiore não tenha admitido que a não punibilidade de tais
comportamentos possam ser justificada pela adequação social, conclui-se que ele
de alguma forma aderiu a este raciocínio quando afirma que se os meios de
correção estejam de acordo com a sua destinação normal de correção ou disciplinar,
seriam adequados. 679

3.16.3 A adequação social e os maus tratos de animais

Outra questão que nos chama a atenção e que em muitos casos flerta com a
adequação social é a hipótese de maus tratos a animais.
A história da humanidade nos mostra a íntima relação entre os homens e os
animais. Em um primeiro momento, vislumbra-se que os animais eram considerados
objetos e à sua função principal era a de auxiliar os seres humanos na realização de
determinados trabalhos e na alimentação.

677
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 37..
678
“L’azione, invece, che corrispinde alla normale utilizzazione di tradizionali strumenti pedagogici,
nell’ambito dei più complessi compiti educativi demandati all’agente, anche quando risuta
effetivamenti lesiva di um bene o interesse del corrigendo – purchè in limiti che non ne
compromettano in misura apprezzabile l’equilibrio fisio-psichico – non costituisce illecito, per il
signifcato che la ispira e che mira non già alla vessazione del soggetto passivo, ma alla sua
formazione spirituale. FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli:
Morano, 1966, p. 47. .
679
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 48.
67
Não havia preocupação alguma sobre a forma de tratamento a eles
dispensada. A partir do século XX se inicia a discussão acerca dos status moral dos
animais, surgindo a teoria dos direitos dos animais.680
No Direito Internacional, existem alguns instrumentos que tratam sobre a
questão animal, no entanto, não são vinculantes e carecem de força para fazer
frente aos ordenamentos jurídicos internos que tratam os animais como meras
coisas semoventes sem direito algum.
Sobre a matéria temos a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, 681
680
ESPINA, Nadia. Derecho Animal – El bien jurídico em los delitos de maltrato. Buenos Aires:
Ediar, 2020, p. 29.
681
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS

PREÂMBULO
 Considerando que todo o animal possui direitos,
 Considerando que o desconhecimento e o desprezo destes direitos têm levado e continuam a levar
o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza,
 Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras
espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo,
 Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a
perpetrar outros.
 Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos homens pelo
seu semelhante,
 Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a
respeitar e a amar os animais.

PROCLAMA-SE O SEGUINTE:
Art. 1o - Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência.
Art. 2o
Todo o animal tem o direito a ser respeitado.
O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou explorá-los violando
esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao serviço dos animais.
Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem.
Art. 3o
Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis.
Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a
não provocar-lhe angústia.
Art. 4Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no seu próprio
ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir. toda a privação de
liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária a este direito.
Art. 5o
Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no meio ambiente do homem
tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de liberdade que são próprias
da sua espécie.
Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas pelo homem com fins
mercantis é contrária a este direito.
Art. 6o
Todo o animal que o homem escolheu para seu companheiro tem direito a uma duração de vida
conforme a sua longevidade natural.
O abandono de um animal é um ato cruel e degradante.
Art. 7o
Todo o animal de trabalho tem direito a uma limitação razoável de duração e de intensidade de
trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso.
Art. 8o
68
publicada no ano de 1978, tendo sido aprovada tanto pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e pela Organização das
Nações Unidas (ONU), tendo como um de seus princípios gerais que os animais têm
o direito nascem iguais perante a vida e tem os mesmos direitos à existência.
Há, ainda, a Declaração Universal sobre o Bem Estar Animal (DUBEA) que,
embora não seja oriunda do sistema ONU ou os regionais, é uma proposta de
acordo intergovenamental e que reconhece que os animais são capazes de sentir e
sofrer e suas necessidades de bem estar devem ser respeitadas.682
Referido projeto foi apresentado pela sociedade mundial para a proteção
animal e conta com o apoio de alguns países, dentre eles Nova Zelândia e Suécia,
além de diversas Organizações Não Governamentais (ONGs) internacionais.683
No Brasil, a Lei 9.605/1998 em seu artigo 32, considera como crime maltrato
a animal silvestre, doméstico ou domesticado, nativo ou exótico.684

A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos
do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a
forma de experimentação.
As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas.
Art. 9o
Quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado, transportado e
morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor.
Art. 10o
Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem.
As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são
incompatíveis com a dignidade do animal.
Art. 11º
Todo o ato que implique a morte de um animal sem necessidade é um biocídio, isto é um crime contra
a vida.
Art. 12o
Todo o ato que implique a morte de um grande número de animais selvagens é um genocídio, isto é,
um crime contra a espécie.
A poluição e a destruição do ambiente natural conduzem ao genocídio.
Art. 13o
O animal morto deve de ser tratado com respeito.
As cenas de violência de que os animais são vítimas devem de ser interditas no cinema e na
televisão, salvo se elas tiverem por fim demonstrar um atentado aos direitos do animal.
Art. 14o
Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais devem estar presentados a nível
governamental.
Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei como os direitos do homem.
(*) A Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi proclamada pela UNESCO em sessão
realizada em Bruxelas - Bélgica, em 27 de Janeiro de 1978 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS
DIREITOS DOS ANIMAIS. [Bruxelas]: Mamiraua,1978.
682
DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE BEM-ESTAR ANIMAL – DUBEA. [São Paulo]: Vegpedia,
2011.
683
ESPINA, Nadia. Derecho animal: el bien jurídico em los delitos de maltrato. Buenos Aires: Ediar,
2020, p. 29.
684
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou
domesticados, nativos ou exóticos: (Vide ADPF 640)
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
69
A discussão neste ponto do trabalho cinge-se se o emprego da adequação
social é possível, levando-se em conta a presença de aspectos culturais e que
possam legitimar um tratamento aviltante aos animais.
Um dos casos mais conhecidos sobre a questão é o que ocorreu no bojo do
RE 153.531/SC, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se
manifestar sobre a constitucionalidade ou não da farra do boi.

O Ministro Franciso Rezek, relator do RE, afirma verbis

Não posso ver como juridicamente correta a ideia de que em prática dessa
natureza a constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação
cultural com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel
para com animais, e a Constituição não deseja isso.685

E prossegue

Bem disse o advogado da tribuna: manifestações culturais são as práticas


existentes em outras partes do país, que também envolvem bois submetidos
à farra do público, mas de pano, de ‘papier maché’; não seres vivos,
dotados de sensibilidade e preservados pela Constituição da República
contra esse gênero de comportamento. 686

Mauricio Correa votou pela constitucionalidade da farra de boi sob o


seguinte fundamento

Como se depreende, a manifestação popular dissentida pelos autores é


uma tradução cultural regionalizada, e, como manifestação cultural há de
ser garantida e assegurada pelo Estado [art. 215 e parágrafo 1º, da CF],
pois é patrimônio cultural de natureza imaterial do povo e expressa a
memória de grupos – os açorianos – formadores da sociedade brasileira
[art. 216, CF]

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que
para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. (Vide ADPF 640)
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será
de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda. (Incluído pela Lei nº
14.064, de 2020)
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. BRASIL. Lei nº 9.605,
de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de
condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência
da República, [2020].
685
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 153.531/SC. Rel.: Min.: Francisco
Rezek, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio (art. 38, IV, b do RISTF). Diário de Justiça da União,
Brasília, 10 jun. 1997.
686
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 153.531/SC. Rel.: Min.: Francisco
Rezek, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio (art. 38, IV, b do RISTF). Diário de Justiça da União,
Brasília, 10 jun. 1997.
70
Como ressaltado pelo aresto recorrido, se há excesso na prática da ‘Farra
do Boi’, cumpre ao estado, através do seu poder de polícia exercer sua
função repressora, ao judiciário, se a tanto for provocado em razão da
inércia do Poder Público, prover a respeito, impelindo-a à prática de atos
voltados a obstar o procedimento contrário a preceito constitucional,
segundo o qual, reata terminantemente proibida a prática que submeta
animais à crueldade [art. 225, Parágrafo 1º, VII] (fl. 408). 687

E assevera

Ora, subverter um preceito constitucional que estabelece a vedação da


prática de crueldade a animais – por ser regra geral -, para o fim de produzir
efeitos cassatórios do direito do povo do litoral catarinense a uma exercício
cultural com mais de duzentos anos de existência, parece-me que é ir longe
demais, tendo em vista o sentido da norma havida como fundamento para o
provimento do recurso extraordinário. Não vejo como, em sede
extraordinária, se aferir que as exacerbações praticadas por pulares na
realização desse tipo de cultura, que implicam em sanções
contravencionais, possam ser confundidas com essa prática cultural que
tem garantia constitucional. Isso é uma questão de polícia e não de recurso
extraordinário. Está dito na Lei das Contravenções Penais, em seu artigo
64, que tratar animais com crueldade ou submetê-los a trabalho excessivo,
constitui contravenção penal passível de prisão simples (fl. 411). 688

Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio decidiu da seguinte maneira

[...] é justamente a crueldade o que constatamos ano a ano, ao acontecer o


que se aponta como folguedo sazonal. A manifestação cultural deve ser
estimulada, mas não a prática cruel. Admitida a chamada ‘farra do boi’, em
que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que
estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse
procedimento. Não vejo como chegar-se à posição intermediária. A
distorção alcançou tal ponto que somente uma medida que obstaculize
terminantemente a prática pode evitar o que verificamos neste ano de 1997
[...].
Entendo que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência
do disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se
trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da
Carta da República. [...] cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e
decorre das circunstancias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis
buscarem, a todo custo, o próprio sacrifício do animal (fls.414). 689

Por último, o Ministro Neri da Silveira votou da seguinte maneira

687
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 153.531/SC. Rel.: Min.: Francisco
Rezek, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio (art. 38, IV, b do RISTF). Diário de Justiça da União,
Brasília, 10 jun. 1997.
688
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 153.531/SC. Rel.: Min.: Francisco
Rezek, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio (art. 38, IV, b do RISTF). Diário de Justiça da União,
Brasília, 10 jun. 1997.
689
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 153.531/SC. Rel.: Min.: Francisco
Rezek, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio (art. 38, IV, b do RISTF). Diário de Justiça da União,
Brasília, 10 jun. 1997.
71
[...] os princípios e valores da Constituição em vigor, que informam essas
normas maiores, apontam no sentido de fazer com que se reconheça a
necessidade de se impedirem as práticas, não só de danificação ao meio
ambiente, de prejuízo à fauna e à flora, mas, também, que provoquem a
extinção de espécies ou outras que submetam os animais a crueldade. A
Constituição, pela vez primeira, tornou isso preceito constitucional, e, assim,
não parece que se possam conciliar determinados procedimentos, certas
formas de comportamento social, tal como a denunciada nos autos, com
esses princípios, visto que elas estão em evidente conflito, em inequívoco
atentado a tais postulados maiores (fls. 418/419). 690

Analisando o julgado acima, Renato Jorge de Melo Silveira discorda da


decisão da inconstitucionalidade da farra do boi proferida pelo STF e manifesta pela
sua incorreção, alegando que

Mesmo o Brasil não sendo um país de tradições taurinas, como a Espanha,


hão de ser respeitadas as individualidades culturais, mesmo em termos de
criminalização. Não sendo visto como ofensivo a bem jurídico, de se
permitir, portanto, a ‘farra do boi’, ainda que com limites. Sua condenação é,
pois, equivocada desde um ponto de vista de leitura hermenêutica. Não se
trata, portanto, de simples ponderação de bens jurídicos, mas sim de filtro
normativo a ser utilizado desde uma permissão anterior.
O folclore assim enraizado em certas comunidades acaba por justificar a
interpretação pré-típica, afastando a incidência do Direito Penal de
determinadas atuações. Em não seguindo essa verdade, o Supremo
Tribunal Federal pretendeu fazer valer a defesa intransigente da norma
ambiental, contrariamente ao que seria socialmente adequado para algumas
comunidades catarinenses em leitura nitidamente de suporte fático estrito.
Em leitura de suporte fático amplo, poderiam ser impostos limites para tal
prática, mas, nunca, simplesmente proibi-la. 691

E, por fim, ainda, sublinha

Em outras palavras, não foi seguido um pensamento de um liberalismo


cultural. Em isso ocorrendo, constata-se o paradoxo de se ter uma conduta
dada por proibida judicialmente, mas tolerada pelas esferas locais, que
entendem como aceitável. A ilegitimidade da proibição gera, por obrigação,
duas saídas, mas ambas traumáticas. A primeira, atualmente presente, dá o
tom da impunidade, já que evidencia a não efetivação da decisão, o que,
por igual, deslegitimaria socialmente o pontuado pela Justiça, só podendo
ser aceito quando há violação da dignidade da pessoa humana. Nesse
sentido, parece, ainda que com reforço pragmático, justificada a presença
de uma interpretação criminal restritiva mediante o uso da adequação
social. 692

690
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 153.531/SC. Rel.: Min.: Francisco
Rezek, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio (art. 38, IV, b do RISTF). Diário de Justiça da União,
Brasília, 10 jun. 1997.
691
SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 379-380.
692
SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 380.
72
Juarez Tavares expressamente rechaça o entendimento de Renato Jorge de
Melo Silveira, afirmando que delitos culturalmente motivados não se confundem com
ações socialmente adequadas muito embora ele entenda como tal com fundamento
no multiculturalismo.693
Conforme Juarez Tavares as ações socialmente adequadas se inserem no
âmbito da figura do risco permitido devendo ser solucionadas em sede de imputação
objetiva. 694
Cristina de Maglie conceitua o delito culturalmente motivado

Trata-se de um comportamento realizado por um sujeito pertencente a um


grupo étnico minoritário, que é considerado crime pelas normas do sistema
da cultura dominante. O mesmo comportamento, na cultura do grupo de
pertença do agente, é, por outro lado, tolerado, aceito como normal ou
aprovado, ou, em determinadas situações, é até mesmo imposto.695

Para que se reconheça a prática de um delito culturalmente motivado e


necessário que se proceda a uma análise da adaptação cultural do sujeito ao
contexto normativo no qual está inserido.
Aliado a isso é preciso demonstrar que o comportamento adotado pelo
agente não se refere apenas à sua cultura pessoal e às suas escolhas de vida, mas
é, ao contrário, expressão da cultura de todo um grupo étnico, cujos membros teriam
se comportado como se comportou o sujeito ativo.696
No caso da farra do boi, Juarez Tavares se posiciona no sentido de que não
há que se falar em delitos culturalmente motivados e tampouco em ações
socialmente adequadas.697
Outro tema semelhante à farra do boi e que igualmente levado ao STF foi o
da vaquejada.

693
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 180.
694
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p.
180-181.
695
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
696
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
697
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p.
181.
73
O Ministro Marco Aurélio, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) afirma

Consoante asseverado na inicial, o objetivo é a derrubada do boi pelos


vaqueiros, o que fazem em arrancada, puxando-o pelo rabo. Inicialmente, o
animal é enclausurado, açoitado e instigado a sair em disparada quando da
abertura do portão do brete. Conduzido pela dupla de vaqueiros
competidores vem a ser agarrado pela cauda, a qual é torcida até que caia
com as quatro patas para cima e, assim, fique finalmente dominado.
O autor juntou laudos técnicos que demonstram as consequências nocivas
à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo, seguida da
derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e de vasos
sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o
arrancamento deste, resultando no comprometimento da medula espinhal e
dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental. Apresentou
estudos no sentido de também sofrerem lesões e danos irreparáveis os
cavalos utilizados na atividade: tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias
focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica.
Ante os dados empíricos evidenciados pelas pesquisas, tem-se como
indiscutível o tratamento cruel dispensado às espécies animais envolvidas.
O ato repentino e violento de tracionar o boi pelo rabo, assim como a
verdadeira tortura prévia – inclusive por meio de estocadas de choques
elétricos – à qual é submetido o animal, para que saia do estado de
mansidão e dispare em fuga a fim de viabilizar a perseguição,
consubstanciam atuação a implicar descompasso com o que preconizado
no artigo 225, § 1o, inciso VII, da Carta da República.698

Nas duas hipóteses acima relatadas, Juarez Tavares ressalta que os


participantes estão plenamente inseridos no contexto normativo da ordem jurídica
vigente e sabem que estão a praticar a maus tratos a animais.699
Diferentemente é o caso da “rinha de galos” em que várias Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) discutem a constitucionalidade
das leis estaduais que permitiam as referidas “competições”.
O Relator da ADI 1.856/ RJ, Ministro Celso de Mello discorre afirmando:

Nem se diga que a “briga de galos” qualificar-se-ia como atividade


desportiva ou prática cultural ou, ainda, como expressão folclórica, numa
patética tentativa de fraudar a aplicação da regra constitucional de
proteção da fauna, vocacionada, dentre outros nobres objetivos, a impedir
a prática criminosa de atos de crueldade contra animais.
“A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível
com a Constituição do Brasil”, como enfaticamente proclamou esta
Suprema Corte (ADI 2.514/SC, Rel. Min. EROS GRAU), que, por mais de
uma vez, também rejeitou a alegação de que práticas como a “briga de
galos” e a “farra do boi” pudessem caracterizar manifestações de índole
698
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.983/CE. Processo Objetivo – Ação Direta de
Inconstitucionalidade – Atuação do Advogado-Geral da União [...]. Rel.: Min.: Marco Aurélio, 6 out.
2016. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 27 abr. 2017.
699
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p.
181.
74
cultura (fls. 37-38). (grifo do autor). 700

Ao contrário da farra do boi e da vaquejada que tem origens culturais e


folclóricas de povos que colonizaram o Brasil, a rinha de galos não tem esta
característica, motivo pelo qual não há como se argumentar em favor do erro
culturalmente motivado, quanto mais da adequação social, sendo tal comportamento
proibido.
Por fim, no ano de 2019, foi interposto o RE 49.4601 perante o STF com
fundamento na liberdade religiosa ser constitucional e, portanto, lícito o sacrifício de
animais em cultos religiosos de matriz africana.701
Tal questão gera imenso debate e controvérsia e muita das vezes demonstra
a intolerância religiosa de religiões de matriz africana na nossa sociedade.
Juarez Tavares se filia ao entendimento de que se os sujeitos se inserem
em um contexto cultural e social específico, como os quilombolas haverá delito
culturalmente motivado. 702
No entanto, se o sacrifício for realizado em cultos de acesso geral, ainda de
origem africana ou não, mas realizados no âmbito cultural da norma criminalizadora,
duas soluções serão possíveis:

a) uma, de estrito cumprimento de dever legal como decidiu o STF;


b) outra que pode ser tratada no âmbito da culpabilidade como erro
culturalmente motivado, espécie de erro de proibição.

Ao contrário de Renato Jorge de Melo Silveira 703 que entende que em

relação à farra do boi não foi observado o liberalismo cultural e, na esteira de Juarez
Tavares,704 posiciono-me no sentido de não ser socialmente adequada uma conduta

700
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1.856 /RJ. Ação Direta de Inconstitucionalidade – Briga
de Galos (Lei Fluminense nº 2.895/98) [...]. Rel.: Min.: Celso De Mello, 13 out. 2011. Diário de
Justiça Eletrônico, Brasília, 14 out. 2011.
701
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. RE 494601. Direito Constitucional.
Recurso Extraordinário com Repercussão Geral. Proteção ao Meio Ambiente. Liberdade Religiosa.
Lei 11.915/2003 do Estado do Rio Grande do Sul.[...]. Rel.: Min.: Marco Aurélio, rel. p/ o acórdão
Min. Edson Fachin, 28 mar. 2019. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 19 nov. 2019.
702
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 182.
703
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 380.
704
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020.
75
que causa intenso sofrimento físico aos animais.
Até mesmo porque Hans Welzel, ao propor a não responsabilização penal
de comportamentos socialmente adequados propugna “a adequação social é de
certo modo uma espécie de pauta para os tipos penais: representa o âmbito ‘normal’
da liberdade de atuação social [...]”705
Não há como considerar normal uma conduta cruel contra um animal.
Paradoxalmente, o próprio Renato Jorge de Melo Silveira, ao tratar da questão da
extirpação clitoriana em determinadas correntes do islamismo, posiciona-se no
sentido de que este procedimento não pode ser considerado adequado por violar o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Não pretendo aqui colocar no mesmo patamar seres humanos e animais,
mesmo porque não se encontram em posição isonômica. Tampouco podemos
relativizar tratamentos cruéis contra animais sob o fundamento de que são
comportamentos socialmente adequados e inseridos em um contexto cultural e
histórico.
Tratamentos cruéis e violentos, ainda que praticados contra animais, não
podem ser corroborados pelo ordenamento jurídico brasileiro sob qualquer pretexto.
Em relação à farra do boi, mesmo que seja herança dos açorianos que
povoaram parte do Estado de Santa Catarina, é um fato que se amolda à figura do
delito do artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais.706
Já ao sacrifício de animais em cultos religiosos, é salutar a proposta de

Juarez Tavares de insensibilizar antes do sacrifício, porém, não há como comprovar


a efetividade e resultado prático, tendo em vista as diferenças regionais e financeiras
do nosso país.707

3.16.4 Adequação social e o uso de drogas

Neste ponto do trabalho, abordaremos a correlação entre o uso de drogas e


o princípio da adequação social.

705
WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 4.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 75.
706
BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2020].
707
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 3. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020,
p. 183.
76
Temos notícias que desde o início dos tempos a ingestão de bebidas ou de
determinados tipos de alimentos, tais como ervas, ou alguns tipos de cogumelos, por
exemplo, proporcionavam que o indivíduo entrasse em transe e, assim, pudesse se
conectar com alguma divindade.
No Brasil, noticia-se o uso do chá do Santo Daime, cuja doutrina tem o
mesmo nome, e que surgiu na Amazônia no início do século XX.
O chá de Santo Daime é uma bebida em que se misturam ervas e que
sofrem uma efusão que produz uma solução alucinógena.
Os primeiros relatos da história do mundo remontam ao século I da Era
Comum de índios da Amazonia Peruana.
Após de descoberta da América, tantos os colonizadores portugueses,
quantos os espanhóis, utilizavam-no para fins alucinógenos, sendo proibido, no
entanto, para uso religioso, o que foi apoiado pelos jesuítas que catequizavam os
índios da região amazônica e imputavam à tal bebida uma natureza demoníaca.
A partir de 1992, a legislação brasileira entendeu que o chá de Santo Daime
não seria considerado como substancia psicotrópica, o que foi corroborado pelo
artigo 2º, caput, da Lei no 11.343/2006.708
Em relação a outros tipos de drogas, tais como maconha, cocaína, heroína,
crack, dentre outras, a abordagem será feita em relação ao usuário e, não, ao
produtor e ao traficante ou ao tráfico propriamente dito.
A nossa politica de combate às drogas sempre foi encarceradora, havendo
um recrudescimento com a edição da Lei no 11.343/06, a atual Lei de Drogas. Tanto
isso é verdade que, após a sua edição, houve um exponencial aumento no número
de pessoas encarceradas, sendo o crime de tráfico de drogas o que mais prende no
Brasil, conforme se depreende das informações colhidas do Levantamento Nacional
de Informações Penitenciárias (INFOPEN)709.
708
“Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a
colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas
drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a
Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de
plantas de uso estritamente ritualístico-religioso”. BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006.
Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para
prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; [...].
Brasília, DF: Presidência da República, [2022].
709
Sobre a Guerra às drogas,Eugénio Raúl Zaffaroni e Ílison Dias dos Santos afirmam: “A proibição
de tóxicos é a nova alquimia, pois ao reduzir a oferta e manter uma demanda rígida ou crescente,
provoca uma mais valia astronômica no serviço de distribuição que, lançada a uma sociedade
sumamente desigual, oferece um exército de partícipes para esse comércio e uma boa
porcentagem de presos em condições geradoras de reprodução da violência”. (tradução nossa). “La
77
É sabido que o uso de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, constituem um
grave problema social. O governo brasileiro, atendendo à determinação da ONU
para o combate às drogas, reproduziu e reforçou a violação dos direitos humanos,
principalmente a de vários princípios constitucionais, quando da edição da Lei de
Drogas, dentre eles o da isonomia.
Maria Lúcia Karam lucidamente explica que, quando o governo seleciona
determinadas substancias tais como a maconha ou a cocaína, por exemplo,
tornando-as ilícitas e criminalizando as condutas de seus produtores, comerciantes e
consumidores, ao mesmo tempo mantendo na legalidade substâncias análogas e
igualmente nocivas à saúde, como o álcool ou o tabaco, discriminatoriamente
diferenciando em situação similar, está em flagrante ofensa ao princípio da
isonomia.710
Assim, não há qualquer peculiaridade ou característica especial entre as
drogas consideradas lícitas atualmente (tabaco, por exemplo) e as ilícitas
(maconha). Todas elas são drogas. Todas podem causar algum tipo de alteração
psicológica ou gerar algum tipo de dependência. 711
Além do princípio da isonomia, igualmente há a ofensa ao princípio da
lesividade, pois, em tese, é inadmissível a intervenção estatal sobre ações que não
envolvam um risco concreto para a terceiros como o consumo de maconha, por
exemplo, em locais privados.
Demais disso, denota-se que a política de “Guerra às Drogas” iniciada nos
anos 1970 não impediu a sua proliferação, o aumento de seu consumo e o
barateamento de sua aquisição, vindo a atingir um número cada vez maior de
pessoas.712
Neste ponto do trabalho, pretendo discutir se o uso da maconha que, a meu
ver, assemelha-se com o uso do tabaco pode ser uma conduta socialmente

proibición de tóxicos es la nueva alquimia, pues al reducir la oferta y mantener uma demanda rígida
o creciente, provoca uma plusvalía astronómica del servicio de distribución que, arrojada a uma
sociedade sumamente desigual, oferece um ejército de partícipes para ese comercio y um buen
porcentaje de presos em condiciones generadoras de reprodución de violência”. ZAFFARONI,
Eugénio Raúl; DIAS DOS SANTOS, Ílison. La nueva crítica criminológica: criminolgía em tempos
de totalitarismo financeiro. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ediar, 2019, p. 149.:
710
KARAM, Maria Lúcia. A “esquerda punitiva”: vinte e cinco anos depois. São Paulo: Tirant lo
Blanch, 2021, p. 85-86.
711
KARAM, Maria Lúcia. A “esquerda punitiva”: vinte e cinco anos depois. São Paulo: Tirant lo
Blanch, 2021, p. 86
712
KARAM, Maria Lúcia. A “esquerda punitiva”: vinte e cinco anos depois. São Paulo: Tirant lo
Blanch, 2021, p. 87.
78
adequada. Não será abordado se outras substancias entorpecentes, tais como a
cocaína ou o crack, podem ser socialmente adequadas, tendo em vista seu alto
potencial danoso e que merece uma análise mais aprofundada de suas
consequências deletérias e que fogem ao escopo deste trabalho.
Encontra-se no STF o julgamento do RE no 635.659/SP de relatoria do
Ministro Gilmar Mendes, cuja discussão cinde-se à constitucionalidade do artigo 28
da Lei no 11.343/06, porquanto tal norma violaria o direito à intimidade, inexistindo
qualquer desrespeito a pessoas ou bens jurídicos no simples consumo particular de
drogas, constituindo tal ato um mero exercício da vida privada.713
Para o ministro Gilmar Mendes, tratar como crime a posse de drogas para
consumo próprio “fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas
714
diversas manifestações”. Foi esse o sentido do voto do ministro na discussão
sobre o artigo 28 da lei 11.343/2006, que dá a quem porta droga para consumo as
penas de prestação de serviço comunitário e advertência verbal.
De acordo com Gilmar Mendes, “a criminalização da posse de drogas para
uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a
desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”. 715
Por sua vez, o Ministro Luís Roberto Barroso reforça o entendimento de que
a pretendida Guerra às Drogas iniciado no governo do Presidente norte-americano
Richard Nixon, fracassou.716
Em seu voto, o Ministro Luís Roberto Barroso afirma que o problema das
drogas deve ser analisado sob uma perspectiva brasileira e não sob uma visão
ditada ou importada dos países centrais, pois no nosso país, além da abordagem da
questão do consumidor, temos ainda que lidar com um problema mais grave, que é
a do tráfico de drogas.717
713
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. RE 635.659/SP. Direito Penal e
Processual Penal. Pedido de Suspensão do Processo e do Prazo Prescricional. Impossibilidade.
Ausência de Determinação de Suspensão dos feitos pelo Relator do Processo-Paradigma. [...]. Rel.:
Min.: Gilmar Mendes, 8 dez. 2011. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 1 mar. 2012.
714
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. RE 635.659/SP. Direito Penal e
Processual Penal. Pedido de Suspensão do Processo e do Prazo Prescricional. Impossibilidade.
Ausência de Determinação de Suspensão dos feitos pelo Relator do Processo-Paradigma. [...]. Rel.:
Min.: Gilmar Mendes, 8 dez. 2011. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 1 mar. 2012.
715
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. RE 635.659/SP. Direito Penal e
Processual Penal. Pedido de Suspensão do Processo e do Prazo Prescricional. Impossibilidade.
Ausência de Determinação de Suspensão dos feitos pelo Relator do Processo-Paradigma. [...]. Rel.:
Min.: Gilmar Mendes, 8 dez. 2011. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 1 mar. 2012.
716
BARROSO, Luís Roberto. RE 635.659: descriminalização do porte de drogas para consumo
próprio anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso. [Brasília]: Conjur, 2015.
717
BARROSO, Luís Roberto. RE 635.659: descriminalização do porte de drogas para consumo
79
Em relação ao usuário de drogas, especialmente em relação àquele que faz
uso da maconha, o Ministro Luís Roberto Barroso718 pontua que o seu consumo,
além de infringir a autonomia individual, viola a vida privada e a intimidade, direitos
estes que são considerados fundamentais e resguardados expressamente no artigo
5º da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), afirmando o
seguinte

O que uma pessoa faz na sua intimidade, da sua religião aos seus hábitos
pessoais, como regra devem ficar na sua esfera de decisão e
discricionariedade. Sobretudo, quando não afetar a esfera jurídica de um
terceiro.
Ex. É preciso não confundir moral com direito. Há coisas que a sociedade
pode achar ruins, mas que nem por isso são ilícitas. Se um indivíduo, na
solidão das suas noites, bebe até cair desmaiado na cama, isso não parece
bom, mas não é ilícito. Se ele fumar meia carteira de cigarros entre o jantar
e a hora de ir dormir, tampouco parece bom, mas não é ilícito. Pois digo eu:
o mesmo vale se, em lugar de beber ou consumir cigarros, ele fumar um
baseado. É ruim, mas não é papel do Estado se imiscuir nessa área (fls.07
e 08). 719

E prossegue afirmando que em matéria penal é necessário ser levado em


conta o princípio da lesividade, que exige que a conduta tipificada como crime
constitua ofensa a um bem jurídico alheio e, por tal razão, se a questão não
extrapola o âmbito individual, o Estado não pode atuar pela criminalização.
Assim, se um usuário opte pelo consumo da maconha, o único bem jurídico
lesado será a sua própria saúde individual e não um bem jurídico alheio, motivo pelo
qual o consumo de maconha não pode ser considerado legítimo, concluindo que

o indivíduo que fuma um cigarro de maconha na sua casa ou em outro


ambiente privado não viola direitos de terceiros. Tampouco fere qualquer
valor social. Nem mesmo a saúde pública, salvo em um sentido muito vago
e remoto. Se este fosse um fundamento para proibição, o consumo de
álcool deveria ser banido. E, por boas razões, não se cogita disso (pag. 08).
720

