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FACULDADE BAIANA DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

RENATA SOUZA COSTA

A CONCESSÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS COMO UMA FERRAMENTA


DE PROTEÇÃO A VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FAMILIAR:
UMA ANÁLISE À LUZ DA LEI Nº 11.340/06 (MARIA DA PENHA).

Salvador
2023
RENATA SOUZA COSTA

A CONCESSÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS COMO UMA FERRAMENTA


DE PROTEÇÃO A VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FAMILIAR:
UMA ANÁLISE À LUZ DA LEI Nº 11.340/06 (MARIA DA PENHA).

Monografia apresentada ao curso de graduação em


Direito, Faculdade Baiana de Direito, como
requisito parcial para obtenção do grau de bacharel
em Direito.
Orientador: Prof. Roberto Gomes

Salvador
2023

2
A CONCESSÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS COMO UMA FERRAMENTA
DE PROTEÇÃO A VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FAMILIAR:
UMA ANÁLISE À LUZ DA LEI Nº 11.340/06 (MARIA DA PENHA).

Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em


Direito, Faculdade Baiana de Direito, pela seguinte banca examinadora:

Nome: _______________________________________________________________
Titulação e instituição: __________________________________________________

Nome: _______________________________________________________________
Titulação e instituição: __________________________________________________

Nome: _______________________________________________________________
Titulação e instituição: __________________________________________________

Salvador, ____/_____/ 2023

3
DEDICATÓRIA
A Ele toda honra e toda
glória, para sempre.

4
AGRADECIMENTOS

Quão tremendo és tu nas tuas obras, eu te louvarei, eu te exaltarei, ó Deus, rei meu, e
bendirei o teu nome pelos séculos dos séculos e para sempre.

Mãe, obrigada por ter abdicado de tanta coisa por mim. Eu sou você.
Lay, obrigada por acreditar mais em mim do que eu mesma. Eu sou sua fã, você é minha
inspiração.
Tudo que faço é por vocês. Amo vocês duas mais que minha própria vida.
Jeane, você é meu anjo da guarda.
Zinho (bebê), por que me mima como se eu fosse sua filha.
Obrigada às minhas amigas Mariana e Alecsandra por terem feito parte desta jornada
louca. Sem vocês eu teria trancado a matrícula.
Obrigada ao professor Roberto Gomes a quem admiro como profissional, como pessoa
e como professor. Ter o senhor acreditando no meu potencial me fez mais forte.
Obrigada a Fabiana, minha terapeuta, que não me deixou enlouquecer.
Por fim, mas, não menos importante, eu gostaria de agradecer a mim. Renata, obrigada
por não desistir. Você venceu!

5
“A loba, a velha, aquela que sabe está
dentro de nós. Floresce na mais profunda
psique da alma das mulheres, a antiga e
vital Mulher Selvagem. Ela descreve seu lar
como um lugar no tempo em que o espírito
das mulheres e o espírito dos lobos entram
em contato. É o ponto em que o Eu e o
Você se beijam, o lugar em que as mulheres
correm com os lobos (…)”
Clarissa Pinkola

6
RESUMO

Palavras-chaves:

7
ABSTRACT

8
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ART - Artigo
CP - Código Penal
DEAM - Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher
LMP - Lei Maria da Penha
MPU - Medida Protetiva de Urgência
NEVID - Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos
das Mulheres
ONGs - Organizações não-governamentais
PL - Projeto de Lei
STF - Supremo Tribunal Federal
TJBA - Tribunal de Justiça do Estado da Bahia

9
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FAMILIAR

2.1 Conceito

2.2 A mulher e a violência doméstica

2.3 TIPOS DE VIOLÊNCIA

2.3.1 Violência física

2.3.2 Violência psicológica

2.3.3 Violência sexual

2.3.4 Violência patrimonial

2.3.5 Violência moral

2.3.6 Violência virtual

3 LEI MARIA DA PENHA

3.1 Histórico

3.2 Os avanços da legislação

3.3 A responsabilidade da efetivação da Lei Maria da Penha

4 DA CONCESSÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS

5 CONCLUSÃO

6 REFERÊNCIAS

10
11
1 INTRODUÇÃO

A Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) foi criada diante da necessidade de uma
legislação penal que protegesse direitos básicos de mulheres, dentro de um
contexto de violência doméstica, haja vista uma construção cultural que as
colocou em posição hipossuficiente.

O objetivo geral deste trabalho é concluir pela necessidade das Medidas Protetivas
relacionadas na lei em referência, sem deixar de analisar as dificuldades
enfrentadas na coleta de dados acerca da sua aplicação, bem como, os desafios das
autoridades que enfrentam obstáculos na garantia dos direitos das mulheres. Além disso,
faz-se necessário a verificação de como garantir que o contexto de violência
doméstica não se repita mediante a aplicação dessas medidas.

As medidas previstas na Lei Maria da Penha têm natureza extrapenal e


proclamam o reconhecimento da condição de vulnerabilidade em que se encontram as
mulheres no âmbito doméstico e familiar. Elas não abordam o enfrentamento deste tipo
de violência apenas por um aspecto ou uma matéria jurídica, mas analisam a
violência doméstica e familiar de forma integral.

Diante o exposto, a pesquisa é relevante ____________________________

Para a sociedade, o estudo visa desmistificar a mulher como responsável pela situação
de violência que ela é vítima, de modo a modificar o pensamento cultural em relação à
violência doméstica.

Trata-se de uma pesquisa teórica e bibliográfica, embasada em artigos


científicos e livros acadêmicos, além disso, também foi fonte de pesquisa: leis,
doutrinas e jurisprudências. Foi realizado um levantamento de artigos científicos que
versem sobre a Lei n. 11.340/2006

Esta pesquisa apresenta uma abordagem ______________________ e foi feita por


meio de pesquisa bibliográfica , considerando os aspectos relevantes mencionados
por seus autores e ___________________________________. O trabalho apresenta

12
aspectos da criação da Lei Maria da Penha, bem como as Medidas Protetivas de
Urgência e quais são as dificuldades das autoridades.

2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR


2.1 Conceito
A princípio é imperioso conceituar a palavra violência.

A origem etimológica da palavra violência vem do latim violentia, de violentus (com


ímpeto, furioso, à força), ligado ao verbo violare em que vis, significa força, potência, e
infringir, transgredir, devassar.

Quanto ao tema ensina Minayo que, “o termo violência resulta da palavra latina vis,
significando “força” e se refere às noções de constrangimento e uso da superioridade
física sobre o outro para adquirir autoridade, poder, domínio, posse, aniquilamento do
outro ou de seus bens.” 1

Paviani no que lhe concerne, define violência como “consequência, declamando que a
violência produz danos físicos, ao produzir ferimentos, tortura e morte ou danos
psíquicos, como a humilhação, ameaças e ofensas.” 2

De mesmo modo, no direito, de acordo com Nucci a violência pode ser definida como
“qualquer forma de constrangimento ou força, seja ela física ou moral.” 3 No entanto, no
âmbito penal, o termo é comumente utilizado para se referir apenas à violência física. É
importante destacar que o conceito de família abrange indivíduos que se consideram ou
são aparentados, unidos por laços naturais, afinidades ou vontade expressa.

Já a Convenção de Belém do Pará, que teve como foco a violência contra a mulher,
definiu a violência doméstica como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero que
cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, tanto na esfera pública
como na privada”. Essa definição foi praticamente repetida no artigo 5º da Lei Maria da
Penha, que estabelece que qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial
configura violência doméstica contra a mulher.

1
MINAYO. Violência e saúde, 2006.
2
Conceitos e formas de violência. Organização: Maura Regina Modena, 2016.
3
NUCCI. Manual de Direito Penal: parte geral e especial, p. 45, 2016.

13
Os incisos desse artigo deixam claro que esse tipo de violência pode ocorrer no âmbito
da unidade doméstica, que inclui o espaço de convívio permanente das pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, que
compreende a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; e em
qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a
vítima, independentemente de coabitação.

Por fim, o parágrafo único da Lei Maria da Penha estende a proteção da lei às pessoas
homoafetivas.

Ainda na visão de Nucci, a definição de violência doméstica e familiar é “mal redigida e


extremamente aberta, o que pode levar a uma interpretação equivocada e literal da
norma, resultando na aplicação da agravante a um número excessivo de infrações penais
apenas pelo fato de terem sido cometidas contra mulheres”. Isso pode “gerar conflitos
de competência e atrasar o julgamento do processo” 4. Portanto, é necessária uma
análise cuidadosa da norma para evitar interpretações equivocadas e garantir uma
aplicação justa e adequada da lei.

É importante destacar que a aplicação da Lei Maria da Penha deve levar em


consideração as circunstâncias específicas de cada caso. O primeiro critério a ser
avaliado é se a vítima é uma mulher, seguido pela verificação se a violência foi
cometida em razão do gênero e, por fim, se ocorreu no âmbito doméstico ou familiar. É
fundamental analisar cada situação de forma individualizada e criteriosa para garantir a
correta aplicação da lei.

A violência, especialmente a violência direcionada às mulheres, requer uma


compreensão abrangente e multifacetada, considerando fatores sociais, históricos,
culturais e subjetivos. No entanto, é importante ressaltar que sua explicação não deve
ser restrita a qualquer um desses aspectos isoladamente.

2.2 A mulher e a violência doméstica


Para um melhor entendimento do tema em foco, é necessário retomar o percurso
percorrido pela mulher em termos de direitos relacionados a violência doméstica
familiar.

4
BRITO. Ainda sobre a Lei Maria da Penha: uma tentativa de pacificação dos conflitos hermenêuticos à
luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Revista Bahia Forense, p. 19.

14
A violência contra a mulher não é um fato novo, pelo contrário, é tão antigo quanto a
humanidade. Durante mais de cinco séculos no Brasil, desde as Ordenações Filipinas
até o Código Penal de 1940, os únicos crimes destinados a proteger as mulheres eram os
crimes sexuais, embora não fossem voltados para a proteção completa da mulher, mas
apenas para a proteção de sua honra e da honra de sua família. Mesmo sendo um
atributo personalíssimo, a honra da mulher era o foco principal.

No Código Penal do Império de 1830, o estupro era considerado um crime contra a


segurança da honra. Em 1890, o estupro foi considerado um crime contra a segurança da
honra e da honestidade da família, e em 1940, foi tratado como um crime contra os
costumes. Como resultado, a mulher que tivesse relações sexuais antes do casamento,
mesmo que fosse resultado de um estupro, era considerada desonrada.

O Código Penal de 1940 estabelecia uma divisão entre mulheres "honestas" e


"desonestas" com base em sua conduta sexual, enquanto não definia o homem com base
em seu comportamento sexual. Em alguns crimes, como posse sexual mediante fraude e
atentado violento ao pudor, a "honestidade" da mulher era um elemento essencial do
tipo penal. Na mesma linha, o Código de Processo Penal de 1941 estabelecia que uma
mulher não poderia exercer o direito de queixa sem a permissão do marido, exceto
quando estivesse separada ou a queixa fosse contra ele. Se o marido se recusasse a
permitir, o juiz poderia suprir essa permissão.

A chegada da redemocratização nos anos 1980 marcou o início de uma fase altamente
produtiva para o movimento feminista no Brasil, impulsionando significativos avanços
na luta pelos direitos das mulheres. Um marco importante nesse processo foi a criação
do Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM) em 1984. Esses avanços
culminaram com a promulgação da Constituição de 1988, que representou uma
mudança significativa em direção à igualdade de gênero. Embora não tenha ocorrido
uma modificação direta no Código Civil, a Constituição Federal deixou claro que
dispositivos que violavam o princípio da igualdade entre homens e mulheres no
casamento e no companheirismo não eram mais aceitáveis. Isso representou um
rompimento com o sistema patriarcal que conferia ao homem uma posição de
superioridade em relação à mulher.

