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A violência patrimonial conta a mulher – suas faces, proteção legal e


medidas de enfrentamento

Giulia Prestes Camargo Antunes*


Wérica Chaves de Góes Oliveira**

Sumário: 1. Introdução; 2. A violência doméstica e familiar contra a mulher; 3. A violência


patrimonial contra a mulher; 4. Medidas protetivas e de enfrentamento; 5. Discussões finais.

1. Introdução
As políticas públicas voltadas ao enfrentamento da problemática sobre violência
doméstica não tem atingido a plenitude do texto legal da Lei Maria da Penha (nº. 11.340/06),
deixando de lado, em especial, o tema violência doméstica contra a mulher no âmbito
patrimonial. Sob essa ótica a crítica que se traz à tona neste trabalho diz respeito ao
desconhecimento ou a ausência da aplicação das medidas de enfrentamento por parte dos
juristas, a qual gera ineficiência ao combate e erradicação da violência desta espécie.
Destaca-se que o presente estudo busca a reflexão inicial, mas não exaustiva sobre a
temática, voltando os olhos dos operadores do direito para a persecução ao pleno
enfrentamento contra a violação dos direitos da mulher no âmbito doméstico e familiar bem
como a promoção de medidas de garantia aos direitos já conquistados.
2. A violência doméstica e familiar contra a mulher
O artigo 5º, caput, da Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340/06) considera como
violência doméstica e familiar contra mulher “qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial”.
A violência doméstica e familiar se caracteriza quando essas ações e omissões são
praticadas no âmbito da unidade doméstica, no âmbito familiar ou em qualquer relação íntima
de afeto. Segundo os incisos I, II e III do artigo 5º, esses ambientes se caracterizam pelo
espaço de convívio permanente, existindo ou não vínculo familiar, pela comunidade formada
por indivíduos que são ou se consideram aparentados, seja por laços naturais ou não e, por
fim, em relações íntimas de afeto, tenha o agressor convivido ou não com a vítima.1

1
BRASIL, Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha).
2

Segundo Maria Berenice Dias, somente o artigo acima mencionado não é suficiente
para chegar ao conceito adequado de violência doméstica e familiar, é necessário também
conjugá-lo ao artigo 7º da referida legislação. Isto porque, fazendo uma análise do artigo 7º e
seus incisos da Lei Maria da Penha (11.340/06), pode-se constatar que, ao contrário do que
muitos acreditam, a violência doméstica ou familiar contra a mulher não se apresenta apenas
na forma de violência física, mas também envolve a violência psicológica, sexual, moral ou
patrimonial, praticadas contra a mulher em razão do vínculo de natureza familiar ou afetiva.2
Para o desenvolvimento deste trabalho, far-se-á uma análise mais aprofundada da
violência patrimonial contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar, prevista no artigo 7º,
inciso IV da Lei Maria da Penha (11.340/06).
3. Violência doméstica patrimonial contra a mulher
Embora o termo violência remeta a tradução popular de emprego de força física, ele
não se resume e tão pouco se limita a esta interpretação, uma vez que o constrangimento
exercido sobre a mulher para obrigá-la a submeter-se à vontade de seu coator atinge outras
esferas seja a moral ou patrimonial merecendo estudo e compreensão para o efetivo combate.
A dor moral já é conhecida na esfera civil abordando um caráter não econômico pois
a vítima é intimamente ofendida e devido as marcas intrínsecas e não visíveis a sociedade
acaba por vezes em não observar como algo grave e desaprovador.
Já a dor patrimonial é a confusão de dores tangíveis e intangíveis que ultrapassam o
âmbito econômico e “implica em perda de direitos, significando tristeza, dor, medo e
angústia”.3
Como comentado anteriormente, o artigo 7º inciso IV, da Lei Maria da Penha
(11.340/2006), vai além da definição consuetudinária da violência, definindo também a
violência patrimonial, como “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição
parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valorese
direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”.4
Assim, podemos constatar que algumas condutas do agressor contra o conjunto dos bens,
direitos e obrigações da vítima mulher são tipificadas em diversos artigos previstos no Código
Penal.