Também pela ótica do princípio da proporcionalidade o tema foi tratado pelo


Ministro Luís Roberto Barroso, incluindo a análise dos seus subprincípios
(necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito)
próprio anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso. [Brasília]: Conjur, 2015.
718
BARROSO, Luís Roberto. RE 635.659: descriminalização do porte de drogas para consumo
próprio anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso. [Brasília]: Conjur, 2015.
719
BARROSO, Luís Roberto. RE 635.659: descriminalização do porte de drogas para consumo
próprio anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso. [Brasília]: Conjur, 2015.
720
BARROSO, Luís Roberto. RE 635.659: descriminalização do porte de drogas para consumo
próprio anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso. [Brasília]: Conjur, 2015.
80
O teste da proporcionalidade inclui, também, a verificação da adequação,
necessidade e proveito da medida restritiva. A criminalização, no entanto,
não parece adequada ao fim visado, que seria a proteção da saúde pública.
Não apenas porque os números revelam que a medida não tem sido eficaz
– o consumo de drogas ilícitas, inclusive da maconha, tem aumentado
significativamente –, como pelas razões expostas acima: a saúde pública
não só não é protegida como é de certa forma afetada pela criminalização.
A questão da necessidade poderia ser disputada. Há países que optam por
criminalizar a maconha. Mas em número decrescente. Na América Latina,
como visto, somente Brasil, Suriname e Guianas tratam o porte de drogas
para uso pessoal como crime. Existem alternativas que vão desde a
previsão de sanções administrativas até o combate via contrapropaganda e
cláusulas de advertência.
Mas é sobretudo no terceiro subprincípio – o da proporcionalidade em
sentido estrito –, quando se vai aferir o custo benefício da criminalização
que a desproporcionalidade se evidencia de maneira mais contundente. O
custo tem sido imenso – em recursos drenados para a repressão, para o
sistema penitenciário, nas vidas de jovens que são destruídas no cárcere,
no poder do tráfico sobre as comunidades carentes – e os resultados têm
sido pífios: aumento constante do consumo. 721

Diante de tais argumentos, o Ministro Luís Roberto Barroso votou pela


inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06.722
Por sua vez, o Ministro Edson Fachin 723 dentre outros argumentos posicionou-
se no sentido de que o consumo da maconha não ofende o princípio da lesividade,
pois somente quando houver dano efetivo é que se justificaria a coerção penal,
sendo ilegítimas as incriminações por motivação ideológica, hipóteses de autolesão,
tabu, etc.
O julgamento do presente Recurso Extraordinário encontra-se suspenso, em
razão do pedido de vista à época do falecido Ministro Teori Zavascki e que foi
redistribuído para o Ministro Alexandre de Morais.
Depreende-se dos excertos dos três votos até então proferidos que os
Ministros se utilizaram de forma geral da mesma fundamentação: a infringência ao
princípio da lesividade, da autonomia individual, proporcionalidade, intimidade e vida
privada. Curiosamente o princípio da adequação social não foi abordado, ainda que
tangencialmente, por eles.
É fato que a sociedade brasileira foi influenciada pela globalização e por
diversos avanços em todas áreas que a humanidade vem passando nos últimos 20
anos, o que, a meu sentir, auxiliou em uma mudança de paradigma da nossa
721
BARROSO, Luís Roberto. RE 635.659: descriminalização do porte de drogas para consumo
próprio anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso. [Brasília]: Conjur, 2015.
722
BARROSO, Luís Roberto. RE 635.659: descriminalização do porte de drogas para consumo
próprio anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso. [Brasília]: Conjur, 2015.
723
FACHIN, Edson. RE 635.659: Voto-Vista Min. Edson Fachin. [Brasília]: Conjur, 2015.
81
sociedade sobre o consumo da maconha em especial.
Se antes o consumo de maconha era feito no interior das residências ou de
locais privados por seus usuários, quase que às escondias, isso não mais acontece.
A cada dia que passa é mais comum e sensorialmente perceptível o consumo
indiscriminado e visível da maconha em locais públicos, principalmente naqueles em
que há uma aglomeração de pessoas, principalmente jovens, como em shows,
festas de rua, dentre outros. E mesmo que haja policiamento ostensivo, dificilmente
é feita por eles abordagem repressora.
A criminalização do consumo da maconha é questão de política criminal, já
que ela não se diferencia em muito do tabaco, não havendo comprovação cientifica
que aponte que o consumo de uma é melhor em detrimento da outra, o que
justificaria a sua criminalização, levando a um etiquetamento de seus usuários.
A despeito de todo o estigma que o seu consumo traz, o que se verifica é que
na atual conformação da sociedade brasileira, o uso da maconha tem sido aceito
pelo corpo social, restando caracterizada uma conduta socialmente adequada.
Pode-se argumentar que a sociedade brasileira não se encontra ainda pronta para
aceitar e entender o uso individual como adequado socialmente, argumento do qual
discordo.
A meu ver, os votos apresentados até o momento desperdiçaram uma
excelente oportunidade em se discutir o fundamento adequação social do consumo
da maconha em paralelo à análise dos princípios constitucionais já exaustivamente
citados.
Poderia se argumentar que o fato de o consumo da maconha estar
disseminado em todas as camadas econômicas da sociedade brasileira, não a
tornaria, por consequência, não a tornaria socialmente aceitável e adequada, até
porque existe um tipo penal - artigo 28 da Lei 11.343/06 (lei de drogas) – que
criminaliza a sua prática.
Ademais disso, a disseminação do uso da maconha estaria ligado mais à
ausência de fiscalização ostensiva das agências policiais do que em decorrência da
sua aceitação pela a sociedade.
Outro ponto que pode ser abordado é que o consumo da maconha, como já
dito, causa diversos danos à saúde física e/ou mental do seu usuário, não ae
afigurando aceitável ou adequada.

82
Tais argumentos não podem ser eliminados na discussão de matéria tão
controversa como esta. Entendo que que a análise do artigo 28 da Lei 11.343/06 sob
a ótica da declaração ou não da sua constitucionalidade traga mais segurança
jurídica em relação ao tema, principalmente se levarmos em conta que o mais
importante princípio que se irradia por todo o nosso ordenamento jurídico e
especialmente no direito penal é o da legalidade.
No entanto, a discussão da adequação social seria extremamente salutar e
poderia ser utilizada como abertura emergencial e como princípio hermenêutico
auxiliar para justificar a não aplicação da lei penal em situações como esta.

3.17 A relação da adequação social com outros princípios penais

Nas últimas décadas, observa-se um aumento da criação de tipos penais


e/ou o incremento das respectivas penas, caracterizando-se o fenômeno da
hipertrofia do Direito Penal.
Na Itália, informa-nos Carlo Enrico Paliero que no embate entre os
defensores da Escola Clássica e os da Escola Positivista já havia a notícia da
discussão das denúncias feitas por estes últimos da criação de tipos penais que
criminalizam meros estados de indisciplina social, como o caso da vadiagem, por
exemplo. 724
Durante a passagem do Estado Liberal para o Estado Social
(intervencionista ou assistencial), em que houve uma crescente expansão da
intervenção pública na esfera privada houve uma repercussão no âmbito do
aumento das leis penais.
Segundo Carlo Enrico Paliero, presencia-se uma “maré de leis” que visam a
proteger bens jurídicos supraindividuais, muitas das vezes artificialmente criados
pelas próprias normas, o que desencadeia mudanças radicais na técnica legislativa
e corrói profundamente o sistema normativo, influenciando também as respectivas
sanções penais. 725
Com um discurso de proteção dos sujeitos que se encontram em

724
PALIERO, Carlo Enrico. Minina non curat praetor: ipertrofia del diritto penale e
descriminalizzazione dei reati bagatellari. Padvoa: CEDAM, 1985, p. 7.
725
PALIERO, Carlo Enrico. Minina non curat praetor: ipertrofia del diritto penale e
descriminalizzazione dei reati bagatellari. Padvoa: CEDAM, 1985, p. 28.,
83
vulnerabilidade econômica e que anteriormente eram desprovidos de proteção e
suscetíveis ao jogo de forças do mercado existentes no Estado Liberal, o Estado
Social reafirma a necessidade da edição de leis para a proteção destes sujeitos.
Paradoxalmente surgem leis que protegem pessoas jurídicas. Demonstra-se
tal assertiva na área da responsabilidade penal da pessoa jurídica, em que
facilmente se comprova a subversão dos tradicionais conceitos dogmáticos de
autoria, coautoria e participação, para fundamentar a responsabilização de quem
não realiza qualquer conduta que esteja descrita no verbo núcleo do tipo, mas que,
de alguma forma, integra a estrutura organizacional daquela pessoa jurídica.
A autoria por aparatos organizados de poder, elaborada por Claus Roxin,
assume papel de desataque na doutrina e jurisprudência. O que, a princípio, era
para ser usado em hipóteses restritas, passa a ser aplicado em qualquer caso que
envolva organização empresarial, ampliando-se seu alcance para os mais diversos
ramos do direito penal.
Os modelos de comportamentos impostos, justamente obrigatórios pela sua
especificidade e setorialidade, dificilmente correspondem a regras de conduta
internalizadas pela maioria dos cidadãos. 726
Observa-se, portanto, uma hipertrofia das leis penais. O legislador,
percebendo a ocorrência de um abuso, acredita que conhece as suas causas e
decidir proibir tal comportamento que lhe deu origem. 727
A este mesmo fenômeno Jesús-María Silva Sánchez denomina de expansão
do Direito Penal, em que o Estado se utiliza da legislação penal com o discurso de
que somente ela é capaz de resolver os diversos problemas sociais oriundos, diga-
se de passagem, da sua própria ineficiência em instituir políticas públicas que
tentem diminuir as novas formas delinquência, com a edição de uma legislação
simbólica e que aparenta proteger a sociedade.728
Não cabe ao Direito Penal tal pretensão. Ele não pode ser o único
responsável como o único instrumento de pacificação social ou de pedagogia social,
sob pena de se desvirtualizar um dos seus princípios basilares, o da ultima ratio. A

726
PALIERO, Carlo Enrico. Minina non curat praetor: ipertrofia del diritto penale e
descriminalizzazione dei reati bagatellari. Padvoa: CEDAM, 1985, p. 30
727
PALIERO, Carlo Enrico. Minina non curat praetor: ipertrofia del diritto penale e
descriminalizzazione dei reati bagatellari. Padvoa: CEDAM, 1985, p. 32.
728
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2002, p. 23.
84
expansão do Direito Penal se mostra inútil que o desnatura por completo.
Diante deste cenário, pressões surgiram para descriminalização de
determinadas condutas, representadas pelos crimes bagatelares, o que alcançou
uma repercussão notável, principalmente na opinião pública pelo valor ideológico ou
cultural de tal escolha legislativa.729
Importada da doutrina alemã, que pretendeu reagrupar sob um conceito
unitário todas aquelas hipóteses de delitos de mínima relevância ético-social e
identificados como tais pelo próprio legislador ou assim considerados pela
fenomenologia criminológica dentro da figura de crimes mais graves e que foram
apontados como causa de agravamento das cifras criminais.730
Partindo da premissa que os delitos bagatelares tratam de uma unidade
categórica, Carlo Enrico Paliero aponta que seria necessária uma ulterior
especificação sistemática em subcategorias que favoreçam uma técnica de solução
mais eficaz.731
Para ele

Um conceito bem fundamentado do crime de bagatela é, sobretudo,


instrumento indispensável para a individualização dos critérios e indícios da
insignificância que permite uma delimitação a mais clara possível do tipo
bagatelar já na análise das várias soluções, emergiu a necessidade de uma
tipicidade bagatelar precisa e ancorada em critérios transparentes e
racionais. (tradução nossa)732

O princípio da insignificância (ou bagatela) foi desenvolvido por Claus Roxin a


partir dos anos 1960 e 1970, período em que havia uma crescente preocupação
político-criminal na Alemanha.
Claus Roxin parte da premissa que em determinados delitos a insignificância
adquire sentido e pode ser dogmaticamente invocada. No entanto, ele mesmo
ressalva que estes comportamentos são previstos expressamente como tipos penais

729
PALIERO, Carlo Enrico. Minina non curat praetor: ipertrofia del diritto penale e
descriminalizzazione dei reati bagatellari. Padvoa: CEDAM, 1985, p. 628.
730
PALIERO, Carlo Enrico. Minina non curat praetor: ipertrofia del diritto penale e
descriminalizzazione dei reati bagatellari. Padvoa: CEDAM, 1985, p. 628.
731
PALIERO, Carlo Enrico. Minina non curat praetor: ipertrofia del diritto penale e
descriminalizzazione dei reati bagatellari. Padvoa: CEDAM, 1985, p. 629.
732
“Una ben fondata concetualizzazione del reato bagatellare è, sopratutto, strumento indispensabile
per l’individuazione di critério e indici precisi di ‘esiguità’, che consentao uma delimitazione il più
possibile netta del ‘tipo bagatellare’: già nell’analisi delle svariate soluzione deflattive è infatti emersa
l’esigenza indifferibile di un’accurata tipizzazione bagatellare, ancorata a critério trasnsparenti e
razionali. PALIERO, Carlo Enrico. Minina non curat praetor: ipertrofia del diritto penale e
descriminalizzazione dei reati bagatellari. Padvoa: CEDAM, 1985, p. 629.
85
e não podem ser ignorados pelo juiz, sob pena de derrogação do princípio da
legalidade.733
Assim, outros princípios que se encontram expressamente previstos no
ordenamento jurídico, tais como o minima non curat praetor devem ser invocados
para aqulelas condutas que não sejam materialmente danosas.
Claus Roxin salienta a necessidade de aplicação de referido princípio, sempre
em uma tentativa de enquadrá-lo na exigência político-criminal do Direito Penal,
observando-se que a tipicidade deverá ser considerada, desenvolvida e
sistematizada de acordo com esta função, sem, contudo, relegar-se a segundo plano
o princípio da legalidade.734
Assim, sem abandonar o corolário nullum crimen sine lege, afirma a
existência de outros princípios no ordenamento jurídico penal e que limitam a
aplicação do Direito Penal, reafirmando o seu caráter fragmentário, dentre eles a
insignificância e a adequação social.
Nesse sentido, Claus Roxin afirma:

[...] fazem falta princípios como o introduzido por Welzel, da adequação


social, que não é uma característica do tipo, mas sim um auxiliar
interpretativo para restringir o teor liberal que acolhe também formas de
condutas socialmente admitidas.
A isto pertence, ademais, o chamado princípio da insignificância, que
permite que a maioria dos tipos exclua a partir de um princípio de danos de
pouca importância: maus tratos não são qualquer tipo de lesão da
integridade corporal, senão somente uma relevante; analogamente a
desonestidade no sentido do Código Penal é só a ação sexual de certa
importância, injuriosa em uma forma delitiva é so a lesão grave à pretensão
social de respeito. Como ‘força’ deve se considerar unicamente um
obstáculo de certa importância, igualmente também a ameaça deve ser
‘sensível’ para passar ao umbral da criminalidade. (tradução nossa)735
733
GUZMÁN DALBORA, José Luiz. La insignificancia: especificación y reducción valorativas en el
ámbito de lo injusto típico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 14, p. 41-
82, abr./jun. 1996, p. 62.
734
GUZMÁN DALBORA, José Luiz. La insignificancia: especificación y reducción valorativas en el
ámbito de lo injusto típico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 14, p. 41-
82, abr./jun. 1996, p. 67.
735
“Para ello hacen falta principios como el introducido por Welzel, de la adecuación social", que no
es uma característica del tipo, pero si un auxiliar interpretativo para restringir el tenor literal que
acoge también formas de conductas socialmente admisibles. Aesto pertenece además el llamado
principio de la insignificância que,permite en la mayoría de los tipos excluir desde un principio daños
de poca importancia: maltrato no es cualquier tipo de daño de la integridad corporal, sino solamente
uno relevante; análogamente deshonesto en el sentido del Código Penal es sólo la acción sexual de
una cierta importancia, injuriosa en una forma delictiva es sólo la lesión grave a la pretensión social
de respeto. Como "fuerza" debe considerarse únicamente un obstáculo de cierta importancia,
igualmente también la amenaza debe ser "sensible" para pasar el umbral de la criminalidade”.
ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz
Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 73-74.
86
Antes de mais nada, ressalta-se que o princípio da insignificância é aplicável
a qualquer delito, não se limitando apenas aos delitos patrimoniais. No Brasil,
percebeu-se um aumento na aplicação do princípio da insignificância principalmente
em crimes contra o patrimônio praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa
e em delitos que envolvem questões tributárias, sendo reconhecido nestas hipóteses
736
no delitos de descaminho – artigo 334, do CP - , quando o tributo devido não
ultrapassa a quantia correspondente a R$20.000,00 (vinte mil reais), conforme se
depreende das Portarias 75 e 130, ambas de 2012 737, do Ministério da Fazenda, não

736
“Descaminho
Art. 334.
Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou
pelo consumo de mercadoria (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)”
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência
da República, [2022].
737
Portaria 130 do Ministério da Fazenda: “O MINISTRO DE ESTADO DA FAZENDA, no uso da
atribuição que lhe confere o parágrafo único, inciso II, do art. 87 da Constituição da República
Federativa do Brasil e tendo em vista o disposto no art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569, de 8 de agosto de
1977; no parágrafo único do art. 65 da Lei nº 7.799, de 10 de julho de 1989; no § 1º do art. 18 da Lei
nº 10.522, de 19 de julho de 2002; no art. 68 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996; e no art.
54 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, resolve:

Art. 1º Determinar:
I - a não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor com a Fazenda
Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais); e
II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor
consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
§ 1º Os limites estabelecidos no caput não se aplicam quando se tratar de débitos decorrentes de
aplicação de multa criminal.
§ 2º Entende-se por valor consolidado o resultante da atualização do respectivo débito originário,
somado aos encargos e acréscimos legais ou contratuais, vencidos até a data da apuração.
§ 3º O disposto no inciso I do caput não se aplica na hipótese de débitos, de mesma natureza e
relativos ao mesmo devedor, que forem encaminhados em lote, cujo valor total seja superior ao
limite estabelecido.
§ 4º Para alcançar o valor mínimo determinado no inciso I do caput, o órgão responsável pela
constituição do crédito poderá proceder à reunião dos débitos do devedor na forma do parágrafo
anterior.
§ 5º Os órgãos responsáveis pela administração, apuração e cobrança de créditos da Fazenda
Nacional não remeterão às unidades da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN)
processos relativos aos débitos de que trata o inciso I do caput.
§ 6º O Procurador da Fazenda Nacional poderá, após despacho motivado nos autos do processo
administrativo, promover o ajuizamento de execução fiscal de débito cujo valor consolidado seja
igual ou inferior ao previsto no inciso II do caput, desde que exista elemento objetivo que, no caso
específico, ateste elevado potencial de recuperabilidade do crédito.
§ 7º O Procurador-Geral da Fazenda Nacional, observados os critérios de eficiência, economicidade,
praticidade e as peculiaridades regionais e/ou do débito, poderá autorizar, mediante ato normativo,
as unidades por ele indicadas a promoverem a inscrição e o ajuizamento de débitos de valores
consolidados inferiores aos estabelecidos nos incisos I e II do caput.

Art. 2º O Procurador da Fazenda Nacional requererá o arquivamento, sem baixa na distribuição, das
execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a
87
sendo, aplicado, contudo, ao contrabando, previsto no artigo 334-A, do CP738
Tampouco é aplicada a insignificância de um modo geral em crimes contra a
Administração Pública, nos crimes previstos na lei de drogas (Lei no 11.343/06),
dentre outros.
No entanto, o seu reconhecimento não é uma constante nos tribunais pátrios,
principalmente os estaduais em que se verifica uma certa resistência na sua
aplicação, ao argumento de que não está positivado no ordenamento jurídico

R$ 20.000,00 (vinte mil reais), desde que não ocorrida a citação pessoal do executado e não conste
dos autos garantia útil à satisfação do crédito.
Art. 2º O Procurador da Fazenda Nacional requererá o arquivamento, sem baixa na distribuição, das
execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a
R$ 20.000,00 (vinte mil reais), desde que não conste dos autos garantia, integral ou parcial, útil à
satisfação do crédito. (Redação dada pelo(a) Portaria MF nº 130, de 19 de abril de 2012)
Parágrafo único. O disposto no caput se aplica às execuções que ainda não tenham sido esgotadas
as diligências para que se considere frustrada a citação do executado. (Revogado(a) pelo(a)
Portaria MF nº 130, de 19 de abril de 2012)

Art. 3º A adoção das medidas previstas no art. 1º não afasta a incidência de correção monetária, juros
de mora e outros encargos legais, não obsta a exigência legalmente prevista de prova de quitação
de débitos perante a União e suspende a prescrição dos créditos de natureza não tributária, de
acordo com o disposto no art. 5° do Decreto-Lei nº 1.569, de 8 de agosto de 1977.

Art. 4º Os débitos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) deverão ser
agrupados:
I - por espécie de tributo, respectivos acréscimos e multas;
II - por débitos de outras naturezas, inclusive multas;
III - no caso do Imposto Territorial Rural (ITR), por débitos relativos ao mesmo devedor.
Art. 5º São elementos mínimos para inscrição de débito na Dívida Ativa, sem prejuízo de outros que
possam ser exigidos:
I - o nome do devedor, dos corresponsáveis e, sempre que conhecido, o domicílio ou residência de
um e de outros;
II - o número de inscrição do devedor no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro
Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ);
III - o valor originário da dívida, bem como o termo inicial e a forma de calcular os juros de mora e
demais encargos previstos em lei ou contrato;
IV - a origem, a natureza e o fundamento legal ou contratual da dívida;
V - a indicação, se for o caso, de estar a dívida sujeita à atualização monetária, bem como o
respectivo fundamento legal e o termo inicial para o cálculo;
VI - o processo administrativo ou outro expediente em que tenha sido apurado o débito;
VII - a comprovação da notificação para pagamento, nos casos em que exigida;
VIII - o demonstrativo de débito atualizado e individualizado para cada devedor.

Art. 6º O Procurador-Geral da Fazenda Nacional e o Secretário da Receita Federal do Brasil, em suas


respectivas áreas de competência, expedirão as instruções complementares ao disposto nesta
Portaria, inclusive para autorizar a adoção de outras formas de cobrança extrajudicial, que poderão
envolver débitos de qualquer montante, inscritos ou não em Dívida Ativa.

Art. 7º Serão cancelados:


I - os débitos inscritos na Dívida Ativa da União, quando o valor consolidado remanescente for igual
ou inferior a R$ 100,00 (cem reais);
II - os saldos de parcelamentos concedidos no âmbito da PGFN ou da RFB, cujos montantes não
sejam superiores aos valores mínimos estipulados para recolhimento por meio de documentação de
arrecadação”. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Portaria130. Diário Oficial da Uniao, Brasília, 26 marco
88
brasileiro.
O Supremo Tribunal Federal elencou quatros vetores para a sua aplicação,
quais sejam:
a) mínima ofensividade da conduta do agente;
b) nenhuma periculosidade social da acao;
c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;
d) inexpressividade da lesão jurídica provocada
Como se depreende tais vetores são muito próximos entre si e o próprio STF
não faz distinção sobre eles.
Por sua vez, a 6ª Turma do do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no
julgamento do HC 593.652/MG739 em que denegou a ordem decidiu que a incidência
do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores,
basicamente reproduzindo os requisitos elencados pelo STF:
a) a mínima ofensividade da conduta do agente;
b) nenhuma periculosidade social da ação;
c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e
d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Como dito, o princípio da insignificância foi redesenhando por Claus Roxin
como fator de política criminal, sendo necessária uma grande flexibilidade e
sensibilidade do julgador aoaplicá-lo, levando-se em conta as especificidades e
peculiaridades do caso concreto, característica que não vislumbramos no dia-a-dia
do Poder Judiciário brasileiro e que contribui para a sua pouco efetividade.

de 2012.
738
“Contrabando
Art. 334-A.
Importar ou exportar mercadoria proibida: (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos. (Incluído pela Lei nº 13.008, de 26.6.2014)”.
BRASIL.Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência
da República, [2022].
739
“HABEAS CORPUS. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO CABIMENTO. BEM
FURTADO AVALIADO EM R$ 75,00. HABITUALIDADE DELITIVA. REINCIDÊNCIA.
PRECEDENTES. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. Sedimentou-se a orientação jurisprudencial
no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro
vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação;
c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão
jurídica provocada. 2. Ressalvada compreensão diversa, ainda que seja inexpressivo o valor da res
furtiva, avaliado em R$ 75,00, correspondente a aproximadamente 8% do salário mínimo vigente à
época, a habitualidade delitiva do paciente é suficiente para afastar a aplicação do princípio da
insignificância. Precedentes. 3. Habeas corpus denegado”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
Habeas Corpus n. 593.652/MG. Rel.: Min.: Nefi Cordeeiro. Diário de Justiça da União, Brasília, 16
set. 2020.
89
Sobre o princípio da bagatela e a sua relação com a adequação social, Maria
Paula Bonifácio Ribeiro de Faria740 questiona a sua autonomia, afirmando que, se
levarmos em conta que na bagatela há um desvalor da conduta, o critério
quantitativo que delimitaria o ilícito se transformaria em um critério quantitativo
colocado a serviço da afirmação ou exclusão do ilícito típico, transformando a
bagatela em um subprincípio da adequação social.
Justificando seu raciocínio, ela apresenta o seguinte exemplo

É que uma coisa é dizer-se que o tipo de legal de ofensas à integridade


física não se preenche porque um encontrão no autocarro não tem
‘dimensão’ suficiente para fundar o ilícito penal, outra coisa é afirmar-se que
o violento pontapé que é desferido por um jogador de futebol sobre seu
adversário no decurso do jogo tem um significado social distinto daquele de
que se deixaria revestir noutras circunstâncias.741

E prossegue afirmando que a solução final encontrada é a mesma, ou seja, o


afastamento do desvalor da conduta no caso concreto e, se o ilícito se deixa a definir
por uma ideia de danosidade social, não se afastando dos interesses tutelados pela
norma, o que prevalecerá é a adequação social do comportamento.742
A identidade entre a adequação social e insignificância só deixará de existir
quando o princípio bagatelar ou a escassa quantidade do ilícito não chega a
converter em critério qualitativo, ou seja, em que a natureza da lesão não traga uma
alteração substancial da imagem do fato, existindo autonomamente não como uma
mera designação de um desvalor da conduta, que não existe, mas como critério de
medição de um resultado típico.743
Por outro lado, Renato Jorge de Melo Silveira reconhece que em muitas das
vezes, ambos os princípios se confundem, no entanto, não admite a possibilidade de
delitos de bagatela serem considerados casos de adequação social.744
740
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 316
741
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 316.
742
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 317.
743
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 317.
744
Renato Jorge de Mello Silveira fundamenta seu raciocínio em Jesús María Silva Sánchez e
Figueiredo Dias. SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em
90
O próprio Claus Roxin reconhece que há hipóteses em que adequação social
e insignificância se confundem tanto doutrinaria, quanto jurisprudencialmente,
revelando a dificuldade do estudo do tema.745
Nas hipóteses do presente de ano novo do carteiro ou das ofensas à honra

praticadas no restrito âmbito familiar, Claus Roxin aponta que é cediço a não
configuração do tipo penal, não sob o fundamento da adequação social, que ele
entende ser demasiadamente inespecífico e cujo conceito apresenta vagueza e
abertura, o que pode trazer decisões perigosas. 746
A solução por ele apresentada seria a de uma redução teleológica do tipo e
que só pode ser alcançada pelo princípio da insignificância.747
Renato Jorge de Melo Silveira conclui que nem tudo que é insignificante é
adequado socialmente, como nos casos dos crimes patrimoniais. 748 Da mesma
forma, nem tudo que é socialmente adequado e que excluirá o tipo penal pode ser
considerado insignificante, reforçando a ideia de que tanto bagatela, como
adequação social deverão ser analisadas no caso concreto, solução, a meu ver, que
dificultaria em muito a aplicação de ambos os institutos pelos nossos tribunais.

3.18 Relação do Princípio da Lesividade (ou Ofensividade) 749 e a Adequação


Social

Em decorrência do princípio da fragmentariedade do Direito Penal, este só


deve atuar quando houver lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes.
Por consequência, Luigi Ferrajoli assevera que a lei tem como função prevenir
as mais reprováveis condutas e somente quando ocorrem efeitos lesivos, o que
justificaria o custo das penas e proibições. 750

direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 188.


