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Dinis Abrantes Figueiredo

Direito Romano

Ano letivo de 2021/2022


I Direito Privado Romano – Parte Geral
1. Conceito de Direito Romano
Os jurisconsultos sempre foram muito avessos a apresentar pequenas expressões, definições e
conceitos gerais para traduzir realidades complexas, uma vez que tal não correspondia ao
rigor que tanto os caracterizava. Tanto é assim que não chegaram a definir o que seria o
Direito. Contudo, poder-se-á defini-lo como sendo um conjunto de normas jurídicas que
vigoraram no mundo romano (uma pequena cidade estendeu-se pela Península Itálica,
acabando por abranger grande parte da Europa Ocidental, do Norte de África e do Médio
Oriente) desde 753 a.C. (data emblemática que assinala a fundação de Roma) até 565 (ano da
morte de Justiniano, Imperador do Império Romano Oriental (ou Império Bizantino)).

2. Fases da evolução histórica do Direito Romano


O Direito Romano, para se adaptar às transformações sociais ocorridas ao longo do tempo,
sofreu algumas alterações. De um conjunto de diversos critérios, seguir-se-á essencialmente o
critério jurídico-interno para analisar a evolução histórica do Direito Romano que decorreu
em quatro épocas principais:
- Época arcaica: A época arcaica vai desde 753 a.C. (data emblemática para assinalar a
fundação de Roma) até 130 a.C.
-» Interpenetração das ordens normativas: Na época arcaica, o Direito não se distinguia de
outros domínios normativos, como por exemplo os domínios religioso e moral, para tal
contribuindo o papel que os sacerdotes desempenhavam na interpretação do Direito Romano.
-» Flexibilidade do processo das formulas: O processo das ações da lei (legis actiones) era
um processo arcaico e rígido, uma vez que continha ações pouco adaptáveis às circunstâncias
dos casos que iam surgindo ao pretor. No ano de 130 a.C., a lex Aebutia de formulis
oficializou/legalizou no ordenamento jurídico romano o já existente e mais flexível processo
das fórmulas (agere per formulas), permitindo ao pretor adaptar o Direito aos casos através da
criação de novas ações, o que contribuiu para o desenvolvimento do Direito Romano.
-» Do Direito Romano quiritário ao Direito Romano universalista: Até 242 a.C. o Direito
Romano regulava apenas as relações entre os cidadãos romanos (cives, quirites). Com a
expansão de Roma, o aumento dos contactos entre Roma e demais povos e a criação do pretor
peregrino (funcionário público que detinha o poder de administrar a justiça e aplicar o Direito
universalista), o Direito Romano passou a regular as relações entre os cidadãos romanos e os
estrangeiros (peregrinos) e entre os estrangeiros entre si.
- Época clássica: A época clássica vai de 130 a.C. até 230 (data em que o processo das
fórmulas é substituído pelo sistema processual da cognição extraordinária (cognitio extra
ordinem)). A época clássica subdivide-se em três etapas:
- Época pré-clássica: A época pré-clássica vai de 130 a.C. até 30 a.C. e é marcada por um
desenvolvimento crescente e muito significativo da jurisprudência (ciência do Direito) e pela
laicização do Direito Romano, passando a interpretação do Direito a ser realizada por laicos e
já não por sacerdotes.
- Época clássica central: A época clássica central vai de 30 a.C. até 130 e é marcada pela
perfeição da jurisprudência e pelo apogeu do Direito Romano, tendo sido desenvolvido e
modernizado pela estilização da casuística (operação que o jurista tem que fazer para saber
distinguir num caso concreto o que é juridicamente relevante daquilo que não é), pelo
equilíbrio entre os casos concretos e as normas que lhes eram aplicadas e pela criação de
novas ações (actiones) por parte do pretor.
- Época clássica tardia: A época clássica tardia vai de 130 até 230 e é marcada pelo início
da decadência da jurisprudência, muito devido à sua burocratização, passando os

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jurisconsultos a concentrar-se no estudo do Direito Público (administrativo, militar, fiscal,
penal).
- Época pós-clássica: A época pós-clássica vai de 230 até 530 (data em que Justiniano
encarrega Triboniano de elaborar o Digesto). Esta época subdivide-se em duas etapas:
- de 230 até 395: Etapa marcada pela confusão de terminologia, de conceitos e de figuras
jurídicas. A perfeição da jurisprudência clássica dá lugar a uma jurisprudência simplista e
básica, onde os jurisconsultos se dedicam mais a fazer comentários, resumos e anotações às
grandes obras dos jurisconsultos clássicos. Em 395, o Imperador Teodósio divide o Império
Romano em duas partes e reparte-as pelos seus filhos Honório (Ocidente) e Arcádio (Oriente).
- de 395 até 530: No Ocidente verifica-se um fenómeno de vulgarização do Direito
Romano em que se demonstra uma simplificação de conceitos, uma confusão de noções, um
Direito de muito menor elaboração científica que atende sobretudo aos aspetos práticos, sem
um cuidado teórico. Esta vulgarização é um reflexo do início da decadência verificada na
época clássica tardia.
No Oriente verifica-se nas Escolas de Alexandria, Beirute e
Constantinopla uma reação antivulgarista marcada pelo classicismo (retorno ao rigor da época
clássica) e pela helenização (influência dos princípios e ideias filosóficas gregos).
- Época justinianeia: A época justinianeia vai de 530 até 565 (ano da morte de Justiniano,
Imperador do Império Romano do Oriente).
-» Classicismo e helenização: Esta época é ainda marcada pelo classicismo e pela
helenização da época pós-clássica no Império Bizantino.
-» Elaboração do Corpus Iuris Civilis: É também nesta época que o Imperador Romano do
Oriente Justiniano tem a intenção de criar um corpo jurídico (aquilo que vai ser o Corpus
Iuris Civilis) e encarrega o jurista e funcionário imperial Triboniano de chefiar uma comissão
para compilar o essencial do Direito Romano. Foi através do Corpus Iuris Civilis que se
atualizou o Direito Romano e que se pôde transmitir o seu conhecimento às gerações
vindouras.

3. Iuris praecepta – Os princípios jurídicos fundamentais


O grande jurisconsulto clássico romano Ulpianus destacou a existência de três princípios
jurídicos fundamentais sem os quais nenhuma ordem normativa é de Direito.
1.º - honeste vivere: viver honestamente – Agir de acordo com o Direito, ou seja, não apenas
de acordo com o teor estrito da lei (viver legalmente), mas respeitando igualmente a ordem
jurídica no seu sentido mais profundo de ordem de justiça. Este princípio jurídico
fundamental encerra em si a proibição do exercício de um direito contra as valorações mais
profundas da ordem jurídica (abuso do Direito) – 334º CC.
2.º - alterum non laedere: não prejudicar os outros – Comportar-se de uma forma que não se
ponha em causa os legítimos direitos e interesses de outrem.
3.º - suum cuique tribuere: atribuir a cada um o que é seu – Dar a cada um o que lhe é
devido.

4. Conceitos fundamentais do Direito Romano


4.1 Ius publicum e ius privatum
Para se proceder à complexa distinção entre ius publicum e ius privatum, seguir-se-á o critério
da qualidade dos sujeitos:
- ius publicum (Direito Público): O ius publicum é um conjunto de normas e princípios
jurídicos que regulam as relações entre órgãos do poder público e entre particulares e órgãos
do poder público quando estes surjam munidos do seu ius imperium (poder de emitir
comandos vinculativos, executáveis pela força contra aqueles a quem se dirigem).
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- ius privatum (Direito Privado): O ius privatum é um conjunto de normas e princípios
jurídicos que regulam as relações entre particulares e entre particulares e órgãos do poder
público quando estes não surjam investidos do seu poder de autoridade.
4.2 Ius civile, ius praetorium e ius honorarium
- ius civile (Direito Civil): O ius civile, ou Direito quiritário, era o Direito próprio e específico
da cidade de Roma, formalista e rígido, que regulava as relações entre os cidadãos romanos
(cives, quirites), e sobretudo as relações em que intervinha o paterfamilias (cidadão romano,
chefe da sua família, que tinha a plenitude da capacidade jurídica.
- ius praetorium (Direito do Pretor): Em 367 a.C. foi criada uma nova magistratura, o pretor
urbano, que tinha como principal função administrar a justiça nas relações entre os cidadãos
romanos, uma vez que a magistratura que havia estado encarregue de desempenhar tais
funções, os consules, estava ocupada nas campanhas militares e não tinha vagar para tratar
desses assuntos domésticos.
Inicialmente, a função do pretor urbano era restrita e limitava-se a verificar se os cidadãos
romanos exerciam as faculdades que lhes eram reconhecidas pelas leis e pelos costumes.
Progressivamente, o pretor urbano foi intensificando a sua atuação:
-» Correção dos rigores do ius civile: Uma vez que o ius civile era um Direito formalista e
rígido, dificilmente aplicável a determinadas circunstâncias dos casos concretos, o pretor
urbano começou a corrigir os seus rigores, possibilitando a aplicação do ius civile a esses
casos aos quais não era anteriormente aplicável.
-» Integração das lacunas do ius civile: Uma vez que as fontes do ius civile não davam
resposta a todos os problemas da vida social, o pretor urbano começou a integrar as suas
lacunas através da criação de novas ações, oferecendo desta forma proteção jurídica a casos
que o ius civile não contemplava.
É assim que surgiu, ao lado do ius civile, o ius praetorium. Para a coexistência de ambos os
sistemas jurídicos e para a fusão que ocorreu posteriormente contribuíram os seguintes
fatores:
1) O ius civile e o ius praetorium eram aplicados pelo mesmo pretor.
2) A jurisprudência atenuou a rigidez do ius civile e formulou regras e princípios jurídicos
para facilitar a atividade do pretor.
- ius honorarium (Direito Honorário): O ius honorarium era o Direito criado por certos
magistrados que exerciam os seus cargos a título de honra e não eram remunerados: o pretor
(urbano e peregrino), os edis curuis e os governadores das províncias. Como o Direito criado
pelos outros magistrados era pouco significativo, e tendo em conta que quem realmente criava
Direito era o pretor, é comum falar do ius honorarium como sinónimo do ius praetorium.
4.3 Ius gentium e ius naturale
- ius gentium (Direito das Gentes): Inicialmente, para regular as relações entre os cidadãos
romanos e os cidadãos de outros povos, recorria-se à celebração de tratados internacionais.
Contudo, a crescente expansão de Roma e o aumento dos contactos entre outros povos
tornaram tal prática impraticável. Para solucionar este problema, passaram a ser aplicadas as
normas de ius civile que coincidiam com as dos outros povos e as normas costumeiras que
iam surgindo no tráfico mercantil. Foi assim que surgiu um corpo de normas próprio para
regular as relações entre cives e peregrinos e entre peregrinos entre si, o ius gentium, que não
impediu que quer os cives quer os peregrinos se regessem pelos seus próprios Direitos.
Em 242 a.C. foi criada uma nova magistratura, o pretor peregrino, que tinha como principal
função administrar a justiça e aplicar o ius gentium.
A distinção entre ius civile e ius gentium, que nunca teve grande importância, perdeu-a
efetivamente em 212, ano em que o Imperador Antonino Caracala estendeu através de um

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edictum (lei imperial) a cidadania romana a todos os habitantes do Império Romano, passando
o ius civile a ser igualmente aplicado aos peregrinos.
- ius naturale (Direito Natural): Segundo Gaius, “O que a razão natural constitui entre todos
os homens é observado igualmente em todos os povos e chama-se direito das gentes, como se
fosse o direito que todas as gentes utilizam.” O ius gentium, portanto, fundamentava-se na
naturalis ratio (ordem natural/realidade objetiva das coisas) e era constituído por princípios
jurídicos e instituições comuns a todos os povos, como por exemplo a escravatura. Era neste
sentido que o ius gentium também era entendido como ius naturale.
Com a progressiva penetração e consolidação do cristianismo no Império Romano, o conceito
de ius naturale recebe um conteúdo teológico e passa a ser visto como um sistema ideal de
normas jurídicas que contêm exigências abstratas de justiça que podiam não coincidir com o
Direito positivo ou até serem contrárias a ele. Assim, o ius naturale deixa de se identificar
com o ius gentium, transcendendo-o. Por conseguinte, a escravatura, praticada por todos os
povos, mantém-se uma instituição do ius gentium mas, como todos os homens nascem livres e
são naturalmente livres, deixa de ser uma instituição do ius naturale.
4.4 Ius commune e ius singulare
- ius commune (Direito Comum): Conjunto de normas e princípios jurídicos que estabelecem
um regime-regra com caráter geral. Sendo assim, o ius commune aplica-se à generalidade das
pessoas ou coisas.
- ius singulare (Direito Singular): Conjunto de normas e princípios jurídicos que estabelecem
um regime oposto ao regime-regra estabelecido pelo ius commune. Para que se justificasse o
afastamento da aplicação do ius commune, seria necessária a verificação de uma razão
específica.
-» Exemplo: - ius commune: existência de certos requisitos para confirmar a validade de
testamento feito pela generalidade das pessoas.
- ius singulare: inexistência de requisitos para confirmar a validade de
testamento feito por militares, visto que estavam constantemente envolvidos em cenários de
guerra e em perigo de vida.
-» Aplicação do ius singulare a situações por ele não previstas: Como o ius singulare
necessitava de uma razão específica que justificasse o afastamento da aplicação do regime-
regra estabelecido pelo ius commune, aplicando-se, por conseguinte, a categorias específicas
de pessoas ou coisas, criou-se a doutrina de que o ius singulare não seria aplicável a situações
por ele não previstas. Um reflexo dessa doutrina encontra-se no artigo 11º CC que prevê que
as normas excecionais são aplicáveis a casos concretos específicos e não podem ser aplicadas
a casos por elas não previstos. No entanto, tal não corresponde àquilo que os juristas romanos
fizeram.
O artigo 11º CC fundamenta-se num texto de Paulus que afirma: “O que se admitiu contra a
razão do direito não deve ser levado até às suas últimas consequências”. Contudo, segundo o
Prof. Dr. David Magalhães, este texto não quer dizer que o ius singulare não possa ser
aplicado a situações por ele não previstas, mas quer antes dizer que se tem que ter em conta a
razão de ser do ius singulare para que este não seja injustamente aplicado a situações às quais
poderia muito bem ser aplicado o ius commune.

