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Margarida Gonçalves

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS


Manual dos Professores Ruy e Martim de Albuquerque

Ruy e Martim Albuquerque têm o intuito de criticar todo e qualquer critério de periodificação,
com base no:

• Artificialismo – defendem que o facto de periodificarmos a história implica olhar para ela não
como uma linha contínua, mas suscetível de cortes, o que torna todo este processo artificial.
• Subjetivo – quando se escreveu o livro de HDP, cada um dos autores aponta de forma mais
concreta para aquelas matérias que prefere. Todo o critério é criado à luz dos gostos pessoais.

• Critério tradicional ou étnico-político – foi adotado pelos professores Gama Barros, Alexandre
herculano, Melo Freire e Manuel Coelho da Rocha. A periodificação é feita relevando os povos
e os regimes que se sucederam:
1. Período pré-romano
2. Período romano
3. Período visigótico-germânico
4. Período da reconquista cristã
5. Período da monarquia feudal ou limitada
6. Período da monarquia absoluta
7. Período da monarquia constitucional
8. Período republicano
CC de R e M Albuquerque – é artificial e subjetivo.
Para além disso, esta periodificação tenta harmonizar dois critérios inconciliáveis, sendo um de
natureza étnico-jurídica e o outro assente nas formas de Estado.

• Critério “dos reinados” – foi adotado pelo professor Marcelo Caetano, em que estrutura a HDP
de acordo com as dinastias e os reinados:
1. Dinastia afonsina
2. Dinastia de avis
3. Dinastia filipina
4. Dinastia de bragança
CC – artificial e subjetivo.
Para além disso, este critério reduz a HDP à história do Estado, denotando-se um predomínio do
direito público relativamente ao direito privado. O Estado não é a única instituição criadora de
Direito, não podendo esquecer o Costume que foi uma grande fonte de criação de Direito.

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• Critério jurídico-externo ou das fontes – a divisão da HDP faz-se segundo as fontes de direito
predominantes:

1. Período da formação jurídica-consuetudinária (costume) – desde o séc. XI até ao reinado


de D. Afonso III, no séc. XIII.
2. Período do grande predomínio da legislação geral e escrita (esta legislação estava dispersa
no 1º momento; num 2º momento passou a estar codificada).
3. Período moderno – até ao séc. XVIII, inicio do séc. XIX (caracterizado pelo domínio
exclusivo-tirânico da lei).

• Critério “assente em sistemas jurídicos” – criado pelo professor Cabral de Moncada, que
defende que a HDP deve ser dividida pelos diversos sistemas jurídicos portugueses:

1. Sistema jurídico primitivo/ibérico – desde os tempos mais remotos até à constituição do


imperador Caracala de 211
2. Sistema do direito romano vulgar – desde a constituição de Caracala ate ao código
visigótico de 654
3. Sistema romano-gótico – desde 654 até ao séc. XI
4. Sistema germânico-ibérico – desde o séc. XI até ao reinado de D. Afonso III (séc. XIII).
5. Sistema do romanismo justinianeu – desde o reinado de D. Afonso III até ao consulado do
Marquês de Pombal (séc. XVIII).
6. Sistema do direito natural – desde as reformas jurídicas de Marquês de pombal até à
atualidade.
CC – subjetivo e artificial.
Por ser um critério somente jurídico, negligencia o papel da sociedade na evolução dos sistemas
jurídicos.

Contudo, após estas críticas, eles concluem que é necessário apresentar um critério de
periodificação.
I. Periodificação adotada

• Critério baseado nas fontes de Direito – Ruy e Martim de Albuquerque:

1. Ordem jurídica pluralista – desde o início da fundação do Reino de Portugal até 1415
(conquista de Ceuta).
2. Ordem jurídica monista – desde 1415 até à atualidade.
a. Monismo formal – de 1415 até 1820 (a lei torna se a principal fonte de direito, mas
conjuga se com outras fontes).
b. Monismo material – de 1820 até à atualidade (a lei torna-se a única fonte de Direito).

Duarte Nogueira concorda com a periodificação dos profs. Ruy e Martim. Contudo, discorda do
facto do período da ordem jurídica monista de cariz material durar até à atualidade – defende que
este período acabou com a adesão à UE (1986) e que a partir de 1986 regressámos a um período
de ordem jurídica pluralista.

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1º Pluralismo (até 1415)


Num 1º momento coexiste uma série de factos normativos provenientes de diferentes
ordenamentos jurídicos (romano, visigótico, canónico) e uma heterogeneidade de fontes
(costume, direito prudencial, direito supra-estatal, direito estatal-legal e direitos locais).
Não há um domínio do direito emanado do poder central. Ainda não existe um estado soberano
porque não há poder supremo na ordem interna, nem na ordem externa (igreja e outros poderes,
como imperador). Só figuras do regnum, da respublica.
Existe uma pluralidade de ordens jurídicas e uma pluralidade de fontes porque há uma pluralidade
de poderes. Assim, o rei não se sobrepõe aos demais, havendo então uma pluralidade de
jurisdições. Estas pluralidades vão ser controladas pelo poder do rei (sobrepõe-se a todas as
outras), a lei (fonte que se afirma sobre todas as demais) e a jurisdição (juízes nomeados pelo rei
que levam a lei do rei; surgem juízes letrados, sabem ler e aprendem o direito prudencial, o corpus
ius civile).
Não há uma hierarquia de fontes porque as fontes são apenas um instrumento para impor uma
solução justa – ela só aparece nas ordenações Afonsinas.
Jurista – é um conditor iuris, cultor de um direito sem fronteiras. Era um prudente que
interpretava e criava o Direito.
Neste período o Direito corresponde a uma conceção do mundo bem marcada – é uma
comunidade política que se encontra delimitada em função dos próprios fins e da estrutura vasta
da Respublica cristã. Não existe poder for desta República, correspondendo a personalidade
jurídica à integração do homem na ordem simultaneamente religiosa, moral e jurídica –
comunidade internacional.

2º Monismo – subdivide-se em 2 épocas


Este período inicia-se com a conquista de Ceuta, que constituiu o marco das Descobertas. Houve
uma centralização do rei, que cria e aplica o Direito (1ªlei régia, costume antigo do reino). Apesar
de Ceuta não ser um facto jurídico, condicionou a sociedade nacional e como tal, a ordem jurídica.
Existem duas subépocas separadas por 1820.
Desde 1415 a 1820 existe uma linha de desenvolvimento progressivo nos diferentes elementos
da experiência jurídica – da construção do Estado à configuração do Direito público, desta ao
Direito privado, deste ao processo histórico de atuação da doutrina. Nesta época:

• Há uma estabilidade do Direito público e desenvolvimento progressivo das doutrinas


políticas, existindo alterações graduais e lentas.
• Há a permanência das linhas mestras do Direito privado. Mantém-se em vigor as
Ordenações; as reformas legislativas pombalinas não representam uma renovação
criadora do nosso Direito (as reformas operaram sobretudo no domínio das fontes, pela
determinação do Direito subsidiário – a Lei da Boa Razão).
• O carácter translatício do trabalho dos juristas.
Assim, a estrutura normativa da ordem jurídica nacional permaneceu quase inalterada nesta
época.

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Mas a partir de 1820, deu-se uma mutação no Direito público que ficou com um papel
preponderante que ditou a consagração de um novo Direito privado (CC de 1867).
Existem elementos comuns às duas épocas. São eles:

• A conquista das fontes de Direito pelo Estado, por via da implantação progressiva de
reformas administrativas e uniformizantes (reinado de S. Sebastião) e reformas liberais por
Mouzinho da Silveira.
• A centralização com expressão na administração filipina (impôs à própria administração
do Ultramar critérios de centralização, uma fiscalização constante e uma burocratização
minuciosa); com um absolutismo josefino-pombalino, antecedido por um, absolutismo de
D. João V (com riquezas brasileiras); com um centralismo parlamentar da revolução liberal
e transmitido à república.
• A maneira de conceber o Direito foi encarada numa perspetiva voluntarista (produto da
vontade do Estado). O Estado garantia os direitos naturais do homem, a igualdade perante
a lei, a soberania popular, a separação de poderes e a constituição.
Surge o conceito moderno de Estado, com a pretensão de deter o direito – disciplina o valor
do costume, do direito prudencial e do direito supra-estatal.
- O jurista deixa de ser um prudente – é convertido em jurista burocrático, é posto ao
serviço dos fins políticos e administrativos do Estado. Não passará de um legista, de um
serventuário da aplicação da lei.
- Também o Direito supra regna vale quando o Estado quer. O direito internacional,
natural e o costume só vigoram quando o Estado declarar – a lei surge como valor
absoluto que incorpora a vontade do Estado. Com o Estado liberal, o Estado fica com a
exclusiva função legislativa.

CAPÍTULO I – A JUSTIÇA E O DIREITO SUPRAPOSITIVO


SECÇÃO I – A JUSTIÇA

O Direito na Idade Média foi concebido enquanto função da justiça. O Direito é o modo de
revelação da Justiça e a Justiça é a legitimação do Direito.
Platão – o direito consiste na busca da justiça.
Aristóteles – o direito só pode ser definido pelo Estado, devendo ser empregue o critério da
justiça, uma vez que o direito é justo quando protege os interesses gerais da sociedade e, em
particular, quando trata de igual forma as pessoas que se encontram nas mesmas situações.
Ulpianus – a Justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o que é de seu direito.

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Modalidades de justiça – Aristóteles


1. A Justiça como condição da sociedade – Justiça universal
A Justiça era o fundamento da vida social, indispensável para uma convivência organizada (S.
Agostinho, Partidas, diplomas de D. Afonso IV).
A sociedade traduzia o resultado do operar humano tendente à realização da perfeição individual.
Sendo os homens justos, justa seria a sociedade. Para além da justa configuração da vida
coletiva, a plenitude individual pressupunha o aceitamento pelo homem da lei divina e da lei
natural.
A justiça traduzia-se numa virtude, definida como um hábito bom orientado para a ação (habitus
operativus bónus). Como afirmava S. António, A justiça é hábito de ânimo que, guardando o
bem comum, atribui a cada um aquilo de que é digno.
A ideia do homem justo como o homem perfeito conduziu à conceção de justiça enquanto virtude
universal.

Justiça universal – segundo a conceção do pensamento greco-romano, judaico e cristão (isto é,


a conotação religiosa da justiça), a justiça universal é a síntese de todas as virtudes e considera
o mundo intra-subjetivo. Corresponde, portanto, ao exercício da virtude completa e perfeita por
ser exercida pelo indivíduo em relação a si mesmo e ao próximo.
Quem detém o poder tem uma obrigação de prosseguir a justiça para a salvação da sua alma e
aplicar a justiça na sociedade medieval para garantir a salvação do povo.
Esta definição influenciou, a fundamentação das penas, funcionando então como elemento crítico.

2. A Justiça particular
A Justiça particular coexistiu com a Justiça universal.
Justiça particular – esta justiça considera o campo das relações inter-subjetivas (assim
distingue-se das virtudes específicas que regulam a conduta do próprio agente para consigo, como
a paciência, a caridade e a gratidão que também regulam a nossa conduta em relação a outros) e
o seu objeto consiste na atribuição do seu Direito a cada um. A justiça é a constante e a perpétua
vontade de dar a cada um o seu Direito.
Qual deve ser o seu a respeitar pela Justiça?
Os autores do Direito natural (Cícero e Séneca) determinaram que ele era função da prudência e
traduzia-se num operar cognoscitivo, sendo Justiça a virtude de distinguir o bem e o mal.
A Justiça pressupunha, para a determinação do seu conteúdo, um ato deliberativo que assentava
na consideração do seu como algo ordenado aos fins de alguém.
O Anjo das Escolas/filosofia escolástica ligou a Justiça à ordenação do homem para com o
homem. Existiam dois tipos de justiça – a justiça comutativa/sinalagmática (respeita à correção
de desigualdades ou desequilíbrios que podiam inevitavelmente surgir nas relações que os
particulares estabeleciam entre si. P.E: nos contratos do Direito privado) e a justiça distributiva
(diz respeito à distribuição e repartição de bens pelos membros da sociedade. P.E: no Direito
público).

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O pensamento medieval concebeu a Justiça como causa do Direito (eles tinham a mesma
natureza. O Direito traduzia a justiça mediante preceitos autoritariamente estabelecidos, sendo
por isso, um instrumento de revelação da Justiça. A ordenação social estipulante de direitos e
deveres não uniformes para todos os homens encontra fundamentação na Justiça distributiva
subjetiva e objetiva – o homem médio construía-se com referência a deveres e direitos de estados
diversos.

Modalidades da justiça – S. Tomás de Aquino


1. Justiça geral ou legal – é aquela que diz respeito imediatamente ao bem comum e
mediatamente aos particulares, prendendo-se com o que é devido à sociedade pelos seus
membros.
2. Justiça comutativa – é responsável pela regulação das relações entres os particulares, ou seja,
relativas aos débitos recíprocos na sociedade.
3. Justiça distributiva – ela coordenava o relacionamento da parte com o todo, de modo a atribuir
a cada um aquilo que lhe era devido segundo o seu mérito, capacidade ou participação dentro
da sociedade.