745
ROXIN, Claus. Observaciones sobre la adecuación social en el derecho penal. Cuadernos de
Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, v. 7, n. 12, p. 81-94, 2001.
746
ROXIN, Claus. Observaciones sobre la adecuación social en el derecho penal. Cuadernos de
Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, v. 7, n. 12, p. 81-94, 2001.
747
ROXIN, Claus. Observaciones sobre la adecuación social en el derecho penal. Cuadernos de
Doctrina y Jurisprudencia Penal, Buenos Aires, v. 7, n. 12, p. 81-94, 2001.
748
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 194.
749
Sabemos que há uma diferenciação entre lesividade e ofensividade, no entanto, no presente
trabalho, os dois termos serão utilizados sem diferenciação.
750
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 426.
91
Deste raciocínio, fundamenta-se a limitação do poder punitivo estatal, que é
orientado pelo princípio da necessidade das penas em que se exige que a absoluta
necessidade das proibições penais sejam apenas as devidas para impedir as
condutas lesivas.
O princípio da lesividade, que se materializa no brocardo latino nulla poena,
nullum crimen, nulla lex poenalies sine iniuria, exige que uma determinada conduta
cause um dano ou um perigo de dano a um bem jurídico, que se torna a questão
central quando se analisa referido princípio.
Logo, em decorrência do princípio da lesividade, não se pode punir atitudes
internas, atos preparatórios ou atitudes desviadas, orientadas em direção oposta
àquela aprovada pela coletividade.
Na esteira de Luigi Ferrajoli é necessário advertir que o princípio da
ofensividade não deve se subsumir ao ordenamento infraconstitucional, devendo ser
extraído constitucionalmente, locus onde o Direito Penal é estudado sob o enfoque
de outros princípios também previstos constitucionalmente, mas também e inclusive
de acordo com uma política criminal mais racional, orientando e limitando o trabalho
do legislador. 751
No âmbito legislativo, destaca-se, a ofensividade orientará o legislador a não
incriminar, como já dito, condutas que refletem atitude internas ou ingerências
desnecessárias na liberdade individual do sujeito, guardando íntima relação com a
proporcionalidade e a intervenção mínima.
Neste sentido, deve-se reconhecer como função da ofensividade o papel de
limite ao Poder Legislativo, uma vez que devem ser consideradas inconstitucionais
as intervenções penais que criminalizem condutas que não ofendem ou ponham em
risco o bem jurídico.
Na seara judicial, a ofensividade deve ser analisada à luz do caso concreto
para se verificar a sua efetiva ocorrência. Assim, com base na concepção centrada
na ofensa ou exposição a perigo de um bem jurídico, não bastará apenas o
preenchimento ou, tecnicamente falando, o juízo de adequação, dos requisitos de
uma conduta a um tipo previsto formalmente, para a configuração da tipicidade
penal. A este procedimento alcançaremos apenas a tipicidade formal.
Será necessário também que o intérprete, no caso o magistrado, analise se
751
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal – 4ª ed. rev. – São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 426.
92
houve ofensa ou perigo de lesão, no âmbito do desvalor da ação e do resultado,
para que se configure a tipicidade material e só assim realiza-se o juízo de tipicidade
de forma global.
Como parâmetro interpretativo e diante da situação concreta, como ocorre
nas hipóteses de insignificância, nos casos de adequação social, em que as
condutas são socialmente adequadas, deve o magistrado averiguar se tais
comportamentos apresentam algum desvalor da ação.
Com base, portanto, na averiguação do alcance proibitivo da norma, não de
forma isolada, como ensina Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli e sim
em cotejo com toda a ordem normativa, o juiz poderá absolver o acusado por
atipicidade quem praticou aparentemente uma conduta típica, mas que não é
antinormativa por ser adequada socialmente. 752

3.19 Limites da adequação social

Tendo em vista a controvérsia e a resistência do reconhecimento da


adequação social na prática judicial, principalmente pelo Poder Judiciário pátrio, que
todos sabemos é refratário a qualquer instituto descriminalizador, necessário trazer
alguns parâmetros (ou limites),753 e que facilitariam a sua aplicação.
Renato Jorge de Melo Silveira aponta como primeira limitação que deve ser
dada à adequação social é o do respeito ao princípio da dignidade humana vista em
modo individual. 754
Para justificar o seu posicionamento traz o exemplo da excisão clitoriana na
região muçulmana. Tal ritual não ocorre em todas as correntes do Islamismo, mas
apenas em algumas delas e que retrata uma forma de dominação e opressão
patriarcal. 755
Pode-se argumentar,756, que no caso do judaísmo faz-se a circuncisão dos
752
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. v. 1, p. 398.
753
SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 336 e ss.
754
SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 336.
755
SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 339.
756
SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
93
meninos no oitavo dia após nascido e que isto causaria da mesma forma lesões
corporais.757
A diferença entre ambos os procedimentos é que na circuncisão não há em
momento algum desrespeito à dignidade humana daquele recém nascido. Ao
contrário, a retirada do prepúcio é recomendada para se evitar diversas doenças,
dentre eles o câncer de pênis.
Nas hipóteses de extirpação clitoriana, a mulher pode sofrer dores,
infecções, infertilidade, hemorragias, alteração no ciclo menstrual, além, é claro, da
consequência psicológica de tal ato, afetando a dignidade humana daquela mulher.
Cristina De Maglie relata, ainda, sobre a ausência de condições higiênicas
adequadas, a falta de anestesia em muitos casos e o uso de instrumentos cirúrgicos
rudimentares e não esterilizados. Além disso, o mesmo instrumento é
frequentemente utilizado para circuncidar diversas mulheres.758
Coadunando com o pensamento de Renato Jorge de Mello Silveira, Ana
Elisa Liberatore Silva Bechara ressalva que o direito à própria cultura não é absoluto
e, se houver colisão com os direitos humanos e ao princípio da dignidade humana,
caberá ao Direito Penal intervir, quando houver alguma ofensa,a despeito de seu
caráter subsidiário e fragmentário.759
Para a Autora, se um prática culturalmente motivada não implicar em lesão
ou ameaça de lesão aos direitos fundamentais da pessoa humana, não será

Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 341.


757
Neste sentido: “Tal oposição dos direitos humanos e da dignidade, em uma perspectiva
universalizada, ao respeito em geral à diversidade cultural advém da própria ideia de garantia à
autodeterminação individual em relação à cultura de determinado grupo. Entende-se, assim, que o
indivíduo, embora receba todo o conjunto de valores culturais como membro de uma comunidade,
deve ser livre para aceita-los ou negá-los, não se lhe podendo impor nenhuma prática cultural. Em
vista de tal raciocínio, entende-se em geral delitiva a conduta de ablacao clitoriana de crianças,
praticada no âmbito de algumas culturas africanas, pretensamente sob a influência da religião
muçulmana. Nesse exemplo específico, observa-se, aliás, a existência de certo consenso sobre a
intolerância de tal prática cultural, cristalizado em diversos ordenamentos jurídicos sob a forma de
tipos penais específicos, os quais, embora tecnicamente desnecessários – haja vista que a conduta
praticada nesses casos constitui já o delito de lesão corporal -, materializam-se de forma autônoma
como expressão política de uma mensagem clara de imposição de limites à multiculturalidade
advindos dos direitos humanos”. BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto
penal: considerações sobre os elementos normativos do tipo objetivo no direito penal
contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 310-
311. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1)
758
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
759
Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos
normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo
Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 311, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1).
94
considerada crime por não haver ofensa material a um determinado bem jurídico.760
O segundo limite seria o de levar em conta a mens legis de cada tipo
penal.761
Em julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) em que se pede
o reconhecimento da adequação social em lesões corporais leves praticadas contra
mulher em contexto de violência doméstica, assim se decidiu:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - AMEAÇA - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA -


AUTORIA COMPROVADA - CRIME FORMAL - DOLO CARACTERIZADO -
PRINCÍPIO DA PACIFICAÇÃO OU DA ADEQUAÇÃO SOCIAL -
INAPLICABILIDADE - CONDENAÇÃO NECESSÁRIA - LESÃO CORPORAL
- RECRUDESCIMENTO DO REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA PARA
O SEMIABERTO - ACUSADO REINCIDENTE NA PRÁTICA DE CRIMES
NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES DOMÉSTICAS - NECESSIDADE- 01.
Demonstrada a autoria do crime de ameaça, a condenação, à falta de
causas excludentes de ilicitude ou de culpabilidade, é medida que se impõe.
02. Para a caracterização do injusto de ameaça, pouco importa tenha ou
não o réu a intenção de realizar o mal injusto e grave prometido, eis que
crime formal, bastando para sua configuração que agente, de forma livre e
consciente, deseje intimidar a vítima. 03. A conciliação é ferramenta hábil na
composição de litígios que envolvem direitos disponíveis, cooperando para
desafogar o judiciário e para a satisfação das partes. O mesmo não ocorre
quando tratamos de direitos indisponíveis, em virtude da relevância do bem
juridicamente protegido. 04. A relevância da proteção dos bens tutelados é
tão expressiva nessa modalidade de crime/contravenção penal, que a Lei
11.343/06 dispôs, em seu artigo 6º, que a violência doméstica contra a
mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos, eis
porque necessário tratar com mais rigor o agressor. 05. A aplicação da
política criminal de preservação dos laços familiares sucumbe diante do
interesse público de punir os agentes de crimes no âmbito da violência
doméstica e familiar por representar interesse superior ao da preservação
do matrimônio. 06. Não há falar-se em aplicação dos Princípios da
Insignificância, da Adequação Social ou da Pacificação Social nas
hipóteses de violência doméstica, porque a alta reprovabilidade da
conduta não se coaduna com os requisitos necessários para a
aplicação desses princípios. 07. Tendo o réu, reincidente, s ido
condenado à pena privativa de liberdade inferior a quatro anos e analisada,
em seu favor, as circunstâncias judiciais, deverá cumprir a sanção que lhe
foi imposta no regime prisional semiaberto, porque imediatamente mais
severo ao que faria jus fosse primário. Inteligência do artigo 33, § 2º, letras
'c' e 'b' e da súmula 269 do STJ (grifos nossos)762

Por óbvio, sabemos que a lesão corporal, seja ela grave ou leve, praticada
em contexto de violência doméstica configura uma violação aos direitos
760
Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos
normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo
Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 312, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1).
761
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 337.
762
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. (3ª Câmara Criminal). Apelação Criminal
1.0518.20.007127-3/001. Relator(a): Des.(a) Fortuna Grion. 26 out. 2021. Belo Horioznte, 5 nov.
2021.
95
fundamentais das mulheres. Por sua vez, o espírito da lei – mens legis - é o de
proteção das mulheres, coibindo qualquer ato que possa caracterizar violência, seja
que tipo ela for.
O que se percebe da ementa da referida decisão que a adequação social foi
de plano rechaçada pela Desembargadora Relatora ao argumento de não
preenchimento dos requisitos necessários. No entanto, ao se fazer a leitura do voto
que manteve a condenação, não se menciona quais são estes requisitos.
O reconhecimento dos limites desenhados por Renato Jorge de Melo
Silveira seria extremamente salutar para justificar a aplicação do instituto ou não em
determinados casos como os de violência doméstica. 763

763
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 344.
96
CAPITULO III
ANTINORMATIVIDADE ???

Até a atualidade, a teoria da norma jurídica desenvolvida por Karl Binding


tem uma ligação quase umbilical com o Direito Penal. Karl Binding parte da premissa
que o criminoso não pode agir contrariamente à lei penal, pois seu procedimento
parte do respectivo preceito, ou seja, ele realiza a tipicidade prevista e, por sua vez,
não comete violação normativa alguma.
Armin Kaufmann ressalva que para Karl Binding a norma não faz parte da lei
penal, mas forma ao lado desta uma regra jurídica totalmente independente e que
não implica em participar necessariamente do destino da lei penal. 764
Uma das tarefas das normas, portanto, seria servir de fundamento a deveres
estritamente individuais das pessoas físicas para a prática ou abstenção de
determinado ato, o que Karl Binding chama de “deveres de obediência ou de
sujeição.765
Assim, através destes comandos e a sujeição dos indivíduos a ele, revela-se a
função protetora da norma, que para ele é

[...] tudo aquilo que, embora por si não constitua um direito, aos olhos do
legislador se reveste de certo valor como pressuposto de uma vida sadia da
comunidade jurídica, e cuja preservação e funcionamento imperturbado ele
manifesta um certo interesse.766

Assim ele prossegue assumindo que a proteção é direcionada à toda


comunidade jurídica, não devendo os bens jurídicos ser encarados sob um ângulo
individualista apenas e tampouco distinguir entre bens jurídicos coletivos e

764
KAUFMANN, Armin. Teoria da norma jurídica. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeito:
Editora Rio, 1976, p. 26.
765
BINDING apud KAUFMANN, Armin. Teoria da norma jurídica. Tradução de Paulo César Busato.
Rio de Janeito: Editora Rio, 1976, p. 26.
766
BINDING apud KAUFMANN, Armin. Teoria da norma jurídica. Tradução de Paulo César Busato.
Rio de Janeito: Editora Rio, 1976, p. 26.
97
individuais.
Neste sentido, Cláudio Brandão conclui que a norma é a única fonte do bem
jurídico, revelando-o e, consequentemente, revela o seu objeto de proteção. 767
Karl Binding conceitua a norma, portanto, como “mandamento obrigatório de
conteúdo jurídico” e que gera um dever, podendo assumir a forma de proibição ou
mandamento.768. As normas antecederiam a lei penal e, sempre que não tenham
qualquer tipo de formulação positiva, elas serão deduzidas da lei penal.769
Armin Kaufmann ressalta – deves, se puderes; não deves, se puderes –
direciona-se não apenas à capacidade física do homem. O indivíduo é uma unidade
formada também pela parte psicológica, logo, a norma deve se dirigir tanto para a
parte psíquica, quanto para a psicológica. 770
O que se observa dessa afirmação de Armin Kaufmann é de que ele adota a
teoria finalista da ação de Hans Welzel, afirmando que a norma só pode exigir e
esperar algum comportamento baseado em um ato de vontade ou, nas suas
palavras: “[...] o conteúdo da proibição sempre consiste em uma ação finalista”. 771
Independentemente da afirmação do autor, através do exame da norma, devemos
fazer uma análise e perquirir a quem esta norma é dirigida (o sujeito da norma) e do
ato submetido à normatividade, que será a matéria de proibição.
Sobre a matéria de proibição, Hans Welzel afirma que através deste modelo
de conduta podem tanto o juiz, quanto o cidadão reconhecerem quais são os
comportamentos proibidos, o que tem especial importância para o Direito Penal, pois
nele é inalienável e irrenunciável o princípio nulla poena sine lege. 772773

767
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 131.
768
BINDING apud KAUFMANN, Armin. Teoria da norma jurídica. Tradução de Paulo César Busato.
Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 61.
769
KAUFMANN, Armin. Teoria da norma jurídica. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 1976, p. 61.
770
KAUFMANN, Armin. Teoria da norma jurídica. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 1976, p. 144.
771
KAUFMANN, Armin. Teoria da norma jurídica. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 1976, p. 146.
772
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Juan Bustos Ramírez y
Sergio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976.
773
Neste sentido Jesús Maria Silva Sanchez afirma que: “Por outro lado, mesmo nos casos em que o
direito penal atinge um campo em que já existem outras normas jurídicas, sua intervenção produz o
aparecimento de normas autônomas, caracterizadas por expressar não apenas a proibição legal de
conduta, mas a proibição sob ameaça de pena , com a consequente afirmação de que o fato
contrário à norma não é meramente um ato injusto, mas um “ato injusto merecedor de punição”. Só
assim o direito penal pode cumprir sua função específica de ordem social: dirigir a priori as normas
98
E prossegue afirmando que a exigência da descrição concreta da matéria de
probicao é decorrência do tipo penal. Por sua vez, a norma não se preocupa com
uma descrição detalhada do sujeito ou do comportamento proibido. Tal tarefa é
atribuição do tipo penal.
Cláudio Brandão afirma que tipo penal e norma não se confundam, muito
embora seja através da análise do tipo penal que vislumbraremos a norma penal e,
por consequência, a matéria de proibição. 774
O tipo penal é uma fórmula conceitual que descreve as possíveis formas de
cometimento de um delito, enquanto a norma penal proíbe a realização destes
comportamentos.
Neste mesmo sentido Juarez Tavares, para quem a norma jurídica é
constituída pela descrição de condutas que se exteriorizam através do tipo penal,
devendo materializar condutas que efetivamente lesem ou exponham a perigo bens
jurídicos. Para ele norma e tipo não apresentam diferença substancial, no entanto,
ressalta que o tipo penal “(...) encarna tão-somente a matéria prima formalizada do
preceito normativo, de maneira que a realização do tipo já encerra em si a confecção
do proibido ou a não confecção do juridicamente imposto”. 775
A norma descreve uma situação de forma abstrata e ressalta Armin
Kaufmann tal abstração estará presente em todas elas, ainda que haja um esforço
para facilitar sua aplicabilidade através de uma descrição mais detalhada à
realidade. 776
A norma não pode e nem deve ser “apenas” uma figura abstrata. Deve ela
ver seu escopo principal – a evitabilidade ou a prevenção de determinadas condutas

penais com a missão de prevenir certos atos especialmente graves por meio da ameaça —também
especialmente grave— de punição”. No original: “Por otro lado, incluso en los casos en que el
Derecho penal incide en un campo en el que ya existen otras normas jurídicas, su intervención
produce la aparición de normas autónomas, caracterizadas por expresar no meramente la
prohibición jurídica de una conducta, sino la prohibición jurídica bajo amenaza de pena, con la
consiguiente afirmación de que el hecho contrario a la norma no es meramente un hecho injusto,
sino un «injusto merecedor de pena». Sólo de este modo puede el Derecho penal cumplir su
específica función de ordenación social: dirigiendo ya a priori normas penales con la misión de
prevenir determinados hechos especialmente graves mediante la amenaza —también
especialmente grave— de la pena: SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho
penal contemporáneo. Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1992, p. 317
774
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 59..
775
TAVARES. Juarez. Teoria do crime culposo. 5. ed. rev. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p.
283
776
KAUFMANN, Armin. Teoria da norma jurídica. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 1976, p. 183.
99
– obedecido. Logo, a norma deve ser concretizada antes do início da execução do
ato para motivar os seus destinatários na escolha ou não da conduta proibida

ANTINORMATIVIDADE PENAL

Como dito, o tipo penal é uma moldura que descreve uma conduta
criminosa. Ele é o conteúdo das normas proibitivas, tais como não se deve matar,
não se deve furtar e etc.
A norma penal, por seu turno, proíbe a realização destas formas de conduta.
Caso o indivíduo pratique uma conduta que se encontra descrita no tipo penal, tal
conduta é o contrário da exigência da norma, isto é, no tipo de homicídio, se o
sujeito mata alguém, ele realiza o que está descrito no tipo penal, no entanto, entra
em contradição com a matéria de proibição que é não se deve matar.
Logo, depreende-se que tal conduta é antinormativa. Hans Welzel ressalva
que toda conduta que é típica é antinormativa, porém, nem sempre antijurídica pois
o ordenamento jurídico não é formado apenas de proibições. 777 Outrossim, existem
hipóteses excepcionais de preceitos permissivos, como no caso da legítima
defesa.778
Eugenio Raúl Zaffaroni constata que a norma jurídica não se encontra na
lei, particularmente na lei penal, por outro lado se antepõe logicamente a ela. Se a
uma conduta se lhe agrega como consequência uma sanção (lei), é porque essa
conduta está proibida (norma) e essa proibição se deve ao fato de a lei ter um
interesse em proteger a entidade a que essa conduta afeta, ou seja, essa entidade é
valorizada positivamente por ela (é um bem jurídico). 779
E prossegue afirmando que de uma certa forma, tanto a norma como o bem
jurídico são antepostos ao tipo e tal preferência não implica em prioridade
cronológica alguma, mas sim uma necessidade lógica.
Como bem asseverado por Eugenio Raúl Zaffaroni, todo o ordenamento

777
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Juan Bustos Ramírez y
Sergio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976..
778
Segundo Enrique Bacigalupo “a lei penal e norma, em princípio, não se identificam, O
comportamento delitivo não contraria o direito penal, mas a norma, ou seja, a ordem que o
legislador dirige ao sujeito de direitos”. BACIGALUPO, Enrique. Derecho Penal y el Estado de
Derecho. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2005, p. 27.
779
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 222
100
jurídico emana normas jurídicas que protegem bens específicos, o que diferencia o
Direito Penal neste aspecto é a revelação da matéria de proibição pela norma penal.
780

Outro ponto que merece relevo é que o tipo nunca cria a norma penal. O
contrário é que prevalece. A norma se manifesta na seara penal através do tipo. Da
mesma forma, só conhecemos o bem jurídico protegido pela norma.
Utilizando do exemplo dado por Eugenio Raúl Zaffaroni em sua obra, o
intérprete segue na contramão do legislador que faz o seguinte caminho: valoração
(bem jurídico) – norma que tutela (norma jurídica) – materialização (lei penal).
Concluindo: o tipo penal pertence à lei e é lei, mas nem o bem jurídico nem a
norma pertencem à lei e tampouco, por óbvio e por consequência, ao tipo penal.
O tipo nos permite “ver através” da norma e do bem jurídico, mas este
vislumbre, nos dizeres de Eugenio Raúl Zaffaroni, é apenas a manifestação de que o
tipo é a entidade que nos permite conhecer outros objetos que são estranhos ao
próprio tipo.
De outro lado, Ricardo Robles Planas afirma que, apesar dessa construção
de Karl Binding, em um primeiro momento, ser considerada à margem da discussão
de considerações político-criminais, na verdade, a teoria das normas é um
importante instrumento de discussão político-criminal.781
Um dos princípios basilares do direito penal é o da ultima ratio, isto é, o
direito penal não deve ser acionado quando qualquer infração for praticada, mas tão
somente em relação a determinadas infrações que foram previamente selecionadas
como importantes pelo legislador e que mereçam proteção da tutela penal.
A abordagem em relação à questão da norma é diferente da questão
relativa à sanção da conduta que infringe esta norma.
Ricardo Robles Planas entende que não é produtivo discutir a natureza das
normas, ou seja, se são oriundas do direito público ou do direito privado. Para o
autor, o cerne da discussão recai sobre o reconhecimento de que a limitação da
liberdade de atuação das normas requer uma legitimação independente ao da

780
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, p. 222

781
PLANAS, Ricardo Robles. Estudos de dogmática jurídico-penal: fundamentos, teoria do delito e
direito penal econômico. Coordenação de Cláudio Brandao. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2016, p. 44, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 6).
101
aplicação da pena, quando um injusto é praticado. 782
E, continuando o seu raciocínio, afirma que, quando ocorre uma infração é
necessário que o direito penal, através da lei penal, seja acionado para que haja
uma recomposição do mundo normativo. No entanto, ele afirma que, ainda neste
momento o direito penal não tem qualquer relação com a sua reação, que é a pena.
O próprio Robles Planas afirma que a questão da antinormatividade não é
de fácil sistematização.
Neste momento, é válida uma digressão para recordar que Karl Binding com

base nos preceitos positivistas vinculou o conceito de bem jurídico ao Estado, mas o
fez a partir da norma, ou seja, ele afirma que a norma se origina de um tipo penal.
Para ele, a norma cria a figura da ação antijurídica e a lei o ato criminal. A norma
está um plano supra legal, pois determina uma conduta positiva ou negativa que
compreende o comportamento esperado pelo direito
Assim toda norma traz em seu bojo, cuja lesão constitui o núcleo da sua
desobediência, ou seja, o delito constituiria a infração ao dever de obediência do
cidadão frente ao Estado. Com Karl Binding surge a primeira vez o conceito de bem
jurídico, que seria aquilo que, aos olhos do legislador, tem uma especial relevância,
havendo então a congruência entre a lei penal e a norma.
Esta construção do bem jurídico por Karl Binding é criticada por Ricardo
Robles Planas. Ele afirma que existem determinados interesses que devem ser
objeto de proteção jurídico-penal. Ele entende que as discussões político-criminais
se convenceram que o conceito de bem jurídico não tem o rendimento adequado
principalmente sobre os limites das proibições e mandados, até mesmo porque se
formos levar em conta que a escolha de quais bens jurídicos devem ser protegidos e
que essa escolha é feita pelo legislador, podemos concluir que, em algum momento,
esta escolha será totalmente discricionária e aleatória.
Ele prossegue que o estudo da limitação do poder punitivo estatal e de sua
legitimação não deve ser abandonada. E vai além. Muito embora a
antinormatividade não tenha se desenvolvido posteriormente a Karl Binding, Ricardo
Robles Planas entende que o estudo do bem jurídico deve ser utilizado como o
ponto de partida para discussão da legitimidade das proibições e que terá como

782
PLANAS, Ricardo Robles. Estudos de dogmática jurídico-penal: fundamentos, teoria do delito e
direito penal econômico. Coordenação de Cláudio Brandao. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2016, p. 45, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 6).
102
função a classificação dos delitos de lesão e de perigo.
Ricardo Robles Planas afirma que a questão em torno do bem jurídico
fomentará se é mais importante a tutela de interesses que são efetivamente
lesionados ou na antecipação das barreiras de punição como nos crimes de perigo.
Em especial, se preocupa com a legitimação da punição estatal em relação aos
crimes de perigo abstrato, que são aqueles que o perigo é presumido pelo legislador
na conduta praticada por um determinado sujeito. Para ele, a real referência
negativa para o bem jurídico está totalmente ausente. E, para contrariar a atividade
legislativa que justificaria a proteção de tal bem jurídico mediante a criação de um
tipo de perigo abstrato, deveria ser feita a utilização do argumento da
proporcionalidade. A aplicação de uma pena é proporcional ao delito praticado. O
sacrifício é maior ou menor que o ganho? 783
O dano parece ser o fundamento tradicional da teoria do bem jurídico, ou
seja, o dano que a conduta produz identifica-se exclusivamente com a lesão ou o
perigo para o bem jurídico que a norma tratava de evitar. Contudo, o dano também
foi entendido em um sentido ideal-normativo. Por um lado, fala-se o dano
psicológico-social ou intelectual e, por outro, do dano simbólico ou normativo. O
primeiro refere-se aos efeitos sociais da comissão de um delito, particularmente à
produção de insegurança. O segundo faz referência à autocontradição normativa
que o delito supõe para o cidadão que o comete.
A pena igualmente possui estes dois aspectos. Apresenta dimensão
normativa com seu componente fático: o sofrimento ou a dor penal. Não é que não
se seja consciente de que a pena é um mal para o indivíduo que a sofre, mas que
em sua dimensão normativa é um bem de uma magnitude tão elevada que por si
mesma (compensa completamente) a imposição de dor. Por um lado, a dimensão
fática desempenha um papel relevante na legitimação da sanção penal e, por outro,
em sua dimensão normativa, a pena não é todo bem.
Jesús Maria Silva-Sanchez distingue norma e dever, sendo que aquela
apresenta o atributo da abstração e generalidade. Apenas da sua leitura e
compreensão pelo cidadão é que se pode concluir decorrerá um dever de
comportamento. Isto significa que se houver uma permissão na compreensão do

783
PLANAS, Ricardo Robles. Estudos de dogmática jurídico-penal: fundamentos, teoria do delito e
direito penal econômico. Coordenação de Cláudio Brandao. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
D’Plácido, 2016, p. 47, (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 6).
103
caráter valorativo da norma, o indivíduo não terá o dever de se omitir ou de realizar
determinado comportamento , logo, a existência de uma permissão não é um óbice
para que a proibição contida em uma norma se torne um dever, no entanto, não a
exclui, o que o autor entende ser um problema784.
Para ele este problema se caracteriza pelo fato de que uma norma proibitiva,
por ser geral e abstrata, em tese, ainda não será oposta, caracterizando-se, assim,
em uma licença e não em um dever. Para ele as proibições contidas em uma norma
jurídica devem ser dirigidas aos seus destinatários – cidadãos – de forma especifica,
sob pena de serem ineficazes785.
O próprio Autor ressalva que é impossível o cometimento de uma ato de
forma abstrata e que tal atributo corresponde à proibição de forma concreta. A
abstracao, na verdade, estará inserida no juízo de valoração da norma, afirmando,
ao fim, que , quando há o cometimento de uma fato em concreto ocorrerá a
tipicidade e, por consequência, a infração da norma, ocorrendo a antinormatividade
da conduta, a qual a tipicidade seria uma de suas formas.786

A RELACAO DA ANTINORMATIVIDADE E A ESTRUTURA DO DELITO

ANTINORMATIVIDADE E A TIPICIDADE

Partindo de tais premissas, repita-se, tipo e normal penal, embora estejam


umbilicalmente ligados, não podem e não devem ser confundidos.
O tipo penal é a descrição prevista em uma determinada lei e que
individualiza o comportamento proibido ao qual ser infligida uma pena.
Nos dizeres de Cláudio Brandão, enquanto o tipo é expresso em um
comportamento positivo (matar), a norma penal determina um comportamento
negativo (não matar), por tal razão é proibitiva. 787
784
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona:
José Maria Bosch Editor, 1992, p. 327
785
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona:
José Maria Bosch Editor, 1992, p. 328.
786
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona:
José Maria Bosch Editor, 1992, p. 328.
787
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 60.
104
Por sua vez, quando alguém realiza uma conduta que se amolda a um tipo
penal, teremos a tipicidade, cuja averiguação não se dá pela contradição da conduta
com o ordenamento jurídico e, sim, com a norma proibida, que terá o nome de
antinormatividade.
A antinormatividade é plenamente concretizada com a realização de uma
conduta que se amolde a um tipo penal, pois toda conduta amoldada àquele viola a
norma que logicamente se extrai da sua definição legal.
Conclui-se que norma e bem jurídico não fazem parte do tipo penal e estão
sobrepostos a ele e, para que haja a afetação do bem jurídico e a configuração da
antinormatividade, que o pressupõe são características do tipo penal788 .
Assim, por consequência, uma conduta, pelo simples fato de ser típica é,
automaticamente, considerada antinormativa e que lesiona um determinado bem
jurídico.
No entanto, Eugenio Raul Zaffaroni, Alejandro Slokar e Alejandro Alagia
excepcionam esta regra afirmando que existem condutas que não são
antinormativas e tampouco afetam bens jurídicos. 789 Os autores dão o exemplo do
oficial de justiça que, tomando todas as precauções legais e em cumprimento de
uma ordem judicial, apreende um bem terceiro.
Nessa hipótese, o que se observa é que o comportamento por eles
praticado, a princípio, é típico. No entanto, é realizado em cumprimento a um dever,
ou seja, “[...] a norma proibida se encontra limitada em seu âmbito de proibição por
outra norma não faz o que o tipo que corresponde à primeira norma proibitiva
descreve”790 791
Tampouco não se deve levar em conta as lesões aos bens jurídicos que não
sejam graves, sendo que nem toda afetação mínima ao bem jurídico é capaz de
configurar afetação mínima que requer a tipicidade penal.
Eugenio Raul Zaffaroni, Alejandro Slokar e Alejandro Alagia trazem os
788
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR, Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 229
789
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 229.
790
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 229.
791
Eugenio Raul Zaffaroni, Alejandro Slokar e Alejandro Alagia vários casos semelhantes a estes em
que a conduta a qual se adequa à descrição típica legal não será típica, tampouco antinormativa,
como, por exemplo, nos cortes de cabelo ou nas pequenas escoriações advindas de uma relação
sexual consentida. ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho
penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 230.
105
exemplos do condutor que não para no lugar não previsto para a subida e descida
de passageiros ou no caso das gorjetas adas aos carteiros na ocasião de festas de
fim de ano. 792
Em tais hipóteses entende que tais lesões, em que pesem estarem escritas
em um tipo penal, caracterizam-se como insignificantes a lesar ou pôr em perigo um
bem jurídico e, portanto, não serão típicas, devendo ser tratadas com base nas
premissas do princípio da insignificância,
Curiosamente, esses dois últimos exemplos dados por ele e que devem ser
analisados sob o fundamento da insignificância, são as hipóteses clássicas de
adequação social trazidas por Hans Welzel para estruturar tal princípio.

A TIPICIDADE CONGLOBLANTE DE EUGENIO RAÚL ZAFFARONI

Eugenio Raul Zaffaroni constrói o sobre a teoria da tipicidade congloblante,


afirmando que não cabe ao intérprete analisar a tipicidade penal tendo apenas como
parâmetro a tipicidade legal.
Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli afirmam que a tipicidade
legal e tipicidade penal não são sinônimos, apontando que a tipicidade penal
pressupõe a legal não a esgotando. A análise da tipicidade vai além: que a conduta,
além de se amoldar a um tipo penal preexistente – tipicidade legal – que haja
vinculação da norma jurídica e, consequentemente, lesão ou colocação em perigo
de um bem jurídico.793
Para justificar seu raciocínio mais uma vez, Eugenio Raul Zaffaroni e José
Henrique Pierangeli794 se utilizam do caso do oficial de justiça que vai cumprir uma
ordem judicial de sequestro/penhora e, para tanto, precisa acionar os órgãos
policiais.
Em uma primeira análise, que não está incorreta, vale ressaltar, poderia se
afirmar que referido servidor público aqui amparado por uma excludente de
antijuridicidade – estrito cumprimento do dever legal (artigo 23, inciso II, do CP)- não
792
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 231.
793
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 399. v. 1.
794
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 399. v. 1.