Ao longo das últimas décadas do século XX, observou-se um processo de consolidação


e organização do movimento feminista, que se manifestou através da criação de várias

15
Organizações Não-Governamentais (ONGs). Essas organizações tinham como objetivo
promover a participação das mulheres nos espaços públicos de poder, ao mesmo tempo
em que buscavam aprovar medidas de proteção, especialmente para aquelas que sofrem
violência, a exemplo disto, temos a criação da primeira Delegacia de Atendimento à
Mulher foi instalada em São Paulo, no ano de 1985.

Em 2004, a Lei nº 10.886 criou o tipo de violência doméstica no Código Penal, com
uma causa especial de aumento de pena. A Lei nº 11.106/2005 alterou vários artigos do
Código Penal, retirando expressões que remetiam à "honestidade" da mulher e
aumentando a pena em razão do vínculo familiar ou afetivo com o agressor. A lei
também eliminou a possibilidade de extinção da punibilidade por força do casamento da
vítima com o agressor.

No entanto, a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, a qual se


tratar-se-á com amplitude mais a frente, foi a mudança mais significativa no sistema de
proteção à mulher. A lei recebeu esse nome em homenagem a Maria da Penha, que
lutou por justiça após sofrer duas tentativas de homicídio pelo seu marido, um professor
universitário colombiano, que a deixaram paraplégica. A lei estabeleceu medidas de
proteção para mulheres em situação de violência doméstica e familiar - especialmente, a
previsão de concessão de medidas protetivas de urgência-, além de prever penas mais
duras para os agressores.

Esclarecido o percurso histórico-jurídico, passa-se a análise social-cultural, pois, é


sabido que apesar de toda a evolução social e jurídica produtora de radicais
transformações, a violência doméstica e familiar ainda é um problema grave no Brasil,
onde as normas sociais e culturais estabelecem identidades masculinas e femininas
desiguais, tornando a temática uma das principais áreas de preocupação.

A sociedade brasileira é estruturada em torno da ideia de dois gêneros, masculino e


feminino, e o sistema legislativo foi construído levando em conta essa perspectiva.
Segundo Pinto, “às mulheres vítimas de violência doméstica ainda são tratadas como
cidadãs de segunda classe na sociedade” 5. E a longa tradição patriarcal e rigidamente
hierarquizada da família brasileira ainda se fez sentir, apesar do Brasil possuir uma das
melhores legislações do mundo em relação à violência doméstica, como a Lei Maria da

5
ALBUQUERQUE. Convenção Europeia dos direitos humanos, pg. 34, 2019

16
Penha - considerada a terceira melhor do mundo pela ONU - as mudanças na lei nem
sempre se traduzem em mudanças socioculturais automáticas.

Maria da Penha assevera que “apesar das conquistas femininas, mesmo não tendo as
mesmas oportunidades, ainda se costuma referir-se às mulheres como inferiores. Esse
comportamento transparece em comentários públicos, piadas, letras de músicas, filmes
ou peças de publicidade.” 6

As desigualdades nas relações decorrem de papéis de gênero rígidos e discriminatórios


que a sociedade impôs, personificando o homem como “imagem e semelhança” da
espécie humana, enquanto as mulheres, quando as mulheres são ainda crianças, devem
realizar atividades “típicas” de meninas, geralmente atividades que reforçam sua
submissão e o senso de pertencer à um homem. Como assevera Castro, “desse modo, a
dominação e a concepção ginecofobia tornam-se parte natural da sociedade, sendo
reproduzida de forma automática.” 7

Ao longo da história, a dominação masculina tem deixado uma marca profunda,


mantendo a mulher em uma posição de inferioridade. Essa cicatriz é evidente na forma
como o homem impõe punições, a fim de assegurar que a mulher nunca se liberte dessa
condição. Infelizmente, é por meio da violência, seja física, psicológica ou sexual, que o
homem busca manter sua autoridade e dominação sobre o ser feminino. A bestialidade é
utilizada como uma ferramenta fundamental para controlar a mulher, perpetuando essa
dinâmica de poder desigual.

Ademais, não há um perfil definido de agressor, nem padrões universais de


comportamento. Apenas formas variadas e furtivas de punição que o homem exerce em
relação a mulheres de todas as esferas sociais e étnicas – apesar de o contexto brasileiro
revelar números mais alarmantes de violência contra mulheres negras, pardas e de baixa
renda.

Tanto os homens quanto as mulheres sofrem com a violência, mas, a maneira como os
tipos de violência se manifestam, são bem diferentes. Vejamos.

2.3 TIPOS DE VIOLÊNCIA


Importante é a lição da Desa. Nágila Brito quando sustenta que “muitos imaginam
quando se fala de violência, que se está a falar na física, a mais conhecida, quando, na
6
FERNANDES. Sobrevivi... posso contar, p. 15, 2012.
7
CASTRO. A efetividade das medidas protetivas no âmbito da violência contra a mulher, p. 12, 2023.

17
verdade, temos, ainda, a sexual, a moral, a patrimonial e a psicológica e, não raro esta
última resvala para danos físicos porque deflagradoras da depressão que pode levar ao
suicídio, vários tipos de cânceres, dentre outras patologias psicossomáticas.” 8

A problemática da violência contra a mulher, em suas diversas manifestações, tem sido


objeto de estudo e merece ser difundida para além dos profissionais do campo jurídico,
para que o conhecimento sobre essa questão se dissemine amplamente, alcançando
todas as esferas da sociedade.

2.3.1 Física
A violência física contra a mulher, definida pela Lei Maria da Penha como “qualquer
conduta que ofenda a sua integridade ou saúde corporal” (art. 7º, I), configura qualquer
lesão física, aparente ou não, que provoque danos à saúde ou integridade física dessa.

Não obstante essas agressões são praticadas pelo companheiro, atual ou ex, filho, tio,
irmão, cunhado, alguém que mantém ou manteve convivência com a vítima, por ligação
amorosa, de parentesco, ou de trabalho doméstico. Eluf sinaliza que “muitas vezes, a
justificativa dada pelos agressores para essas lesões é o ciúme, que nasce de uma
necessidade ilimitada de dominar e uma preocupação exagerada com sua reputação.” 9

Na prática essa violência se manifesta através de tapas, empurrões, chutes, bofetões,


puxões de cabelo, beliscões, mordidas, queimaduras, tentativas de asfixia, ameaças com
faca ou verbais, assédio sexual, tiros desferidos contra a mulher, dentro do lar ou na via
pública. Essas ações se perpetuam de maneira cíclica na vida da mulher. O fenômeno
conhecido como "ciclo da violência doméstica"10 é caracterizado pela sequência de três
fases distintas. A primeira fase consiste no acúmulo de tensões, em que a mulher busca
manter seu agressor em uma situação confortável para evitar uma explosão violenta. Na
segunda fase, ocorre o descontrole do agressor, motivado por qualquer motivo, e ele
atribui a culpa à mulher pela sua própria reação violenta, justificando-a como um
castigo "merecido". Na terceira fase, denominada de "lua de mel", o agressor demonstra

8
BRITO. Conhecendo a violência doméstica: do passado ao presente. Como enfrentá-la no futuro?
Revista Bahia forense, pg 24.

9
ELUF. A paixão no banco dos réus, pg 51, 2011.
10
Termo criado em 1979, pela psicóloga norte-americana Lenore Walker para identificar padrões
abusivos em uma relação afetiva.

18
arrependimento e pede perdão à mulher. Contudo, geralmente, a situação tende a se
repetir em ciclos subsequentes, aumentando o perigo e o risco enfrentados pela vítima.

Diante de uma situação de dependência, seja ela de natureza econômica e/ou emocional,
a vítima acaba por permanecer presa no ciclo da violência, deixando de buscar auxílio e
não reconhecendo o momento em que deve romper o relacionamento abusivo. Esse
padrão de comportamento persiste até que, infelizmente, a vítima se torne uma
estatística trágica de feminicídio no país, infelizmente, tornando a promessa
matrimonial “até que a morte nos separe” fidedigna.

Recentemente na grande mídia brasileira11 fomos apresentados ao caso da modelo e


apresentadora de televisão Ana Hickmann que foi agredida pelo seu cônjuge - com
quem possui uma união de cerca de 25 anos - durante uma discussão em sua residência,
na frente dos filhos e colaboradores. Hickmann em seu depoimento dado à polícia civil
conta que o marido fechou uma porta em seu braço e tentou agredi-la com cabeçadas,
fato que a fez precisar ser encaminhada ao hospital na ocasião. Infelizmente, a
apresentadora alega que “não sofreu maiores consequências a sua integridade física”, e
apesar de ciente da existência, recusou o requerimento das medidas protetivas dispostas
na LMP.

Não coincidentemente, na mesma semana, outra apresentadora registrou queixa-crime


contra o ex-companheiro. A também influenciadora Patrícia Ramos acusou o ex-marido
de violência doméstica - não apenas na forma física, mas também, moral, psicológica e
patrimonial, que serão abordadas mais adiante - apresentando à autoridade policial uma
série de fotografias onde aparece visivelmente machucada, bem como vídeos de
discussões entre o ex-casal. Diferente do caso anteriormente abordado, Patrícia solicitou
medida protetiva de distanciamento contra o agressor.12

Maria Berenice Dias13 acredita que a causa para essa realidade é uma só, a existência de
uma ideologia patriarcal.

11

https://www.correiodopovo.com.br/arteagenda/ana-hickmann-o-que-se-sabe-sobre-a-den%C3%BAncia-
da-apresentadora-contra-o-marido-de-agress%C3%A3o-1.1418067
12

https://www.metropoles.com/colunas/fabia-oliveira/patricia-ramos-abre-queixa-crime-contra-o-ex-mari
do
13
Maria Berenice Dias, Quando a vítima é mulher. 03/09/2021 Acesso em:
https://berenicedias.com.br/quando-a-vitima-e-mulher/

19
“Uma cultura machista que reina em uma sociedade ainda conservadora,
em que o homem acredita ser superior à mulher; que ela lhe deve
obediência. O homem se tem como proprietário do corpo e da vontade da
mulher. Tem poder sobre ela, o que a transforma em um objeto de sua
propriedade. Sendo dono da mulher, não aceita perdê-la. Não admite ser
abandonado. Essa errônea concepção de poder é que assegura o suposto
direito de o macho fazer uso de sua superioridade corporal e força física
sobre a fêmea.”

Conforme discutido previamente, a mulher na sociedade brasileira é lamentavelmente


subjugada a um status de mero objeto, uma propriedade do agressor que detém o
suposto direito de exercer total controle sobre ela. Essa perspectiva sombria é resultado
direto de uma herança profundamente arraigada no sistema patriarcal que moldou nossa
sociedade, concedendo ao homem um poder desmedido sobre a vida e a morte de uma
mulher.

2.3.2 Psicológica
No contexto da violência doméstica ou familiar contra a mulher, é frequente a
ocorrência de violência psicológica, conceituada pela Lei Maria da Penha como
"qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima, prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento, degrade ou controle suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, por meio de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição persistente, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e restrição do direito de ir e vir, ou qualquer outro meio que
prejudique sua saúde mental e sua autonomia" (art. 7, II). Essa forma de violência
também é abordada pelo artigo 129 do Código Penal, que a considera como lesão
psicológica.

Essa forma de violência contra a mulher representa uma forma extremamente perigosa
pois destrói a vítima de diversas formas causando a deterioração da saúde mental,
causando cicatrizes não no corpo, mas, na alma. Para o doutrinador Nelson Hungria, “a
deterioração da saúde mental é considerada uma forma de lesão corporal, uma vez que a
inteligência, a vontade ou a memória estão intrinsecamente ligadas à atividade funcional
do cérebro, que é um dos órgãos mais importantes do corpo.” 14

14
HUNGRIA. Código Penal Comentado, p. 426, 2008.

20
Na prática, esse tipo de violência se manifesta através de ações que incluem insultar e
denegrir uma mulher, chamando-a de estúpida, incapaz, burra, louca, prostituta, gorda,
feia, apontando constantemente seus erros e declarando que ela nunca é boa mãe, que
nunca foi desejada e não merece coisas boas. Também envolve ofensas e difamações
dirigidas aos familiares da mulher, além de vigiá-la ou segui-la em seu local de trabalho,
momentos de lazer e em todos os lugares que frequenta. O agressor pode negar qualquer
demonstração de afeto, apenas para puni-la, ameaçá-la, agredi-la física ou verbalmente e
até mesmo ameaçar a vida dela e/ou de seus filhos, chegando ao extremo de ameaçar
suicídio. Outras formas de controle incluem impedir que a mulher trabalhe, tenha
amizades, dirija, saia de casa, revelar aventuras amorosas e acusá-la de infidelidade.