5. Conceções jurídicas modernas aplicadas ao Direito Romano


5.1 Distinção entre Direito objetivo e direito(s) subjetivo(s)
- Direito objetivo: Conjunto de normas jurídicas que regulam as relações humanas em
sociedade. É neste sentido que se fala em ius civile, em ius gentium e em ius honorarium.

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- direito(s) subjetivo(s): Poderes de atuação ou faculdades reconhecidos aos particulares pela
ordem jurídica. É neste sentido que se fala em direito à vida, direito de propriedade, direito à
integridade física, direito de crédito, etc.
-» Exemplo: “Nemo plus iuris ad alium transferre potest, quam ipse haberet”: Ninguém
pode transferir para outrem mais direitos ou direitos mais amplos do que aqueles que tem.

6. Organização política de Roma


→ Roma primitiva (753 a.C. até 510 a.C.):
Na Roma primitiva vigorou um regime monárquico, cuja organização competia a três
órgãos:
- Rei: Monarca vitalício que detinha o poder de representação de Roma.
- Senado: Assembleia composta por 100 senadores que tinham como principal função
conceder a auctoritas patrum (sanção puramente social, sem a qual a lei não seria socialmente
aceite nem cumprida). Para além disso, o Senado terá atuado como um órgão consultivo do
Rei.
- Assembleias Populares (Comícios): Reunião dos patrícios (cidadãos de estatuto mais
importante de Roma).
→ República (510 a.C. até 27 a.C.):
Devido a uma revolução que depôs o último Rei, o regime monárquico foi substituído pelo
regime republicano que assentava em três pilares ou “órgãos constitucionais”:
- Magistraturas: Os magistrados detinham o poder executivo e exerciam o seu cargo a
título de honra, uma vez que não eram remunerados. Por isso, a carreira política era conhecida
como cursus honorum (carreira política honorária) a que pertencem, por ordem decrescente,
os Censores, os Consules, os Pretores, os Edis Curuis e os Questores.
- Senado: Assembleia onde tinham assento os cidadãos mais ilustres por virtude da sua
riqueza e autoridade que tinham o importante poder de outorgar a auctoritas patrum às
deliberações dos comícios, ou seja, o Senado, através desta sanção puramente social,
reconhecia a deliberação emanada pelas assembleias comiciais, tornando-se socialmente
aceite e para cumprir.
- Assembleias Populares: Órgãos que detinham o poder legislativo e onde tinham assento
os cidadãos romanos. Dentro das Assembleias Populares, distinguiam-se os comícios
(assembleias onde tinham assento os patrícios) e os concílios da plebe (assembleias onde
tinham assento os plebeus (cidadãos com um estatuto social inferior)).
→ Principado (27 a.C. até 284):
-» Instauração do Principado por Octávio: Os últimos tempos da República Romana são
marcados por uma forte crise política, económica e social e por vários conflitos armados e
golpes de Estado. Até que Octávio, sobrinho e filho adotivo de Júlio César, é encarregue de
restaurar a paz e a justiça e de afastar o caos político, económico e social acabando por
instaurar um novo regime político em Roma no ano de 27 a.C., o Principado, e declarando-se
princeps.
-» Alterações à organização política: O princeps concentra em si um conjunto de poderes que
lhe são atribuídos pelo povo reunido nas Assembleias Populares e pelo Senado. As antigas
magistraturas republicanas, apesar de serem mantidas numa relação de subordinação
relativamente ao princeps, vão perdendo a sua importância, formando-se uma administração
burocratizada e composta por funcionários dependentes do princeps. O Senado, num primeiro
momento, adquire grande importância e chega a deter o poder legislativo, mas rapidamente
perde-a, ficando cada vez mais dependente do princeps. Sendo assim, conclui-se que apesar
de os vários órgãos da República Romana se manterem, o princeps passa a ter primazia
relativamente a eles e ascende à supremacia política, passando a designar-se Imperador.

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→ Dominado:
A tendência de esgotamento dos órgãos republicanos intensifica-se progressivamente,
provocando crises de natureza política, económica, social, demográfica, etc. Designado
Imperador pelas suas tropas, Diocleciano, no ano de 284, instaura um novo regime político, o
Dominado, marcado pela absoluta concentração do poder político no Imperador que é
dominus et deus (senhor e deus), sendo equiparável a uma monarquia absoluta. Contudo, seria
o Imperador Constantino que acabou por consolidar este novo regime político. Para além
disso, ao contrário de Diocleciano, Constantino abraçou o Cristianismo, tendo-se tornado
mais tarde na religião oficial do Império Romano.

7. Magistraturas da República Romana


7.1 Funções das magistraturas
Na República Romana as várias magistraturas detinham o poder executivo. Os magistrados
não eram remunerados e por isso o seu cargo definia-se como um honor, ou seja, era exercido
a título de honra. Por isso, a carreira política era conhecida como cursus honorum (carreira
política honorária) a que pertencem, por ordem decrescente de importância:
1) Censores: Os censores tinham como principais tarefas a administração dos bens
públicos, especialmente das terras públicas, e a organização do recenseamento dos cidadãos
romanos para efeitos eleitorais, tributários e militares. Para além disso, os censores tutelavam
a moralidade pública, sendo esta a origem da palavra “censura”.
2) Consules: Os consules foram os sucessores da figura do Rei e tinham como principais
funções representar Roma, comandar o exército, convocar o Senado e as Assembleias
Populares e administrar a justiça, embora de forma extraordinária a partir de 367 a.C. com a
criação da magistratura do pretor urbano.
3) Pretores: Os pretores desempenhavam praticamente as mesmas funções dos consules,
embora numa posição inferior relativamente a estes. Assumiu enorme importância a função
desempenhada pelos pretores de administração da justiça, quer entre os cidadãos romanos
(exercida pelo pretor urbano), quer entre estes e os peregrinos e entre os peregrinos entre si
(exercida pelo pretor peregrino). A criação da figura do pretor foi determinada pela ausência
dos consules ocupados em campanhas militares.
4) Edis Curuis: Os edis curuis tinham tarefas de natureza administrativa ligadas ao
urbanismo, tais como a limpeza pública e o trânsito, ao abastecimento público de cereais
(pão), à organização de espetáculos (circo) e à fiscalização de pesos e medidas. Destaca-se
ainda a sua missão de inspecionar os mercados. Por exemplo, nas vendas nos mercados de
escravos e de animais, que eram as principais mercadorias vendidas, os edis curuis decidiram
encarar a missão de proteger os consumidores que eram muito enganados.
5) Questores: Os questores administravam a justiça criminal e ocupavam-se do aerarium,
ou seja, do governo da tesouraria estadual.
Para além das magistraturas que pertenciam ao cursus honorum, é de referir a existência da
magistratura extraordinária do Ditador. O ditador era nomeado pelos consules por períodos
de 6 meses para fazer frente a situações de calamidade ou de grave crise política interna ou
externa. Durante esse período o ditador concentrava em si todos os poderes que exercia com
total independência perante os outros órgãos e irresponsabilidade, não sendo obrigado a
responder pelos atos que praticava.
7.2 Poderes das magistraturas
Eram três os poderes das magistraturas:
- Potestas: Poder de representação do povo romano no exercício das suas funções.
→ Censores, Consules, Pretores, Edis Curuis, Questores e Ditador
- Imperium: Poder de soberania que permitia dirigir o Estado, comandar o exército e

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administrar a justiça.
→ Consules, Pretores e Ditador
- Iurisdictio: Poder de ordinariamente administrar a justiça.
→ Pretores (nas causas cíveis), Edis Curuis (nas causas ligadas à administração das
cidades) e Questores (nas causas criminais)
7.3 Limites aos poderes das magistraturas
O que realmente caracterizou a República Romana e a destacou na História reside nos limites
aos poderes das magistraturas ordinárias:
- Temporalidade: Em regra, os magistrados da República Romana exerciam o seu cargo
durante 1 ano, embora no caso dos censores o período fosse de 5 anos e no caso do ditador o
período fosse de 6 meses.
- Colegialidade: Dentro de cada magistratura o poder era exercido por dois magistrados,
tendo um dos magistrados o direito de veto sobre as decisões do outro. Contudo, não há
memória de que o poder de veto tenha sido exercido.
- Pluralidade: O governo estava dividido em várias magistraturas.
- Provocatio ad populum: Podendo ser traduzida por “chamamento do/pelo povo”, a
provocatio ad populum consistia na faculdade de qualquer cidadão romano recorrer aos
comícios para impugnar uma pena que lhe fosse aplicada por um magistrado.
- Responsabilidade: Os magistrados respondiam pelos atos que praticavam contra as leis e os
costumes vigentes. Só o ditador estava isento desta responsabilidade.

8. Fontes do Ius Civile


A expressão “fontes do Direito” é uma metáfora que trata por identificar de onde surge o
Direito. Pode falar-se de “fontes do Direito” em três sentidos:
- fontes exsistendi: Órgãos ou entidades que produzem as normas jurídicas.
→ povo, comícios, concílios da plebe, Senado, alguns magistrados, o Imperador e os
jurisconsultos
- fontes manifestandi: Modos de formação das normas jurídicas.
→ costume (fonte exsistendi: povo), lei (fonte exsistendi: comícios), plebiscito (fonte
exsistendi: concílios da plebe), senatusconsulto (fonte exsistendi: Senado), edictum (programa
em que o magistrado dava a conhecer a sua atuação ao povo de Roma/lei imperial) (fonte
exsistendi: certos magistrados/Imperador), constituições imperiais (fonte exsistendi:
Imperador) e jurisprudência (fonte exsistendi: jurisconsultos)
- fontes cognoscendi: Textos que contêm as normas jurídicas.
→ Corpus Iuris Civilis
-» Decadência do Direito Romano relativamente às fontes: Ao longo da evolução política de
Roma, mais precisamente no Principado e no Dominado, e muito devido à expansão do
Império Romano, assiste-se a um processo de centralização jurídica e política no Imperador, o
que conduziu ao progressivo desaparecimento da variedade de fontes exsistendi e de fontes
manifestandi característica da República Romana. No fim, permanecerá como única fonte
exsistendi do Direito Romano o Imperador e como única fonte manifestandi as constituições
imperiais.
8.1 Fontes manifestandi do Ius Civile
→ Costume: No âmbito do costume, estudar-se-á três conceitos distintos entre si mas todos
eles importantes para perceber a evolução e o sentido do que é o costume:
- Mores maiorum: Nos primeiros três séculos do Direito Romano o costume era
constituído pelos mores maiorum que eram regras jurídico-religiosas e que eram
interpretadas/reveladas pelos colégios sacerdotais. Convém não esquecer que se encontrava na
época arcaica em que as fronteiras entre Religião, Moral e Direito ainda não estavam bem