106
teria praticado crime
Como ele próprio relembra, o ordem jurídica não é um apanhado de normas
desorganizadas, mas sim algumas proibitivas e outras permissivas que guardam
entre si uma certa concatenação. Esse ordenamento, ainda que mínimo, evita o que
uma norma proíba o que a outra autoriza e vice-versa, asseverando o seguinte:

Isto nos indica que o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade
legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade
conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação
do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e, sim,
conglobada na ordem normativa (grifos no original)795

E arremata:

A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode


excluir do âmbito do típico aquelas condutas que apenas aparentemente
estão proibidas, como acontece no caso exposto do oficial de justiça , que
se adequa ao ‘subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel’[art. 155,
caput, do CP], mas que não é alcançada pela proibição do ‘não furtarás’
(grifos no original)796

Portanto, para que o intérprete possa realizar o juízo de tipicidade não deverá
fazer a mera adequação entre uma conduta e um tipo existente. Deverá ir além.
Paralelamente, deverá perquirir o alcance proibitivo da norma conglobada com a
ordem normativa.
E conclui que excluir do âmbito típico aquelas condutas que apenas
aparentemente estão proibidas, como no caso exposto do oficial de justiça, que se
adequa ao subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel [art. 155, caput, do
CP], mas que não e alcançada pela proibição do ‘não furtarás’.797
Por fim, ele nos adverte que a análise da antinormatividade trazida a efeito
pela tipicidade conglobante não significa um abandono ao princípio da legalidade,
até mesmo ele é um dos princípios mais caros e importantes do Direito Penal e um
dos freios ao arbítrio e violencia estatais. 798

795
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 400. v. 1.
796
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 400. v. 1.
797
ZAFFARONI. Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 400. v. 1.
798
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 236, tomo III,
107
Tal afirmação se justifica pois o tipo penal, ao ser analisado de maneira
conglobada com as demais normas de um determinado ordenamento jurídico,
revelam que elas também fazem parte da legislação como um todo, não havendo se
falar em renúncia à legalidade.799

ANTINORMATIVIDADE E A ANTIJURIDICIDADE

Como já asseverado, o ordenamento jurídico não é formado apenas de


normas proibitivas. Existem também os preceitos permissivos em que o próprio
ordenamento autoriza que o indivíduo realize condutas que, a princípio, são típicas.
Santiago Mir Puig nos informa que, quando Franz von Liszt diferenciou a
antijuridicidade da culpabilidade, entendeu aquela de forma objetiva, ou seja, como
uma lesão ou uma colocação em perigo de um bem jurídico, mas, ao mesmo tempo,
como uma infração de uma norma ou madado de proibição em relação ao
ordenamento jurídico, que seria a antijuridicidade formal, isto é, a antinormatividade.
800

Por sua vez, prossegue o autor que Karl Binding entendia a antijuridicidade de
forma objetiva e não se poderia supor uma plena antinormatividade, exigindo-se a
culpabilidade do sujeito. 801
No entanto, tal raciocínio não vingou e apenas com o advento do
neokantismo, que trouxe para a teoria do delito o seu significado normativo-
valorativo, bem como da antijuridicidade.
Santiago Mir Puig nos ensina que o neokantismo, através de Edmund
Mezger, fez a separação entre norma de determinação e norma de valoração, o que
mais à frente veremos ser tautológica. Se entendermos tal dicotomia, afirma-se que
uma norma jurídica pode consistir em uma pura valoração desprovida de seu caráter
mandamental.802

799
ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 236 tomo III
800
MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho penal. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994, p. 5
801
MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho penal. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994, p. 5.
802
Mir ouig MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho
penal. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994,
p. 6.
108
Nesta toada, a infração do aspecto valorativo da norma não implica em
infração da própria norma. Assim entendida como oposição à valoração da norma
proibitiva, a antijuridicidade não significava a infração completa da norma. Tal
entendimento neokantista não conseguiu explicar a antinormatividade no sentido de
infração a uma norma de determinação.
Com o finalismo, Hans Welzel continuou o processo iniciado pelos
neokantistas considerando que a antijuridicidade deve ser considerada como uma
infração completa da norma, abarcando tanto seus aspectos objetivos e subjetivos.
Santiago Mir Puig reitera que o comando imperativo contido em uma norma
de determinação tem o condão de evitar que uma efetiva lesão ou a exposição em
perigo de um bem jurídico “ex ante”, o que, no seu entender, torne quase impossível
a identificação entre ambas, pois lhe falta um ponto fundamental: o desvalor do
resultado. 803
Logo, os conceitos de antijuridicidade objetiva e antinormatividade são
distintos e não se confundem, embora sejam úteis e convenientes.
Para Santiago Mir Puig:

O juízo de antinormatividade não pode recair diretamente sobre o que o


legislador quer evitar [o resultado da lesão ou colocação de perigo não
justificado], senão naquilo sobre o que a norma pode influir: uma conduta
objetiva-subjetiva que o sujeito pode evitar e sabe ser proibida. O
antijurídico no sentido de antinormativo é o imputável como infração
pessoal da norma) (tradução nossa, grifo do autor).804

Por sua vez, a antijuridicidade objetiva só pode ser admitida se não se


entende como uma infração da norma primária, mas sim como um juízo de desvalor
expressiva da nocividade de um determinado fato para um bem jurídico de forma
não justificada.
Como já dito no início deste tópico, a antijuridicidade objetiva e a
antinormatividade não são sinônimos, mas isto não significa que não esteja
intimamente relacionado.
803
MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho penal. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994, p. 8.
804
“El juicio de antinormatividad no puede recaer diretamente sobre lo que el legislador quiere evitar
[el resultado de lesion o de ouesta em peligro no no justificado], sino solamente em aquello sobre lo
que la norma pude influir: uma conducta objetiva-subjetiva que el sujeto pueda evitat y saber
prohibida. Lo antijurídico em el sentido de antinormativo es lo imputable como infracción personal
de la norma. MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho
penal. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994,
p. 4.
109
Às condutas antinormativas, de acordo com Santiago Mir Puig na medida em
que podem produzir uma lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico, não
exigem que haja a efetiva lesão, mas sim a prévia valoração jurídica negativa de que
a possível lesão ou exposição a um perigo, isto é, um juízo de antijuridicidade
objetivo referido ao que a norma pretende evitar. 805
Com efeito, o autor afirma que a antijuridicidade objetiva do resultado a evitar
é pressuposto da proibição por parte da norma de conduta que o “ex ante” pode
produzir e, portanto, sua antinormatividade.
Para ele o juízo de antijuridicidade objetiva procede da valoração positiva de
certos bens por parte do Direito e se refere a fatos negativos para ditos bens
jurídicos.
É necessário, portanto, que esta lesão ou exposição a perigo de um bem
jurídico não se encontra amparada por uma causa de justificação e, aqui, Santiago
Mir Puig806 ressalva que a referida justificante não é causa de exclusão da
antinormatividade.
Tal autorização se materializa através das causas de justificação que na
nossa legislação estão exaradas no artigo 23 do Código Penal.807
Como bem explica Cláudio Brandão,808 a pessoa que pratica um homicídio
amparado sob uma causa de exclusão da antijuridicidade - legítima defesa- pratica
uma conduta que é antinormativa, mas não é antijurídica. Com base neste
raciocínio,809 conclui que a relação entre a tipicidade e antinormatividade é
necessária, enquanto a relação entre antinormatividade e antijuridicidade é
contingente. Ele explica como se dá esta relação de contingência.
A definição da antijuridicidade, grosso modo, será uma relação de
805
MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho penal. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994, p. 9.
806
MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho penal. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994, p. 10.
807
“Exclusão de ilicitude (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
I - em estado de necessidade; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - em legítima defesa; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (Vide ADPF 779)
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (Incluído pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984) BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.
Brasília, DF: Presidência da República, [2022].
808
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 64.
809
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 64
110
contrariedade entre uma conduta e o ordenamento jurídico em geral e não apenas
contra a norma penal.
Por sua vez, do tipo penal não conseguimos aferir quais são os preceitos
permissivos, pois sua função é revelar a norma de proibição. Neste sentido Eugenio
Raul Zaffaroni, Alejandro Slokar e Alejandro Alagia afirmam que a avaliação da
permissão deve ser necessariamente posterior à norma proibitiva, por tal razão a
localização da antinormatividade é na esfera da tipicidade.810
E concluem os juristas argentinos

[...] com a averiguação da tipicidade não conhecemos ainda a contrariedade


desta conduta com a ordem jurídica, se não com uma norma proibitiva, quer
dizer, a antinormatividade da conduta, que não se deve confundir com a
antijuridicidade. Antinormatividade é a contradição de uma conduta com
uma norma proibitiva e antijuridicidade é a contrariedade dessa conduta
com a ordem jurídica [em que harmonicamente se complementam normas
proibitivas com preceitos permissivos]. A antinormatividade se conhece ao
nível da tipicidade, s a antijuridicidade não.811

O que se conclui, portanto, é que a tipicidade implica a antinormatividade e se


esgota nela. Salienta Cláudio Brandão que a antinormatividade não faz parte do
conceito de crime, entretanto, ela exerce um papel fulcral na dogmática pois, só
após a sua análise, poderá averiguar se uma conduta será antijurídica e culpável,
se ela for antinormativa. 812
A importância da antinormatividade não se restringe ao injusto penal,
relacionando-se também na esfera da culpabilidade, mais especificamente no
tratamento do erro de proibição direito, onde se encontra tal ligação.

RELACAO ENTRE A ANTINORMATIVIDADE E O BEM JURÍDICO

Traçou-se no capítulo 2 deste trabalho a evolução da teoria do bem jurídico,


810
. ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 225.
811
No original: “[...] con la averiguación de la tipicidad no conocemos aun la contrariedad de esta
conducta con el orden jurídico, sino cap una norma prohibitiva, es decir, la antinarrnatiwdad de la
conduc- ta, que no debe confundirse con la antijuridicidad Antinormatividad es la contradicción
de una conducta con una norma prohibitiva, y anttijuridicidad es la contrariedad de esa conducta
con el orden jurídico (en aue armónicamente re complementan noymas prohibiti- vas con preceptos
permisivos). La antinormatidad e conoce a nivel de la tinicidad. pero la antijuridicidad no”. (grifo do
autor). ZAFFARONI, Eugenio Raul; SLOKAR; Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Derecho penal: parte
general. 2. ed. Buenos Aires: EDIAR, 2002, p. 225
812
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p.67.
111
desde o seu gérmen ainda com Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, de que
seria a lesão a um direito subjetivo até as concepções atuais em que se verifica a
ausência efetiva de um bem jurídico a ser protegido. Tal evolução nada mais
representa a evolução do pensamento humano e a sua influência na dogmaticca
jurídico penal.
Desde a sua concepção com esta nomenclatura, o bem jurídico vem
exercendo um papel de protagonismo na ciência penal. Segundo a posição
majoritária, uma das tarefas do Direito Penal é a proteção do bem jurídico.
O Estado, através de seu Poder Legislativo, determina, através de normas,
quais condutas precisam de uma pena em correspondência a um bem jurídico
protegido.
Outrossim, é consenso que com os desafios advindos da modernidade, o
Direito Penal sofreu influxos que acarretaram mudanças, inclusive e principalmente,
na teoria do bem jurídico.
Observa-se a criminalização de delitos de vítima diluída, tais como ocorrem
nos delitos econômicos, meio ambiente, abuso de drogas, tipificando-se condutas de
perigo abstrato.
Muito embora haja esta nova abordagem na teoria do bem jurídico, ainda se
questiona qual o bem jurídico protegido pela norma penal.
Bernd Schuneman ressalva que o bem jurídico desempenha um importante
papel já na primeira fase da estrutura do delito para só depois “[...] numa segunda
fase, cujo objeto é determinar o campo das ações afetadoras de bens jurídicos
compreendidas pelo tipo.813
Knut Amelung critica este sentido clássico da teoria do bem jurídico, que se
baseia no objeto protegido pelas normas de comportamento, em que se aponta
apenas o “objeto” do crime sem se preocupar com as relações interpessoais dos
sujeitos de uma sociedade. 814
Para ele, a definição do bem jurídico por um sujeito político e que tem a

813
SCHÜNEMANN, Bernd. O princípio da proteção de bens jurídicos como ponto de fuga dos limites
constitucionais e da interpretação dos tipos. In: GRECO, Luís; TÓRTIMA, Fernanda Lara. (org.). O
bem jurídico como limitação do Poder Estatal de Incriminar? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2016, p. 25.
814
AMELUNG, Knut. O conceito de bem jurídico na teoria jurídico-penal da proteção de bens
jurídicos. In: GRECO, Luís; TÓRTIMA, Fernanda Lara. (org.). O bem jurídico como limitação do
Poder Estatal de Incriminar? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 201.
112
atribuição de definir o que é socialmente lesivo, não pode ser considerado ciência.815
Concluindo que

Nesta versão, a teoria da proteção dos bens jurídicos é um dogma que, por
um lado, recusa a legitimação a normas penais inúteis, e que por outro lado
é flexível a ponto de levar em consideração a faculdade do legislador de
definir ele próprio o que deve ser considerado útil e digno de proteção.816

A despeito das críticas existentes sobre a teoria do bem jurídico – esta não é
a única – este exerce influência na tipicidade e, por consequência, se orienta pelo
conceito da antinormatividade.
No âmbito da teoria das normas, verifica-se uma dicotomia em que se
classificam as normas penais de valoração e em normas de determinação, quer
dizer, se a norma é ou não imperativa.
Há uma corrente que adota que a norma jurídica penal contém um mero juízo
de valor, sem pretender determinar a conduta dos seus destinatários, limitando-se a
apontar certos estados como desejáveis ou não.
Ou, nos dizeres de Luis Gracía Martin que as normas de valoração são
regulações a que recorre o legislador para ordenar a convivência social de acordo
com os valores ideais a que deve se organizar a ordem imaginada por ele. 817
Em contrapartida, segundo a tese imperativa, as normas jurídicas penais
encerram em seu bojo mandatos e proibições, ou seja, normas de conduta com as
quais pretendem determinar o comportamento dos cidadãos.
Há, inclusive, na doutrina divergência se a norma penal é apenas imperativa

ou tão somente valorativa. Jesús María Silva Sanchéz informa que, muito embora o
caráter imperativo da norma, é necessário que se exija previamente uma valoração,
mas isso não significa que ela deixa de ser imperativa e se torne norma de
valoração. Por causa desta valoração prévia é que o legislador proíbe determinada
conduta e que pretende ser evitado, não perdendo a sua essência de
imperatividade.

815
AMELUNG, Knut. O conceito de bem jurídico na teoria jurídico-penal da proteção de bens
jurídicos. In: GRECO, Luís; TÓRTIMA, Fernanda Lara. (org.). O bem jurídico como limitação do
Poder Estatal de Incriminar? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 201.
816
AMELUNG, Knut. O conceito de bem jurídico na teoria jurídico-penal da proteção de bens
jurídicos. In: GRECO, Luís; TÓRTIMA, Fernanda Lara. (org.). O bem jurídico como limitação do
Poder Estatal de Incriminar? 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 201.
817
GRACIA MARTÍN, Luis. Fundamentos de dogmática penal: una introducción a la concepción
finalista de la responsabilidad penal. Barcelona: Atelier, 2006, p. 88(Atelier penal).
113
Compreende-se que se o legislador proíbe um determinado comportamento é
porque ele previamente avaliou que seria o mais adequado evitá-lo.
É bastante diferente a norma em juízo valorativo prévio e que o seu conceito
dependa do conteúdo seja alcançado após análise de certos valores objetivos.818 819
Igualmente Santiago Mir Puig concorda com o caráter imperativo da lei penal
e opera apelando para o caráter de motivação do cidadão, ameaçando-o com o mal
da pena para influenciá-lo e evitar a prática do delito, logo, a ameaça da pena
cumpre sua função motivadora através de um imperativo. 820
No entanto, ele adverte que a valoração realizada é precedente lógico do
imperativo e tal valoração nada mais é do que um processo interno do sujeito e que
importa, na verdade, é a efetividade da norma penal através de um mandamento.
Luis Gracía Martin entende que os bens jurídicos nada mais são do que
valores de relações sociais e que têm como escopo auxiliar para que a sociedade
possa satisfazer as suas necessidades. 821
Com efeito, não há dúvidas que há um interesse social na sua conservação
realizando-se uma valoração negativa de todos aqueles comportamentos que os
expõem a perigo ou o lesem efetivamente.
As normas de valoração, por seu turno, não são aptas a manter a ordem
social, que só estará assegurada através das normas de determinação. Tais normas
têm o escopo de exercer ex ante o seu raio de influência no acontecer mediante a
prescrição de condutas socialmente corretas, exercendo, sem dúvida alguma, uma
função preventiva às suas correspondentes normas de valoração – o bem jurídico.
Assim, se houver uma lesão ou um perigo de lesão a um bem jurídico
estamos diante de uma valoração negativa dando causa ao desvalor do resultado.
Do contrário, afirma Luis Gracía Martin se houver um juízo positivo, apto a impedir
ou criar uma situação jurídica desejada, estaremos diante do ‘valor do resultado’. 822

818
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona:
José Maria Bosch Editor, 1992, p. 341.
819
Neste mesmo sentido BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal:
considerações sobre os elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo.
Coordenação de Cláudio Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 117 (Coleção Ciência
Criminal Contemporânea, v. 1
820
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. Buenos
Aires: BdeF, 2003, p. 44.
821
GRACIA MARTÍN, Luis. Fundamentos de dogmática penal: una introducción a la concepción
finalista de la responsabilidad penal. Barcelona: Atelier, 2006, p. 88. (Atelier penal).
822
GRACIA MARTÍN, Luis. Fundamentos de dogmática penal: una introducción a la concepción
finalista de la responsabilidad penal. Barcelona: Atelier, 2006, p. 91. (Atelier penal).
114
A despeito de toda esta discussão doutrinária, Cláudio Brandão preceitua que
a denominação da norma em norma de determinação caracteriza “[...] tautologia, isto
porque se a norma penal é traduzida em um imperativo, que é um comando em face
da conduta, logo, ele determina a dita conduta. Assim, melhor nomenclatura para a
dicotomia proposta é norma e objeto de valoração”. 823
A conduta que lese ou põe em perigo um determinado bem jurídico revela o
desvalor do resultado. Por sua vez, a conduta antinormativa revela tão somente o
desvalor da ação.
Por tal razão, Cláudio Brandão conclui que o conteúdo material do injusto é o
bem jurídico. Através dele se permitirá uma abertura para a verificação da
proporcionalidade da pena e, inclusive, a não incidência em determinadas hipóteses,
como ocorre nos casos de adequação social, o afastamento da aplicação da lei
penal.824
Por sua vez, Juarez Cirino dos Santos revela a existência de valores que
são decorrentes das interações sociais e seu conteúdo material se manifesta na vida
em comunidade, na organização do Estado, na administração pública etc. No campo
do direito, estes valores são institucionalizados e se concretizam através de normas
assecutatórias da funcionalidade deste sistema social.825
Esta valor social criará, portanto, a norma jurídica, seja ela proibitiva ou
permissiva. Assim, a conduta humana deve se subordinar ao conteúdo valorativo
intrínseco da norma, pressupondo, portanto, a capacidade subjetiva de
compreensão do desvalor e da vinculação à natureza deste valor826. Do contrário, o
comportamento será considerado antinormativo.
Para o Autor, nas normas proibitivas, o valor social concreto e que subordina
a conduta humana é o bem jurídico, afirmando que “(...) a necessidade de proteção
do bem jurídico como valor concreto no âmbito das relações sociais, gera a norma
que determina a conduta social” (itálicos no original).827

823
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 68.
824
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 70.
825
SANTOS, Juarez Cirino dos. A dialética da norma de conduta. Revista de Direito Penal, Rio de
Janeiro, 21/22, p.61.
826
SANTOS, Juarez Cirino dos. A dialética da norma de conduta. Revista de Direito Penal, Rio de
Janeiro, 21/22, p.62.
827
SANTOS, Juarez Cirino dos. A dialética da norma de conduta. Revista de Direito Penal, Rio de
Janeiro, 21/22, p.62.
115
Neste ponto do trabalho, vale noticiar a posição do funcionalismo radical-
sistêmico de Günther Jakobs sobre a questão do bem jurídico para quem, se houver
uma violação de uma norma protetiva de um bem, o direito oferece duas opções a
quem infringiu a norma828.
A imposição de uma pena, como já explanado anteriormente, tem como
escopo final a manutenção ou melhoramento da vigência da norma, colocada em
perigo pela conduta delituosa.
Para ele:
(...) a vigência da norma é, na verdade, o bem jurídico penal; sua
manutenção passa diretamente pela pena. O bem denominado
normalmente de ‘bem jurídico’- vida, saúde, liberdade, patrimônio etc – é
apenas um motivo para norma, a representação de um fim (itálico no
original)829

A despeito deste posicionamento de Günther Jakobs em que se verifica uma


exacerbação da normatização do direito penal, entendo que o mais correto é
entendimento de que o bem jurídico condiciona a validade da norma, subordinando-
se à efetiva demonstração da ocorrência de lesão ou de colocação em perigo.830
Ao ser condicionado à norma, o bem jurídico, segundo Juarez Tavares, será
considerado como um valor e, como tal será um objeto de preferencia real e não
ideal ou funcional do sujeito, cumprindo a função de delimitação da incirminacao.831
Ao contrário do que defende Günther Jakobs de que o bem jurídico tem como
função a proteção da vigência norma, ao se compreender o bem jurídico associado
à proteção da pessoa humana do poder punitivo estatal, ele é inserido na norma
como valor, exercendo um papel de delimitador da norma.
Nesta toada, a relação da antinormtatividade com o bem jurídico torna-se
indispensável, haja vista que ele que fará a limitação da aplicação da norma, ao
fazer o juízo de lesividade do bem jurídico tutelado.

2.1. A antinormatividade e o Princípio da Legalidade

828
JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 2021, p.
46.
829
JAKOBS, Günther. Proteção de bens jurídicos: sobre a legitimação do direito penal. Tradução,
apresentação e notas de rodapé de Pablo Rodrigo Alflen. 2. ed. Porto Alegre: CDS Editora, 202, p. 47
830
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 213.
831
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 213.
116
Partindo do pressuposto que a lei descreve a conduta positiva e que a
antinormatividade é extraída do tipo legal, é possível relacionar o valor inserido ao
tipo com a leitura em face da antinormatividade.
Nesse sentido, a lei irá direcionar os valores concebidos à antinormatividade
penal. Assim, face à sua importância, faz-se necessária uma análise da origem do
princípio da legalidade.
O princípio da legalidade nasceu como um ponto de ruptura de uma era em
que o medo imperava. O Direito Penal era um instrumento de domínio de uma
classe dominante – a nobreza-, sobre a burguesia nascente, que almejava liberdade,
principalmente para o fortalecimento de seus negócios.
Qualquer um que ousasse questionar o poder do monarca absoluto sofria
castigos físicos terríveis. O sofrimento dos condenados era apresentado em praça
pública como exemplo para seus concidadãos de como não se comportar,
comprovado na obra Vigiar e punir de Michel Foucault, que se inicia com um relato
extremamente angustiante de como Damiens foi executado à pena de
esquartejamemento.832
Com a Revolução Francesa ocorre o ponto de virada do Direito Penal. De
Direito Penal do medo em que não havia qualquer preocupação com o acusado ou
condenado, tampouco o respeito às suas garantias fundamentais – que até então
não eram conhecidas com esse nome - em relação ao processo e ao cumprimento
da pena, passa-se para um Direito Penal Liberal, cujo princípio medular, segundo
Guillermo Yacobucci, é o princípio da legalidade.833
No dizeres de Santiago Mir Puig, “princípio da legalidade, axioma primeiro do
Estado liberal e em particular de seu Direito penal, vem a proibir toda fonte de Direito

832
“[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta
principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de
camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dia carroça, na
Praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços e coxas e
barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca que cometeu o dito parricídio, queimada com
fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente,
piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seus corpo será puxado e
desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas,
e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette ‘Amsterdam]. Essa
última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo
que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para
desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas”. FOUCAULT, Michel.
Vigiar e punir: nascimento da prisão. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 9.
833
YACOBUCCI, Guillermo J. El sentido de los principios penales: su naturaleza y funciones en la
argumentación penal. Buenos Aires: Editoriál Abaco de Rodolfo De Palma, 1998, p. 238.
117
desligada do poder legislativo do Direito, único poder que expressa a vontade
geral”.834
Antes de qualquer coisa, vale destacar que se tem a sensação de que o
princípio da legalidade foi uma ocorrência inédita oriunda da Era da Ilustração. E,
aqui, não temos a menor pretensão em discordar que com o Iluminismo, tornou-se o
centro do Direito Penal liberal e demonstrou a sua pujança a partir deste período.

2.1.1. Evolução Histórica do Princípio da Legalidade

2.1.1.1. Princípio da Legalidade nas sociedades primitivas

Desde que o homem se reuniu em sociedade – apesar de não haver o


conceito e a formação conhecidos por nós atualmente-, verifica-se a presença do
Direito Penal nas sociedades primitivas.
Neste período, percebe-se uma ligação quase umbilical entre Direito Penal e
religião. Quem cometesse alguma infração totêmica era punido severamente para
desagravar a divindade.
Esta fase foi conhecida como a fase da vingança divina. O sacerdote era o elo
de ligação entre o grupo social e a divindade e possuía a delegação divina para
aplicar penas que eram cruéis, degradantes e desumandas.
Cláudio Brandão traz os exemplos das penas mais comuns: sepultamento
com vida nos pântanos aos homens homossexuais ou às mulheres adúlteras; morte
por enforcamento; suplício da roda, dentre outras.835
Com a evolução social, inicia-se a fase da vingança privada em que se busca
aplicar as penas de maneira proporcional à infração cometida, em uma clara
tentativa de humanização dos castigos, sendo o maior exemplo a Lei de Talião, cuja
máxima até hoje por nós é repetida: “olho por olho, dente por dente”.
No entanto, com o decorrer do tempo, a população em virtude das sanções
aplicadas passou a ter altos níveis de pessoas com deformidade, evoluiu-se para a
composição, em que o infrator, a fim de evitar a retribuição corporal, “comprava” a

834
“El Principio de legalidad, axioma primero del Estado liberal y en particular de su Derecho penal,
venía a prohibir toda fuente del Derecho desligada del poder legislativo del Derecho, único poder
que expresa la voluntad general” MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho
penal: concepto y método. Buenos Aires: BdeF, 2003, p. 16.
835
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
118
sua liberdade, desobrigando-se, assim, do castigo físico.836
Superada esta fase, inicia-se o período da vingança pública no qual o Estado
toma para si a função de punir e cujo objetivo primordial era garantir a segurança do
soberano, mesmo que para isso fosse necessária a aplicação de penas totalmente
cruéis.
Por óbvio, que, a despeito de existirem diversas normas que impunham
sanções aos seus infratores, não podemos concluir que o princípio da legalidade,
ainda que de forma primitiva, existia. Na verdade, na esteira de Cláudio Brandão, “a
pena era uma reação da tribo àquele que não observou a norma penal, que tinha
uma força derivado do costume tribal, rigidamente observado pelos integrantes das
tribos”.837

2.1.1.2. Princípio da Legalidade no Direito Romano

O Direito Romano era eminentemente costumeiro, estendendo-se desde a


fundação de Roma (750 A.E.C) até o período de Justiniano (550 D.E.C) 838
Cláudio Brandão afirma mais à frente que “o direito é a arte do bom e do
equitativo. O pretor, em cada caso, deveria construir a decisão boa que realizasse a
justiça naquela situação concreta”.839
Donde se conclui que o princípio da legalidade não era utilizado pelos
romanos. A lei era aplicada pelo pretor como um guia e, levando-se em conta o seu
arbítrio, poderia ser afastada para que uma decisão boa e justa fosse proferida.
Neste período surgiu um dos documentos mais importantes do Direito
Romano: o Digesto, que fazia parte do Corpus Juris Civilis. O Digesto era uma
reunião das opiniãos de doutrinadores e, não, de leis. E, neste fato, reside o motivo
de os romanos não terem conhecido o princípio da legalidade.
De acordo com Cláudio Brandão, a noção de crime e pena nascem da

836
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 19. ed. rev. ampl. e autal.
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 73.
837
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 18.
838
BRANDÃO, Cláudio. Lições de história do direito canônico e história do direito em
perspectiva. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2017, p. 154.
839
BRANDÃO, Cláudio. Lições de história do direito canônico e história do direito em
perspectiva. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2017, p. 154.
119
“disciplina doméstica, da disciplina militar e da ação direta da polícia da época”. 840,
não existindo, ainda, normas de direito penal.
O Direito Penal público só veio a surgir através da intervenção estatal,
mediante normas legais e/ou consuetudinárias, que tinham como objetivo limitar a
discricionariedade do poder punitivo de determinadas pessoas, diferenciando-se, por
conseguinte, delicta (fatos ilícitos punidos com a pena privada) e crimina (fatos
ilícitos punidos com a pena pública).

2.1.1.3. Princípio da Legalidade na Idade Média

Da mesma forma que no período Romano, a Idade Média não conheceu o


princípio da legalidade. Durante esta época, “o julgador gozava de ampla
competência penal, tanto podendo incriminar condutas sem a existência de lei
escrita expressa, quanto podendo aplicar penas não cominadas na legislação”.841
A tortura era largamente utilizada como meio de prova e, logicamente, não
eram previstas legalmente. Neste período, inclusive, houve grande manipulação do
Direito Penal por parte da Inquisição que, ao argumento de eliminar pessoas ou
situações indesejadas e que ameaçam a Igreja Católica, utilizou-se largamente de
suplícios e torturas, não havendo qualquer preocupação com a integridade corpórea
do acusado.
Nesta época, assevera Cláudio Brandão

Se era facultado ao julgador penal, durante o processo, violar ao seu arbítrio


a integridade corporal e até mesmo matar sob tortura os investigados, muito
mais arbitrária era a inflição de pena: os julgadores aplicavam a morte
acompanhada de intensa dor ou penas corporais igualmente dolorosas. 842

Com o fim do Império Romano e o surgimento do feudalismo, o Direito Penal


se enfraquece, passando a existir praticamente um Direito Penal para cada feudo,
cuja aplicação era atribuição do próprio senhor feudal, reproduzindo-se o método de
inflição de penas corporais cruéis e desumanas.