Além disso, vêm sendo desveladas outras práticas machistas que afetam as mulheres, de
muitas formas, limitando as suas possibilidades e minando suas forças, a exemplo do
manterrupting, bropriating, mansplaining e gaslighting.

O fenômeno conhecido como gaslighting (o termo indica um “apagar e acender de


luzes”) tem origem no filme “Gas Light” (À Meia Luz)15 de 1944, e pode ser entendido
como uma forma de violência emocional que ocorre por meio da manipulação
psicológica da mulher, levando-a a questionar sua percepção da realidade e até mesmo
sua sanidade mental. Em razão da dissimulação dos atos violentos por meio de ciúmes,
controle, humilhações, ironias e ofensas, a vítima, por vezes, negligencia a percepção
dos sinais.

Por outro lado, o mansplaining ocorre quando um homem explica algo que é óbvio para
aquela mulher quando um homem tenta explicar os sentimentos, pensamentos,
comportamentos e o próprio funcionamento do corpo da mulher para ela mesma.

Já o manterrupiting acontece quando uma mulher está falando e algum homem a


interrompe sem deixar com que ela conclua o que está dizendo, podendo atrapalhar a
sua linha de raciocínio. O manterrupting é uma maneira de tentar desnortear uma
mulher para que ela se perca na sua própria fala, acontecendo com mais frequência em
reuniões de trabalho e/ou de amigos, fazendo com que a fala da mulher tenha menor
validade ou seja desconsiderada. Assim como o manterrupiting ocorre com frequência

15
Na trama, o marido tenta convencer a mulher de que ela é louca, manipulando pequenos elementos
de seu ambiente e insistindo que ela está errada ou que se lembra de coisas de maneira incorreta. O
nome faz referência às lâmpadas que alimentadas a gás, e em certo momento piscam. Ela nota, mas o
marido a faz acreditar que está imaginando, fazendo com que a mulher duvide da própria sanidade.

21
no ambiente de trabalho ou acadêmico, o bropriating também é extremamente comum
nesses ambientes. O bropriating consiste na prática de um homem se apropriar dos
feitos estudos, pesquisas, realizações, serviços ou produtos que uma mulher produziu
causando o silenciamento e apagamento histórico das mulheres diante de suas próprias
realizações.

A violência psicológica pode ser provada principalmente por laudo médico e


testemunhas que presenciaram os acontecimentos e/ou o estado em que a vítima ficava.
Além destes, a violência moral pode ser provada documentos, mensagens, e-mail e
outros meios.

Nesse contexto, segundo a juíza Elaine Cavalcante, “os operadores da Justiça precisam
dar credibilidade à palavra da ofendida, desde que coerente com o conjunto probatório,
e considerá-la como suficiente para a condenação, pois, a violência psicológica, por sua
16
vez, tem natureza invisível.” A consequência disto é “a completa anulação da
autonomia da mulher e a maneira como ela é tratada impede-a de cuidar de sua própria
vida.” 17

Ainda, ao estabelecer que a lesão corporal é toda ação que ofenda “a integridade
corporal ou a saúde de outrem”, se a vivência de agressões psicológicas recorrentes
resulta em danos à saúde da mulher, o dispositivo penal deve ser aplicado de forma
combinada às disposições da Lei 11.340/2006. Nesse sentido, a promotora de justiça no
Estado da Bahia, Márcia Teixeira explica, que “não necessariamente você precisa ter um
diagnóstico de transtorno psíquico ou mental, mas que a situação tenha levado a mulher
a desenvolver uma síndrome do pânico, fobia social, ou a tenha levado a fazer
tratamento pós-trauma.”18

2.3.3 Sexual
A violência sexual é um fenômeno universal, em que não existem restrições de sexo,
idade, etnia ou classe social, encontra-se definida na Lei Maria da Penha, inciso III do
art. 7º, in verbis:

16
Titular da Vara Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do TJ/SP em entrevista para
o Informativo Compromisso e Atitude em 2014.
17
BRITO. Dizer não ao machismo: Dever de todos! Bahia Forense, p. 22, 2019.
18
Coordenadora da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
(Copevid) em entrevista para o Informativo Compromisso e Atitude em 2014.

22
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual
não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da
força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer
modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto
ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou
manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos
sexuais e reprodutivos;

A violência sexual pode ser definida ainda como qualquer ato sexual, tentativa de obter
um ato sexual ou outro ato direcionado à sexualidade de uma pessoa por meio de
coerção, realizado por qualquer pessoa, independentemente do seu relacionamento com
a vítima, em qualquer ambiente. Isso inclui estupro, definido como a penetração forçada
fisicamente ou coercedida de forma alguma da vulva ou ânus com um pênis, outra parte
do corpo ou objeto, tentativa de estupro, toques sexuais indesejados e outras formas não
físicas19.

A descrição na Lei Maria da Penha auxilia a evidenciar as diversas formas de violência


sexual, que vão muito além do estupro. Segundo Virgínia Feix, “os estereótipos geram
falsas crenças e expectativas sobre o comportamento das pessoas. Uma das crenças
alimentadas culturalmente é que as mulheres não podem desistir da relação sexual ‘no
meio do caminho’ implicando em uma comum naturalização do uso da força e do
constrangimento contra a manifestação e o exercício autônomo da vontade. Como se o
“sim” dito no cartório, no altar, no bar ou no motel impusesse à mulher um
consentimento permanente, inquestionável, infalível, irretratável.” 20

Mas não será, porém, todo e qualquer crime contra a liberdade sexual que se inserirá
neste conceito. Segundo Cunha, “um delito no qual o agente jamais teve contato com a
vítima, decerto que escapará aos rigores da Lei Maria da Penha. E mesmo quando ele
for mais próximo (um parente, por exemplo, como é tão comum), esse fato, de per si,
não atrai a competência da lei em exame, exigindo-se que o delito tenha sido perpetrado

19
New York: UN, 1993
20
Autora do capítulo do livro Lei Maria da Penha Comentada em uma Perspectiva Jurídico-Feminista, em
entrevista para o Dossiê Violência contra as Mulheres do Instituto Patrícia Galvão.

23
no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto.”21
É o que também disciplina a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, in verbis.

“Esta Corte possui entendimento jurisprudencial no sentido de que a Lei


11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, objetiva proteger a
mulher da violência doméstica e familiar que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico, e dano moral ou patrimonial,
desde que o crime seja cometido no âmbito da unidade doméstica, da
família ou em qualquer relação íntima de afeto. Precedente. Na hipótese
dos autos, o crime de estupro de vulnerável foi cometido contra a filha da
prima do recorrido, que se aproveitando desta condição adentrou na casa
da vítima e a obrigou à prática de ato libidinoso diverso da conjunção
carnal. Neste cenário, não se evidencia que o delito eventualmente
praticado teve como motivação o dolo específico exigido para a aplicação
da Lei Maria da Penha. Ausência de comprovação da relação
doméstica-familiar ou de vínculo de parentesco apto a atrair a aplicação
da Lei Especial” (STJ, AgRg no REsp 1.427.927-RJ, j, 20.03.2014, rel.
Moura Ribeiro, DJe 28.08.2014).

Vale ressaltar, que há pouco passou a admitir a doutrina e a jurisprudência a violência


sexual praticada pelo marido como forma de estupro devendo ser a pena aumentada da
metade (art. 226, II CP). No entanto, ainda não há números concretos do chamado
estupro doméstico, pois, persiste a ideia de que é obrigação da mulher ‘servir’ ao
marido – então, muitas vezes, ela não reconhece a violência que sofre ou não denuncia o
parceiro.

De acordo com Aparecida Gonçalves, “a violência sexual é a mais cruel forma de


violência depois do homicídio, porque é a apropriação do corpo da mulher – isto é,
alguém está se apropriando e violentando o que de mais íntimo lhe pertence. Muitas
vezes, a mulher que sofre essa violência tem vergonha, medo, tem profunda dificuldade
de falar, denunciar, pedir ajuda.” 22

21
CUNHA. Violência doméstica: Lei Maria da Penha: Comentado artigo por artigo, p. 08, 2015.
22
Secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as
Mulheres da Presidência da República em entrevista para o Dossiê Violência contra as Mulheres do
Instituto Patrícia Galvão.

24
A violência por parceiro íntimo (física, sexual e psicológica) e a violência sexual
causam sérios problemas de saúde física, mental, sexual e reprodutiva de curto e longo
prazo para as mulheres, como por exemplo: Suicídio, ferimentos, gravidezes não
planejadas, abortos induzidos, problemas ginecológicos e infecções sexualmente
transmissíveis (incluindo o HIV), depressão, estresse pós-traumático, ansiedade,
insônia, transtornos alimentares, dores de cabeça, fibromialgia, mobilidade alterada, uso
de substâncias ilícitas, isolamento, dificuldade de trabalhar, alteração de peso,
habilidade limitada de cuidar de si ou de seus filhos. A antropóloga Débora Diniz, em
artigo publicado em 2013 no jornal O Estado de S. Paulo, assevera que “uma mulher
vitimada pelo estupro não é só alguém manchada na honra, mas alguém
temporariamente alienada da existência”. Para a entrevistada, o estupro é um ato
violento de demarcação do patriarcado nas entranhas das mulheres.

2.3.4 Patrimonial
A violência patrimonial, conforme estabelecido na Lei Maria da Penha, inciso IV do
artigo 7º, refere-se a “qualquer ação que envolva a retenção, subtração, destruição
parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores, direitos ou recursos econômicos de uma pessoa, incluindo aqueles destinados a
suprir suas necessidades”.

Maria Berenice Dias destaca que “a violência patrimonial é identificada como a


apropriação indevida de valores, direitos e recursos econômicos destinados a suprir as
necessidades da mulher.” 23

Na prática, essa forma específica de violência pode ser identificada por meio de
comportamentos como a utilização indevida do cartão de crédito da vítima, contraindo
dívidas sem sua devida quitação, o emprego de coação para que assine procurações com
o intuito de alienar seus bens, bem como a imposição de medidas de interdição com o
objetivo de retirá-la da administração de seus próprios recursos e propriedades, entre
outros exemplos correlatos. Isso é feito por esposos e companheiros em relação às suas
esposas e companheiras.

Mesmo quando tratamos da violência patrimonial, não é possível reduzir todo o


ocorrido a questões meramente financeiras. O marido, ou companheiro, pode, por

23
DIAS. A Lei Maria da Penha na Justiça – A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência
doméstica e familiar contra a mulher, 2013.

25
exemplo, fazer com que a esposa ou companheira se sinta incapaz de ser produtiva e de
contribuir para o orçamento doméstico. Não se trata, assim, de simplesmente impedir a
vítima de trabalhar, mas sim de fazê-la se sentir incapaz de realizar qualquer atividade
remunerada.

Embora seja possível que muitos acreditem que esse tipo de violência tenha se tornado
inexistente na sociedade moderna atual devido ao aumento da participação das mulheres
no mercado de trabalho, ocupando cargos de alto desempenho e obtendo independência
financeira, é importante ressaltar que a dependência emocional, a persistência da cultura
patriarcal e o sentimento de culpa ainda podem fazer com que mesmo essas mulheres
profissionalmente bem-sucedidas, que não dependem financeiramente de seus parceiros,
encontrem-se em situações de violência doméstica.

