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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E EMPRESARIAIS


CURSO DE DIREITO

Regiane de Cássia Souza Silva

Lacunas da Lei: Estudo sobre decisão que aplicou a Lei Maria da Penha para
homem.

LONDRINA
2010
Regiane de Cássia Souza Silva

Lacunas da Lei: Estudo sobre decisão que aplicou a Lei Maria da Penha para
homem.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentada ao


curso de graduação em direito da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, como requisito
para obtenção do titulo de bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Giovanne H.B. Schiavon

LONDRINA
2010

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REGIANE DE CÁSSIA SOUZA SILVA

Lacunas da Lei: Estudo sobre decisão que aplicou a Lei Maria da Penha para
homem.

Trabalho de conclusão de curso apresentada ao Curso


de Graduação de Direito, da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção
do titulo de bacharel.

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________________
Prof.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________
Prof.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________
Prof.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Londrina, __ de ___________ de 2010.

3
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus pela fé, força e amor concedidos no alcance da


realização deste projeto sonhado, idealizado e concretizado de formação no curso de
Direito.

Gratidão que estendo a todos os meus familiares que direta e indiretamente


contribuíram para a realização deste sonho, em especial aos meus pequenos Lucas e
Leonardo pelo amor, carinho e compreensão pelos momentos que deixamos de estar
juntos enquanto me dedicava a este trabalho.

À Pontifícia Universidade Católica, instituição em que fui recebida e trilhei meu


caminho acadêmico com confiança, ao corpo docente por todos os ensinamentos
técnicos, éticos e humanitários do Direito e a todos os funcionários pela boa vontade e
colaboração despendidas.

Ao meu orientador pela paciência, auxilio, pelos e-mails respondidos e por ter
aceitado minha tese.

A todos os meus amigos individualmente por fazerem parte da minha trajetória


acadêmica e da minha vida, pelas discussões, pelas risadas, pelas lições de vida, enfim
pelas lembranças dos momentos que passamos juntos.

4
SILVA, Regiane de Cássia Souza.Estudo sobre decisão que aplicou a Lei Maria da
Penha para homem. 2009. 48. Trabalho de Conclusão de Curso de Direito – Pontífica
Universidade Católica do Paraná, Londrina, 2010.

RESUMO

Este trabalho tem por objeto a análise da decisão que aplicou a Lei Maria da
Penha, criada para a tutela especifica das mulheres vitimas de agressão doméstica e
familiar, para a proteção de um homem. Para tanto será estudado o conceito de lacuna
da lei, segundo o entendimento de Norberto Bobbio; sendo exposta a definição e
requisitos da analogia, meio de integração utilizado pelo magistrado na citada decisão;
abordando os aspectos pontuais da Lei como: finalidade, contexto de sua criação,
inovações.

Palavras-chaves: Lacuna da lei - analogia - Lei Maria da Penha- aplicação para


homens.

5
ABSTRACT

This work has for object the analysis of the decision that applied the Law Maria
of the Penha, created for the guardianship specifies of the women victims of domestic
and familiar aggression, for the protection of a man. For in such a way the concept of
gap of the law will be studied, according to agreement of Norberto Bobbio; being
displayed the definition and of requisite the analogy, way of integration used for the
cited magistrate decision; approaching the aspects prompt of the Law as purpose,
context of its creation, innovations.

Word-keys: Gap of the law - analogy - Law Maria of the Penha- application for
men.

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1.INTRODUÇÃO

Em um cenário de violência doméstica, onde a mulher sempre foi vitima em


maior incidência, sendo pouco provável a punição do ofendido, surgi no ordenamento
jurídico brasileiro, a polêmica, Lei Maria da Penha, a qual recebeu este nome em
virtude da luta de uma mulher agredida e que por duas vezes foi vitima de tentativa de
homicídio, o agressor seu próprio companheiro, que por muitos anos ficou impune,
sendo que Maria da Penha teve que postular na Corte Internacional de Justiça, para que
a punição contra o ex companheiro se efetivasse, tanto foi eficaz sua busca por justiça,
que nasceu a Lei intitulada com o seu nome, dando mais rigor às penalidades e
celeridade aos processos em que mulheres são vitimas de toda espécie de agressão por
parte de seus entes chamados “queridos”.

Com a mutabilidade da conduta social, muitos passarão a reconhecer que


embora em número menor, os homens também poderiam ser vitimas de agressão em
âmbito familiar, por parte de suas companheiras, merecendo desta forma uma tutela
especifica, como a concedida as mulheres. Compartilhando desse entendimento um
magistrado de Mato Grosso, aplicou a citada Lei na defesa de um homem.

O presente trabalho tem o escopo de analisar a decisão proferida pelo juiz titular
do Juizado Especial Criminal Unificado de Cuiabá, Mário Roberto Kono de Oliveira,
em outubro de 2008, por meio da qual o magistrado autorizou a aplicação da Lei Maria
da Penha, por analogia, em caso de agressão doméstica contra um homem,
determinando medidas protetivas de urgência em favor do autor, entendendo estar
devidamente instruída a ação, comprovando as agressões física, psicológica e financeira
praticadas pela ré.

Para o magistrado a aplicação da Lei é perfeitamente cabível, haja vista que


sendo possível a sua aplicação de uma norma, por analogia, para benefício do réu, será
óbvia a sua aplicação para beneficiar a própria vitima.

O n. Juiz reconheceu a proteção à mulher objetivada com a criação da Lei Maria


da Penha, porém destacou que, embora em número menor, existem vários casos em que

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o homem é vítima de violência doméstica por parte de suas companheiras, que em
momentos de fúria agridem física, moral, financeira, e psicologicamente seus parceiros.

Afirmou ainda o magistrado, não ser vergonhoso para o homem procurar o


Judiciário para buscar a cessação das agressões sofridas, e sim ato de sensatez, sendo
função do Poder Judiciário solucionar esses conflitos em busca da paz social.

Para a realização de tal análise partiremos do estudo sobre lacunas da lei, sob a
perspectiva da doutrina de Norberto Bobbio, o qual se utiliza do conceito de completude
do ordenamento para definir lacuna, sendo esta a conseqüência de um ordenamento
incompleto, circunstância em que não se pode encontrar dentro do mesmo ordenamento
uma solução para todos os casos que se mostre no ambiente social, havendo eventuais
comportamentos humanos, que não estejam por ele regulados.

Em um segundo momento, trataremos do conceito de analogia, meio de


integração utilizado pelo Magistrado ao proferir a decisão em discussão, expondo sua
previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro, os requisitos para sua aplicação,
distinção da interpretação extensiva e da indução.

Discorreremos sobre a Lei Maria da Penha, considerando o contexto em que foi


elaborada e aprovada, expondo os objetivos visados com a sua criação, qual seja de
proteção à mulher agredida em âmbito doméstico, familiar e/ou em suas relações
afetivas, penalizando qualquer tipo de violência baseada no gênero, tendo em vista que
diante da realidade social ainda vigorante é no seio familiar, que as mulheres têm sido
vitimas de todo tipo de agressão (física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial) em
decorrência de sua peculiar condição de mulher, trataremos sobre as principais
inovações trazidas pela Lei, os sujeitos que podem figurar nos pólos ativo e passivo das
agressões.

A mutabilidade e dinâmica do Direito decorrente da mudança constante de


valores dentro da sociedade corroboram para o surgimento de lacunas na legislação, o
que não implica dizer haver lacuna no ordenamento jurídico, pois este mesmo direciona
as formas de integração, ou seja, preenchimento de uma lacuna legal, não havendo lei
específica a ser aplicada para determinado caso, a própria lei estabelece a analogia, os

8
costumes, os princípios gerais do direito (art.4º, LICC), como instrumentos de
integração, não permitindo que o caso concreto, não previsto especificamente na lei,
fique sem solução jurisdicional.