840
BRANDÃO, Cláudio. Lições de história do direito canônico e história do direito em
perspectiva. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2017, p. 157.
841
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 21.
842
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 24.
120
Durante a Baixa Idade Média, retoma-se a discussão do direito. E, nesta nova
fase, promulga-se a Magna Carta de João Sem Terra em 1215 e que representa o
embrião do princípio da legalidade.
Na esteira de Guillermo Yacobucci, não podemos nos esquecer da
importância da Carta Magna de 1215843 que, segundo referido autor:

foi um dos primeiros e mais importantes intentos de formalizar a sujeição


dos desígnios do poder político, neste caso de João Sem Terra, ao império
das normas deste evento se encontra a origem do ‘rule of law’ e sua
derivação em direção à constituição do estado de direito. (tradução
nossa)844

Donde se conclui que nada pode ser criminalizado ou penalizado sem que
haja uma disposição legal estabelecida.
Cláudio Brandão entende que, muito embora o direito inglês seja alicerçado
nos costumes, a Magna Carta foi um instrumento de limitação ao sistema da
common law, equiparando-se ao princípio da legalidade, pois tem caráter
eminentemente limitativo do poder estatal. 845

2.1.1.4. Princípio da Legalidade na Idade Moderna

A noção de legalidade tal qual por nós conhecida atualmente, como assevera
Guillermo Yacobucci nasceu no contexto ideológico do positivismo.846
A obra mais conhecida e que disseminou a noção de legalidade é Dos delitos
e das penas de Cesare Bonessana, o Marquês de Beccaria
Adepto da teoria do contrato social de Jean-Jacques Rousseau, Cesare
Beccaria afirma que os homens, a princípio selvagens e que viviam em hordas,
viram-se forçados a se reunir em sociedade, renunciando a uma porção de sua

843
Como consequência da edição da Carta Magna de 1215, origina-se um dos direitos mais sagrados
de constantes na grande maioria das legislações, o Habeas Corpus, que resguarda o direito de ir e
vir do cidadão.
844
“[...] uno de los primeros y más importantes intentos de formalizar la sujeción de los designios del
poder político, em este caso de Juan Sin Tierra, al imperio de las normas. En este suceso se
encuentra el origen de la rule of law y su derivación hacia la constitución del estado de derecho”.
YACOBUCCI, Guillermo J. El sentido de los principios penales: su naturaleza y funciones en la
argumentación penal. Buenos Aires: Editoriál Abaco de Rodolfo De Palma, 1998, p. 238.
845
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 24.
846
YACOBUCCI, Guillermo J. El sentido de los principios penales: su naturaleza y funciones en la
argumentación penal. Buenos Aires: Editoriál Abaco de Rodolfo De Palma, 1998, p. 238.
121
liberdade na busca da segurança. Assim, “as leis foram as condições que reuniram
os homens, a princípio independentes e isolados, sobre a superfície da terra”. 847
Desta forma, Cesare Beccaria entende que só as leis podem fixar penas para
cada delito, e elas devem ser claras e precisas quanto à definição dos crimes e a
determinação das penas aplicáveis, no que se identificava com o que viria a se
constituir no princípio da legalidade. Adota, portanto, a concepção utilitarista da
pena, ou seja, a pena serve para prevenir o delito, propugnando pela a
848
proporcionalidade na sua aplicação. Além do mais, entendia que deveria haver
uma separação das funções de legislar e de julgar, residindo neste raciocínio o
embrião do princípio da separação de poderes, insculpido, inclusive, no artigo 2º
CRFB/1988.849

2.1.1.5. Princípio da Legalidade na Idade Contemporânea

Cláudio Brandão850 afirma que o princípio da legalidade só veio a ser


positivado na Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão 851 em 1789,
no entanto, a sua organização científica só veio a ocorrer com Feuerbach.
Com Feuerbach foram sistematizados os princípios nulla poena sine lege
(toda imposição de pena pressupõe uma lei penal) e nulla poena sine crimen – a
imposição de uma pena é condicionada a existência de uma ação incriminada e, por
fim, o mal da pena deve estar vinculado a existência de uma lesão jurídica
determinada (nullum crimen sine poena legali).
847
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo:
Martin Claret, 2015, p. 22-23.
848
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo:
Martin Claret, 2015.
849
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para
instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,
[...]. Brasília, DF: Presidência da República, [2022].
850
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
851
“Art. 5º. A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei
não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer,
pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos,
seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente
admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem
outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”. DECLARAÇÃO DOS
DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. Paris: Senat, 1789.
122
Estes três postulados, ao final, foram reduzidos na fórmula latina nullum
crimen nulla poena sine lege.
Se foi com Paul Johann Anselm von Feuerbach que ocorreu a sistematização
do princípio da legalidade, observa-se a sua estreita ligação com a finalidade da
pena através da teoria da coação psicológica. O objetivo do Estado circunscreve-se
na não ocorrência de lesões a bens jurídicos. Entretanto, caso isso ocorra, vale-se a
lei penal de uma coação psicológica que, resumidamente, pode ser entendida como
um fator de intimidação do indivíduo que, ao tomar conhecimento da lei e da sua
respectiva sanção, abstém-se de praticar tal ato ou, ao menos, deveria abster-se. 852
Atualmente, porém, nos dizeres de Cláudio Brandão, o princípio da legalidade
não pode se sustentar apenas na teoria da coação psicológica. Referido princípio
deve apoiar-se na nova feição assumida pelo Direito Penal, qual seja, de limitador
do poder punitivo estatal e garantidor da dignidade da pessoa humana, conforme
nos ensina intervenção estatal arbitrária, com a possibilidade da volta do terror penal
e a elevação do ser humano como seu objeto principal, respeitando-se, por
consequência, a sua dignidade. 853
Assim, “[...] enfatize-se, o conceito contemporâneo do Princípio da Legalidade
estabelece que pela lei não somente se protege o homem das ações lesivas aos
bens jurídicos, pela lei se protege o homem do próprio Direito Penal”.
Como visto, o princípio da legalidade é fruto da construção dogmática
herdeira do Iluminismo e, através dele, pretende-se limitar o poder punitivo do
Estado. Ele não exerce esta única função. Ele também influencia a interpretação da
lei penal, ao proibir, por exemplo, a analogia em prejuízo do réu; a utilização de
costumes também em prejuízo do réu e a exigência de lei certa e prévia.
Proibição da analogia in mallam partem (nullum crimen nulla poena sine
lege scricta).
Primeiramente, deve-se salientar que analogia não pode ser confundida com
interpretação. A analogia deve ser entendida como forma de integração da norma
penal em que “procura-se aplicar determinado preceito ou mesmo os próprios
princípios gerais de direito a uma hipótese não contemplada no texto legal, isto é,

852
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
853
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
123
com ela busca-se colmatar uma lacuna da lei”.854
Como bem salientado por Claus Roxin os idealizadores do princípio da
legalidade entendiam, com base no raciocínio de Montesquieu, que o juiz nada mais
era do que simplesmente um mero reprodutor da lei (boca da lei) e não realizava
qualquer interpretação/integração dela.855
Por óbvio, este raciocínio é impraticável, havendo um consenso de que o juiz,
diante da variedade de significados de uma palavra, pode e deve se utilizar da
analogia.
A analogia apresenta duas feições: a analogia in bonam partem (benéfica) e a
malam partem (que agrava a situação do acusado).
Partindo-se do corolário de que apenas a lei pode criar crimes e cominar as
respectivas sanções, no seu silêncio, ao operador do direito é vedado aplicar uma
norma que regula caso semelhante, principalmente se for para condenar ou, de
outra forma, prejudicar o réu.
No entanto, este corolário nem sempre foi observado nas legislações
internacionais, assim como na nossa legislação pátria. Nilo Batista856 traz exemplos
do uso da analogia, como, por exemplo, no Código Penal Nazista e no Código Penal
Dinamarquês de 1930. No Brasil, o uso da analogia foi expressamente admitido no
decreto-lei nº 4.166/1942857 editado no período do Estado Novo, bem como na
ditadura militar a punição do apoderamento ilícito de aeronaves, que era fato atípico,
mediante sequestro representou o uso da analogia
Como bem salientado por Cláudio Brandão esta vedação, contudo, não é
absoluta, pois, se for utilizada para trazer algum benefício para o réu pode e deve
ser utilizada não confrontando com o princípio da legalidade, pois este tem aqui a

854
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 19. ed. rev. ampl. e autal.
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 197.
855
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1.
856
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2007, p. 75.
857
“Art. 5° A ação ou omissão, dolosa ou culposa, de que resultar diminuição do patrimônio de súdito
alemão, japonês ou italiano ou tendente a fraudar os objetivos desta lei, é punida com a pena de 1
a 5 anos de reclusão e multa de 1 a 10 contos de réis, se outra mais grave não couber. § 3° Para a
caracterização do crime o juiz poderá recorrer à analogia”. BRASIL. Decreto-lei nº 4.166, de 11
de março de 1942. Dispõe sobre as indenizações devidas por atos de agressão contra bens do
Estado Brasileiro e contra a vida e bens de brasileiros ou de estrangeiros residentes no Brasil.
Brasília, DF: Presidência da República, 1942.
124
função de estender a liberdade humana e não a diminuir. 858
Exigência de Lei escrita (nullum crimen nulla poena sine lege scripta)
Pode-se afirmar que nos moldes em que o Direito penal continental europeu e
o brasileiro, por consequência, foram construídos, torna-se inviável a utilização dos
costumes para criar crimes e cominar as suas respectivas sanções, ao contrário do
que se verificava no direito romano e medieval, por exemplo.
O costume nada mais é do que uma norma que é aplicada reiteradamente
com a consciência de sua obrigatoriedade. No entanto, excepcionalmente, os
costumes podem ser utilizados desde que, é claro, em benefício do acusado e
nunca para incriminá-lo de uma conduta.
De acordo com Cláudio Brandão

Na norma costumeira não existe não existe nenhuma reprovação social, ao


contrario, a norma costumeira é socialmente tida como licita. Isto posto, o
costume pode evitar a tipicidade de uma conduta, pelo consenso social, o
qual considera determinada como socialmente adequada. 859

Logo, se conclui que os costumes não podem ser considerados abolidos da


forma que o nosso direito penal foi construído. E, aqui, trazemos os ensinamentos
de Francisco de Assis Toledo que os costumes têm “grande importância para a
elucidação do conteúdo dos tipos”, podendo ser utilizados, por exemplo, como causa
suprealegal de exclusão da ilicitude ou de atenuação de pena.860
Logo, observa-se que se em uma sociedade determinada conduta é
considerada lícita e socialmente adequada, não pode o Direito Penal puni-la, não
havendo qualquer violação ao princípio da legalidade.
Exigência de Lei Prévia (nullum crimen nulla poena sine lege praevia)
De acordo com Wolfgang Naucke, “a legislação penal está proibida de
penalizar ações até agora impuníveris ou agravar penas com efeitos retroativos”. 861
O princípio da legalidade, portanto, proíbe a retroatividade que prejudique o

858
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
859
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 85.
860
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 25.
861
‘Al legislador penal le está prohibido penalizar acciones hasta ahora impunes o agravar penas com
efecto retroactivo [...]” NAUCKE, Wolfgang. Derecho Penal: Uma introducción. Tradução de
Leonardo Germán Brond. 10ª ed. Buenos Aires: Astrea, 2006, p. 80.
125
réu. Caso houvesse esta possibilidade, o princípio da legalidade não alcançaria sua
garantia de proteção do homem do poder punitivo estatal. 862
Hans Welzel afirma que este corolário encontra seu fundamento na proteção
da confiança que os cidadãos têm de conhecer de antemão o que está proibido e a
respectiva sanção, em caso da prática de um ilícito, sem que tenha que temer que
haja uma mudança mais gravosa, diga-se de passagem, posteriormente à execução
de sua conduta.863
Ou seja, se um comportamento, muito embora seja altamente reprovável por
uma sociedade é passível de aplicação de pena, isto só ocorrerá se houver uma lei
prévia para incriminá-lo e aplicar a correspondente sanção penal, pois, do contrário,
será considerada um indiferente penal.864
Esta é a função histórica do referido princípio, nos dizeres de Nilo Batista, que
veda a edição de leis para tipificar condutas ou agravar as respectivas penas ex post
facto, não havendo dissenso na doutrina dominante que este princípio também se
aplica em relação às medidas de segurança.865
No entanto, nem sempre este postulado foi respeitado pelas legislações
mundo afora. Wolfgang Naucke traz como exemplo o incêndio do Reichstag em 27
de fevereiro de 1933, um mês após o Partido Nacional Socialista alemão ter
alcançado o poder. Até então, a pena mais grave para atos de incêndio como o
perpetrado era de prisão perpétua. No dia 28 de fevereiro de 1933, ou seja,
imediatamente um dia após tal atentado, cominou-se a pena de morte para este tipo
de delito que até então, era apenado por prisão perpétua. Um mês depois, no dia 29
de março de 1933, entrou em vigor uma nova lei que determinava que a pena de
morte instituída pela lei de 28 de fevereiro de 1933 seria aplicada a fatos cometidos
entre 31 de janeiro de 1933 a 27 de fevereiro, permitindo-se, portanto, a pena de
morte retroativa para alcançar o autor do incêndio no Reichstag866.

862
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da
legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
863
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Juan Bustos Ramírez y
Sergio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976.
864
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general - fundamentos: la estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz e García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997. t. 1.
865
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2007, p. 69.
866
NAUCKE, Wolfgang. Derecho Penal: Uma introducción. Tradução de Leonardo Germán Brond.
10ª ed. Buenos Aires: Astrea, 2006, p. 80
126
O postulado da proibição da retroatividade das leis penais não se dirige
apenas ao cidadão como já abordado alguns parágrafos acima. Ele também se
dirige ao legislador, que deve observá-lo rigorosamente, pois, do contrário, a
atividade legislativa em matéria penal será um mero instrumento de manipulação
dos detentores do poder que elaborarão leis com a finalidade de se verem livres de
seus opositores ou de uma determinada classe de pessoas.
E Hans Welzel vai além, ao afirmar que a interpretação da lei penal também
deve ser feita respeitando este limite. 867
No entanto, por óbvio, a retroatividade será permitida para alcançar fatos
praticados antes da sua vigência, sempre que de algum modo beneficiar o autor (lex
mitior), como por exemplo, no caso de uma lei que comine uma pena mais branda a
um determinado tipo penal ou, até mesmo, quando a lei penal descriminalize alguma
conduta, deixando de considerá-la como crime, como ocorreu com a figura típica do
adultério em passado não muito distante, tanto que tais hipóteses são previstas
868
expressamente no artigo 5º, XXXIX, da CRFB/1988 e no artigo 2º do CP869.
Exigência de lei certa (nullum crimen nulla poena sine lege certa)
Nesta hipótese, a lei elaborada deve ser feita de forma taxativa e com a maior
precisão técnica possível. A taxatividade foi elaborada para tentar conter ou reduzir
o jus punindi estatal. Deve-se salientar que a lei penal não consegue prever
precisamente todas as condutas, até mesmo porque com a evolução da
humanidade, determinadas condutas que eram inimagináveis no passado, podem se
amoldar a um tipo penal já existente. Isto, no entanto, não pode ser arguido como
empecilho para se afastar o principio da legalidade.

Antinormatividade e o PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: UMA NECESSÁRIA


CORRELAÇÃO

867
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán: parte general. Tradução de Juan Bustos Ramírez y
Sergio Yáñez Pérez. 11. ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976.
868
“Artigo 5º, inciso XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. BRASIL. [Constituição
(1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós, representantes do povo
brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, [...]. Brasília, DF: Presidência da
República, [2022]. (BRASIL, 1988).
869
“Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando
em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único - A lei
posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que
decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]
127
O princípio da legalidade e seus corolários, como visto, originou-se como uma
limitação ao jus puniendi estatal. Isto significa que um Estado deve se submeter à lei
positivada.
No entanto, a submissão de um Estado ao primado da legalidade não implica
que ele seja necessariamente democrático, haja vista o que se presenciou durante o
período em que a Alemanha era governada pelo Nacional-socialismo de Adolf Hitler.
Como sustenta Santiago Mir Puig, para que um Estado possa ser
considerado democrático, “(...) não basta que o poder se ajuste ao direito, senão que
é preciso, ademais que esse direito sirva a cada cidadão”. 870
O nosso Código Penal em seu artigo 1º871 adota expressamente o princípio da
legalidade e que, segundo Luigi Ferrajoli subdivide-se em dois sentidos: o primeiro,
em sentido lato ou formal, em que a criação ou modificação de um crime seja feita
somente através de lei; e, o segundo, no sentido estrito ou substancial, em que, “a
obrigação que a lei conote expressamente a figura do crime e que denote
expressamente a sua extensão (...)”872, prestigiando-se a taxatividade penal.

E vai além o aludido jurista italiano, em relação ao sentido estrito ou


substancial. Apresenta ainda mais duas subsdivisões que são a consagração do
princípio de regulação ou retribuição, que, resumidamente, pode ser entendido como
a vedação da utilização no tipo penal de expressões que se refiram às condições
pessoais do sujeito e que se refiram apenas ao fato; e ao princípio da materialidade,
em que o fato típico se refira a fatos e não a mera idealizações873.

A consequência mais importante do princípio da legalidade e a base mais


importante do fato punível é a elaboração do tipo penal. Através de sua formulação,
o juiz saberá se aquela conduta é ou não um delito e a pena a ele correspondente.

O tipo penal, portanto, nos dizeres de Cláudio Brandão, servirá como uma
tradução, através de signos linguísticos, do modelo abstrato de conduta, que é a

870
MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. Buenos
Aires: BdeF, 2003, p. 134.
871
“Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”
(BRASIL, 1940).
872
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 650.
873
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 650.
128
matéria de proibição. Esta, por sua, é vislumbrada por intermédio da norma
penal.874875

Resumindo: através das normas penais é que o Direito penal criará condutas
puníveis e suas respectivas sanções, materializando-as nos tipos penais em
obediência ao princípio da legalidade.

Por tal razão, sobreleva-se a importância da elaboração de tipos penais


taxativos ou mediante o emprego de características claramente descritivas para se
alcançar uma maior segurança jurídica.876

Assim, conclui Cláudio Brandão que “dos signos linguísitcos tipo, que contém
a matéria de proibição, devem ser extraídos os contornos individualizadores do
comando de comportamento, isto é do imperativo fundado na norma”.877

Não se ignora que o tipo penal não consegue prever todos os


comportamentos, pois tal tarefa é impossível, justificando a presença de elementos
normativos, assunto que já foi tratado neste trabalho.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria sublinha que “(...) o que marcou na
gênese, o contexto histórico e ideológico que o conformou, encontra-se hoje
definitivamente ausente pelo que se deixa justificar uma alteração no seu
entendimento e na sua configuração original”. 878
A evolução da sociedade, portanto, como um todo também gera
consequências no âmbito do Direito Penal em relação à atividade interpretativa e de
aplicação de suas normas.

874
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, p. 209, 2019.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
875
Sobre o tema discorre Luigi Ferrajoli: “O princípio da legalidade estrita é proposto como uma
técnica legislativa especifica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as
convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter
‘constitutivo’ e não ‘regulamentar’daquilo que é punível: como as normas que em terríveis
ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os
inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os
‘desocupados’ e os ‘vagabundos’, os ‘propensos a delinquir’, os dedicados a tráficos ilícitos’, os
‘socialmente perigosos’ e outros semelhantes”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do
garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 39.
876
BAUMANN, Jürgen. Derecho Penal Conceptos Fundamentales Y Sistema Introducción A La
Sistemática Sobre La Base De Casos. Buenos Aires: Ediciones DePalma, 1973, p. 79.
877
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, p. 210, 2019.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
878
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 710.
129
A responsabilização de um sujeito, no entendimento Ana Elisa Liberatore
Silva Bechara, que pratica um comportamento típico, cuja descrição necessita de um
elemento normativo

(...) não pode perfazer-se a partir de mera decisão argumentativa do


julgador, tampouco se funda em conceitos ou deveres jurídicos abstratos.
Tal responsabilidade deve, na verdade, decorrer de uma avaliação concreta
sobre a ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma, bem como da
observância da função e dos limites do Direito Penal no âmbito de um
Estado Democrático de Direito879

A este último critério – função e limites do Direito Penal – é que deverá ser
observado o princípio da legalidade em especial.
Ocorre que a atividade judicial é moldada, em tese, para que haja a
subsunção e a dedução jurídica sem qualquer tipo de intepretação valorativa pelo
juiz. Nesse sentido, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria preconiza o seguinte:
“880(...) o juiz deixou de ser a boca que apenas pronuncia as palavras da lei para ter a
seu cargo uma actividade decisória de efectiva realização do Direito [tem que se
aceitar a evolução do próprio princípio da legalidade]”.
Este novo panorama traz consequências, principalmente na atividade judicial
que passa a se aproximar da função legislativa, ou seja, de uma atividade criadora
do Direito.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria é reticente no que diz respeito à
desconsideração do princípio da legalidade com o objetivo de se alcançar uma
interpretação mais útil e socialmente vantajosa.881
A própria Autora responde às suas preocupações afirmando que este tipo de
atividade interpretativa cai, na verdade, em subjetivismos, os quais ela não reputa
seja o mais correto e admissível.882
E esta será a maior dificuldade do julgador: cotejar os elementos que definem
879
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações
sobre os elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de
Cláudio Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, p. 336, 2018. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
880
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 712.
881
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 714.
882
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 714.
130
o sentido material do tipo penal com o princípio da legalidade.
A solução que Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria propõe é que haja uma
distinção entre uma interpretação legítima e ilegítima seria a associação ao
cumprimento de uma tarefa de descoberta do sentido material do tipo formal e o uso
da analogia a um procedimento de definição do direito no caso concreto através de
valorações materialmente extra típicas.883
Para que isso seja possível, é indispensável que “(...) importa pesar as
consequências que um entendimento material do princípio da legalidade traz
consigo sob o ponto de vista dos três corolários que normalmente lhe andam
associados à exigência da incriminação expressa, prévia e certa”. 884885
Em relacao à lex stricta, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria afirma que se
cumpre tal corolário quando for possível reconhecer o parâmetro decisório a ele
vinculado886.
A própria Autora reconhece que nas hipóteses de ilícitos negligentes e
omissos impróprios tal parâmetro é mais alargado, obrigando o juiz a realizar uma
valoração mais abrangente do que o faz nos delitos dolosos.
Ao se outorgar ao magistrado a tarefa de definir o preceito decisório, confere-
se a ele, ainda que em “(...) ‘partes’ ou ‘momentos’ da norma que não estão
ocupados”887 e de onde se retira a valoração material da norma, concretizando-se,
por consequência, o direito positivo.
Já em relação à lex certa, como já afirmado neste trabalho, um de seus
problemas é a dificuldade na elaboração de tipos penais taxativos e com previsão de
todos os comportamentos possíveis e imagináveis.
A Autora aponta o obstáculo no que concerne às razoes normativas,
destacando a questão dos bens jurídicos, principalmente aqueles que tutelam delitos
cujas vítimas são diluídas ou crimes de perigo abstrato, necessitando de uma
883
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 719.
884
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 719.
885
Neste ponto do trabalho, será tratado apenas os corolários da lei strcita e lei certa.
886
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 719.
887
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 720-721.
131
valoração concreta para se alcançar o sentido da norma.888
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria admite a indeterminação dos conceitos
na formulação dos tipos penais, o que, para ela, não representa um óbice para o
cumprimento e o respeito ao principio da legalidade.889 Primeiramente, ela propõe
uma decisão em que se extrai do tipo penal em sentido formal um parâmetro
decisório.
Em relação aos tipos penais elaborados com elementos normativos, ela
defende que, muito embora seja mais trabalhoso identificar a imagem típica que esta
valoração exige, será permitido ao juiz cumprir o sentido material da incriminação
até o limite permitido pelas valorações sociais cabíveis na hipótese e que
correspondam ao sentido que o legislador previu890.
E finaliza:

O parâmetro decisório tem que ser aquele que o tipo em sequer reduzir o
tipo formal fornece ao intérprete. Mas se não se quer reduzir a actividade
interpretativa à definição de sentido desse parâmetro formal, entao a única
via de solução,que será entao uma via de solução intermédia será admitir
como parâmetro decisório o sentido material evidente ou flagrante da
incriminacao (...)
(...)
Identificado um padrão material de sentido mais ou menor intuitivo, passa-
se a atender ao caso concreto e a todas as valorações que se relacionam
com o facto, ou com o problema a subsumir na norma.891

Neste mesmo sentido é o entendimento de Ana Elisa Liberatore Silva Bechara


e Fernando Facury Scaff que propõem que o magistrado, diante de um tipo penal
elaborado por elementos normativos do tipo, deverá realizar a sua interpretação
tendo como limite o princípio da legalidade.892
Assim, no caso concreto, se exigirá do magistrado a interpretação dos tipos
penais elaborados com elementos normativos de acordo com a moldura legal, mas
888
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 724-725.
889
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 725.
890
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 725-726.
891
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 730-731.
892
SCAFF, Fernando Facury; BECHARA, Ana Elisa. O preocupante papel assumido pela intervenção
penal no âmbito tributário. Revista Consultor Jurídico, 6 set. 2018.
132
também se utilizando de “(...) parâmetros axiológicos democráticos que permitam
sua correta integração e aplicação”893 com o objetivo de limitar a intervenção penal.
Pode-se argumentar que a tal delegação autorizaria o Poder Judiciário de
decidir livremente e da maneira que melhor lhe aprouver, o que seria causa de
abusos e insegurança jurídica.
No que tange ao aspecto da antinormatividade do comportamento do agente,
o juiz não poderá adotar conceitos mais amplos que aqueles aos quais o tipo penal
remete, verificando na análise concreta acerca do valor daquele comportamento,
funcionando a antinormatividade como verdadeira “chave da epistemologia penal”894

RELACAO ENTRE ANTINORMATIVIDADE E ADEQUAÇÃO SOCIAL

A conduta que lese ou que põe em perigo determinado bem jurídico revela o
desvalor do resultado. A antinormatividade, por sua vez, revela tão somente o
desvalor da ação.
Por tal razão, Cláudio Brandão895 conclui que o conteúdo material da do
injusto é o bem jurídico. Através dele, permitir-se-á uma abertura para a verificação
da proporcionalidade da pena e, inclusive, a não incidência em determinadas
hipóteses como é o no caso da adequação social, o afastamento da aplicação da lei
penal.
O princípio da legalidade tem como uma de suas premissas básicas a
elaboração de comandos que visam a excluir ações referentes a fatos e não a
pessoas, desde que estejam previstas taxativamente em uma lei penal.
No entanto, tal assertiva pode ser considerada em tanto quanto utópica se
partirmos do pressuposto que não o juiz não apenas, mas porque não, o Delegado
de Policia, teriam uma certa margem de discricionariedade, sem se abdicar da
legalidade e que poderiam aplicáveis à adequação social.