2
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. A efetividade da Lei nº 11340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
3
PEREIRA, Rita de Cássia Bhering Ramos et al. O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA PATRIMONIAL CONTRA
A MULHER: PERCEPÇÕES DAS VÍTIMAS. Oikos: Revista Brasileira de Economia Doméstica, Viçosa, v. 24,
n.1, p.207-236, 2013.
4
BRASIL, Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha).
3

Verifica-se que, neste cenário, onde há a incidência do verbo destruir, há o crime de


dano, previsto no artigo 163 do Código Penal que prevê “destruir, inutilizar ou deteriorar
coisa alheia, tendo a pena de detenção, de um a seis meses, ou multa”. Já onde há a incidência
do verbo subtrair, há o crime de furto, previsto no artigo 155 do Código Penal que descreve o
ato como “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” e atribui “pena de reclusão, de
um a quatro anos, e multa”. Se este ato for cometido com emprego de violência, acaba por
configurar o crime de roubo, descrito no artigo 157 do Código Penal como “Subtrair coisa
móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois
de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência.” E tem como pena a
“reclusão, de quatro a dez anos, e multa.” Se a ação do agressor for de reter os bens da vítima
este comete o crime de apropriação indébita, com previsão legal no artigo 168, do mesmo
diploma legal, em que “apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção”
prevê “pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa”.5
Importante salientar que, no conceito de subtrair valores, direitos e recursos
econômicos destinados a satisfazer as necessidades da mulher, “(...) se encaixa o não
pagamento dos alimentos, onde o alimentante deixa de atender a obrigação alimentar, quando
dispõe de condições econômicas, além de violência patrimonial tipificando o delito de
abandono material.”6
Neste ponto, destaca-se que, ao contrário do que o senso comum acredita, a Lei
Maria da Penha (nº. 11.340/06) não tipificou novos crimes, mas trouxe uma nova visão sobre
os delitos já previstos no Código Penal, quando praticados contra a mulher e em razão do
gênero, ou seja, ela diferencia os crimes em que simplesmente figura como vítima a mulher,
dos crimes que são cometidos contra ela em razão de seu gênero. Além disso, embora as
penas dos delitos sejam as mesmas dispostas no Código Penal, é importante mencionar um
importante avanço, vez que em seu artigo 17 a Lei Maria da Penha proibiu nos delitos desta
natureza a aplicação de penas de cesta básica ou outras de espécie pecuniária, além da
proibição da substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa, por fim,
recentemente o STF entendeu como incabível a substituição da pena privativa de liberdade
por sanção restritiva de direitos.7
4. Medidas protetivas e de enfrentamento

5
Brasil, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.Vide Lei nº 13.964, de 2019.
6
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. A efetividade da Lei nº 11340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
7
RÉGIS, Mario Luiz Delgado. Violência patrimonial contra a mulher nos litígios de família. Disponível em:
https://www.lex.com.br/doutrina_27138477_A_VIOLENCIA_PATRIMONIAL_CONTRA_A_MULHER_NOS
_LITIGIOS_DE_FAMILIA.aspx
4

Muito embora a Lei Maria da Penha esteja completando 14 anos no mês de agosto de
2020, a violência patrimonial ainda passa despercebida, muitas vezes pelos próprios membros
da justiça. Verifica-se esta inobservância nos inúmeros casos que tramitam nas varas de
família do nosso país, onde nos próprios autos dos processos advêm relatos de caracterização
clara e concisa deste tipo de violência, como por exemplo, quando o cônjuge ou companheiro,
para não partilhar o patrimônio com a mulher, acaba por omiti-lo.8
Por outro lado, a Lei Maria da Penha, em sua sessão III, dispõe sobre as medidas
protetivas de urgência, e separa em seus incisos do artigo 24, as medidas especificas para
tutelar a proteção patrimonial da mulher9:

(...) I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;II -


proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e
locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;III -
suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;IV - prestação de
caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais
decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Embora sejam pouco utilizadas, de maneira a trazer mais efetividade à Lei Maria da
Penha quanto à proteção patrimonial da vítima, estas medidas podem ser concedidas pelo
juízo em caráter liminar inaudita altera pars, desde que preencha os requisitos usuais de
perigo de dano e probabilidade do direito10.
As medidas são independentes da ação penal, e além da possibilidade de
requerimento no juízo cível, segundo o artigo 27 da Lei Maria da Penha, podem ser requeridas
pela própria vítima diretamente à autoridade policial, que deverá remeter expediente em
apartado ao juiz, no prazo de quarenta e oito horas, para a concessão das medidas, na forma
do artigo 12, do mesmo diploma legal.11