Ao se aplicar a analogia para preenchimento de uma lacuna legislativa o


interprete deverá se utilizar de critérios para análise de que realmente o caso não
previsto é análogo ao previsto na legislação, sendo que o elemento diferencial não seja
essencial.

Diante das exposições supracitadas objetiva-se posicionar sobre a possibilidade


de aplicação da Lei Maria da Penha, criada precipuamente para tutela especifica das
mulheres, na proteção de homens.

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2) LACUNAS DA LEI

2.1)Conceito de lacunas

Nosso primeiro capítulo tratará sobre o conceito de lacunas, o qual será exposto
conforme estudos do jurista italiano Noberto Bobbio, que em seu clássico livro Teoria
do Ordenamento Jurídico, ao conceituar lacunas, utiliza-se do conceito da completude
do ordenamento jurídico, no sentido de que a explicação sistêmica do Direito, sua
organização como sistema, confere-lhe dois predicados: coerência e completude,
vejamos: “por “completude” entende-se a propriedade pela qual um ordenamento
jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma
norma se chama geralmente de “lacuna” (num dos sentidos do termo “lacuna”),
“completude” significa “falta de lacunas”. Em outras palavras um ordenamento
jurídico é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular
qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado
com uma norma tirada do sistema”1(sem grifo no original).

Assim, um ordenamento possuirá completude quando dele possa se extrair uma


norma, uma solução, para qualquer caso que se mostre dentro da sociedade, não
havendo nenhum comportamento humano, seja na forma proibitiva, seja na forma
permissiva que não esteja regulado.

No ordenamento jurídico brasileiro, a lei prevê que em caso de lacuna a solução


deverá ser dada por outros meios, sendo vedado ao magistrado deixar de resolver a lide
por ausência de regra expressa para o caso, a LICC (Lei de Introdução ao Código Civil
nº 4.567/1942), estabelece no art.4º, que diante de uma lacuna o juiz deverá valer-se da
analogia, costumes e princípios gerais do Direito para solucionar a demanda. Prevê o
citado dispositivo: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais do Direito”.

A regra supracitada está contida ainda no diploma processual, art.126, com a


seguinte redação: “o Juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade

1
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.115

10
da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá a
analogia, aos costumes e aos princípios gerais do Direito”(Código de Processo Civil, Lei nº5.869/1973).

A definição técnica de Bobbio para a completude se expressa da seguinte forma:


“...podemos dizer que um ordenamento é completo quando jamais se verifica o caso de
que a ele não se podem demonstrar pertencentes nem uma certa norma nem a norma
contraditória”2.

Valendo de tal definição, o autor apresenta a relação entre coerência e


completude, sendo que na ausência daquela há uma contradição no sistema, existindo
para determinado caso tanto a norma permissiva quanto a proibitiva, a eliminação do
problema, neste caso, se dará com a exclusão de uma das normas, já na ausência desta
(completude) o que ocorre é justamente o inverso, falta a previsão normativa, não
havendo nem a norma permissiva nem a proibitiva para determinado comportamento,
neste caso, deverá ocorrer a exclusão da situação não prevista. 3, em ambos casos busca-
se a unidade do ordenamento, no primeiro caso, chamada de negativa, com a
eliminação das contradições, no segundo caso, chamada de positiva, com o
preenchimento de lacunas.

Segundo Bobbio, o jurista Carnelutti, vislumbra na primeira hipótese uma


situação de antinomia, havendo mais normas do que deveria, devendo ser solucionada
pelo intérprete com a supressão do que está a mais, na segunda hipótese (das lacunas)
no entanto, o interprete deverá, ao contrário, acrescentar o que falta.4

A completude será uma característica essencial para os ordenamentos em que


tenham como idéias basilares: i) a obrigatoriedade do juiz de julgar todas as
controvérsias que se lhe apresentarem; ii) o dever do magistrado de decidí-las,
utilizando-se de uma norma pertencente ao sistema. Em um ordenamento que permita a
aplicação, pelo magistrado, da equidade, em caso de lacuna, não seria imprescindível a
2
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.115
3
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.116
4
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.117

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completude, como por exemplo, o ordenamento inglês, tendo em vista que a cada nova
situação seria, então, completável.

2.2)O dogma da completude

Para Bobbio, o dogma da completude, o qual significa “princípio de que o


ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz, em cada caso, uma solução
sem recorrer à equidade”5 predomina, no século XX, na teoria jurídica européia de
origem romana, sendo, por alguns, considerado ponto forte do positivismo jurídico.

Assim, qualquer solução seria alcançável dentro do próprio ordenamento, não


sendo necessária a busca de outras fontes, senão a legislativa, do direito posto, criado
pelo Estado. O dogma da completude, segundo Bobbio, nos tempos modernos, compõe
a concepção estatal do Direito, sendo utilizado como argumento de perpetuação do
monopólio estatal de criação jurídica, para ele “na medida que o Estado moderno
crescia em potência, iam-se acabando todas as fontes de direito que não fossem a Lei
ou o comando do soberano. A onipotência do Estado reverteu-se sobre o Direito de
origem estatal, e não foi reconhecido outro Direito senão aquele emanado direta ou
indiretamente do soberano”6.

Desta forma, o reconhecimento da existência de lacunas implicaria admitir a


insuficiência estatal como fonte única de criação do Direito, daí a função de afirmação
do dogma da completude, de manutenção do monopólio jurídico estatal, pregar a idéia
de que o ordenamento jurídico, cujas regras foram criadas exclusivamente pelo Estado,
é completo, suprimindo qualquer solução que não fosse a desejada pelo Estado,
perpetuando assim, a dominação estatal sobre a sociedade.

Nesse contexto surgem as grandes codificações e a idéia de que toda solução


jurídica possível poderia e deveria exclusivamente ser encontrada na lei, posta e imposta

5
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.119
6
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.120

12
pelo Estado, sentimento este chamado por Bobbio de “fetichismo da lei” 7, uma
admiração incondicional pela lei, acreditando-se que qualquer lide que se apresentasse
ao magistrado poderia ser solucionada com uma norma expressa. Derivando desse
momento a escola da exegese, a qual exprime justamente esse sentimento de supremacia
e onipotência dos códigos, segundo a qual não haveria lacunas no ordenamento, o qual é
completo.

2.2.1)Crítica ao dogma da completude

O movimento do fetichismo da lei, foi alvo de críticas, surgindo uma reação


contra aquela idéia de suficiência e onipotência das codificações, tendo como maior
representante o jurista alemão Eugen Ehrlich, o qual afirmou que o pensamento do
jurista tradicional, fundado do dogma da completude, era composto por três
preposições, vejamos:

“1) a proposição maior de cada raciocínio jurídico deve ser uma norma
jurídica;
2) essa norma deve ser sempre uma lei do Estado;
3) todas as normas devem formar no seu conjunto uma unidade”8.

Ao fazer tal critica contra o entendimento do jurista tradicional, Erlich visava


refutar o conformismo da sociedade diante da dominação estatal, da qual nascera e
predominava na jurisprudência, o dogma da completude.9

Bobbio expõe a argumentação do movimento, chamado de Direito livre, contra o


estadismo, segundo a qual traz dura critica ao dogma da completude e ao fetichismo
legislativo, proposições inseparáveis, estando como foco central à discussão acerca da
existência ou não de lacunas.

7
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.121
8
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.122
9
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.122

13
Para o primeiro movimento (do fetichismo legislativo) não existem lacunas no
ordenamento, ao contrário, o movimento do Direito livre afirma que o ordenamento está
cheio de lacunas, cabendo ao magistrado, valendo-se de sua capacidade criadora,
preenchê-las, segundo Bobbio, o movimento do Direito livre motiva-se,
fundamentalmente, pelas seguintes razões:

1) Descoberta das insuficiências da codificação;


2) Transformação da sociedade em decorrência da revolução industrial10.