893
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, p. 347, 2018. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
894
BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. 5. ed. Belo Horizonte, MG: D'Plácido, p. 203, 2019.
(Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 1).
895
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade penal: dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Coimbra: Almedina, 2014, p. 70.
133
Para que um indivíduo seja responsabilizado criminalmente não basta
apenas que haja uma previsão legal, sua antijuridicidade e a culpabilidade de seu
autor. Devem ser observados a necessidade de sua proibição e sua punição, seus
efeitos lesivos a terceiros.
É necessário avaliar a aplicação da antinormatividade e da adequação social
no Processo Penal
3.2.2 Os elementos normativos do tipo

Existem vários critérios de valoração que devem ser utilizados para


compreendermos o fenômeno da intervenção estatal na liberdade do cidadão.
Com o advento do Iluminismo há um fortalecimento do princípio da
legalidade e, por consequência, dos seus corolários. No entanto, aquela construção
baseada principalmente na taxatividade, na verdade, demonstra ser praticamente
impossível, pois o que se percebe é que o legislador jamais conseguirá prever todas
as hipóteses e reduzi-las em um tipo penal.
A partir desta constatação, o que se verifica é uma abertura dos tipos penais
com a inserção de elementos valorativos.
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara adverte que a presença de elementos
normativos no tipo penal, a despeito de representarem uma abertura excessiva do
tipo penal não causam maiores problemas, pois, na maior parte das vezes, eles
fazem remissão a conceitos jurídicos já determinados e presentes no ordenamento
jurídico penal. 8 9 6
A questão se complica,897 quando estes elementos normativos fazem
remissão a outros ramos do Direito ou, até mesmo, em áreas extrajurídicas, sem
que houvesse um parâmetro interpretativo previamente assentado o que, muitas das
vezes, pode colocar em risco a segurança jurídica e a liberdade do cidadão
enfraquecendo o princípio da legalidade.
Com efeito, o Direito Penal não pode e não deve ser analisado
isoladamente. A escolha dos tipos penais, na verdade, sofre o influxo de diversos
896
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 226 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
897
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 226 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
134
fatores em uma determinada sociedade e um dado momento histórico, o que
influencia na sua valoração normativa.
E como bem ressalva Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, 8 9 8 o Direito Penal
é um dos ramos do direito que “[...] mais suscetível de ser ideologizado, em razão do
poder conferido do Estado de interferir diretamente sobre os indivíduos [retirando-
lhes a liberdade], de um lado, e de que nenhum outro ramo do Direito tem tanto a
ver com a irracionalidade [disciplinam-se, por meio da violência institucionalizada da
pena, comportamentos não raras vezes irracionais] de outro
Por tal razão, a autora adverte acerca do perigo das construções dogmático-
penais avaloradas, tais como ocorreram durante o governo nacional-socialista
alemão.
Durante aquele período, observa-se que o princípio da legalidade teve a sua
função limitadora do poder punitivo estatal esvaziada e tinham como função por em
evidencia a autoridade e a supremacia do Estado Nazista.8 9 9 900

Tal fato, na realidade, demonstrou ser uma contradição, pois havia sim uma
ideologia bastante clara, de exclusão dos hostis à comunidade ou de quem fosse
declarado como indesejado e que demonstrava que a ausência de valoração ou a
neutralidade política não existiram de fato.
Assim, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara afirma que a abertura da
dogmática penal à valoração é fundamental para que o sistema penal possa

898
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 231 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1)
899
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La legalidad penal liberal y autoritaria. In: GRECO, Luís. MARTINS,
Antonio. (org.). Direito penal como crítica da pena. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 764.
900
Neste sentido: Ana Elisa Liberatore Silva Bechara; Delmas-Marty: “O enfraquecimento da relação
com a lei é o primeiro sinal da passagem da rede penal [modelo Estado-sociedade liberal ou Estado
autoritário] para a rede de repressão [modelo Estado totalitário]. E continua: “Juridicamente, e
qualquer que seja a opção política, esse enfraquecimento – reforçado pela retroatividade de muitos
textos - se exprime quer pela confirmação do raciocínio por analogia, quer pelo aparecimento de
qualificações que parecem não suficientemente presisas ou, ainda, pela ampliação dos elementos
constitutivos da cumplicidade”. A Autora nos dá o exemplo do Código Penal Alemão, segundo o
qual seria punido quem quer viesse a cometer um delito que a lei declarasse punível ou mereceria
uma pena em virtude dos princípios fundamentais da lei penal e segundo o sadio instinto do povo
“se nenhum texto aplicar-se ao caso em questão, o ato será punido conforme o texto cuja ideia
fundamental for a mais próxima do caso”. Dessa forma, o juiz deveria buscar apenas na consciência
coletiva - o ‘sadio instinto do povo alemão’ – os princípios diretores que permitiram qualificar um
comportamento como infração e de tratá-lo como tal, uma vez que ele ‘deva merecer uma pena’.
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 242-243 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
135
efetivamente exercer o seu papel de proteção do cidadão frente à força punitiva
estatal. 9 0 1
No entanto, a própria autora9 0 2 ressalva que esta abertura valorativa não
pode se dar nos moldes neokantistas e que serviram de base para a dogmática
penal nacional-socialista em que “[...] o caráter valorativo de um fato não está no fato
em si mesmo, e sim na atribuição cultural realizada aprioristicamente pelos homens,
de forma variável conforme a sociedade, o que pode levar a um modelo de
intervenção penal arbitrário e excessivo”.9 0 3 904
Em consequência de tal raciocínio e dos excessos ocorridos na Alemanha
nazista, é que o finalismo de Hans Welzel assumiu um caráter tão importante para a
dogmática penal.
Tanto legislador e juiz devem observar as leis da natureza, mas também e
inclusive as estruturas lógico-objetivas, sem que haja uma atribuição de valor pelo
homem. A construção welzeliana, porém, não é imune a críticas.
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara demonstra a insuficiência do método
ontológico, pois ele parte da premissa que determinados conceitos são construções
humanas. Construções humanas estas que, muitas das vezes, representam
valorações sociais não jurídicas e que servirão de limite à elaboração das normas.
905

Diante de tal insuficiência é que o funcionalismo de Claus Roxin ganhou


importância pois pretendeu uma abertura à política criminal que deve orientar
inclusive a interpretação da norma.
901
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 75 (Coleção Ciência Criminal Contemporânea,
1).
902
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 73 (Coleção Ciência Criminal Contemporânea,
1).
903
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 73. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
904
Luigi Ferrajoli afirma o seguinte: “(...) mediante a utilização de termos vagos, imprecisos ou, o que
é pior, valorativos que derrogam a estrita legalidade dos tipos penais e oferecem um amplo espaço
`discricionariedade e à ‘criação’judicial”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo
penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 436
905
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 85(Coleção Ciência Criminal Contemporânea,
1).
136
Para Claus Roxin, afirma Ana Elisa Liberatore Silva Bechara,

o sistema penal não pode advir de deduções conceituais normativas


abstratas, tampouco construir um reflexo de leis ontológicas, consistindo na
verdade em uma coordenação de valorações e finalidades político-criminais
que penetram e estruturam o material jurídico, de modo a possibilitar
soluções adequadas a casos concretos, no âmbito de uma concepção
intermediária entre um normativismo livre do empírico e um ontologismo
voltado a ditar ao legislador de modo vinculante, soluções determinadas por
leis do ser.9 0 6

Assim, o Direito Penal, nos moldes finalistas, em que se busca uma


interpretação puramente normativa, avalorada, não deve ter guarida, devendo haver
a reintrodução de valores culturais, socias, metajurídicos, ou, “O sistema penal deve
ser tomado, então, como sistema aberto, permitindo a utilização de elementos
oriundos de diferentes âmbitos [normativos e empíricos] como critério de valoração
do conteúdo das normas.9 0 7
Logo, deverá haver uma intersecção dos planos normativo e empírico.
O delito será, portanto, uma desobediência à vontade da norma e, por
consequente, da vontade do legislador.
A norma penal, a partir do século XX, assume outra função, além daquela
mandamental, mas também a valorativa, especificamente no que diz respeito aos
valores liberais, tais como o respeito à liberdade do cidadão ou à intervenção estatal
apenas nos casos graves de dano à convivência social
Assim, nos moldes do Direito Penal hodierno, a função da norma penal não
pode e não deve se subsumir a um simples comando quer seja positivo ou negativo.
Deve-se levar em conta o significado de seu conteúdo valorativo para uma
sociedade ou, melhor dizendo “[...] apenas se pode avaliar concretamente uma
norma jurídica se se conhecem quais valores são por ela protegidos, em que medida
se projeta a respectiva proteção e como são em seu âmbito resolvidos eventuais
conflitos”.9 0 8

906
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 80. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
907
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 85. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
908
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
137
Por sua vez, para que as normas tenham legitimidade não basta o comando
imperativo e, sim, que haja um consenso social sobre a importância dos valores por
ela tutelados.
Aprofundando o tema, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara discute o real
significado da norma na teoria do delito, isto é,

[...] se deve ser concebida como uma teoria da infração pessoal da diretiva
de conduta expressa da norma [teoria da antinormatividade] ou, ao
contrário, como uma teoria da imputação da violação de uma expectativa
social direcionada à imposição de uma pena.9 0 9

A autora expressamente rechaça a ideia da construção da teoria do delito


fundada na antinormatividade, ao argumento de que referida construção dar-se-á no
âmbito do binômio sujeito-norma e, por mais que hajam concreções valorativas de
base social, forma-se um sistema fechado, encontrando dificuldades as questões
sociais que a cada dia se tornam mais desafiadoras para o operador do direito
A Autora se filia ao entendimento de Jesús María Silva Sánchez, que
pretende conciliar a teoria da antinormatividade (violação de uma diretiva de
conduta) com a infração de uma expectativa institucionalizada (teoria da imputação).
Para esta posição, a fim de se verificar uma infração será necessário
perquirir a proibição – antinormatividade – para posteriormente se analisar se tal
comportamento gera uma desestabilização de uma expectativa social, digna de
pena.
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara justifica seu posicionamento afirmando
que as normas penais que cominam sanções a determinados comportamentos,
conforme o princípio da legalidade, devem estar previstas em textos legais, os quais
são dirigidos ao juiz, determinando-lhe a imposição de penas a quem cometa
delitos.9 1 0
Para tanto ela exemplifica a sua assertiva usando do tipo penal referente ao

Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 114. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
909
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 116. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1.
910
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 119. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
138
homicídio, não havendo informação ao intérprete sobre se há uma causa de
justificação ou de exculpação.
No entanto, como será mencionado mais à frente, é tautológica a distinção
entre normas de determinação e normas de valoração. Toda norma, vale adiantar,
será norma de determinação, já o objeto de valoração da norma será o bem jurídico.
Assim, filiando-me ao finalismo, é necessário levar em conta os
comportamentos de uma determinada sociedade, nos quais se inserem a
adequação social de um conduta, os quais podem e devem ser resolvidos no âmbito
da norma penal
No entanto, o princípio da legalidade não deve se resumir a meras
repetições das fórmulas latinas. Elas não devem ser desprezadas, porém, o referido
princípio deve ser visto além delas.
Utilizando-se da técnica de tipificação de condutas, haverá um processo de
coerção para que os cidadãos evitem cometer delitos, nos moldes da teoria da
coação psicológica desenvolvida por Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach.
Atualmente o princípio da legalidade sofre mitigações como a elaboração de
leis que violam a taxatividade ou se aplica a analogia in malam partem tal qual
ocorreu com a criminalização da homofobia9 1 1 .
Adverte Ana Elisa Liberatore Silva Bechara que o tratamento formal dado à
legalidade, isto é, de que basta que determinada conduta se reduza a um tipo penal
e com uma certa determinação, não haverá um questionamento de que se de fato
há uma efetiva proteção do cidadão frente ao poder punitivo estatal.
Parte-se, então, para uma expansão do Direito Penal, em que se utiliza de
fórmulas gerais, antecipação das barreiras de punição com a tipificação dos crimes
de perigo, em especial de perigo abstrato, relegando ao juiz a tarefa que seria
primária e precipuamente do legislador.

911
Neste sentido Ana Elisa Liberatore Silva Bechara: “E, tratando-se especificamente do ordenamento
jurídico-penal brasileiro, embora o princípio da legalidade esteja expressamente garantido tanto no
art. 1º do Código Penal vigente quanto no artigo 5º , inciso XXXIX, da Constituição Federal,
intervenções judiciais para declarar a inconstitucionalidade de normas por ausência de
determinação são escassas, se considerado o volume de produção legislativa que não raras vezes
deixa de observar a referida exigência. Neste sentido, as poucas decisões que discutem a
constitucionalidade tratam de hipóteses extremas, nas quais a norma penal se revela de qualquer
conteúdo normativo, apresentando problemas não apenas relacionados à formulação
indeterminada, mas, antes, à própria natureza dos interesses penalmente tutelados.” BECHARA,
Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos
normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo
Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p.136. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1).
139
Diante de tal cenário, novas dificuldades surgem como consequência deste
“novo” direito penal, no qual a inserção de elementos normativos faz com que a
interpretação judicial se mostre problemática, pois o juiz se utilizará de métodos
interpretativos que flertam com outros ramos do direito, criando confrontos para a
legitimidade da intervenção penal.
Com propriedade Ana Elisa Liberatore Silva Bechara demonstra a
dificuldade que cerca a proximidade do direito penal com outros ramos do direito,
especialmente o administrativo, uma vez que cada um deles tem seus corolários,
premissas lógicas que, na maioria das vezes, não podem ser fundidas.912
Nesse sentido:

Quando a utilização de elementos normativos leva à transferência do


próprio sentido da criminalização para fora do Direito Penal, delegando-o a
normas extrapenais e, assim, à ampla interpretação judicial, opera-se uma
grande insegurança e desorientação nos destinatários da norma, restando
difícil a identificação das condutas proibidas criminalmente e, assim, a
motivação em relação a elas. Tem-se, aqui, a passagem do princípio da
legalidade de barreira da política criminal para um instrumento a serviço
desta, haja vista que abre as portas à criação casuística do Direito.9 1 3

Ana Elisa Liberatore Silva Bechara propõe que se estabeleça um limite que
separe a abertura excessiva dos tipos penais, até porque é quase impossível se
alcançar a pormenorização pretendida afirmando que o legislador poderia oferecer
“[...] aos juízes programas de decisão mais flexíveis [...]” sem se abandonar a
legalidade. 914
No entanto, a Autora não lista quais seriam tais programas e de que forma
eles poderiam ser implementados. A meu sentir, inclusive, tal proposta, louvável,
seria de difícil implementação, pois, levando-se em conta a formação dos
legisladores de nosso país, chegaríamos sempre em um beco sem saída, resultando
em mais uma proposta contraproducente.

912
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 154-155 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
913
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 154-155. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
914
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, 154-155. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
140
O injusto penal será o primeiro momento em que haverá a valoração do
comportamento, ou seja, a tipicidade de uma conduta não se esgota em um mero
processo lógico-formal se subsunção, implicando, na verdade, também em uma
valoração.
Muito embora o tipo penal seja uma consequência lógica do princípio da
legalidade, é fato que ele tem um certo grau de abertura permitindo ao operador do
direito algum grau de criação jurídico-penal.
No entanto, tal abertura deve ser limitada mesmo que na atualidade seja
necessária a introdução de elementos normativos ou descritivos, o que Ana Elisa

Liberatore Silva Bechara entende ser mais viável e mais racional a inserção destes
últimos. 915
Ela exemplifica que a técnica de introdução de elementos normativos não
deve ser um meio de “[...] expansão das hipóteses de punição por meio da abertura
conceitual da norma incriminadora [...]” e, sim, “[...] a ampliação do próprio processo
de valoração, dentro do alcance e dos limites do Direito Penal para o fim de permitir
a busca de respostas mais eficazes aos conceitos sociais, tendo sempre como
referência fundamental o indivíduo e a defesa de sua liberdade contra intervenções
ilegítimas do Estado. 916
A despeito das várias conceituações, o elemento normativo pode ser
entendido como elemento em que será necessário um juízo de valor pelo interprete.
Juarez Tavares define os elementos normativos como aqueles que exigem
para a sua compreensão a realização de um juízo de valor com base em
circunstancias existentes fora da norma penal e se apresentam de forma expressa,
como na hipótese de coisa alheia narrada no artigo 155 do CP, ou tacitamente como
ocorre no verbo fraudar, previsto no artigo 179, também do CP.917
Muito embora haja diversas conceituações e abordagens sobre os
elementos normativos do tipo, o que se percebe é que tais conceituações são
insuficientes para garantir a segurança jurídica para aplicação do Direito Penal.
915
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, P. 263. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
916
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, P. 263. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
917
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 242
141
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara nos traz a discussão travada na doutrina
acerca da utilidade ou não da distinção entre elementos normativos e descritivos,
concluindo que tal diferenciação é necessária, principalmente em questões
pertinentes ao dolo e ao erro e sobre a legitimidade da intervenção penal. 918 Entende
que a definição dos elementos normativos do tipo é complexa e, mais do que
perseguir uma simples diferenciação em relação aos elementos descritivos, é
necessário fazer uma delimitação em relação às possibilidades de se determinar os
critérios e o seu alcance, especificamente no que diz respeitos ao conteúdo material
do delito, que é a ofensa ao bem jurídico.
Assim e diante dos novos desafios da nossa sociedade, o que se percebe é
uma utilização cada vez maior dos elementos normativos, vide, por exemplo, os
delitos ambientais e os da ordem econômica, nos quais se verifica a
desmaterialização dos bens jurídicos.
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara salienta que nestas hipóteses a
construção do fato típico deve se valer necessariamente de elementos normativos.
No entanto, a crescente utilização desta técnica também traz uma desmaterialização
da valoração de seus objetos de proteção e, assim, o conteúdo material dos delitos.
919

Ela propõe o estabelecimento de requisitos visando “[...] a evitar uma


indevida intervenção punitiva na esfera individual nos casos em que o conteúdo
material da norma positiva não revelar a legitimidade da intervenção estatal [...]. 9 2 0
De outro lado, temos o posicionamento de Carlo Fiore 921 para quem a
introdução de cláusulas gerais, elementos normativos do tipo e conceitos de valor
demonstram o compromisso do julgador com a busca e a integração da lei,
realizando com esta integração uma exigência que é estabelecida pela própria lei.
O autor prossegue afirmando que tais elementos, na prática, nada mais são
918
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, P. 225(,Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
919
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 225. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
920
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 225. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1)..
921
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 253.
142
do que elementos que permitem o reconhecimento da singularidade de um caso
concreto.922
Assim, adverte Carlo Fiore que a aplicação de qualquer regra jurídica está
sempre adstrita à particularidade do caso concreto e que não pode ser previsto pela
lei em sua função abstrata e geral.923
O papel exercido pelos elementos normativos do tipo ou cláusulas abertas
presentes em determinados tipos penais conferirão uma maior elasiticidade na
aplicação do direito e terão como função tornar possível a sua aplicação
diferenciada no seu uso.924
Para Carlo Fiore, a elasticidade é uma característica intrínseca de tais
fórmulas, o que propiciará ao ordenamento jurídico uma capacidade de estabelecer
continuamente novas metas e garantir uma estabilidade ao direito925.
Para o autor, tais atributos existem para que se alcance, no seu entender,
um dos fins do Direito Penal, a justiça 926, o que a meu ver é quase impossível, pois a
própria palavra justiça é aberta e o seu conceito varia de pessoa para pessoa.
Já Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria entende que será indiferente a
existência de elementos puramente descritivos ou normativos no tipo penal, pois a
valoração sempre será possível de acontecer, mesmo quando a norma for elaborada
por conceitos a que ela chama de “herméticos”.927
Para haver uma concordância entre elementos normativos e a tipicidade
penal, a autora noticia a existência de uma subdivisão dos elementos normativos:

De um lado, ficam todos os elementos normativos que supõem uma


valoração subjectiva, a sua livre determinação de sentido pelo intérprete, e
que são ilegítimos onde não seja possível proceder à objectivização do
juízo que os define, acabando o juiz por decidir sozinho da incriminação. De
outro lado, encontram-se os elementos normativos cuja definição de sentido
é condicionada por valorações jurídicas provenientes de outros ramos do
direito, ou por critérios de outra natureza [de carácter ético-social,
económico, de civilidade, etc], condicionando a esfera de liberdade do órgão
aplicador do direito. Tratar-se-ia de critérios interpretativos, que, ao mesmo
tempo que definem o sentido do elemento típico, se deixam integrar num
juízo valorativo mais geral que permite a afirmação da relevância penal da

922
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 253.
923
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 254.
924
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 254.
925
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 254.
926
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 254.
927
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 183.
143
conduta928

A Autora, apesar de noticiar tal classificação entre os elementos normativos,


adota a posição de que é impossível distinguir entre elementos descritivos e
normativos, pois eles têm como objeto definir o sentido material da norma e que só
ocorre, quando se está diante do caso concreto, afirmando que “mesmo os
elementos descritivos apontam para um sentido típico de desvalor que deve ser
definido pela via interpretativa [um sentido de ilicitude típico], pelo que acabam
também por conter momentos de normatividade”.929
E finaliza ressalvando que a introdução de elementos normativos no tipo
penal é uma escolha do legislador e que, muitas das vezes, não se circunscreve
apenas no fato típico, irradiando-se por toda a estrutura do delito.930
Neste mesmo sentido, Juarez Tavares assevera que a doutrina tem sido
reticente em admitir a presença de elementos puramente descritivos no tipo penal e,
da mesma forma, pontua que mesmo que haja alguma expressa descritiva no tipo
penal, é necessário que haja algum tipo de interpretação ou valoração, mesmo que
seja a mais simples.931
No entanto, ele próprio adverte a importância dogmática da diferenciação
entre elementos descritivos e normativos, exemplificando a delimitação entre o início
da execução ou consumação do delito ou a diferenciação entre erro de tipo e erro de
proibição, dentre outros.932
Ao contrário dos elementos normativos temos as cláusulas gerais, que não
obedecem ao corolário da taxatividade da conduta típica e, por consequência,
gerando uma insegurança jurídica, vide o clássico exemplo do artigo 2º do código
penal do regime nazista e, aqui, no Brasil o art. 4º da Lei 7.492/86 sobre a gestão
temerária. 9 3 3
928
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 187..
929
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 197.
930
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 199-200.
931
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 243.
932
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 243.
933
Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira:
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.
Parágrafo único. Se a gestão é temerária:
144
Há o exemplo também da Lei 13.260/16 da Lei Antiterrorismo que despreza
e viola flagrantemente o princípio da legalidade penal.
Verifica-se que a referida legislação em seu artigo 2ºcaput, utiliza-se de
termos, tais como por exemplo, “provocar terror social ou generalizado”, ou ainda no
parágrafo 1º934 do próprio artigo 2º que faz uso da expressão “atos de terrorismo”, 935
em que palavras de conteúdo polissêmico ou ambíguo, como no primeiro caso, ou
de termo que a própria doutrina ainda não chegou a um consenso acerca do seu
conceito, como no segundo caso, são dependentes de um juízo subjetivo do julgador
que lhe permite interpretar a norma perigosamente com base em uma ideologia
adotada pela sociedade em um determinado momento, seja ela de esquerda ou de
direita, retirando, por conseguinte, as garantias pessoais do acusado.
936
Outro exemplo é a previsão no seu artigo 5º , da punição de prática de
atos preparatórios daquilo definido pela lei como sendo terrorismo, cuja pena é
correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.
Como construção já assentada na dogmática penal, a cogitação, por se
tratar de uma mera ideia, sem qualquer possibilidade de lesão ao bem jurídico não é
objeto de interesse do direito penal.
Os atos preparatórios, por sua vez, correspondem aos atos indispensáveis
para a prática da infração penal. Em regra, os atos preparatórios não são puníveis,
uma vez que o nosso Código Penal exige o início da execução. Excepcionalmente, o
legislador, levando em conta o valor do bem jurídico tutelado, em relação à própria
perigosidade da ação ou simplesmente à perigosidade do agente, antecipa a tutela
do direito penal, como no crime em comento. Não se exige, portanto, a prática de

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa. BRASIL. Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986.
Define os crimes contra o sistema financeiro nacional, e dá outras providências. Brasília, DF:
Presidência da República, [2017].
934
“§ 1o. São atos de terrorismo”. BRASIL. Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o
disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo [...]. Brasília,
DF: Presidência da República, 2016.
935
“ Art. 2o O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo,
por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando
cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa,
patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública” BRASIL. Lei nº 13.260, de 16 de março de
2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o
terrorismo [...]. Brasília, DF: Presidência da República, 2016.
936
“Art. 5o Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal
delito:
Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade”. BRASIL. Lei
nº 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da
Constituição Federal, disciplinando o terrorismo [...]. Brasília, DF: Presidência da República, 2016.
145
nenhum ato de execução, bastando a realização de um ato preparatório para
autorizar a responsabilização do agente.
O conceito de terrorismo, como visto acima, mesmo na sua forma
consumada não é tarefa das mais simples, quanto mais a sua forma tentada. Para
tanto é extremamente grave ficar a juízo do intérprete a configuração de um ato
preparatório de terrorismo.
Ao prever a punição dos “atos preparatórios”, termo extremamente vago e
que dificulta o alcance do tipo penal, viola-se o princípio da legalidade, princípio
reitor do sistema penal, e que se encontra inserido no art. 5º, inciso XXXIX, e
reafirmado pelo art. 1º do Código Penal.
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara conclui que a escolha em redigir tipos
penais compostos por cláusulas gerais demonstra, na verdade, uma “[...] quebra da
necessária relação entre o conceito sinalizado pelo tipo e o bem jurídico objeto da
proteção penal, requisito fundamental para a legitimidade de qualquer abertura típica
à valoração”. 937
Assim, não podem ser consideradas elementos normativos, pois
incompatíveis com o princípio da legalidade e, mais especificamente, com a
taxatividade.
Vale salientar que também existem os tipos penais abertos, cuja
complementação é feita pelo juiz tal qual ocorre nos delitos culposos,
E completa Ana Elisa Liberatore Silva Bechara que os tipos penais abertos
seriam “[...] verdadeiros tipos neutros, sem conteúdo valorativo, na medida em que,
sem as referências à antijuridicidade, não fundamentariam nem indicariam o injusto
da conduta, ainda que não existisse uma causa de justificação”.938
Muito embora esta técnica seja de bastante utilidade para o Direito Penal,
uma vez que ele irá se utilizar os outros ramos do Direito ou, até mesmo, de
instancias administrativas que são mais ágeis para a solução de determinadas
controvérsias, o fato é que certas dificuldades se apresentam.
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara aponta algumas tais como a remissão a
937
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 240. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
938
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 243. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
146
instancias extrapenais muitas vezes podem elaborar normas não muito claras e que
infringem a legalidade. Ou a instancia que a elaborou não é a competente, o que
pode gerar uma ilegitimidade do puder punitivo estatal.939
Com propriedade, a autora afirma que da leitura da norma penal em branco,
deve-se compreender qual o bem jurídico tutelado e quais as condutas proibidas. 940
Caso o legislador assim não o faça, delegando a definição da matéria de
proibição para as instâncias administrativas, estaremos diante de uma afronta a
legalidade, logo, para que uma matéria de proibição seja considerada legítima, a
infração administrativa, objeto da remissão, pode constituir apenas um elemento
complementar do tipo, cuja matéria de proibição deve permanecer na esfera penal941.
No entanto, normas penais em branco e elementos normativos do tipo não
são a mesma coisa e não se confundem. Aquelas têm a função de detalhar ou
complementar o que está descrito no tipo penal, restando a este a tarefa de
explicitar o bem jurídico e a matéria de proibição.
Por sua vez, nos elementos normativos do tipo, verifica-se que estes já se
encontram completos, necessitando de um auxílio hermenêutico de outras áreas.
Já em relação aos postulados éticos e sua utilização como complemento aos
elementos normativos do tipo surge uma preocupação, pois a etizacao do direito
penal pode trazer graves consequências tais como a que ocorreram durante o
período do nacional socialismo.
No entanto, deve-se levar em conta que em um Estado Democrático de
Direito, em que se parte da ideia de que há uma pluralidade de ideias, de padrões
éticos nem todos eles serão respeitados integralmente, não havendo outra solução
senão o sacrifício de um em detrimento de outro.

939
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 240. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
940
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 240. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
941
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara nos dá o seguinte exemplo para que o artigo 34 da lei 9605/98
de forma correta traga a matéria de proibição, bem como a ofensa do bem jurídico, sendo que o
objeto da remissão administrativa apenas o detalhamento sobre o período e local específico.
Confira-se: Pescar, impedindo ou dificultando a reprodução de espécies, em período no qual a
pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgãos competentes”. BECHARA, Ana Elisa
Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos normativos do
tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio Brandão. Belo Horizonte:
Editora D’Plácido, 2018, p. 259. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1.)
147
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara afirma que um direito penal democrático
deve evitar que a determinação das condutas delitivas atue como fator de
desigualdades e pode buscar buscar garantir a coexistência de uma pluralidade de
ordens éticas ou culturais, mediante a criação de marcos que possibilitem essa
existência. Sob tal perspectiva, os padrões éticos não podem ser considerados
delitos, pois nem tudo que é eticamente reprovável deve ser obrigatoriamente um
delito942.
A ética, quando utilizada, o será como critério de interpretação restritiva do
tipo penal, restringindo seu alcance com o fim de garantir a liberdade do cidadão. Da
mesma forma, a criação de tipos penais abertos que contém elementos ético-
normativos, tais como “dignidade”, “decoro”, “ato obsceno” viola frontalmente o
princípio da legalidade, esvaziando a sua legitimidade e transformando o Direito
Penal em um instrumento moralizador da sociedade.943
Logo, conclui Ana Elisa Liberatore Silva Bechara que não restam dúvidas de
que é possível a utilização de valores culturais e, até mesmo, éticos como
complementos extrajurídicos dos elementos normativos do tipo. Tal utilização,
contudo, deve ser orientada em um sentido em que haja um asseguramento da
liberdade do indivíduo. Entender a utilização de valores ético-culturais em sentido
diverso seria o de tornar a intervenção penal autoritária, arbitrária e ilegítima. 944
Diante de tal cenário em que a utilização pela dogmática dos elementos
normativos que seriam para garantir a liberdade individual do agente, é utilizada
para alargar a responsabilização penal.
A normatização gera problemas principalmente quando o elemento
normativo do tipo é proveniente de setores cujo objetivos e princípios diferem
daqueles presentes do direito penal
No entanto, tal dificuldade não deve ser óbice para a sua utilização no caso,
por exemplo, da adequação social em que há necessidade de uma complementação

942
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 330 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
943
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os \.
Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 330 (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, 1).
944
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, P. 331 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
148
do tipo penal com elementos extrajurídicos fundados na ordem social

3.3 As normas de cultura

Max Ernst Mayer inicia sua obra “Normas jurídicas e normas de cultura”
introduzindo a noção de que uma das características que o tipo penal exerce é a de
determinar a conduta punível e a respectiva pena cominada entre um marco mínimo
e um máximo.945
Em razão desta característica – a existência de uma lei que determina um
tipo penal e a respectiva pena -, o cidadão estará protegido do poder ilimitado do
Estado e de seus órgãos de persecução penal.946
No entanto, prossegue aludindo a Binding de que a lei na verdade não
determina qualquer tipo de proibição ou comando. Quem exercerá esta função serão
as normas. Somente através delas vislumbraremos a diretriz, a ordem que os
homens devem obedecer.947
Para Max Ernst Mayer, as normas jurídicas não são conhecidas pelo povo,
muito embora alguns indivíduos conheçam o Direito, é fato que maioria não o
conhece. E ressalva que se uma maioria de pessoas conhece o que é proibido, não
é através das leis e, sim, através da educação recebida na escola, nos locais de
trabalho e na interação diária entre os indivíduos.