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definidas. Os mores maiorum foram sendo incorporados nas leis escritas de Roma, com
destaque para a célebre Lei das XII Tábuas de cerca de 450 a.C. que foi a primeira lei escrita
que se conhece em Roma.
- Consuetudo: A laicização do Direito Romano conduziu à afirmação da figura do
consuetudo que traduz uma fonte estritamente jurídica e tem como principais características
formuladas pela doutrina moderna: O consuetudo seria uma prática constante (1) observada
durante um largo período de tempo (2) pela generalidade das pessoas que participam numa
determinada relação da vida social (3) com a convicção da sua obrigatoriedade como se de
uma lei se tratasse (4).
- Usus: O usus consiste na prática social constante, observada por um longo período de
tempo e levada a cabo pela generalidade das pessoas que participam numa determinada
relação da vida social, mas que não é acompanhada de qualquer convicção da sua
obrigatoriedade como se de uma lei se tratasse e, por isso, não é costume.
Evolução da força vinculativa do costume:
-» Costume = Lei: Primeiro, os jurisconsultos romanos fundamentavam tanto o costume como
a lei no tácito consenso do povo. Sendo indiferente que o consenso do povo se manifestasse
numa lei, criada por decisão do povo reunido nos comícios, ou num costume, criado pelo
comportamento espontâneo do povo, as duas fontes manifestandi estavam em pé de igualdade,
podendo uma lei derrogar um costume e um costume derrogar uma lei.
-» Costume < Lei: Mais tarde, devido à concentração jurídica e política no princeps, e
posteriormente no Imperador, entendeu-se que um costume criado pelo comportamento
espontâneo do povo, ou até mesmo uma lei criada por ele reunido nos comícios, nunca
poderiam vir a derrogar uma constituição imperial criada pelo Imperador. O Imperador
Constantino chegou a determinar que, embora não se devesse desprezar a autoridade do
costume, este não devia prevalecer sobre a lei. Assim, o costume passou a ter uma função
subsidiária em relação à lei, só podendo ser aplicado para preencher as suas lacunas.
→ Lex rogata: Podendo ser traduzida como “lei rogada” ou “lei pedida”, a lex rogata era uma
declaração solene com valor normativo, feita pelo povo de Roma que, reunido nos comícios,
aprovava a proposta apresentada pelo magistrado e o Senado posteriormente confirmava.
Portanto, subjaz à lei um acordo entre os três órgãos da República Romana:
1) O magistrado que propõe;
2) O povo reunido nos comícios que vota;
3) O Senado que outorga a auctoritas patrum à deliberação comicial.
A lei podia ser:
- Lex rogata: A lex rogata era proposta pelo magistrado ao comício a que presidia. Depois de
aprovada pelo comício, devia ser confirmada pelo Senado que lhe concedia a auctoritas
patrum.
- Lex data: A lex data, ou seja, a “lei dada” era elaborada por um magistrado ao abrigo de
uma autorização prévia dos comícios e continha normas de caráter administrativo.
Fases do processo formativo de uma lex rogata:
1. Fase -» Promulgatio: O projeto elaborado pelo magistrado é afixado num lugar público
para que os cidadãos o pudessem conhecer.
2. Fase -» Conciones: São organizadas reuniões na praça pública para discutir o projeto
elaborado pelo magistrado.
3. Fase -» Rogatio: O magistrado dirige um pedido aos cidadãos presentes na assembleia
comicial a que preside para aprovar o projeto da lei. É nesta fase que o magistrado recorre aos
seus dotes de oratória e argumentação para convencer o eleitorado presente na assembleia
comicial a aprovar o seu projeto.

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4. Fase -» Votação: Os cidadãos votam o projeto apresentado pelo magistrado. Numa
primeira fase, a votação era oral. Posteriormente, tornou-se por voto escrito e secreto.
→ Mesmo que a maioria dos cidadãos votasse contra, o projeto ainda assim poderia ser
aprovado, uma vez que existiam várias assembleias comiciais. Desde que na maioria das
assembleias se obtivesse um resultado positivo, independentemente do número de cidadãos
que nelas estivessem presentes, o projeto seria aprovado.
5. Fase -» Aprovação pelo Senado: O projeto votado favoravelmente pelos comícios já era
plenamente válido e eficaz. Contudo, o projeto era ainda apresentado ao Senado de Roma
para que lhe fosse concedida a auctoritas patrum.
6. Fase -» Afixação: Para que todos conhecessem a lei aprovada, ela era escrita em tábuas de
madeira ou de bronze e afixada em lugar público.
Estruturalmente, a lex rogata dividia-se em três partes:
1. Praescriptio: Introdução da lei constituída pelo nome do magistrado que propôs a lei, o
lugar e a data da votação ou o nome do primeiro cidadão que votou.
2. Rogatio: Parte dispositiva da lei, onde se encontravam as normas.
3. Sanctio: Fixa os termos para assegurar a eficácia da lei, ou seja, fixa as consequências que
ocorreriam se a lei não fosse cumprida.
Relativamente à sanctio podiam-se identificar três tipos de lex rogata:
- Lex perfecta: Lei que declara nulos os atos contrários à mesma (o que significa que eram
atos inválidos e não produziriam efeitos, ou seja, era como se nunca tivessem sido
praticados), mas não estabelecia a aplicação de uma pena aos seus transgressores.
-» Exemplo: É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.
- Lex minus quam perfecta: Lei que não declara nulos os atos contrários à mesma, estes
continuando a produzir os seus efeitos, mas estabelece a aplicação de uma pena aos seus
transgressores.
-» Exemplo: Quando as doações ultrapassassem um valor superior ao estabelecido não
deixavam de produzir efeitos mas os transgressores viam-lhes aplicada uma pena pecuniária.
- Lex imperfecta: Lei que não declara nulos os atos contrários à mesma, mas também não
estabelece a aplicação de uma pena aos seus transgressores. Contudo, em determinadas
situações no âmbito das quais não se previa nenhuma sanção legal, o pretor podia acabar por
outorgar tutela jurídica às mesmas, concedendo aos particulares meios de proteção. Temos
aqui um exemplo da tarefa do pretor de integração das lacunas do ius civile.
-» Exemplo: São tarefas fundamentais do Estado garantir a independência nacional e criar
as condições politicas, económicas, socais e culturais que a promovam.
No ano de 438, Imperador Teodósio II através de uma constituição imperial estabeleceu como
regra a nulidade dos atos contrários à lei, deixando-se de fazer a distinção entre lex perfecta,
lex minus quam perfecta e lex imperfecta. Por conseguinte, a menos que cada lei dissesse o
contrário, as leis eram perfeitas.
→ Plebiscito: O plebiscito era uma deliberação da plebe que, reunida nos concílios da plebe,
aprovava uma proposta de um magistrado, o chamado tribuno da plebe.
Evolução do plebiscito:
1. Fase -» Inicialmente, os plebiscitos não tinham força vinculativa.
2. Fase -» Mas em 449 a.C., a lex Valeria Horatia de plebiscitis determinou a força
vinculativa dos plebiscitos perante os plebeus, ou seja, aquilo que os plebeus deliberassem
nos concílios da plebe vinculava-os, ou seja, produziam efeitos quanto a eles, mas não quanto
aos patrícios.
3. Fase -» Em 287 a.C., a lex Hortensia de plebiscitis estendeu a força vinculativa dos

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plebiscitos aos patrícios, tendo estes de lhes obedecer, o que significa que os plebiscitos
ficaram equiparados às leis dos comícios.
Um exemplo muitíssimo importante de plebiscito foi a lex Aquilia de damno que constitui a
raiz histórica da responsabilidade civil extracontratual.
→ Senatusconsulto: O senatusconsulto era uma deliberação do Senado.
Evolução do senatusconsulto:
1. Fase -» Inicialmente, os senatusconsultos eram meramente consultivos e o poder legislativo
encontrava-se nos comícios.
2. Fase -» Ao longo da evolução política de Roma, mais precisamente no Principado, o poder
legislativo foi-se deslocando dos comícios para o Senado e, assim, os senatusconsultos,
passaram a ter força legislativa.
3. Fase -» Com a tendência progressiva do esgotamento dos órgãos políticos de Roma e com a
afirmação da supremacia política do princeps, o Senado passa a depender deste, acolhendo as
suas propostas legislativas e aprovando tudo o que lhe é proposto por ele.
→ Constituição imperial: A constituição imperial era uma lei que manifestava a vontade
jurídica do Imperador, sendo elaborada diretamente por este.
Evolução da constituição imperial:
Ao longo da evolução política de Roma, mais precisamente no Principado e no Dominado,
assiste-se a um processo de centralização jurídica e política no Imperador, o que conduziu ao
progressivo desaparecimento da variedade de fontes exsistendi e de fontes manifestandi
característica da República Romana. No fim, permanecerá como única fonte exsistendi do
Direito Romano o Imperador e como única fonte manifestandi as constituições imperiais.
→ Iurisprudentia: A jurisprudência consistia na ciência do Direito, fruto do trabalhado
desenvolvido pelos jurisconsultos que revelavam/descobriam e desenvolviam o Direito
adaptando-o aos problemas da vida social que iam surgindo ao longo do tempo, o que
contribuiu para a criação e o desenvolvimento de grande parte do Direito Privado Romano.
Por isso, a atividade dos jurisconsultos não era uma atividade meramente cognitiva (não se
limitavam a conhecer as outras fontes) mas criadora de Direito (procuravam dar soluções aos
problemas da vida social, o que facilitava a atividade dos pretores no exercício das suas
funções de administração da justiça).
Reconheciam-se três funções à jurisprudência:
1) Respondere: Os particulares e magistrados dirigiam-se aos jurisconsultos e
apresentavam-lhes casos concretos que eles, através de pareceres, os chamados “responsa”,
resolviam.
2) Cavere: Os particulares dirigiam-se aos jurisconsultos para os aconselhar relativamente
ao comportamento a adotar na realização de negócios jurídicos.
3) Agere: Os particulares dirigiam-se aos jurisconsultos para os aconselhar relativamente
ao comportamento a adotar em matéria processual.
Evolução da jurisprudência:
1. Fase -» Na época arcaica, a atividade jurisprudencial era levada a cabo por sacerdotes.
Contudo, mais tarde verificou-se um fenómeno de laicização da jurisprudência, passando a
interpretação do Direito a ser levada a cabo por laicos e já não por sacerdotes.
2. Fase -» Na época clássica central, a jurisprudência tem a sua perfeição e é marcada por
duas grandes Escolas:
- a Escola Sabiniana: Fundada por Capito, devendo o seu nome a um dos mais
importantes juristas que a compuseram, Sabinus. Os sabinianos eram geralmente mais
tradicionalistas e cautelosos.

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- a Escola Proculeiana. Fundada por Labeo, importantíssimo jurista, devendo o seu nome
a Proculus. Os proculeianos eram geralmente mais audaciosos e inovadores.
-» Exemplo: Para se determinar a capacidade de agir, i.e., a capacidade de praticar atos
jurídicos por si mesmo, os jurisconsultos romanos entendiam que se deveria averiguar se a
pessoa em causa já tinha atingido a puberdade (capacidade de reprodução). Para averiguar se
já se tinha atingido a puberdade, os sabinianos defendiam que se devia proceder a uma
inspeção corporal, ou seja, ver se em cada caso a pessoa já tinha atingido a maturidade física
ou não. Já os proculeianos, para evitar a variabilidade de resultados, fixaram a puberdade nos
12 anos para as mulheres e nos 14 anos para os homens porque entendiam que as mulheres se
desenvolviam fisicamente mais rápido que os homens. A posição proculeiana acabou por
prevalecer.
3. Fase -» Na época clássica tardia, verifica-se o início da decadência da jurisprudência
devido à sua burocratização. Já na época pós-clássica, assiste-se a uma confusão de
terminologia, de conceitos e de figuras jurídicas e a perfeição da jurisprudência clássica dá
lugar a uma jurisprudência simplista e básica, passando os jurisconsultos a dedicarem-se a
fazer meros comentários, resumos e anotações às grandes obras dos jurisconsultos clássicos.
Todo este desenvolvimento de vulgarização do Direito Romano verificou-se, após a quebra
do Império Romano, no Ocidente, sendo o Oriente marcado pelo retorno ao rigor clássico.

9. O Corpus Iuris Civilis


O Imperador do Oriente Justiniano concretizou um velho objetivo de compilar num único
corpo as soluções da jurisprudência romana, ou seja os “iura”, e as constituições imperiais, ou
seja as “leges”. A designação “Corpus Iuris Civilis” apenas surgiu em 1583 numa edição
publicada em Genebra sob a responsabilidade de um jurisconsulto humanista Dionísio
Godofredo. Antes não era conhecido assim. Não é uma codificação em sentido moderno, uma
vez que não visa de uma forma sistemática regular um ramo do Direito, consistindo antes
numa compilação de elementos provenientes de épocas diversas, mas não deixa de ter caráter
orgânico e unitário, não sendo um mero amontoado de informações.
O Corpus Iuris Civilis dividia-se em quatro partes:
- Institutiones: É um manual elementar de Direito Romano destinado aos estudantes que
iniciavam o estudo do Direito. As Institutiones são baseadas em obras anteriores, como por
exemplo as célebres Instituições de Gaius. As Institutiones foram promulgadas com força de
lei em 533 através de uma constituição imperial de Justiniano. São compostas por 4 livros que
se dividem em títulos e estes em parágrafos.
- Digesto (latim) ou Pandectas (grego): É uma compilação de fragmentos extraídos de
obras dos principais jurisconsultos clássicos e é através do Digesto que as conhecemos. A
comissão de juristas que compilou o Digesto foi presidida por Triboniano, jurista e
funcionário imperial, a quem Justiniano autorizou expressamente que a comissão fizesse as
alterações que entendesse necessárias nos textos originais para modernizar e acabar com
divergências. Essas alterações foram mais tarde conhecidas como “interpolações”, mas não
ficou registo de quais alterações foram feitas aos textos originais, sendo matéria onde reina a
incerteza. O Digesto foi promulgado com força de lei em 533 através de uma constituição
imperial de Justiniano. É composto por 50 livros que se dividem em títulos, estes em
fragmentos e estes, por sua vez, em parágrafos.
- Codex: É uma compilação de constituições imperiais desde o Imperador Adriano (século
II) até Justiniano (século VI). O Codex foi promulgado com força de lei em 534 através de
uma constituição imperial de Justiniano. É composto por 12 livros que se dividem em títulos e
estes em leis.
- Novellae: São constituições imperiais promulgadas depois do Codex, embora não tenham
sido uma compilação oficial.

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Além de ter organizado e modernizado o Direito Romano, o Corpus Iuris Civilis permitiu às
gerações vindouras o conhecimento do Direito Romano e foi com base nele que se formou o
moderno Direito da Europa Continental.

