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FACULDADE DE DIREITO DA UMN


TEXTOS DE APOIO DE DIREITO ROMANO
REGENTE E DOCENTE: URBANO DA CRUZ GASPAR

1º ANO DE LICENCIATURA – ANUAL

I - INTRODUÇÃO

1. Conceito de Direito Romano. 2 - Razões do estudo do Direito Romano. 3- Opção


metodológica. 4. Fases de desenvolvimento do Direito Romano

II – FONTES DE DIREITO

1. Preliminares. 2-Costume. 3-Lei. 4-Plebiscito. 5-Senatusconsulto. 6-Edicto. 7-


Jurisprudência. 8-Constituição Imperial.

III - SUJEITOS DE DIREITO

1. Preliminares; 2. PESSOA FÍSICA. 2. 1. Vicissitudes: nascimento e morte ; 2.2. Estatuto


de liberdade; 2. 3. Estatuto de cidadania; 2. 4. Estatuto de família; 2.5. Capitis
deminutio; 2.6. Causas limitativas da capacidade jurídica. 3. PESSOA COLECTIVA: 3. 1.
Personalidade jurídica; 3. 2. Corporações; 3.3. Fundações.

IV - A FAMÍLIA ROMANA
1. Noção; 2. Evolução; 3. Constituição; 4. Poder paternal e parentesco; 5.
Dissolução; 6. Relações pessoais; 7. Relações patrimoniais; 8. Filiação; 9. Tutela e curatela.

V – TUTELA JURÍDICA

A. PROCESSO CIVIL: 1. Generalidades. 2-Processo das Acções da Lei (per Legis


Actiones). 3-Processo das Fórmulas (per Formulas). 4-Processo Cognitório
(Cognitio extra ordinem).

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B. PROTECÇÃO JURÍDICA EXTRAPROCESSUAL: 1. Stipulatio praetoria. 2-Restitutio in


integrum. 3-Missio in possessionem. 4-Interdictum.

VI – DIREITO SOBRE AS COISAS

1. Noção de res. 2-Classificação das coisas. 3-Propriedade privada: 3.1.


Caracterizaçã; 3.2. Modos de aquisição; 3. 3. Perda e revogação; 3. 4. Protecção. 4-
Propriedade pública. 5-Posse. 6-Direitos sobre coisa alheia.

VII– OBRIGAÇÕES

1-Noção, sujeitos e objecto. 2-Origem. 3-Classificação. 4-Contratos: 4.1. Sistema


contratual romano; 4.2. Contratos reais; 4.3. Contratos consensuais; 4.4. Contratos
formais; 4.5. Contratos inominados.

VIII – SUCESSÕES

1. Noção de sucessão; 2. Herança; 3. Bonorum possessio; 4. Herdeiro; 5. Capacidade


e indignidade; 6. Delação; 7. Aquisição da herança; 8. Modalidades.

BIBLIOGRAFIA

1. JUSTO, Santos, Direito Privado Romano I-VI, Coimbra.


2. _______, Breviário de Direito Privado romano, Coimbra.
3. CRUZ, Sebastião, Direito Romano I – Fontes, Coimbra 1984.
4. Kaser, Max, Direito Privado Romano, Lisboa 1999.

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CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO

Sumário:

1. Conceito de Direito Romano; 2. Razões do estudo do Direito Romano; 3. Opção


metodológica; 4. Fases de desenvolvimento do Direito Romano.

1. Conceito de Direito Romano

Entre os ordenamentos jurídicos do passado, o Direito Romano é sem sombra de dúvida o


que em maior medida influenciou os sistemas jurídicos contemporâneos, com particular
referência aos ordenamentos dos Países latino-germânicos.

A expressão “Direito Romano” pode ser tomada em dois sentidos:

a) Em sentido rigoroso, stricto sensu, é o conjunto de normas ou regras jurídicas que


vigoraram em Roma e no seu território desde a fundação de Roma (753 a.C. segundo a
tradição) até 565 d.C. (ano da morte do imperador do Oriente, Justiniano). Esse conjunto
de normas, na sua formação mais desenvolvida, encontra-se hoje no chamado Corpus Iuris
Civilis - compilação do Ius Romanum ordenada pelo imperador Justiniano no séc. VI, e que
é a fonte principal, embora não exclusiva mas imprescindível, para se conhecer o Direito
Romano;
b) Lato sensu, é a tradição romanista: abrangue o período que vai desde o fenómeno
da recepção do Direito Romano até aos nossos dias. É o mesmo ius Romanum, enquanto
vigente noutros povos e territórios, embora com algumas alterações ou adaptações.

2. Razões do estudo do Direito Romano

O estudo do direito romano justifica-se por vários motivos:

1. O contributo da formação do jurista: a primeira e maior de todas as razões justificativas.


Na verdade, o estudo do Ius Romanum fornece ao jurista uma notável lição de experiência,
imbuindo-o dum espírito de justiça, sempre na ânsia de honestae vivere (não abusar dos
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seus direitos) alterum non laedere (não prejudicar ninguém), e de suum cuique tribuere
(atribuir a cada um o que é seu; o devido, nem mais nem menos). Este estudo dá
verdadeira formação jurídica, educando:

a) para uma certa liberdade e uma relativa independência perante a lei, ensinando
a valorar a jurisprudência;

b) para um casuísmo científico, em que o jurista deve saber, não apenas


interpretar e aplicar as normas aos casos concretos, mas fundamentalmente saber criar a
norma adequada para um caso concreto, especial e não previsto nas normas já existentes;
c) para uma firmeza de princípios perante as transformações da vida jurídica
actual;

2. A perfeição técnico-jurídica: foram os romanos que fizeram do direito uma verdadeira


ciência. Criaram certos princípios que são perenemente válidos, pois foram elaborados
durante uma experiência de treze séculos por homens dotados duma excepcional intuição
para as coisas do direito;

3. O interesse prático e histórico: As nossas instituições jurídicas, na sua maioria, estão


baseadas no Ius Romanum. Algumas das nossas normas actuais são meras transcrições ou
simples adaptações de certos preceitos romanos; outras, até nem se compreendem bem,
se não se conhecer o que estava preceituado no Direito Romano. Hoje, fala-se não apenas
de interesse prático mas de transfusão do Ius Romanum para o Direito actual e para a
Ciência Jurídica moderna.

3. Opção metodológica

Dado o alto valor formativo do estudo desta matéria, como referido, a orientação a
imprimir a essa abordagem deverá ser histórico-dogmática. Histórica, para, a traços lagos,
relevar a evolução das instituições jurídicas de Roma e das respectivas fontes, isto é, o
sentido genético do sistema do Ius Romanum; analisar os factos que concorreram para a
criação, modificação ou extinção das suas normas e dos seus conceitos; e sobretudo
dogmática, porque apesar de ser ordenamento do passado, é ainda um ordenamento
vivente, enquanto encerra princípios fundamentais – perenemente válidos e universais -,
de que não podemos de forma alguma afastar-nos sob pena de ficarmos a ignorar as
verdadeiras bases jurídicas de convivência humana. Por conseguinte, o grande aspecto
dogmático do Ius Romanum está em este conter a orientação geral da ciência jurídica, é
não reside apenas no facto de nesse Ius existirem institutos que correspondem a institutos
modernos.

4. Fases de desenvolvimento do Direito Romano

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


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No ciclo ininterrupto de vigência (753 c.C – 565 d.C.), o sistema jurídico romano teve de
sofrer alterações profundas, para corresponder às transformações sociais dos tempos. No
início, o Ius Romanum forma um sistema fechado, próprio só dos quirites, duro e feroz
como aquela gente guerreira, impelida a lutar pela sua subsistência; formalístico e
rigoroso como a ordem que impera numa sociedade agrícola e patriarcal. Pouco a pouco,
devido não só à transformação social da civitas, aos contactos com usos e costumes
doutras gentes, mas sobretudo ao génio criador dos grandes juristas de Roma, esse
Direito, embora mantendo-se fiel à sua estrutura originária, torna-se apto a resolver as
situações criadas pelas novas exigências da vida e pelo alargamento do comércio. E esse
Direito nunca mais pára na sua evolução e adaptação às realidades sociais: nasce, cresce,
atinge o apogeu, decai; retoma uma fase de certo esplendor, para, depois, se codificar.

Desde há muito os romanistas vêm estabelecendo uma certa periodização na história do


Ius Romanum.

Distinguimos as seguintes épocas: arcaica, clássica, pós-clássica, justinianeia.

a) Época arcaica (ou do direito quiritário) : decorre entre os anos 753 e 130 a.C. e
caracteriza-se pela mistura do jurídico com a religião e a moral e pela existência de
instituições jurídicas rudimentares, sobre as quais, muitas vezes, somente podem
formular-se hipóteses, devido à escassez de documentos. Merece destaque a criação do
pretor urbano e do pretor peregrino, respectivamente em 367 e 242.

b) Época clássica: situa-se entre os anos 130 e 230 e compreende as seguintes etapas:

1ª pré-clássica ( 130 – 30 a.C.) e caracteriza-se pelo desenvolvimento ascencional muito


significativo da ciência jurídica (iurisprudentia);

2ª clássica central ( 30 a. C. – 130 d.C.) e é marcada pelo esplendor da iurisprudentia que


se manifesta na perfeição e na sábia estilização da casuística; no equilíbrio entre o fecundo
casuísmo, os princípios doutrinais e as regras jurídicas; e na criação de novas actiones que
integram e modernizam o ius civile;

3ª clássica tardia (130 – 230) e assinala o início da decadência da iurisprudentia que,


esgotada, se voltou para a elaboração de exposições monográficas do ius civile e para o
desenvolvimento do ius publicum com destaque para os direitos administrativo, militar,
fiscal, penal e processual civil.

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c) Época pós-clássica: situa-se entre os anos 230 e 530. Não tem individualidade própria:
ou é referida à epoca anterior e daí o chamar-se pós-clássica, ou à seguinte e daí também
o ser denominada pré-justinianeia. É uma época de franca decadência do Ius Romanum.
Compreende duas etapas:

1ª de 230 a 395: marcada pela confusão (de terminologia, de conceitos, de instituições) e


pelo advento da Escola que substitui a iurisprudentia e se dedica à elaboração de
comentários e resumos de textos que revelam uma ciência simplista e elementar;

2ª de 395 a 530: é caracterizada:

a) no Ocidente, pela vulgarização do direito romano que se traduz na simplificação de


conceitos, na confusão de noçãos clássicas, no predomínio do aspecto prático sem atenção
pelas categorias lógicas e pela desordem na exposição das matérias.
b) no Oriente, pela reacção antivulgarista (classicismo) que alimentada sobretudo nas
Escolas de Constantinopla, Alexandria e Beirute, conseguiu travar a expansão dos
fenómenos vulgarísticos e impedir que, tornando-se dominantes, se transformassem em
direitto romano vulgar.

c) Época justinianeia1: decorre entre os anos 530 e 565 e é caracterizada pelo


classicismo e pela helenização. A sua especificidade deriva da maior compilação jurídica
jamais feita: o Corpus Iuris Civilis2 que actualizou o direito romano e transmitiu o seu
conhecimento às gerações vindouras.

1
Justiniano quis restaurar em toda a sua amplitude a tradição jurídica dos romanos. Manda elaborar
uma grande colectânea com o escopo de dirimir controvérsias e optar por uma entre diversas opiniões.
Assim o ius ficaria certo, concorde, uniforme e apto a ser codificado. Essas determinações destinavam-
se fundamentalmente a resolver legislativamente velhas questões doutrinais, revogar expressamente
antigas normas já caducas e estabelecer novos critérios bem como fixar orientações para a solução de
vários problemas jurídicos.
2
Chamado assim por Dionísio Godofredo em 1583.
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CAPÍTULO II – FONTES DE DIREITO ROMANO

Sumário:

1. Preliminares; 2. Costume; 3. Lei; 4. Plebiscito; 5. Senatusconsulto; 6. Edicto; 7.


Jurisprudência 8. Constituição Imperial.

1. Preliminares

Fonte de Direito Romano é tudo aquilo onde nos aparece algo para o Ius Romanum: ou
produção ou modos de formação ou mero conhecimento, disto se inferindo que se pode
falar de fontes do direito em várias acepções.

No segundo sentido, as fontes distinguem-se em:

2. Costume

O costume foi a primeira fonte do direito romano e, no seu processo evolutivo, assinalam-
se duas espécies:

a) Mores maiorum: constituíram um acervo de regras de matriz religiosa


consensualmente aceites que integravam um património de valores e crenças dos
romanos que era conservado, com adaptações mínimas, pela força da tradição. Na
ausência de leis aplicadas por órgãos legitimados para o fazer eram os sacerdotes
pontífices os guardiões da ordem vigente. Podemos assim definir os mores maiorum como
o conjunto de regras fundadas na tradição que expressavam a moralidade aceite e de
aplicação comprovada, desenvolvidas e adaptadas na resolução de casos concretos pelos
sacerdotes romanos, pela invocação divina que “interpretavam” caso a caso. A sua
decadência ocorreu com a publicação da Lei das XII Tábuas que os acolheu e, reduzidos ao
direito público, desaparecem quase por completo na época clássica, integrados nas outras
fontes;

b) Consuetudo: surge mais tarde, na época pós-clássica, e pode definir-se como uma
prática constante observada durante largo tempo pela generalidade do populus romanus
com a força obrigatória da lei.