Modalidades da justiça – Afonso X


Nas sete partidas – texto normativo que visava dar coerência e uniformidade jurídicas ao reino
de Castela. Estudando o conteúdo desta obra, distingue-se 3 tipos de justiça:
1. Justiça espiritual – consistia na atribuição a deus de tudo quanto lhe era devido pelo homem.
2. Justiça política – consistia na atribuição, pela comunidade aos respetivos membros, daquilo
que lhe cabia e vice-versa.
3. Justiça contenciosa – fazia-se no âmbito dos processos.

Modalidades de justiça – Frei Álvaro Pais


Ele defende a proeminência do poder espiritual face ao poder temporal porque a alma era mais
importante que o corpo.
1. Latria – justiça para com Deus.
2. Dulia – justiça para com todas as criaturas merecedoras de respeito e consideração.
3. Obediência – justiça para com os superiores.
4. Disciplina – justiça para com os inferiores.
5. Equidade – justiça entre iguais.

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SECÇÃO II – O DIREITO SUPRAPOSITIVO E O DIREITO HUMANO

O Direito suprapositivo está para lá do Direito escrito, do Direito humano. É produto da


construção jurídica humana. Ele divide-se em dois núcleos jurídicos:

• Direito divino – existe para o homem medieval uma pluralidade normativa. O Direito divino
é uma das fontes de direito. Ele é superior, ultrapassa o homem. Confunde-se com os próprios
ditames que Deus transmitiu ao homem e vai ser entendido de forma diversa, consoante a
conceção do homem (Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino).
Santo Agostinho defende que a lei eterna é a razão e a vontade de Deus que manda conservar a
ordem natural e proíbe que seja perturbada, ou seja, a lei eterna é apreendida pelo coração humano
e influencia a sua vontade de agora; a lei natural foi inscrita por Deus no coração do Homem (o
Homem não ascende a Deus porque é naturalmente mau).

S. Tomás de Aquino apresenta quatro espécies de leis:


- A lei eterna e a própria razão de Deus, governadora e ordenadora de todas as coisas.
- A lei natural é a participação da lei eterna na criatura racional, o que lhe permite distinguir
o bem e o mal, ou seja, esta lei é a compreensão da lei eterna pelo homem.
- A lei divina é aquilo que é percebido e revelado nos livros sagrados, no Antigo e no Novo
Testamento, para que o Homem pudesse sem vacilações, ordenar-se em relação ao seu fim
sobrenatural. Também é uma participação da lei eterna, revelando-se também, através das
sagradas escrituras.
- A lei humana está na base. É o produto e a construção jurídica do homem, devendo cumprir
e prosseguir a lei eterna, natural e divina (era o Direito positivo).

• Direito natural – vai ser teorizado ao longo da idade média em duas perspetivas. Ele constitui
o núcleo jurídico que é inerente à própria natureza humana – como esta tem um carácter divino,
então o direito natural age como recetor do direito divino. Ele não pode ser violado porque
isso iria pôr em causa a natureza.
O direito natural teve sempre como finalidade defender os direitos do próprio homem, pelo
que podemos concluir que este corresponde àquilo que é inerente à condição do homem.
S. Tomás de Aquino apresenta 4 características do direito natural: a imutabilidade e
inderrogabilidade, a universalidade e a cognoscibilidade (apreensível por todos).

Racionalistas vs voluntaristas: reportam-se ao direito natural como derivação da lei eterna e à


conceção desta como ratio ou voluntas Dei.
Gaio defendeu que o direito natural era racional porque correspondia a uma manifestação da
razão de Deus.

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Importância da lei divina e lei natural no quadro normativo medieval


Os governantes estavam submetidos às leis divina e natural, que tinham um primado sobre o
costume e as constituições terrenas (Decretum, Vicente Hispano, João de Deus e S. Tomás).
Quando uma norma do direito positivo não respeitava o preceito divino ou natural, não tinha
qualquer valor. O ordenamento positivo (leis humanas e costume) só subsiste desde que articulado
segundo a regra divina e natural.
Os teóricos medievais dizem que não se está obrigado a observar as leis positivas se estas
estiverem contra o direito natural.

Princípio da imutabilidade e inderrogabilidade do direito divino e do direito natural


A imutabilidade (preceitos não mudam) e a inderrogabilidade (não são revogáveis) do direito
divino e direito natural conduzia a um estagnamento. Assim, os intérpretes procuraram vias de
flexibilidade: os teólogos estabeleciam a respeito do direito divino a distinção entre preceitos
móveis e imóveis; os canonistas acerca das normas naturais, distinguiam a norma praecipiat
quod prodest e a norma prohibet quod laetid, isto é, a norma imperativa que ordena ou impede
(intocável).
S. Tomás de Aquino apresenta a ideia de sociabilidade humana, ou seja, da relação do homem
com o meio. Assim, vão ser definidos preceitos primários – evidentes para todos, assumidos
como inatingíveis e invioláveis, como o direito à vida – e secundários – evidentes para alguns;
são mutáveis em função da interação do homem e como se integra na sociedade, em função do
tempo, da época (p.e: a questão da monogamia e da poligamia).
Estes preceitos são necessários para fazer a avaliação e integração daquilo que é o direito natural
como a integração do direito inerente ao homem e a sua interação com a sociedade.

O Direito suprapositivo e supralegal. O ius gentium


Direito suprapositivo – Direito natural: ordem jurídica que ultrapassa os governantes e estende-
se a todos. Assim, havia quem o qualificasse como Direito comum.
Direito supra regra: preceitos de origem humana que se situam para lá do espaço nacional.
Direito das gentes (ius gentium): situa-se entre o direito superpositivo e o supra-regra, pois é
uma extensão do direito natural, mas já humana e universal. Foi criado para os cidadãos não
romanos, pois a estes aplicava-se o Direito civil (ius civile).

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CAPÍTULO II – DIREITO POSITIVO SUPRA REGNA, O DIREITO CANÓNICO E O


DIREITO ROMANO

Nesta primeira época, o Direito canónico tem lugar de relevo. Trata-se de um direito supra-
estatal porque se encontra num plano superior ao dos reinos ou áreas políticas. É o conjunto das
normas relativas à Igreja, isto é, é a adaptação, transformação e utilização do direito romano feita
pela Igreja.
“Cânone” significa norma ou regra que por sua vez se opõem às normas que são leis civis ou
seculares.
Na Idade Média, entendia-se que cânones eram decretos do Sumo Pontífice (Papa) e as
estatuições dos concílios. Para além de direito canónico, também se pode designar como direito
divino, direito pontífice, direito das decretais e direito eclesiástico.

Fontes do Direito canónico


As fontes do Direito canónico são os modos de formação – origem das normas (fontes essendi,
existendi, materiales – e revelação – conhecimento ou monumentos de que conta o direito (fonte
cognoscendi, notitiae, formales – do Direito canónico. Para além destas, existem também outras
fontes de Direito canónico, tais como:

• Sagradas escrituras – com o Antigo (preceitos cerimoniais – culto divino –, judiciais –


regulavam tudo quanto dizia respeito à responsabilidade civil e penal – e morais – destinados
a regular a moral, prendendo-se com aspetos de natureza ética) e o Novo Testamento
(preceitos de direito divino – constituíam a expressão direita da vontade de Deus, sendo
por isso obrigatórios, positivados nos Evangelhos –, divino-apostólico – resultavam do
desenvolvimento dos preceitos de direito divino, realizado pelos apóstolos – e apostólico –
prescritos pelos apóstolos ao longo da sua missão, constituindo o reflexo do poder legislativo
que todos os apóstolos também tinham).

• Tradição – é o conhecimento translatício, escrito ou oral, de um ato de autoridade. Pode ser


tradição inhesiva (matérias explícitas), tradição declarativa/interpretativa (matérias
implícitas) ou tradição constitutiva (nem implícita, nem explícita) – versada pelas Sagradas
Escrituras.
O Direito do Novo Testamento revelado pelas sagradas escrituras e pela tradição é a principal
fonte de direito da Igreja Católica.

• Costume – prática reiterada de um comportamento eclesiástico, acompanhada da convicção


de obrigatoriedade, que teve lugar importante nos tempos da Igreja primitiva para suprimir
lacunas na legislação (tinha de ser subordinado à razão, à fé e à verdade).
Critérios para comportamentos do costume
Antigos – pelo menos 10 ou 20 anos.
Racionais – tinham de ser entendíveis e compreensíveis pela razão humana.
Consensuais – não podia ser polémica, tendo de ser aceite por toda a comunidade.
Prescritos – tinham de ser aceites pelo pontífice máximo.

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No século XII, com o renascimento do Direito romano, o costume tinha de se articular com a lei
– Graciano rejeita o costume contra legem; os decretistas posteriores (Rufino) admitem-no se este
for admitido pelo Papa; alguns Sumo Pontífices acolhem-no se ele for prescrito e racional.
Consensualidade: aceitação da comunidade – também é requisito.
Contudo, o próprio Direito canónico também vai influenciar os direitos locais, o direito do
tempo em que se aplica. Temos de ter presentes duas realidades: o que origina o Direito canónico
e o que influencia o Direito dos povos medievais.

Figuras do Direito canónico que influenciam o Direito de cada um dos reinos

• Os cânones – em sentido amplo é toda a norma do Direito canónico; em sentido restrito, são
as determinações conciliares, isto é, são reuniões pelos membros do clero para resolver
decisões relativas à Igreja.
Os concílios são as assembleias religiosas, são reuniões do clero. Podiam ser à escala
universal, nacional ou regional. Os concílios tinham um grande poder, tendo alguns
declarado o poder concílio superior ao Papa. O Papa exerceu o seu poder legislativo só ou
em concílio ecuménico.

• Os decretos – conjunto de normas que o papa estatui por conselho dos seus cardiais, sem
consulta de ninguém, ou seja, é uma decisão unilateral, não havendo a interpelação do Papa.
Os juristas que estudam os decretos são os decretistas – intérpretes do Decretum Graciano
de 1140.
As decretais – conjunto de normas que o papa estatui por conselho dos seus cardiais, sozinho
ou com os seus cardiais, a consulta de alguém, ou seja, é uma interpelação feita ao Papa.
Os juristas que estudam as decretais são os decretalistas – intérpretes das Decretais de
Gregório IX.

• As concórdias – são acordos internos ou nacionais entre o poder político de um reino (rei) e
a Igreja desse mesmo reino (a Cúria Romana ou clero), que tentam definir os direitos e
deveres recíprocos das duas partes.
As concordatas – são acordos externos ou internacionais entre o rei e o Papa. Estas são
fontes do Direito canónico porque os acórdãos tinham como um dos interlocutores o Papa.
As concordatas mantêm-se até aos dias de hoje.

As fontes cognoscendi perduraram até ao século XII. Elas podem-se distinguir nas:

• Fontes de direito antigo – documentos onde as normas jurídico-canónicas estão plasmadas.


Tem uma coleção Diosiniana que surge por volta de 1510. Esta sofreu diversas alterações
depois de 754. Esta coleção Dionisiana passou a ser chamada de coleção Adriana. Mais tarde,
surgiu a coleção hispana – é uma compilação que foi chamada de coleção isidoriana. Abrange
cânones aprovados no concílio de Toledo.

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• Fontes de direito novo – são fontes que surgiram entre o séc. XII e XIV devido à necessidade
que os juristas sentiram de compilar o Direito canónico. A principal compilação foi o corpus
iuris canonici, que foi revogado devido ao Papa ter promulgado o atual codex. Esta obra é
composta por 9 livros:

- Decretum ou Concordia Discordantium Canonum, reunido por Graciano de 1140 – foi um


jurista que compilou um conjunto de cânones e perante aparentes discordâncias entre eles,
ele demonstrou que existia apenas coerência entre eles – originou um sistema jurídico
coerente. Os dicta eram pequenas anotações pessoais e dos seus discípulos, nas quais eles
identificavam os problemas e as propostas de solução.

- As Decretais, um conjunto de decretos pontifícios dos séculos XII e XIII, reunidas por
Gregório IX em 1234 e escritas em textos oficiais por S. Raimundo de Peñafort. O seu
objetivo era apenas compilar estas obras em 5 livros (cada livro retratava uma matéria
diferente):
➢ judex (continha as normas relativas à jurisdição hierárquica da igreja);
➢ judicium (continha as normas que abrangiam todo o processo canónico relativo a
matéria civil);
➢ clerus (continha as normas que davam corpo ao estatuto jurídico dos membros do clero);
➢ connubia (tratava da matéria dos esponsais e do casamento);
➢ crimen (continham as normas que diziam respeito ao direito e ao processo penais
canónicos).

- O Sexto ou Liber Sextus Decretalium de Bonifácio VIII, posteriores a 1298 – na génese


deste livro estava o objetivo de compilar as decretais que foram surgindo.