Surgindo dessa forma um descompasso entre o direito constituído e a realidade


social, neste contexto grande papel teve a filosofia, sociologia jurídica e ciências
sociais, as quais colocaram como pauta de estudo a relação de dominação do Estado
diante da sociedade, fornecendo desta forma argumentação para os juristas na critica
contra o dogma da completude.

Representada por Ehrlich, a sociologia jurídica visava demonstrar que o Direito


era fenômeno social, desta forma, resultados absurdos decorreriam da tentativa de fazer
do Direito produto do Estado, tais como a crença da completude do Direito codificado11.

Parece ser esse o principal motivo da existência das lacunas, a dinâmica das
relações sociais, ao passo que a sociedade evolui, novas questões, ainda que não
previstas pelo legislador, posto que impossível a previsão de todo e qualquer
comportamento humano futuro, são apresentadas ao magistrado que, por meios outros
como equidade, analogia, costume, princípios gerais do direito, deve decidir a lide.

2.3)As críticas ao movimento do Direito livre

Muitos adversários se colocaram diante do movimento do Direito livre, para os


quais o movimento representava a ressurreição do direito natural, já superado, e que

10
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.123/124
11
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.125

14
aceitar a livre pesquisa implicaria em ferir o princípio da legalidade, dando lugar a
insegurança jurídica, sendo que a completude, segundo os positivistas, constitui
característica essencial do ordenamento jurídico. Porém para a articulação de tal critica
mostrava-se necessária, a formulação de uma argumentação satisfatória, dessa
necessidade nasceram duas teorias para a justificação da completude do ordenamento,
as quais foram analisadas por Bobbio, vejamos:

2.4) O argumento do espaço jurídico vazio

Defendido pelo positivista Karl Bergbohm, o argumento do espaço vazio


jurídico foi descrito por Bobbio da seguinte forma: “toda norma jurídica representa
uma limitação à livre atividade humana; fora da esfera regulada pelo Direito, o homem
é livre para fazer o que quiser. O âmbito da atividade de um homem pode, portando,
ser dividido, do ponto de vista do Direito, em dois compartimentos: aquele no qual é
regulada por normas jurídicas, e que poderemos chamar de espaço jurídico pleno, e
aquele no qual é livre, e que poderemos chamar de espaço jurídico vazio” 12, segundo
essa teoria, o fato ou é regulado pelo ordenamento e neste caso juridicamente relevante
ou não é regulado, sendo juridicamente irrelevante.

Desta forma, não haveria que se falar em lacuna do Direito, posto que o não
regulamentado é juridicamente irrelevante, ou seja, o que não está no ordenamento, não
faz parte do espaço jurídico pleno, mas sim do espaço jurídico vazio, sendo algo
indiferente ao ordenamento. Deve se observar que esta defesa, este argumento, está
presente também na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.

Em síntese pode se afirmar que segundo esta teoria não existe lacunas porque
onde falta o ordenamento jurídico, falta o próprio Direito.13

2.4.1) Crítica ao argumento do espaço jurídico vazio

12
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.129
13
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.132

15
Porém Bobbio faz a seguinte crítica à teoria acima exposta:

A teoria está fundada em um conceito muito discutível, qual seja do espaço


jurídico vazio ou juridicamente irrelevante, sendo equivocada a idéia de que o permitido
pode ser considerado juridicamente irrelevante, neste caso estaria excluindo a
modalidade das normas permissivas do ordenamento, fazendo-se necessário, desta
forma, distinguir duas esferas de liberdade: uma juridicamente relevante e outra
irrelevante, o que seria, segundo Bobbio, impossível 14, neste sentido, seria difícil falar
em juridicamente irrelevante, tendo em vista que no momento em que a liberdade de
agir de um não está protegida, está protegida a liberdade do outro de exercer a força. A
relevância, seguindo Bobbio, apenas muda a relação entre o direito e o dever15.

Outra teoria foi desenvolvida para explicar a não existência de lacunas no


ordenamento, a da norma geral exclusiva, conforme passa a expor:

2.5) A teoria da norma geral exclusiva

Ao inverso, do argumentado pela teoria do espaço jurídico vazio, para a teoria da


norma geral exclusiva, as lacunas não existem porque o Direito nunca falta, argumento
defendido pelos juristas E. Zitelmann e Donato Donati, é resumido por Bobbio da
seguinte forma:“uma norma que regula um comportamento não só limita a
regulamentação e, portanto, as conseqüências jurídicas que desta regulamentação
derivam para aquele comportamento, mas ao mesmo tempo exclui daquela
regulamentação todos os outros comportamentos16, ou seja, uma norma que proíbe
determinado comportamento, exclui da proibição qualquer outro comportamento não
compreendido naquela chamada de norma particular inclusiva, assim qualquer

14
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.130
15
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.132
16
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.133

16
comportamento humano se enquadraria ou na norma particular inclusiva ou na norma
geral exclusiva.

Podemos elucidar a teoria dando um exemplo: em determinado lugar é proibido


usar roupas pretas (norma particular inclusiva), desta forma, estaria permitido o uso de
roupas de qualquer outra cor que não fossem pretas (norma geral exclusiva). Mas
Bobbio, novamente, levanta-se contra a teoria, no seguinte sentido:

2.5.1) Critica à teoria da norma geral exclusiva

O ponto fraco desta teoria, na visão de Bobbio, consiste em que, a mesma deixa
de dizer que : “num ordenamento jurídico não existe somente um conjunto de normas
particulares inclusivas e uma norma geral exclusiva que as acompanha, mas também
um terceiro tipo de norma, que é inclusiva como a primeira e geral como a segunda, e
podemos chamar de norma geral inclusiva...” trazendo como exemplo a norma que
prescreve o seguinte: “no caso de lacuna, o juiz deve recorrer às normas que regulam
casos parecidos ou matérias análogas”17.

Desta feita, fará toda a diferença em aplicar a norma geral exclusiva ou a geral
inclusiva, sendo que na primeira situação o caso será solucionado de forma oposta ao
caso com previsão (utilização do argumentum a contrario), já na segunda situação,
porém, o caso será resolvido de forma idêntica ao caso regulamentado (argumentum a
smili)18.

Para Bobbio, diante de uma lacuna, duas soluções se mostram possíveis, quais
sejam:

“1) a consideração do caso não-regulamentado como diferente do regulamentado, e a


conseqüente aplicação da norma geral exclusiva;

17
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.135
18
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.136

17
2) a consideração do caso não-regulamentado como semelhante ao regulamentado, e a
conseqüente aplicação da norma geral inclusiva”19.

Desta forma, o problema das lacunas torna-se mais complexo, sendo na


imprecisão do critério de qual norma será aplicada ao ser constatada a lacuna, segundo
Bobbio, não mais pela falta de uma norma, mas pela “falta de um critério para a
escolha de qual das duas regras gerais, a exclusiva ou inclusiva, deva ser aplicada”20.

Com tal argumentação, o autor descredibiliza a teoria da norma geral exclusiva,


demonstrando que a solução para o caso da lacuna não é tão obvio como parecia à
primeira vista, surgindo neste ponto o questionamento de qual critério a ser utilizado,
qual norma deverá ser aplicada para resolver a questão. Passemos a análise dos tipos de
lacunas que se mostram possíveis e suas eventuais soluções.

2.6) Tipos de lacunas

2.6.1) Distinção entre lacunas “ideológicas” e lacunas “reais”

Para Bobbio existem, precipuamente, dois tipos de lacunas: as ideológicas e as


reais, conceituando aquela como “a falta não já de uma solução, qualquer que seja ela,
mas de uma solução satisfatória, ou em outras palavras, não já a falta de uma norma,
mas a falta de uma norma justa, isto é, de uma norma que se desejaria que existisse,
mas que não existe”21, neste caso considera o ordenamento como deveria ser, visando
um ideal de justiça, já na lacuna real, a qual deve se preocupar o magistrado na
resolução do caso concreto, atenta-se ao ordenamento como ele é, por isso chamada de
real.