Na época clássica, os jurisconsultos romanos fundamentavam o costume no


consentimento tácito do povo (tacitus consensus populi); e entendiam que era indiferente
que o consentimento do povo se manifestasse expressamente na lei ou tacitamente no
costume. Por isso, ocupando a lei e o costume o mesmo plano, tanto aquela pode ab-rogar
o costume, como este a lei.

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Todavia, aquela doutrina começou a vacilar e, na época pós-clássica, Constantino


determinou que a autoridade do costume não deve prevalecer sobre a lei.

3. Lei

A lei (lex) é uma declaração solene com valor normativo, feita pelo populus romanus que,
reunido nos comícios, aprova a proposta que o magistrado (presidente) apresenta e o
Senado confirma.

A lex pode ser:

a) rogata: é proposta pelo magistrado à assembleia comicial a que preside. Depois de


aprovada, deve ser referendada pelo Senado que lhe confere a patruum auctoritas. A Lei
das XII Tábuas foi a primeira lex rogata;

b) data: é dada por um magistrado no uso de faculdades delegadas pelos comícios e


contém normas de carácter administrativo.

c) dicta: proferida por um magistrado em virtude dos seus próprios poderes, consistente
num acto de disposição solene acerca duma coisa sua.

4. Plebiscito

O plebiscitum é uma deliberação da plebe que, reunida em assembleia (concilum plebis)


aprova uma proposta do seu tribuno (tribunus plebis).

Nos primeiros tempos, não teve carácter vinculativo. Posteriormente, a lex Valeria de
plebiscitis (449 a.C.) atribuiu-lhe força vinculativa entre os plebeus; e, no ano 286 a.C. a lex
Hortensia de plebiscitis estendeu-a aos patrícios, ficando, portanto, equiparado às leis
rogadas.

5. Senatusconsulto

O senatusconsulto é uma disposição normativa do senado. Na origem, a decisão do


senado constituía um simples parecer dado a quem o consultava. Na época clássica, o
poder legislativo deslocou-se dos comícios para o senado, sendo os senatusconsulta
dotados de força de lei. Por fim, o senatusconsulto passa a ser emitido sob proposta do
Imperador, acolhendo os desejos deste; por isso, os jurisconsultos romanos falam, por
vezes de oratio do Imperador.

6. Edicto

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Era o comando ditado por um magistrado no uso do imperium, sobre matérias de sua
competência. Os mais importantes eram os do Pretor, que deram origem ao ius
praetorium3.

7. Jurisprudência

Ulpiano definde jurisprudência como conhecimento das coisas divinas e humanas, ciência
do justo e do injusto4.

A actividade da jurisprudência consiste em cavere, isto é, aconselhar os particulares como


deviam realizar os seus negócios jurídicos: palavras sacramentais e pronunciar, cláusulas a
atender e, por vezes, documentos a redigir; agere, assistir às partes no processo: qual a
fórmula a empregar, que palavras a usar, quais os prazos para apresentar as provas;
respondere, consistia em dar sentenças ou pareceres (responsa) a particulares ou a
magistrados sobre questões jurídicas. Era a função mais importante dos jurisprudentes, já
que nos responsa se concretizava a Ciência do Direito.

Na época pos-clássica os responsa dos jurisconsultos perderam valor de fonte do direito5.

8. Constituição imperial

A constituição imperial (constitutio) é uma lei em que se manifesta a vontade do


Imperador. Na sua evolução, assinalam-se várias fases, destacando-se o seu início no
Principado e o termo no Dominado, época em que se afirmou como a única fonte do
direito.

Reveste as seguintes modalidades:

a) edicto (edictum): é uma disposição geral;

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O ius praetorium era constituído pelo conjunto de normas surgidas (sempre para casos concretos não
disciplinados directamente pelo ius civile) da actividade interpretativa dos pretores urbano e peregrino.
Referência para o efeito é a definição de Papiniano: ius praetorium est quod praetores introduxerunt
adiuvandi vel supplendi vel corrigendi iuris civilis gratia propter utilitatem publicam (direito pretório é o
que foi introduzido pelos pretores para propiciar, através de auxílios, integrações e correcções uma
melhor aplicação do ius civile pela razão da utilidade pública) D. 1,1,7, 1. Toda essa actividade era
sempre orientada pelos grandes princípios jurídicos (D. 1,1,10,1): o de não abusar dos seus poderes
(honeste vivere); o de não prejudicar ninguém (alterum non laedere); o de atribuir a cada um o que é
seu (suum cuique tribuere).
4
Iuris prudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, D. 1, 1,10, 1.
5
Por provir formalmente da autoridade do príncipe, obrigava o juiz a segui-lo; de princípio tinha valor
apenas em relação ao caso para que era pronunciado; depois, a eficácia estende-se aos casos análogos.
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b) decreto (decretum): é uma sentença do Imperador nos processos da cognitio extra


ordinem. Vincula no caso sub iudice e foi aplicada a situações análogas;
c) rescrito (rescriptum): é uma resposta a consulta jurídica dirigida ao Imperador por
magistrados, funcionários ou particulares;
d) mandato (mandatum): é uma instrução do imperador em matéria administrativa,
sobretudo aos governadores das províncias.

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CAPÍTULO III - OS SUJEITOS DE DIREITO

Sumário:

1. Preliminares; 2. PESSOA FÍSICA. 2. 1. Vicissitudes: nascimento e morte ; 2.2. Estatuto


de liberdade; 2. 3. Estatuto de cidadania; 2. 4. Estatuto de família; 2.5. Capitis deminutio;
2.6. Causas limitativas da capacidade jurídica. 3. PESSOA COLECTIVA: 3. 1. Personalidade
jurídica; 3. 2. Corporações; 3.3. Fundações.

1. Preliminares

Os termos usados pelos romanos para indicar a posição do sujeito face ao ordenamento
jurídico são caput e status. Caput, literalmente cabeça, com o sentido de indivíduo,
Indiferentemente de condição servil (servile caput) ou livre (liberum caput), engendra,
deste os tempos mais antigos, a expressão técnica capitis deminutio, significando
modificação de status, de situação jurídica do sujeito, nomeadamente da liberdade (capitis
deminutio maxima), da cidadania (capitis deminutio media) e da posição que ocupava na
família (capitis deminutio minima). No direito justinianeu, caput assumiu um significado
que transmite a ideia moderna de capacidade jurídica. Status indica a posição: ou de
homem livre (status libertatis), ou de cidadão (status civitatis), ou de membro da família
(status familiae).

2. Pessoa Física

O vocábulo persona, etimologicamente máscara, indicando hoje sujeito de direito,


expressa a ideia física de homem dotado ou não de capacidade jurídica. Persona é tanto o
homem livre como o escravo. O hodierno conceito de personalidade jurídica remonta à
elaboração da escolástica medieval.

2.1.Vicissitudes

A pessoa física origina-se no nascimento, que deve obedecer aos requisitos de:

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Separação completa do corpo da mãe. Antes, o embrião é considerado porção da mulher


ou das suas vísceras.

Vida própria: O ser humano deve nascer vivo, porque os que nascem mortos não são
considerados nem nascidos nem procriados. Vale aqui referir as teses das escolas
proculeiana (do gemido, choro) e sabiniana (dos sinais vitais – respiração, movimento do
corpo) discordantes quanto ao modo de aferir quando é que o indivíduo fosse ou não
nascido vivo, tendo prevalecido a última, acolhida também por Justiniano.

Forma humana: quem nasceu deve ter forma humana, pois não são filhos os que são
procriados contra a habitual forma do género humano.

Do exposto, resulta que o nasciturus não é considerado pessoa: ainda não está in rerum
natura, i.é., actualmente inexistente. Porém, a sua futura humanidade não deixou de ser
relevante para determinados efeitos jurídicos e justificou que ao momento da concepção
fosse dada uma atenção especial.

Assim, v.g., para o nasciturus instituído herdeiro, a lei previa a nomeação de uma curador
especial, curator ventris (curador ao ventre), que cuidava de conservar os bens a si
destinados; para determinar o status do nascido de justas núpcias tem-se em conta a
condição do pai no momento da concepção; e, por aplicação do favor libertatis, nasce livre
o filho duma escrava que seja livre no momento do nascimento, da concepção ou em
qualquer momento da gestação.

Desta casuística clássica, elaborou-se a regra justinianeia segundo a qual quem está no
ventre materno é considerado como se tivesse nascido, sempre que se trate das suas
próprias vantagens e disto os jurisconsultus medievais elaboraram o princípio nasciturus
(conceptus) pro iam nato habetur, si de eius commodo agitur, i.é., o nascituro é tido por já
nascido, quando se trate de vantagem própria.

A pessoa física extingue-se por morte que, constituindo um facto, deve ser provado por
quem o invoque para fundamentar a sua pretensão.

Para o caso de vários familiares morrerem no mesmo acidente (commorientes em


incêndio, naufrágio, inundação, batalha), Justiniano estabeleceu uma presunção de pré-
moriência fundada na diferente resistência física: se, no mesmo sinistro, morrem pai e
filho, presume-se que o filho morreu primeiro, se for impubes; sendo pubes, considera-se
que o pai morreu primeiro.

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Não bastando que o nascimento tenha as características assinaladas para que o


nascido goze de capacidade jurídica, urge identificar outros requisitos.

2.2. Estatuto de liberdade

Para ser sujeitos de direito, impunha-se pertencer à categoria das pessoas livres, não
ser escravos.

Como factos constitutivos da liberdade, avultam o nascimento de mãe livre6 e a


manumissão7 concedida, na maioria das vezes, como recompensa por serviços leais ao
dono.

São causas da escravatura: nascimento de mãe escrava8, por condenação a certas


penas graves9, por cativeiro de guerra10.

2.3. Estatuto de cidadania

A cidadania romana é o segundo requisito exigido para a capacidade jurídica plena. Até à
época clássica, por conta da expansão territorial progressiva de Roma, muitas eram as
pessoas livres, todavia desprovidas desse requisito. Os peregrinos achavam-se sujeitos ao
seu direito nacional e eram, face ao ius civile, incapazes; as suas relações patrimoniais com
os cidadãos romanos eram reguladas pelo ius gentium.

Os imperadores foram, gradualmente, concedendo a cidadania a inteiras comunidades e


pessoas singulares, até que Caracalla, em 212 d.C., a estende a todos os habitantes livres
do império, organizados em comunidades11.

6
Radical e originariamente, a escravidão surge por descendência. O filho nascido de mãe escrava é
escravo e pertence ao dono da mãe.
7
É negócio jurídico privado do dono. Consagravam-se modalidades de aquisição da liberdade por
disposição legal: concessão para compensar quem se distinguiu ao serviço do bem comum, em obras
beneméritas, por prescrição aquisitiva em benefício de quem vivesse durante vinte anos na condição de
livre, ao escravo abandonado pelo dono por enfermidade grave.
8
Com as alterações já vistas.
9
O desertor, considerado como não-cidadão sem direitos, e vendido como escravo para o estrangeiro
(trans Tiberim vendere). Na época imperial, escravos dentro do país: toda a condenação à morte, a lutar
com as feras implica a redução a escravo.
10
Os estrangeiros prisioneiros de guerra tornam-se propriedade do Estado. Porém, o cativo romano
perde a libertas, mas não se torna servus iustus (escravo segundo o ius civile), salvos restando os efeitos
dos ius postliminium e da fictio legis Cornelia.
11
Constitutio Antoniniana.
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O status civitatis traduz-se na titularidade de direitos públicos e privados. A sua


capacidade jurídica civil implica:

a) No direito privado: o gozo do ius commercii (direito de adquirir e de transmitir a


propriedade civil (dominium ou proprietas) e de ser sujeito, activo e passivo, de
relações contratuais); do ius conubii (direito de contrair matrimónio matrimónio e
de constituir família); da testamenti factio activa e passiva (capacidade de intervir
na sucessão hereditária como disponente, beneficiário ou testemunha); e do ius
actionis (direito de demandar e ser demandado em juízo);
b) No direito público: o gozo do ius suffragii (direito de voto nas assembleias), do ius
honorum (direito de acesso a magistraturas), a provocatio ad populum (direito de
apelação para a assembleia do povo contra as decisões dos magistrados).

2.4.Estatuto de família

O status familiae indicava pertença de um sujeito livre e cidadão (liber e civis) a


determinada família. Neste âmbito distinguiam-se as pessoas sui iuris e alieni iuris.

É sui iuris a pessoa que não se encontra sujeita ao poder (potestas) familiar de outra.
Tratando-se de homem, denomina-se pater familias, sendo indiferente que tenha ou não
descendentes e seja solteiro ou casado, criança ou adulto porque pater familias não
significa genitor, mas chefe de família. A mulher, mesmo que sui iuris, não pode ser pater
familias.

É alieni iuris a pessoa sujeita ao poder (patria potestas ou manus) de um pater familias: os
filhos e filhas (próprios ou adoptados) não emancipados, a esposa sujeita à manus do
marido ou do paterfamilias a quem se encontra sujeita.

2.5.Capitis deminutio

A capitis deminutio é a modificação de estatuto que pode reflectir-se no aumento, na


diminuição e na extinção da capacidade jurídica.