- As Clementinas de Clemente V, em 1313 – contém algumas decretais e os cânones que


foram aprovados no Consílio de Viena de 1311.

- As Estravagantes de João XXII – são compostas por duas coleções de Decretais do Papa
João XXII; e as extravagantes comuns são compostas pelas decretais que se seguiram à
morte deste Papa.

• A doutrina – opinião e obra científica dos juristas, com um papel importante depois da
aliança entre a lei canónica (lex canónica) e lei secular (lex mundana), devido ao renascer do
Direito romano no século XII – Utrumque Ius (o direito que é o tronco comum).

A partir da aliança entre o Direito canónico e o Direito romano, surge o Direito comum, sendo
os canonistas também civilistas.
A influência do Direito canónico no direito em geral apresenta-se como fundamental. Certas
zonas do jurídico receberam importante contributo da Igreja e do repetivo ordenamento – o
Direito da família, as obrigações, o Direito processual (com a racionalização da prova), a
ordenação laboral e o Direito penal com misericórdia e as relações internacionais com arbitragem.
Franz Wiaccker, apresentou o princípio da subsidiariedade, no qual se traduz a aplicação pelos
tribunais civis dos princípios gerais do Direito canónico.

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Penetração do Direito canónico na Península


O Direito canónico foi recebido na Península Ibérica antes da fundação da nacionalidade com D.
Afonso Henriques, que se vai preocupar em cumprir o seu desígnio de rei (a conquista).
D. Sancho I é o rei povoador e como tal, não se vai preocupar com a legislação.
Mais tarde, no reinado de D. Afonso II, a penetração do direito canónico era tal, que nas cortes
de 1211 houve a necessidade de hierarquiza-lo em relação ao direito monarca (do rei). A
ordenação estabeleceu a prevalência do direito canónico. Estamos então perante um
reconhecimento de supremacia eclesiástica, traduzida na superioridade das normas jurídicas
da Igreja sobre os vários monarcas.

D. Pedro I, contudo, pôs em vigor o beneplácito régio que determinaria que as leis e atos
autoritários da Igreja apenas seriam aplicáveis e obrigatórios no território nacional depois de
serem aprovados pelo rei. Ou seja, o beneplácito régio é o instituto através do qual os reis se
arrogam o direito de controlar a publicação das letras apostólicas no reino.
Nas Cortes de Elvas de 1361, o Clero apresenta queixa do beneplácito régio e o rei justifica-se
como sendo uma defesa contra as falsificações das letras. A autorização régia denomina-se Ato
ou Breve.
Em 1427, o beneplácito régio foi acolhido nas Ordenações Afonsinas, que por sua vez respondem
à reclamação de Igreja, afirmando que aquele não ia contra a liberdade da Igreja.
Há um anticlericalismo por parte da população e a existência de numerosas heresias (poesia
trovadoresca). Isto perdura até ao liberalismo, no século XIX.

A aplicação do Direito canónico nos tribunais

• Nos tribunais eclesiásticos – paralelamente à organização judiciária civil, existia uma


eclesiástica. Assim, o Direito canónico, para além de ser aplicado nos tribunais civis, era
também aplicado nos tribunais eclesiásticos, em função da matéria (algumas matérias tinham
competência exclusiva para os tribunais da Igreja – a heresia, o direito da família com
casamento e filiação, o direito das sucessões com o testamento), ou em função da pessoa
(certas pessoas só podiam ser julgadas pelos tribunais da Igreja – clero secular e regular, alunos
e professores universitários, órfãos e cruzados que também tinham um privilégio de fora mas
podiam renunciar e ir para tribunal civil).

• Nos tribunais civis – até 1211, o Direito canónico aplicava-se ou como fonte imediata ou
como fonte mediata (polémico). A doutrina maioritária entende que este Direito foi fonte de
direito imediata até 1446 (ordenações afonsinas). D. Afonso II, decidiu numa cúria de Coimbra
de 1211, que as suas leis não valiam se fossem feitas ou estabelecidas contra os direitos da
Santa Igreja de Roma.
Inicialmente, o Direito canónico era aplicado somente nos tribunais eclesiásticos. Contudo,
mais tarde, este vai ser aplicado nos tribunais eclesiásticos e civis portugueses, tendo em especial
atenção o critério do pecado – quando se julgasse um caso concreto e não existisse direito
nacional para legislar, verificava-se qual dos dos direitos (direito romano ou direito canónico)
é que se adequa ao caso concreto. Normalmente o direito canónico tem um carácter preferencial
em matérias espirituais e o direito romano tem um carácter preferencial em matérias temporais.

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Margarida Gonçalves

CAPÍTULO III – IUS REGNI


DIREITO PRUDENCIAL

No séc. V, existe uma divisão do Império romano em duas partes: o Império do Oriente (com
capital de Bizâncio) e o Império do Ocidente (com capital de Roma). Esta divisão origina duas
ordens jurídicas diferentes:

• Parte oriental do Império – o desenvolvimento do direito romano processa-se em


conformidade com altos padrões de técnica jurídica, que culmina no séc. VI com uma obra
legislativa do imperador Justiniano, o corpus iuris civilis.
• Parte ocidental do Império – vulgarização vai sempre aumentando, caindo definitivamente
com a queda de Roma.

Renascimento do Direito romano


Redescobre-se em Itália o Direito justinianeu, reformulando-se o corpus iuris civilis. Irnério criou
uma divisão do Digesto em três partes e reformulou o Código:
❖ Digesto velho – corresponde aos livros 1 até ao 23 e os primeiros três títulos do 24;
❖ Esforçado – corresponde aos livros 24 até ao 38;
❖ Digesto novo – corresponde aos livros 39 até ao 50.
❖ Codex – os primeiros 9 livros do Código justinianeu.
❖ Os 3 últimos livros do Código Justinianeu (tres libri) integram-se no volume parvum ou
pequeno – composto globalmente pelas Instituições de Justiniano, uma coleção de novelas
(Authenticum) e o Livro dos Feudos (libri feudorum).

As escolas jurisprudenciais na Idade Média

• Escola dos glosadores


Esta escola iniciou-se no séc. XII com Irnério e terminou com Acúrsio – elaborou uma obra
(Magna Glosa ou Glosa ordinária), na qual vai compilar ais de 96.000 glosas sem contradições
entre elas, apresentadas de uma forma lógica.
Nesta escola adota-se uma nova metodologia – a utilização das glosas.
A glosa é uma explicação singular de termos, conceitos ou passos de um determinado texto.
Tradicionalmente, dividia-se as glosas em glosas interlineares (entre as linhas) e marginais (nas
margens). Elas tinham como função chamar a atenção para a riqueza e variedade dos aspetos
contidos na literatura, explicar o sentido de palavras, frases ou passagens do texto latino.
Contudo, não podemos afirmar que o glosador é um mero tradutor que se cinge à letra dos textos.
O glosador interpreta o Direito através de um método lógico-dialético e retórico.

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• Escola dos comentadores


Inicia-se com a obra de Jacques de Révigny e Pierre de Bélaperche, atingindo o apogeu no séc.
XIV e tendo entrado em declínio com críticas humanistas no séc. XV/XVI. Mas o principal nome
dos comentadores é Bártolo de Sassoferrato, considerado o maior jurista de todos os tempos.
Bártolo teve um discípulo que era Baldo de Ubaldis.
Os comentadores têm um papel essencial na interpretação do Direito romano. Procuram o espírito
do texto romano, o sentido teleológico e utilizam-nos para contruir os direitos próprios de cada
país (iura propria). No fundo, os comentadores estudavam o direito romano e os direitos locais.
O comentário é uma visão sintética de um instituto feita sobre uma base lógica. É uma índole
extensamente discursiva do comentário, tem independência formal face à ordem dos textos
romanos e conjuga preceitos justinianeus com outras ordens jurídicas (direito canónico, feudal e
direitos locais). Ou seja, o comentário consiste numa longa exposição que visa, através do direito
romano, construir o direito nacional.

Não é suficiente estabelecer-se uma distinção entre as glosas – letra das normas – e os
comentários – sentido dado pelo método escolástico, versando sobre institutos concretos.

Os géneros literários nas escolas jurisprudenciais


Para além das glosas e dos comentários é importante referir a quaestio.
A quaestio é uma forma dialogada que utiliza o princípio do contradicto como instrumento de
apuramento da verdade. Ou seja, é a a utilização do discurso e da contradição para compreender
o direito. É o método do jurista medieval para dar uma aula ou defender uma tese.
Existem vários tipos de quaestio:

• Quaestio disputata – o mestre desafiava a turma, apresentando um tema, enunciava dois


interlocutores – o autor e o réu – e atribuía-lhes duas teses (que eram contraditórias) para eles
defenderem. O mestre decidia autoritariamente quem ganhava – determinatio
(conclusão/decisão).

• Quaestio quodlibética – é um desafio feito ao mestre.

• Quaestio reportata – era um registo escrito feito por um aluno, o reportator da quaestio
disputata. Para que isso ocorra, existe um esquema que deve ser seguido:
1. Enunciação dos factos seguidos;
2. Resolução dos factos através de:
a. fazer perguntas;
b. duvidar das respostas;
c. debater o problema;
d. criar os argumentos para responder às questões;
3. Exposição dos argumentos;
4. Resolução e conclusões.

• Quaestio redacta – utilização do método da quaestio feita pelo mestre, por escrito, para
entregar aos seus alunos.

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Ars inveniendi
O ars inveniendi corresponde ao raciocínio dos juristas medievais. Eles aproximam-se da lei para
determinar os preceitos, vendo nestes algo de imediato, a apreender individualmente, sem ter em
consideração a globalidade do ordenamento jurídico (o ponto de partida é a norma concreta). Os
processos de correlação das normas produzem apenas expedientes da individualização dos
comandos.
Eles utilizam o raciocínio/método analítico-problemático que consiste em:

• Partir de um caso concreto;


• Procuram soluções para esse mesmo caso, analisando textos jurídicos;
• Elegem a norma que mais se adequa ao caso;
• Encaixam a situação de facto na norma, baseando-se na justiça.
O raciocínio do jurista medieval parte do caso para a solução justa, só depois é que a fundamenta
e argumenta. Por isso é que o pensamento jurídico medieval se baseia nos argumentos (cada
jurista pode ter vários argumentos para defender a situação que ELE considera mais justa).

Elementos da ars inveniendi

• Leges – são textos escritos (argumentos escritos em forma de lei ou letra) que podem ajudar o
jurista a construir o seu raciocínio.
• Rationes – fase da problematização em que se procuram os argumentos não literais, não
escritos. O jurista baseia-se neles para construir o seu raciocínio. É o elemento da lógica que
permite que o exercício do raciocínio seja coerente.
a) Tópica/topoi (mudar) – arte de procurar elementos lógicos necessários à fundamentação
coerente dos argumentos.
Tópica material – representa a reunião de máximas de carácter percetivo.
Tópica formal – constitui um procedimento de descoberta de permissas dialético-
retóricas. São vazios ou materiais adequados aos casos concretos.
b) Retórica – essencial para a persuasão. É com ela que se convence a parte contrária,
juntamente com os argumentos.
c) Dialética – arte da discussão, através da qual se organiza o raciocínio e se percebe se
existe ou não coerência.
• Aventoritates

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CAPÍTULO III – IUS REGNI


DIREITO LEGISLADO
Direito visigótico
Após várias guerras, os visigóticos ficaram na Península Ibérica até à Reconquista Moura.
Os visigóticos ocuparam o espaço dos romanos, tendo adotado as tradições e utilizado as
instituições romanas que circulava na Península Ibérica. Mais do que adotar o direito romano,
eles vão transformá-lo, adaptá-lo e moldá-lo às suas situações – podemos então afirmar que o
direito romano aplicado nos povos visigóticos é um direito romano vulgar, que tem uma influência
destes povos.
Os visigóticos vão apresentar 4 códigos:

• Código de Eurico ou Codex Euricianus – redigido em 476 por juristas romanos, atribuído ao
rei Eurico, do qual apenas se conhece um único fragmento (Palimpsesto de Corbie). A sua
temática abrangia o direito romano vulgar, ou seja, uma mistura entre o direito romano e o
direito visigótico.
Entende-se que o âmbito de aplicação deste código era de aplicação territorial (Garcia Gallo).
Contudo, Eishhorn vem colocar em causa o princípio da aplicação territorial. Este trabalho foi
continuado por Zeumer. Segundo estes dois autores, existiam códigos para germânicos e
códigos para hispânico-germânicos.

• Lex Romana Visigothorum ou Breviário de Alarico – promulgado em 506, tendo como


fontes as constituições imperiais retiradas dos códigos de Teodosiano, Hermogeniano e
Gregoriano e novelas de vários imperadores, bem como escritos de juristas romanos. Contém
direito romano.
Aplicação territorial (Garcia Gallo) ou somente aos romanos (Eishhorn e Zeumer).

• Lei de Teudish – objetivo de disciplinar e resolver alguns problemas de abusos que estavam
a ocorrer no âmbito da administração da justiça. Este diploma tem aplicação territorial.