10. A defesa dos direitos


O exercício de direitos não depende apenas da vontade dos seus titulares, mas implica
igualmente uma vontade por parte dos titulares de deveres que correspondem aos direitos em
questão. Quando isso não sucede, torna-se necessário recorrer a mecanismos que assegurem o
exercício do direito e garantam o cumprimento do respetivo dever.
Inicialmente, os direitos dos particulares eram defendidos no âmbito de um sistema de
autotutela de direitos em que cada particular defendia os seus direitos através dos meios que
dispunha. Porém, num sistema de tutela privada de direitos quem era fraco não podia
defender os seus direitos, uma vez que não tinha meios para tal. Só os mais fortes poderiam
defender os seus próprios direitos e poderiam fazê-lo em desproporção. Por isso, considera-se
que o sistema de tutela privada de direitos contém em si mesmo as sementes da própria
ineficácia.
Para fazer frente a este problema, evoluiu-se para um sistema de tutela pública de direitos
em que são os órgãos do poder público que resolviam os litígios entre os particulares, ficando
os meios de tutela privada restringidos a situações excecionais.
10.1 Actio
10.1.1 Noção de ação
A ação é um instrumento jurídico que permite a uma pessoa obter a tutela de um direito
subjetivo previamente reconhecido pelo ordenamento jurídico (especialmente pelo ius civile)
ou de uma situação de facto que não tinha tutela jurídica prévia mas que um magistrado
(especialmente o pretor) considerou digna de proteção no seu edictum (programa em que o
magistrado dava a conhecer a sua atuação ao povo de Roma e em que anotava que casos iriam
ser tutelados no âmbito da sua atividade). No âmbito do ius civile, o Direito criava a ação para
tutelar um direito subjetivo previamente reconhecido. Já no âmbito do ius honorarium, o
pretor concedia uma ação para tutelar uma situação de facto digna de proteção jurídica.
10.1.2 Classificação das ações
10.1.2.1 Actio civilis e actio honoraria (actiones praetoriae e actiones aediliciae)
Critério distintivo: fonte de onde provém a tutela jurídica
- Actio civilis (ação civil): As actiones civilis eram outorgadas pelo ius civile para tutela de
direitos subjetivos previamente reconhecidos pelo próprio ius civile aos particulares.
- Actio honoraria (ação honorária): As actiones honoraria eram concedidas por magistrados
ao abrigo da sua iurisdictio (poder de ordinariamente administrar a justiça) para tutela de
situações de facto que não tinham tutela jurídica prévia mas que o magistrado considerava
dignas de proteção jurídica.
Dentro da actio honoraria podem-se distinguir:
- Actiones praetoriae (ações do pretor) -» Ações concedidas pelos pretores urbano e
peregrino.
- Actiones aediliciae (ações edilícias) -» Ações concedidas pelos edis curuis com
particular destaque para as ações que tutelaram situações respeitantes ao contrato de compra e
venda, criando as bases da proteção do consumidor.
10.1.2.2 Actio in rem e actio in personam
Critério distintivo: direito subjetivo tutelado.
- Actio in rem (ação real): As actiones in rem protegiam direitos sobre coisas (direitos reais),
faculdades derivadas de relações familiares e direitos sucessórios. Uma vez que as ações reais

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tutelavam direitos absolutos, ou seja, direitos que podem ser invocados contra qualquer
pessoa, elas podiam ser instauradas contra qualquer pessoa que os lesasse.
-» Exemplo: Reivindicatio (ação de reivindicação): A ação “reivindicatio” permitia ao
proprietário recuperar uma res que lhe pertencia, podendo ser exercida contra qualquer pessoa
que o privasse da res.
-» Exemplo: Hereditatis petitio (ação de petição de herança): A ação “hereditatis petitio”
permitia aos herdeiros reclamar os bens hereditários contra qualquer pessoa que os ocupasse.
- Actiones in personam (ação pessoal): A actiones in personam têm como base um dever
assumido pela pessoa contra a qual se intenta a ação (demandado) e, por isso, só se permitia
demandar/responsabilizar a pessoa sobre a qual recaía esse dever.
A distinção entre actiones in rem (ações reais) e actiones in personam (ações pessoais) está na
base da dogmática jurídica moderna que distingue os direitos subjetivos em direitos reais e em
direitos pessoais/de crédito:
- Direitos reais: Os direitos reais são direitos de uma pessoa sobre uma coisa, atribuindo
ao seu titular poderes diretos e imediatos sobre ela. Por outro lado, são direitos absolutos,
podendo ser invocados contra qualquer pessoa. Os direitos reais são direitos que se realizam
sem a cooperação de outras pessoas que apenas têm de se abster de praticar comportamentos
que interfiram com o exercício do direito real. Assim, qualquer pessoa que lese um direito
real pode ser demandada através de uma ação real.
-» Exemplo: Direito de propriedade
- Direitos pessoais/de crédito: Os direitos de crédito são direitos a que outra pessoa
assuma um determinado comportamento e, por isso, só podem ser invocados contra essa
mesma pessoa (devedor). Sendo assim, a satisfação do direito de crédito depende da
cooperação do devedor. Correspondem aos direitos de crédito, em regra, obrigações de
conteúdo positivo, mas também podem corresponder-lhes obrigações de conteúdo negativo ou
de mera abstenção, nas quais o comportamento do devedor é de pura omissão. Assim, uma
pessoa que não cumpra com o seu dever pode ser demandada através de uma ação pessoal.
-» Exemplo: Obrigação de entregar uma quantia monetária (obrigação de conteúdo
positivo)
-» Exemplo: Obrigação de não exercer determinada atividade profissional (obrigação de
conteúdo negativo)
10.1.2.3 Actio bonae fidei e actio stricti iuris
Critério distintivo: factos que o juiz podia apreciar para a tomada de uma decisão.
A distinção entre ações de boa-fé e ações de direito estrito tem por base a distinção entre
contratos de boa-fé e contratos de direito estrito:
- Os contratos de boa-fé são contratos que produzem obrigações cujo conteúdo não está
determinado por lei nem concretizado completamente pelo acordo das partes. Sendo assim, no
âmbito dos contratos de boa-fé, o devedor está obrigado a tudo o que a boa-fé exige a uma
pessoa leal, honrada e fiel à palavra que deu, o que só se pode concretizar consoante as
circunstâncias de cada caso.
- Os contratos de direito estrito são contratos que produzem obrigações cujo conteúdo está
precisamente determinado, havendo de o cumprir de forma absolutamente rigorosa.
As ações a que correspondem os contratos anteriormente analisados são:
- Actiones bonae fidei (ações de boa-fé): As actiones bonae fidei eram ações pessoais que
tutelavam os contratos de boa-fé. Nestas ações, o juiz devia concretizar, de acordo com a boa-
fé, tudo aquilo a que o demandado estava obrigado. Nessa tarefa de determinar o conteúdo da
obrigação, o juiz devia ter em conta as circunstâncias do caso concreto e considerar o que era
exigido a cada parte pelos valores da lealdade, da honorabilidade e da fidelidade à palavra
dada. Segundo o jurisconsulto Ulpianus, o juiz devia atender mais ao que se quis dizer do que

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ao que foi dito. Isto quer dizer que o juiz não devia ficar preso ao teor literal do que as partes
tivessem dito, mas tinha sim que ter em atenção os interesses que elas queriam satisfazer e
aquilo que se lhes exigia para atingir esses interesses ao abrigo da boa-fé, ou seja, dos valores
da lealdade, da honorabilidade e da fidelidade à palavra dada.
- Actiones stricti iuris (ações de direito estrito): As actiones stricti iuris eram ações pessoais
que tutelavam os contratos de direito estrito. Nestas ações, o juiz limitava-se a apreciar a
existência ou a inexistência da obrigação do demandado e, por isso, na sentença que
proferisse, não considerava outras circunstâncias que tivessem influenciado o conteúdo da
obrigação, como por exemplo o medo (ou seja, a ameaça), o dolo (ou seja, o engano), um
eventual pacto de não pedir (ou seja, um acordo de vontades no qual o credor, durante um
determinado período de tempo, se tinha obrigado a não exigir o cumprimento da obrigação)
ou uma eventual compensação de créditos (ou seja, um acordo de vontades no qual se
extinguiam, parcial ou totalmente, as obrigações que as partes tinham assumido).
10.1.2.4 Actio direta e actio útil
- Actiones diretas: As actiones diretas eram concedidas às pessoas e nas circunstâncias para
que foram criadas.
- Actiones úteis: As actiones úteis eram concedidas a pessoas ou em circunstâncias diferentes
daquelas para que foram criadas. No fundo, a actio útil era uma extensão de uma ação que foi
criada pelo pretor a pensar em pessoas e em circunstâncias diferentes para tutelar realidades
da vida social que o ius civile não previa.
10.1.2.5 Actio direta e actio contrária
- Actio direta: Neste sentido, a actio direta era uma ação pessoal que tutelava as obrigações
que se geravam com a celebração de um contrato para as partes.
- Actio contrária: A actio contrária, no âmbito dos contratos bilaterais imperfeitos, era uma
ação pessoal que tutelava as obrigações que surgissem posteriormente à celebração do
contrato para uma das partes (devedor).

11. O sistema processual civil romano


As ações eram concedidas no âmbito de um sistema processual civil. O processo civil romano
conheceu dois sistemas sucessivos:
1. Sistema da ordem judicial privada (ordo iudiciorum privatorum): O sistema da ordem
judicial privada marcou as épocas arcaica e clássica e revela que a administração da justiça
ainda não é plenamente assumida pelo Estado, embora já esteja afastada a justiça privada.
Este sistema abrange dois processos:
- Processo das legis actiones (processo das ações da lei): O processo das legis actiones
marcou a época arcaica.
- Processo do agere per formulas (processo das formulas): O processo do agere per
formulas marcou a época clássica.
Tanto o processo das legis actiones como o processo do agere per formulas desenvolviam-se
em duas fases:
→ Fase “in iure”: Era presidida por um magistrado que tivesse a iurisdictio (poder de
administrar ordinariamente a justiça), especialmente pelo pretor. O magistrado ouvia as partes
e depois concedia ou denegava a actio pretendida pelo demandante.
→ Fase “apud iudicem”: Era presidida por um juiz, o chamado iudex, que era um
particular escolhido pelas partes ou nomeado pelo pretor. O iudex proferia uma decisão sobre
o litígio, a chamada “sententia”, consoante se provassem ou não os factos alegados pelas
partes.
O sistema processual civil romano evoluiu para o sistema da cognitio extra ordinem:
2. Sistema da cognitio extra ordinem: O sistema da cognitio extra ordinem surgiu na época

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do Principado para processos especiais, mas acabou por se tornar na época pós-clássica o
sistema processual geral, substituindo o processo das formulas. A administração da justiça
passou a pertencer exclusivamente ao Estado a quem os particulares se dirigiam para defender
os seus direitos. As fases processuais anteriores (fase “in iure” e fase “apud iudicem”)
desapareceram e todo o processo era presidido e decidido por um magistrado que era um
funcionário público. Portanto, repare-se que a administração da justiça está completamente no
monopólio do Estado, sendo isto uma consequência da evolução política romana,
nomeadamente com a concentração de todos os poderes no Imperador que tinha todo um
aparelho do Estado ao seu serviço.
11.1 Referência especial ao processo do agere per formulas
Foi no contexto do processo do agere per formulas, na época clássica, que o Direito Romano
atingiu o seu apogeu. Em 130 a.C., a lex Aebutia de formulis oficializa o processo das
formulas que se torna o processo geral. O processo das formulas assentava numa solenidade
fundamental, a chamada “formula” que era um documento escrito onde se fixavam os termos
do litígio e onde se designava o juiz ao qual incumbia a condenação ou absolvição do
demandado consoante os factos que fossem provados ou não no processo.
11.1.1 Partes ordinárias da “formula”
As partes ordinárias da formula (existiam sempre em qualquer processo) eram:
- Intentio: Era a parte da formula onde se apresentava a pretensão do demandante.
- Condemnatio: Era a parte da formula onde o magistrado encarregava o juiz de condenar
ou absolver o demandado consoante se provassem ou não os factos alegados pelas partes no
processo. No processo das formulas, a condemnatio era sempre pecuniária.
11.1.2 Partes extraordinárias da “formula”
As partes extraordinárias da formula (só surgiam na formula a pedido das partes) eram várias,
apesar de se fazer referência a uma única:
- Exceptio: Era a parte da formula que continha factos alegados pelo demandado que não
negavam a pretensão do demandante, mas uma vez provados, paralisavam a ação.
-» Exemplo: O demandante A pretende que o demandado B lhe pague 1000 sestércios,
dizendo que este se obrigou para com ele a pagar a quantia pecuniária por lhe ter sido vendido
um cavalo. O demandado B afirma que o demandante A lhe vendeu o cavalo, mas diz que
após a entrega do cavalo, o demandante A lhe havia perdoado a dívida e tem provas que
comprovam o alegado.