Reveste várias espécies, cada uma das quais produzindo determinados efeitos:

a) maxima: resulta da perda de liberdade, v.g. alguém reduzido a escravo pelo


credor. Neste caso, a personalidade jurídica é destruída e os direitos patrimoniais
do capite deminutus são adquiridos pelo credor.
b) media: deriva da perda da cidadania12. Permanecendo livre, o capite deminutus
não perde os seus direitos patrimoniais que passam a ser disciplinados pelo direito
vigente na nova cidade ou pelas normas do ius gentium .
c) minima: tem lugar quando se verifica uma mundança no estatuto de família. Não
acarreta perda da liberdade nem da cidadania; v.g., um filho vendido pelo
paterfamilias; um alieni iuris adoptado, aquele que obtém o estatuto de sui iuris
por emancipação.

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Torna-se peregrinus. V.g. desterro por traição à pátria.
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2.6.Causas limitativas da capacidade jurídica

Destacamos:

a) Idade: A capacidade de agir adquire-se quando a inteligência está de tal modo


desenvolvida que se tem consciência dos actos praticados. Os jurisconsultos
entendiam que os desenvolvimentos sexual e intelectual corriam paralelamente e,
por isso, para determinarem a capacidade de agir procuravam averiguar o acesso à
puberdade; este implicava o reconhecimento daquela. A puberdade e a (paralela)
capacidade de agir fixou-se no momento em que o homem completava catorze
anos e a mulher, doze13. Atingida a puberdade, adquire-se a plena capacidade de
agir14
b) Sexo: de início, a mulher encontra-se sempre sujeita à potestas alheia: à pátria
potestas, se filia famílias; à manus do marido, se for esposa in manu; à tutela, se
sui iuris. Esta situação de inferioridade de alterou-se acompanhado as
transformações por que passou a família romana. Assim, algumas incapacidades
decaíram, v.g. a tutela, e lhe foram reconhecidas capacidades, v.g., a testamentária
activa e passiva, propriedade dos bens dotais.
c) Enfermidade física e mental: havia enfermidades físicas que, por serem
permanentes, determinavam incapacidade de agir no caso de a natureza do acto a
realizar exigir uma particular idoneidade física. Era, v.g., a situação de impotência e
de castração que impediam o matrimónio.
A enfermidade mental exclui também a capacidade de agir porque, traduzindo um
querer, a vontade não existe. São, v.g., os dementes (furiosus) e os que sofrem de
enfraquecimento ou pouco desenvolvimento intelectual (mente captus);
d) Prodigalidade: pródigo (prodigus) é o indivíduo que dissipa os seus bens. O
magistrado pronuncia a interdição que retira a capacidade jurídica de agir e coloca
o seu património sob curatela;
e) Degradação da honra civil15 (infamia):. É infame, v.g., quem pratica uma arte
desonrosa como a gladiatura, quem ofende a moralidade como o bígamo, a
mulher que celebra segundas núpcias antes de ter decorrido um ano de luto, o
condenado por crime de calúnia. No direito justinianeu produz a incapacidade de
desempenhar cargos públicos e de testemunhar;
f) Exercício de alguns cargos públicos: ex. proibição aos senadores de contraírem
matrimónio com libertas; a magistrados de possuírem embarcações de
determinada dimensão, para se evitar especulação comercial;
g) Pertença a determinadas religiões. Inicialmente irrelevante, desde que não
repugnantes à consciência pública, mas determinante com o Edicto de 313.

13
Afastando-se assim a possível variabilidade.
14
Todavia, para se proteger os menores de vinte e cinco anos contra negócios lesivos realizados por
inexperiência, tornou-se prática o recurso à assistência de um terceiro, curador, como mero cooperador.
15
Honra civil é o estado de íntegra dignidade que um indivíduo goza na sociedade.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
16

3. Pessoa Colectiva

3.1.Personalidade jurídica

O reconhecimento das pessoas colectivas corresponde à satisfação de necessidades que


transcendem a vida e os interesses dos homens individualmente considerados.

Por isso, o direito reconhece organizações mais ou menos vastas, com esferas jurídicas
próprias que não se identificam com a soma das relações jurídicas e dos interesses das
pessoas que as integram. E, para poderem realizar eficazmente a sua função, são-lhes
reconhecidas a personalidade e a capacidade jurídica, embora limitadas às relações
compatíveis com a sua natureza e teleologia.

Especificam-se em:

3.2.Corporações

É uma organização de várias pessoas que cooperam na prossecução de um fim comum


lícito e que a lei reconhece como sujeito de direito. Designam-se com diferentes nomes
(corpus, societas, ordo, collegium, universitas). Para que possa constituir-se como pessoa
jurídica, são necessários os seguintes requisitos:

a) Participação mínima de três pessoas no acto constitutivo;


b) Estatuto ou lei (lex collegii) que disciplina a organização e o funcionamento;
c) Actividade lícita.

3.3.Fundações

É um património destinado a um certo fim de duração indeterminada e que a lei


reconhece como sujeito de direitos e de obrigações.

Sua aparição dá-se na época pós-clássica, sob forma de instituições de beneficência


promovidas por influência do cristianismo.

Requisitos necessários:

a) Existência de um património;

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


17

b) Fim de beneficência determinado pelo fundador;


c) Órgãos de administração e aplicação do fundo no respeito da vontade do fundador

CAPÍTULO IV - A FAMÍLIA ROMANA

Sumário:

2. Noção; 2. Evolução; 3. Constituição; 4. Poder paternal e parentesco; 5. Dissolução;


6. Relações pessoais; 7. Relações patrimoniais; 8. Filiação; 9. Tutela e curatela.

1. Noção

Em Roma, a base da sociedade residia na família, seguindo-se-lhe outros agregados como -


a gens, cúrias e tribos.

A Família romana constitui uma associação jurídica monocrática, composta pelo pater
famílias como chefe e pelas pessoas que estão submetidas ao seu poder doméstico16

O pater famílias era quem não tinha ascendente directo varão, ou o emancipado e
Ulpianus aponta-o como aquele que tem o domínio da casa e é assim chamado mesmo
que não tenha filho, pois o termo não é só de relação pessoal, mas de posição de direito17
O poder dessa figura central manifesta-se em graus diversos consoante os seus objectos.
Este poder doméstico chama-se potestas, originariamente também manus, domina e ao
mesmo tempo protege. Mais tarde manus usa-se apenas para o poder sobre a mulher
casada (uxor in manu, isto é, casada no regime de sujeição jurídica ao marido, sobre a qual
exerce a manus maritalis), desde que esta pertença (o que não é necessário) à associação
doméstica do marido. O poder sobre os filhos (filii, filiae), suas mulheres e descendentes é
a patria potestas, sobre os escravos e património dominica potestas (poder senhorial),
traduzido na propriedade.

2. Evolução

A família romana registou uma profunda evolução. Até à época clássica, tem na sua base
um vínculo jurídico dito agnatício que une as pessoas sujeitas ao poder do mesmo pater
famílias e acabou por ser uma comunidade unida fundamentalmente por laços de sangue.

16
A concepção romana da família, não apenas na época arcaica como também ao longo da evolução do
direito romano, é marcadamente patriarcal:
17
D. 50, 16, 195,2.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
18

Ou seja, o primitivo vínculo jurídico agnatício foi substituído pelo novo vínculo de sangue,
dito cognatício.

Vários agentes realizaram esta longa e profunda evolução, deste o pretor até aos
Imperadores que iam pondo a família em sintonia com os novos ambientes culturais. Já na
época clássica, por exemplo, assinala-se a decadência da família agnatícia e a progressiva
importância da família natural ou cognatícia; a mulher pode não se vincular ao poder
marital (manus); estabelece-se a sucessão hereditária entre mãe e filhos.

3. Constituição

Quando o paterfamilias morrre (ou perde a liberdade ou a cidadania) surgem tantas


famílias novas quantas as pessoas que estavam imediatamente, sem elos intermédios, sob
o seu poder: a sua mulher in manu, os seus filhos e filhas, os filhos e as mulheres in manu
dos filhos pré-falecidos, etc. Os filhos do defunto (e os netos de filhos pré-falecidos)
tornam-se agora patresfamilias e, se tiverem uxor in manu ou descendentes agnatícios
próprios, este ficam submetidos ao seu poder familiar. As mulheres que ficam livres de
poder do marido, i.e., a uxor in manu do falecido, as suas filhas etc., constituem cada uma
a sua família, porque as mulheres não podem ter poder familiar.

Com o matrimónio acompanhado da conventio in manum e através de institutos como a


adopção, a ad-rogação e a legitimação, a família alarga-se a outros elementos
dependentes dos poderes do paterfamilias18.

4. Poder paternal e patentesco

4.1.Poder paternal

Entre os direitos em que se desdobra o poder pleno do paterfamilias, na associação


familiar fechada e o mais importante da ordem romana é a patria potestas. Ela submete
os filhos e as filhas a uma hegemonia na época antiga quase ilimitada de quem tem poder
sobre eles19. A este pleno poder ficam submetidos os filhos-família, sem distinção de
idades e até à morte de quem tem poder sobre eles, desde que não se lhe ponha termo
por expedientes especais, v.g. a emancipação.

a) Origem

18
Sobre adopção, ad-rogação e legitimação, cfr. anexos.
19
Sobredita hegemonia suavizada mediante a vigilância, pelo Censor, dos costumes e, já no principado,
por normas restritivas e punitivos dos excessos da patria potestas.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
19

O filho está sujeito ao pátrio poder: por descendência legítima (quando concebido em
matrimónio válido); quando pai e filho estão sujeitos ao ordenamento jurídico romano;
por adopção, ad-rogação e legitimação.

b) Situação jurídica dos filhos-família

Quanto ao direito das pessoas, os filhos-família são livres, podem contrair matrimónio e
ter filhos legítimos.

Desde os tempos antigos os filhos não têm capacidade patrimonial. Só pode ser titular de
direitos patrimoniais quem for sui iuris. Dessa incapacidade deriva que tudo quanto
adquiram por negócio ou qualquer facto, reverte necessariamente para o pater familias.
Vinculando-se por negócios obrigacionais, os filhos podem ser demandados por estranhos
à família, mas a execução forçada contra eles naufraga na patria potestas; analogamente,
pelos delitos responde o pater famílias.

O pater famílias costuma ceder aos filhos (e aos escravos) um peculium, ou seja, um
património autónomo, que estes podem administrar autonomamente. Partindo do pecúlio
foi-se desenvolvendo na época clássica e especialmente na pós-clássica uma capacidade
patrimonial limitada dos filhos-família sobre certos bens. Todavia, nem na época tardia os
filhos alcançaram a plena capacidade patrimonial sobre todo o património.

c) Extinção da patria potestas

O poder paternal extingue-se com a morte do seu titular, a sua perda de liberdade ou
cidadania, a sua ad-rogação; o pátrio poder sobre cada filho-família termina com a sua
entrega em adopção ou (em caso da filha) em manus20.

A libertação do filho do pátrio poder, que o torna pessoa sui iuris, dá-se através da
emancipação, que é a renúncia à patria potestas, comportando a saída do filho/filha da
família de origem. Sui iuris, o filho adquire a correlativa capacidade de agir, tem
capacidade patrimonial21 perdendo porém os direitos respeitantes à família originária22.

20
A extinção sem capitis deminutio dá-se quando o filho se torna sacerdote de Júpiter e a filha vestal.
Justiniano faz extinguir o pátrio poder quando o filho se torna alto Dignitário do Estado ou da Igreja. Em
alguns casos, leis pós-clássicas prevêem a perda da patria potestas como pena para o pai, v.g., em caso
de maus tratos aos filhos, indução da filha à prostituição. No direito justinianeu, o princípio da
perpetuidade da patria potestas cai em desuso, e se difunde a prática de emancipar o filho uma vez
alcançada a maioridade. Cfr. Sergio, Istituzioni…, 392.
21
Em regra o paterfamilias que emancipa doa-lhe um património (v.g. o que era peculium)
22
Esta consequência foi atenuada na sequência da intervenção pretoriana e a legislação imperial, que
tomaram em consideração a cognação, i.é. o parentesco natural, cfr. Kaser, p. 347.

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


20

4.2. O Parentesco

Atenuando-se cada vez mais as fortes vinculações que unem a família como associação
jurídica, consolidada sob a direcção monocrática do paterfamilias, a partir da República e
ainda mais nos princípio do Império, perde também relevo o parentesco agnatício,
fundado na pertença às associações familiares. Em seu lugar ganha cada vez mais
importância o parentesco de sangue (cagnatio). Este parentesco desprendido das
relações de poder manifesta-se em múltiplos deveres de lealdade e protecção, pelos
quais, por exemplo, os pais (em geral) não podem ser demandados pelos filhos em
tribunal, pais e filhos não podem testemunhar uns contra os outros23.

O parentesco é computado por graus, considerando-se as várias gerações dispostas por


escadas, encabeçadas pelo tronco. Nas relações entre descendentes e ascendentes, o grau
é dado pelo número das gerações; nas relações colaterais o grau é dado ascendendo ao
tronco comum e depois descendo deste até ao outro parente, excluindo o tronco comum.

5. Dissolução da Família

A família romana dissolve-se com a morte ou capitis deminutio maxima, média e mínima
do paterfamilias.

6. Relações pessoais

6.1. Matrimónio

O matrimónio romano é caracterizado como concreta comunidade de vida de marido e


mulher, monogâmica, sustentada pela afeição marital (affectio maritalis), cujo fim mais
nobre é conseguir descendentes de pleno direito. É um facto social com efeitos jurídicos
de grande alcance.