• Código de Leovigildo ou Codex Revisus Leovigildianus – escrito entre 572 e 586. Ele
ordenou uma revisão do código de Eurico. Hoje desaparecido devido ao rei Leovigildo.
Contém direito visigótico e direito romano vulgar. Este tem aplicação apenas aos visigodos.

• Código visigótico – foi publicado em 654 pelo rei Recesvindo e com a aprovação do VIII
Concílio de Toledo (633). Este código representa o terminus da evolução legislativa do reino
visigodo. Ele tinha um âmbito de aplicação territorial.

Garcia Gallo põe em causa a teoria personalista, defendendo o princípio da territorialidade.


Para além disso, utiliza um argumento, o ex silencio – em nenhum escrito que chegou até hoje
não se consegue extrair a dualidade da aplicação dos códigos. Então e nas relações jurídicas entre
uma parte da parte hispânico-germânica e a outra parte romana, quem julgava? Por último refere
a lei de teudish, que instituiu uma aplicação territorial.
O professor Paulo Mereia afirma que isso não ocorre porque defende que o Breviário de
Alarico não era um código, mas uma mera compilação de cariz subsidiário que era utilizado
somente quando o direito romano era invocado ou aplicado.

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Direito castelhano
As sete partidas são inspiradas no direito romano justinianeu e contém matéria referente ao
costume local dos castelhanos e a herança visigótica. No reinado de D. Dinis, este foi aplicado
em Portugal.
Para além destes monumentos, existem outras compilações jurídicas castelhanas que não tiveram
grandes aplicações em Portugal, sendo elas:

• Suma ou Flores de Derecho


• Suma ou Flores de las Leyes
• Nueve Tiempos del Juicio
• Lo ultimo fuero real

COSTUME E DIREITO JUDICIAL


Costume
No período medievo, o costume é a fonte de direito mais importante. Traduz-se numa repetição
habitual de uma conduta havida por juridicamente relevante, ou seja, numa prática reiterada pela
sociedade, acompanhada de convicção de obrigatoriedade.
O costume constitui a génese dos direitos nacionais porque muito do Direito que vai ser
“construído” ao longo do tempo tem origem na comunidade. Este não pode pôr em causa o direito
divino nem o direito natural, sob pena de ele se autoestruturar. O costume tem de ser percetível e
devidamente reiterado, não bastando apenas um ato ou uma prática – é necessária a repetição dos
atos para a comunidade entender que eles são essenciais para a regular.
As causas do prestígio do direito consuetudinário são:

• O facto de na sociedade da Reconquista existir uma insuficiência do direito legislado, pois


não havia um aparelho de autoridade, administrativo e burocrático desenvolvido.
• Traduz o sentimento comum do meio social – o costume resulta de uma prática confirmada
e criada espontaneamente pelos membros da sociedade.
• Como o costume é, na sua origem um processo de formação jurídica oral, era preciso prová-
lo. Para evitar certezas, fixá-lo por escrito – contudo, assim deixava de ser costume.

Os requisitos do costume são:


1. A repetição do ato – Acúrsio (glosadores) e Baldo (comentadores) dizem que tem de haver a
repetição em dois atos.

2. Tem de ser antigo e prescrito – Azão e Acúrsio (glosadores) dizem que a antiguidade deve
ser de 10 ou 20 anos contra presentes ou ausentes. Ou seja, são 10 anos se os membros da
comunidade de origem vão repetindo um comportamento. Se quem deu origem ao costume
nessa mesma sociedade morrer, os seus descendentes mantêm esse costume vivo por 20 anos.
João André e Panormitano dizem que a antiguidade é de 10 anos porque a comunidade está
sempre presente – a comunidade são todos os membros, não são apenas determinados
indivíduos.

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3. Racionalidade – a conformidade do costume com a razão.

4. Consenso da comunidade ou consensos communitatis – S. Raimundo dizia que é o povo


quem introduz o costume, pelo que se requer o consentimento da maioria. O consensos populi
obriga ao conhecimento do costume que, por vezes, é publicado, tal como a lei.

5. Consenso do legislador – com os decretalistas requer-se o consenso do legislador, que


pressupõe o conhecimento consciente do costume e a aprovação voluntária do mesmo, exceto
se o costume for legitimamente prescrito.
O consenso da comunidade e o consenso do legislador podiam coincidir quando a comunidade
tivesse a potestas legis condendae. Ou seja, adotou-se a ideia da conjugação de um consenso entre
a comunidade e o comportamento da legislação, entendendo-se então que o costume pode
completar a lei – pode ser secundum legem, praeter legem –, MAS não pode contraditar a lei –
não pode ser contra legem.

6. O costume tinha de ser ajustado à lei de Deus, ao direito natural e à utilidade pública.
Se a lei que é elaborada por quem tem capacidade legislativa naquele momento, mas esta não é
reconhecida pela comunidade, ela entra em desuso. Para que a lei não entre em desuso, é
necessário que a comunidade a entenda, devendo então criar uma lei na sequência dos próprios
costumes.

Construção política da Idade Média – problema do poder temporal


Todo o poder vem de Deus, mas para quem?

• Teoria hierocráticas – defendem que o poder vem de Deus para o Papa, assumindo este o
poder temporal, competindo-lhe delegar ou avocar nos vários senhores temporais.
DEUS > PAPA > REX

• Teses anti-hierocráticas – não há mediação entre Deus e o Imperador/rex. O Papa não tem
nenhuma intervenção no poder temporal.
DEUS > IMPERADOR/REX

• Media via domista (tese de S. Tomás de Aquino) – o poder que vem de Deus não é nem para
o Papa, nem para o Imperador/rex, mas sim para a comunidade. Isto não significa que, em
algumas circunstâncias, não pudesse haver uma intervenção do Papa no poder se o
Imperador/rex afrontasse diretamente o poder da igreja.
DEUS > COMUNIDADE > REX
Estas teses foram todas importadas de França para Portugal, mas não tiveram grande aplicação.
Contudo, houve uma que teve especial importância – a rex est imperator in regna sua – que
defende que o rei é senhor no seu reino, ou seja, o rei não está dependente politicamente do Papa,
a não ser por questões espirituais.
Até pode estar dependente da comunidade, mas se assim o for, a comunidade concede ao rei
português o poder para ser rei do seu reino – fá-lo através da figura do pactum subjectiones ou
pactum constitucionem (a conceção da sociedade ao chefe dos poderes e deveres pelos quais é
responsável).

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Ou seja, na génese, o poder pertence a todos, havendo uma total partilha do poder na comunidade.
Depois a comunidade vai escolher o chefe para se defender, organizar, para ser reconhecido, para
ser o líder. No momento em que o chefe é escolhido, ele vai assumir direitos que eram da
comunidade e esta vai exigir respeito e deveres por parte do chefe.
A partir desta construção e deste princípio, os reis peninsulares vão-se tornar verdadeiros
imperadores – veros imperator.

D. Afonso II é o primeiro rei legislador. Ele vai fazer uma assembleia (Concílio de 1211)
onde reúne os seus senhores e aprova um pacote legislativo com uma linguagem apropriada – leis
de cúria de 1211.
D. Afonso II quer organizar o seu território e legislar sobre questões controvertidas. Uma das
normas é a relação entre o direito do reino e o direito da Igreja (o direito do reino vai
preponderar em muitos casos, exceto se este puder em causa o direito da Igreja, o direito divino).
Existe um limite à própria lei – a lei tem de respeitar o direito divino e o direito natural.

A lei vale porque é feita pelo rei. Mas como é que a comunidade conhece e sabe que a lei foi
elaborada? A divulgação da lei é feita na própria curia, era afixada em praça pública e era lida
em todos os locais do reino – quanto maior é a importância da lei, maior é a frequência com que
esta é lida. A lei tem de ser racional, ou seja, tem de ser coerente.

A partir de D. Afonso III e de D. Dinis existe um crescimento da elaboração legislativa,


por força da introdução e aplicação generalizada em Portugal, ao nível régio, do direito romano.
Afonso III vai trazer de Bolonha a prática do conhecimento do direito romano.
D. Dinis, ao criar os estudos gerais, nos quais vai ser aplicado o direito romano e o direito
canónico, vai criar um conjunto de legistas e canonistas que vão ficar ao serviço do rei na
elaboração legislativa ou na aplicação do direito.
A partir de uma lei de 1349 vai-se fixar o princípio da irretroatividade da lei.

Direito judicial
O direito judicial corresponde a um setor jurídico-normativo emergente da atividade dos
tribunais, enquanto definem os casos concretos em que se pronunciam.
O professor Guilherme Braga da Cruz afirma que no 1º período da monarquia, as sentenças
judiciais não eram fontes jurídicas autónomas. Apesar das sentenças pesarem no estabelecimento
de correntes jurisprudenciais, elas eram tidas como uma definição autorizada de costumes
anteriormente vigentes e não como um modo autónomo de criar direito novo. Elas pertenciam
ao conceito amplo de costume.
Mas as decisões judiciais são um elemento dispensável para o estabelecimento de um direito
consuetudinário atendendo a que a norma jurídica só existe quando se efetiva pelo aparelho
coerção?

• Como a regra é o acatamento espontâneo e voluntário do preceito jurídico sem intervenção


nas estruturas com poder, não é necessário que os tribunais criem os princípios em que se
traduzem o costume; limita-se a declará-los e a registá-los como fundamento da sua decisão.

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• As decisões judiciais podem ser uma função criadora do direito quando estabelecem um
precedente. E, apesar desses precedentes virem nas fontes qualificadas dos costumes,
também vêm de estabelecimento, julgamento ou lei.

Podemos falar de:


1. Estilos – o costume judicial autonomizar-se-á conceptualmente, assumindo o nome de estilo.
Segundo Cino de Pistóia, o estilo era uma espécie de direito não escrito, introduzido pelo uso de
determinado pretório, diferindo do costume pelo facto deste se identificar com a conduta da
comunidade e o estilo se identificar com a prática de um tribunal (juízo).
Houve várias posições divergentes no que toca ao âmbito ou à sai extensão, mas todas tinham um
ponto comum – a consideração do estilo como costume judiciário.

A doutrina disputou sobre os requisitos e atributos dos estilos, nomeadamente acerca do nº de


atos necessários para se poder ter por consagrado, da qualidade e poderes do agente e da eficácia
obrigatória.
Quem não tivesse faculdade ou poder legislativo poderia consagrar um estilo? Qualquer
estilo poderia dispor em contrário de uma lei?

• Estilo da corte – criado pelo tribunal da corte (superior do reino), é o único que é fonte
imediata de direito.
• As cláusulas derrogatórias da eficácia do estilo perante a declaração do rei, evidencia a
apetência do estilo para valer contra o poder normativo dos monarcas.

2. Alvidros – corresponde à faculdade da justiça (juiz) para integrar uma lacuna ou criar uma
norma para suprir o defeito de um estatuto (isto não significa atuação ilimitada, mas decisão
por valores como o costume ou a equidade).
Em Portugal, os alvidros eram juízes livremente escolhidos pelas partes, os quais deviam julgar
nos termos dos poderes por elas conferidos. De tais juízes apelava-se para os sobrejuízes. As
sentenças dos juízes alvidros eram suscetíveis de ser utilizadas em composições.

3. Façanhas – a palavra façanha designa uma ação heroica, singular, assinalada, fora do comum.
No campo da história do direito, existem opiniões divergentes acerca do alcance das façanhas:
Até José Anastásio de Figueiredo, façanha significava:
a) Um juízo sobre ação notável que fica como padrão normativo para o futuro, por virtude da
autoridade de quem o praticou ou aprovou;
b) Uma opinião altercada ou controvertida;
c) A própria ação de que decorre o juízo.

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José Anastásio de Figueiredo sustentou que as façanhas eram sentenças que valiam não só para
o respetivo processo onde eram pronunciadas, mas para todos os semelhantes por serem decisões
régias e por se tratar de casos duvidosos ou omissos na legislação pátria. Defende ainda que só as
façanhas de natureza régia têm autoridade para servir de lei geral.
Ruy de Albuquerque defende que, apesar das partidas limitarem as façanhas à competência
régia, isso não impede que anteriormente as façanhas derivassem de outras pessoas que não
o monarca, embora sem carácter vinculativo.

DIREITO LOCAL: OUTORGADO E PACTUADO

Direito local
O direito local era o conjunto de normas, por vezes insipientes e lacunares, que regiam a vida nas
pequenas comunidades e povoações, compensando a escassez de leis gerais.
A respeito do direito local, os autores falam em:

• Direito outorgado – resulta da outorga ou da concessão de normas através de um ato oficial.


• Direito pactuado – resultava de um acordo entre duas partes. Neste acordo nasciam direitos
e deveres recíprocos (acordos, contratos e pactos).