Infelizmente, ainda estão presentes nos Tribunais Pátrios decisões relacionadas a


violência doméstica e familiar patrimonial contra a mulher em que o magistrado tende a
condicionar o amparo a mulher apenas se esta for considerada “hipossuficiente e/ou
vulnerável”. A condição de vulnerabilidade e fragilidade da mulher envolvida em um
relacionamento íntimo de afeto, conforme estabelecido pelas disposições da lei
pertinente, se torna evidente por si só. Com efeito, a presunção de hipossuficiência da
mulher, indicando a necessidade de o Estado fornecer proteção especial para remediar a
desigualdade existente, é um pressuposto fundamental para a validade da própria lei.

É importante ressaltar que o legislador não condicionou, em momento algum, esse


tratamento diferenciado à demonstração explícita dessa presunção, que, aliás, é inerente
à condição da mulher na sociedade contemporânea, como exemplarmente pontuado pela
Ministra Relatora Laurita Vaz, no caso Luana Piovani versus Dado Dolabella.24

Vale ressaltar que com o avanço da sociedade, advento da internet e o mundo digital
surgiram novas formas de vitimizar mulheres de maneira patrimonial, um exemplo
disto, são as violências virtuais, como falaremos no tópico mais adiante. Nesse
momento, é importante conhecer que dentro dessas violências, podemos falar sobre a
violência patrimonial-virtual, onde as mulheres são vítimas dos chamados Scammers ou
Golpistas da Nigéria que criam falsos perfis para seduzir corações e confundir as
mentes. É o tipo de homem que muitas mulheres idealizam, estão disponíveis e são

24
REsp 1416580/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe
15/04/2014.

26
carentes, querem recomeçar a vida, mas, na verdade, nem a foto, nem a história são
verdadeiras, a finalidade é sempre tirar dinheiro da vítima.

Assim como as violências já abordadas anteriormente, na violência patrimonial a vítima


fica envergonhada, tem decepções, traumas, entra em depressão, além do prejuízo
financeiro.

2.3.5 Moral
Conforme já abordado anteriormente, a violência é a manifestação e prática de
autoridade, de um sujeito sobre outro. Em específico a violência moral está diretamente
integrada na esfera psicológica, comportamentos que possam violar, abalar ou ferir a
essência da vítima, sua representação, sua honra etc.

Ao contrário da violência física, que deixa marcas visíveis, a violência moral atinge a
autoestima, a dignidade e a integridade emocional das mulheres. Essa forma de
violência pode ocorrer em diversos contextos, desde relacionamentos íntimos até
ambientes profissionais e virtuais, perpetuando estereótipos de gênero e prejudicando o
progresso e a igualdade de oportunidades para as mulheres.

Na prática, a violência moral pode ser manifestada de diferentes maneiras, como


proferir calúnias contra a mulher, a acusando de ter cometido um crime sem apresentar
evidências substanciais, ou difamá-la constantemente, atacando sua reputação.

No Brasil, um dos mais evidentes casos foi direcionado à ex-presidente Dilma Rousseff:

O que aconteceu com Dilma Rousseff nos faz saber que o poder violento
do patriarcado não se volta apenas contra as mulheres, mas contra a
democracia como um todo, sobretudo na sua versão cada vez mais
radical intimamente relacionada com as propostas do feminismo como
luta por direitos ao longo do tempo. O que aconteceu com Dilma
Rousseff nos ensina a compreender o funcionamento de uma verdadeira
máquina misógina, máquina do poder patriarcal, ora opressor, ora
sedutor, a máquina composta por todas as instituições, do Estado à
família, da Igreja à escola, máquina cuja função é impedir que as
mulheres cheguem ao poder e nele permaneçam.25

25
TIBURI, Marcia. A máquina misógina e o fator Dilma Rousseff na política brasileira. Revista Cult - UOL,
2016. Disponível em:

27
O caso deixa evidente que não importa a posição que a mulher ocupa na sociedade,
neste caso, o mais alto cargo político no país, muito menos se promulgou a Lei do
Feminicídio (Lei 8.305/2014) e a Lei das Domésticas, ainda sim, uma mulher pode ser
alvo de violência moral.

Vale ressaltar que com o avanço das tecnologias de informação e das redes sociais na
internet, a violência moral tem se disseminado de forma mais rápida e abrangente,
muitas vezes sem deixar rastros evidentes. Essa forma de violência envolve a
ridicularização, a desqualificação e a inferiorização da vítima no ambiente cibernético.

Para Ferreira, é evidente que a mulher é uma das principais vítimas da violência moral
na internet.

Na sociedade em redes, as formas de violência moral contra a mulher


repercutem em escalas globais e, além disso, acabam sendo responsáveis
por criar comunidades e seus respectivos seguidores que aderem a
correntes de pensamento que dedicam-se exclusivamente ao
enfrentamento do empoderamento feminino.26

Érica Lene da Silva, com razão, denomina a violência moral como um dos tipos do que
chama de “violências invisibilizadas” pois perturbam o psiquismo da mulher, não
deixando marcas visíveis.

As violências invisibilizadas trazem em seu bojo manifestações de


caráter sutil, não deixando como regra marcas visíveis, mas provocando
rastros de violências edificados por medo da rejeição, do desrespeito, da
depreciação e da discriminação, promovendo a intimidação, a redução da
autodeterminação e a subjugação. A vítima é presa às amarras de mais
difícil reação porque elas são invisíveis.27

De fato, seja em ambiente virtual ou dentro do lar, a violência moral dentre seus tipos é
a mais difícil de obter elementos para a denúncia e posterior indiciamento de um
agressor. No entanto, caso a vítima consiga reunir provas necessárias, ela pode buscar
reparação por danos materiais e morais por meio de uma ação indenizatória na esfera

https://revistacult.uol.com.br/home/maquina-misogina-e-o-fator-dilma-rousseff-na-politica-brasileira/
Acesso em: 16 nov. 2023.
26
Ferreira, Tarsis Paim. A violência moral contra a mulher praticada pelo ex-companheiro no âmbito
virtual. 2023. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/262756
27
https://tedebc.ufma.br/jspui/handle/tede/tede/3751

28
cível, recentemente houve decisão nesse sentido do STJ que pacificou o entendimento
que “toda mulher vítima de violência doméstica sofre automaticamente dano moral a ser
indenizado”28

Na esfera penal, com o advento da LMP a violência moral ganhou uma proteção maior
e mais abrangente, que a mera tipificação penal, uma vez que, virão acompanhadas de
outras medidas de proteção, punição e especialização.

2.3.6 Virtual
A violência contra as mulheres é muito mais abrangente do que se pensa. Além de
serem vítimas no mundo físico, as mulheres também são as principais vítimas de várias
formas de violência no ambiente virtual. Com o avanço da tecnologia ocorrido nas
últimas décadas e a massificação do uso dessas novas tecnologias, como internet, redes
sociais e smartphones, a violência contra as mulheres ganhou uma implacável
ferramenta. Todos os dias, milhões de mulheres país afora são vítimas de várias formas
de violência, praticadas, em sua maioria, por homens motivados por questões de ódio,
vingança ou de vantagem financeira. No que se refere a violência virtual existem vários
tipos como, sextorsão, estupro virtual e stalking.

Vejamos, a popularmente conhecida como pornografia de vingança é um dos casos mais


comuns e é regida pelo Código Penal:
Art. 216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio,
conteúdo de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado
sem autorização dos participantes:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem realiza montagem em
fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir
pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.
A conduta de “pornografia de vingança” passou a ser considerada como crime com
advento da Lei nº 13.718/ 2018. Ainda em 2018, a Lei 13.772/18 alterou a Lei
11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, a fim de criminalizar o registro não
autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual de caráter íntimo e privado.

28
STJ, REsp 1643051

29
A "pornografia de vingança", representa uma forma de violência que envolve o
vazamento de imagens íntimas pela internet, expondo as mulheres a situações
extremamente humilhantes e dolorosas. Essa forma de violência pode ter impactos
somáticos, desencadeando estresse, depressão e, em casos mais graves, até mesmo
levando ao suicídio.

Já o crime de “sextorsão” “se refere à junção das palavras “sexo” e “extorsão” – que diz
respeito à exigência do envio de material erótico ou à prestação de favores sexuais
frente ameaças de divulgação de informações confidenciais da vítima ou até mesmo de
imagens e/ou vídeos de conteúdo íntimo.” 29

Por fim, o stalking, ou assédio persistente, é um fenômeno que envolve a ocorrência de


um padrão de comportamento indesejado e intrusivo direcionado a um indivíduo
específico, resultando em sentimentos de medo, angústia ou desconforto para a vítima.
Essa conduta é caracterizada por uma sequência repetida e persistente de ações
perpetradas por um indivíduo ou grupo, denominado "stalker", cujo propósito é
monitorar, vigiar, perseguir ou assediar a vítima. As formas de stalking podem variar e
incluem perseguição física, vigilância, monitoramento online, envio de mensagens ou
presentes indesejados, ameaças ou propagação de boatos falsos sobre a vítima.

Os motivos subjacentes ao comportamento de stalking podem ser diversos, tais como


obsessão, busca de controle, vingança ou uma percepção distorcida de poder e
dominação sobre a vítima. É relevante mencionar que a prática do stalking é
considerada ilegal em muitas jurisdições, sendo tratada como uma séria violação dos
limites pessoais e da privacidade.

No contexto legal brasileiro, em 2021, foi promulgada a Lei n° 14.132, conhecida como
Lei do Stalking, a qual acrescentou o artigo 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal). Essa legislação tem como objetivo especificar e
penalizar o crime de perseguição, fornecendo um arcabouço jurídico para coibir e punir
o comportamento de stalking.

Rose Leonel, jornalista e fundadora da ONG Marias da Internet denuncia que “quando
uma mulher sofre um crime de internet, sofre três dores: a da traição da pessoa que você

29
ALMEIDA; ALMEIDA. A violência virtual contra a mulher: Um relato da exposição de imagens íntimas
na internet. Revista Online Fadivale, pg 49-63, 2021.

30
30
amava, a vergonha da exposição e a dor da punição social.” As vítimas deste tipo de
crime são responsabilizadas pela maioria das pessoas, enquanto o agressor ainda é
poupado pela sociedade machista.

Essas mulheres são moralmente condenadas devido à crença de que não conseguiram
evitar situações indesejadas, que foram descuidadas ou que não mantiveram sua
sexualidade restrita à esfera privada e oculta. Além disso, há uma persistência de uma
sexualidade recatada por parte de todos, pois o machismo não está presente apenas nos
homens, mas é uma estrutura fundamental em nossa sociedade.

Da mesma forma, os padrões de masculinidade contribuem para que os homens sejam


predominantemente responsáveis pela prática da "pornografia de vingança". Para muitos
homens, ter uma foto íntima divulgada não é motivo de julgamento moral, mas sim uma
afirmação de sua masculinidade, uma prova de sua virilidade. Essa ideia de controlar é o
que constitui o cerne da questão da violência no Brasil.

Como concluir que aquele ato na internet se trata de uma violência virtual contra a
mulher? É preciso ver como isso repercute na pessoa que foi vítima. A mulher pode
ficar tão mal com aquela exposição que acaba ficando doente e, aí sim, há uma
violência.

Um exemplo atual da violência virtual contra a mulher foi o caso da atriz Carolina
Diekmann31, que deu origem a “Lei Carolina Dieckmann” (Lei nº 12.737/2012) que
incluiu no Código Penal uma série de infrações praticadas no meio digital e prevê a
reclusão de 8 meses a 3 anos e 4 meses para quem divulgar conteúdo roubado de
dispositivo informático. Contudo, ela não prevê especificamente a conduta “pornô de
vingança” quando não houver a subtração das imagens, mas sim a veiculação sem
consentimento.

Infelizmente, ainda não é amplamente reconhecido que certos comportamentos são


formas de violência praticadas contra as mulheres no ambiente digital. Asseveram
Fiorillo e Conte que, “se faz necessário a criação de novos tipos penais para prevenir e
punir estas condutas, devendo adequar-se à nova realidade, sob pena de perder seu
verdadeiro papel, qual seja disciplinar as relações sociais e impor norma, pois, trata-se
de uma realidade ainda pouco explorada, mas que deve ser analisada sob todos os

30
Depoimento no Fórum Fale sem Medo de 2014.
31
Fotos íntimas da atriz foram copiadas de seu computador pessoal e divulgadas na rede.