6.1.1. Requisitos

O facto social do matrimónio exige o cumprimento de determinados requisitos, cuja falta


faz com que a consciência social da generalidade não reconheça o casamento. Os juristas
moldaram estes requisitos em regras fixas, a seguir descritas:

a) Afeição marital: é a vontade recíproca de os nubentes se unirem e manterem unidos


como marido e mulher. Na época clássica devia ser contínua ao passo que nas seguintes
apenas se exigia no início da relação;

23
Na época pós-clássica estas limitações aumentam, por motivos cristãos.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
21

b) Capacidade natural: é a aptidão para a união sexual, ou seja, o homem e a mulher


devem ser púberes o mesmo que ter a capacidade natural de procriar;

c) Capacidade jurídica: é o connubium. Devem ambos ser cidadãos romanos ou um obter


connubium com cidadão romano. A Constituição Antoniana de 212 reduziu a importância
do neste requisito.

d) Auctoritas do paterfamilias: consistia no consentimento da pessoa sob cujo poder se


achava o homem ou a mulher. Era portanto requerida para as pessoas alieni iuris.

6.1.2. Impedimentos

Podem ser absolutos e relativos: aqueles determinam a incapacidade de contrair


matrimónio em qualquer caso; estes, só em relação a determinadas pessoas.

a) Absolutos

Primeiro, matrimónio anterior ainda não dissolvido, pois dizem as fontes que “uma mulher
não pode estar casada ao mesmo tempo com dois homens nem o mesmo homem pode ter
duas mulheres”24. Por isso, a celebração do segundo matrimónio subsistindo o primeiro
torna a pessoa infame;

Segundo, a condição de escravo ou escrava de um dos nubentes;

Terceiro, a pertença a ordens religiosas.

b) Relativos

b.1. O Parentesco, que pode ser:

Premeiro, consanguíneo. Torna nulo o matrimónio entre ascendentes e descendentes em


linha recta, em todas as épocas. Entre colaterais o princípio atenua-se progressivamente
mas, na época cristã, volta a ser transitoriamente agravada e no Corpus Iuris Civilis a
proibição vai até ao 3º grau;

Segundo, adoptivo. Impede o casamento na mesma extensão que entre consanguíneos.


Porém, cessa, na linha colateral, se for afastado por emancipação;

Terceiro, espiritual. O direito justinianeu não permite o matrimónio entre padrinhos e


afilhados;

24
GAIUS, 1,63.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
22

Quarto, por afinidade, i. é, o vínculo entre uma pessoa e os parentes do seu cônjuge, na
linha directa: padrasto e enteada, sogro e nora, sogra e genro25.

b.2. Adultério e rapto: entre a mulher adúltera e o seu cúmplice. Também o raptor não
pode contrair matrimónio com a mulher raptada.

b.3. Outros por razões várias, v.g., entre tutor e a pupila, enquanto esse não prestar contas
e antes de esta completar 25 anos, entre senadores (e seus descentes) e libertas, a mulher
antes de decorrido dez e depois um ano de luto ou divórcio (tempos lugendi)

6.1.3. Efeitos Pessoais

A união conjugal como facto social teve como destacáveis efeitos que:

- a mulher obtinha o honor matrimonii (honra do matrimónio) e com ele o


reconhecimento da posição social própria de mulher casada;

- os filhos nascidos do matrimónio podiam continuar a família paternal como


descendentes legítimos;

- Entre o cônjuge e os parentes do outro constitui-se o vínculo de afinidade;

- nasce o dever de fidelidade conjugal, que de início obriga apenas a mulher26 e só na


época cristã também o marido;

- Formam-se deveres de respeito e reverência entre os cônjuges, que impõem v.g. a


proibição de intentar contra o outro acções infamantes, testemunhar em juízo.

- Justiniano só em casos excepcionais reconhece o dever de prestação de alimentos entre


cônjuges.

6.1.4. Dissolução

O matrimónio dissolve-se por morte27, perda da capacidade matrimonial ou divórcio.

25
Na pós-clássica e por influência cristã, também entre cunhados assim como entre o irmão do defunto
e a viúva ou irmã. Estes impedimentos foram afastados pelo direito justinianeu.
26
O adultério do marido é sancionado, embora considerado atenuante do adultério da mulher e tenha
implicações patrimoniais: restituição do dote, perda das doações nupciais.
27
O simples desaparecimento não equivale à morte. Todavia, se um dos cônjuges não tiver notícias do
paradeiro do outro por tanto tempo e em tais circunstâncias que o possa considerar morto, o
casamento considera-se dissolvido, por ter terminando a relação fáctica da comunidade de vida baseada
na intenção matrimonial, cfr. D. 48, 5, 12, 12.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
23

Quanto à segunda causa de dissolução, refira-se que o caso mais frequente de


incapacidade superveniente verifica-se com a capitis deminutio maxima de qualquer dos
cônjuges, o que acarreta perda do ius connubii. O direito justinianeu determina que se um
dos cônjuges for capturado pelo inimigo (cativo de guerra), o matrimónio subsiste,
devendo o outro esperar cinco anos, decorridos os quais pode, se não tiver notícias do
cativo (ou cativa), dissolver o vínculo conjugal e contrair novas núpcias 28.

Quanto ao divórcio, regista-se uma longa evolução. Pensa-se que, na antiga sociedade
romana, devia ser muito raro e só terá sido praticado entre personagens importantes.
Todavia, com a decadência da moralidade romana, o número de divórcios cresceu
enormemente, chegando a invocar-se motivos fúteis. Por fim, Justiniano ordenou esta
matéria, seguindo novos critérios e fixando novas causas justificativas29.

6.1.5. Segundas Núpcias

O regime jurídico das segundas núpcias procura fundamentalmente proteger os filhos do


primeiro matrimónio: as sanções patrimoniais aplicadas a quem volta a casar são
essencialmente patrimoniais a favor desses filhos30.

6.2. Esponsais

Os esponsais, na época arcaica, são uma promessa de casamento com eficácia


obrigacional. Quem tem poder sobre a noiva promete ao noivo dar-lha como mulher; na
maioria das vezes, o noivo (ou quem tem poder sobre ele, em nome deste) promete a
quem tem poder sobre a noiva que casará com ela. Nos princípios da República, passa a
mera promessa oral ou escrita, entre presentes ou ausentes e qualquer das partes por
simples declaração é livre de a revogar. No pós-clássico, retira-se aos esponsais a livre
dissolubilidade através da arra esponsalícia que é um donativo à noiva, que esta tem que
devolver no quádruplo, mais tarde no duplo valor, se o matrimónio se não realizar sem
causa justificada. O anel de noivado é um vestígio moderno das arras.

6.3. Concubinato

O concubinato é uma comunidade permanente de vida e de sexo entre homem e mulher,


geralmente de condição social diversa, sem reconhecimento social (dignitas) que resulta

28
Doutro modo incorre em divórcio sem causa com a sanção correspondente: a perda da doação
antenupcial (mulher) e do dote (marido): D. 24, 2, 6.
29
Completar com a leitura de Santos Justo, Breviário…, p. 412 – 416.
30
Completar com a leitura de Santos Justo, Breviário…, p.407 - 408.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
24

da consciência matrimonial31. No direito justinianeu, o concubinato tornou-se uma relação


jurídica, tendo-se imposto alguns requisitos:

- mantém-se o critério rigoroso da monogamia: quem tiver mulher não pode ter
concubina; e o homem solteiro não pode ter duas concubinas;

- os concubinos devem ter, pelo menos, a idade que se exige no matrimónio;

- o concubinato esta sujeito aos mesmos impedimentos do matrimónio em relação ao


parentesco a à afinidade.

Relevam-se os efeitos seguintes:

- o concubino pode doar à concubina e aos seus filhos determinadas quotas do seu
património e a estes se confere o direito de sucessão intestada no montante de um sexto,
se não houver filhos legítimos nem esposa com legitimidade sucessória;

- os filhos naturais têm o direito a alimentos, que é recíproco;

- À morte do dominus, a escrava sua concubina e os filhos nascidos desse concubinato são
considerados livres, salvo se aquele tiver disposto diferentemente.

7. Relações Patrimoniais

Para que a família proveja às próprias necessidades, como sustento dos seus
componentes, educação dos filhos etc., necessita de sustentação patrimonial: daí falar-se
de regime patrimonial da família relativamente aos bens destinados a cumprir tais funções
que transcendem o interesse dos componentes singulares da mesma.

Na longa evolução da família romana, distinguem-se dois regimes patrimoniais de bens:


absorção e separação de bens.

- O primeiro (absorção de bens) conexiona-se com o regime de sujeição jurídica ao marido


(cum manu), em que os bens levados pela mulher e adquiridos por esta durante o
matrimónio integram-se no património do marido ou sogro, podendo estes dispor
livremente de todos os bens inter vivos e mortis causa ;

- O segundo (separação de bens) marca a generalização do matrimónio livre (sine manu),


no qual a mulher conserva a sua independência do poder marital e, em consequência,
pode ter um património próprio, em relação ao qual o marido é considerado simples
mandatário, no dever de administração diligente e na sujeição à prestação de contas.

31
Configurou-se como uma união conjugal inferior ao matrimónio legítimo.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
25

O instituto da comunhão de bens surge no quadro da supervivência do direito romano, na


Idade Média, por influência Cristã.

7.1. O Dote

O uso exige, desde tempos antigos, que o paterfamilias da mulher, e se esta for sui iuris
ela própria, faça doações ao marido, por ocasião do matrimónio, de valores patrimoniais
como dos (dote)32. Objecto do dote pode ser tudo o que tem valor patrimonial: coisas
corpóreas, créditos, remissão de dívidas etc., e tem como fim originário servir ao marido
como contributo para os encargos matrimoniais, já que o marido é moralmente obrigado
em qualquer matrimónio – mesmo no sui iuris – a sustentar a mulher e fazê-la participar
no seu nível de vida33.

7.2. Doação Nupcial

A doação nupcial é o contrato através do qual, com a intenção de liberalidade34, o noivo se


obriga a transferir à noiva a propriedade de certos bens na hipótese de o casamento, que
pretendem celebrar, se dissolver por morte ou divórcio com culpa do marido.

Depois de longa evolução, o direito justinianeu aprimorou o regime da doação nupcial, nos
seguintes termos de maior relevância:

- Pode ser aumentada e feita depois de concluídas as núpcias;

- Pode ser revogada se as núpcias não se concluírem por culpa da noiva;-

- Se o matrimónio não se realizar por morte do noivo, a noiva tem direito a metade dos
bens;

- Celebrado o matrimónio e dissolvido por morte do marido, a doação pertence à mulher


viúva;

- a mulher viúva, em segundas núpcias goza do direito de usufruto dos bens doados, cuja
propriedade passa a pertencer aos filhos do primeiro matrimónio;

- Cabe ao marido a administração dos bens, sem os poder alienar nem hipotecar.

7.3. Bens Parafernais

Segundo precedentes clássicos que remontam a modelos helenísticos, são bens da mulher
trazidos para o matrimónio, além do dos, que são coisas pessoas (roupas, joias, utensílios
domésticos etc.). Continuam propriedade da mulher mas são administrados pelo marido,

32
Qualquer terceiro pode também constituir dos em favor da mulher.
33
Os encargos do matrimónio (onera matrimonii) deviam ser suportados pelo marido ou pelo seu
paterfamilias.
34
Animus donandi
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
26

devendo ser restituídos à mulher terminado o matrimónio35. Comparando os bens


parafernais aos bens dotais, observa-se que os seus regimes jurídicos são muito próximos:
ambos constituem um contributo da mulher; e os poderes de mera administração e a
responsabilidade do marido são análogos. Todavia, há, nos bens parafernais, coisas que se
destinam ao uso particular da mulher.

8. Filiação

Com o vocábulo filiação indica-se a geração de uma pessoa física resultante da união de
um homem com uma mulher e relações de filiação, as relações jurídicas que nascem
reciprocamente entre os progenitores e a pessoa procriada, em consequência da
concepção e do nascimento.

8.1. Estatuto pessoal do filho

O direito romano atribui à filiação consequências diversas consoante os filhos sejam


legítimos, naturais ou espúrios.

a) À filiação legítima são atribuídos os seguintes efeitos:

- o filho adquire a cidadania do progetinor (pater) no momento da concepção36;

- recebe o nome do pai, e este adquire sobre ele a pátria postestas;

- o filho tem os deveres de obséquio para com os seus progenitores. Por isso, os filhos são
os podem demandar com uma acção infamente (salvo injúria atroz) nem testemunhar uns
contra os outros e são gravemente punidas as lesões ou injúrias contra os progenitores 37;

- Existe entre filhos e progenitores a obrigação recíproca de prestação de alimentos, na


medida das possibilidades do onerado e necessidade do alimentado, independentemente
da patria potestas, obrigação extensiva aos avós paternos e maternos e, em casos de
pobreza extrema, aos herdeiros do filho;

- há um recíproco direito sucessório;

- o pater pode intentar uma acção para obter o reconhecimento da sua paternidade;

35
Para este fim, a mulher gozava de hipoteca legal sobre os bens do marido e podia agir contra este
mediante a rei vindicatio (acção de reivindicação).
36
É provável que o filho gozasse da mesma condição se o pater perdesse a cidadania e a liberdade
depois da concepção.
37
Um lei antiga punia o parricídio com a pena do culleus: o parricida era açoitado, metido num saco com
um cão, um macaco e uma serpente e lançado a um rio ou mar.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
27

- no caso de divórcio atribuído a culpa de um dos cônjuges, os filhos devem permanecer


junto do cônjuge inocente, salvo se, tratando-se da mãe, passar a segundas núpcias; se o
pater for pobre e a mãe rica, esta deve mantê-los.

b) O filho natural segue a condição da mãe no momento do nascimento. No justinianeu


adquire um direito sucessório limitado, um direito a alimentos; o pater pode nomear-
lhe tutor em testamento e é legitimável.

c) O filho espúrio não tem juridicamente pater e, por isso, não existem entre o
genitor e esse filho quaisquer direitos e obrigações. Integra-se na família materna e, em
relação à mãe, cuja condição segue, tem os mesmos direitos que os filhos legítimos:
direitos a alimentos, direito sucessório.