Cartas de privilégio
Em sentido amplo, são documentos que atribuem prerrogativa, liberdades, franquias e isenções
de qualquer ordem. Em sentido estrito, são documentos que têm como denominador comum
traçarem um regime jurídico específico para certo território ou comunidade.
Elas têm uma enorme variedade, contendo por exemplo, a carta de liberdade de uma população,
a carta de doação, a carta de franquia, entre outras.
As cartas de privilégio contêm as cartas de povoação, os forais e os foros.

1. Cartas de povoação
Estas eram documentos muito rudimentares que se estruturavam como contratos coletivos
agrários e que pretendiam fomentar o povoamento das terras recém-conquistadas ou das terras
sem ninguém, visando atrair habitantes e mão de obra para rentabilizar essas terras.
Para este efeito, o rei que fosse proprietário destas terras, estabelecia as regras que continham as
condições e os termos em que se deveria processar a ocupação e a exploração das terras.
Estas cartas podem ser consideradas elementos do direito outorgado, por se tratarem de um ato
oficial, ou do direito pactuado, no sentido de serem contratos coletivos agrários – as pessoas
interessadas em habitar determinadas terras, tinham a possibilidade de concordar ou não com os
termos do contrato.
Ruy de Albuquerque defende que, apesar da carta de povoação ser um ato unilateral com
raro carácter de pacto, de conter regras para o futuro e regras que entram no domínio da disciplina
senhoria, isso não obsta que sejam de natureza contratual – têm então um carácter
simultaneamente dos contratos de adesão e dos contratos normativos.

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2. Forais
Os forais eram, por excelência, o exemplo acabado das cartas de privilégio. Dentro destas cartas
de privilégio temos o:

• Foral régio – documentos concedidos pelo rei.


• Foral particular – documentos concedidos por um senhor eclesiástico ou nobre.
Estes documentos eram concedidos a determinada terra, contendo normas do direito público que
disciplinavam as relações dos habitantes entre si e as relações entre os habitantes e a entidade
outorgante.
Assim, o foral era um documento do direito outorgado porque era concedido pelo rei ou por um
senhor eclesiástico – era um ato unilateral de vontade que concedia regras para uma localidade
específica, beneficiando cada uma delas de forma diferente.

3. Foros, costumes ou estatutos municipais


Os foros distinguem-se dos forais pela sua extensão (contêm um acervo de normas muito superior
em quantidade aos forais).
Os estatutos inserem-se num maior número de disposições do direito privado. Surgem mais
tardiamente, no final do séc. XIII compilações de estatutos.
Houve um escasso número de foros encontrados no nosso território.

VOLUME II – RUY E MARTIM DE ALBUQUERQUE


Ordenações Afonsinas

As ordenações afonsinas começam a ser elaboradas no reinado de D. João I por João Mendes.
João Mendes morre no reinado de D. Duarte e a coordenação desta obra é entregue ao doutor Rui
Fernandes – que inicia então a compilação desta obra no reinado de D. Duarte.
A obra foi concluída em 1446, no reinado de D. Pedro.
Torna-se difícil de determinar qual a redação de João Mendes e qual a de Rui Fernandes. Pensa-
se que João Mendes ficou responsável pela redação do livro I pelo estilo direto e decretório (há
uma formulação direta das normas, sem referência a fontes anteriores) e que Rui Fernandes ficou
com os restantes livros, adotando um estilo compilatório (há uma compulação das normas
existentes; caracteriza-se pela transcrição integral das fontes anteriores, seguidas de uma
especificação quanto à sua vigência, alteração e revogação).

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As ordenações afonsinas estão divididas em cinco livros:


1. Ocupa-se dos cargos públicos.
2. No que concerne à Igreja, ao clero, aos direitos do rei, ao fisco, às donatarias, à nobreza, aos
judeus e aos mouros.
3. Processo civil.
4. Direito civil.
5. Direito penal.

Antes das Ordenações Afonsinas, nós conhecemos duas outras compilações:

• O livro das leis e das posturas – constam normas e preceitos de D. Afonso II, D. Afonso
III, D. Dinis e D. Afonso IV, para além de uma lei que lhe foi aditada pelo Infante D. Pedro.
Esta obra não tem qualquer carácter sistemático. Alguns autores dizem que este pode ter sido
um dos trabalhos preparatórios das ordenações afonsinas.
• Ordenações de D. Duarte – compreendem leis que vão desde D. Afonso II até D. Duarte.
Contudo, estas não tinham um punho oficial, uma vez que não tinham a chancela do rei.

As ordenações afonsinas versam o problema das fontes de direito. Existiam as:

• Fontes imediatas
− A Lei do Reino;
− Os Estilos da Corte;
− O Costume Antigo.

• Fontes imediatas
− O Direito Canónico: aplica-se nos casos temporais, exceto se em temporais de pecado.
− O Direito Romano: aplica-se em matéria espiritual e temporal de pecado; Não podia
contradizer as Glosas e os Doutores das leis (era remetido para a resolução do rei).
− A Glosa de Acúrsio;
− Os Comentários de Bártolo;
− As Resoluções Régias.
O artigo vai mostrar as fontes primárias e as fontes subsidiarias.
As fontes primárias aplicam-se em casos resolvidos em tribunal: a lei do reino, o estilo da corte
e o costume antigo. Quando algum caso for determinado pela lei do reino, esse caso tem de ser
julgado pelo rei, independentemente de as leis imperiais serem de outra forma. Da forma que o
rei disponha, cessam todas as outras leis – isto constitui uma centralização do poder político. A
realidade do rei vale sobre todos os outros direitos.

Se compararmos as leis de Afonso II e as ordenações Afonsinas, há um crescimento do poder


legislativo. Temos a viragem do século XIV para o século XV. É um caminho lento e paulatino,
mas que demonstra a solução do rei.
Na falta da lei do reino, vamos verificar se há estilo da corte. Na falta de estilo da corte, vamos
verificar se há um costume antigo (que já tem decurso do prazo) – desde que estejamos em
matéria adjetiva porque normalmente a corte não faz matéria substantiva, faz em matéria adjetiva
(processual).

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E quando a lei do rei, o costume e estilo nada disserem? Aplica-se o direito romano ou o direito
canónico.
O direito romano é aplicado em questões temporais.
O direito canónico é aplicado em questões espirituais, mas também em questões temporais que
originem um pecado, mesmo que o direito romano seja contrário ao direito canónico. Numa
questão temporal, se a aplicação do direito romano não der origem a pecado, aplica-se o direito
romano.
Exemplos
O direito romano prescreve que se pode adquirir uso de propriedade por 30 anos seguidos,
manifestando-se como proprietário. Se a posse for de má fé, se aplicarmos o direito romano,
vamos atribuí-la pelo decurso do tempo, mesmo que haja má fé. Se se aplicar o direito canónico,
não se pode atribuir a terra uma vez que há matéria do pecado. Então aplica-se o direito romano,
de forma a ser conivente com o pecado.

O direito canónico proíbe os juros, sendo que só os judeus e os mouros os podiam cobrar. Assim,
num contrato entre cristãos, nenhuma das partes pode exigir juros a outra. Isto é uma questão
temporal. Se se aplicar o direito romano, vai-se permitir que o credor exija juros. Mas o direito
canónico não permite uma vez que se está a utilizar a fragilidade do outro. A aplicação do direito
romano neste caso era escolher o mal.

Assim, na omissão do direito nacional, decide-se conjuntamente pelo direito canónico e direito
romano. Se se tratar de uma questão temporal, aplica-se o direito romano. Contudo, se essa
decisão originar um pecado ou se for uma questão espiritual, então aplica-se o direito canónico.
Se o caso de que se trata não for regulado por todas estas fontes, aplica-se as glosas de Acúrsio
e se estas nada resolverem, os comentários de Bártolo. Se mesmo assim, isto não desencadear
nenhuma solução, o caso não fica por julgar; o juiz remete o caso ao rei e este dá a sua opinião –
resolução régia.

Segundo o professor Duarte Nogueira, quando estamos perante questões temporais, na ausência
do direito romano, deve aplicar-se a Glosa de Acúrsio e a opinião de Bártolo.

As fontes destas ordenações eram insuficientes, uma vez que:


a) Não existia Direito foraleiro;
b) Aflora de forma indireta e apenas implícita o Direito prudencial.

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Ordenações Manuelinas

As ordenações manuelinas vão revogar as ordenações afonsinas.


A invenção da imprensa permitiu a comunicação das leis de extraordinária importância. Por esse
motivo e pelo facto de se sentir a necessidade de proceder a uma revisão da compilação afonsina,
D. Manuel decide atualizar o texto afonsino.
Em 1505, D. Manuel confiou a vários jurisconsultos este trabalho.
O primeiro livro é impresso em 1512 e o segundo livro em 1513. Em 1514 foram estampados por
João Pedro de Bonhomini os 5 livros.
D. Manuel ordenou uma revisão definitiva e elaboração das ordenações manuelinas, que foram
impressas em 1521.
Estas ordenações foram elaboradas por vários juristas: Dr. Rui Boto, Rui da Grã e Cristóvão
Esteves, indicando-se como colaboradores os Drs. João de Faria, João Cotrim e Pedro Jorge.

Sistematização das ordenações manuelinas


A divisão interna das ordenações manuelinas é idêntica à das ordenações afonsinas.
A principal diferença de forma é o estilo decretório ou legislativo destas ordenações e,
relativamente ao conteúdo, retirou-se a matéria que respeita aos judeus, devido à sua expulsão.
Relativamente às fontes de direito nas ordenações manuelinas, estas são:

• Fontes imediatas:
− Lei do reino;
− Estilos da corte;
− Costume.

• Fontes subsidiárias ou mediatas:


− Direito romano;
− Direito canónico;
− Opinião Comum dos doutores: aqueles que surgiram depois de Bártolo e Acúrsio;
− Glosa de Acúrsio;
− Opinião de Bártolo.
Deixamos de fazer distinção entre matérias de teor espiritual e de natureza temporal, não se
aplicando o critério do pecado. Relativamente às duas obras que se seguem as ordenações – glosa
de Acúrsio e comentário de Bártolo – passou a existir um crivo – a opinião comum dos
doutores. A maioria da doutrina entende que esta não era fonte de direito.
A opinião comum dos doutores é a opinião dos juristas. Mas como aferir esta opinião?
1. Critério quantitativo – aquela que recolhia maior número de doutores a favor.
2. Critério qualitativo – consideravam redutor atender ao número de defensores, pelo que se
devia considerar o prestígio dos autores.
3. Critério misto – atendia-se ao número de doutores e simultaneamente ao prestígio de cada
um deles.

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Margarida Gonçalves

Se se chegasse à conclusão de que a maioria dos juristas concordavam com Acúrsio, então
aplicava-se a glosa de Acúrsio (e o mesmo com os comentários de Bártolo).
Assim sendo, a opinião comum dos doutores não é uma fonte de direito stricto sensu, mas é
apenas uma maneira de decidir qual das fontes se deveria aplicar – a glosa de Acúrsio ou o
comentário de Bártolo.

Ordenações Filipinas

Durante o reinado de D. Filipe I, verificou-se uma larga atividade renovadora no campo do


Direito.
As ordenações filipinas entram em vigência em 1603, no reinado de D. Filipe II. A orgânica da
obra é a mesma, também estão dividas em 5 livros com as mesmas matérias.
Estas ordenações têm uma maior diligência em Portugal e vão durar até ao séx. XIX.
Os juristas do séc. XVII encontraram muitos erros, gralhas e conceitos mal definidos. Utilizou-se
a expressão filipismos – forma depreciativa de demonstrar os erros que as ordenações tinham.
As suas fontes de direito prevalecem iguais às das ordenações manuelinas, com uma exceção
substancial: a matéria das fontes de direito sai do livro II para entrar no livro do processo civil.
Vai existir a aplicação das escolas dos glosadores e dos comentadores até 1772, data da reforma
dos estudos de Marquês de Pombal.

Humanismo e as críticas feitas às fontes de direito no séc. XVI

O séc. XVI é um século de mudança. Há um renascimento da cultura greco-romana, da tradição


clássica nas diversas áreas do conhecimento.
Nesta época, as escolas dos glosadores e comentadores vão ser criticadas:

• Ausência de um pensamento filiológico (pensamento que não analisa a letra nem o texto
escrito): os juristas da Idade-Média julgavam estar a ensinar e a aplicar o direito romano.
Contudo, eles limitavam-se a construir soluções jurídicas e a ensinar algo baseado em textos
legais adulterados por esses medievais – era um direito formado de glosas a glosas. Os
juristas não iam às fontes de direito.

A grande proposta dos grandes juristas consiste em retomar o estudo dos textos clássicos
do direito romano e procurar as soluções jurídicas, não as interpretações das escolas do
direito medieval.

• O direito justinianeu que se aplicava, não era ele mesmo, o verdadeiro direito romano que se
aplicava em Roma – não era um direito romano clássico –, devendo os juristas ir à génese
para encontrarem as suas soluções.
Assim sendo, os humanistas defendem o retorno, sempre que possível, ao pensamento e aos
textos jurídicos da época clássica. Quando isso não for possível, lê-se o código justinianeu, mas
sem os intérpretes glosadores e sem os comentários dos comentadores.