31
campos das ciências jurídicas, a fim de garantir novos direitos fundamentais, bem como
a efetivação dos já existentes de conduta.” 32

É fundamental compreender que a violência virtual contra a mulher não pode ser tratada
como algo inofensivo ou menos grave do que a violência física ou sexual. Ela afeta
diretamente a autonomia e a liberdade das mulheres, limitando seu acesso ao espaço
público, restringindo sua participação social. Além disso, a violência virtual também
perpetua estereótipos de gênero e reforça desigualdades estruturais presentes na
sociedade.

Essa compreensão de que as violências em geral são um problema de ordem estrutural,


enraizado em desigualdades de poder e normas culturais e sociais que perpetuam a
submissão e a discriminação das mulheres, é fundamental para entender a importância
dos instrumentos normativos de proteção às mulheres na sociedade contemporânea.

Nesse contexto, as medidas protetivas concedidas pela Lei Maria da Penha (Lei nº
11.340/2006) desempenham um papel crucial. Essa lei representa um marco no
enfrentamento à violência doméstica e familiar, estabelecendo um conjunto de direitos e
mecanismos de proteção para as mulheres em situação de violência.

As medidas protetivas visam não apenas assegurar a integridade das vítimas, mas
também promover a ruptura do ciclo de violência e garantir sua autonomia e liberdade.

1 LEI MARIA DA PENHA


A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, trouxe uma perspectiva transformadora
para a luta das mulheres no Brasil. Este dispositivo se destacou como um ponto de
virada, uma vez que reformulou significativamente o sistema legal da época e teve um
impacto duradouro até os dias de hoje.

3.1 Histórico
Maria da Penha Maia Fernandes nascida em Fortaleza no Ceará no ano de 1945 é
farmacêutica bioquímica e se formou na Faculdade de Farmácia e Bioquímica da
Universidade Federal do Ceará em 1966, concluindo o seu mestrado em Parasitologia
em Análises Clínicas na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São
Paulo em 1977.

32
FIORILLO; CONTE. Crimes no ambiente digital. p. 22, 2016.

32
Maria da Penha cruzou o caminho de Marco Antônio Heredia Viveros, um colombiano,
enquanto cursava o mestrado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade
de São Paulo em 1974. Naquela época, Marco Antônio estava envolvido em seus
estudos de pós-graduação em Economia na mesma instituição.

Nesse ano, eles iniciaram um relacionamento amoroso com posterior casamento em


1976. Após o nascimento da primeira filha e a conclusão do mestrado de Maria da
Penha, a família se mudou para Fortaleza, onde nasceram as outras duas filhas do casal.
A partir desse momento, a trajetória dessa história tomou um rumo diferente.

Maria da Penha Maia Fernandes, foi agredida pelo marido durante seis anos. Em 1983,
Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte de Marco Antônio
Heredia Viveros.

Por duas vezes ele tentou assassiná-la. Inicialmente, ele disparou um tiro em suas costas
enquanto a mesma repousava. Como consequência desse ato violento, Maria da Penha
ficou paraplégica devido a lesões irreversíveis nas terceira e quarta vértebras torácicas,
juntamente com laceração na dura-máter e a destruição de um terço da medula esquerda.

Quatro meses depois, quando Maria da Penha voltou para casa ele a manteve em cárcere
privado durante 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho.

O Ministério Público, apenas em 1984, denunciou Marco Antônio, ex-marido de Maria


da Penha por tentativa de homicídio que somente foi levado a júri popular 8 (oito) anos
depois de ter cometido o crime, sendo também condenado a míseros 8 (oito) anos de
prisão. Após a condenação, Marco Antônio interpôs recurso de apelação e permaneceu
solto até seu novo julgamento que foi marcado para o ano de 1995 quando finalmente
foi submetido a novo júri e foi condenado a 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Novamente a defesa interpôs apelação e o réu não foi preso imediatamente. No total,
Marco deveria cumprir 25 anos de pena pela tentativa de homicídio de Maria da Penha,
no entanto, só cumpriu 2 (dois) anos da pena em regime fechado.

O ano de 1998 marcou um momento de extrema relevância para o caso, à medida que
ele adquiriu dimensão internacional. Maria da Penha, juntamente com o Centro para a
Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para
a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), levaram a denúncia do caso perante a

33
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (CIDH/OEA).

Então, em 2001 e após receber quatro ofícios da CIDH/OEA (1998 a 2001) −


silenciando diante das denúncias −, o Estado foi responsabilizado por negligência,
omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres
brasileiras.

Diante da falta de medidas legais e ações efetivas, como acesso à justiça, proteção e
garantia de direitos humanos a essas vítimas, em 2002 foi formado um Consórcio de
ONGs Feministas para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e
familiar contra a mulher: Assim, em 7 de agosto de 2006 foi sancionada a Lei nº
11.340/06 batizada como Maria da Penha.

Nota-se que, embora tenha havido diversos movimentos feministas e a implementação


de leis com o intuito de buscar e garantir os direitos das mulheres, assim como combater
a violência desenfreada contra elas, o Estado brasileiro só promulgou uma norma direta
e efetiva contra a violência às mulheres após ter sido responsabilizado por sua omissão
no caso Maria da Penha perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH).

A denominação da Lei Maria da Penha à Lei Federal nº 11.340/06 foi uma espécie de
retratação simbólica do Estado brasileiro após essa condenação.

Desde sua implementação, inúmeras tentativas de enfraquecer a Lei Maria da Penha por
meio de projetos de lei foram feitas, porém, graças à colaboração entre Maria da Penha,
movimentos feministas e instituições governamentais, a lei nunca experimentou
retrocessos.

1.2 As inovações da legislação


Como já ilustrado anteriormente, a Lei Maria da Penha conceitua de maneira precisa a
violência doméstica como qualquer forma de agressão contra a mulher em um ambiente
doméstico, familiar ou íntimo, estabelecendo-a como uma violação aos direitos
humanos.

Com o advento da legislação vieram também consideráveis inovações no âmbito


jurídico no Brasil. A exemplo disto, podemos citar a questão da competência para julgar
os crimes envolvendo a violência doméstica que antes eram vistos como “de menor

34
potencial ofensivo”, desse modo, eram julgados pelos Juizados Especiais Criminais.
Com a instauração da norma esta competência foi atribuída aos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a mulher.

Ainda dentro do contexto, podemos ainda citar, o advento da promoção de medidas


integradas de prevenção e políticas públicas para o combate a violência. Desta forma, a
lei toma um caráter totalmente educacional, o que simula uma mudança no caráter
legislativo brasileiro, impulsionando a criação de outras legislações de mesmo caráter.

“A lei assume um caráter educativo ao promover programas que abordam


a dignidade da pessoa humana com uma perspectiva de gênero e raça ou
etnia, bem como a capacitação de órgãos em questões de gênero e raça ou
etnia, e a inclusão desses conteúdos nos currículos escolares, entre outras
medidas de caráter educacional.”

Outro passo importante, foram as alterações nos Códigos Penal e de Processo Penal, que
possibilitam a decretação de prisão preventiva de ofício quando houver risco à
integridade física ou psicológica da mulher.

Desde a promulgação da Lei 11.340 em 2006, tem ocorrido várias alterações em seu
texto, além de diversas outras leis que fizeram menção a ela. Além disso, na Câmara
dos Deputados, vários projetos de lei relacionados estão em tramitação. Em 2018, a Lei
13.641/2018 introduziu uma alteração à Lei Maria da Penha ao incluir o Artigo 24-A,
que impõe uma pena de 03 meses a 02 anos de detenção para o agressor que
desrespeitar as medidas protetivas de urgência. Isso proporcionou maior segurança
jurídica nas decisões judiciais.

Já no ano de 2021, a Lei Federal nº 14.132/21 introduziu a tipificação do crime de


stalking no Código Penal. Ainda naquele ano, a Lei nº 14.149/21 estabeleceu o
Formulário Nacional de Avaliação de Risco, com o objetivo de prevenir mortes de
mulheres vítimas de agressão.

No ano de 2022 o STF promoveu uma mudança substancial na LMP sendo considerada
talvez a mais controversa entre os juristas. O Supremo Tribunal Federal (STF)
considerou válida a alteração promovida na Lei Maria da Penha introduzida pela Lei
13.827/2019 para permitir que, em casos excepcionais, a autoridade policial afaste o

35
suposto agressor do domicílio ou do lugar de convivência quando for verificado risco à
vida ou à integridade da mulher, mesmo sem autorização judicial prévia, desta forma, a
medida poderá ser implementada pelo delegado de polícia, quando o município não for
sede de comarca​(quando o juiz responsável não mora na localidade), ou pelo policial,
quando não houver delegado disponível no município no momento da denúncia. Nesses
casos, um juiz deve ser comunicado, em no máximo 24h, para decidir sobre a
manutenção ou revogação da cautelar.

A controvérsia se dá por um lado porque acredita-se que a entrada de um policial sem


autorização judicial em qualquer domicílio viola princípios constitucionais da reserva
de jurisdição, do devido processo legal e da inviolabilidade do domicílio (incisos XII,
LIV e XI do artigo 5º da Constituição Federal). E, ainda, que o afastamento provisório
do agressor do lar é uma medida cautelar e, por esse motivo, só pode ocorrer com
autorização prévia do Judiciário.

Por outro lado, os defensores da mudança acreditam que a medida é excepcional e visa
dar celeridade à proteção da mulher em situações de violência doméstica nas quais não é
possível, com a devida urgência, conseguir autorização judicial prévia. Nesse passo foi
o voto do Relator Min. Alexandre de Moraes quando afirmou que a autorização legal
para que policiais e delegados de polícia atuem de forma supletiva para interromper o
ciclo de violência doméstica não viola a prerrogativa constitucional do Judiciário de
decretar medidas cautelares.33

O ano de 2023 bateu recorde em inovações na LMP, principalmente no concerne a


temática das medidas protetivas, as quais falaremos mais adiante. Neste ano o
Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, o até então Projeto de Lei
4.875/2020, que alterou a Lei Maria da Penha permitindo que o juiz conceda como
medida protetiva à vítima, auxílio-aluguel por até seis meses, a ser custeado pelo
Estado, definindo o valor pago de acordo com a vulnerabilidade da vítima.

Houve ainda, a alteração legislativa que acrescentou o inciso 5 ao artigo 19 da referida


lei disciplinando que “as medidas protetivas de urgência serão concedidas

33
ADI 6138 / DF - DISTRITO FEDERAL AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min.
ALEXANDRE DE MORAES - Julgamento: 23/03/2022 - Publicação: 09/06/2022 - Órgão julgador: Tribunal
Pleno (https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur465627/false )

36
independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou
cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.”.

Tal alteração trouxe significativas críticas no mundo jurídico, pois, para os críticos
haveria um afastamento da igualdade prevista em lei, um estímulo à má-fé, bem como, a
banalização da medida protetiva. Por outro lado, há quem defenda que a alteração
apenas formalizou um procedimento que já ocorria na prática.

Por fim, é possível ainda citar brevemente, a Lei 14.550/2023 que teve como origem em
proposta no PL 1.604/2022, da então senadora e atual ministra do Planejamento,
Simone Tebet, sancionada pelo presidente Lula, prevendo que basta o depoimento da
mulher perante autoridade policial ou apresentação de suas alegações escritas para a
concessão de medidas protetivas. Prevendo ainda que estas fiquem em vigor enquanto
persistir o risco a integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da
ofendida e seus dependentes.