8.2. Estatuto patrimonial do filho38.

9. Tutela e Curatela

A capacidade de agir, ou seja, de exercer validamente os direitos de que se é titular é


reconhecida aos indivíduos sui iuris. É neste quadro que se situam os institutos da tutela e
curatela, entendidos como meios de suprimento de incapacidades, configurando ambos
poderes sobre pessoas que não têm capacidade de entender e de querer considerada
necessária à administração do seu património. Esta incapacidade pode ser total ou parcial
e fundar-se na idade, sexo, enfermidade mental ou na tendência para a dilapidação do
património.

9.1. Tutela

Os impúberes e as mulheres39 estão sujeitos a tutela. O tutor tem sobre eles e o seu
património um poder de protecção, similar ao poder doméstico do paterfamilias, mas
atenuado pela finalidade de protecção do pupilo.

a) Espécies de chamamento à tutela

38
Cfr. supra, ponto 4.1. b): situação jurídica do filho-família. Sobre aquisição estatuto de sui iuris,
Breviário, p. 446 ss.: Se o pf morresse no cativeiro, tornavam-se si,…se no da morte, ou retroac… na capt
39
Com a progressiva independência da mulher na vida social, a tutela das mulheres regride cada vez
mais. Na época clássica subsistem alguns vestígios, que desaparecem com o termo dela. À tutela da
mulher liberta é chamado o patrono, à da emancipada o parens manumissor. Nestes dois casos a tutela
subsiste mais tempo. A tutela legal das mulheres pode ser cedida por in iure cessio. Cfr. Kaser, p. 359.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
28

- Legítima, ou legal, definida imediatamente, ipso iure, quando ainda não se tem tutor, não
sendo necessária a designação, e se acha ligada estritamente à pessoa. O tutor legal não a
pode recusar, salvas as causas justificativas da escusa40;

- Testamentária, que passa a vigorar quando é instituído um suus heres (herdeiro) com a
morte do testador, ou um extraneus (estranho), em regra com a aceitação da herança por
este. O tutor testamentário tem um cargo honorífico, que deve à confiança do testador;
por isso, não pode cedê-lo mas pode recusá-lo;

- Dativa, outorgada pelo magistrado, quando é incerta a existência do tutor necessário. A


nomeação é feita a requerimento, que qualquer pessoa tem legitimidade para fazer e
certas pessoas próximas sobretudo a mãe.

b) Funções e responsabilidade do tutor

Como funções, sobrelevam as seguintes:

- adquirir posse e propriedade para o pupilo;

- empregar os capitais na aquisição de bens imóveis e, subsidiariamente, em mútuos com


juros;

- autorização41 para o pupilo praticar actos jurídicos, sendo necessário presença no acto ou
negócio e consentimento. A auctoritas não pode ser dada quando o tutor tem interesse no
negócio, por força do princípio de que “o tutor não pode interpor a sua autoridade em
negócio seu” 42. Os actos realizados pelo pupilo sem a assistência do tutor são válidos na
parte que importem um ganho e nulos na desfavorável43.

Entre as responsabilidades, avultam:

- responder por má administração dos bens pupilares, obrigando-se a prestar contas e, por
danos causados ao pupilo, poder ser demandado pela acção de tutela44;

- é obrigado a fazer um inventário dos bens do pupilo;

- o pupilo dispõe de uma hipoteca legal geral sobre os bens do tutor e tem a faculdade de
reivindicar os bens adquiridos pelo tutor com o seu dinheiro, como se por ele adquiridos.

40
A escusa traduz a possibilidade de o agnado próximo (avô, irmãos) obter a dispensa do ofício de tutor
com base num motivo justificativo (idade v.g. 70 anos ou mais, litígio grave com o pupilo, debilidade
física, pobreza extrema, analfabetismo).
41
Originariamente revestindo forma solene, e depois por meras palavras ou actos alusivos da
aprovação.
42
Tutor in rem suam auctor esse non potest.
43
O pupilo que actuasse sem a auctoritas do tutor torna-se responsável nos limites do seu
enriquecimento.
44
Esta acção produz a infâmia e só pode ser intentada no termo da tutela.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
29

c) Incapacidades

São considerados incapazes do exercício da tutela:

- os menores de 25 anos de idade;

- os escravos, salvo se nomeados no testamento45;

- as mulheres, excepto a mãe ou avó, na condição de não contraírem segundas núpcias46;

- os dementes, salvo se recuperar a sanidade mental, surdos, mudos, cegos e doentes


graves e crónicos;

- quem for excluído por acto de última vontade do pater ou mater do pupilo, quem se
oferecer para exercer a tutela, pagando dinheiro; o inimigo do pupilo ou dos seus
ascendentes;

- os soldados em exercício activo, salvo se for filho de um companheiro de armas;

- os devedores e credores do pupilo, com excepção da mãe e da avó;

- os bispos, frades e monges.

d) Extinção

A tutela termina com a morte do pupilo, com a capitis deminutio (mesmo mínima) em que
tenha incorrido e com a sua chegada à puberdade. Cessa também o ofício do tutor com a
sua morte ou capitis deminutio.

9.2. Curatela

As fontes conhecem uma cura (curatio) do doente mental e do pródigo. O curador detém
um poder fiduciário sobre um maior sui iuris considerado excepcional e limitado ao seu
objectivo, afectando a pessoa e o património no caso de doente mental, e apenas os bens
familiares no caso do pródigo. Nos princípios da república acresce a cura dos menores (aos
que ainda não completaram 25 naos).

a) Cura dos menores

45
O que supõe concessão tácita da liberdade.
46
E renunciarem ao benefício do sc. Velleianum (sobre este, cfr. Sebastião Cruz, Direito Romano I, p. 235
ss).
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
30

Até ao século II a.C., o cidadão romano sui iuris e púbere tinha capacidade de agir.
Somente as mulheres sui iuris estavam sujeitas à tutela perpétua. Nesses tempos, em que
a sociedade romana estava pouco evoluída, a inexperiência de quem atingia a puberdade
era protegida pelo escasso número de negócios em que participasse e pela sua
publicidade. Porém, a sociedade evoluiu e, noa no 191 a.C., a lei Letória introduziu uma
acção contra quem, numa relação patrimonial, tivesse enganado um púbere sui iuris com
menos de 25 anos, colhendo vantagens da sua inexperiência, embora sem realizar acto
propriamente doloso. No direito justinianeu, os menores de 25 anos estão
obrigatoriamente sujeitos a curatela e o curador é um administrador estável.

b) Cura dos doentes mentais (cura furiosi)

O curador cuida da pessoa e administra o seu património. Justiniano exige sempre


nomeação pela seguinte ordem: primeiro, da pessoa instituída pelo pai no testamento,
depois a chamada legalmente e por fim outra pessoa idónea.

c) Cura dos pródigos (cura prodigi)

A curatela do pródigo pressupõe a interdição e o seu poder de protecção limita-se à


administração do património. Ao seu lado, o pródigo detém uma capacidade negocial
limitada47.

47
Segundo fontes clássicas, os magistrados nomeiam outros curadores para mudos, surdos e
deficientes, e ainda para o nascituro. Kaser, p. 363.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
31

CAPÍTULO V–SUCESSÕES

Sumário:

1. Noção de sucessão; 2. Herança; 3. Bonorum possessio; 4. Herdeiro; 5. Capacidade e


indignidade; 6. Delação; 7. Aquisição da herança; 8. Modalidades.

1. Noção de sucessão (successio)


A sucessão consiste na substituição de uma pessoa por outra (ou outras) que assegura a
continuação da posição jurídica daquela por virtude de determinado acontecimento.

Na época clássica, o direito romano só conheceu a sucessão universal que podia ser inter
vivos e mortis causa.

A primeira só ocorria em situações bem determinadas: v.g. na conventio in manum; no


regresso à escravidão do liberto por motivo de ingratidão.

A segunda realizava-se através da herança; é a sucessão na herança do de cuiús.48

A sucessão universal mortis causa tem as seguintes características:

a) O sucessor ocupa a posição jurídica do antecessor;


b) O património do de cuiús é adquirido por efeito da aquisição do título de herdeiro
(heres)
c) Só não passam para o sucessor os direitos do antecessor considerados
intransmissíveis.

2. Herança

2.1 – Noção

A herança (hereditas) é assim definida por IULIANUS: não é outra coisa do que a sucessão no
direito universal que o defunto haja tido.

2.2 - Origem

A origem e evolução da herança é um problema que continua a dividir a romanística que


não dispõe de elementos certos susceptíveis de servirem de fundamento sólido às suas
teorias. Não se afasta, todavia, a ideia de que a evolução da hereditas acompanhou, pari
passu, as transformações da família.

48
Esta expressão é síncope de outra: is de cuiús hereditate agitur (aquele acerca de quem a herança se
trata). Designa, portanto, o falecido que deixou bens, também denominado causante ou autor da
herança. Contrapõe-se a mortuus: o que faleceu sem deixar bens.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
32

3. Bonorum possessio.

3.1 – Noção, origem e regime jurídico

A bonorum possessio é a herança reconhecida pelo pretor que ora confirmou, ora
integrou, ora corrigiu o sistema sucessório do direito civil. Quanto à sua origem, é um
efeito da evolução da antiga família agnatícia para a família consanguínea e do estatismo
do direito civil que levou o pretor a abrir o direito sucessório aos familiares consanguíneos
até então afastados, como os filhos emancipados e a mãe.

A bonorum possessio era regulada pelo ius pretorium ao passo que a hereditas pelo ius
civile.

3.2 - Regime jurídico

O pretor, por meio de alguns expedientes, concedia a posse hereditária a determinadas


pessoas previstas no respectivo ius: v.g. a acção publiciana.

Durante a vigência do direito romano, houve tentativas de fusão da hereditas e a bonorum


possessio, cujo grande passo foi dado no direito justinianeu com o Corpus Iuris Civilis.

4. Herdeiro

4.1 - Noção

O herdeiro (heres) é o sucessor in locum et ius do de cuis, cujo património activo e passivo
adquire49.

4.2 - Espécies de herdeiro

a) Herdeiro necessário e o herdeiro voluntário. O herdeiro necessário é heres


independentemente de sua vontade: queira ou não, é a morte do paterfamilias que o
torna imediatamente herdeiro; por isso, não é necessária a aceitação50. O herdeiro
voluntário é, por exclusão, o não necessário: é aquele que, não estando sujeito à potestas
(patria potestas, manus ou dominica potestas) do paterfamilias no momento da sua
morte, só se torna herdeiro por acto voluntário de aceitação.

b) Herdeiro testamentário e herdeiro legítimo. O testamentário é o heres instituído no


testamento do de cuius. O legítimo é chamado pelo ius civile ou (mais tarde) pelo ius
pretorium.

5. Capacidade e indignidade

5.1 - Capacidade

49
Cf. D, 50, 16, 39, 1.
50
Cf. D. 38, 16, 14.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
33

Para que a sucessão hereditária seja possível, é necessário que o de cuius e o heres
tenham capacidade sucessória. Porém, o seu regime não é unitário. Os jusrisconsultos
romanos não elaboraram uma doutrina sobre a capacidade de ter herdeiros, de fazer
testamento e de adquirir; e tão-pouco utilizaram uma terminologia adequada.

5.1.1 - Capacidade do de cuius

a) Na sucessão legítima (ab intestato)

O âmbito da sucessão legítima, o problema da capacidade jurídica do de cuius não parece


difícil: sendo pressuposto da lei, deve ser livre, cidadão romano e sui iuris. Portanto, deve
ter o status libertatis, o status civitatis e o status familiae.

No entanto, estes requisitos variaram ao longo da história: se o status libertatis se


manteve firme ainda na época justinianeia, o status civitatis viu o seu alcance alargado
pela constitutio antoniana que, no ano 212, estendeu a cidadania aos habitantes do
Império. Antes, a capacidade dos estrangeiros (peregrini) era regulada pelas leis dos seus
Estados.

Quanto ao status familiae, inicialmente só o paterfamilias podia ter herdeiros, por ser o
único titular de relações jurídicas patrimoniais. Os filiifamilias não gozavam de capacidade
e as suas aquisições pertenciam ao respectivo paterfamilias. Todavia, este princípio foi
sendo superado. Constitui momento importante o reconhecimento, por Augusto, dos
pecúlios que implicou a concessão aos filiifamilias da capacidade de disporem por
testamento. E quanto à capacidade de terem herdeiros legítimos, Justiniano consagrou o
novo princípio de que podem ter herdeiros ab intestato, extinguindo a antiga
incapacidade.

b) Na sucessão testamentária

A capacidade de fazer testamento (testamenti factio activa) apresenta um regime peculiar:


não basta ter a capacidade negocial; há também um conjunto de restrições determinadas
por motivos particulares.