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Margarida Gonçalves

Escola dos mos gallieus vs escola dos mos itallieus

Escola dos mos gallieus ou Escola Alciateia – esta escola humanista surge em França e defende
o retorno à palavra base, à filiologia.
Esta escola opõe-se à escola dos mos itallieus – direito baseado no pensamento da opinião comum
de Bártolo, que surgiu em Itália. Esta escola da neoescolástica pretende preservar o direito das
tradições medievais, mantendo o direito centrado na controvérsia, na ideia da quaestio. Os
juristas desta escola olhavam o direito como ciência da argumentação e da opinião comum
(para dar autoridade e credibilidade aos argumentos).

O humanismo, no campo jurídico, não teve uma grande expressão em Portugal, uma vez que:

• Alguns humanistas estudaram fora de Portugal e não voltaram, tendo desenvolvido esta
corrente em França (Henrique Caiado e Luís Álvares);
• Outros, quando voltaram a Portugal, perderam todas as ilusões filiológicas, humanistas e
racionalistas (Luís Teixeira);
• Outros como Martim Figueiredo, vieram para Portugal e depois abandonaram o direito,
acabando por perder a ligação ao humanismo.

Apesar de haver juristas portugueses, o seu pensamento não fez eco em Portugal, muito pelo
contrário. Em Portugal, vamos manter a tradição jurídica medieval até ao tempo do Marquês de
Pombal.

• A glosa de Acúrcio e o comentário de Bártolo vão-se manter como fonte de direito


subsidiário nas ordenações filipinas.
• O ensino do Direito vai definitivamente para Coimbra, ensinando o direito de acordo com o
método medieval e do argumento. Não vai haver uma transformação do direito em Portugal,
continuando a aplicar-se o ars inveniendi.

Mais tarde, surgiram livros práticos (livros de fórmulas, ou seja, minutas) que supriram a lacuna
do ensino do Direito. Este trabalho dos praxistas (praxe) é essencial para se aplicar o Direito no
dia-a-dia.
As ordenações manuelinas nem as ordenações filipinas concordam com o modelo humanista,
defendendo o comentário de Bártolo.

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Margarida Gonçalves

Institutos
Direito da família
Antes de se falar no conceito de família e de casamento, deve-se referir o noivado, que nesta
altura se denominava como esponsal.
Os esponsais permitem dividir dois tipos de famílias:

• Famílias agnatícias – são aquelas cujas relações entre os familiares se faz pelo poder paternal,
pelo que pode há membros da família que não têm ligação sanguínea. P.E: relações tribais.

• Famílias cognatícias – são aquelas que têm ligação sanguínea entre os seus membros.

Os esponsais eram uma promessa recíproca feita pelos futuros conjugues, ou entre quem os
representava legalmente, tendendo à celebração do matrimónio (noivado).
Objetivos dos esponsais

• Fixar a data do casamento;


• Tornar público o acontecimento;
• Determinar a forma e o quantitativo dos dotes e das arras esponsalícias.
Esta era uma fase formal, tendo de ser respeitados os seus requisitos para que a promessa tivesse
efeitos jurídicos:
1. A entrega das arras (dote) – o noivo entregava à noiva ou ao pai da noiva o dote/as arras
(valor patrimonial que muitas vezes constituía 1/5 ou 1/10 do património do noivo – podia
ser em dinheiro, ou não patrimonial, como um boi, duas galinhas, etc).

2. O anel esponsalício – entregue pelo noivo; simbolizava a consolidação do noivado.

3. O ósculo esponsalício – beijo dos noivos.

Se, após os esponsais, o marido fosse para a guerra e morresse, a noiva tinha direito às arras, uma
vez que estas funcionavam como uma garantia patrimonial para a noiva, no caso de pré-defunção
do noivo antes da celebração do casamento.
Se, ao longo da vida, o marido morrer e tiver filhos, metade das arras são da mulher.
As arras têm efeito jurídicos após o ósculo.
E se a seguir ao ósculo houvesse envolvimento carnal entre os noivos? Eles tinham-se como
casados, não sendo necessário haver uma cerimónia. Assumia-se como um casamento
consumado.

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Casamento
O casamento medieval deveria partir, no caso do direito visigótico, do livre consentimento do
homem e da mulher.

Enquadramento global do casamento na Idade Média


O casamento constitui uma comunhão devida que tem efeitos pessoais e patrimoniais entre os
conjugue.
1. Segundo o professor Cabral da Moncada, não era necessária a existência de formalidades
essenciais para haver casamento – não há uma obrigatoriedade de ter um casamento religioso.
2. O casamento e o matrimónio são vistos mais como um ato privado, do que como um ato
público.
3. É essencial a vontade das partes – o próprio direito canónico marca a relevância do
consentimento dos noivos como essencial para o casamento; não obstante termos direitos
foreiros que negavam.
4. A bênção do sacerdote pode ser utilizada como meio de prova, não sendo necessariamente
uma condição essencial para se ter um casamento.
5. Existiam impedimentos legais.

Modalidades do casamento

• Casamento por rapto – tinha sobretudo lugar quando o noivo não podia cumprir devidamente
com as obrigações decorrentes dos esponsais.
O homem rapta a mulher, de forma autorizada, sobrevindo cópula carnal, sendo o casamento
consumado. A Igreja reconhece os direitos do casamento.

• Casamento de bênção ou de benedictione – casamento legítimo, realizado pela troca do


consenso nupcial perante um membro da Igreja (padre) e fazia-se acompanhar pela graça
sacramental (o casamento religioso consubstancia-se pelo sacramento).
Características: é um ato solene realizado num templo, na presença de um sacerdote e de
testemunhas e era um sacramento.
Exceções – o casamento visa a procriação; se alguém celebrar matrimónio ocultando do outro
estabilidade e se mais tarde isso vem a ser descoberto, o marido ou a mulher pode pedir a
dissolução do casamento.

• Casamento de pública fama ou cornucude – era uma união que se qualificava como
casamento pelo facto de um homem e uma mulher serem considerados pela sociedade como
marido e mulher.
D. Afonso III foi a primeira pessoa a reconhecer este tipo de casamento.
Qualquer tipo de casamento, desde que haja vontade dos envolvidos vale.

D. Dinis, em 1311 estabelece os requisitos para a presunção de pública fama:


1. O homem e a mulher têm de ter vivido juntos durante 7 anos;
2. Durante esses 7 anos têm de se tratar publicamente como marido e mulher;
3. Têm de celebrar negócios jurídicos na qualidade de marido e mulher;
4. Na vizinhança, são tidos como marido e mulher.
Verificados estes requisitos, estar-se-ia perante uma presunção inilidível.

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• Casamento de juras – não foi muito divulgado em Portugal. Era uma espécie de união média
entre o casamento de bênção e o casamento de pública fama, em que o mútuo consentimento
dos contraentes era firmado mediante um juramento, prestado perante qualquer sacerdote.
Alguns autores dizem que temos aqui a génese do casamento civil.

Do casamento resultam relações patrimoniais e pessoais.


Para se estudar o regime patrimonial medieval, temos de ter em conta três grandes regimes:

1. Gaanças – atual regime da comunhão de adquiridos


O regime geral era a comunhão de gaanças – os conjugues mantêm a propriedade dos bens
próprios e apenas faz parte da comunhão de bens do casamento, os bens que eles adquirem durante
a constância do casamento. Contudo, no que toca à gestão patrimonial, a mulher não pode
administrar os seus bens. O marido tinha o direito de alienar, sem consentimento da mulher, bens
móveis da sua propriedade.

2. Carta de metade – atual regime de comunhão geral de bens


O regime da carta de metade é semelhante ao regime de comunhão geral de bens. Era o regime
supletivo aplicado em certas zonas, tendo de ser convencionado pelos noivos. Todos os bens que
são levados para o casamento ou adquiridos durante a constância do casamento, são bens comuns
ao casal.

3. Arras – atual regime de separação de bens


O regime das arras determina que as arras são entendidas como bens próprios da mulher, sendo
administrados pelo marido, sendo que este tinha poder de live disposição desses bens,
nomeadamente, se os mesmos fossem bens móveis.

Se a mulher morrer e não tiver descendência, as arras são entregas ao marido. Se ela tiver
descendência, as arras passam para os descendentes, sendo que se eles forem menores, o marido
mantém as administrações dos mesmos bens.
Se o marido morre antes da mulher, era entendido que a mulher ficava quase proprietária das
arras, uma vez que a administração dos bens das arras passaria para os descendentes, ou, não os
tendo, havia foros que administravam à família da mulher ou do homem.
Poder paternal
A patria potestas ou o poder paternal cabia ao pai, o que não impedia que a mãe não pudesse
educar os filhos. O direito germânico reconhecia a importância do papel da mulher na educação
dos filhos e exigia que ela autorizasse o matrimónio dos filhos. A mãe viúva não ficava com o
poder paternal sobre os filhos menores, sendo este entregue a um homem mais velho da família
(filho maior ou familiar), mas a mãe continuava com uma certa tutela no crescimento dos filhos.

Do ponto de vista patrimonial, o direito foraleiro português segue o direito visigótico.


Enquanto estão sob poder paternal, todos os bens adquiridos pelos filhos fazem parte da
propriedade dos pais, acabando os filhos por trabalhar para os pais. Todos os bens adquiridos
pelos filhos, no caso da morte dos pais, constituíam bens para a herança a todos os filhos,
independentemente de quem os tinha adquirido.

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A forma de cessar o poder patrimonial era com o casamento, com a maioridade, ou com a morte
dos progenitores.
O direito foraleiro considera a mãe como uma verdadeira patria potestas devido às guerras
(os homens iam para a guerra e as mães cuidavam dos filhos), aos descobrimentos (os homens
foram para as descobertas, ficando os filhos ao abrigo das mães).

Direito das sucessões


A sucessão é uma modificação subjetiva na relação jurídica, ou seja, um bem que pertence a uma
pessoa vai passar a pertencer a outra pessoa. Essa pessoa vai substituí-la em todos os seus direitos
e obrigações.
Esta sucessão pode fazer-se de duas formas:
• Sucessão mortis causa – quando alguém morre (de cuius). Pode ser uma:

− Sucessão legal – quando alguém morre e não deixa nenhum destino aos seus bens.
Compete ao direito definir quem são os sucessíveis daquela pessoa.

− Sucessão testamentária – quando a pessoa deixa um testamento. Pode ter feito apenas
para uma parte dos bens. Nesse caso apenas se abre a herança via testamento para esses
bens, sendo que os restantes são sucessíveis pela herança legal.

• Sucessão inter vivos – ainda há, em vida, a transferência do bem. Ocorre através de um
contrato de doação. Decide em vida e a título gratuito, transferir um determinado bem para
alguém.
− É sempre via doação.

A sucessão, sendo mortis causa ou inter vivos, pode ser:


• Universal – herança. Quando os herdeiros ficam com a totalidade dos bens.

• Singular – legado. A pessoa não toma posse da totalidade dos bens, mas fica com bens
individualizados. Só há legados em testamento.

Sucessão legal legítima – quando o de cujus não fez testamento nem fez doações em vida, os
bens estão todos livremente disponíveis. Segundo o art 2132º, CC, os sucessores desta pessoa são
o cônjuge, os parentes e o Estado.
1ª classe – cônjuge e descendentes.
2ª classe – cônjuge e ascendentes.
3ª classe – irmãos e seus descendentes.
4ª classe – outros colaterais até ao 4º grau (tios e primos).
5ª classe – o Estado.

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Margarida Gonçalves

Na idade média: é igual com uma diferença. As classes de sucessíveis são:


1ª classe – descendentes.
2ª classe – ascendentes.
3ª classe – colaterais.
4ª classe – cônjuge sobrevivo.

Direito de representação – este direito só se aplica na sucessão dos descendentes. É a


possibilidade de os netos ocuparem o lugar dos pais para concorrer com os tios relativamente à
herança deixada pelo óbito do avô no lugar do progenitor.

Direito específico da idade média que hoje não existe – o Direito de troncalidade
Este direito aplica-se na sucessão legítima dos ascendentes. Só é aplicado se não houver
descendentes. O titular da herança morre sem descendentes nem pais, mas tem ascendentes de
segundo grau (avós) – a herança vai para eles desde que qualquer um deles esteja vivo.
Os bens recebidos do lado paterno vão para o lado paterno e os bens recebidos do lado materno
vão para esse mesmo lado.
O direito de troncalidade só é aplicado se existir obrigatoriamente um avô ou avó de cada lado.
Só depois do direito de troncalidade é que se passava para os colaterais.