8
MOURA, Lenise Marinho Mendes et al., A violência patrimonial no âmbito da lei Maria da Penha. Em:
DUARTE JÚNIOR, Alonso Pereira ; LIMA, Alexandre Augusto Batista de; MACHADO, Joana de Moraes
Souza (Org.) Diálogos interdisciplinares no direito: volume 2 [recurso eletrônico] / Alonso Pereira Duarte
Júnior; Alexandre Augusto Batista de Lima; Joana de Moraes Souza Machado (Org.) -- Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2018.pag 17
9
BRASIL, Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha).
10
MOURA, Lenise Marinho Mendes et al., A violência patrimonial no âmbito da lei Maria da Penha. Em:
DUARTE JÚNIOR, Alonso Pereira ; LIMA, Alexandre Augusto Batista de; MACHADO, Joana de Moraes Souza
(Org.) Diálogos interdisciplinares no direito: volume 2 [recurso eletrônico] / Alonso Pereira Duarte Júnior;
Alexandre Augusto Batista de Lima; Joana de Moraes Souza Machado (Org.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi,
2018.pag 172.
11
BRASIL, Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha).
5

Segundo as lições de Régis 12 as medidas previstas para o enfrentamento à violência


patrimonial não se limitam ao texto legal, sendo possível que o juiz determine medidas
diversas para a proteção patrimonial, inclusive com uma decisão construtiva para o caso
concreto, a fim de entregar à postulante a tão desejada efetividade.
5. Discussões finais
O presente estudo buscou discutir a problemática da invisibilidade da violência
patrimonial no meio jurídico, onde muitas vezes os direitos das vítimas são negligenciados,
resultando em inúmeros prejuízos ocasionados em razão da ausência de um olhar acolhedor
por parte dos membros da justiça, ou até mesmo por falta de conhecimento sobre o assunto.
Com isso se observa a necessidadeda promoção à ruptura do ciclo da violência através da
orientação e conscientização das possibilidades de enfrentamento contra a violência
patrimonial garantindo-se assim que a proteção financeira ultrapasse as barreiras do
patriarcado tão enraizado na sociedade mesmo que se denominando como moderna.
É de suma importância que os operadores do direito voltem o olhar para este tema,
uma vez que a partir do momento em que isso aconteça, a vida de muitas vítimas de violência
doméstica e familiar terá significativa melhora. Isto porquê, devemos considerar que na
esmagadora maioria das vezes, as vítimas que sofreram violência física, psicológica, moral e
patrimonial, não conseguem se livrar de seu agressor justamente por conta da dependência
financeira.
Aplicando-se na prática as medidas já previstas na Lei, bem como as medidas
necessárias diante de uma análise mais aprofundada do caso concreto, muitas mulheres terão a
oportunidade de melhorar suas qualidades de vida e livrar-se de seus agressores conservando
seu patrimônio e direitos.

REFERENCIAS
BRASIL,LEI MARIA DA PENHA, LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.
disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11340.htm>

BRASIL, DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Vide Lei nº 13.964,


de 2019. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del2848compilado.htm>

12
RÉGIS, Mario Luiz Delgado. Violência patrimonial contra a mulher nos litígios de família. Disponível em:
https://www.lex.com.br/doutrina_27138477_A_VIOLENCIA_PATRIMONIAL_CONTRA_A_MULHER_NOS
_LITIGIOS_DE_FAMILIA.aspx
6

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. A efetividade da Lei nº 11340/2006
de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2007.

MOURA, Lenise Marinho Mendes et al., A violência patrimonial no âmbito da lei Maria da
Penha. Em: DUARTE JÚNIOR, Alonso Pereira ; LIMA, Alexandre Augusto Batista de;
MACHADO, Joana de Moraes Souza (Org.) Diálogos interdisciplinares no direito: volume 2
[recurso eletrônico] / Alonso Pereira Duarte Júnior; Alexandre Augusto Batista de Lima;
Joana de Moraes Souza Machado (Org.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018. pag 172.

PEREIRA, Rita de Cássia Bhering Ramos et al. O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA


PATRIMONIAL CONTRA A MULHER: PERCEPÇÕES DAS VÍTIMAS. Oikos: Revista
Brasileira de Economia Doméstica, Viçosa, v. 24, n.1, p.207-236, 2013. Disponível
em:<https://periodicos.ufv.br/oikos/article/view/3653/1929>

RÉGIS, Mario Luiz Delgado. Violência patrimonial contra a mulher nos litígios de família.
Disponível
em:<https://www.lex.com.br/doutrina_27138477_A_VIOLENCIA_PATRIMONIAL_CONT
RA_A_MULHER_NOS_LITIGIOS_DE_FAMILIA.aspx>

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