O direito civil exigia que o testador possuísse a testamenti factio no momento da feitura
do testamento e devia conservá-la ininterruptamente até à sua morte; por isso, depois da
redacção do testamento, o testador se tornasse incapaz e, ainda que, antes de morrer,
readquirisse a sua capacidade, o testamento era considerado inválido51.

5.1.1 - Capacidade do herdeiro

A capacidade que se exigia ao testador era a mesma que o herdeiro devia possuir. Da
parte do herdeiro, quanto à sucessão testamentária, fala-se de testamenti factio passiva,

51
Cfr. Excepção da lex cornelia.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
34

que devia existir ininterruptamente desde a feitura do testamento até à aceitação da


herança.

Independentemente da sucessão testamentária ou legítima, podem ser herdeiras as


pessoas físicas e jurídicas.

5. Indignidade

Fala-se deste instituto para designar a situação em que um dos herdeiros não pode tomar
a sua posição por força da deserdação. Este instituto surgiu e desenvolveu-se na época
imperial.

6. Delação

Entende-se como o chamamento de uma ou mais pessoas para adquirem a herança que
lhes é deferida ou oferecida. Constitui a causa ou base jurídica da aquisição. Supõe
necessariamente a morte de uma pessoa, sem a qual não há herança; exige-se que o
herdeiro a conheça. Por isso, não se permite a sucessão do ausente nem a pressuposição
da morte: é necessário prová-la.

7. Aquisição da herança

7.1 – Modalidades

a) Ipso iure

Verifica-se nos herdeiros necessários. Nesta modalidade, segundo GAIUS, ‘tratando-se de


heredes sui, não é necessária a aceitação, porque imediatamente são herdeiros de direito’.
Aqui, basta que se verifica a morte do de cuiús para que os herdeiros ganhem esta
qualidade. Tem um efeito imediato.

b) Aceitação da herança

Encontram-se aqui os herdeiros voluntários. A aquisição da herança ocorre por efeito da


aceitação (aditio) que se pode definir como uma declaração unilateral através da qual o
herdeiro manifesta a sua vontade de adquirir a herança a que é chamado.

8. Modalidades de sucessão

Os romanos conheceram, essencialmente, duas formas de sucessão: testamentária e


legítima. Acresça-se que a sucessão necessária não passa de uma das variantes da
sucessão legítima.

a) Sucessão testamentária

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


35

A sucessão testamentária é aquela que tem como fundamento a última vontade do de


cuiús. Esta vontade ou declaração de vontade vem expressa no testamento que é um acto
solene da última vontade, através do qual se nomeia herdeiro e se podem fazer outras
disposições de carácter patrimonial ou pessoal. O testamento tem as seguintes
características: é um acto do direito civil; unilateral; pessoalíssimo; formal; revogável;
mortis causa e deve conter a instituição de um ou vários herdeiros. Na falta, invalidade ou
revogação do testamento, operava-se a sucessão pela lei.

c) Sucessão legítima (Sucessão ab intestato ou intestada)

Na sucessão ab intestato ou intestada são chamados para sucederem aqueles que


conviviam directamente com o mesmo seguido uma ordem em função às classes dos
sucessíveis. No direito civil, temos: os heredes sui, os adgnati e os gentiles; no direito
pretório, temos: os liberi, legitimi, cognati, vir e uxor; no direito justinianeu, são:
descendentes, ascendentes, irmãos e irmãs, outros colaterais e o cônjuge supérstite.

c) Sucessão necessária ou contra o testamento

A sucessão contra o testamento verifica-se contra a vontade do testador, por isso, é


chamada também de necessária porque visa corrigir aquilo que o de cuiús limitou-se a
fazer.

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


36

CAPÍTULO V - A TUTELA JURÍDICA

Sumário:

A. O PROCESSO CIVIL: 1. Generalidades; 2. Processo das Acções da lei; 3. Processo das


fórmulas; 4. Processo cognitório; 5. Organização judicial; B. PROTECÇÃO JURÍDICA
EXTRAPROCESSUAL: 1. Stipulatio praetoria; 2. Restitutio in integrum; 3. Missio in
possessionem; 4. Interdictum.

A. O PROCESSO CIVIL

1. Generalidades (cfr. Santos Justo, Direito privado romano I, pp. 233-237)

a) Breve conspecto histórico

b) Conceito de Actio

2. Processo das Acções da Lei

Constituiu a primeira forma em que a justiça privada foi ordenada sob a direcção e o
controlo da autoridade estatal. Só podia ser utilizado por cives romani em Roma ou no raio
duma milha da cidade e protegia direitos reconhecidos pelo ius civile. As partes
(demandante e demandado) devia praticar os actos solenes (formais e orais) prescritos
pela Lei da Doze Tábuas: daí, o nome de legis actiones.

Tinha duas fases:

a) In iure

Análise da questão jurídica da causa.

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


37

Perante o magistrado, tinha por escopo fixar com certeza e precisão os termos do litígio,
exigindo-se, por isso, a necessária presença de ambas as partes. O autor dirigia-se ao
demandado e, onde quer que o encontrasse, ordenava-lhe, com palavras solenes, que o
acompanhasse ao magistrado (in ius vocatio).

Presentes o demandante e o demandado junto do magistrado, aquele expõe sem


formalismo, a sua pretensão (editio actionis) apoiada no ius civile. E só depois desta
exposição e da provável constestação do demandado, o magistrado concedia ou denegava
a actio solicitada. Se a concedesse, o demandado devia tomar uma posição que difere
segundo a natureza da actio: se in rem ou in personam.

Se o demandado contestasse, o magistrado fixava o assunto litigioso em termos precisos e


as partes comprometiam-se, num acordo solene perante o magistrado e na presença de
testemunhas, a submeterem-se à decisão de um juiz. Este acordo arbitral, denominado
litis contestatio, constitui o ponto nuclear do processo civil: fixa os termos do litígio e
determina a consumpção da actio.

b) Apud iudicem

A fase in iure termina com a designação do iudex que o magistrado mandatava para julgar
(iussum iudicandi). Abre-se a fase apud iudicem que decorria na presença do juiz, árbitro
ou colégio de juízes. Nesta fase, procura-se determinar a verdade dos factos alegados pelo
demandante.

O processo começava com uma breve exposição do litígio (causae collectio) nos termos em
que tinha sido fixado na fase in iure, com a intervenção das testemunhas que estiveram
presentes da litis contestatio. Seguia-se uma exposição ampla e pormenorizada do assunto
(peroratio), normalmente por oratores que falavam em nome das partes. As alegações de
facto eram objecto de prova sobretudo testemunhal e reforçadas com a invocação de
opiniões de jurisconsultos que, por vezes, compareciam pessoalmente como advocati ou
oratores.

E com base nas alegações e nas provas o juiz formava livremente a sua opinião e
pronunciava a sua sentença (parere), a que seguia a execução.

3. Processo das Fórmulas

3.1. Noção

A fórmula é uma ordem que, por escrito, o pretor dirige ao juiz, para condenar ou absolver
o demandado se provarem ou não determinado facto. Fixa os termos do litígio e
determina a actuação do juiz no julgamento do caso litigioso, em forma hipotética ou
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
38

condicional. Assim, a fórmula simplificada duma actio em que se pede a condenação numa
certa pecunia tem a seguinte redacção: “se resulta que Numério Negídio (demandado)
deve dar dez mil sestércios a Aulo Agério (demandante), tu, juiz, condena Numério Negídio
a dar dez mil sestércios a Aulo Agério. Se não resulta, absolve”.

As frases típicas e intangíveis que integravam cada uma das legis actiones são substituídas,
no novo processo, por outras também pré-estabelecidas (concepta verba) que, na forma
escrita e de modo preciso e simples, contêm os termos da questão litigiosa exactamente
como resultam das alegações das partes na presença do magistrado. E ao juiz cumpre
conhecer e decidir o litígio segundo a orientação que a fórmula lhe oferece.

Simplesmente, enquanto no processo das legis actiones essas frases tinham sido pré-
estabelecidas por leges e constituíam a essência do ritual de cada uma das legis actiones,
no agere per fórmulas os termos em que as fórmulas são redigidas dependem do poder
discricionário do pretor que, todavia, costumava fixar no seu edictum esquemas ou
modelos abstractos de fórmulas que deveriam ser utilizadas nas várias actiones.

3.2. Estrutura

3.2.1. Partes ordinárias

a) Intentio, é a parte da fórmula em que o demandante manifesta a sua pretensão. Aí se


apresenta o problema litigioso segundo a pretensão do demandante, de cuja verificação
depende a sentença do juiz.

b) Condemnatio, nesta, o magistrado outorga ao juiz a faculdade de condenar ou absolver


o demandado, se provar ou não a verdade do conteúdo da intentio.

3.2.2. Partes eventuais

a) demonstratio, é a parte da fórmula que se insere no princípio para explicar o assunto


litigioso.

b) adiudicatio, cláusula especial encontrada em algumas fórmulas, por que se outorga ao


juiz a faculdade de atribuir ou adjudicar uma res a algum dos litigantes.

3.2.3. Partes extraordinárias

Atendendo às circunstâncias do caso em debate, pode ser necessário inserir, em qualquer


tipo de fórmula, uma nova cláusula que contenha alguma circunstância relevante para a
decisão do juiz.

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


39

a) Exceptio, é uma parte inserida entre a intentio e a condemnatio que contém uma
alegação do demandado que, embora reconheça a pretensão do demandante, é
susceptível de a paralisar.

b) Replicatio, duplicatio, triplicatio. O demandado pode contestar a exceptio, utilizando


uma replicatio, introduzida na fórmula a favor do demandante, cumprindo uma função
negativa da exceptio. Se por sua vez, o demandado opusesse à replicatio questões de
facto ou de direito susceptíveis de a paralisar, pedia a inserção da duplicatio. A série das
constra-excepções era, em teoria, ilimitada: triplicatio, quadruplicatio, etc.

c) Praescriptio, vem inserida no princípio (antes da (eventual) demonstratio e da intentio)


e tem por função limitar ou afastar os efeitos da litis contestatio. Nela se ordena ao juiz
que tenha em conta determinadas circunstâncias para evitar uma sentença injusta ou
lesiva para o autor ou para o demandado.

3.3. Espécies

a) Fórmula civil (ou in ius concepta), contém uma intentio concebida in ius porque o
direito invocado pertence ao ius civile.

b) Fórmula in factum concepta, através da qual o pretor protegeu situações de facto não
protegidas pelo ius civile, mas que considera dignas de protecção jurídica. Assim, concedia
actio no caso concreto.

c) Fórmula útil. Constituem um meio que o pretor utilizou para ampliar o campo de
aplicação das actiones civiles e praetoriae. Trata-se duma categoria de fórmulas sem
independência substantiva, a que pertencem todas as fórmulas através das quais o pretor
estendeu, a novos casos, a pessoas diferentes ou a situações distintas, os recursos
processuais que já existiam no ius civile e até no ius praetorium. Nelas distinguimos as:

 Fórmula fictícia. Através desta, o pretor estendia as actiones civiles a situações


semelhantes, mas diferentes das previstas no ius civile, afastando os obstáculos
que impediam a sua imediata aplicação. Se é positivo (existe e não devia existir),
finge-se que não existe; se é negativo (não existe e devia existir), finge-se que
existe. Este obstáculo tanto pode ser uma qualidade ou condição jurídica (v.g., a
cidadania romana, a condição de herdeiro) como um facto jurídico (v.g., a
celebração de um negócio jurídico)
 Fórmula translativa. Também dita com transposição ou inversão de sujeitos,
permitia ao magistrado resolver dificuldades que se apresentavam em actiones do
ius civile e do ius praetorium. O que especifica a actio translativa é o leve arranjo
que a fórmula sofre: a alteração de nomes que os torna diferentes na intentio e na
condemnatio.
 Fórmula ad exemplum. Esta fórmula caracteriza uma actio in factum criada à
imagem doutra actio, cujo regime se deseja aplicar: civil ou mesmo in factum.
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
40

Constitui exemplo a actio concedida por Servius a um transeunte lesado pela


queda duma tabula exposta numa varanda. Servius recorreu a esta actio porque a
actio in factum (que imita) não podia ser outorgada: a tabula não foi colocada no
telheiro nem no beiral.

1.2.Tramitação

3.4.1. Na fase in iure

a) Notificação (edictio) e postulação (postulatio) da acção

Presentes as partes junto do magistrado e dispondo-se o demandado a participar no


litígio, o processo iniciava-se com a reiteração da edictio actionis. O demandante voltava a
expor (agora perante o pretor) a sua pretensão e pedia ao magistrado que lhe concedesse
a acção que propõe ou da protecção jurídica. Este pedido denomina-se postulatio actionis.

b) interrogatio in iure

Em certos casos, antes da postulação da acção o demandante podia ter necessidade de


precisar alguns pontos essenciais que lhe permitissem instaurar a actio, v.g., se quisesse
exigir do herdeiro um crédito sobre o de cuius, interessar-lhe-ia determinar previamente
se o demandado era o herdeiro e em que proporção. Dirigia, então, uma pergunta a que o
demandado devia responder. A resposta vinculava definitivamente o demandado,
seguindo-se o pedido da fórmula pelo demandante.

c) Juramento (iusiurandum) decisório

Permite submeter a decisão do litígio ao juramento do demandado ou do demandante,


em vez de a confiar ao juiz.

d) Datio ou denegatio actionis

Se as partes não recorressem ao juramento decisário, o processo segue a sua tramitação.