19
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.136/137
20
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.137
21
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.140

18
O autor as distinguem em lacunas ideológicas (também chamadas de impróprias)
como de “iure condendo (de direito a ser estabelecido) e lacunas reais (também
chamadas de próprias) de iure condito (do direito já estabelecido)” 22, ainda podem ser
diferenciadas pela forma de eliminação, sendo que na lacuna imprópria a supressão se
dará por meio da criação de novas normas e a própria valendo-se de leis vigentes 23,
quem também se preocupou com essa distinção foi Brunetti, para o qual, segundo
Bobbio, a questão da completude ou não de algo só pode ser analisada se comparado
determinado objeto com outro, exemplificando dois casos em que se pode falar de
completude, vejamos:

1) Comparação de algo com o seu tipo ideal, ou seja, só terá sentido dizer se um
objeto é completo se comparado com um outro, o qual deveria ser perfeito;

2)Comparação de determinado objeto, como sua representação, como por


exemplo um mapa de determinada cidade, pois se considerarmos um objeto em si
mesmo não fará sentido o questionamento sobre a completude.24

Assim, Bobbio, explana, resumidamente, três aspectos apontados poer Brunetti,


com relação às lacunas:

“1)o problema de o ordenamento jurídico, considerado em si próprio, ser


completo ou incompleto: o problema assim colocado (colocação mais freqüente entre
juristas)não tem sentido;
2)o problema de ser completo ou incompleto o ordenamento , tal como ele é,
comparado a um ordenamento jurídico ideal: esse problema tem sentido, mas as
lacunas que aqui vêm à baila são as lacunas ideológicas, que não interessam as
juristas;

22
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.140
23
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.144
24
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.141

19
3)o problema de ser completo ou incompleto o ordenamento legislativo,
concedido como parte de um todo: esse problema tem sentido e é o único caso em que
se pode falar de lacunas no sentido próprio da palavra” 25, porém, ainda neste caso,
estaria se referindo as lacunas ideológicas, por isso para Brunetti, a discussão acerca da
completude ou não de um sistema jurídico, mostra-se desnecessária.

Bobbio ainda faz outra distinção, agora utilizando como critério os motivos que
a provocaram, podendo ser:

2.7) Subjetivas ou objetivas: as primeiras são “aquelas que dependem de algum motivo
imputável ao legislador” enquanto que as segundas “dependem do desenvolvimento
das relações sociais, das novas invenções, de todas aquelas causas que provocam o
envelhecimento dos textos legislativos e que, portanto, são independentes da vontade do
legislador”26

2.7.1) As subjetivas ainda são subdivididas em:

a) Voluntárias: “aquelas que o próprio legislador deixa de propósito,


quando a matéria é muito complexa e não pode ser regulada com
regras muito miúdas , e é melhor confiá-las, caso por caso, à
interpretação do juiz”
b) Involuntárias : “aquelas que dependem de um descuido do legislador,
que faz parecer regulamentado em um caso que não é, ou faz deixar
de lado um caso que talvez se considere pouco freqüente, etc.”27.

No entendimento, acertado, de Bobbio, as lacunas consideradas voluntárias não


são verdadeiras lacunas, visto que foi o próprio legislador, propositadamente, quem
confiou ao intérprete da lei e aplicador do Direito, com seu poder criativo, resolver a

25
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.142/143
26
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.144
27
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.144

20
questão, neste caso não seria correto falar em lacunas, posto que o próprio sistema
oferece meios de solução, por isso a cada circunstância completável 28. O autor ainda faz
mais uma distinção entre os tipos de lacunas, vejamos:

2.7.2) Praeter legem e intra legem: aquelas “existem quando as regras expressas, para
serem muito particulares, não compreendem todos os casos que podem ser apresentar-
se a nível dessa particularidade”, e estas “têm lugar ao contrário, quando as normas
são muitos gerais e revelam, no interior das disposições dadas, vazios ou buracos que
caberá ao intérprete preencher”29, no primeiro caso, para solucionar o problema se fará
necessário a formulação de novas regras ao lado das expressas, no segundo deverá ser
formular regras dentro das já expressas.

Diante do estudo desenvolvido por Norberto Bobbio sobre lacunas, pode-se


afirmar que o Direito posto, ao contrário do que os positivistas tradicionais apregoaram,
possui lacunas, sendo estas derivadas da incompletude do ordenamento jurídico, sendo
desmistificadas por Bobbio as teorias que justificavam o dogma da completude, que por
muito tempo predominou, na teoria jurídica européia, como ferramenta estatal na
dominação da sociedade, seja como única fonte criadora do Direito, seja como poder
“onipotente” e “auto-suficiente” nas resoluções dos conflitos.

A corrente do direito livre teve imprescindível papel na desconstrução do dogma


da completude, colaborada pelos movimentos das ciências sociais, filosofia e sociologia
jurídica, neste ínterim o fetichismo da lei, idéia de suficiência do ordenamento
legislativo imposto pelo Estado, enfraquece-se.

A existência de lacunas é inegável, porém, Bobbio, além de conceituar, traz


algumas distinções entre os vários tipos de lacunas, esclarecendo que as lacunas
chamadas de reais, derivadas da incompletude do ordenamento estabelecido,
considerado em si mesmo, são a que possuem relevância aos juristas, mas ainda há que

28
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.145
29
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos; ver. Téc. Claudio
de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição,
1999, p.145

21
se falar em lacunas ideológicas, estas derivam da comparação entre o direito como é
com o direito desejado, como ideal de justiça.

Depois de demonstrado a existência de lacunas no ordenamento jurídico, o


próximo passo é discutirmos a forma de colmatação da mesma, cujo processo em nosso
ordenamento jurídico pode se dar por meio da analogia, costume e princípios gerais do
direito.No presente trabalho discorreremos sobre o meio de integração utilizado pelo
magistrado na decisão abordada, qual seja a analogia, vejamos:

3) O INSTITUTO DA ANALOGIA

3.1) Previsão Legal e Conceito

A analogia está prevista na legislação brasileira, art.4º, da LICC (Lei de


Introdução ao Código Civil nº 4.567/1942) conjuntamente com os costumes e os
princípios gerais do direito, como elemento de integração da lei, ante uma lacuna
legislativa, quando o Magistrado não poderá abster-se de decidir, sendo-lhe defeso
deixar de julgar a lide, ante a ausência de regra para o caso.

A legislação apenas aponta a analogia como instrumento integrativo em caso de


lacunas, ficando a cargo da doutrina a conceituação de analogia, bem como seus
requisitos e peculiaridades. A doutrina é pacífica quanto à conceituação da analogia,
com algumas nuances apenas entre os doutrinadores, vejamos:

Para a respeitável jurista Maria Helena Diniz a analogia, elemento prioritário a


ser utilizado pelo Juiz em caso de lacuna, consiste em: “aplicar a um caso não contemplado de
modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma não prevista para uma hipótese distinta,
mas semelhante ao caso não contemplado” 30

Para a citada autora o procedimento analógico, pode ser dividido em duas


etapas, sendo a primeira a de constatação de que há semelhança entre os casos em
30
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.19ª Ed.- São Paulo : Saraiva,
2008.p.457.

22
questão, e a segunda baseada em juízo de valor, na qual se preponderará às semelhanças
e diferenças entre o caso previsto e o não previsto legalmente, visando solucionar
juridicamente o fato.

Segundo o professor e magistrado Paulo Nader a analogia é: “ um recurso técnico


que consiste em aplicar a, uma hipótese não-prevista pelo legislador, a solução por ele apresentada para
um caso outro fundamentalmente semelhante à não prevista”31

A analogia segue o princípio lógico ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio
esse debet, ou seja, onde houver a mesma razão, deve ser aplicada a mesma disposição
legal.Assim, para que a norma prevista a um caso especifico incida em outro não-
previsto, ambos os casos deverão ter a mesma razão, estando identificados em sua
essência.