Sucessão legal legitimária – se o de cujus disser que quer deixar uma parte dos seus bens a umas
pessoas a outra parte para outras pessoas.
O Direito protege a família. A sucessão legitimária surge para proteger a família das vontades do
titular da herança.
Esta define uma parcela de bens que o titular da herança, em vida, não pode dispor dela, sob pena
de, ao abrir-se a herança, ter de haver uma redução da vontade do de cujus, ou seja, o Direito vem
definir uma quota parte de bens em que o titular da herança pode dispor – a terça.
O titular da herança pode, em vida, fazer testamento relativamente a 1/3 dos bens (quota
disponível – a terça). Os restantes 2/3 vão para os seus sucessores legitimários, que nunca
podem ser escolhidos da herança – o cônjuge e os descendentes; o cônjuge e ascendentes; ou o
conjugue.
Na Idade média os herdeiros legitimários eram os mesmos que os herdeiros legítimos.

O valor da terça parte variou muito ao longo do tempo. O direito viosigótico considerou que a
quota de disponível não era 1/3 mas sim 4/5 (freteil ou vertrscht). Na Reconquista Cristã chamou-
se a esta cota de laudacio parentuim (1/3) – o titular da herança tinha de obter previamente o
consentimento dos seus sucessores.

O sistema de reserva hereditária corresponde aos 2/3 do património do titular da herança que
tem de ser deixado aos seus herdeiros legitimários.

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Margarida Gonçalves

Práticas
Direito sucessório
A ideia é verificar e estabelecer o fenómeno que origina a sucessão e fixar a terminologia utilizada
na matéria do direito das sucessões.
Em sentido jurídico, falamos em sucessão quando nos pretendemos referir à possibilidade de se
verificar uma modificação subjetiva nas relações jurídicas, isto é, verifica-se uma alteração de um
sujeito no contexto do mesmo complexo de direitos e de deveres.
Quando falamos em sucessão, não podemos deixar de referir os seus tipos:

• Sucessão inter vivos – verifica-se entre sujeitos atuantes na norma jurídica (vivas).
• Sucessão mortis causa – tem lugar quando se verifica um determinado facto (a morte do autor
da sucessão – de cujus).
A sucessão mortis causa vem determinar a substituição de alguém na titularidade de situações
jurídicas que eram do de cujus. Esta sucessão subdivide-se na:

− Sucessão universal – estamos a referir-nos à situação em que o novo sujeito (herdeiro)


substitui o de cujus na totalidade das relações jurídicas a este pertencentes.

− Sucessão singular – os sujeitos que são chamados à sucessão (legatários), sucedem apenas
na titularidade de certos e determinados direitos que estão ligados a bens determinados.
P.E: o senhor A faz um testamento e diz que deixa ao senhor B, C e D diferentes
patrimónios. Há pessoas que se substituem ao senhor A na titularidade de situações
jurídicas distintas.

Chamamento à sucessão – como se opera?


1. A vontade do de cujus – o autor da sucessão tem uma palavra a dizer se quiser.
2. As normas jurídicas.
Será que estes tipos são independentes entre si?
Segundo um modelo continental, isso não pode ocorrer porque, ainda que o de cujus manifeste
a sua vontade, ela terá de ocorrer de acordo com o sistema jurídico. Não existe uma total liberdade
de manifestação por causa da nossa matriz cristã que assenta na importância da família – o
património deve ser utilizado para suportar e garantia a subsistência da família.
Num modelo anglo-saxónico, o titular do património pode dispor do seu património (liberalismo
absoluto).
Tendo em conta estas duas origens da sucessão, podemos distinguir dois tipos de sucessão:

• Sucessão voluntária – depende da vontade do de cujus.


− Sucessão testamentária – convém referir a lei de 29 de maio de 1349 que se destaca não
só pelo seu objeto, mas também porque apresenta os tipos de testamento:
1. Testamento por escrito particular – com testemunhas, mas sem intervenção do
tabelião.
2. Testamento verbal – assentava tão só em declarações de testemunhas; este tipo de
testamento nunca foi admissível entre nós.
3. Testamento num compativo () – não era aceite porque o testamento sempre foi
considerado um negócio jurídico solene/formal.

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Margarida Gonçalves

− Sucessão contratual

• Sucessão legal – o ordenamento jurídico vem discriminar quem é que pode ser chamado à
sucessão, definindo as suas categorias. O princípio fundamental do direito sucessório era o
princípio da igualdade dos sexos – quer o homem, quer a mulher sucediam de forma igual;
contudo, quem vinha a mexer com o património era o pai ou o filho.

− Sucessão legítima – verificava-se quando o de cujus, tendo podido dispor dos seus bens,
não o fez. Por causa do seu silêncio, é o direito que vem determinar o modo como a
sucessão será feita.

O direito utiliza o princípio da igualdade de sexos, mas ele também estabelece as


categorias sucessórias: os descendentes, os ascendentes, os colaterais e o conjugue
sobrevivo – esta hierarquização deve-se ao princípio da proximidade de grau. Neste caso
da proximidade de grau, ainda poderíamos falar do direito da representação. Atente ao
exemplo:
Imagine-se que o senhor A tem 2 filhos (B e C). O filho B já tem 2 filhos; o filho B morre
antes do senhor A, mas A queria deixar património a B; os dois netos dividem o património
que era para B (direito da representação).

Agora imaginemos que A tinha recebido uma quinta no douro (dos avós paternos) e uma
herdade no Alentejo (dos direitos maternos). A morre e não tem filhos; quem sucede são
os seus pais (direito de troncalidade). Os bens são herdados pelo tronco familiar de onde
provinham. A quinta do douro seria herdada pelo pai e a herdade do Alentejo seria herdado
pela mãe. Os bens próprios eram atribuídos exclusivamente aos parentes do lado de
onde proviessem.

− Sucessão legitimária (ou sucessão necessária ou sucessão forçada) – constituiu


incontestavelmente, uma limitação à liberdade de dispor porque o ordenamento jurídico
vem imperativamente determinar a impossibilidade do de cujis dispor, após a morte, a
totalidade do seu património.

Existe um conceito subjacente a esta limitação de testar – reserva hereditária (destina-se


parte da herança para determinar as pessoas; é a massa patrimonial que está reservada a
terceiro, da qual o de cujus nada pode fazer). Esta reserva hereditária oscilou entre 1/3 e
1/5 do património.

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Margarida Gonçalves

Direito penal
Fenómeno da punição – temos um direito penal marcadamente pluralista:

• Direito penal não estatal – não estava nas mãos da coroa punir os ilícitos feitos aos bens
jurídicos.
Prevalecia o princípio da autotutela – competia ao ofendido ou à família do ofendido fazer
justiça pelas suas próprias mãos, até porque não cabia ainda ao rei as questões de âmbito penal
(vindicta privada).

• Monopólio estadual do direito e do dever de punir.

Há um caminho de uma altura até outra, passando por diversas fases. O primeiro crime a ser
punido pela coroa é o atentado ao monarca. Fases:
• Publicitação do direito penal: passa das mãos do ofendido para a comunidade – esta
estabelece as regras e condições nas quais a vingança privada deve ocorrer.

• Passou a exigir-se que a vingança fosse proporcional ao tipo de crime (olho por olho, dente
por dente).

• As autoridades comunitárias (órgãos que representavam a comunidade) passam a propor e


depois a exigir que a ofensa pudesse ser afastada através de uma composição pecuniária
(indemnização).
• Estabelecimento de um regime de arbitragem: primeiro facultativa e depois obrigatória com
caráter privado. Passa a ser de cariz público e obrigatório num terceiro momento.

Vingança privada
− Perda de paz relativa: forma mais comum e mais pura de autotutela. Era admitida apenas
relativamente aos delitos considerados mais gravosos (homicídios, violações, ofensas graves
à integridade física) e para que se pudesse efetivar, era necessário percorrer várias fases:
❖ O ofendido (ou representante do ofendido) tinha de desafiar publica (perante a assembleia
do conselho) e formalmente o autor da ofensa.
❖ O autor do delito passava a denominar-se como inimigo e gozava de um período de tréguas
de 9 dias, fim do qual se procedia à chamada declaração solene de inimizade.
❖ O autor da ofensa podia abandonar a aldeia/vila nos 8 dias seguintes desde que satisfizesse
as obrigações económicas de inimizade (fredum) que podia adiar a efetivação da vingança
e dava a possibilidade de o autor da ofensa se exilar ou então, não acontecendo isto, dava-
se a vingança (faida). A faida era a vingança através da qual o autor da ofensa se via na
contingência de ser perseguido pelo ofendido ou pela sua família que o podia legitimamente
matar. Composição: forma de fazer cessar o processo: composição pecuniária “per aver”
(indemnização), composição corporal (chibatadas ou vergastadas em público),
composição por missas.
❖ Beijo em público (reconciliação pública). Se o ofendido ainda assim mata o ofensor, há
uma traição há reconciliação pública, que leva à perda de paz absoluta, bem como no
período de tréguas.

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Margarida Gonçalves

Teóricas
Após o desafio, o autor do delito tem um período de trégua, período em que nada lhe pode
acontecer (9 dias), durante 9 dias ele não pode ser perseguido, não se pode puni-lo, etc. Estes 9
dias servem para que ele possa reparar os danos que cometeu (ou fugir). Depois deste período, é
declarada formalmente a inimizade. Depois da inimizade pode acontecer:
• O ofendido pode fugir, mas podia ser perseguido
• O criminoso pode querer adiar a pena por parte da família do ofendido. Pode o ofendido
solicitar 3 formas de adiamento da consumação da pena:
o Fredum - pagamento de uma sanção pecuniária, quantia que serve para adiar a
efetivação da vingança
o Desterro - negociar o afastamento daquele conselho (auto desterro), apesar de o
desterro não meter fim à possibilidade de ser punido
o Faida - o criminoso submete-se à vingança, entrega-se às penas que o ofendido ou a
sua família lhe possam aplicar.

A perda de paz pode cessar, havendo um restabelecimento da amizade entre o criminoso e a


família. Isto porque o criminoso se submeteu à faida, ou através do recurso da figura da
composição - forma de fazer cessar a inimizade entre o ofensor e ofendido:
• Formas de composição:
o Compra da paz - wehrgeld - vai ser concedido um valor monetário pelo criminoso ao
ofendido ou à sua família para indemnizar o ofendido pelos danos. Após a entrega do
dinheiro, a vingança estava concluída
o Composição corporal - submissão do criminoso a penas corporais (a mais recorrente
era o criminoso ser varado em praça publica por um numero de vezes a ser definido
pelo ofendido)
o Composição por missas - obrigação do criminoso mandar rezar missas por obrigação
do ofendido; é um reconhecimento publico de que ele é criminoso, levando à
vergonha publica, é uma pena moral.

A perda de paz relativa terminava sempre pela declaração de amizade entre o ofendido e o ofensor.
Ósculo pacis - beijo para selar a amizade.

− Perda de paz absoluta: não havia nenhum processo. Reservado ao crime mais grave: crime
de lesa majestade. Todo aquele que atentasse contra a vida ou integridade física da família do
rei passava a ser um individuo sem qualquer tipo de direitos e sem qualquer tipo de tutela.
Entrava no processo de perda de paz absoluta, qualquer membro da comunidade tinha o dever
de o perseguir e de o matar.

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Margarida Gonçalves

Tipos de penas:

• Pena de morte – aplicada pelos oficiais públicos (ladrão reincidente, assassino, para aquele
que causasse aleijão na mão, no nariz, no pé e para o incendiário). Podia ser morte na forca
(mais recorrente), enterrar vivo por baixo do cadáver da vitima de homicídio, afogamento,
crucificação, na fogueira (estes dois últimos em crimes religiosos).
• Penas pecuniárias eram penas subsidiárias: anoveado - geralmente para crimes de furto, 9x o
valor da coisa.
• Penas corporais - corte da mão direita, açoites, pregar a mão do ladrão na porta do local de
onde roubou, tirar os olhos, cortar as orelhas. Penas privativas da liberdade: cárcere privado,
pena de redução à servidão. Penas infamantes - penas que punham em causa o estatuto social
e pessoal (flagelação publica, exposição em pelourinho, exposição das pessoas em gaiolas,
decalvação, corte da barba).

Os judeus não podiam andar com barba, era uma punição. um cristão sem barba significa que está
a ser punido como um judeu.

Os reis portugueses tentaram combater a vindicta privada. Desde as leis de D. Afonso II, há uma
tentativa de reduzir a mesma. Em 1211 encontram-se medidas de combate à vindicta privada,
nomeadamente as leis 6 e 7 (apresentam medidas para evitar a vindicta privada e o prolongamento
da mesma no tempo).
D. Afonso IV tenta estabelecer medidas de combate à vida privada – leis:
1. Lei de 1325 – considera-se ilícita a vindicta privada; ressalva a possibilidade de esta ser
prosseguida se o costume o determinar.
2. Lei de 17 de março 1326 – a vindicta privada não pode ser desencadeada, mesmo que o
costume diga o contrário. A nobreza reivindica a própria existência do seu código, pedindo a
possibilidade de se exercer a vindicta privada em certos casos.
3. Lei de 17 de junho de 1326 – interpreta a lei de 17 de março, dizendo que era possível
recorrer à vindicta privada para todos aqueles factos e crimes que ocorressem antes da aplicação
da lei.
4. Lei de 9 de julho de 1330 – se o criminoso, após 60 dias desde a data em que tinha sido
cometido o crime, não se tivesse submetido a julgamento, era possível iniciar-se o processo de
vindicta privada.