“A nova legislação torna a precaução, e não a comprovação plena do ato


de violência, como fundamento das medidas protetivas. A proteção à
mulher está agora garantida mesmo na hipótese de não haver processo
cível ou criminal ajuizado pela vítima, inquérito policial ou registro de
boletim de ocorrência. Simone Tebet ressaltou que a medida afasta a
aplicação das interpretações jurisdicionais restritivas da Lei Maria da
Penha.”34
3.3 A responsabilidade na efetivação da Lei Maria da Penha
A Lei nº 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, estipula que a
União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios detêm a responsabilidade
compartilhada, cada um no âmbito de sua competência, para garantir a efetiva aplicação
dessa legislação. Essa abordagem colaborativa visa a assegurar a plena vigência e
cumprimento dos dispositivos da lei, que visa a prevenir e combater a violência
doméstica e familiar contra a mulher.

“Em cada nível federativo, o Poder Judiciário, o Ministério Público, a


Defensoria Pública, a Segurança Pública, a Assistência Social e os órgãos
gestores das políticas de Saúde, Educação, Trabalho e Habitação têm
responsabilidades específicas para a integração de funções, ações e

34

https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/04/24/concessao-imediata-de-medida-protetiva-a-
mulher-que-denuncia-violencia-ja-e-lei Acesso em 19/10/2023

37
serviços, visando à efetivação da Lei Maria da Penha e à promoção de
programas e políticas educacionais que disseminem o respeito à
dignidade da pessoa humana com a perspectiva de equidade de gênero,
raça e etnia.”35

Além destes, a sociedade civil, as empresas, organizações não governamentais, e a


mídia36também possuem papel na promoção dos direitos das mulheres, bem como, a
coibição de atos atentatórios a esses direitos.

Nesse sentido, quando falamos a nível Municipal é fundamental o papel das guardas
municipais que atuam no transporte de mulheres entre as instituições dos sistemas de
saúde, justiça e segurança, bem como, na fiscalização do cumprimento das medidas
protetivas de urgência.

A Secretaria de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ) de Salvador, por


exemplo, tem treinamentos específicos para o acolhimento das mulheres vítimas de
violência doméstica e familiar promovendo a capacitação dos agentes municipais, os
preparando para o dia a dia.37

Os governos estaduais/secretarias de segurança pública são responsáveis pela instalação


de secretarias, coordenadorias e demais órgãos de gestão de políticas para mulheres na
respectiva esfera de atuação garantindo o cumprimento da lei. É a partir daí que surgem
as famosas Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAM’s) que na
Bahia são ao todo 15 delegacias38atuando ininterruptamente no registro dos boletins de
ocorrência e na condução dos inquéritos policiais – vale ressaltar, que também é

35

https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/acoes-direitos-e-servicos-para-enfrenta
r-a-violencia/ < Acesso em: 22/10/2023
36
Constituição Federal. Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão
atenderão aos seguintes princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua
divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em
lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
37

https://comunicacao.salvador.ba.gov.br/spmj-treina-guarda-municipal-sobre-acolhimento-as-mulheres-v
itimas-de-violencia/
38
Dados da Secretaria de Políticas para Mulheres do Estado da Bahia.
http://www.mulheres.ba.gov.br/2023/04/3701/Mulheres-vitimas-de-violencia-veja-lista-com-servicos-d
e-apoio-juridico-e-psicologico-gratuitos-oferecidos-na-Bahia.html < Acesso em 22/10/2023>

38
possível realizar boletins de ocorrência e conduzir inquéritos nas delegacias comuns,
sendo responsabilidade dos Estados, por meio das Secretarias de Segurança Pública.

“As delegacias são consideradas porta de entrada das mulheres na rede


pública de atendimento, tendo atuação decisiva na execução da Política
Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres.”39

Ressalte-se que com o objetivo de aprimorar a atuação das delegacias especializadas no


âmbito da prevenção e da repressão aos crimes de violência contra as mulheres, foi
criada a Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento
às Mulheres, editada em parceria pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da
Presidência da República, o Ministério da Justiça e o Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime (UNDOC) especialmente para o atendimento das mulheres
encaminhadas as DEAM’s.

Mas não é possível falar das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher


(DEAM’s) sem mencionar o papel da autoridade policial (civil e militar) que está
amplamente disciplinado nos artigos 10 e 11 da LMP.

Luís Ricardo Santos em seu artigo “O papel da Polícia Militar na garantia da Lei Maria
da Penha: Tecendo reflexões” destaca que “além de fazer o registro e direcionar para os
órgãos do poder judiciário, proceder os trâmites legais da investigação e prisão dos
malfeitores, ainda compete ao órgão atribuições típicas de serviço de rede de proteção,
redesenhando o processo instrumental da própria instituição que agrega, também,
relações e estratégias de acolhimento, articulação em rede com os serviços de
assistência social e outras demandas de saberes e conhecimentos para além do que
habitualmente compete a ação policial”40

Ademais, temos todo o funcionamento do sistema de justiça de maneira complementar,


a respeito deste podemos citar: A defensoria pública, o Ministério Público e o Poder
Judiciário.

A delicada situação de extrema vulnerabilidade enfrentada por mulheres em cenários de


violência doméstica reforça a importância, como estipulado no artigo 27 da Lei n.

39

https://www.compromissoeatitude.org.br/norma-tecnica-de-padronizacao-das-delegacias-especializada
s-de-atendimento-as-mulheres/ <Acesso em 23/10/2023 >
40
Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação (REASE) pág 626

39
11.340/2006, da presença obrigatória de um advogado, seja ele público ou privado, em
todas as etapas do processo, podendo sua ausência causar a nulidade de referida
solenidade judicial41. No caso da necessidade de ser instituído advogado público, nesse
momento entra a assessoria da defensoria pública.

“A atuação da defensora e do defensor público durante toda a solenidade


judicial deve pautar-se pelo alcance da máxima efetividade dos direitos
da mulher, sem desrespeitar a vontade desta. Não poderá ser a mulher
coagida a retratar-se da representação ou renunciar ao direito de oferecer
queixa-crime. O profissional deve esclarecer a mulher quanto às
consequências advindas de sua decisão, agindo sempre isento de
interesses, compreendendo o contexto cíclico da violência vivenciado
pela mulher. (...) Além disso, a advogada e o advogado ou a defensora e o
defensor público de mulher deverá desempenhar suas funções de forma a
evitar o fenômeno da vitimização secundária por parte dos atores
processuais.”42 (pág. 100 e 101)

As Defensorias Públicas dispõem de um Núcleo ou Defensoria Especializada na Defesa


das Mulheres, dedicado ao fornecimento de assistência jurídica a mulheres que
enfrentam situações de violência, os chamados NUDEM’s. Essas instâncias têm o
compromisso de oferecer orientação legal e representação em processos judiciais, em
todas as instâncias, para mulheres de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade.

“O Núcleo é composto por defensoras e defensores, estagiários(as) e


servidores(as) capacitados para atender, orientar juridicamente, ajuizar
medidas processuais e acompanhar os processos de medidas protetivas e
criminais de mulheres em situação de violência que aguardam
julgamento na Vara Doméstica.”43 (pag 8)

As defensorias também oferecem orientação às mulheres sobre os direitos que lhes são
garantidos, abrangendo aspectos como integridade, guarda de filhos, pensão alimentícia,
acesso a programas sociais, e muito mais. Além disso, fornecem informações sobre as

41
CAMPOS, Carmen Hein de. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 339.
42
https://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/50699/EBOOK_DIREITOS_MULHERES.pdf
43
Cartilha da Anadep-Condege, página 8 < disponível em
https://www.anadep.org.br/wtksite/CARTILHA_ANADEP_CONDEGE_ONLINE.pdf >

40
circunstâncias que podem resultar na prisão do agressor e auxiliam no encaminhamento
para atendimento psicossocial, dentre outras responsabilidades importantes.

No entanto, sua atuação não pode restringir-se ao mero aconselhamento da vítima


durante ou previamente às audiências judiciais, devendo: (i) Orientar as vítimas sobre
seus direitos, fornecendo informações sobre os encaminhamentos necessários na rede de
apoio, que oferecerá suporte ao acompanhamento de ações cíveis ou criminais; (ii)
Requerer medidas protetivas de urgência ou revisar aquelas já concedidas; (iii)
Monitorar o cumprimento das medidas protetivas e, em caso de descumprimento,
solicitar a prisão do agressor; (iv) Atuar tanto na esfera judicial quanto na extrajudicial
na defesa dos interesses da vítima; (v) Desempenhar o papel de assistente de acusação
em ações penais; (vi) Apresentar queixa em casos de crimes de iniciativa privada
envolvendo mulheres, inclusive colaborando com o Ministério Público e a Polícia Civil
na coleta de evidências e em outras atividades pertinentes; (vii) Requerer o sigilo de
endereço e telefone da ofendida, bem como pleitear a tramitação do processo em
segredo de justiça, resguardando a privacidade das informações; (viii) Informar sobre a
retratação ao direito de representação nos crimes que a permitem, requerendo a
designação de audiência para tal finalidade (artigo 16 da Lei n. 11.340/2006).

Quanto ao Ministério Público, Shuenquener ressalta sua importância na atuação da


violência contra a mulher:

“Entre a polícia investigativa e o Poder Judiciário é que está o Ministério


Público; e justamente porque é o titular exclusivo da ação penal pública,
caberá a ele perseguir vigorosamente os culpados, em nome de todas as
mulheres vitimadas que, através da sua voz, clamam por justiça”44 (pag
6)

Apesar de este possuir uma inclinação apenas para as questões de natureza criminal,
cabe a ele representar a sociedade na denúncia e buscar a responsabilização cível
(aquelas em que se discutem guarda de filhos e alimentos para os filhos – por força do
Código de Processo Civil) e criminal do agressor, sendo a sua intervenção obrigatória
nas ações penais públicas e nas privadas – conforme disciplina o Código de Processo
Penal.

44
https://www.cnmp.mp.br/portal/images/FEMINICIDIO_WEB_1_1.pdf Violência Contra a Mulher: Um
olhar do Ministério Público Brasileiro, CNMP (2018) Acesso em 28/10/2023

41
Além disto, deve requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de
assistência social, entre outros; bem como, fiscalizar os estabelecimentos públicos e
particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar,
adotando as medidas cabíveis para sanar as irregularidades constatadas, tudo
disciplinado no capítulo III, artigos 25 e 26 da Lei 11.340 (Lei Maria da Penha).

Para isto, o Ministério Público possui a Comissão Permanente de Promotores da


Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que elaborou roteiros de visitas
técnicas à Casa Abrigo e ao Centro de Referência e Atendimento à Mulher, para servir
de subsídio à propositura de medidas judiciais e extrajudiciais.45

Ressalte-se a importância do inciso III do artigo 26, quando trata do cadastramento de


casos em que ocorre a atuação do Ministério Público, pois, “trata-se de ferramenta
indispensável para gerar estatísticas e relatórios com vistas a orientar a política
institucional nas diversas áreas de atuação.”46 (pag. 4)

Em relação ao Poder Judiciário, cabe a este assegurar o acesso das mulheres em


situação de violência à justiça, nos termos da Lei Maria da Penha em seu capítulo II
(artigo 9º) que disciplina acerca da assistência à mulher em situação de violência
doméstica e familiar.

O acesso à justiça se dá através das Varas, Juizados e Coordenadorias de Violência


Doméstica e Familiar contra a Mulher nos Tribunais de Justiça dos Estados. Cabe ainda
ao juiz expedir a pedido da mulher, da Defensoria/advocacia ou do Ministério Público
medidas protetivas de urgência à vítima de violência em até 48 horas.

Desta forma, se conclui que cada uma dessas instituições possui papel relevante para
assegurar a efetividade da Lei Maria da Penha, no entanto, apesar dos esforços persiste
um déficit quanto ao estrito cumprimento daquilo detalhado na referida norma.

4. AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA


As MPU’s têm o propósito específico de proteger as mulheres em situação de risco
iminente de violência doméstica. Essas medidas são um dos maiores acertos da lei,
45
O ENFRENTAMENTO à violência doméstica e familiar contra a mulher: uma construção
coletiva [S.I]: CNPG, 2011
46

https://www.mpmg.mp.br/data/files/F9/F7/9C/E3/DA44A7109CEB34A7760849A8/Artigo%20-%20A%20
Lei%20Maria%20da%20Penha%20e%20o%20Ministerio%20Publico.pdf

42
baseando-se nos princípios de proteção à vítima e à família, urgência, acessibilidade e
utilidade processual.

A Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a


Mulher (COPEVID) em seu enunciado nº 05, entendeu que:

“As Medidas de Proteção foram definidas como tutelas de urgência, sui


generis, de natureza cível e/ou criminal, que podem ser deferidas de
plano pelo Juiz, sendo dispensável, a princípio, a instrução, podendo
perdurar enquanto persistir a situação de risco da mulher.”47

Na mesma linha, Fredie Didier Jr. e Rafael Oliveira sustentam que as medidas protetivas
previstas na Lei 11.340/2006 são espécies das medidas provisionais previstas no artigo
888, do Código de Processo Civil.

“A Lei Maria da Penha prevê a possibilidade de concessão, em favor da


mulher que se alegue vítima de violência doméstica ou familiar, de
medidas provisionais, dando-lhes, porém, o nome de medidas protetivas
de urgência.” 48

O requerimento de medidas protetivas consiste em simples requerimento da ofendida,


de forma que não são exigíveis formalidades processuais, o que não a desobriga a
demonstração da existência dos pressupostos legais para o acolhimento da pretensão.
Humberto Theodoro Júnior discorre acerca do fumus boni juris e no periculum in mora,
respectivamente.

“para a tutela cautelar, portanto, basta “a provável existência de um


direito” a ser tutelado no processo principal. E nisto consistiria o fumus
boni juris, isto é, “no juízo de probabilidade e verossimilhança do direito
cautelar a ser acertado e o provável perigo em face do dano ao possível
direito pedido no processo principal”49

47
Disponível em:
https://www.compromissoeatitude.org.br/enunciados-da-copevid-comissao-nacional-de-enfrentamento
-a-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher/ Acesso em: 13 de outubro de 2023
48
DIDIER, Fredie Jr. et. al., R. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha (violência doméstica e
familiar contra a mulher), família e responsabilidade, teoria e prática do direito de família. Porto Alegre:
Instituto Brasileiro de Direito de
Família, 2010.
49
LIEBMAN, Enrico Tullio, Manuale di Diritto Processuale Civile, ed. 1968, vol I, nº 36, pág. 92 e VILLAR,
Willard de Castro, Medidas Cautelares, 1971, pág. 59, apud THEODORO JR., Humberto. Processo
cautelar. 15. ed., São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1994.

43
“para a obtenção da tutela cautelar a parte deverá demonstrar fundado
temor de que, enquanto aguarda a tutela definitiva, venham a faltar as
circunstâncias de fato favoráveis à própria tutela. E isto pode ocorrer
quando haja o risco de perecimento, destruição, desvio, deterioração, ou
de qualquer mutação das pessoas, bens ou provas necessários para a
perfeita e eficaz atuação do provimento final do processo principal.”50

Considerando que as medidas protetivas de urgência têm como objetivo prevenir novos
ilícitos e impedir sua continuidade, é facultado ao juiz, no caso concreto, adotar outras
medidas não contempladas em lei, para garantir a proteção integral à vítima e seus
familiares.

Assim, uma vez concedidas as medidas protetivas de urgência, intimados os envolvidos,


em não havendo contestação do requerido, no prazo de cinco dias, os autos de medida
cautelar são apensados ao inquérito policial respectivo.

Dito isto, passaremos a análise das medidas protetivas discriminadas na LMP nos
artigos 22, 23 e 24 que utilizou o critério de diferenciação entre as medidas protetivas
que obrigam o agressor e as medidas protetivas à ofendida.

4.1 Das medidas protetivas que obrigam o agressor


O primeiro artigo a tratar das medidas protetivas é o art. 22 que dispõe acerca das
medidas passíveis a serem tomadas contra o agressor de forma a resguardar a
integridade física e psicológica da ofendida. O supracitado artigo possui incisos que vão
do I ao V, vejamos.

O inciso I determina a suspensão da posse ou restrição do porte de armas do agressor


que segundo Elaine Cristina Monteiro Cavalcante “suspensão da posse de arma
significa o impedimento temporário para a utilização de arma, já a restrição do porte de
arma significa a limitação do porte para aqueles que o possuem”51. Vale ressaltar que, o
legislador partiu do pressuposto de que tal arma é instrumento legalizado nas mãos do
acusado, caso não sendo este o caso, será autuado não apenas na LMP mas também
como infrator conforme o CP.

50
4 LIEBMAN Enrico Tullio, Op. cit. vol. I, nº 36, pág. 92 e CALVOSA, Carlo, Sequestro Giudiziario, in
Novíssimo Digesto Italiano, vol. XVII, pág. 66 apud THEODORO JR., Humberto. Processo cautelar. 15. ed.,
São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1994.
51
Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 15, nº 38, p. 113-132, Janeiro-Abril/2014 Apontamentos sobre as
medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha

44
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto bem ressaltam que “o conceito de
“arma de fogo” deve ser alargado para incluir, também, “acessório” ou “munição” e
“artefato explosivo ou incendiário”, cuja posse irregular também configura crime
(respectivamente, arts. 12 e 16, III, da Lei 10.826/2003); e mesmo “brinquedos, réplicas
e simulacros de armas de fogo”, cuja fabricação, venda, comercialização e importação
são vedadas pelo art. 26 do Estatuto.52

Já no segundo inciso há a determinação do afastamento do lar, domicílio ou local de


convivência com a ofendida, prevendo o afastamento temporário de um dos cônjuges da
morada do casal, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e
alimentos, como veremos mais à frente.

Frisa-se que para Fredie Didier e Rafael Oliveira, citando Carlos Alberto Álvaro de
Oliveira “ a separação de corpos ou o afastamento de que ora se trata não substituem a
dissolução de união estável, a separação ou o divórcio judicial ou extrajudicial”53.

No terceiro e talvez mais importante inciso, o legislador proíbe determinadas condutas


ao agressor visando garantir a integridade física e psicológica da ofendida, haja vista
que quando do rompimento da relação após a situação violenta reiteradas vezes o
agressor procura a vítima. São elas: (i) aproximação da ofendida, de seus familiares e
das testemunhas, fixando limite mínimo de distância entre estes e o agressor; (ii)
contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de
comunicação; (iii) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a
integridade física e psicológica da ofendida;

Esta medida é aplicada atendendo às situações do caso concreto e se revela de grande


utilidade, visto que é uma das mais requeridas e deferidas pelas autoridades.

No penúltimo inciso deste artigo, que trata acerca da restrição ou suspensão de visitas
aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço
similar.

É comum que nessa medida, o magistrado aguarde o laudo psicossocial para decidir
pela concessão dessa medida, haja vista que, a suspensão do poder familiar de qualquer

52
CUNHA, Rogério Sanches et. al. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11340/2006) comentada
artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007
53
DIDIER, Fredie Jr. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha (violência doméstica e familiar
contra a mulher), família e responsabilidade, teoria e prática do direito de família. Porto Alegre: Instituto
Brasileiro de Direito de Família, 2010

45
dos genitores é medida extrema e deve ser adotada com cautela pela autoridade,
perdurando apenas enquanto houver situação de risco.

Elaine Cristina Monteiro Cavalcante citando Rogério Sanches da Cunha defende que o
artigo da legislação, apesar de fazer referência ao fato de que a medida deve ser
concedida aos dependentes menores, deve ser ampliado em seu entendimento para
abranger qualquer membro da relação familiar que tenha contato no âmbito doméstico
com o agressor como no caso do enteado, guardião, tutor, etc.54

As medidas protetivas de urgência que determinam que o agressor deve manter


distância da vítima ou aquelas que afastam o agressor do convívio com a ofendida são
consideradas ordens judiciais. Portanto, o descumprimento dessas medidas protetivas
é considerado crime de desobediência, conforme previsto no artigo 330 do Código
Penal.

Por fim, no quinto e último inciso deste artigo, o legislador cria a concessão da medida
protetiva que obriga o agressor à prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
Uma vez fixados os alimentos como medida protetiva de urgência prevista na Lei Maria
da Penha, são eles devidos desde a data da fixação tanto à mulher quanto aos filhos.

O inciso supradelineado está diretamente ligado aos critérios estabelecidos no artigo


1.695, do Código Civil.55

Vale ressaltar que enquanto as medidas previstas no artigo 22, I, II e III têm natureza
penal, as medidas previstas nos incisos IV e V têm natureza civil, próprias do direito de
família.

4.2 Das medidas protetivas à ofendida

Além das medidas que obrigam o agressor, a lei também prevê medidas que protegem a
vítima nos seus artigos 23 e 24, respectivamente.

O artigo 23 trata de questões relativas ao domicílio em que viviam o agressor e a


ofendida disciplinando acerca do encaminhamento, recondução ou afastamento da

54
CUNHA, Rogério Sanches et al. Violência doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11340/2006) comentada
artigo por artigo. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012
55
Art. 1695. São devidos alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode
prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem
desfalque do necessário ao seu sustento.

46
ofendida e seus dependentes, tudo em um âmbito civil. O referido artigo tem objetivo de
evitar novos atos de violência, bem como, resguardar a vítima e seus filhos de maiores
prejuízos/aborrecimentos. Inclusive, determinando em seu último inciso a separação de
corpos.

Já o artigo 24 trata acerca da proteção à ofendida em um âmbito patrimonial. O primeiro


inciso determina a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor, com o
objetivo de proteger os bens particulares da ofendida ou os bens comuns do casal que
porventura ficaram em poder exclusivo do agressor.

Assim, devem ser imediatamente restituídos à ofendida bens de uso pessoal,


instrumentos de trabalho e bens sobre os quais não haja qualquer dúvida quanto à sua
titularidade, indevidamente subtraídos pelo agressor.

O inciso II proíbe temporariamente, salvo expressa autorização judicial, a celebração de


atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade comum. O dispositivo é de
extrema utilidade em casos em de união estável ou comunhão parcial de bens,
impedindo a alienação dos bens através de determinação judicial de indisponibilidade
dos bens.

Alguns autores criticam a utilidade do inciso em virtude da existência do art. 1.647, I,


do Código Civil que determina que para a venda de bens imóveis sempre será
necessária a anuência expressa, quando a vítima for casada, desta forma, o inciso estaria
esvaziado pelo artigo do Código.

Elaine Cristina Monteiro Cavalcante defende que

“(...) às vezes, a compra de bens também pode causar prejuízo para a


vítima, posto que pode arruinar seus interesses, ainda que passem a
integrar o patrimônio comum. Neste caso a ofendida também pode pedir
a medida protetiva que impeça a compra do bem.”56

Ainda sobre a temática Maria Berenice Dias destaca

“a medida, além de impor ao agressor dever de abstenção, retira-lhe a


capacidade de praticar determinados atos e de exercer determinados
direitos civis que eventualmente recaiam sobre o patrimônio comum do

56
Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 15, nº 38, p. 113-132, Janeiro-Abril/2014 Apontamentos sobre as
medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha

47
casal ou particular da mulher. Assim, qualquer ato praticado em
desobediência à decisão judicial é passível de invalidação.”57

Desta forma, resta evidente a importância do referido inciso, ressaltando-se ainda, que
caso deferida a medida protetiva , o juiz deve providenciar a comunicação ao Cartório
de Notas e ao Cartório de Registro de Títulos e Documentos.

O terceiro inciso trata acerca do instrumento de mandato, que por vezes a vítima confere
ao agressor dando plenos poderes a este para praticar um ou mais atos em nome da
ofendida como se a própria tivesse praticado. O referido determina a suspensão das
procurações conferidas pela ofendida ao agressor.

Este tipo de situação é comum em relacionamentos onde a vítima vive situações de


violência psicológica e patrimonial.