As semelhanças entre os casos devem ser fundamentais, neste sentido assevera


André Franco Montoro, que para aplicação da analogia: “ Não basta, porém, a semelhança de
casos ou situações. É necessário que exista a mesma razão para que o caso seja decidido de igual

modo”32.Trataremos mais especificamente deste ponto no próximo tópico, quando


faremos a exposição dos requisitos para a aplicação da analogia.

Para o nobre jurista Carlos Maximiliano a analogia é oriunda da matemática,


sendo uma semelhança de relações. Raciocinar por analogia, segundo o autor, é: “passar,
por inferência, de um assunto para outro de espécie diversa, baseando-se a analogia na presunção de que
duas coisas têm entre si certo grau de pontos de semelhança possam conseqüentemente assemelhar-se
quanto a um outro mais”.33

Limongi França traz o conceito dado por Ferrara, o qual estabelece ser a
analogia: “... a aplicação de um principio jurídico que a lei estabelece, para um certo fato, a um outro
não regulado mas juridicamente semelhante” 34. Afirma o autor que a analogia seria a harmônica
igualdade, proporção e paralelo entre os casos semelhantes.

31
NADER, Paulo. Intrdução ao Estudo do Direito. 23ª Ed.rev. atual. -Rio de Janeiro: Forense, 2003.p.188
32
MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 27ª Ed.rev. atual – São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais,2008. p.431.
33
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito.18ª Ed. Rio de Janeiro.- Forense,
2000.p.206
34
FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurídica. 7ª Ed.- São Paulo; Saraiva,1999. p.43.

23
A analogia, segundo Paulo Nader está fundamentada na necessidade que tem o
legislado de harmonizar e trazer coerência ao ordenamento jurídico, evitando até
eventuais contradições, excluindo a possibilidade de se dar tratamento diferenciado a
situações semelhantes, para o citado autor a analogia encontra fundamento também no
direito natural, em seus princípios basilares, os quais preconizam tratamento igualitário
para casos em que haja identidade de razões35.

O fundamento da analogia, no entendimento de Maria Helena Diniz, reside na


igualdade jurídica, vez que o processo analógico é raciocínio lógico direcionado por
razões relevantes de semelhança, justificado pela identidade de razão.36

Para Rizzatto Nunes a utilização da analogia não é tarefa tão simples, havendo
dificuldades na fixação do que vem a ser “caso semelhante”, questionando quais seriam
os critérios para determinação da semelhança e conseqüentemente da aplicação da
analogia.37

Utilizando-se ainda, do direito espanhol, podemos citar o conceito dado por


Manuel Atienza, para o qual existem vários conceitos de analogia, porém em sentido
jurídico analogia significa: “ la analogia como argumento que permite pasar de lo particular a lo
particular , de lo semejante a lo semejante”38, ou seja, argumento que permite passar de um caso
particular para outro particular, de um semelhante para outro semelhante.

Alguns doutrinadores fazem uma distinção entre analogia legal (legis) e analogia
jurídica (iuris), vejamos:

Analogia legal e analogia jurídica: segundo Maria Helena Diniz, a analogia


legis: “consiste na aplicação de uma norma existente, destinada a reger caso semelhante ao previsto. E a
analogia jurídica estriba-se num conjunto de normas, para extrair elementos que possibilitam sua

aplicabilidade ao caso concreto não contemplado, mas similar ” 39, a autora ainda faz menção ao

35
NADER, Paulo. Intrdução ao Estudo do Direito. 23ª Ed.rev. atual. -Rio de Janeiro: Forense, 2003.p.189
36
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.19ª Ed.- São Paulo : Saraiva,
2008.p.460.
37
NUNES, Rizzatto. Manual de Introdução ao Estudo do Direito.6ª Ed. ver.atual. e amp. – São Paulo:
Saraiva,2005.p.278.
38
ATIENZA, Manuel. Algunas tesis sobre analogia em El Derecho.p.223.
39
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.19ª Ed.- São Paulo : Saraiva,
2008.p.461

24
jurista Machado Neto, para o qual toda analogia seria a iuris, sendo esta distinção
apenas didática, por não haver analogia pura das disposições legislativas, e sim
conceituação genérica de casos possíveis. Assim, a autora afirma que, na prática, o que
ocorre é a analogia jurídica.

Paulo Nader faz distinção semelhante, para o qual, no caso da analogia legal: “ o
paradigma se localiza em um determinado ato legislativo, enquanto que a analogia jurídica se configuraria

quando o paradigma fosse o próprio ordenamento jurídico” 40, porém para ele, ao contrário do que
diz Maria Helena, existe apenas a analogia legal, sendo que a aplicação da analogia
jurídica, não mais que aplicação dos princípios gerais do Direito, ainda segundo o autor,
este é um instrumento sério, devendo ser utilizado com cautela, a fim de evitar falsas
conclusões.

Para Gusmão: “ na analogia legal tomamos por base um caso similar , enquanto que na
jurídica , matéria análoga” 41
, segundo o mesmo entendimento de Nader, o autor traz a idéia
de Ferrara, no sentido de que analogia jurídica é sinônimo de princípios gerais do
Direito, conclui afirmando que: “a analogia é uma só. Não se confunde com os princípios gerais do
Direito, porque o próprio legislador os indica como distintos e porque a aplicação dos princípios
pressupõe haver norma que preveja hipótese semelhante ao caso não previsto”42.

Parece acertado o entendimento de que a analogia aplicada na prática, seja a


legal, tendo em vista, a distinção entre analogia (conceito que está sendo estudado no
presente trabalho) e princípios gerais do Direito, elementos distintos utilizáveis pelo
magistrado na integração de normas, no caso de lacuna legislativa, diante de um caso
concreto.

Podemos citar ainda, o renomado jurista Carlos Maximiliano, o qual traz


claramente a distinção entre analogia legal e jurídica, nos seguintes moldes:

40
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 23ª Ed.rev. atual. -Rio de Janeiro: Forense,
2003.p.190
41
GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao Estudo do Direito. 40ª Ed.- Rio de Janeiro:
Forense,2008.p.241
42
GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao Estudo do Direito. 40ª Ed.- Rio de Janeiro:
Forense,2008.p.241

25
Analogia legis: ausência de dispositivo legal, assim esse tipo de analogia apóia-
se a uma regra existente, aplicável a hipótese semelhante na essência, encontra as
soluções nos preceitos legais;

Analogia iuris: não existe dispositivo, nem indiretamente ao fato, sendo


necessário ao Juiz valer-se do complexo de princípios jurídicos, ou seja, analisando o
espírito do sistema inteiro, as soluções neste caso está nos princípios gerais do
Direito”43.

Em síntese analogia seria a aplicação de determinada norma direcionada a um


caso específico para outro caso não previsto na legislação, devido à semelhança existe
entre ambos os casos.

Trataremos agora dos requisitos, pressupostos, para a aplicação da analogia,


sendo que na ausência dos mesmos não será juridicamente possível a aplicação deste
instrumento no caso concreto.

3.2) Requisitos

Para que o Juiz, intérprete e aplicador da lei, utilize-se do instrumento da


analogia, mister se faz a presença de alguns pressupostos, quais sejam:

3.2.1)Hipótese não prevista em lei: o caso sub judice, em questão, não pode estar
previsto em norma jurídica, caso contrário estaria se diante de interpretação extensiva,
sendo que a previsão legal é o que diferencia a analogia da interpretação extensiva,
invadindo, neste caso, segundo Limiongi, o campo da equidade e da criação jurídica;

3.2.2)Relação de semelhança entre os casos, tendo ao menos um elemento de identidade


entre eles;

43
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito.18ª Ed. Rio de Janeiro.- Forense,
2000.p.210

26
3.2.3)O elemento de identidade entre os casos deve ser fundamental, levando-se em
conta a razão da norma, a intenção do legislador ao criar a regra, assim a razão da
aplicação ao caso não previsto não pode ser diversa daquela para qual a lei foi criada,
Maximiliano fala em mesma razão de decidir.