O magistrado decidia com grande liberdade, através de um decretum, sobre a concessão
ou denegação da fórmula ou a protecção pedida. A liberdade do pretor é manifesta nas
actiones criadas por si próprio, sobretudo quando não havia uma actio prevista no seu
Edictum; mas é igualmente larga na concessão ou denegação duma actio civilis.

e) Confessio in iure (confissão perante o magistrado)


Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
41

É o reconhecimento do demandado, perante o pretor, de que a pretensão do


demandante é certa e fundada.

f) Redacção definitiva da fórmula

Concedida a actio, há que fixar os termos definitivos da fórmula. O demandado podia


aceitar o projecto de fórmula que lhe era proposto sem sugerir modificações, limitando-se
a negar o direito do demandante. Todavia, embora reconhecesse o direito alegado,
também podia opor determinadas circunstâncias de facto que, na sua opinião, eram
susceptíveis de determinar uma sentença favorável. Neste caso solicitava ao pretor que
inserisse essas circunstâncias na fórmula para que o juiz as tivesse em consideração: isto é,
pedia a concessão duma exceptio. Por sua vez, o demandante podia alegar outro facto que
contrariasse a excepção do demandado através duma réplica.

Analisada a questão, o magistrado apresentava, por meio de um decretum, o texto


definitivo da fórmula que significa, ao mesmo tempo, dare iudicium: a concessão da
fórmula concreta e definitiva a que a actividade do juiz devia sujeitar-se.

O pretor designa o juiz por decreto com a ordem de julgar (iussum iudicandi). O seu nome
é inserido na fórmula que passa a chamar-se iudicium: fórmula concreta e definitiva,
acomodada ao caso em julgamento, selada pelas partes e testemunhas.

g) Litis contestatio

É o acto em que as partes acordam expressamente em se submeterem ao resultado do


litígio, nos termos exactos em que a fórmula foi redigida.

A litis constestatio produz determinados efeitos:

a) em relação à actio deduzida em juízo, esse efeito é negativo: não é possível ao


demandante voltar a instaurar aquele actio. Trata-se do seu efeito consumptivo ou de
exclusão.

b) quanto à relação litigiosa, produz os efeitos de: precisão, i.é, os termos dessa relação
são definitivamente fixados, proporcionando a base da sentença; consolidação, i.é, a
relação litigiosa torna-se intangível ou insensível a qualquer alteração que venha a
produzir-se nos seus elementos até à sentença.

3.4.2. Na fase apud iudicem

a) Órgão judicial

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


42

As funções do órgão judicial (officium iudicis) compreendem as seguintes actividades:


dirigir as alegações da partes, examinar e decidir os pedidos das partes sobre os meios de
prova, pronunciar, durante os debates, ordens verbais, ponderar e valorar os meios de
prova e os resultados oferecidos segundo o seu livre arbítrio e formar a sua convicção
sobre se o facto, objecto do litígio, está ou não provado.

b) Debate judicial

O debate da questão litigiosa ocorre na presença do juiz num local público e no dia e hora
por ele designados. As sessões são públicas e os debates orais.

Presentes as partes junto do órgão judicial, a fórmula ser-lhe-á entregue se o magistrado a


não enviou directamente. O debate começa com as alegações feitas por oratores
especializados; primeiro, o orador do demandante, seguindo-se o do demandado que
pode, circunstancialmente, interromper aquele. No seu discurso, o orator fala da questão
jurídica e da prova que será feita dos factos.

1.3. A Sentença

Produzida a prova e depois de, em regra, se reunir com os seus conselheiros, o juiz ditará a
sentença se tiver uma ideia clara sobre a questão litigiosa.

O conteúdo da sentença depende das suas diferentes espécies:

a) simplesmente declarativas: limitam-se a pronunciar se uma situação de facto ou status


duma pessoa se considera ou não provado;

b) condenatórias ou absolutórias: condenam ou absolvem o demandado.

c) constitutivas: realizam uma modificação substancial nos direitos das pessoas que
intervêm no litígio, adjudicando, v.g., a propriedade a uma ou algumas; cria direitos novos,
sendo um dos modos possíveis de aquisição da propriedade e de outros direitos reais.

a) Efeitos

Distinguem-se dois: o negativo (ou de exclusão), determina que o demandante não pode
voltar a instaurar a mesma actio, sendo indiferente que a sentença lhe tenha sido
favorável ou desfavorável; o positivo, traduz-se na autoridade do caso julgado (res
iudicata);

O que foi dito na sentença impõe-se como verdade entre as partes; por isso, pode ser
invocada e deve ser respeitada. Num futuro litígio, este efeito impunha-se também

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020


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através da exceptio rei iudicatae que cumpre agora a nova função positiva: a de fazer
respeitar a autoridade do caso julgado.

Normalmente a sentença contém a condenação ou a absolvição do demando e, se


condena, versa sobre uma quantia de dinheiro que representa o valor da prestação ou do
objecto litigioso. Porém, este princípio geral de que ninguém prejudica, mas melhora a sua
causa por demandar, sofre excepções, v.g., no caso de sentença absolver o demandado e
condenar o demandante, quando este não conseguisse a condenação daquele, sujeitando-
se a pagar uma pena pecuniária.

b) Impugnação

A setença do juiz deve ser acatata pelas partes não só porque foi mandatado para julgar
pelo magistrado, mas também em virtude do acordo de submissão contido na litis
contestatio. Por isso, a sentença não podia ser, em princípio, impugnada: o juiz emitiu a
opinião que lhe foi pedida e os efeitos de exclusão da litis contestatio impedem que a
questão seja recolocada perante o juiz diferente.

Todavia, os litigantes dispunham de alguns meios que podiam produzir efeitos


semelhantes aos obtidos modernamente pelos recursos: a) se a sentença fosse nula por
vícios que a afectassem substancialmente (v.g., falta de capacidade processual das partes,
inobservância dos termos da fórmula) o litigante vencido não era obrigado a acatá-la. O
vencido podia esperar que o litigante vitorioso a executasse (através da actio iudicati) e
recusar o seu cumprimento. Nesta hipótese, iniciar-se-ia um novo iudicium sobre a
validade da sentença. Se a sentença deste novo litígio concluisse que aquela sofre dum
vício de nulidade, a sua execução não seria autorizada e podia voltar a litigar-se sobre o
mesmo assunto. Se, pelo contrário, a primeira sentença fosse considerada válida, o
litigante, que se opôs à execução, seria condenado in duplum; b) assinala-se a
possibilidade de demandar o iudex que se tivesse deixado corromper.

c) Execução

Em consequência do acordo contido na litis contestatio, as partes assumiam a obrigação


de lhe obedecerem.

De todo o modo, era possível que o litigante vencido não se mostrasse disposto a cumprir
a sentença, sendo necessário executá-la.

No sistema da legis actiones, o litigante vitorioso podia recorrer à manus iniectio que
funcionava como uma verdadeira actio executiva no caso do iudicatus e do confessus
(dívidas de dinheiro reconhecidas por sentença e demandado que reconheceu a dívida na
fase in iure, respectivamente). Em casos especiais, poder-se-ia utilizar a legis ctio per
pignoris capionem.
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No agere per formulas, o demandante vencedor podia solicitar a execução da sentença


interpondo uma nova actio: a actio iudicati. Instaurara esta actio, normalmente o
demandado reconhecia a existência e a validade da sentença em execução e o magistrado
emitia o decreto de execução (decretum executionis) que podia: a – autorizar o
demandante a apoderar-se da pessoa do demandado e a levá-lo para o seu cárcere
(privado) se não apresentasse um vindex; ou b – iniciar a execução sobre o património do
devedor.

O executado podia opor-se à execução invocando que a sentença em execução não é


válida por sofrer dum vício de nulidade.

4. Processo Cognitório

4.1. Origem

Na vigência do agere per formulas havia casos em que o magistrado conhecia a questão
litigiosa, fazia a prova dos factos e decidia o litígio através dum decretum. Portanto, o
processo não se separava nas fases in iure e apud iudicem e tão-pouco havia um iudex
privatus e o contrato arbitral que constituía a litis contestatio. Nesses casos não se tratava
de um iudicium propriamente dito, mas duma simples cognitio designada extra ordinem.

Não é fácil determinar a causa desta ampliação da actividade do magistrado, mas não será
alheia à paulatina transformação da constituição política desde a República ao Baixo
Império (passando pelo Principado), que fortaleceu, sempre mais, o poder central.

A figura de Augusto constituiu um momento crucial nesta evolução porque a sua função
de guarda das leis e dos costumes pressupõe um poder legislativo independente. Com
base na sua auctoritas, decidia ele próprio ou delegava em magistrados especiais a
faculdade de apreciar e resolver as controvérsias litigiosas. Essas cognitiones
extraordinariae tornaram-se numerosas e consagrou-se a possibilidade de qualquer
cidadão apelar ao princeps em relação a sentenças proferidas pelo iudex privatus no
processo ordinário.

Desde o século III, a tramitação dos processos ocorre através da cognitio extra ordinem.

Com as reformas administrativas de Diocleciano o pretor urbano reduziu-se a um puro


nome e a perda definitiva das suas faculdades jurisdicionais assinala o fim do processo
ordinário e o triunfo do cognitório.

4.2. Características

As mais destacadas são as seguintes:

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a) Não há as duas fases in iure e apud iudicem. O processo decorre perante o magistrado
que conhece e decide a questão litigiosa mediante sentença.

Não afasta esta característica a circunstância de ocasionalmente o magistrado delegar a


investigação de algum facto e a sentença num iudex.

b) o magistrado possui predomínio sobre a actividade que as partes desenvolvem no


processo; por isso, chega a conceber-se o novo processo não como um meio através do
qual os particulares dirimem, por acordo, os seus litígios, mas como uma função
protectora do Estado na salvaguarda da paz social de que deriva o direito e o dever de
administrar a justiça;

c) convertida numa função estatal, a administração da justiça fica sujeita ao regime


burocrático do Estado;

d) não há fórmulas, mas tão-só (e apenas até ao século III) certas instruções que o
magistrado dirige ao iudex.

A. PROTECÇÃO JURÍDICA EXTRAPROCESSUAL

Nem sempre a actividade do magistrado se traduzia na concessão e na denegação da actio


(fase in iure) e na inspecção e fiscalização dos actos processuais (fase apud iudicem). Por
vezes, com base na cognitio intervinha quer para facilitar o desenvolvimento do processo
ordinário quer para instaurar a pax durante a tramitação processual e mesmo, se possível,
evitar um verdadeiro litígio.

O pretor fazia uma apreciação prévia dos factos (causae cognitio) e depois decidia. Se as
partes não cumprissem tais decisões, podia impor multas, autorizar alguém a apoderar-se
de bens alheios (missio in possessionem), constituir pignoris capiones e até recorrer à força
pública (manu militari).

De referir os principais expedientes:

1. Stipulatio Praetoria

É um contrato imposto pelo pretor para proteger um interesse digno de tutela ou reparar
um possível prejuízo futuro. Neste caso, uma das partes promete pagar à outra uma certa
quantia pecuniária se se produzir um determinado facto. Como exemplos: a caução
prestada pelo tutor para garantir a recta administração dos bens do pupilo e a sua
devolução no fim da tutela; a caução prestada pelo proprietário duma casa em ruínas para
garantir os possíveis danos que a sua eventual queda cause ao vizinho.

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2. Restitutio in integrum

É um expediente utilizado pelo magistrado que, por motivos de equidade, declara não
reconhecer os efeitos a um facto ou acto jurídico formalmente válido e eficaz segundo o
ius civile. São exemplos: a que beneficiava os credores duma pessoa sui iuris que, por
efeito duma capitis deminutio mínima, se tornasse alieni iuris, permitindo reclamar os
créditos como se a capitis deminutio não se tivesse verificado; a que beneficiava quem
praticou um acto jurídico por ter sido gravemente ameaçado.

3. Missio in possessionem

É um expediente em que o magistrado autoriza uma pessoa a apoderar-se dos bens de


outra. Em regra, funciona como meio coactivo provisório concedido em casos muito
diferentes: v.g., para proteger as legítimas expectativas duma pessoa sobre um
património, impedindo que seja disperso ou desapareça. Pode conter a faculdade de
vender os bens a que se refere ou limitar-se a conceder ao missus determinadas
faculdades sobre esses bens, como a simples custodia: o proprietário não perde a posse,
mas fica sujeito à vigilância do missus. Cumpre a finalidade coercitiva e de conservação.

4. Interdictum

É uma ordem dirigida a uma pessoa para praticar ou não praticar determinada acto.

As diversas e numerosas situações de facto tuteladas permitem classificar os interdicta em


vários grupos.

a) proibitórios: proibem que se pratique um determinado comportamento (v.g. aquele de


vós em cuja posse esteve o escravo a maior parte do ano, leve-o consigo);

b) restitutórios: ordenam que se restitua uma res a determinada pessoa ou que seja
reintegrada no seu primitivo estado uma res que foi modificada sem autorização;

c) exibitórios: ordenam que seja exibida ou apresentada uma pessoa ou um documento


(v.g. para se obter a apresentação de um testamento ou outra disposição de última
vontade).

CAPÍTULO VI – DIREITO SOBRE AS COISAS

Sumário:
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1. Noção de coisa; 2. Classificação; 3. Propriedade Privada; 4. Propriedade


Pública; 5. Posse; 6.Direitos sobre coisa alheia.

1. Noção de coisa (res)

Res, pode ter três significados: em sentido mais restrito, a coisa corporal, individual,
delimitada, juridicamente autónoma; em sentido mais amplo, tudo o que possa ser
objecto de um direito ou de um processo civil; outras vezes, o património como um todo,
i.é. um conjunto de coisas com valor monetário.