12. Proteção jurídica extraprocessual


Nem sempre a atividade dos magistrados na proteção dos direitos dos particulares se traduzia
na conceção de ações no seio do sistema processual. Por vezes, os magistrados, especialmente
o pretor, não no exercício da administração da justiça, mas em funções administrativas ao
abrigo do seu imperium (poder de soberania), tutelavam direitos ou situações através de
expedientes extraprocessuais. Com isso, o pretor visava facilitar o normal funcionamento do
processo ordinário ou impor a paz social durante o processo ou até prevenir um litígio. O
pretor conhecia os factos e ele mesmo decidia. Serão referidos três expedientes
extraprocessuais:
12.1 Restitutio in integrum
A restitutio in integrum era um expediente através do qual o pretor, dotado do poder de
imperium, não reconhecia efeitos a atos jurídicos que à luz do ius civile eram plenamente
válidos e eficazes. A concessão de uma restitutio in integrum dependia dos seguintes
requisitos:
- Produção de um prejuízo devido à estrita aplicação do ius civile.

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- Verificação de causas justificativas para a concessão de uma restitutio in integrum:
1. Situações de coação moral (ou seja o medo): Alguém que manifestou a sua vontade
jurídica por ter sido ameaçado com um mal grave e contrário ao Direito podia pedir uma
restitutio in integrum. Neste caso está-se perante a concessão de uma restitutio in integrum
ob metum (por causa do medo)
-» Exemplo: A pagou a B porque B o ameaçou com uma arma.
2. Situações de erro: Alguém que manifestou a sua vontade jurídica, apesar de não ter uma
noção correta da realidade, podia pedir uma restitutio in integrum. Neste caso está-se perante
a concessão de uma restitutio in integrum ob errorem (por causa do erro).
-» Exemplo: A compra um relógio a B a pensar que era de ouro. Contudo, na realidade o
relógio era de prata dourada.
3. Situações de dolo: Alguém que manifestou a sua vontade jurídica num sentido que se
soubesse a verdade nunca manifestaria podia pedir uma restitutio in integrum. Neste caso
está-se perante a concessão de uma restitutio in integrum ob dolum.
-» Exemplo: B, com a intenção de enganar os seus clientes, vende garrafas de vinho de
péssima qualidade com um rótulo de vinhos de grande qualidade. A compra uma garrafa
desse vinho.
As causas anteriormente mencionadas são vícios de vontade, embora hajam outras tantas e de
outra índole…
- Inexistência de outros meios jurídicos para remediar o prejuízo. Isto quer dizer que os
expedientes extraprocessuais tinham uma natureza subsidiária, ou seja, só se concediam na
falta de outro meio jurídico.
12.2 Missio in possessionem
A missio in possessionem era um expediente através do qual o pretor, dotado do poder de
imperium, autorizava uma pessoa a apoderar-se dos bens de outra. Essa apreensão podia ter
diversas finalidades:
1. Coação: Constranger uma pessoa a fazer ou não fazer algo. Ou seja, enquanto não fizesse
ou deixasse de fazer, não lhe era devolvido o bem.
2. Conservação patrimonial: Impedir a dispersão ou o desaparecimento de bens para proteger
as legítimas expetativas de uma pessoa sobre um património.
3. Execução patrimonial: Apoderamento de bens como meio de satisfação de um crédito.
12.3 Interdictum
O interdictum era uma ordem sumária de caráter administrativo que o pretor, dotado do poder
de imperium, dirigia a uma pessoa para que fizesse ou não fizesse algo. O objetivo dessa
ordem administrativa era a resolução momentânea de um conflito, sem prejuízo de posterior
decisão definitiva num processo judicial. O principal campo de ação do interdictum era a
tutela possessória, ou seja, a tutela da posse (exercício dos poderes de facto sobre uma coisa
por alguém como se fosse proprietário embora podendo não o ser).
II Direito Privado Romano – Direito das Obrigações
13. A obrigação
13.1 Conceito de obrigação
A origem etimológica da palavra “obrigação” provém da palavra “obligare” que significa
ligar a/entre. De acordo com o artigo 397º CC, a obrigação (obligatio) é um vínculo jurídico
através do qual uma pessoa (devedor) fica adstrita/ligada para com outra (credor) à realização
de um determinado comportamento designado “prestação”.

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13.2 Objeto/conteúdo das obrigações
Segundo os jurisconsultos romanos, o comportamento a que o devedor ficava adstrito para
com o credor, ou seja a prestação, podia ser de três tipos que consistem no objeto ou conteúdo
da obrigação:
- dare: Constituição ou transferência de um direito real.
-» Exemplo: A compra um livro de B.
- facere: Realização de uma atividade humana diferente de “dare”, ou seja, qualquer
comportamento que não fosse a constituição ou transferência de um direito real.
-» Exemplo: A escreve um livro.
“Facere” também pode consistir num “non facere”, ou seja numa omissão, abstenção.
-» Exemplo: A não pode aplicar a casa arrendada para determinados fins.
- praestare: Tanto podia ser “dare” como “facere” e assumia diversos significados, muito
especialmente o assumir de uma garantia de uma obrigação.
-» Exemplo: A assegura a B que uma obrigação ia ser cumprida.
13.3 Requisitos de validade do objeto/conteúdo das obrigações
O comportamento a que o devedor fica adstrito perante o credor, ou seja a prestação, tinha de
obedecer a certos requisitos para ser plenamente válido e a obrigação produzir os seus efeitos.
Se tal comportamento não cumprisse os seguintes requisitos, a obrigação não era válida e o
credor nada podia exigir ao devedor:
- Possibilidade física ou jurídica: O comportamento a que o devedor ficava adstrito perante
o credor tinha de ser possível, quer do ponto de vista físico (ou seja, material), quer do ponto
de vista jurídico (ou seja, à luz do sistema jurídico e seus princípios).
-» Exemplo: Primeiro e segundo casos práticos → ver “Direito Romano (P)”
- Licitude: O comportamento a que o devedor ficava adstrito perante o credor não podia
contrariar o Direito nem a Moral (ou seja, os bons costumes).
-» Exemplo: Terceiro caso prático → ver “Direito Romano (P)”
- Determinabilidade: O comportamento a que o devedor ficava adstrito perante o credor
tinha que estar perfeitamente concretizado, individualizado ou, pelo menos, ser determinável,
ou seja, haver critérios suficientes para no futuro se concretizar.
-» Exemplo: Quarto caso prático → ver “Direito Romano (P)”
- Patrimonialidade: O comportamento a que o devedor ficava adstrito perante o credor tinha
que proporcionar ao credor um benefício económico, ao contrário do que hoje determina o
artigo 398º, n. 2 CC.
-» Exemplo: A obrigação não seria válida se o devedor se vinculasse a sair da casa às 3 da
manhã para dar 20 voltas à casa do credor todo nu.
13.4 Fontes das obrigações
As fontes das obrigações são os factos que geram obrigações. Na época clássica, só
determinados factos estabelecidos pelo ius civile eram considerados fontes de obrigações.
Segundo o jurisconsulto Gaius, havia duas possíveis fontes das obrigações:
- Contrato: O contrato é um acordo de vontades de duas ou mais pessoas tutelado pelo ius
civile. As obrigações são geradas pela convergência das vontades de duas ou mais pessoas.
- Delito: O delito é um ato ilícito protegido pelo ius civile do qual resulta para o autor a
obrigação de pagar à vítima uma quantia pecuniária a título de pena e para a vítima o direito
de exigir o pagamento da pena.
Os desenvolvimentos posteriores levaram a que se tornassem verdadeiras relações
obrigacionais várias situações tuteladas pelo pretor. E assim, nas Institutiones de Justiniano
são apresentadas quatro fontes das obrigações:
1. Contrato
2. Quase contrato: O quase contrato é um ato lícito que, sendo unilateral, não era contrato.

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3. Delito
4. Quase delito: O quase delito é um ato ilícito protegido pelo pretor e que implica para o seu
autor o pagamento de uma pena.

14. Os contratos
14.1 Conceito de contrato
Pode definir-se como contrato um acordo de vontades de duas ou mais pessoas que,
obedecendo a regras fixadas no ius civile, tinha como objetivo constituir uma relação jurídica
obrigacional em que uma das partes (devedor) fica adstrita à realização de uma prestação para
com a outra (credor).
14.2 Elementos do contrato
Qualquer contrato é constituído por dois elementos:
- Causa: A causa é a finalidade reconhecida pelo Direito àquele contrato, ou seja, é o objetivo
social e económico que se pretende alcançar com a celebração do contrato.
-» Exemplo: Na locação, o que se pretende alcançar é que o locatário use temporariamente
uma coisa e que o locador receba um pagamento em contrapartida.
- Conventio: A conventio é o acordo das partes cujas vontades convergem para um mesmo
fim, fim esse que é a causa do contrato.
14.3 Classificação dos contratos
Classificação romana dos contratos que decorre diretamente dos textos dos jurisconsultos
romanos
1. Contratos reais
Os contratos reais são contratos que, para estarem concluídos e produzirem efeitos, ao acordo
de vontades das partes tem de acrescer a prática de um ato material em relação à res a que o
contrato diz respeito. Esse ato material podia ser uma datio (ou seja, a transferência do direito
de propriedade) ou uma traditio (ou seja, a transferência da posse ou até da mera detenção).
Ou seja, para além do acordo de vontades das partes era necessário que a propriedade [poder
de soberania do proprietário sobre uma coisa], a posse [poder de facto que alguém pode
exercer sobre uma coisa da qual não é proprietário] ou a mera detenção [disponibilidade
material que alguém tem de uma coisa, não tendo a intenção de exercer poderes de facto sobre
ela nem de se tornar seu proprietário] da res a que o contrato dissesse respeito fosse
transferida.
2. Contratos consensuais
Os contratos consensuais são contratos que estão concluídos e produzem efeitos com o mero
acordo das partes.
3. Contratos verbais
Os contratos verbais são contratos que têm que ser celebrados através do proferimento de
palavras orais, de acordo com fórmulas estabelecidas pelo ius civile.
4. Contratos literais
Os contratos literais são contratos que têm que ser celebrados através de um documento
escrito.
Classificação retirada das fontes romanas assente nas obrigações geradas pelos contratos
1. Contratos unilaterais
Os contratos unilaterais são contratos que geram obrigações apenas para uma das partes.
2. Contratos bilaterais ou sinalagmáticos
Os contratos bilaterais ou sinalagmáticos (provém da expressão grega “sinalagma” e significa

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“acordo recíproco”) são contratos em que cada parte se obriga perante a outra a realizar uma
prestação, sendo que a obrigação de uma das partes é a razão de ser da obrigação da outra
parte. Ou seja, existe aqui um nexo de correspetividade entre as prestações de ambas as
partes.
-» Exemplo: O vendedor obriga-se a entregar a coisa porque o comprador obrigou-se a
pagar o preço.
É nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos que tem lugar a chamada exceção do não-
cumprimento dos contratos (exceptio non adimpleti contractus), prevista no artigo 428º CC,
que consiste na faculdade de uma parte recusar realizar a sua prestação enquanto a outra parte
não realizar ou pelo menos não oferecer a sua prestação.
-» Exemplo: Um homem não paga o cavalo até que o outro lho entregue.
3. Contratos bilaterais imperfeitos
Os contratos bilaterais imperfeitos são contratos que, com a sua celebração, geram obrigações
apenas para uma das partes e que só eventualmente geram obrigações para a outra parte no
decurso do contrato. Como já foi visto, é através das ações contrárias que se vai
responsabilizar a parte cujas obrigações só surgem no decurso do contrato.
Classificação que distingue entre contratos onerosos e contratos gratuitos
1. Contratos onerosos
Os contratos onerosos são contratos que criam para ambas as partes obrigações que
patrimonialmente se equivalem ou equilibram, pois ao realizarem as suas prestações cada
parte sofre uma perda patrimonial a favor da outra.
2. Contratos gratuitos
Os contratos gratuitos são contratos em que apenas uma das partes sofre uma perda
patrimonial a favor da outra.
Outras classificações
1. Contratos de ius civile
Os contratos de ius civile são contratos celebrados entre cidadãos romanos entre si.
2. Contratos do ius gentium
Os contratos de ius gentium são contratos celebrados entre cidadãos romanos e peregrinos ou
entre peregrinos entre si.
1. Contratos de boa-fé
Os contratos de boa-fé são contratos tutelados por ações de boa-fé que geram obrigações cujo
conteúdo não está determinado por lei nem completamente concretizado pelos acordos de
vontades das partes. Sendo assim, o devedor está obrigado a tudo o que a boa-fé exige a uma
pessoa leal, honrada e fiel à palavra dada, o que o juiz só consegue concretizar tendo em conta
as circunstâncias do caso concreto.
2. Contratos de direito estrito
Os contratos de direito estrito são contratos tutelados por ações de direito estrito que geram
obrigações cujo conteúdo está precisamente determinado, havendo de o cumprir de forma
absolutamente estrita. Sendo assim, o juiz limitava-se a apreciar a existência ou a inexistência
da obrigação do demandado e, por isso, na sentença que proferisse, não considerava outras
circunstâncias que tivessem influenciado o conteúdo da obrigação.