Situa-se neste pressuposto ponto de interessante discussão, não no sentido de


discordância entre doutrinadores, mas no sentido de se determinar o que realmente é
semelhante e se as semelhanças existentes entre os casos são suficientes para se dar
guarida a aplicação da analogia.

Paulo Nader explica: “para que torne possível a aplicação da analogia, não basta que entre
os casos comparados haja muitas características semelhantes. Normalmente, quanto maior o número de
semelhanças, maior a possibilidade de aplicação. Pode ocorrer que dois casos comparados, o previsto e o
não- previsto pelo legislador, tenham quatro características idênticas e se desassemelham em apenas uma;
ainda assim a analogia não está garantida, porque a razão que determinou a norma jurídica pode estar
localizada nessa característica impar. Por outro lado, em relação ao que mantém apenas uma característica
igual, pode ser possível a aplicação da analogia, desde que a ratio legis esteja convergida para essa
característica do paradigma” 44.

Neste sentido, Maria Helena, afirma: “ meras semelhanças aparentes, afinidades formais
ou identidades relativas a pontos secundários não justificam o emprego da argumentação analógica” 45.

Conclui-se assim, que a identidade entre os casos deve ser essencial, primordial ,
sendo que a razão da aplicação da norma para o caso não previsto deve coincidir com a
do caso previsto, para o qual a norma foi criada, mesmo porque, bem como assinala
Atienza, o processo analógico, é composto, não só pela lógica, mas também por
elemento axiológico, valorativo: “en la analogia entra siempre um componente axiológico que es
impossible reducir a un sistema de lógica...” 46. Bem como todo o ordenamento jurídico, o qual é
pautado, em valores.

Assim, na falta de alguns dos requisitos acima mencionados, no sentido de que


(i)existindo previsão para o caso em questão; (ii) não havendo elementos de identidade

44
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 23ª Ed.rev. atual. -Rio de Janeiro: Forense,
2003.p.190
45
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.19ª Ed.- São Paulo : Saraiva,
2008.p.461
46
ATIENZA, Manuel. Algunas tesis sobre analogia em El Derecho.p.224

27
entre os casos; ou (iii) não sendo essencial o elemento de identidade entre os casos, não
há que se falar em aplicação da analogia.

3.3) DISTINÇÃO ENTRE ANALOGIA, INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA E


INDUÇÃO

A doutrina faz a distinção entre analogia, interpretação extensiva e ainda


indução. O jurista Carlos Maximiliano traz a distinção entre a primeira e a segunda nos
seguintes termos:
“Diferencia-se analogia de interpretação extensiva nos seguintes aspectos: a última
está ligada ao conhecimento de uma regra legal em sua particularidade em face de
outro querer jurídico, enquanto a analogia se ocupa com a semelhança entre duas
questões de direito. Segundo o autor na analogia há um pensamento fundamental em
dois casos concretos, na interpretação extensiva há uma idéia estendida a outro fato,
abrangida implicitamente, pela mesma.
Na interpretação extensiva submete-se duas hipóteses à mesma regra, na analogia
desdobra um preceito de modo que se confunda com outro que lhe seja próximo.
Na analogia, inexiste dispositivo legal para determinado caso, já na interpretação
extensiva o que ocorre é a dilatação de uma norma já existente.
Em síntese a interpretação revela a expressão da norma, a analogia cria preceito
novo, muito parecido com o existente para solucionar um caso sem previsão legal,
possuem em comum a finalidade, qual seja resolver casos não expressos pelas
palavras da lei”.47

No entendimento de Paulo Nader, ambos os procedimentos, interpretação


extensiva e aplicação analógica, são muitas vezes confundidos, porém a diferença entre
estes pode ser descrita desta forma:
“Na interpretação extensiva o caso é previsto pela lei diretamente, apenas co
insuficiência verbal, já que a mens legis revela um alcance maior para a disposição.
A má redação do texto é uma das causas que podem levar a não-correspondência
entre as palavras da lei e o seu espírito. Nesse caso não se pode falar em lacuna da
lei. Existe apenas uma impropriedade de linguagem. Para o procedimento analógico,
a lacuna da lei é pressuposto básico. O caso que se quer enquadrar na ordem
jurídica não encontra solução nem na letra, nem no espírito da lei. O aplicador do
Direito enceta pesquisa na legislação a fim de focalizar um paradgima, um caso
semelhante ao não previsto. Uma vez localizado, desde que a semelhança seja no

47
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito.18ª Ed. Rio de Janeiro.- Forense,
2000.p.216

28
essencial e haja identidade de motivos, a solução do paradigma será aplicada ao
caso não previsto.
Na interpretação extensiva, amplia-se a significação das palavras até fazê-las
coincidir com o espírito da lei; com a analogia não ocorre esse fato, pois o aplicador
não luta contra a insuficiência de um dispositivo, mas com a ausência de
dispositivos. ”48

Parece-nos clara e objetiva referida distinção, no sentido de que na interpretação


extensiva, existe dispositivo legal, porém este, no momento da aplicação deve ser
ampliado a fim de cumprir ao fim que se destina, ao contrário da analogia onde a
inexistência do dispositivo é pressuposto lógico de sua aplicação.

Limiongi França diferencia a analogia de indução e de interpretação extensiva,


considerando que a diferença entre a primeira e a segunda está em que esta consiste em
estender a todos os casos da mesma natureza aquilo que é válido para um só deles, já a
analogia se limita a estender o que é válido para certo caso a outro a ele similar.A
diferença entra a primeira e a terceira, consiste em que a indução reconstrói a vontade
legislativa existente, que parecia excluída, já a analogia se manifesta ante uma lacuna,
ante um caso não previsto.49

Rizzatto Nunes distingue a indução da analogia, conceituando-as no sentido de


que: “na indução a conclusão geral é sempre provável, sendo certo que a probabilidade maior ou
menor de conclusão geral ser verdadeira depende do número de amostras particulares semelhante. A
analogia é, por sua vez, a passagem de um particular para outro particular, sem a necessidade de

generalização.”50

Visto o conceito da analogia, requisitos de aplicação e peculiaridades, passemos


ao próximo tópico, onde trataremos da Lei 11.340/2006, chamada de Maria da Penha,
falaremos sobre sua criação, denominação e principalmente sobre seus objetivos,
aspecto central a ser tratado neste ponto.

48
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 23ª Ed.rev. atual. -Rio de Janeiro: Forense,
2003.p.191
49
FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurídica. 7ª Ed.- São Paulo; Saraiva,1999. p.44
50
NUNES, Rizzatto. Manual de Introdução ao Estudo do Direito.6ª Ed. ver.atual. e amp. – São Paulo:
Saraiva,2005.p.278

29
4) DA LEI MARIA DA PENHA Nº11.340/2006

4.1) Criação

Decorrente de condenação internacional, através da Comissão Interamericana de


Direitos Humanos da Organização dos Estados Unidos, ao Brasil, a Lei Maria da Penha,
nasceu da luta de uma mulher chamada Maria da Penha Maia Fernandes, a qual, como
tantas outras brasileiras, foi vítima de toda espécie de violência por parte de seu marido,
o qual por anos a agrediu e por duas vezes tentou matá-la, sendo que na primeira
tentativa a deixou paraplégica, e também na segunda, o agressor não conseguiu atingir
seus objetivos de tirar a vida de Maria da Penha, enfrentando desta forma uma
verdadeira batalha em busca da justiça.