945
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 39.
946
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 40.
947
Max Ernst Mayer afirma: “É evidente que a teoria das normas refuta em vários aspectos a opinião
de que a lei penal se dirige ao Povo; o infrator não age contra a disposição jurídico-penal, mas em
plena conformidade com a primeira parte dela; O mandamento que se transgride, a lei que violamos
não é a lei penal, mas a norma jurídica que lhe serve de fundamento.
No original: “Es evidente que la teoria de las normas desmente em vários aspectos la aopinión de que
la ley penal se dirige al Pueblo; el delincunete no actua en contra de la disposición jurídico-penal,
sino em plena concordância com la primera parte de ella; el mandamento que é contraviene, la ley
que infnringem no es la ley penal, sino la norma jurídica que le sirve de findamento”. MAYER, Max
Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de José Luis
Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 41
149
É na tradição cultural948949 950
que se funda o conhecimento dos mandatos e
proibições existentes no Direito.951
Ele adverte, no entanto, que as leis devam ser redigidas de tal maneira que
todos, independentemente de sua instrução deva compreendê-las. As leis não

podem ser obscuras ou de difícil compreensão. E, nos dizeres do próprio Max Ernst
Mayer “[...] uma ciência oculta, compreensível só para juristas”. (tradução nossa).952
A questão da qual Max Ernst Mayer se preocupa é a de que se as leis estão
dirigidas a todos os cidadãos, como julgá-los se eles, na prática, não as conhecem?
Para que todos tenham conhecimento, seria necessário, propõe, que houvesse a
sua publicação não de forma ordinária nos órgãos de publicação oficial do Estado. A
publicação deveria ser feita em jornais de grande circulação e com a fixação de
cartazes e a consequente exposição pública.953
A lei ainda deve ter força obrigatória, que só é adquirida mediante a sanção
e para se alcançar o seu real significado, Mayer entende que se deve perquirir a
razão das leis serem obrigatórias aos cidadãos se, na prática, elas nãos estão
dirigidas a eles.954

948
O próprio Mayer reconhece que a cultura não pode ser considerada algo unitário e absoluto,
afirmando “[...] basta com um olhar sobre a realidade cósmica para se dar conta que há muitas
camadas superpostas de cultura e muitos ciclos culturais adjacentes [...]” (tradução nossa). No
original: “[...] basta com una sola mirada sobre la realidade cósmica para darse cuenta de que hay
muchas capas superpuestas de cultura y muchos ciclos culturales adyacentes [...]”MAYER, Max
Ernst. Filosofia del Derecho. Traducción de la 2ª edición original por Luis Legal Lavambra.
Barcelona: Editorial Labor S.A, 1937.p. 82.
949
E continua: “É uma realidade viva e, portanto, condicionada dinâmica e como diversidade de
matizes” (tradução nossa). No original: Es uma realidade viva y, por lo tanto, condicionada, dinâmica
y com diversidade de matices”. MAYER, Max Ernst. Filosofia del Derecho. Traducción de la 2ª
edición original por Luis Legal Lavambra. Barcelona: Editorial Labor S.A, 1937.p. 82.
950
Por fim, sentencia que “[...] o nascimento de uma cultura não é coisa de um dia. Um de seus
requisitos fundamentais é a História, a históra vivida através de gerações. Toda culutra, em efeito, é
um produto histórico. À cultura pode aplicar-se ao que ao Direito afirma a escola histórica: não a
fazem, se faz”.(tradução nossa – grifos do autor) No original:”[…] el nacimiento de una cultura no es
cosa de un dia. Uno de sus requisitos findametales es la Historia, la historia vivente a través de las
generaciones. Toda cultura, em efecto, es un producto histórico. A la cultura pude aplicarse lo que
del Derecho afirma la escuela histórica: no lo hacen, se hace”(grifos do autor). MAYER, Max Ernst.
Filosofia del Derecho. Traducción de la 2ª edición original por Luis Legal Lavambra. Barcelona:
Editorial Labor S.A, 1937.p. 83
951
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 45.
952
“[...] uma ciencia oculta, compresible sólo para los juristas. MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y
normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires:
Hammurabi, 2000, p. 45.
953
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 49.
954
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 54.
150
Ele questiona como um indivíduo aceita ser julgado pelo Estado, sem que
isto seja considerado uma arbitrariedade, segundo leis que não conhece ou que não
está obrigado a conhecer.
A justificativa para esta resposta se encontra no fato de que a
obrigatoriedade da lei radica “[...] no que as normas jurídicas estão em conformidade
com as normas de cultura, cuja obrigatoriedade o indivíduo conhece e aceita”.
(tradução nossa)955
As normas, portanto, são regras que determinam comandos, imperativos
que podem ser positivos ou negativos, concretos ou abstratos. Por sua vez, as
normas jurídicas se diferenciam das normas de cultura e com elas não devem se
confundir.956
As normas de cultura serão definidas por Mayer como “[...] um nome
genérico para totalidade daqueles mandatos e proibições que se dirigem ao
indivíduo como exigências religiosas, morais, convencionais de tráfego e
profissional” (tradução nossa).957 958
E conclui afirmando que se os deveres que nascem da norma jurídica
coincidem com os da norma de cultura, o indivíduo não poderá discordar quando for
julgado por normas que não lhe foram comunicadas.
No entanto, Max Ernst Mayer entende que a obrigatoriedade seja
reconhecida, serão necessárias duas condicionantes:

a) que o indivíduo conheça e aceite as normas de cultura;

955
No original: “[...] a obligatoriedad de la ley radica em que las normas jurídicas están em
correspondencia com normas de cultura, cuya obligatoriedad el individuo conoce y acepta”.
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 55.
956
Mayer prossegue afirmando que toda a sociedade organizada ou não, serve-se da norma para
proteger seus interesses. Por isso as normas que servem para este fim devem ser chamadas de
normas de cultura, atendendo seu alcance e regras sociais. MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas
y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de José Luis Gusmán Dábora. Buenos
Aires: Hammurabi, 2000, p. 55.
957
“[...] un nombre genérico para la totalidade de aquellos mandatos y proibiciones profesión.
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 56.
958
Afirma Max Ernst Mayer: “A cultura cumpre a tarefa cujo lastro foi imposto ao ordenamento
jurídico: ela proclama os mandatos e proibições com os quais se assegura ‘as condições de vida da
comunidade’”. (tradução nossa). “La cultura cumple la tarea cuyo lastre se há impuesto al
ordenamineto jurídico: ella proclama los mandatos y prohibiciones com los que se asegura ‘las
condiciones de vida de la comunidad’. MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura.
Traducción de alemán y Prólogo de José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p.
69.
151
b) que as normas de cultura e jurídicas sejam coincidentes.959 960

Max Ernst Mayer realça, contudo, que a coincidência entre normas jurídicas
e normas de cultura apontam que um determinado comportamento seja antijurídico,
fato que não se estende para as suas consequências – a pena.961 962
Para se interpretar as normas de cultura, o autor ressalva que elas jamais
terão a mesma precisão das normas jurídicas.963 Ele, inclusive, assevera que se as
normas de cultura não forem claras o suficiente acerca de atos que contenham uma
consequência jurídica, o autor do fato não teria consciência da reprovabilidade do
ato por ele praticado. Seria necessário, portanto, que as normas de cultura fossem
escritas.
Ele questiona se estas normas de cultura se encontram nas leis penais. As
normas jurídicas, principalmente as que estabelecem causas de isenção de
responsabilidade, como a legítima defesa, por exemplo, coincidem com algumas
normas de cultura que também eximem a responsabilidade penal, muito embora não
sejam coincidentes.
A primeira hipótese apresentada por Max Ernst Mayer diz respeito aos
pressupostos da legítima defesa, que faz parte tanto do ordenamento jurídico,
quanto do ordenamento cultural. A ideia de preservação da própria vida ou da vida

959
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 56.
960
Neste sentido, Renato Jorge de Mello Silveira: “Daí a importância das chamadas normas de
civilidade, segundo as quais um fato deve ser considerado antijurídico somente quando contrastar
com as concessões éticas, sociais e políticas dominantes. Quando uma conduta, ainda que
tipicamente prevista se adeque às normas de civilidade, não deveria ser tida como antijurídica”.
SILVEIRA, Renato Jorge de Melo. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 113.
961
Mayer ressalva que “As leis são cumpridas muitas vezes, porque seu descumprimento seria
contrário às normas de cultura, particularmente, contrária aos costumes e à moral. As normas de
cultura garantem a preservação do ordenamento jurídico”. No original: “Las leyes son cumplidas
muchas veces porque el incumpliemento será contrário a las normas de cultura; particularmente,
contradiria las costumbres y la moral. Las normas de cultura garantizan la preservación del
ordenamiento jurídico”. MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de
alemán y Prólogo de José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 82..
962
E completa: “As leis são cumpridas na imensa maioria dos casos, porque os cidadãos não têm
nenhum motivo para fazer algo injusto, posto que convêm a seu próprio interesse comportar-se de
maneira socialmente adequada”. No original: “Las leyes son cumplidas en la imensa mayoria de los
casos, porque los ciudadanos no tien ningún motivo para hacer algo injusto, puesto que conviene a
su próprio interés comportarse de maneira socialmente adecuada”. MAYER, Max Ernst. Normas
jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de José Luis Gusmán Dábora.
Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 82.
963
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 127.
152
de terceiro é coincidente em ambos, no entanto, seus pressupostos só são
delineados pelas normas jurídicas. 964
O segundo caso referente ao direito de correção do professor em relação ao
aluno, por exemplo, diz respeito a hipóteses de isenção da responsabilidade penal
que são estabelecidas pelas normas de cultura, mas não o são pelas normas
jurídicas e que estão contidas em normas de decisão geral. 965
O terceiro grupo, por sua vez, refere-se a causas de isenção de
responsabilidade que carecem de existência autônoma enquanto normas jurídicas e
como normas de cultura, que não estão registradas e tampouco precisam sê-las,
como na hipótese do direito do médico em realizar intervenções médico-cirúrgicas
indispensáveis sem que haja expresso consentimento do paciente. 966
Por fim, o quarto e último grupo de casos que Max Ernst Mayer traz refere-
se a determinadas causas de isenção que devem ser formuladas de forma
autônoma enquanto normas jurídicas e como normas de cultura, necessitando de
uma formulação mais exata para alcançar a todos a quem se destina, como ocorre
no direito do militar se utilizar de fazer uso de suas armas. 967
Nessa toada, a cultura é um dos elementos que exercem influência para se
analisar o sentido e o alcance normativo. As regras de cultura de uma determinada
sociedade influenciam a escolha de condutas que serão consideradas
desvaloradas.968
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara relembra que a diversidade cultural em
uma sociedade gera grandes preocupações em relação à interpretação dos tipos
penais, principalmente em relação aos seus elementos normativos.969
A cultura, segundo Niccola Abagnano, apresenta dois significados básicos.
964
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 129.
965
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 130.
966
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 130.
967
MAYER, Max Ernst. Normas jurídcas y normas de cultura. Traducción de alemán y Prólogo de
José Luis Gusmán Dábora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 130-131.
968
Vide o caso do crime de adultério previsto artigo 240 do Código Penal, sendo revogado pela Lei n.
11.106/05. Com a evolução da sociedade, com avanços em vários aspectos, inclusive com novos
modelos de família, com mais direitos para as mulheres, seja na busca de igualdade de gênero,
seja no papel da mulher na sociedade, dentre outros, adultério deixou de ser crime.
969
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 297 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
153
O primeiro e mais antigo, significa a formação do homem, sua melhoria e
seu aperfeiçoamento, cujo significado corresponde aos que os gregos chamavam de
paidéia e que os latinos, de humanitas, ou seja, educação do homem às "boas
artes", que seriam a poesia, a eloquência, a filosofia etc, às quais se atribuía valor
essencial para aquilo que o homem é e deve ser, por- tanto para a capacidade de
formar o homem verdadeiro, o homem na sua forma genuína e perfeita. 970
O segundo significado refere-se ao conjunto dos modos de viver e de pensar
cultivados, civilizados, polidos, que também costumam ser indicados pelo nome de
civílízação. A passagem do primeiro para o segundo significado ocorreu no séc.
XVIII por obra da filosofia iluminista,
No segundo significado, a palavra cultura tem sido utilizada precipuamente
por sociólogos e antropólogos para indicar o conjunto dos modos de vida criados,
adquiridos e transmitidos de uma geração para a outra, entre os membros de
determinada sociedade. 971
Nesta acepção, a cultura não diz respeito à formação educacional ou
espiritual do indivíduo, mas sim de sua formação coletiva e anônima de um grupo
social nas instituições que o definem.972
Em decorrência da globalização e da imigração, várias culturas coexistem
em uma sociedade, surgindo o fenômeno conhecido como multiculturalismo. 973 Com
efeito, a presença de muitas culturas e diversos valores éticos em uma sociedade
trazem diversos problemas, inclusive para o Direito Penal. Houve, portanto, uma
intensificação do fluxo imigratório de pessoas de regiões remotas do planeta e que
são portadores de uma tradição cultural diferente da ocidental.

970
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 225.
971
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 228.
972
Will Kymlicka, afirma o seguinte: “Kymlicka fala de cultura como ‘cultura social’, um tipo de cultura
‘que confere aos próprios membros modos de viver dotados de sentido em um amplo espectro de
atividades humanas, aí compreendidas a vida social, formativa, religiosa, recreativa e econômica,
não somente a esfera pública, como, também, a privada’. Esse modo de conceber a cultura implica
‘o compartilhamento não apenas de recordações e valor, mas também de instituições e práticas’”.
KYMLICKA apud MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos
penais. Tradução de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2017. E-book.
973
Cristina de Maglie nos traz a diferenciação entre multietnicidade, multiculturalismo e
multiculturalidade. No presente trabalho, não esmiuçaremos a diferença entre cada um destes
conceitos e utilizaremos os termos multiculturalismo e multiculturalidade como sinônimos. MAGLIE,
Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução de Stephan
Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. E-book.
154
Não é novidade alguma que o Direito Penal reproduz o discurso do “dever
ser” e que está a serviço da sociedade majoritária. Observa-se que os conflitos
sociais são o resultado natural de um processo de diferenciação social que produz
uma infinidade de agrupamentos sociais, cada qual com seu posicionamento ou
situação de vida com suas próprias interpretações das relações sociais, gerando
comparações entre elas, implicando que um grupo se considere melhor que o outro.
Com efeito, é necessário limitar o conceito penal de cultura a “[...] apenas a
filiações culturais capazes de ter um impacto 'global' sobre a existência de seus
respectivos membros e não sobre indivíduos, por mais importantes que sejam [...]”
(tradução nossa).974
Observa-se que os conflitos sociais são o resultado natural de um processo
de diferenciação social que produz uma infinidade de agrupamentos sociais, cada
qual com seu posicionamento ou situação de vida com suas próprias interpretações
das relações sociais, gerando comparações entre elas, implicando que um grupo se
considere melhor que o outro.
Assim, Cristina de Maglie975 elenca uma série de requisitos para que um
indivíduo cometa um crime culturalmente motivado, que são os seguintes:

a) uma cultura comum - O grupo deve apresentar características comuns, ou


seja, deve possuir uma cultura comum e que influencie de modo decisivo o
estilo de vida dos componentes do grupo, desde a alimentação até o idioma
ou religião;
b) cultura do grupo e formação do indivíduo Os indivíduos que crescem dentro
do grupo adquirirão a sua cultura, que marcará o seu caráter, sendo
condicionandos pela cultura do grupo de pertença;
c) pertença ao grupo e recíproco reconhecimento: os efeitos internos - Ser
reconhecido e aprovado, ainda que informalmente, pelos outros membros do
grupo como pertencentes àquele grupo;

974
“[...] alle sole appartenenze culturali in grado di incidere ‘a tutto tondo’ sull’esistenza dei rispettivi
membri e non già su singoli, per quanto importante [...]”. GRANDI, Ciro. A proposito di reati
culturalmente motivati. Milano, Diritto Penale Contemporâneo, 2010, p. 10
975
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
155
d) reconhecimento do grupo e autoidentificação – a necessidade do indivíduo de
ser reconhecido pelo grupo auxilia no seu autorreconhecimento e de sua
autoidentificação como membro deste mesmo grupo;
e) pertença e aquisição O pertencimento a um grupo é uma consequência da do
reconhecimento que se confere a um determinado indivíduo pelos outros
membros deste mesmo grupo e não é que, nos dizeres de MAGLIE (2017)
não é algo negociável, “alguém pertence porque é”.976
Ou seja, será considerado um comportamento culturalmente relevante
quando houver por parte de um indivíduo a um determinado grupo étnico ou
comunidade nacional.
Isso, entretanto, não é o suficiente. Para que se possa falar de “crime ato
culturalmente motivado”, deverão ser provados, no âmbito do processo, os seguintes
requisitos:977

a) a motivação cultural;
b) divergência entre culturas: deverá haver por parte do intérprete uma
comparação entre a cultura do grupo étnico à qual pertence a vitima e a do
país hospedeiro, de modo a identificar as diferenças tratamento entre os dois
sistemas.

Sob tal perspectiva, e na esteira do raciocínio de Ana Elisa Liberatore Silva


Bechara perquire-se: pode um elemento normativo do tipo ter seu conteúdo
complementado por elementos extrajurídicos e que estão inseridos na esfera cultural
do agente e que é diversa e minoritária daquela do local em que se encontra? E
quais as consequências advindas desta análise? 978
Ana Elisa Liberatore Silva Bechara979 discorda, por exemplo, da solução

976
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
977
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
978
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 304 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
979
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
156
apontada por Juarez Tavares de que seria um erro culturalmente motivado, pois não
consegue explicar a situação de multiculturalidade existente em uma determinada
sociedade, revelando, na verdade, “[...] a tendência do desprezo da diversidade
cultural em favor de uma noção de assimilação”. 980
Vale ressaltar que não está se falando do indivíduo insuficientemente
socializado e, sim, da diversidade étnico-cultural, que, na prática, tem a pretensão
de desacreditar e aviltar os sujeitos e os grupos portadores de culturas “outras”,
A adequação social seria a solução mais correta nas hipóteses em que em
que existam tipos penais que contenham elementos normativos, especialmente nas
hipóteses de multiculturalidade, tendo em vista que ela se dedica ao conteúdo
normativo do tipo. 981
Logo, a adequação social está intimamente ligada ao elemento normativo
dos tipos penais, importando em uma valoração referida aos interesses sociais
fundamentais.
No entanto, a questão do multiculturalismo e dos crimes culturalmente
motivados não deve se limitar apenas no âmbito da dogmática penal, devendo ser
inclusive discutida com influência da política criminal.
Convivem, segundo Ciro Grandi, dois tipos de modelos: o modelo
assimilacionista, em que há uma igualdade formal em que o Estado se mantém
neutro frente às diferenças culturais. 982
E o segundo modelo que visa a efetivar a igualidade material e que tenta
respeitar ou tolerar as diferenças culturais na medida do possível, a que Cristina De
Maglie983 chama modelo multicultural forte, porque se rende diante das diversidades
étnico-culturais. Um modelo de tal forma tolerante e aberto às culturas “outras”,

Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 304-305 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
980
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 305. (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
981
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os
elementos normativos do tipo objetivo no direito penal contemporâneo. Coordenação de Cláudio
Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 307 (Coleção Ciência Criminal
Contemporânea, 1).
982
GRANDI, Ciro. A proposito di reati culturalmente motivati. Milano, Diritto Penale Contemporâneo,
2010, p. 4.
983
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução de
Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
E-book.
157
Em termos de política criminal, Ciro Grandi relata que, no modelo
assimilacionista, não há uma preocupação ao pertencimento cultural para o
tratamento penal dos crimes cometidos pelos membros dos grupos minoritários. 984
Por outro lado, ele afirma que existem alternativas político-criminais mais
benéficas, permitindo-se em determinadas hipóteses a atipicidade de certas
condutas por serem insignificantes e que tradicionalmente tem a sua prática
reiterada por essas minorias985
Um fato que Ciro Grandi986 e Cristina de Maglie987 nos chamam a atenção e
que por nós é relegada a segundo plano é a da premissa de que todos os indivíduos
têm os mesmos direitos e obrigações, no entanto, suas subjetividades não são
levadas em conta e “trata-se, em outros termos, do princípio da irrelevância das
características individuais perante a generalidade e abstração da lei em geral, e da
lei penal em particular, princípio que sofre raras atenuações”.
Na esteira de Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria,988 Mayer, muito
embora seja seguidor de Binding e adepto do positivismo, foi de grande importância
para uma substituição do ilícito fundamental no desvalor do resultado para um ilícito
baseado no desvalor da ação. Por óbvio que Welzel se apropriou dessas conclusões
advindas do desenvolvimento das normas de cultura para elaborar a teoria da
adequação social.

A RELAÇÃO ENTRE O JUÍZO DE ANTINORMTIVIDADE E ADEQUAÇÃO


SOCIAL NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
A Atuacao do Ministério -
Um questionamento que deve ser feito neste ponto do trabalho é se o
Ministério Público, em obediência aos princípios da oportunidade e obrigatoriedade
da ação penal, ao tomar conhecimento da prática de um delito que se enquadra em

984
GRANDI, Ciro. A proposito di reati culturalmente motivati. Milano, Diritto Penale
Contemporâneo, 2010, p. 4
985
GRANDI, Ciro. A proposito di reati culturalmente motivati. Milano, Diritto Penale
Contemporâneo, 2010, p. 4.
986
GRANDI, Ciro. A proposito di reati culturalmente motivati. Milano, Diritto Penale
Contemporâneo, 2010, p. 5.
987
MAGLIE, Cristina de. Crimes culturalmente motivados: ideologias e modelos penais. Tradução
de Stephan Doering Darcie. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. E-book.
988
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 53.
158
condutas socialmente adequadas, deve deflagrar a ação penal, requerer o
arquivamento do procedimento investigativo ou permanecer inerte.
Luigi Ferrajoli afirma que no modelo acusatório de processo penal que, em
tese, é o que seguimos no Brasil, um dos princípios mais importantes é o da
separação entre juiz e acusador, verbis, “nullum iudicium sine accusatione, em que
há uma diferenciação entre os sujeitos processuais”.989
Ao juiz caberá o distanciamento e a imparcialidade em relação às partes. Já
ao Ministério Público, no caso brasileiro, titular da ação penal pública, deverá
oferecer a denúncia sempre que presentes as condições da aço, regido que é pelos
princípios da obrigatoriedade e da oportunidade.
Sofrendo forte influencia dos institutos negociais do direito norte-americano,
tais como o plea bargaining, o principio da obrigatoriedade vem sendo mitigado ao
longo dos anos. Tal fato se iniciou ainda no século passado, mais especificamente,
em 1995 com a edição da Lei 9099/95 que regula o funcionamento dos Juizados
Especiais Criminais e define quais são os crimes de menor potencial ofensivo e que
serão julgados no âmbito de sua competência. Posteriomente, houve ampliação 990
dos institutos negociais com a colaboração premiada e com o ANPP – Acordo de
Não persecução Penal.
O princípio da obrigatoriedade não deve ser obedecido de maneira cega,
sendo vedado ao Ministério Público agir como mero acusador para qualquer tipo de
crime, mesmo naqueles considerados leves ou, no caso do presente trabalho, em
crimes cujas condutas são socialmente adequadas.
Nos dizeres de Luigi Ferrajoli:

Por outro lado, por ‘obrigatoriedade’ da ação penal não se deve entender,
como se tem dito a proposito da ‘não derrogação’ do juízo, um irrealizável
dever de proceder em todo crime ‘leve’ ou ‘oculto’, mas só a obrigação dos
órgãos de acusação pública de promover o juízo para toda notitia criminis
que vier a seu conhecimento – ainda que para requerer o arquivamento ou
absolvição caso considerem o fato penalmente irrelevante ou faltarem
indícios de culpabilidade991

Em relação à obrigatoriedade do oferecimento da denúncia por parte do


Ministério Público em relação a condutas socialmente adequadas, Maria Paula
989
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 522.
990

991
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 525.
159
Bonifácio Ribeiro de Faria, quando trata da relação entre adequação social e o
princípio da oportunidade no processo penal português e que pode ser trasladado
para o nosso processo penal, entende que “A adequação social passa a ser uma
‘medida’ que integra todos os factores e valorações pertencentes ao processo de
determinação da medida da pena, e que permite concluir que no caso concreto não
existe necessidade de punir”.992
Poder-se-ia argumentar que haveria uma derrogação do princípio da
legalidade ou que relegar esta discricionariedade ou disponibilidade nas mãos do
Ministério Público seria uma fonte de arbítrios, tais como exemplifica Luigi Ferrajoli,
da ausência de controle sobre o Ministério Público que, a seu arbítrio, escolherá
quem ou não denunciar.993
É fato que o conceito e a aplicação da adequação social ainda claudica tanto
na doutrina, quanto na jurisprudência, o que difere dos crimes bagatelares, cuja
aceitação e reconhecimento já são mais uniformes.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria traz o exemplo da pessoa que furta
algumas cervejas, apontando que tal conduta é bagatelar, mas, ao mesmo tempo,
não é socialmente adequada994.
Para a Autora, a adequação social funcionaria no processo penal de forma a
justificar a não atuação do Ministério Público quando:

(...) não se deixasse suscitar qualquer duvida acerca da sua


correspondência às necessidades e representações sociais, pelo que o
Ministério Público não teria sequer que proceder à interpretação do tipo ou
apelar a valorações de carácter jurídico995

Assim, em casos de batidas leves e veículos ou nas hipóteses de correção


dos pais em relação aos seus filhos seriam hipóteses em que o Ministério Público
deixaria de denunciar ou, até mesmo, requereria o arquivamento do procedimento

992
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 356-357
993
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 524
994
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 367.
995
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 370-371.
160
investigativo.996
Maria Paula Ribeiro Bonifácio de Faria ressalva, contudo, que o princípio da
adequação social, antes de tudo, é um critério normativo e não puramente fático e,
se o reduzirmos a este ultimo estaríamos derrogando a legalidade.
Desse modo, quando houver dúvidas de valoração, o Ministério Público
deverá denunciar. O questionamento que se faz é: não seria esta valoração fonte de
arbítrio como mencionado anteriormente? O reconhecimento de uma conduta
socialmente adequada por parte do Ministério Público sem a filtragem judicial,
geraria algum tipo de consequência?
E estes questionamentos não são apenas meus.
Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria também revela sua angústia sobre
deixar tal análise nas mãos do Ministério Público, expondo o seguinte:

“(...) deve o Ministério Público dispor efetivamente do mesmo poder


interpretativo que é reconhecido ao juiz na fase de julgamento? Deve-se
falar de uma ‘legitimação equiparada’ capaz de justificar a utilização por
parte desta magistratura de um critério como o da adequação social? E que
consequências pode ter a utilização de um tal critério pelo Ministério
Público, sendo certo que a qualificação de uma conduta como socialmente
adequada passa a estar subtraída ao poder de valoração judicial [ deixando
por agora intocada a questão de uma eventual abertura de instrução] (grifos
no original)997

E finaliza:

A adequação social não pertence ao processo penal nem enquanto critério


de oportunidade processual, porque constitui um princípio de valoração
material, nem enquanto forma de leitura admissível do tipo legal de crime
pelo Ministério Público, porque obriga à consideração de pontos de vista
que não são acessíveis ao mesmo Ministério Público998

A necessidade de valoração global seria uma exigência para a verificação de


se uma conduta é adequada ou não socialmente e ela apresenta uma base de fato

996
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 371
997
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 378.
998
FARIA, Maria Paula Bonifácio Ribeiro de. A adequação social da conduta no direito penal ou o
valor dos sentidos sociais na interpretação da Lei Penal. Porto: Publicações Universidade
Católica, 2005, p. 384.

161
inalterável e que só poderá ser constatada através de um critério interpretativo que
deve ser realizado pelo juiz.
Ao meu ver, deixar essa valoração jurídica e a concessão de poderes
interpretativos à discricionariedade ministerial, principalmente após o ocorrido nos
processos da Lava Jato, é temerária, pois deixar tal qualificação de fatos ao órgão
ministerial representa uma invasão ilegítima e inconstitucional no princípio da
separação de poderes.

A atuação judicial – o modelo acusatório e as garantias judiciais

A concepção dos juízes que temos hoje é fruto das Revoluções Liberais que,
pretendendo-se afastar das barbáries cometidas durante a Inquisição, reestruturou a
magistratura calcada na independência e que as decisões sejam motivadas.
Luigi Ferrajoli define o Poder Judiciário da seguinte maneira: “(...) o conjunto
de espaços decisórios – a interpretação das leis, a indução probatória, a conotação
equitativa e os juízos de valor discricionários – reservados mais ou menos
irredutivelmente à atividade do juiz”999.
E prossegue o Autor afirmando que um sistema será mais garantista se
houver uma priorização à estrita legalidade e à estrita jurisidição. 1000. A atividade
judiciária, portanto, se distinguirá das outras atividades jurídicas, pois só a jurisdição
será o locus para a aplicação da lei e a qualificação legal dos fatos.1001
Por tal razão é tão importante que existam garantias no sistema acusatório
em relação aos juízes para que efetivamente haja a proteção das garantias dos
cidadão contra o arbítrio estatal.
Deste modo, é necessário que o juiz seja imparcial, isto é, que ele não tenha
qualquer tipo de interesse em ver acolhida a tese lançada pelo Ministério Público ou
para a da defesa na resolução da causa, tendo como única função decidir qual a
pretensão é verdadeira ou falsa.
É necessário também que seja assegurada a sua independência funcional,
999
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 532.
1000
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 532.
1001
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 533.
162
para que o magistrado possa, nos dizeres de Luigi Ferrajoli, impedir os arbítrios
estatais nas liberdades e garantias individuais dos cidadãos, é preciso que sua
independência seja respeitada, pois “(...) garante uma justiça não subordinada à
razão de Estado ou a interesses políticos contigentes”. 1002
E, por fim, deve-se assegurar a garantia do juiz natural1003 que tem como
escopo que o juiz que julgará um determinado processo seja pré-cosntituído pela lei
e não post factum, bem como a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade
de competências e a proibição de juízos extraordinários e especiais.
A imparcialidade do juiz, segundo Aury Lopes Jr. e Ruiz Ritter, é um
princípio supremo do processo, imprescindível, portanto, para o normal
desenvolvimento e julgamento final do processo1004.
A questão que se aponta neste ponto do trabalho é se o Magistrado, ao
tomar conhecimento de uma conduta que, a princípio, seja socialmente adequada,
será, ao mesmo tempo antinormativa.
Luigi Ferrajoli elucida que para que o juiz analise a adequação social e sua
relação com a antinormatividade em um processo penal se inseriria nas hipóteses
de valorações e que esvaziariam o princípio da legalidade.
Na pratica, contudo, os tipos penais nem sempre são taxativos, abrindo
espaço para a análises valorativas feitas pelo juiz, o que pode levar a arbítrios
judiciais.
Assim, a observação da conduta socialmente adequada aliada à
antinormatividade, mesmo que se compreenda que se encaixa em diagnósticos
valorativos, é de se salientar que se cuida de uma discricionariedade restritiva do
tipo penal e, sim, “(,,,) dirigida não para estender, mas para excluir ou reduzir a
1005
intervenção penal quando não motivada por argumentos cognitivos seguros”.
Nesse contexto, o reconhecimento de condutas socialmente adequadas,
1002
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 538.
1003
A previsão do juiz natural está previsto na nossa CR no seu artigo 5º, inciso XXXVII, que assim
determina: “XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção”. BRASIL. [Constituição (1988)].
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós, representantes do povo brasileiro,
reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, [...]. Brasília, DF: Presidência da República,
[2022].
1004
LOPES JÚNIOR, Aury; RITTER, Ruiz. A imprescindibilidade do juiz das garantias para uma
jurisdição penal imparcial: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. Revista Magister de
Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 13, n. 73, p. 13, ago./set.. 2016.
1005
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. rev. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2014, p. 102.
163
segundo Renato Jorge de Melo Silveira:
“(...) fundamenta-se em um esquema valorativo prévio da ponderação de
interesses sociais – na medida em que dispõe o que venha a ser ou não
tolerável -, torna-se necessário o estabelecimento de um critério específico
de valoração (...)1006

O Autor entende que para que esta valoração seja alcançada, é necessária
a ponderação entre custo e benefício, do qual discordo.
A análise da valoração de uma conduta para que seja considerada
socialmente adequada está ligada intrinsecamente atrelada ao juízo de
antinormatividade, em que ambos servirão como chave hermenêutica como limite ao
jus puniendi estatal.
Diante de tais premissas, a atuação do juiz de garantias na fase pré-
processual seria um filtro na legalidade dos atos investigativos levados a efeito pelo
Ministério Público ou pela autoridade policial.
Um dos poderes inseridos no artigo 3º- B 1007 do CPP pela Lei 13.964/2019,
1006
SILVEIRA, Renato Jorge de Mello. Fundamentos da adequação social em direito penal. São
Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 250.
1007
Dispõe o artigo 3º-B do CPP:
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e
pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do
Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de
2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.299) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305)
I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da
Constituição Federal; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o
disposto no art. 310 deste Código; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua
presença, a qualquer tempo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; (Incluído pela Lei nº
13.964, de 2019) (Vigência)
V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto
no § 1º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las,
assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do
disposto neste Código ou em legislação especial pertinente; (Incluído pela Lei nº 13.964, de
2019) (Vigência)
VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não
repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral; (Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões
apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo; (Incluído pela
Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua
instauração ou prosseguimento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da
investigação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XI - decidir sobre os requerimentos de: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de
outras formas de comunicação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
164
conhecido popularmente como Pacote Anticrime, é a de que o juiz deve ser
informado sobre qualquer investigação criminal em andamento.
Neste momento, o juiz deverá fazer não apenas o controle de legalidade,
mas também, porque não, o juízo de antinormatividade daquela conduta socialmente
adequada, evitando-se a abertura e o prosseguimento de procedimentos
investigativos desnecessários.
É certo que tal proposta é polêmica e, na verdade, poderia ensejar e
legitimar a seletividade de alguns crimes em detrimento de outros, ou de alguns
acusados em relação a outros, gerando abusos.
Na esteira de Renato Jorge de Melo Silveira, no atual estágio do processo
penal brasileiro, seria mais produtivo e eficiente realizar o juízo de antinormatividade
de uma conduta socialmente adequada no campo político-criminal e legislativo.
O Direito Penal só será racional quando se valer, dentre outros mecanismos,
que possam ser usados como restritivos dos tipos penais, tais como a adequação
b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; (Incluído pela Lei nº 13.964, de
2019) (Vigência)
c) busca e apreensão domiciliar; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
d) acesso a informações sigilosas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado; (Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; (Incluído pela Lei nº
13.964, de 2019) (Vigência)
XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental; (Incluído pela Lei nº 13.964, de
2019) (Vigência)
XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste
Código; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu
defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da
investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em
andamento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da
perícia; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)
XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração
premiada, quando formalizados durante a investigação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de
2019) (Vigência)
XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei
nº 13.964, de 2019) (Vigência)
§ 1º (VETADO).
§ 1º O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à
presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará
audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado
constituído, vedado o emprego de videoconferência. (Incluído pela Lei nº 13.964, de
2019) (Vigência)
§ 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da
autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito
por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será
imediatamente relaxada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência). Brasil. Lei no 3689,
de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal. Brasília, DF: Presidência da República,
[2022]..
165
social.