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15. Contratos reais
15.1 Mútuo
Conceito de mútuo
O mútuo era um contrato real [acordo de vontades das partes + datio], unilateral [obrigação só
para uma das partes], gratuito e de direito estrito [tutelado por ações de direito estrito que não
permitiam ao juiz conhecer mais do que a existência ou inexistência da obrigação], através do
qual o mutuante transfere a favor do mutuário a propriedade de uma coisa fungível,
obrigando-se o mutuário a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (tantundem).
Em regra, o mútuo era um contrato gratuito, uma vez que o mutuante ficava privado da sua
res durante um determinado período de tempo, sofrendo só ele uma perda patrimonial a favor
do mutuário. O mutuário não tinha, em regra, obrigação de pagar juros (quantia que se tem
que pagar pelo uso de uma coisa fungível).
Em regra, o contrato de mútuo não gerava a obrigação de pagamento de juros para o
mutuário. Sendo assim, a obrigação de pagamento de juros para o mutuário não se gerava
pelo contrato de mútuo, mas sim por uma outra relação obrigacional acessória criada através
da celebração de um outro contrato, a stipulatio usurarum, que era tutelado pela actio ex
stipulato. No Direito Romano houve sempre uma preocupação de limitar os juros. Justiniano,
por exemplo, fixou como regra geral o máximo de 6% de juros ao ano. Era proibido o
chamado anatocismo, ou seja, os juros gerarem/vencerem juros.
Apesar de o contrato de mútuo ser gratuito, eram admitidos certos casos de mútuo oneroso, ou
seja, em que a obrigação de o mutuário pagar juros nascia do próprio contrato de mútuo, não
sendo necessário celebrar uma stipulatio usurarum. Eram quatro os casos de mútuo oneroso:
1. Mútuo de mercadorias – trigo ou cevada.
2. Mútuo concedido por uma cidade
3. Mútuo concedido por bancos
4. Foenus nauticum – tratava-se de um empréstimo de dinheiro feito a armadores ou
comerciantes para financiar viagens marítimas. O mutuário (quem foi financiado) tinha a
obrigação de restituir o montante que recebeu se e quando as mercadorias chegassem ao
destino. O risco onerava o mutuante (quem transferia a propriedade do dinheiro) e por isso se
o navio não chegasse ao destino por motivos furtuitos (ex. naufrágio, ataque de pirataria) o
mutuante não recebia o que dera. Para compensar esse risco permitia-se que fossem
estabelecidos juros que chegaram a atingir valores muito elevados.
Elementos do mútuo
O mútuo era constituído por duas partes:
1. Datio rei: A datio rei é a transferência da propriedade de coisas fungíveis por parte do
mutuante (coisa que não tem individualidade própria e é determinada por características
genéricas e pela indicação de uma quantidade (ex. peso, medida, número)) a favor do
mutuário. Como não têm individualidade própria, as coisas fungíveis podem ser substituídas
por outras do mesmo género e qualidade.
-» Exemplo: Os géneros alimentares e o dinheiro são coisas fungíveis, ou seja, podem ser
substituídos pelo mesmo género, qualidade e quantidade de coisas fungíveis
2. Conventio: A conventio é o acordo das partes pelo qual o mutuário se obriga a restituir ao
mutuante o chamado tantundem, ou seja, a igual quantidade de coisas do mesmo género e
qualidade.
-» Exemplo: Se o mutuante transfere a propriedade de 13 laranjas ao mutuário, e uma vez
que as laranjas tornam-se podres passado um determinado período de tempo, o mutuário não
pode restituir-lhe as mesmas laranjas, mas sim a mesma quantidade de laranjas do mesmo
género e qualidade.

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Meios de tutela das partes
Para o mutuante exigir o capital que deu ao mutuário eram-lhe concedidas duas ações:
-» Para o mútuo de dinheiro, concedia-se-lhe uma actio certae creditae pecuniae (ou seja,
uma ação para pedir um crédito de quantia pecuniária).
-» Para o mútuo de outras coisas fungíveis concedia-se-lhe uma condictio certae rei (ou
seja, uma ação para exigir uma coisa certa) que mais tarde ficou conhecida como condictio
triticaria (provém da palavra “triticum” que significa “trigo”) [ou seja, ação para pedir a
entrega de trigo] devido à importância do trigo como meio de transação comercial.
Para o mutuante exigir os juros, se não se tratasse de um dos casos de mútuo oneroso,
concedia-se-lhe uma actio ex stipulato que tutelava a stipulatio usurarum pela qual se gerara
a obrigação de pagamento de juros.
15.2 Depósito
Conceito de depósito
O depósito era um contrato real [acordo de vontades das partes + traditio], bilateral
imperfeito, gratuito e de boa-fé [tutelado por ações de boa-fé nas quais o juiz concretizava as
obrigações das partes de acordo com os valores da honradez, da lealdade e da fieldade à
palavra], em que o depositante entrega ao depositário uma res móvel para que este a guarde e
restitua num determinado prazo ou quando o depositante a pedir.
O depósito era um contrato gratuito, uma vez que a guarda da res era entregue pelo
depositante ao depositário a título de confiança. Por conseguinte, o depositário não era
remunerado. Se a guarda da res fosse remunerada, não se estava perante um depósito, mas
sim perante uma locação.
Obrigações das partes
O depósito era um contrato bilateral imperfeito, pois, com a sua celebração, apenas se
geravam obrigações para o depositário. As suas obrigações consistiam em:
1. Guardar a res sem a usar, pois o depositário apenas tinha a res para finalidades de
custódia e era um mero detentor, portanto tinha a detenção da res em nome do depositante.
→ Se o depositário usasse a res, cometia um furtum usus, manifestum ou nec
manifestum e era-lhe aplicada uma pena pecuniária correspondente ao quádruplo ou
duplo do valor da res.
2. Restituir a res no estado em que a recebeu, bem como os seus frutos (coisa gerada por
outra coisa) e acessões (situação que ocorre quando a uma coisa que é propriedade de alguém
se une e incorpora outra coisa que não lhe pertencia).
-» Exemplo: Se a vaca depositada desse à luz um bezerro, o depositário tinha que
restituir a vaca e o bezerro. Se um anel depositado fosse fundido com outro anel, o anel
fundido teria de ser restituído.
→ Se o depositário se apoderasse da res cometia o furtum possessionis, manifestum ou
nec manifestum e era-lhe aplicada uma pena pecuniária correspondente ao quádruplo
ou duplo do valor da res.
Como o depósito consiste num contrato bilateral imperfeito, no decurso desse contrato
podiam surgir obrigações para o depositante. As suas obrigações consistiam em:
1. Ressarcir (reparar o mal ou prejuízo feito a outrem) o depositário por despesas que
fizesse com a conservação da res.
-» Exemplo: Se o cavalo depositado ficasse doente, as despesas do veterinário eram
ressarcidas pelo depositante.
2. Indemnizar o depositário pelos prejuízos que a res lhe causasse.
-» Exemplo: O cavalo depositado dava um coice à mulher do depositário, acabando por
morrer.

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Meios de tutela das partes
Tutela dos direitos do depositante:
- Para o depositante poder demandar o depositário se este não cumprisse as suas obrigações
(guardar e restituir a res) era-lhe concedida uma actio depositi.
Tutela dos direitos do depositário:
- Para o depositário poder demandar o depositante se este não cumprisse as eventuais
obrigações que surgissem a seu respeito no decurso do contrato (ressarcir por despesas e
indemnizar por prejuízos causados pela res) era-lhe concedida uma actio depositi contrária.
- O depositário podia ainda exercer o chamado ius retentionis (ou seja, o direito de retenção)
que lhe permitia não restituir a res depositada até lhe serem ressarcidas as despesas que teve
ou indemnizados os danos que sofreu. O ius retentionis não era uma ação que era concedida
pelo pretor, mas sim um meio de tutela privada de direitos. A figura do direito de retenção
está prevista no artigo 784º CC.
Três figuras especiais de depósito
Da figura típica do depósito afastavam-se os seguintes contratos:
- Depósito necessário ou miserável: O depósito necessário ou miserável era o depósito
forçado que se fazia em situações excecionais nas quais o depositante não podia escolher
livremente o depositário, como por exemplo em caso de incêndio, naufrágio ou de desordem
pública. Para que o depositário não se aproveitasse da miséria alheia, a sua responsabilidade
por não restituir a res era elevada ao dobro.
-» Exemplo: A tem a casa em chamas e entrega as suas joias que conseguiu resgatar ao seu
vizinho B, pedindo-lhe que as guardasse enquanto tentava apagar o fogo.
- Sequestro: O sequestro era o depósito de uma res que é objeto de um litígio, feito entre os
vários litigantes e um terceiro da sua confiança (sequester) a quem era entregue a res e quem
detinha a tutela da posse. O sequester tinha de a guardar enquanto não se resolvesse o litígio
e, uma vez resolvido, estava obrigado a restituí-la a quem o tivesse vencido ou viesse a
encontrar-se em determinadas condições estabelecidas pelos depositantes.
-» Exemplo: Entre A e B surge uma disputa sobre uma joia, ambos alegando ser o seu
proprietário. Essa joia era entregue ao sequester que a guardava enquanto não se resolvesse o
litígio e detinha a tutela da sua posse para que nenhum dos litigantes ficasse em vantagem em
relação ao outro. Quando o litígio se resolvesse, o sequester tinha a obrigação de entregar a
joia ao litigante que tivesse vencido.
- Depósito irregular: O depósito irregular era o depósito que se traduzia na transferência da
propriedade de res fungíveis por parte do depositante em favor do depositário, obrigando-se o
este a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (tantundem). Durante muito tempo, a
iurisprudentia romana considerou os depósitos irregulares como mútuos, ou seja, contratos de
direito estrito que necessitavam de um contrato acessório stipulatio usurarum para que as
partes pudessem definir os juros. Contudo, nos finais da época clássica, passaram a ser
considerados como depósitos, ou seja, contratos de boa-fé, estendendo-lhes a sua tutela
processual e as vantagens oferecidas pelos negócios de boa-fé, entre as quais a de o
depositante poder exigir juros mesmo não estipulados.
15.3 Comodato
Conceito de comodato
O comodato era um contrato real [acordo de vontades das partes + traditio], bilateral
imperfeito, gratuito e de boa-fé [tutelado por ações de boa-fé nas quais o juiz concretizava as
obrigações das partes de acordo com os valores da honradez, da lealdade e da fieldade à
palavra], pelo qual o comodante entregava ao comodatário uma res não consumível para que
o comodatário a usasse gratuitamente durante certo tempo e de modo acordado e

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posteriormente a restituísse.
O comodato era um contrato gratuito, uma vez que apenas o comodante sofria uma perda
patrimonial, não tendo o comodatário nada que pagar pelo uso da res entregue, distinguindo-
se o comodato desta forma da locação de coisa (locatio conductio rei).
Obrigações das partes
O comodato era um contrato bilateral imperfeito, pois, com a sua celebração, apenas se
geravam obrigações para o comodatário. As suas obrigações consistiam em:
1. Usar a res de acordo com o acordado com o comodante.
-» Exemplo: Se A e B celebrassem um comodato de um escravo e acordassem no facto
de esse ser usado como agricultor, o comodatário não o podia usar como cozinheiro.
→ Se o comodatário usasse a res para outros fins senão para aqueles acordados,
cometeria um furtum usus, manifestum ou nec manifestum, sendo-lhe aplicada uma pena
pecuniária correspondente ao quádruplo ou duplo do valor da res.
2. Não deteriorar a res.
3. Restituir a res nas condições em que a recebeu.
Como o comodato consiste num contrato bilateral imperfeito, no decurso desse contrato
podiam surgir obrigações para o comodante. As suas obrigações consistiam em:
1. Reembolsar despesas que o comodatário tivesse feito com a conservação da res.
2. Indemnizar os danos que a res tivesse causado ao comodatário.
Como empréstimo de uso, o comodato tinha por objeto res não consumíveis. Porém, em
certas situações reconhecia-se o comodato de res consumíveis:
-» Para que o comodatário ostentasse a res perante terceiros (ad pompam vel ostentationem).
-» Exemplo: A entregava ao seu vizinho B frutas tropicais caríssimas para que as
tivesse numa travessa durante um jantar que ia realizar com os seus familiares que viviam no
estrangeiro, não para as comer, mas para se exibir.
-» Para que, como no caso de moedas, se tornassem objeto de estudo, devendo ser
posteriormente restituídas.
Meios de tutela das partes
Tutela dos direitos do comodante:
- Para que o comodante demandasse o comodatário se este não cumprisse alguma das suas
obrigações, era-lhe concedida uma actio commodati.
Tutela dos direitos do comodatário:
- Para que o comodatário pudesse exigir do comodante o reembolso de eventuais despesas
e/ou a indemnização de eventuais danos, era-lhe concedida uma actio commodati contrária.
- O comodatário podia ainda exercer o seu direito de retenção (ius retentionis), não
restituindo a res ao comodante até que este lhe reembolsasse as despesas pela conservação da
res ou indemnizasse os danos causados pela res. O ius retentionis não era um meio de tutela
pública de direitos, mas sim um meio de tutela privada de direitos.