O réu, condenado a oito anos de prisão, recorreu em liberdade, teve seu


julgamento anulado, foi levado a novo julgamento e condenado, desta vez a dez anos e
seis meses de prisão, recorrendo de novo em liberdade, sendo preso quase vinte anos
após os fatos, cumpriu apenas dois anos de prisão, em regime fechado.51

Tamanha foi a repercussão desta história, que o caso chegou até a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, a qual
solicitou informações ao Brasil, mas nunca foi atendida, diante do que condenou ao
Brasil, além do pagamento de indenização em favor da vítima, responsabilizando o país
por negligência e omissão, a adotar medidas processuais para simplificação dos
processos que envolvessem violência contra a mulher no âmbito familiar52.

O projeto de Lei iniciado em 2002, tendo como relatora a deputada Jandira


Feghali e elaborado por 15 ONGs que trabalham com a violência doméstica, resultou na
Lei Maria da Penha, sendo sancionada pelo Presidente em agosto de 2006
entrando em vigor em setembro do mesmo ano.

4.2) Objetivos

51
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. Editora Revista dos Tribunais. São
Paulo,2008, p.13
52
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. Editora Revista dos Tribunais. São
Paulo,2008, p.13

30
A lei foi criada com objetivos específicos, como ela mesma prevê no art.1º de
coibição e prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, visa a proteção
efetiva das mulheres que vivem em uma realidade de violência no âmbito familiar, com
medidas protetivas de urgência e procedimentos judiciais favoráveis a celeridade da
condenação do agressor. A realidade enfrentada por milhares de brasileiras vitimadas
pela violência doméstica, ainda que notória, foi a muito deixada de lado, crescendo a
cada dia o número de mulheres agredidas e até assassinadas por seus próprios
companheiros. Diante de tal realidade não era possível ignorar a situação de violência,
na qual viviam e ainda vivem muitas mulheres.

Os motivos para tal violência são muitos, porém, por não ser este o tema central
do trabalho não aprofundaremos no assunto, mas é crucial dizer que a imagem de
fragilidade dada à mulher e de força dada ao homem dentro da sociedade, por motivos
culturais corroboraram muito para esse ciclo de violência.

Segundo a desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do


Sul Maria Berenice Dias, a Lei Maria da Penha vem para atender o compromisso
constitucional previsto no art.226, §8º, o qual determina: “O Estado assegurará a
assistência à família na pessoa e cada um dos que a integram, criando mecanismos
para coibir a violência no âmbito de suas relações” 53. A meu ver, de maneira ampla, a
Lei também veio com o fito de concretização do principio constitucional da igualdade,
no sentido de busca pela igualdade material ou substancial, segundo a qual deve se
despender tratamento diferenciado aos desiguais, na medida de suas desigualdades,
objetivando suprir um déficit na proteção dada a mulher, a qual ao longo da história
humana, foi alvo de injustiças em razão do gênero, da condição de mulher.

Em sentido restrito pode se afirmar que a lei foi criada com o escopo de proteção
as mulheres que no âmbito doméstico, familiar e/ou em suas relações afetivas (art.5º,
incs I e ss.), sofrem qualquer tipo de violência baseada no gênero, tendo em vista que,
pela realidade social ainda vigorante, é no seio familiar, que as mulheres têm sido

53
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. Editora Revista dos Tribunais. São
Paulo,2008, p.27

31
vitimas de todo tipo de agressão (física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial) em
decorrência de sua peculiar condição de mulher.

A promulgação da citada Lei representa grande marco social perante o


ordenamento jurídico brasileiro, uma nova era, não apenas de vitórias, mas de muitas
batalhas, ainda, na luta contra a violência sofrida pelas mulheres, que na maioria das
vezes são vitimas de seus próprios companheiros, ou qualquer outro ente do sexo
masculino que se vale de sua força física ou da dependência financeira da vitima para
ameaçar, coagir, manipular e agredir “suas” mulheres.

A violência contra a mulher está definida na Lei 11.340/2006, em seu art.5º


como qualquer “... ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial..”, constituindo
forma de violação dos direitos humanos (art.6º).

Passamos a analisar as mudanças trazidas pela implantação da Lei, vejamos:

4.3) Principais inovações

 A Lei 11.340/2006 tipificou e conceituou os vários tipos de violência


praticados contra a mulher, como física, psicológica, patrimonial, sexual
e moral. Determinando que a violência doméstica contra a mulher
independe de orientação sexual.

 A nova Lei Retirou dos Juizados Especiais, especializados em crimes de


menor potencial ofensivo, a competência para julgar os crimes de
violência doméstica e familiar contra a mulher, haja vista que esses
juizados só tratavam do crime, sendo que para a mulher resolver o resto
do caso (questões cíveis) tinha que abrir outro processo na vara de
família. Desta forma a Lei determinou a criação de Juizados
Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com
competência cível e criminal, abrangendo todas as questões.

32
 Outro avanço relevante foi a proibição da aplicação de penas pecuniárias,
como pagamento de cestas básicas, costumeiramente realizados
anteriormente a nova lei.

 Hoje com a nova Lei a mulher só pode renunciar perante o Juiz, ao


contrário do que ocorria antes quando a mulher podia desistir da
denúncia na delegacia.

 Fica proibida a entrega pela mulher da intimação ao agressor, parece até


bizarro dizer isso, mas é o que ocorria antes, como pode deixar que a
vitima de agressões e ameaças entregue ao agressor uma intimação para
que compareça ao Poder Judiciário para se explicar?

 A possibilidade de prisão em flagrante e prisão preventiva do agressor, a


depender dos riscos que a mulher corre, foi um grande passo também na
luta das mulheres.

 A mulher será notificada dos atos processuais, especialmente quanto ao


ingresso e saída da prisão do agressor, e terá que ser acompanhada por
advogado, ou defensor, em todos os atos processuais.

 A violência doméstica e familiar contra a mulher passa a ser prevista, no


Código Penal, como agravante de pena.

 A pena mínima para desse tipo de crime foi reduzida para 3 meses e a
máxima aumentada para 3 anos, acrescentando-se mais 1/3 no caso de
portadoras de deficiência. Parece que neste caso a diminuição da pena
mínima foi um tanto inócua, agindo o legislador corretamente ao
aumentar a pena máxima.

 A Lei em questão permite ao Juiz determinar o comparecimento


obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

33
 O Juiz pode, segundo a nova Lei, fixar o limite mínimo de distância entre
o agressor e a vítima, seus familiares e testemunhas. Pode também
proibir qualquer tipo de contato com a agredida, seus familiares e
testemunhas.54

4.4) Do sujeito ativo e do sujeito passivo

Para a jurista Maria Berenice o sujeito ativo (agressor) da agressão considerada


como doméstica, pode ser tanto homem quanto mulher, bastando que esteja
caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação familiar ou de afetividade 55,
porém, no que diz respeito ao sujeito passivo: “há a exigência de uma qualidade
especial: ser mulher”56.

Pela própria redação da Lei nº 11.340/2006 fica evidenciado a vontade do


legislador, mens legislatoris, qual seja, de proteção a integridade física e moral da
mulher que encontre em estado de violência no ambiente doméstico. Tendo em vista
que, assim como as crianças, adolescentes e idosos, por muito tempo ocupou (e muitas
ainda ocupam) uma posição de fragilidade, subordinação, dentro da sociedade em face
do homem, idealizado como ser forte e digno de autoridade.

O sistema jurídico brasileiro percebeu que a mulher, pela realidade enfrentada


perante a sociedade, assim como as crianças (com o Estatuto da criança e do
adolescente) e os idosos (com o Estatuto do idoso) merecia uma tutela especial, criando
dessa forma a Lei Maria da Penha.