NOME CONSIDERACOES PARCIAIS


A dogmática penal tem se preocupado principalmente após a 2ª Guerra
Mundial, com o renascimento de um direito penal de garantia, recuperando o status
e a importância do bem jurídico.
Como se vê, portanto, de todo o exposto neste trabalho, a adequação social
leva em consideração a “ação”, excluindo, por consequência, um fato que é
considerado crime.
Não se pode intuir que a adequação social se oporia ao ordenamento
jurídico penal, mas nos dizeres de Carlo Fiore, seria uma ficção do juízo de valor e
que se subjaz às normas incriminadoras e que condiciona a sua aplicação1008.
A adequação social será utilizada como um critério de valoração, oriundo da
norma jurídica penal e, através do qual, poderá ser feito um juízo pelo intérprete em
relação ao comportamento concreto.
A norma jurídica, como também já abordado neste trabalho, não é
decorrência pura e simples do legislador, mas também do contexto social que
permeia uma determinada sociedade em um dado momento histórico. Os comandos
que são extraídos das normas jurídicas derivam de uma sociedade já formada, a
qual a lei penal pode tentar modificar, mas jamais ignorar.
Por isso vemos a importância da presença de elementos normativos do tipo,
normas penais em branco, com a ressalva de que eles apresentam falhas, que já
foram objeto de análise anterior neste trabalho, mas que servem como uma abertura
aos preceitos ético-sociais de uma comunidade.
Neste aspecto trago o exemplo de Carlo Fiore em relação aos crimes contra
a honra, que são influenciados pela evolução dos costumes e que servirão de baliza
para determinar se uma dada conduta será considerada uma fato típico ou
socialmente adequado.1009
A adequação social, portanto, deve ser entendida como um critério de
interpretação da matéria de proibição e que se encontra na norma penal.
Vale relembrar, mais uma vez, que norma penal e lei penal não são
sinônimos e, muito embora seja necessário que o intérprete realize um juízo de
1008
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 239.
1009
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 242.
166
adequação para alcançar a tipicidade de uma conduta, o fato é que somente com a
norma penal que conheceremos o bem jurídico protegido e se uma ação
desvalorada o lesionará de fato ou o exporá a um perigo de lesão.
Carlo Fiore, da mesma forma que Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, critica
o conteúdo aberto dos tipos penais, afirmando que muitas das vezes o legislador, na
ânsia em abranger todas as variáveis contidas em um determinado fato, elabora
tipos penais excessivamente abertos, o que ele entende que, quanto mais o
legislador se utiliza desta técnica, menos conseguimos perceber qual o bem jurídico
efetivamente se quer proteger.1010
Carlo Fiore salienta que as objeções feitas à adequação social com base na
heterogeneidade ou diversidade de seus critérios orientadores são infundadas.1011
Ele aponta que o erro nesta convicção consiste em acreditar que estes critérios de
avaliação e juízos de valor e que foram introduzidos pela adequação social não
estão alheios à ordem jurídica e tampouco negam o princípio da legalidade.1012
Ao contrário, adverte Carlo Fiore. A adequação social de forma alguma tem o
condão de negar o princípio da legalidade muito menos o ordenamento jurídico-
penal pelo seu juízo de valor, concluindo que “a busca do intérprete visa a matriz
ético-social irredutível do sistema jurídico, mas não pretende de forma alguma anular
ou substituir o juízo de valor da norma; pelo contrário, visa essencialmente identificá-
la com maior precisão” (tradução nossa)1013.
O que se pretende da adequação social nada mais é de que ela seja
compreendida no âmbito da conduta de um sujeito que, a princípio, é um delito, em
cotejo com o papel que a vida social de uma comunidade exerce, para que só então
seja feito o juízo de desvalor desta mesma conduta.
A adequação social tampouco deve ser entendida no âmbito das relações
causais de uma conduta, devendo-se abandonar o conceito causal de ação – mera
modificação do mundo exterior. A ação é a exteriorização de algumas estruturas que
em algumas hipóteses serão perceptíveis a um observador externo e estarão de

1010
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 244.
1011
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 246.
1012
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 246.
1013
“La ricerca dell'interprete mira si all'irriducibile matrice etico-sociale dell'ordinamento giuridico ma
non pretende affatto di scavalcare o sostituire il giudizio di valore della norma; al contrario, è diretta
essenzialmente ad identificarlo con maggiore precisione”. FIORE, Carlo. L’Azione socialmente
adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 246
167
acordo com a ordem social vigente.1014
Ainda que em tese, ocorra um juízo de subsunção de uma determinada
conduta e o modelo abstrato descrito pela lei penal (tipicidade formal), a relevância
penal deste fato poderá ser afastada quando o desvalor desta ação, como um
processo social, exprimir uma adequação à função da vida de uma sociedade.1015
A adequação social, portanto, penetrará nos juízos de valor que a norma
pressupõe e para solucionar (ou tentar) as lacunas existentes e oriundas das leis
penais e que se relacionam com os comportamentos éticos-sociais de uma
coletividade.
Assim, a adequação social será o limite efetivo da incriminação prevista que,
no entanto, se adequará ao valor jurídico da vida mas que está insuficientemente
regulado pelo tipo penal.
Logo, uma conduta que é socialmente adequada e aceita por uma
sociedade não poderá ser definida como um crime e, partindo-se de tal premissa, o
intérprete deverá fazer o juízo de desvalor na análise da conduta, levando-se em
conta a tipicidade material.
Neste mesmo sentido Maria Ángeles Rueda Martín para quem a questão da
adequação social é eminentemente valorativa e o momento de se avaliar referida
valoração deve-se considerar a utilidade da conduta em virtude da qual se toleram
determinados comportamentos1016.
Tais comportamentos, adverte a Autora são intrínsecos a determinadas
atividades e que apresentam utilidade pública e auxiliam no melhor desenvolvimento
de uma comunidade, fato que impede que sejam consideradas tipicamente
relevantes1017.
A análise para se aferir se uma conduta será socialmente útil levará em
conta uma ponderação de interesses e valoração da ação e o seu interesse em
relação à utilidade social que produz de forma generalizada naquela comunidade.
Por sua vez, Santiago Mir Puig afirma que o juízo de antinormatividade não
pode recair sobre o resultado, isto é, sobre a lesão efetivamente produzida ou a
exposição a uma lesão não justificada, senão somente naquilo que a norma pode
1014
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 248.
1015
FIORE, Carlo. L’Azione socialmente adeguata nel diritto penal. Napoli: Morano, 1966, p. 249.
1016
RUEDA MARTÍN, Maria Angéles. La adecuación social y el delito de detenciones ilegales. Revista
de Derecho Penal Y Criminología, n. 7, p. 449.
1017
RUEDA MARTÍN, Maria Angéles. La adecuación social y el delito de detenciones ilegales. Revista
de Derecho Penal Y Criminología, n. 7, p. 450.
168
realmente influenciar, qual seja na conduta que o indivíduo sabe que é proibida e
que, em tese, poderia ser evitada.1018
O Autor prossegue asseverando que o pressuposto da antinormatividade
será a avaliação ex ante da perigosidade de uma conduta, no entanto, o resultado
lesivo desta conduta não é condição imprescindível para a configuração da
antinormatividade, mas sim condicionante, a princípio, da tipicidade penal1019.
Nesta toada, Juarez Cirino dos Santos afirma que:

O conteúdo do injusto da conduta proibida não pode ser determinado


objejtivamente pela lesão do bem jurídico [desvalor do resultado], mas por
um conjunto unitário representado pela motivação concreta da vontade
[desvalor da acao] em face da lesão do bem jurídico [desvalor do resultado]:
decisivo para a caracterização do tipo de injusto é a valoração da conduta
em face do bem jurídico protegido1020 (itálicos no original)

Partindo de tal raciocínio e levando-se em conta a proteção aos bens


jurídicos, a relação entre antinormatividade e adequação social, deve ser analisada
se uma determinada conduta é desvalorada e causa uma lesão efetiva ou expõe a
perigo um bem jurídico, sendo, repita-se, irrelevante a ocorrência do resultado
danoso. Além disso, é necessário que tal conduta não esteja amparada por uma
causa excludente de antijuridicidade.
Assim, o critério da adequação social seria uma abertura hermenêutica e
permitiria a exclusão normativa de ações que, por estarem de acordo com as
normas de comportamento social ou da necessidade de uma comunidade não
podem ser valoradas como proibidas e que afetam um determinado bem jurídico.
Na esteira de Santiago Mir Puig, repita-se, não estamos a falar do desvalor
do resultado que não se confunde com o desvalor da conduta. Quando tratamos de
desvalor do resultado, estamos tratando do princípio da ofensividade ou lesividade.
Já quando analisamos o desvalor da conduta, estamos analisando se aquele fato,
embora seja típica, é antinormativo.
Para Juarez Tavares a valoração que deve ser feita pelo intérprete no
âmbito da norma, isto é, direção contrária à norma – desvalor do ato -, e consecução

1018
MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho penal. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994, p.8.
1019
MIR PUIG, Santiago. Antijuridicidad objetiva y antinormatividad en derecho penal. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 1, p. 5-28, jan./abr. 1994, p.8.
1020
SANTOS, Juarez Cirino dos. A dialética da norma de conduta. Revista de Direito Penal, Rio de
Janeiro, 21/22, p.64.
169
do objetivo visado pela conduta e proibido pela norma – desvalor do resultado -,
fixará os pressupostos de limitação do poder punitivo estatal, de acordo com a
manifestação da atividade humana.1021
Analisando alguns julgados do eg. Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre
adequação social, verificou-se que poucos tratam do tema de forma correta, sendo
que a maior parte deles diz respeito à conduta prevista no artigo 184, do Código
Penal, especificamente em relação à venda de CDs e DVDs piratas. Vejamos:

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - VIOLAÇÃO DE DIREITO


AUTORAL - ART.184, §2°, DO CP - DENÚNCIA REJEITADA -
FUNDAMENTO - ADEQUAÇÃO SOCIAL E ANTINORMATIVIDADE -
INADMISSIBILIDADE - VALOR CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDO -
PRESENÇÃO DE INDÍCIOS DE AUTORIA E PROVA DA MATERIALIDADE
- RECURSO PROVIDO.
- "O mero fato de uma conduta ser freqüente ou mesmo corriqueira não
significa que há tolerância por parte da sociedade. Tal argumento levaria à
abolição não só da pirataria, mas de grande parte do Código Penal. (RSE
n.1.0024.07.523660-4/001- Rel.Des. Flávio Leite; julgado em 16/06/2010).
- Há uma necessidade em se proteger os direitos autorais, uma vez que o
número de pessoas que burlam a proteção legal dos autores tem crescido,
deixando indefesos aqueles que sobrevivem de sua criação artística. Se
houvesse convalidação da sociedade com a referida prática da pirataria,
não existiriam diversas associações contrárias ao combate da referida
conduta.1022
.
O referido acórdão expressamente aponta que houve lesão a um bem
jurídico constitucionalmente tutelado e que há necessidade de proteção de direitos
autorais de autores que sobrevivem de sua produção artística, não reconhecendo a
adequação social da conduta do autor, já que não é considerado um indiferente em
relação aos valores sociais de uma comunidade.
Em relação à antinormatividade, muito embora haja sua menção na ementa
do acórdão, não houve, por parte da relatoria, qualquer desenvolvimento acerca do
tema.
Os dois acórdãos abaixo colacionados são exemplos de que os Tribunais
pátrios não analisam acuradamente o principio em comento. De plano, sem análise
do caso concreto, rejeitam a tese da adequação social ao simples argumento de que
condutas toleradas pela sociedade não podem estar no âmbito da normalidade de

1021
TAVARES. Juarez. Teoria do crime culposo. 5. ed. rev. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p.
287
1022
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. (6ª Câmara Criminal) - Rec em Sentido Estrito
1.0105.09.325244-0/001, Relator(a): Des.(a) Jaubert Carneiro Jaques. 26 mar. 2013. Belo Horizonte,
12 abr. 2013.
170
seu funcionamento desta mesma sociedade ou que o bem jurídico tutelado
apresenta relevância. Muitas das vezes, de forma quase automata, citam
precedentes do Superior Tribunal de Justiça10231024.

APELAÇÃO CRIMINAL - VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL -


IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA - APREENSÃO DE CDs E DVDs
FALSIFICADOS DESTINADOS À VENDA - ABSOLVIÇÃO - APLICAÇÃO
DOS PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E DA ADEQUAÇÃO
SOCIAL - IMPOSSIBILIDADE - RELEVÂNCIA DO BEM JURÍDICO
TUTELADO - TOLERÂNCIA DA SOCIEDADE - IRRELEVÂNCIA -
MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS - DELITO
CONFIGURADO - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO1025.

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL


NA MODALIDADE DO § 2º DO ART. 184 DO CÓDIGO PENAL -
DENÚNCIA REJEITADA COM FUNDAMENTO NA TEORIA DA
TIPICIDADE CONGLOBANTE, PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL E
AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL -
INADMISSIBILIDADE - RECURSO PROVIDO PARA CASSAR A DECISÃO.
- A disposição do art. 184, §2º, do Código Penal foi criada para proteger o
direito daqueles que sobrevivem de sua produção artística e intelectual
tutelado constitucionalmente pelo art. 5º, XXVII, da CR/88. - O princípio da
adequação social não pode ser utilizado para afastar a norma penal,
principalmente quando a conduta combatida
atinge, além dos sujeitos passivos, o Estado e a sociedade. - Comprovadas
a autoria e materialidade do delito, necessário o processamento da ação
penal. - Recurso ministerial provido1026.

1023
O STJ no julgamento do RE no 1.193.196/MG de Relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis
Moura e que deu origem à Sumula 592, assim decidiu: “(...) Com efeito, esta Corte firmou
entendimento no sentido de que a conduta vender CD ́s e/ou DVD ́s falsificados, não pode ser tida
como socialmente adequada, haja vista referida conduta não afastar a incidência da norma
incriminadora prevista no artigo 184, § 2o, do Estatuto Repressivo Penal (violação de direito autoral),
além de consubstanciar em ofensa a um direito constitucionalmente assegurado (artigo 5o, inciso
XXVII, da Constituição Federal). O fato de, muitas vezes, haver tolerância das autoridades públicas
em relação a tal prática, não pode e não deve significar que a conduta não seja mais tida como típica,
ou que haja exclusão de culpabilidade, razão pela qual, pelo menos até que advenha modificação
legislativa, incide o tipo penal, mesmo porque o próprio Estado tutela o direito autoral. (...)”. BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n 1.193.196/MG. Recurso Especial representativo de
controvérsia. Penal. Ofensa ao art. 184, § 2°, do cp. Ocorrência. Venda de cd's e dvd's "piratas [...].
Rel.: Min.: Maria Thereza de Assis Moura, 26 set. 2012. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 04 dec.
2012.
1024
“Súmula 502: Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime
previsto no art. 184, § 2º, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas”. BRASIL. Superior
Trobunal de Justiça. Súmula 502. : Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em
relação ao crime previsto no art. 184, § 2º, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas.
Terceira Seção. 23 out.2013. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 28 out. 2013.
1025
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. (1ª Câmara Criminal). Apelação Criminal
1.0024.05.812249-0/001. Relator(a): Des.(a) Márcia Milanez. 16 jun. 2010. Belo Horizonte, 30 jul.
2010.
1026
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. (1ª Câmara Criminal). Recurso em Sentido Estrito
1.0024.07.523660-4/001. Relator(a): Des.(a) Flávio Leite. 16 jun. 2010. Belo Horizonte, 30 jul. 2010.
171
Já no julgado abaixo mencionado, muito embora não haja menção expressa
na ementa acerca da análise da antinormatividade, verifica-se no corpo do voto, que
o Relator, de forma correta afirma que o princípio da adequação social tem que
como função servir de norte se uma conduta é desvalorada e ensejadora da
caracterização da tipicidade material de uma fato, a princípio típico.
No entendimento do Relator, as condutas previstas no 184, § 2º do CP são
socialmente adequadas, não restando configurada a sua tipicidade material e, por
consequencia, lesão jurídica tutelada pela norma, motivo pelo qual ele absolveu o
acusado.

APELAÇÃO CRIMINAL - VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL -


CONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELA CORTE SUPERIOR
DESTE TRIBUNAL - ADEQUAÇÃO SOCIAL - CASO CONCRETO -
ABSOLVIÇÃO - MEDIDA QUE SE IMPÕE. I - O Direito penal moderno não
atua sobre todas as condutas moralmente reprováveis, mas seleciona
aquelas que efetivamente ameaçam a convivência harmônica da sociedade
para puni-las com a sanção mais grave do ordenamento jurídico que é - por
enquanto - a sanção penal. II - O princípio da adequação social assevera
que as condutas proibidas sob a ameaça de uma sanção penal não podem
abraçar aquelas socialmente aceitas e consideradas adequadas pela
sociedade. V.V. PENAL - VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL -
ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - AUTORIA E MATERIALIDADE
COMPROVADAS - DOLO EVIDENCIADO - CONFISSÃO JUDICIAL -
PROVA TESTEMUNHAL - MANTIDA A CONDENAÇÃO - REINCIDÊNCIA
AFASTADA - NECESSIDADE DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA - RECURSO
CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. - Responde pelas sanções do
artigo 184 §2º do Código Penal o agente que, com intuito de lucro direto ou
indireto, vende ou expõe à venda, cópias de VHS reproduzidos com
violação do direito do autor, do direito de artista intérprete ou executante, ou
do direito do produtor de fonograma. 1027

Também, neste ponto do trabalho, não podemos nos esquecer da ausência


de lesividade ao bem jurídico acarretada por uma conduta adequada socialmente.
O princípio da lesividade ou ofensividade deve atuar como fator de
desligitimação da punição de condutas quer no campo legislativo, quer no âmbito do
poder judiciário, esvaziando a criminalização e a punição de condutas que não
causem qualquer lesão efetiva ou exposição a perigo de bens jurídicos protegidos.
Em relação ao legislador, o fator de deslegitimação do princípio da
lesividade, impede-o de criar tipos penais que não violem qualquer bem jurídico. Já
para o julgador, referido princípio é dirigido para que na análise do caso concreto,
vede a condenação de acusados que tenham praticados certas condutas que,
1027
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. (5ª Câmara Criminal). Apelação Criminal
1.0024.03.146587-5/001. Relator(a): Des.(a) Alexandre Victor de Carvalho. 06 out. 2009. Belo
Horizonte, 19 out. 2009.
172
embora formalmente típicas, não revelem uma efetiva lesão ou exposição à lesão de
um bem jurídico.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. Até a Revolução Francesa, o poder punitivo estatal era ilimitado. Nesta


época, as penas correspondentes aos delitos praticados eram desproporcionais,
cruéis e tinham o nítido propósito de deixar no corpo do condenado a marca da
punição até como forma simbólica de prevenção da prática de novos crimes.
2. No entanto, com a influência dos postulados Iluministas, os estudiosos
do direito, com base na teoria do contrato social, começaram a estudar uma
mudança no sistema de punição com o objetivo de racionalizar o estudo do Direito
Penal, elaborando um método para tanto, priorizando-se o estudo da teoria do crime.
3. Verificou-se que uma das consequências desta reelaboração do Direito
Penal foi o desenvolvimento da teoria do bem jurídico.
4. Esta pesquisa apresentou a evolução da teoria do bem jurídico com as
suas vicissitudes, seus pontos positivos e negativos. Os estudos iniciais devem ser

173
creditados a Johann Anselm von Fuerbach, que ainda não utilizava o termo “bem” e
em cuja concepção entendia que o Estado poderia usar da coação física e
psicológica frente aos seus cidadãos para evitar uma lesão aos seus direitos
subjetivos e, via de consequência, impedir a pratica de delitos, o que de fato
ocorreu.
5. Perpassando por Johann Michael Franz Birnbaum, devendo-lhe ser
creditado o uso do nome “bem” para se chamar o que hoje denomina-se bem
jurídico, este trabalho abordou o tratamento do bem jurídico sob a concepção
neokantista do delito, principalmente na época do Nacional-socialismo na Alemanha
Nazista em que seu conceito foi praticamente desmaterializado para justificar a
reformulação da teoria do delito, tendo como primazia a proteção da comunidade em
detrimento do individuo, e o recrudescimento da legislação penal.
6. Com o finalismo Hans Welzel, muda o conceito de bem jurídico cuja
função seria a de cumprir seu papel de proteção dos valores ético-sociais, não
podendo ser considerados como simples pecas de museu.
7. No entanto, com os desafios surgidos com modernidade e que, por
óbvio, influenciaram a teoria do bem jurídico, constatou-se uma aumento gradual na
proteção de bens jurídicos coletivos, a antecipação da punição das barreiras de
punição, através da criação de crimes de perigo abstrato, punição de atos
preparatórios ou de vítimas diluídas.
8. Verificou-se que o bem jurídico deve representar um padrão para se
comprovar a racionalidade e legitimação do poder punitivo estatal, por tal razão não
está desvinculado da sua função politico-criminal, cujo desenvolvimento é muito bem
apresentado pelo enfoque funcionalista de Claus Roxin.
9. Igualmente na presente pesquisa, cnclui-se que a teoria do bem
jurídico se vincula aos postulados e valores constitucionais, obrigando o legislador a
criminalizar ou não condutas tendo como limite o texto constitucional, sem se
esquecer da proteção aos direeitos fundamentais.
10. A adequação social estará intimamente ligada ao conceito de ação,
pois o sujeito, ao tomar uma decisão de praticar determinada conduta faz uma
representação, um juízo valorativo.

174
11. A partir deste juízo valorativo, destaca-se a análise da conduta, por tal
razão é que se conclui que a adequação social está inserida em uma perspectiva
normativa.
12. Uma das críticas que impedem a aceitação da adequação social é o
fato de que o próprio Hans Welzel titubeou sobre a sua localização na teoria do
delito. Em um primeiro momento, ele a colocou como uma causa de exclusão da
tipicidade. Posteriormente, como uma causa da exclusão da antijuridicidade
consuetudinária e, por fim, como uma causa de interpretação do tipo penal.
13. A conclusão que se chega neste trabalho é que a adequação social
seria uma abertura hermenêutica e que se irradiaria por todos os elementos do delito
e que permitiriam a exclusão normativa de condutas que, por estarem de acordo
com as normas de comportamento social ou da necessidade de uma comunidade
não podem ser valoradas como proibidas e que afetem um determinado bem
jurídico.
14. A adequação social pode ser aplicada em diversas situações e que
foram abordadas nesta pesquisa e cujas soluções serão apresentadas logo mais
abaixo e que julgo ser as mais pertinentes a cada hipótese.
15. Em relação às intervenções médico-cirúrgicas é necessário salientar
que inicialmente a discussão cingiu-se na questão do consentimento expresso dado
pelo paciente e o consentimento presumido, cuja manifestação de vontade do
paciente é impossível.
16. Diferenciou-se as intervenções médico-cirúrgicas em curativas (ou
terapêuticas), em que o consentimento nem sempre está presente, da não curativa
(ou estética). Deve-se levar em conta, ainda, nas curativas que se o resultado foi
favorável ou não. Considerando o último caso, tanto nas cirurgias com resultado
favorável ou não, a conduta do médico não será valorada como negativa, podendo
se inserir nas hipóteses de adequação social. Tal conclusão não pode ser estendida,
entretanto, para os casos de ortotanásia ou morte assistida, Entento que tal conduta
é atípica, não pela adequação social, mas pela autodeterminação do paciente.
17. Em relação ao erro de proibição e a adequação social, verifica-se a sua
questão no tema da falta de consciência da ilicutude, em especial, nos casos que
envolvem a multiculturalidade.

175
18. Com a globalização, observa-se um grande fluxo imigratório de
pessoas para os países europeus e da América do Norte. É fato que os imigrantes,
muitas das vezes, mantém seus costumes como se estivesse no seu país de
origem, mas que são considerados crimes nos países em que residem.
19. A conclusão alcançada neste trabalho e, na esteira de Renato Jorge de
Mello Silveira, é a do reconhecimento da adequação em sede pré-típica. Justificando
este posicionamento, foi apresentado caso de uma mãe que foi denunciada no
Estado de São Paulo pelo crime de lesões corporais no âmbito da Lei Maria da
Penha e que praticou escarificações na sua filha menor como ritual de iniciação
desta na umbanda. Bem como foi trazido neste trabalho o tratamento do indígena.
Muito embora o Poder Judiciário e o Ministério Público entendam que tais
comportamentos seja atípicos, em ambos os casos a decisão não se fundamentam
na adequação social, o que demonstra a ignorância dos órgãos da persecução penal
sobre o tema.
20. Da mesma forma, é tratada nesta pesquisa a questão da adequação
social versus as lesões decorrentes de práticas desportivas. Foi apresentada a
diferenciação entre atividades esportivas em que o uso da violência é intrínseco à
sua prática, tais como ocorre no boxe e nas artes marciais, daquelas em ela é
eventual, como no futebol.
21. No caso de lesões decorrentes de atividades esportivas, filio-me ao
entendimento de Renato Jorge de Mello Silveira, para quem a análise deve ser feita
de em sede pré-típica, reconhecendo-se a adequação social, desde que o esporte
seja reconhecido e aceito, pois, do contrário, a adequação social não será aplicada.
22. Nas hipóteses de lesões decorrentes do jus corrigendi decorrentes de
pais, tutores, professores, dentre outros, mesmo que haja algum tipo de lesão
decorrente do poder de correção, e dentro de uma normalidade, como bem assevera
Carlo Fiore, tais comportamentos podem ser considerados socialmente adequados.
23. Referentemente aos maus tratos de animais, demostrou-se na
presente pesquisa que a farra do boi e da vaquejada são manifestações culturais
dos povos que colonizaram o Brasil, no entanto, a conclusão atingida é de que tais
comportamentos não podem ser considerados socialmente adequados.
24. Com respeito ao uso de drogas, embora esteja tramitando no STF o
RE 635.659/SP, acerca da constitucionalidade ou não do artigo 28 da Lei de Drogas,

176
observou-se que não se abordou na discussão do processo o tema da adequação
social. E, muita embora o reconhecimento da declaração de constitucionalidade ou
não da gere mais segurança jurídica, o fato é que a adequação social poderia ter
sido utilizada como princípio hermenêutico para a aplicação da lei penal em
situações como esta.
25. A adequação social se relaciona com outros princípios penais, tais
como o princípio da insignificância e o da lesividade, corolários que são do princípio
da intervenção mínima que pretende que o Direito Penal só deve atuar naquelas
hipóteses cuja resolução não pode ser obtida pelos outros ramos do direito,
limitando, portanto, a intervenção penal às lesões mais graves aos bens jurídicos
mais importantes.
26. Embora haja uma semelhança entre adequação social e insignificância,
a solução que se reputa mais correta é a dada por Maria Paula Bonifácio Ribeiro de
Faria que entende que a análise deve ser feita no caso concreto e se o ilícito se
deixa a definir por uma ideia de danosidade social, será o caso de se reconhecer a
adequação social.
27. Em relação ao princípio da ofensividade, de início, vale ressaltar que
para se aferir a lesividade de uma conduta, é preciso verificar se houve um desvalor
do resultado, diferentementemente do ocorre nas hipóteses de adequação social em
que o magistrado, no caso concreto, analisará se as ações são desvaloradas para
só entao decidir se reconhecerá ou não a adequação social.
28. Com respeito a controvérsia e a resistência de o Poder Judiciário
reconhecer e aplicar a adequação social, na esteira de Renato Jorge de Mello
Silveiro, entendo ser cabível a implementação de alguns limites ou critérios para
racionalizar e legitimar o seu emprego tais como ocorreu com o princípio da
insignificância, cujos critérios foram estipulados pelo STF.
29. Assim, torna-se necessário utilizar dos critérios de Renato Jorge de
Mello Silveira que entende que a adequação social não deve ser reconhecida e
aplicada se afetar o princípio da dignidade humana, bem como se a mens legis não
autorizar, tais como ocorre nos casos de violência doméstica.
30. A norma penal, de acordo com Karl Binding, seria um mandamento e
que gera um dever, assumindo a forma de proibição ou mandamento. Assentada tal

177
premissa, conclui-se que norma e tipo penal não se confundem, no entanto, através
deste se vislumbrará a norma penal e, via de consequência, a matéria de proibição.
31. A antinormatividade de uma conduta que se amolda a um tipo penal
será, por consequência, antinormativa. Se um indivíduo pratica um homicídio
amparado por uma causa de exclusão da antijuridicidade, pratica uma conduta
antinormativa, mas não antijurídica. Por isso Cláudio Brandão afirma que a relação
entre tipicidade e antinormatividade é necessária, enquanto a relacao desta com a
antijuridicidade é contigente.
32. Claudio Brandão preconiza que o conteúdo material do injusto é o bem
jurídico, sendo desnecessária a diferenciação entre norma de valoração e de
determinação adotada por Jesús-Maria Silva Sanchéz. Assim, a relacao entre a
antinormatividade e o bem jurídico é indispensável, pois através da realização do
juízo de lesividade do bem jurídico tutelado será feita a limitação da aplicação da
norma.
33. É necessária, outrossim, fazer uma correlação entre antinormativa e
legalidade deve ser analisada sob o aspecto dos elementos normativos, em que o
intérprete utilizar-se-á de conceitos que não são depreendidos do tipo penal.
34. Muito embora possa se entender que a utilização dos elementos
normativos derrogaria o princípio da legalidade, entendo não ser o caso. O
intérprete, ao se deparar com tipos penais elaborados com elementos normativos,
lhe será permitido cumprir o limite material da incriminação até o limite permitido
pelas valorações sociais cabíveis na hipótese e que correspondam ao sentido que o
legislador previu, realizando, portanto, o juízo de antinormatividade.
35. A adequação social penetrará nos juízos de valor que a norma
pressupõe no intuito de tentar solucionar as lacunas existentes e que estão
insuficientemente reguladas pelo tipo penal e que se relacionam com os
comportamentos éticos-sociais de uma coletividade. O juízo de antinormatividade,
por sua vez, não recairá sobre um resultado e, sim, sobre a avaliação ex ante de
uma conduta.
36. Portanto, o critério da adequação social seria uma abertura
hermenêutica e permitiria a exclusão normativa de ações que, por estarem de
acordo com as normas de comportamento social ou da necessidade de uma

178
comunidade não podem ser valoradas como proibidas e que afetam um determinado
bem jurídico.

179
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