16. Contratos consensuais


16.1 Compra e venda (emptio venditio)
Conceito de compra e venda
A compra e venda (emptio venditio) era um contrato consensual [mero acordo de vontades das
partes], bilateral ou sinalagmático, oneroso [perda patrimonial para ambas as partes] e de boa-
fé [tutelado por ações de boa-fé nas quais o juiz concretizava as obrigações das partes de
acordo com os valores da honradez, da lealdade e da fieldade à palavra], pelo qual o venditor
se obrigava a transferir para o empter a posse de uma res, assegurando-lhe o seu gozo livre e
pacífico. Em contrapartida, o empter obrigava-se a dar (ou seja, a transferir a propriedade

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(datio)) ao venditor a propriedade de determinada quantia em dinheiro denominada de
pretium.
No Direito Romano, o simples acordo de vontades das partes não transferia a propriedade de
uma res, sendo para tal necessária a prática de um ato material em relação à res a que o
contrato dizia respeito, sendo este o critério fundamental de distinção entre os contratos reais
e os contratos consensuais. Sendo o contrato de compra e venda um contrato consensual, por
ser uma fonte de obrigações, só produzia vínculos pessoais entre o credor e o devedor de
transferência da posse livre e pacífica da res vendida e da propriedade do pretium. Por isso, a
venda de coisa alheia era válida.
Obrigações das partes
Sendo o contrato de compra e venda um contrato bilateral ou sinalagmático, tanto o venditor
como o empter tinham obrigações um para com o outro.
As obrigações do venditor consistiam em:
1. Transferir a posse livre e pacífica da res a favor do comprador. A transferência da res
devia permitir ao empter adquirir a res por usucapião (usucapio), ou seja, a aquisição do
direito de propriedade pelo exercício da posse por determinado tempo. A usucapião era uma
figura privativa dos cidadãos romanos e era de 1 ano para coisas móveis e de 2 anos para
coisas imóveis. Em todo o caso, o empter podia exigir a transferência da propriedade ao
venditor através da celebração de negócios simbólicos a isso destinados. Esses negócios eram
a mancipatio e a in iure cessio para res mancipi e a traditio para res nec mancipi.
2. Responder por evicção. O venditor, que assumiu a responsabilidade de assegurar a posse
livre e pacífica da res, estava obrigado a defender o empter ou a evitar a sentença que
impedisse ao empter a posse livre e pacífica da res por se reconhecer a um terceiro um direito
incompatível, como por exemplo o direito de propriedade.
-» Exemplo: A vendeu a res a B e ainda não tinha passado o prazo da usucapio, ou seja, B
ainda não se tinha tornado proprietário da res. Contudo, surge um terceiro alegando o seu
direito de propriedade sobre a res vendida, pedindo a B que a lhe restituísse. Neste caso, B
tinha que chamar A para o defender. Se A não o conseguisse defender e não evitasse a
sentença que reconhecia ao terceiro o direito de propriedade sobre a res que, por sua vez, não
iria permitir a B tornar-se proprietário da res passado o prazo da usucapio, A era
responsabilizado por evicção.
3. Cuidar da res até à sua entrega.
4. Responder por vícios ocultos e não declarados da res. Esta responsabilidade do venditor
foi desenvolvida muito especialmente pelos edis curuis que, para protegerem os compradores,
impuseram aos vendedores de escravos e animais a obrigação de declararem todas as suas
doenças crónicas e defeitos não aparentes e de se responsabilizarem por esses vícios.
Portanto, se o vendedor não declarasse os vícios ocultos dos escravos ou dos animais, o edil
curul concedia ao comprador uma de duas ações à sua escolha:
- actio redhibitoria: A actio redhibitoria produzia a resolução/extinção do contrato e a
condenação do venditor no pagamento do dobro do preço da res ao empter, a menos que
preferisse pagar o seu preço acrescido de juros. Já o empter devia restituir a res ao venditor. O
prazo para instauração desta ação era de 6 meses úteis a partir do momento em que o defeito
se revelou.
- actio quanti minoris também designada por actio aestimatoria: A actio quanti minoris,
também designada por actio aestimatoria, permitia ao empter obter a redução do preço a fim
de que este ficasse de acordo com o valor real da res. Ou seja, procedia-se a uma avaliação do
verdadeiro valor da res, atendendo ao defeito e o empter, se entendesse que a res lhe
proporcionaria alguma utilidade mesmo com defeitos, poderia reaver a quantia de dinheiro
que havia pago em excesso por ela e continuar na sua posse. O prazo para a instauração desta

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ação era de 1 ano útil a partir do momento em que o vicio se manifestou. Isto permitia ao
empter de, mesmo que já tivesse passado o prazo da actio redhibitoria, ter ainda 6 meses para
instaurar esta ação.
No Direito justinianeu, esta disciplina foi estendida à venda de qualquer res e não só à venda
de escravos e animais!
Já as obrigações do empter consistiam em:
1. Transmitir a propriedade (dare) do pretium ao venditor.
→ Se o empter não entregasse o pretium após receber a res estava obrigado a pagar juros
pelo atraso.
2. Receber a res.
→ Se o empter se recusasse receber a res tinha de indemnizar o venditor pelos danos
causados pelo atraso.
3. Reembolsar o venditor pelos gastos feitos com a conservação da res.
4. Responder pelo risco, o que se expressa através da máxima periculum est emptoris, ou
seja, o perigo/risco é do comprador. O empter respondia pelo risco de perda ou deterioração
da res por caso furtuito ou de força maior, ou seja, por circunstâncias inevitáveis e que se
impunham à vontade humana (ex. tempestades, sismos, cataclismos, guerras). Isto significa
que, a partir do momento em que o contrato de compra e venda se considerava perfeito,
portanto produzindo todos os seus efeitos, o empter estava obrigado a pagar o preço mesmo
que nunca viesse a receber a res por ter sido destruída ou danificada.
-» Exemplo: No dia 20, A e B celebram um contrato de compra e venda de um escravo e
acordam que o escravo tinha que ser entregue no dia seguinte. No final do dia 20, há um
sismo e o telhado onde estava o escravo cai sobre ele, matando-o. B continua obrigado a
pagar o preço.
Elementos da compra e venda
A compra e venda era constituída por três elementos:
1. Conventio: A conventio era o acordo de vontades das partes em que o venditor se obriga a
entregar a posse livre e pacífica da res vendida e o empter se obriga a pagar o pretium.
2. Res: A res, objeto da compra e venda, podia ser:
- res corpórea (ou seja, res que pode ser apreendida pelos sentidos) ou res não corpórea
(ou seja, res que não pode apreendida pelos sentidos -» direitos (ex. usufruto, servidão,
herança, etc.))
- res presente (ou seja, res que já existe no momento em que o contrato é celebrado (ex.
árvore, vaca, etc.)) ou res futura (ou seja, res que ainda não existe mas espera-se que venha a
existir (ex. frutos da árvore, vitelo por nascer, etc.)).
3. Pretium: O pretium era o preço a pagar pelo comprador que devia ser em pecunia
(dinheiro) e em numerata pecunia (preço certo: determinado no momento da conventio ou
determinável). No Direito justinianeu, o pretium tinha ainda que ser um preço justo.
Meios de tutela das partes
Tutela dos direitos do venditor:
- Quando o empter não entregasse o pretium, o venditor era tutelado pela actio venditi.
Tutela dos direitos do empter:
- Quando o venditor não entregasse a res, o empter era tutelado pela actio empti.
16.2 Locação de coisa (locatio conductio rei)
Conceito de locação
A locação de coisa (locatio conductio rei) era um contrato consensual [mero acordo de
vontades das partes], bilateral ou sinalagmático, oneroso [perda patrimonial para ambas as
partes] e de boa-fé [tutelado por ações de boa-fé nas quais o juiz concretizava as obrigações
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das partes de acordo com os valores da honradez, da lealdade e da fieldade à palavra], através
do qual o locator se obrigava a proporcionar ao conductor o uso de uma res não consumível
durante um certo tempo, obrigando-se o conductor em contrapartida a pagar uma retribuição,
a chamada merces que consistia, em regra, em dinheiro.
Obrigações das partes
Se o contrato de locação de coisa era um contrato bilateral ou sinalagmático, tanto o locator
como o conductor tinham obrigações um para com o outro.
As obrigações do locator consistiam em:
1. Proporcionar ao conductor o uso da res durante o tempo e nas condições acordadas.
2. Fazer as reparações necessárias para evitar a perda ou a deterioração da res.
3. Ressarcir o conductor pelas despesas que fez com reparações necessárias à conservação
da res.
Já as obrigações do conductor consistiam em:
1. Pagar a merces acordada.
2. Conservar a res como lhe foi entregue e não fazer um uso reprovável (comportamentos
de risco).
3. Indemnizar o locator por danos que provocasse na res.
4. Restituir a res no prazo acordado.
O risco onerava o locator (periculum est locatoris). Isto significa que, se a res fosse destruída
ou deteriorada por caso furtuito ou de força maior, ou seja, por circunstâncias inevitáveis e
que se impunham à vontade humana (ex. tempestades, sismos, cataclismos, guerras) era o
locator quem sofria o dano e o conductor só tinha a obrigação de pagar a merces pelo tempo
em que teve o uso da res.
A locatio conductio rei caducava quando:
- o prazo acordado no contrato tivesse sido cumprido.
- a res a que o contrato diz respeito tivesse sido materialmente destruída.
-» Exemplo: A e B celebram uma locação de uma casa pelo período de 5 anos e pela
merces anual de 1’000. Ao fim de 3 anos, a casa arde devido a um incêndio. Ao fim de três
anos, quanto é que o conductor tinha que pagar de merces ao locator? 3’000 porque só teve o
uso da casa durante 3 anos.
O conductor não tinha sobre a res um direito real, mas apenas um mero direito de crédito em
relação ao locator. Assim, de acordo com a regra “emptio tollit locatum” (ou seja, a compra
rompe a locação), se o locator vendesse a res a um terceiro, o terceiro podia despejar o
conductor, pois a relação de locação nada tinha a ver com ele. O conductor podia apenas, se
fosse despejado, demandar o locator, exigindo-lhe a indemnização pelos danos sofridos, mas
não conseguia evitar o despejo. Hoje em dia, a regra emptio tollit locatum não vigora (1057º
CC).
Meios de tutela das partes
Tutela de direitos do locator:
- Se o conductor não pagasse a merces, o locator era tutelado pela actio locati.
Tutela de direitos do conductor:
- Se o locator não proporcionasse o uso da res, o conductor era tutelado pela actio conducti.
16.3 Sociedade (societas)
Conceito de sociedade
A sociedade (societas) era um contrato consensual [mero acordo de vontades das partes],
bilateral ou sinalagmático [obrigações para ambas as partes], oneroso [perda patrimonial para
ambas as partes] e de boa-fé [tutelado por ações de boa-fé nas quais o juiz concretizava as
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obrigações das partes de acordo com os valores da honradez, da lealdade e da fieldade à
palavra], em que duas ou mais pessoas (socii) se obrigavam reciprocamente a pôr em comum
coisas, trabalho ou ambos com vista à obtenção de uma finalidade patrimonial comum.
Finalidade do contrato de sociedade
A finalidade que os sócios visavam realizar através da celebração de um contrato de
sociedade devia ser lícito e constituir uma utilidade ou vantagem de natureza patrimonial para
todos os sócios. Por isso, não produzia efeitos o contrato de sociedade que reservasse para
alguns sócios as perdas e para outros os ganhos. Este tipo de sociedade designava-se por
sociedade leonina (societas leonina) por influência da fábula de Fedro: “A vaca, a cabra e a
ovelha justam-se ao leão na caça. Apresado um cervo, assim falou o leão: “Fico com a
primeira parte, pois sou o leão; fico com a segunda parte, pois sou valente; e como valho
mais, fico com a terceira.”
A sociedade leonina era proibida, uma vez que punha em causa a própria finalidade do
contrato de sociedade, nomeadamente a constituição de uma utilidade ou vantagem de
natureza patrimonial para todos os sócios. Atualmente, essa proibição ainda se encontra
vigente (994º CC). Contudo, o contrato de sociedade em que os ganhos e as perdas eram
distribuídos desproporcionalmente pelos sócios era permitido.
1. Se os sócios nada convencionassem acerca da distribuição de perdas e de ganhos, a sua
distribuição era feita em partes iguais.
2.1 Se os sócios convencionassem algo acerca da distribuição de perdas e de ganhos, a sua
distribuição era feita conforme aquilo que foi estabelecido.
Contudo, os sócios não podiam constituir uma sociedade leonina!
Obrigações das partes
A sociedade é um contrato bilateral de que resultam obrigações que os sócios tinham
reciprocamente. As obrigações dos sócios consistiam em:
1. Contribuir com as res ou com o trabalho conforme foi convencionado.
-» Exemplo: Se dois sócios acordaram em explorar em comum uma peixaria, um
obrigando-se a contribuir com uma casa onde ia funcionar a peixaria e outro obrigando-se a
contribuir com o trabalho de vender o peixe, ambos tinham que cumprir.
2. Gerir os negócios da sociedade segundo os fins para que a sociedade foi constituída.
-» Exemplo: Os sócios tinham que gerir os negócios da sociedade, prosseguindo a
finalidade específica para que ela foi constituída.
3. Reembolsar os outros sócios pelos gastos que tenham feito com a gestão da sociedade.
-» Exemplo: Se um sócio, para prosseguir a finalidade da sociedade, necessitava de
viajar, gastando em hospedagem, transporte, etc., os outros sócios tinham que, na sua
proporção, reembolsar-lhe os gastos que fez.
4. Indemnizar danos que outros sócios tenham sofrido com a gestão da sociedade.
-» Exemplo: Se na viagem um sócio fosse assaltado por malfeitores, os outros sócios
tinham que, na sua proporção, indemnizar esses danos.
Relações obrigacionais entre sociedade e terceiros
Ao contrário do que se passa no Direito atual, no Direito Romano o contrato de sociedade não
criava uma pessoa jurídica distinta dos sócios. Por isso não havia relações obrigacionais entre
a sociedade e terceiros, mas apenas entre cada sócio e terceiros. Importa distinguir:
1. Se um dos sócios celebrasse um contrato com um terceiro, a relação obrigacional surgia
unicamente entre o sócio e o terceiro. Contudo, o sócio tinha que prestar contas aos outros
sócios.
-» Exemplo: A e B celebram um contrato de sociedade para explorar um estabelecimento
de vinhos e petiscos. B decide comprar para o negócio 10 pipas de vinho a C, que não é sócio,