Uma vez revogado o mandato pela mulher, o juiz deve cientificar o mandatário da
decisão, sobretudo porque a validade dos atos praticados após a revogação irão
depender da ratificação da mulher, no caso em apreço. E assim como no inciso anterior
o magistrado deve providenciar a comunicação ao Cartório de Notas e ao Cartório de
Registro de Títulos e Documentos.

Por fim, o inciso IV trata sobre a prestação de caução provisória, mediante depósito
judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e
familiar contra a ofendida, servindo para garantir o pagamento de indenização posterior
à vítima em decorrência do ato ilícito cometido.

Trata-se de medida cautelar que pode ser requerida pela vítima perante a autoridade
policial, mas que, existem grandes dificuldades práticas em sua aplicação em virtude da
dificuldade das autoridades em encontrar elementos informativos necessários sobre a
situação fática. Desta forma, por vezes, o magistrado acredita ser mais conveniente o
ajuizamento direto da ação no juízo cível.

Vale ressaltar que além das medidas descritas nos artigos 23 e 24, a Lei Maria da Penha
contempla outras medidas no Capítulo II, que trata da Assistência à Mulher em Situação
de Violência Doméstica e Familiar. Essas medidas se concretizam através da criação de

57
5 Fredie Didier Jr e Rafael Oliveira, Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha, 326 apud DIAS,
Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

48
programas assistenciais e sociais específicos para mulheres em situação de violência
doméstica. Assim, o art. 9º, assim dispõe:

§ 1º O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em


situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas
assistenciais do governo federal, estadual e municipal

§ 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e


familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:

I – acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da


administração direta e indireta;

II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento


do local de trabalho, por até seis meses.

§ 3º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar


compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento
científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de
emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)
e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros
procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência
sexual.

Arrematar aqui
5 AS MEDIDAS PROTETIVAS COMO UMA FERRAMENTA DE PROTEÇÃO
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é uma importante ferramenta de proteção às
mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, que tem o intuito de corrigir uma
perversa realidade que vem de uma cultura machista que visam garantir a integridade
física, psicológica, sexual, patrimonial e moral das mulheres que sofrem violência por
parte de seus parceiros ou familiares.

Tal processo protetivo, por sua vez, composto pelas medidas protetivas destinadas à
vítima e ao agressor, aspectos procedimentais e consequências do descumprimento,
trata-se de instrumento inovador de intervenção social, dotado de grande aptidão para
modificar a realidade e a vivência de mulheres inseridas nos ciclos de violência.58

58
FERNANDES, V. D. S. Lei Maria da Penha: O Processo Penal no caminho da efetividade.
São Paulo: Atlas, 2015.

49
Muito se fala na doutrina brasileira sobre ineficácia das medidas protetivas. Daniele
Lopes Tobar afirma em seu artigo que “ as medidas protetivas, inclusive aquelas
emitidas durante a vigência da Lei Maria da Penha (antes das modificações, do artigo
12-C e artigo 38), não impediram os agressores de desenvolverem seus atos bárbaros”,
no entanto, meras ponderações de que essas medidas não impedem os agressores, estão
extremamente longe da realidade fática.

Durante o período de coleta de dados (janeiro a outubro de 2023) constatou-se que no


município Salvador/Bahia houve elevada incidência de crimes domésticos e familiares
contra a mulher, porém, a revelação desses números também revelou a importância da
concessão das medidas protetivas, e, como sua existência é fundamental na proteção da
vida da mulher. Somente no ano de 2023, segundo dados coletados no Núcleo de
Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (NEVID)
que realiza o ajuizamento das medidas protetivas através do Ministério Público da
Bahia, foram requeridas cerca de 19.810 medidas protetivas de urgência.

A existência desses dados revelou a confiança das mulheres vítimas nos meios de
proteção criados pela Lei Maria da Penha à medida que se percebe que as vítimas vão à
procura de ajuda, situação antes inimaginável por muitas delas. Se hoje o fazem é pelo
fato de confiarem mais na lei, no sistema jurídico.

Ainda, segundo dados coletados na DEAM no bairro de Periperi, subúrbio da capital


baiana, no ano de 2023 entre os meses de janeiro a novembro foram registrados 2.582

50
boletins de ocorrências, em 595 deles houve a requisição da vítima de medida protetiva
contra o agressor.

Como qualquer dispositivo de lei, a LMP ao instituir as medidas protetivas, não


conseguir ter 100% de efetividade na proteção da vítima, mas, isto não se deve a
qualquer defeito em seu dispositivo legal, eis que como já demonstrado, é
extremamente dotado de aplicabilidade.

Segundo dados da Coordenadoria da Mulher do TJBA, no judiciário entre janeiro e


outubro do ano de 2023 foram distribuídas cerca de 4.224 medidas protetivas apenas no
município de Salvador.

51
Estes números refletem claramente que a ação do legislador coíbe a violência contra a
mulher, e, as medidas protetivas, são uma ferramenta que impede os agressores de
desenvolverem seus atos bárbaros.

A Lei Maria da Penha é um triunfo de todas as mulheres, que visa equilibrar a justiça
entre homens e mulheres, mas, apenas a imposição das medidas protetivas previstas
na Lei n. 11.340/2006 não é o suficiente para acabar com a violência doméstica contra a
mulher.

5.1 Os obstáculos
Maria Berenice Dias defende que apesar da LMP ser uma das mais avançadas no
mundo, sendo submetida a sucessivas reformas, o que a autora chamou de “cirurgias
reparadoras”, estas nem sempre a tornam melhor, ou melhor dizendo, mais eficazes. A
autora ainda se questiona se essas reformas bastam para a efetividade da legislação.59

Ocorre que apesar da referida legislação ter tido uma melhor aplicabilidade em
relação ao momento de sua criação, as autoridades judiciais e policiais ainda

59
Há o que comemorar no aniversário de 15 anos da Lei mais popular do Brasil? Maria Berenice Dias
Disponível em: Há o que comemorar no aniversário de 15 anos da Lei mais popular do Brasil? Acesso em
16/11/2023

52
encontram obstáculos na fiscalização do cumprimento das medidas impostas. É o que
comenta a delegada titular da DEAM Periperi quando questionada em entrevista sobre o
acompanhamento da concessão e cumprimento das medidas protetivas:

“(...) Nós não temos nem tempo de ter curiosidade sobre o desenrolar de determinado
caso…Temos uma demanda muito grande aqui. Saí uma vítima, entra outra. É muito
difícil realizar esse acompanhamento.”

Isso se dá principalmente em virtude da grande quantidade de casos de violência


doméstica e familiar e a pequena quantidade de delegacias especializadas, além da
dificuldade na estrutura oferecida pelo Estado às autoridades. Ao todo 1.464 municípios
brasileiros não têm delegacia de polícia, e em todo território baiano existem apenas 15
delegacias especializadas, sendo duas delas na capital, ou seja, cobrindo 3,5% do
território baiano já que a Bahia tem 417 municípios, sendo estas responsáveis por
desenvolver todas as ações para proteger as vítimas das agressões cometidas no presente
e prevenir o acontecimento de agressões futuras. E o pior, apesar de sancionada a lei
14.541/2023 que prevê em todo brasil o funcionamento 24 horas das delegacias
especializadas de atendimento à mulher, inclusive nos finais de semana e feriados, na
cidade de Salvador apenas duas delas - nos bairros de Paripe e Brotas - tem o
funcionamento conforme estabelecido na legislação.

Ainda acerca da dificuldade no acompanhamento da vítima e da medida protetiva, na


coleta de dados encontramos a mesma dificuldade no já supracitado núcleo do
Ministério Público na Bahia, NEVID. Ocorre que, como informado pela promotora
responsável pelo Núcleo, Dra. Sara Gama, após requisitada a medida protetiva através
do núcleo, não são repassados ao órgão dados relativos ao descumprimento da medida
protetiva pelo agressor, o órgão só possui acesso a informações até o momento da
concessão ou não da MPU. No entanto, segundo dados coletados na promotoria, no ano
de 2023 até o mês de setembro, houveram apenas duas situações onde houve negativa
da concessão da medida protetiva, obtendo cerca de 99,9% de sucesso nos
requerimentos.

Ao coletar dados para esta monografia encontramos diversas dificuldades que também
são enfrentadas pelas autoridades. Na DEAM Periperi, por exemplo, a delegada titular
informou que não há um sistema que realize um compilado de dados acerca das
medidas protetivas, sua concessão e cumprimento ou descumprimento, de forma que foi

53
preciso para a coleta consultar manualmente no sistema mês a mês cada boletim de
ocorrência para constatar a existência de medida protetiva. Ainda, pouco se encontrava
no sistema informação de concessão ou não da medida protetiva após o registro na
delegacia, exemplo disto foi no mês de janeiro de 2023, em que foram realizadas 270
denúncias de violência e 70 com pedido de medida protetiva, porém, dentre elas apenas
11 possuíam informações sobre a concessão (ou não) da MPU.

Há de se destacar ainda, que não há ainda dados que evidenciem a reincidência dos
casos, que em análise social, demonstram que agressores que voltam a cometer as
violências com intervalo de um ano, ou as cometem repetidamente.

As autoridades judiciais e policiais fazem o que podem, mas as soluções não são
simples.

Há que destacar que a Lei Maria da Penha ainda é muito recente, assim como,
obviamente, todas as medidas protetivas nela previstas, e, portanto, ainda há muito a ser
realizado de forma a dar concretude ao que já se tem conquistado.

6 CONCLUSÃO
Inovou a Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – ao criar um leque abrangente de
medidas protetivas que obrigam o agressor e protegem a ofendida, visando impedir ou
remover atos ilícitos.
É inegável o impacto positivo dos avanços alcançados graças à Lei Maria da Penha. Nos
últimos anos, observou-se um notável aumento no volume de denúncias.

Maria da Penha, em seu livro Sobrevivi e posso contar, relata que “com a criação da Lei
Maria da Penha senti-me recompensada por todos os momentos nos quais, mesmo
morrendo de vergonha, expunha minha indignação e pedia justiça, para que meu caso, e
tantos outros, não fossem esquecidos”60
Afinal, como afirmou Simone Beauvoir: “não se nasce mulher, torna-se”.

60
FERNANDES, Maria da Penha Maia. Sobrevivi posso contar. 2º ed. Fortaleza: Armazém da Cultura,
2012, p. 89.

54
7 ENTREVISTAS
1. Dra. Iola
2. Dra. Sara Gama
3. Dra.

8 REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de (seleção de opiniões). Convenção Europeia dos
Direitos Humanos. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. Formato: ePub.
Tamanho: 6 Mb.
ALMEIDA, Beatriz; ALMEIDA, Maria. A violência virtual contra a mulher: Um
relato da exposição de imagens íntimas na internet. Revista Online Fadivale,
Governador Valadares, Ano XVII, nº 22, 2021.
BRITO, Nágila Maria Sales. Ainda sobre a Lei Maria da Penha: uma tentativa de
pacificação dos conflitos hermenêuticos à luz da jurisprudência dos Tribunais
Superiores. Revista Bahia Forense: Doutrina, jurisprudência e súmulas / Tribunal de
Justiça do Estado da Bahia. Catalogação nº 47.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da

55
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o
Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
BRITO, Nágila Maria Sales. Conhecendo a violência doméstica: do passado ao
presente. Como enfrentá-la no futuro? Revista Bahia Forense: Doutrina,
jurisprudência e súmulas / Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Catalogação nº 48.
BRITO, Nágila Maria Sales. Dizer não ao machismo: Dever de todos! Bahia Forense:
Doutrina, jurisprudência e súmulas / Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
Catalogação 51. Publicada em novembro de 2019.
CASTRO, Soares de, Isabela. A efetividade das medidas protetivas no âmbito da
violência contra a mulher. Revista de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Vol. 10 / jan. 2023.
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ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus. São Paulo: Saraiva, 2011.
FERNANDES, Maria da Penha Maia. Sobrevivi... posso contar. 2. ed. Fortaleza:
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FIORILLO, C. P.; CONTE, C. P. Crimes no ambiente digital. 2ª ed. São Paulo: Ed.
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56
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e=113

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