5) DA POSSIBILDADE DE APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DA LEI


Nº11.340/2006 PARA PROTEÇÃO DE HOMENS

54
http://www.leimariadapenha.com/group/pesquisas/forum/topics/aspectos-fundamentais-da-lei Fonte:
Observatório para Implementação da Lei Maria da Penha - NEIM/UFBA
28/01/2010
55
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. Editora Revista dos Tribunais. São
Paulo,2008, p.41
56
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. Editora Revista dos Tribunais. São
Paulo,2008, p.41

34
Neste capítulo nos incumbe a tarefa de refutar, segundo os estudos realizados
neste trabalho, a sentença em análise, onde o magistrado, entendendo estar diante de
uma lacuna legislativa, aplicou, analogicamente, a Lei Maria para a proteção de um
homem, sob a fundamentação de que assim como as mulheres, ainda que em percentual
menor, os homens também são vítimas de agressão por parte de suas companheiras e
que quando se trata de norma incriminadora a lei penal não pode ser aplicada por
analogia porque fere o princípio da reserva legal, prevista no Código Penal em seu
artigo 1º: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia
cominação legal”.

Por outro lado, o juiz Mário Kono assinalou, citando vários doutrinadores, que
se não se pode aplicar a analogia in malam partem (contra o réu), não quer dizer que
não poderia aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de
norma incriminadora. Ora, se podemos aplicar a analogia para favorecer o réu, é óbvio
que tal aplicação é perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítima de um
crime57.

Passemos a analisar alguns fatores, segundo os tópicos desenvolvidos neste


trabalho, que nos ajudarão a posicionar o caso em questão com relação às lacunas e
sobre a possibilidade jurídica de aplicação da Lei Maria da Penha para homens,
vejamos:

5.1) Lacuna subjetiva involuntária e praeter legem

Seguindo a linha de raciocínio de Bobbio, no presente caso, pode se afirmar que


estamos diante uma lacuna classifica por ele como: i) subjetiva involuntária, no sentido
de que o legislador deixou de lado um caso considerado infreqüente, incomum, ou seja,
em uma sociedade predominantemente “machista”, a agressão contra o homem, pela
mulher, nunca tinha sido colocada em pauta, tendo em vista que a realidade social nos
mostra o contrário, a violência contra a mulher, sendo que ao criar a lei, conforme já
exposto, a intenção do legislador era tão somente a proteção das mulheres; ii) praeter
legem, as quais se mostram presentes quando as regras expressas, por serem especificas,
particulares, não abrangem todos os casos que possam ser apresentados a esse nível de
57
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/ 05/01/2009

35
particularidade, ou seja, a aplicação da Lei pressupõe, que a violência além de ocorrer
no âmbito doméstico seja praticada contra a mulher, não prevendo o legislador, a
aplicação em caso de ser o homem a vítima. Para Bobbio neste caso a solução dada
seria a formulação de novas regras ao lado das expressas.

Assim, a defesa dos homens que porventura sofram violência por parte de suas
parceiras, deve ser disciplinada por uma norma especifica elaborada para esse fim ou
mesmo a utilização das leis infraconstitucionais já existentes (código penal para o caso
de agressão e código civil para o caso de reparação de eventuais danos), tendo em vista
que, a Lei Maria da Penha foi criada com objetivos específicos, qual seja a defesa da
mulher agredida, nos casos acima discorridos.

No presente caso, falta um dos requisitos previstos para a aplicação da analogia,


qual seja, o elemento de identidade entre os casos deve ser fundamental, levando-se em
conta a razão da norma, a intenção do legislador ao criar a regra, desta forma, a razão da
aplicação ao caso não previsto não pode ser diversa daquela para qual a lei foi criada,
chamada por Maximiliano, como mesma razão de decidir.

Assim, mesmo que a aplicação da citada lei cumpra um dos seus pressupostos,
qual seja violência em âmbito doméstico, não cumpre o segundo, que a meu ver deve
ser cumulativo e não alternativo com o primeiro, de que a violência seja direcionada à
mulher, em razão do gênero.

Desta forma, a aplicação por analogia, da Lei Maria da Penha, criada para
especial proteção da mulher, em suas relações domésticas, familiares e/ou afetivas, não
deveria ser aplicada ao caso em discussão, considerando os argumentos já expostos e
ainda a disposição do art.4º da Lei, o qual prescreve: “ Na interpretação desta Lei, serão
considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres
em situação de violência doméstica e familiar”. Grifo nosso.

6) CONCLUSÃO

Diante do estudo realizado no presente trabalho no que se refere a: (i) lacuna da


lei, a qual expressa a incompletude de um ordenamento jurídico, tendo em vista que

36
diante da mutabilidade das relações sociais torna impossível a previsão de toda e
qualquer conduta humana; (ii) analogia, um dos meios de integração utilizado no
preenchimento de eventual lacuna, consistente na aplicação de uma norma a um caso
não previsto legalmente, em razão da similitude entre ambos os casos, circunstância em
que deverão estar presentes alguns requisitos apresentados pela doutrina; (iii) lei Maria
da Penha, com os seus objetivos pontuais de criação, pode se concluir pela crítica da
decisão em análise, haja vista que a citada lei não deveria ter sido aplicada ao caso em
questão, pelos argumentos que passa a expor:

 A lacuna constada no presente caso é classifica como subjetiva


involuntária e praeter legem, circunstância em que a solução se dará com
a elaboração de novas regras ou aplicação de normas gerais (código civil
e código penal) para o caso, tendo em vista que a intenção do legislador
ao criar a Lei Maria da Penha, foi especificamente a proteção da mulher
agredida em âmbito doméstico por pessoa que mantenha relação afetiva.
 O presente caso carece de um dos requisitos para a aplicação da analogia,
qual seja a essencialidade do elemento de identidade entre os casos,
chamada de mesma causa de decidir, momento em que se observa (mais
uma vez) a intenção do legislador ao elaborar a norma, sendo que
ausente de qualquer um dos requisitos não há que se falar em aplicação
de lei por analogia.
 A própria Lei 11.340/2006 é expressa quanto aos seus objetivos,
estabelecendo que a aplicação da lei se efetivara diante de violência
ocorrida em âmbito doméstico; em relação familiar e afeto; contra a
mulher, desta forma, não basta que a violência seja em âmbito
doméstico, a vitima deve ser pessoa do gênero feminino, não abarcando a
Lei a proteção dos homens. E caso este seja vitima de violência em
âmbito doméstico aplicar-se-á leis penais e civis cabíveis.

Desta forma, concluímos que a decisão analisada não possui fundamentação


doutrinária suficiente para consolidar a aplicação da Lei Maria da Penha, criada
precipuamente para proteção das mulheres agredidas no ambiente familiar, e que tal

37
utilização só tende dar precedente a aplicação da lei de forma diversa da intencionada
pelo legislador, ferindo desta forma entendimentos doutrinários consolidados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico.Trad. Maria Celeste C.J. Santos;


ver. Téc. Claudio de Cicco; apres. Tércio Sampaio Ferraz Junior- Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 10ª edição, 1999.

38
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.19ª Ed.- São
Paulo : Saraiva, 2008.

FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurídica. 7ª Ed.- São Paulo; Saraiva, 1999.

NADER, Paulo. Intrdução ao Estudo do Direito. 23ª Ed.rev. atual. -Rio de Janeiro:
Forense, 2003.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito.19ª Ed.- São


Paulo : Saraiva, 2008.

NUNES, Rizzatto. Manual de Introdução ao Estudo do Direito.6ª Ed. ver.atual. e amp. –


São Paulo: Saraiva,2005.

ATIENZA, Manuel. Algunas tesis sobre analogia em El Derecho..

MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 27ª Ed.rev. atual – São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2008.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito.18ª Ed. Rio de Janeiro.-


Forense, 2000.

GUSMÃO, Paulo Dourado. Introdução ao Estudo do Direito. 40ª Ed.- Rio de Janeiro:
Forense, 2008.

39

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