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pela quantia de 1000. C quer pedir a A a quantia acordada com B. Poderá fazê-lo? Não. C terá
que os pedir a B, uma vez que a relação obrigacional surgiu apenas entre ambos.
2. Se todos os sócios celebrassem um contrato com um terceiro, a relação obrigacional
considerava-se pro rata, ou seja, era assumida proporcionalmente por cada um deles. Isto
significa que cada sócio apenas tinha que responder perante o terceiro pela sua parte da
dívida.
-» Exemplo: A, B e C celebram um contrato de sociedade para explorar uma taberna.
Todos eles decidem comprar vinho para servir na tasca pela quantia de 900 a D. Quanto e a
quem é que D podia exigir o cumprimento da obrigação? D podia exigir 300 a cada sócio.
3. Em princípio, os sócios tinham que responder perante o terceiro pela sua parte da dívida.
Contudo, os sócios podiam acordar no contrato de sociedade a chamada responsabilidade
solidária, o que significa que o terceiro podia responsabilizar qualquer sócio pela totalidade
da dívida sem prejuízo de, através do chamado direito de regresso, esse sócio poder exigir
aos restantes sócios as suas partes na obrigação.
-» Exemplo: A, B e C celebram um contrato de sociedade para explorar uma taberna e
compram a D 10 pipas de vinho pela quantia de 900. Os sócios estabeleceram no contrato de
sociedade que a responsabilidade deles perante terceiros era solidária. Sendo assim, D podia
exigir o cumprimento da obrigação a qualquer um dos sócios.
Imagine-se que D demanda A, exigindo-lhe a totalidade do crédito. Teria o sócio A que o
pagar? Sim. O que A poderia fazer depois era exercer o direito de regresso contra os outros
sócios B e C, pedindo-lhes as suas partes na obrigação (300 cada um).
Meios de tutela das partes
Para que os sócios demandassem os outros sócios que não cumprissem as suas obrigações,
era-lhes concedida a actio pro socio. Contudo, se exercessem essa ação, a sociedade
extinguia-se.
Extinção do contrato de sociedade
O contrato de sociedade extinguia-se:
1. Quando decorresse o prazo convencionado pelos sócios.
-» Exemplo: Os sócios podiam estabelecer que o contrato de sociedade só durasse durante
um determinado período de tempo. Decorrido esse período de tempo, a sociedade extinguia-
se.
2. Quando ocorresse a realização do fim estabelecido pelos sócios.
-» Exemplo: Os sócios celebram um contrato de sociedade para vender escravos. Quando
esses escravos tivessem sido todos vendidos, a sociedade extinguia-se.
Como o contrato de sociedade tinha na sua base uma relação de confiança e fraternidade
(fraternitas) entre os sócios, e atendendo a essa fraternitas, o contrato de sociedade também se
extinguia:
3. Pela renúncia de um dos sócios.
4. Pela morte de um dos sócios.
5. Pela má condição económica de um dos sócios.
6. Pelo exercício da actio pro socio.
16.4 Mandato
Conceito de mandato
O mandato era um contrato consensual [mero acordo de vontades das partes], bilateral
imperfeito e de boa-fé [tutelado por ações de boa-fé nas quais o juiz concretizava as
obrigações das partes de acordo com os valores da honradez, da lealdade e da fieldade à
palavra], pelo qual o mandante encarrega ao mandatário de realizar uma certa atividade no
interesse do mandante, de um terceiro ou destes e do mandatário. O mandatário obrigava-se a

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realizar a atividade gratuitamente.
O mandato era um contrato gratuito, uma vez que apenas o mandante sofria uma perda
patrimonial, não sendo o mandatário remunerado pela realização da atividade.
Elementos do mandato
O mandato era constituído por três elementos:
1. Consensus: O consensus era o acordo de vontades das partes, pelo qual o mandatário se
obriga a realizar a atividade.
2. Objeto: O objeto era a atividade que o mandatário se obrigava a realizar e que devia ser
lícita e determinada. Não é necessário que consista num negócio jurídico; qualquer atividade
podia ser objeto de mandato desde que fosse gratuita.
3. Finalidade: A realização da atividade a que o mandatário se obrigava devia satisfazer o
interesse do mandante, de um terceiro ou até um interesse conjunto destes e do mandatário.
Contudo, se o interesse a prosseguir fosse exclusivamente do mandatário, não existia um
contrato de mandato, existindo antes um mero conselho que uma pessoa segue ou não
conforme quiser, não havendo vinculatividade jurídica.
Obrigações das partes
O mandato era um contrato bilateral imperfeito, pois, ao ser celebrado, apenas originava
obrigações para o mandatário. As suas obrigações consistiam em:
1. Realizar a atividade de acordo com as instruções do mandante ou, na sua falta, segundo
a natureza/normalidade da atividade a realizar.
2. Prestar contas da sua atividade ao mandante. O mandatário tinha que informar o
mandante e de lhe pôr à sua disposição tudo o que resultasse do mandato e, em decorrência,
se da atividade resultassem direitos em relação a terceiros, o mandatário devia transmitir as
correspondentes ações ao mandante. Portanto, se o mandatário, no decurso da atividade a que
se obrigou, constitui relações obrigacionais perante terceiros e delas surgem direitos em
relações aos mesmos, ele tem a obrigação de transmitir a ação correspondente ao mandante
para ele responsabilizar o terceiro.
Como o mandato consistia num contrato bilateral imperfeito, podiam surgir no decurso desse
contrato obrigações para o mandante. As suas obrigações consistiam em:
1. Reembolsar os gastos que o mandatário tenha feito com a realização da atividade.
2. Indemnizar os danos sofridos pelo mandatário com a realização da atividade.
Meios de tutela das partes
Tutela de direitos do mandante:
- Ao mandante era concedida contra o mandatário a actio mandati para o responsabilizar se
não cumprisse as suas obrigações.
Tutela de direitos do mandatário:
- Ao mandatário era concedida a actio mandati contrária para exigir ao mandante o
reembolso dos gastos que fez com o mandato ou a indemnização dos danos que o mandato lhe
tivesse causado.

17. Os delitos
17.1 Conceito de delito
O delito era um ato ilícito, ou seja, contrário ao ordenamento jurídico, sancionado pelo ius
civile com uma pena. Como já se referiu, os delitos eram, para além dos contratos, uma fonte
de obrigações porque geravam para o autor do delito a obrigação de pagar uma pena
pecuniária à vítima e para a vítima a obrigação de exigir o seu pagamento.

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O delito podia ser:
- público: Ofende a comunidade romana. É punido com pena pública (corporal ou pecuniária)
e denomina-se crimen.
- privado: Ofende um indivíduo. É punido com pena pecuniária e denomina-se delictum.
Havia quatro delitos privados previstos pelo ius civile:
- furto (furtum)
- rapina
- iniuria
- dano causado com injúria (damnum iniuria datum)

18. Furto (furtum)


18.1 Conceito de furto
O furto era um delito privado que Paulus definiu como sendo um apoderamento fraudulento
cometido para se obter um lucro, uma coisa, o uso de uma coisa ou a posse de uma coisa.
18.2 Elementos do furto
O furto compreende os seguintes elementos:
1. Contrectatio rei: é o elemento objetivo. Trata-se da conduta levada a cabo pelo ladrão (fur)
e que podia consistir em um de três comportamentos:
→ Podia tratar-se de uma ablatio: Consiste na subtração de uma res corpórea, móvel e que
se encontra no património, na posse ou na detenção de outra pessoa.
-» Exemplo: A rouba uma vaca a B.
→ Podia tratar-se de um furtum usus: Consiste no uso ilícito de coisa alheia.
-» Exemplo: O comodatário usa a coisa emprestada para fins diferentes dos
convencionados com o comodante.
→ Podia tratar-se de um furtum possessionis: Consiste na tomada indevida de posse de
uma res, podendo ser cometido pelo proprietário da res se a posse desta pertencer licitamente
a outra pessoa.
-» Exemplo 1: O depositante/comodante que se apodera da res que o
depositário/comodatário detém legitimamente ao abrigo de um direito de retenção.
-» Exemplo 2: O depositário/comodatário que se recusa a restituir a res ao
depositante/comodante, começando a possuí-la como se fosse própria.
2. Animus furandi: é o elemento subjetivo. Trata-se da realização da contrectatio rei com a
intenção de lesar/prejudicar outra pessoa.
18.3 Modalidades de furto quanto à pena aplicável
Quanto à pena a aplicar ao fur, a Lei das XII Tábuas distingue entre:
- Furtum manifestum: O furtum era manifestum quando o ladrão era surpreendido a praticar
o furto (flagrante delito). Na época clássica, o fur era punido com uma pena correspondente
ao quádruplo do valor da res e podia ser-lhe exigida pela vítima através da actio furti
manifesti.
- Furtum nec manifestum: O furtum era nec manifestum quando o ladrão não era
surpreendido a praticar o furto. Segundo a Lei das XII Tábuas, o fur era punido com uma
pena pecuniária correspondente ao dobro do valor da res e que podia ser-lhe exigida pela
vítima através da actio furti nec manifesti.

19. Dano causado com injúria (damnum iniuria datum)


19.1 Conceito de dano causado com injúria
O dano causado com injúria era um delito privado que consistia na produção culposa de um
dano em res alheia. Foi regulado pela lex Aquilia de damno, um plebiscito votado em 287
a.C. para assegurar aos plebeus o pagamento de danos causados aos seus bens pelos patrícios.
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19.2 Atos de danificar coisa alheia previstos na lex Aquilia de damno
Já havia anteriormente algumas ações concedidas para permitir a indemnização de certos
danos causados em coisas alheias, mas foi a lex Aquilia de damno que concedeu uma proteção
genérica aos proprietários que sofressem prejuízos nas suas coisas. Essa tutela era
concretizada processualmente através da actio legis aquiliae (ação da lex Aquilia de damo) A
lex Aquilia de damno continha três capítulos mas só nos interessam o primeiro e o terceiro:
-» 1. Capítulo: Se alguém matasse um escravo ou um quadrúpede alheio que pertencesse
ao gado doméstico (cabras, ovelhas, vacas, cavalos, burros, etc.), o autor tinha a obrigação de
pagar ao lesado o maior valor atingido pela res no ano anterior à sua morte.
-» 3. Capítulo: Se alguém incendiasse, fraturasse ou, por qualquer modo, deteriorasse uma
res alheia, animada (escravos ou animais) ou inanimada, o autor tinha a obrigação de
indemnizar a vítima pagando-lhe o maior valor atingido pela res nos últimos 30 dias.
19.3 Pressupostos do dano causado com injúria
Havia requisitos para que houvesse um dano causado com injúria:
1. O dano devia decorrer de um comportamento antijurídico, ou seja, de uma iniuria.
2. O dano devia ser produzido pelo autor através de um ato material direto sobre a res, ou
seja, através de um contacto corpore corpori.
-» Exemplo: A fecha um escravo à chave e ele morre de fome. Tal conduta não
consistia num dano causado com injúria, uma vez que o dano não foi produzido através de um
ato material direto sobre o escravo por parte de A.
3. O autor tinha de ter atuado com culpa, ou seja, com dolo ou negligência.
-» Dolo: Intenção de provocar o dano.
-» Negligência: Falta de cuidado que provoca o dano, embora sem intenção.
19.4 Extensões da disciplina da lex Aquilia de damno a situações por ela não
previstas
O âmbito da lex Aquilia de damno acabou por se revelar muito restrito. Por isso, a
iurisprudentia sugeriu ao pretor a extensão da tutela aquiliana a situações que a lex Aquilia de
damno não previa. Assim, foram concedidas ações criadas pelo pretor que passaram a tutelar
os seguintes casos que o ius civile não contemplava:
- Danos não provocados diretamente por uma ação corpórea.
-» Antes, apenas se tratava de um dano causado com injúria se o dano fosse produzido
através de uma ação corpórea.
- Danos causados a quem não era proprietário mas tinha um direito sobre a res.
-» Antes, apenas se tratava de um dano causado com injúria se o dano fosse produzido ao
proprietário da res alheia danificada.
- Danos resultantes de lesões corporais em pessoas livres.
-» Antes, apenas se tratava de um dano causado com injúria se o dano fosse produzido em
res alheia.
A figura do dano causado com injúria foi a raiz da responsabilidade civil extracontratual
prevista nos artigos 483º e ss. CC e é por isso que, ainda hoje, se designa a responsabilidade
civil extracontratual de delitual ou aquiliana.

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