2. Classificação

Relevam duas distinções principais: res extra patrimonium e res in patrimonio.

2.1. Res extra patrimonium (ou extra commercium)

No ordenamento jurídico romano, o termo commercium aponta para a esfera jurídica


patrimonial. Assim extra commercium eram as coisas que não podiam ser objecto de
relação jurídica patrimonial. Nestas despontam as res publicae (coisas do populum) como
os rios, lagos, o mar e a costa, estradas, praças públicas. Estas são coisas em propriedade
do Estado. Por razões de ordem religiosas, as coisas como templos, estátuas, altares,
sepulcros eram também extra commerium.

2.2. Res in patrimonio

Distinguem-se em:

a) corpóreas: tangíveis, tocáveis (fundus, ouro, casa); incorpóreas: intangíveis,


intocáveis (situações que atribuem um direito diverso do dominium, como
usufruto, obrigações, servidões).
b) simples: constituem uma unidade orgânica independente (estátua, escravo,
pedra); compostas: resultam da união de mais coisas, de modo a formar um
complexo unitário (v.g. rebanho, jóia constituída por várias pedras preciosas).
c) divisíveis: susceptíveis de serem divididas em mais partes, de modo que entre
estas e o todo subsista uma diferença apenas de quantidade e não de qualidade
(dinheiro); indivisíveis: insusceptíveis de serem fraccionadas (as coisas simples)
d) frutíferas: coisas capazes de produzir periodicamente frutos materiais,
conservando a sua substância e finalidade (plantas, animais, minas) e infrutíferas:
as incapazes de os produzir.

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e) Consumíveis: coisas susceptíveis de uma única utilização, importando esta quer a


sua destruição ou transformação (alimentos, matéria-prima); inconsumíveis: coisas
susceptíveis de uso reiterado.
f) fungíveis: coisas sub-rogáveis por outras do mesmo género, espécie ou qualidade
(dinheiro); infungíveis: não são sub-rogaveis, por terem individualidade própria
(v.g. prédio).
g) móveis: coisas susceptíveis de serem deslocadas sem alteração da sua estrutura
(um animal); imóveis: coisas insusceptíveis de serem deslocadas.
h) principais: coisas de que dependem outras relativamente ao uso, ornamento ou
fruição (campo agrícola); acessórias: subordinam-se, nessas funções, às principais
(instrumentos de trabalho, animais).

3. Propriedade privada

Podemos definir a propriedade romana como sendo o domínio eminente entre os vários
domínios gerais sobre a coisa.

3.1. Caracterização

Quanto às suas características, e tomando como base o fundus – por constituir a sua
expressão mais genérica em relação aos imóveis – a propriedade romana apresenta as
seguintes notas específicas:

 confinidade: fundus era limitado por um espaço livre que o rodeava. Assinalado
pela limitatio (cerimónia solene religiosa), este espaço era considerado res sancta
e, portanto, estava subtraído ao comércio privado;
 absorvência: tudo o que está ou se incorpora no fundus (v.g. águas, metais,
tesouros, plantas, edifícios, aluviões etc.) pertence ao proprietário desse fundus;
 imunidade: o fundus não está onerado por quaisquer impostos ou encargos;
 perpetuidade: não é possível constituir um direito de propriedade ad tempus, v.g.,
determinando que, depois de certo tempo, retorna ao alienante.

Estas características não foram insensíveis à evolução histórica. Por exemplo, a força
absorvente, que justifica a aquisição de quanto se incorpora no fundus, perdeu eficiência.
A imunidade cessou com Diocleciano, que sujeitou os fundos a impostos.

3.2. Modos de Aquisição

Modos de aquisição são os factos jurídicos aos quais a lei atribui eficácia para determinar o
direito de propriedade.

Distinguimos os modos de:

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3.2.1. Aquisição originária

a) ocupação: apreensão de uma res que não tem dono, acompanhada da intenção de o
adquirente a fazer sua.

b) acessão: resulta da união de uma res principal com uma res acessória que se torna parte
ou elemento constitutivo daquela;

d) especificação: é a transformação, pelo trabalho de uma matéria numa res nova que,
tendo essência própria e distinta, desempenha uma função economómico-social diferente
da que a matéria cumpria.

e) confusão ou mistura: consiste na mistura de coisas sólidas ou líquidas pertencentes a


diferentes domini, sem que alguma das res se possa dizer absorvida pela outra e o produto
da mistura considerar-se uma res nova.

f) aquisição de frutos: os frutos pertenciam, via de regra, ao proprietário da res que os


produzia. Desde que sobre a coisa tivessem sido constituídos direitos reais (usufruto,
enfiteuse, penhor) ou obrigações (locação), surgia o problema de determinar se a
aquisição era ou não a favor do proprietário. No caso do usufruto, por exemplo, o
usufrutuário adquiria os frutos com a percepção, i.é., com a efectiva apreensão dos frutos.

g) usucapião: é a anexação de uma res ao domínio próprio através da sua posse contínua
por um período de tempo estabelecido pela lei: dois anos para os fundos e um para as
restantes coisas.

h) adjudicação: ocorria nos juízos divisórios, em que o juiz gozava das faculdades de
determinar as partes da coisa comum e da herança e de as atribuir a cada litigante.

3.2.2. Aquisição derivada

a) mancipatio: foi a forma mais característica e importante de transferir a propriedade. As


exigências do comércio superaram esta forma, introduzindo o contrato consensual da
compra e venda (emptio-venditio), fonte da obrigação de transferir a res.

b) traditio: consiste na entrega ou na colocação de uma res à disposição do novo


proprietário.

c) in iure cessio: era um acto que se realizada na presença do magistrado. O adquirente


tomava a res e proferia palavras solenes. Seguidamente, o magistrado interrogava o
cedente se desejava fazer a contra vindicatio e, em face de resposta negativa ou do
silêncio, adjudicava a res ao adquirente.
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3.3. Perda e Revogação

A propriedade perdia-se por, v.g., transferência para outrem, destruição ou abandono da


res, incapacidade jurídica do seu titular.

A revogação da propriedade consiste na sua restituição ao antigo proprietário, cumprido o


termo ou verificada a condição resolutiva inserida num pacto que acompanhou a
transferência da propriedade.

3.4. Protecção

O direito de propriedade podia ser violado por, quem, sem título, privasse o proprietário
da sua res e por quem, embora sem questionar o direito daquele, lhe limitasse o gozo e a
disponibilidade da res. No primeiro caso, o proprietário dispunha da rei vindicatio; no
segundo, da actio negatoria ou negativa e afins, de tutela das relações de vizinhança.

a) rei vindicatio: é a actio principal que defende a propriedade; com ela, o proprietário
pede o reconhecimento do seu direito perante o possuidor ilegítimo e, em consequência, a
restituição da res.

b) actio negatoria: era concedida ao proprietário contra quem afirmasse a titularidade de


um direito real, v.g. servidão, usufruto, limitando o seu gozo ou disponibilidade. Sobre o
autor recai o onus probandi da propriedade e ao demandado a prova do direito negado.

4. Propriedade Pública

É integrada pelos Ager Publicus e fundos provinciais, provenientes de conquistas militares.


Pertencem ao populus Romanus. Aos particulares é concedia a sua exploração ou fruição
com base numa concessão ou arrendamento, mediante o pagamento periódico de um
stipendium ou tributum.

5. Posse

Além da protecção erga omnes à propriedade, os diferentes ordenamentos jurídicos


procuraram defender, igualmente, a paz social, reprimindo os actos que perturbassem a
disponibilidade de facto de uma res, independentemente de corresponder ou não a uma
situação jurídicia. Também o direito romano não foi insensível a estes conflitos e cedo de

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dispôs a combater a violência e a arbitrariedade com expedientes eficazes: os interdicta


ditos possessórios que, sem envolverem o reconhecimento de direitos reais sobre uma
res, asseguravam a paz social, fazendo cessar, imediatamente, determinados actos
perturbadores duma mera situação de facto.

5.1. Noção e elementos

A posse é um poder de disposição, de facto, de uma res que o possuidor exercia com
intenção de lhe pertencer exclusivamente. Nela distinguem-se dois elementos: corpus,
elemento material, que consiste na detenção material do bem pelo possuidor, e animus,
elemento psicológico ou subjectivo, que se traduz na intenção de o possuidor actuar como
se fosse proprietário (animus domini).

5.2. Protecção

A tutela possessória foi interdictal e dividia-se em dois grupos:

a) Interdicta retinendae possessionis: proibiam a perturbação ou o incómodo causado por


terceiros a quem gozasse a possessio obtida de modo não violento, clandestino nem
precário. Só podiam ser concedidas dentro de um ano contado a partir da perturbação e
correspondiam à actio negatória aplicável no âmbito da propridade.

b) Interdicta recuperandae possessionis: visam a recuperação da posse e correspondiam à


rei vindicatio utilizada no âmbito da propriedade.

CAPÍTULO VII– AS OBRIGAÇÕES

Sumário:

1. Noção, Sujeitos e Objecto; 2. Fontes; 3. Classificação; 3. Contratos; 4. Delitos; 5.


Pactos; 6. Garantias; 7. Extinção; 8. Incumprimento.

1. Noção, sujeitos e objecto

A obligatio é um vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa (devedor) está adstrita
para com outra (credor) à realização de uma prestação. Difere de um direito real porque,
enquanto o seu titular obtém o benefício económico que este direito lhe proporciona
através da sua actividade directamente exercida sobre a res, o titular do direito de crédito
somente o obtém da conduta positiva ou negativa do sujeito passivo. Por isso, a actio in
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personam, que protege o direito de crédito, dirige-se contra uma pessoa determinada pela
sua relação não com a res (como na actio in rem), mas com a pessoa do demandante.

Segundo os jurisconsultos clássicos, o objecto duma obligatio podia consistir em: dare
(constituição ou transferência de uma direito real); facere (realização duam actividade que
não se traduz num dar; pode consistir também numa abstenção (non facere); praestare:
identifica-se com dar e fazer, mas designa especialmente a assunção de garantia duma
obrigação.

2. Fontes

As fontes das obrigações são os factos que criam um vínculo obrigacional entre duas ou
mais pessoas. São os contratos, quase contratos, delitos e quase delitos.

3. Classificação, cfr. Santos Justo…II.

4. Contratos

4.1. Reais

Contrato real é aquele a cuja perfeição não basta o acordo (conventio) entre as partes para
produzir os seus efeitos jurídicos: é também necessária a prática de certo acto material
(datio ou traditio) em relação à coisa a que se refere (mútuo, fidúcia, depósito, comodato,
penhor).

4.2. Consensuais

Caracterizam-se pelo facto de a sua validade depender unicamente do acordo das partes,
que pode manifestar-se de qualquer modo (compra e venda, locação, sociedade,
mandato).

4.3. Formais

Os negócios formais (ou solenes) são aqueles cuja existência depende da observância
duma forma prescrita pelo ordenamento (verbais e literais).

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4.4. Inominados

Consubstanciam relações obrigacionais sem denominação própria, cujo vínculo jurídico


surge quando só uma das partes realizou a sua prestação e, por isso, pode exigir à outra a
prestação a que se comprometeu. A romanística distingue os seguintes acordos:

a) do ut dês;
b) do ut facias;
c) facio ut des;
d) facio ut facias.

1. Compra e Venda (emptio-venditio): contrato em que uma das partes (vendedor) se


obriga a transferir à outra (comprador) a posse de uma coisa (res) e a assegurar-lhe o seu
gozo pacífico, obrigando-se esta a dar àquele a propriedade de determinada quantia
pecuniária (pretium).

Convenção;

Elementos Coisa;

Preço (que deve ser certo determinado no momento da convenção ou


determinável, perante circunstâncias objectivas: v.g. coisas futuras.

2.Locação (locatio-conductio): contrato em que uma pessoa se obriga para com outra a
proporcionar-se o gozo temporário duma coisa, a prestar determinado serviço ou a
realizar uma obra, mediante o pagamento duma remuneração.

Convenção;

Objecto: uso de coisa (segundo o modo acordado), actividade laboral,

entrega de coisa pelo locador ao locatário para execução da obra;

Elementos Contraprestação devida pelo uso da res, trabalho prestado ou obra

Realizada;

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Tempo: a utilização da res, a actividade laboral ou a realização da obra deve

Ocorrer no prazo acordado.

3.Mútuo (mutuum): contrato unilateral através do qual uma pessoa que recebe de outra a
propriedade de determinada pecunia ou de outra coisa fungível, se obra a restituir igual
quantidade do mesmo género e qualidade.

Convenção;

Elementos

Dação da coisa (datio rei): transferência da propriedade.

4.Depósito (depositum): contrato em que uma pessoa (depositante) entrega a outra


(depositária) uma coisa móvel para que a guarde e restitua num determinado prazo ou
quando o depositante pedir.

Convenção;

Elementos

Entrega da coisa (traditio).

BIBLIOGRAFIA
Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020
55

1. JUSTO, Santos, Direito Privado Romano I-VI, Coimbra.


2. _______, Breviário de Direito Privado romano, Coimbra.
3. CRUZ, Sebastião, Direito Romano I – Fontes, Coimbra 1984.
4. Kaser, Max, Direito Privado Romano, Lisboa 1999.

Urbano da Cruz Gaspar, tópicos de Direito Romano, ad usum privatum, 2020

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