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Margarida Gonçalves

D. Afonso IV não conseguiu retirar a vindicta privada uma vez que esta estava integrada no
costume da sociedade. A forma de ele reduzir a influencia da mesma foi através do surgimento
da lei de crimes públicos – após ser praticado, compete às autoridades judiciais iniciarem a
investigação e procederem ao julgamento do criminoso, independentemente de queixa.
Ele cria uma lista de crimes que são retirados à vindicta privada:
1. Crimes políticos (de lesa majestade);
2. Crime de homicídio doloso qualificado ou com ferimentos graves;
3. Crime de ofensas corporais qualificadas (intenção de provocar danos corporais);
4. Crimes religiosos (heresia, blasfémia e sacrilégio);
5. Crimes sexuais (violação, adultério, incesto, sodomia e alcovitaria);
6. Bigamia;
7. Feitiçaria;
8. Furto e dano.
Ele considerou quase todos os crimes.

O sistema penal é um sistema rígido com penas cruéis e com um sistema de prova igualmente
duro. O sistema de prova denomina-se ordálios ou juízos de Deus – prova caldária ou prova do
ferro em brasa. Para além disso, as penas aplicadas são transmitidas por sucessão. Os ordálios
poderiam ser:

• In dúbio pro reo – na dúvida, ou seja, se a prova não é concludente, absolve-se o réu.
• Nullem pena sine crimen – não há pena sem crime; é preciso demonstrar a existência do crime
e a culpa; não se indicia apenas o crime.
• Nullem crimen sine legem – não há crime sem lei; a lei necessita previamente de definir o
tipo criminal e só depois pode haver a condenação desse crime.

Até surgir o Estado Moderno, o princípio da aplicação do direito da lei era um princípio de
carácter pessoal – aplicava-se às pessoas em função da sua nacionalidade.

Conflitos de direito
Os conflitos de direito entre pessoas de diferentes nações tinham de ser resolvidos. Mas também
existiam conflitos de pessoas do mesmo país. Não havia uma uniformidade legislativa.
Há conflitos de direito interno, mas também há conflitos de direitos entre pessoas de religiões
diferentes. Quando se fala em conflitos de direito e como se vive num pluralismo e num princípio
da aplicação territorial do direito, é preciso definir qual o direito a aplicar.
O Direito Foraleiro previa regras que atualmente são admitidas.
Quando estávamos perante um processo crime entre dois habitantes de concelhos diferentes, qual
era o tribunal competente? Os forais determinavam que o julgamento devia ser feito na fronteira
dos dois concelhos se estes fossem próximos – princípio da mediania.
Se estes não fizessem fronteira, entendia-se que o julgamento devia ser feito pelo juiz da
naturalidade do réu.

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Margarida Gonçalves

Outros forais entendem que, nestas circunstâncias, devia ser considerado como preferencial a
jurisdição da prática do delito.
Em matérias civis, se estivermos perante um conflito de um imóvel – jurisdição do local onde
o bem se encontra. Para coisas móveis, era competente o foro do local em que estava o móvel.
Para questões contratuais, seguia-se, em regra, o foro do réu, apesar de haver forais que
determinavam que, quando a questão do contrato tinha a ver com questões de invalidade de forma
do contrato, deveria ser competente no local onde o contrato tinha sido celebrado.

Esfera internacional
Nesta aplicamos a regra dos estatutos ou o direito estatutário – direito específico de cada reino.
Seguia-se um princípio de direito romano trabalhado por glosadores e comentadores – princípio
do cunctos populos. Significa que o senhor da sua terra só tem legitimidade para aplicar o direito
aos naturais desse reino. O rei não pode impor o seu direito a pessoa que não são seus súbditos.
Leva à necessidade de conciliar os vários ordenamentos jurídicos.
O direito estatutário não é aplicado com base numa lei, mas sim com base nas interpretações
doutrinárias. Bártolo é um dos grandes construtores da regra dos conflitos de direito.
Em toda a cristandade, há um direito comum a todos os reinos (untrumque ius). Bártolo e Baldo
vão trabalhar as regras de conflitos. Primeiro observa-se as regras de direito comum e depois as
regras próprias de cada um (iura propria).

Ao abrigo do Direito comum, os estatutos podiam ser:

• In ren – consideram que o direito se aplica ao bem. Todos os bens em Portugal são regulados
pelo direito português.
• In personen – considera que o direito se aplica à pessoa originária daquele país,
independentemente do local em que ela se encontre.
• Estatutos mistos – junção dos dois critérios anteriormente referidos. Aplicam-se a todas as
pessoas de um país e aos bens.

Os juristas criaram regras de conflitos que consideravam que se podiam aplicar a diversas
situações, através de exemplos.

• Imaginem que têm um inglês que quer suceder a bens deixados por herança dos seus pais,
em Veneza. O direito inglês diz que a sucessão cabe toda ao primogénito; o direito de Veneza
diz que a sucessão dos bens tem de ser dividida por todos os herdeiros. Pode o inglês herdar
os bens sozinho em Veneza?
Se for de acordo com o estatuto in ren, aplica-se o direito de Veneza aos bens, pelo que o
inglês te de dividir os bens de Veneza com os irmãos.
Se o estatuto for in personen, aplica-se o direito inglês.

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• Testamento feito em Portugal na presença de 2 testemunhas – são deixados bens em Portugal


e em Castela. O direito português diz que o direito é válido perante duas testemunhas. O
direito castelhano diz que é valido perante 3 testemunhas. O herdeiro vai levantar os bens
em Castela.
Ao abrigo do ius commune, Castela tem de aceitar como vale o testamento, porque o local
onde ele foi elaborado só exigia 2 testemunhas. Verificamos a validade do testamento com
base no local onde é feito.
Todo e qualquer conflito sobre a formalidade contratual, segue-se o estatuto do local onde o
contrato foi celebrado.
Relativamente ao incumprimento contratual, aplica-se o direito local onde o contrato deveria ter
sido cumprido.

Lei da Boa Razão


No séc. XVIII surgem as reformas pombalinas, no Iluminismo. Esta época desenvolveu-se nos
reinados de D. José I e de D. Maria I. Por mão de D. José assistimos a reformas a nível legislativo
que tiveram forte pendor de Marquês de Pombal, com ideais estritamente acentuados na Boa
Razão.
Esta lei também foi conhecida como boa razão. A sua designação deve-se a José Homem Correia
Teles. A lei fazia referência em muitos dos seus artigos e preâmbulo à boa razão e dizia que as
fontes de direito tinham de ser aplicadas de acordo com a boa razão.
É a razão do Homem – daquele que é iluminado, ou seja, que tem capacidade de vincular com a
sua opinião racional porque formada de acordo com os pensamentos da época e capacidade de
conhecer o que se fazia nos outros países; vai vincular os seus súbditos.
Inicialmente foi conhecida como Lei de 18 de agosto de 1769.
Esta lei é do período pombalino e é um dos expoentes máximos da organização das fontes de
direito. Ela determina as fontes de direito que o juiz deve aplicar a cada caso.
Nas Ordenações Filipinas as fontes de direito eram a vontade do rei e o utrumque ius. Agora no
Iluminismo, mantém-se a vontade do monarca, mas pretende-se substituir o utrumque ius pela
razão.

Fontes de Direito

• Leis pátrias – o rei faz a lei, mas também deve obedecer à lei; contudo, se ele não o fizer, não
tem quem o fiscalize e julgue. Mas isso não implica que ele não deva obedecer à lei, porque
se não o fizer corre o risco de que a mesma seja inválida. A lei que é aplicada nos tribunais
não é apenas uma mera vontade do rei; ela decorre da vontade do rei, mas tem de estar de
acordo com o direito divino, natural e das gentes.

• Estilo da corte – é o costume não escrito, introduzido pela prática de um tribunal (é direito
adjetivo, processual porque decorre da pratica dos tribunais superiores). Constitui a génese do
processo civil, que vão sendo criadas pela prática quotidiana dos tribunais. Aplica-se o estilo
da corte desde que estejam confirmados por assentos da casa da suplicação. Os assentos são
as decisões dos tribunais superiores. Quando as relações aprovam estilos contrários para a
mesma matéria, recorre-se à casa da suplicação, para que esta analise os estilos e emita uma
decisão final.

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• Assentos da casa da suplicação

• Costume – a lei da boa razão impõe requisitos para que este esteja de acordo com a
racionalidade e a lei de boa razão:
1. Ser conformes à boa razão
2. Não contrariar a lei – apenas são aceites como fontes de direito os costumes secundum lege
3. Tem de ser antigo – a antiguidade tem de ser demonstrada (período de 100 anos), para
evitar abusos de direitos por parte da população.
O estado passa a ser legislador, tendo a preocupação de controlar as fontes de direito e de fazer
com que a sua lei passe a ser a fonte principal – só assim é que há um controlo da pessoa jurídica
que é o Estado.

Direito subsidiário – fontes

• Direito romano – o direito romano pode ser invocado ou aplicado no tribunal, desde que
conforme à boa razão e só caso a caso é que se vai verificar se a solução jurídica para a
situação concreta é adequada e conforme à boa razão.
Conforme à boa razão – a boa razão consiste nos primitivos princípios que contêm verdades
essenciais, intrínsecas e inalteráveis que os direitos divino e natural formalizarão para
servirem de regras morais.
Aquela norma deu origem a um universal consentimento.
Se essas normas jurídicas influenciam ou não o direito das gentes – as regras do direito
romano que origem regras do direito das gentes e que tenham sido aplicadas por todos,
podem ser aplicadas nos tribunais.
Se, não sendo aplicadas no seu todo, alguns países aplicaram em certas zonas.
Reduz-se a aplicação do direto romano porque se vai sindicar a sua aplicação aos princípios da
boa razão – princípios intemporais.

• Direito aplicado pelas nações cristãs polidas e iluminadas – em matérias comerciais,


mercantis, industriais ou até políticas em que seja preciso procurar soluções para casos
concretos, deve olhar-se para os modelos destas nações (semelhante ao atual Direito
comparado).

• Direito canónico – deixa de ser aplicado nos tribunais comuns e é encaminhado para os
tribunais eclesiásticos, deixando de ser fonte subsidiária do direito nacional. A construção
jurídica das ordenações é afastada pela lei da boa razão.

• A Glosa de Acúrsio, os comentários de Bártolo e a opinião comum dos doutores – há uma


proibição clara de se aplicar estas “fontes”.

O papel da lei da boa razão é a de organizar as fontes de dto sob o prisma dos novos pensamentos
do séc. XVIII – racionalismo e iluminismo. Esta construção vigorou até ao código de Seabra
(1869).

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A lei da boa razão é então um texto normativo que apresenta as diversas fontes de direito. A sua
interpretação vai ser feita de acordo com o teor dos próprios estatutos.
Em 1770, Sebastião de Carvalho e Melo manda iniciar as reformas da universidade de Coimbra
(Junta de Providência Literária), com a finalidade de identificar e estudar os motivos que
levaram ao atraso em Portugal e apresentar as soluções.
Em 1771 é apresentado o Compêndio Histórico de Estado da Universidade de Coimbra, um
relatório que identifica os problemas do sistema português e apresenta as propostas de resolução.
Com efeito, em 1772 são publicados os novos Estatutos da Universidade de Coimbra (“estatutos
pombalinos”).
O texto das Ordenações vai-se manter até ao séc. XIX, mas a forma como se olha para estas após
a reforma dos estatutos é completamente diferente. A lei da boa razão traz uma reforma ao sistema
de fontes de direito português, não só porque põe em causa a utilização excessiva do direito
canónico, como também põe em causa as opiniões de Bártolo e Acúrsio. Estudavam-se apenas
os textos Justinianeus (método analítico, fragmento a fragmento). A decisão é sempre aquilo que
se tem por plausível, por justo.
Nos estatutos encontravam-se então os habituais pensamentos do pensamento setecentista:

• Exaltação do direito natural e das gentes;


• Visão do direito romano através do usus modernus pandectarum – só vale o direito romano
que for efetivamente recebido, estudando a jurisprudência, e se se mostrar de acordo com o
Direito natural.
Escola Cojaciana – três aulas de manhã e duas aulas à tarde, avaliação contínua.

Novo código
É um aspeto essencial para compreendermos a transição do séc. XVIII para o séc. XIX. Há uma
discussão sobre o direito público português – estamos perante uma verdadeira disputa
constitucional sobre o direto português e sobre as expetativas ou o desenho da estrutura do estado
nos finais do séc. XVIII.
O novo código, defendido pela rainha D. Maria I, visa trazer uma viragem a novas ideias.
A 31 de março de 1778, ela decide criar uma junta de ministros para prepararem a reforma das
ordenações filipinas. Na sequência da lei da boa razão, houve a necessidade de se alterar as fontes
de direito, reformando-se as Ordenações. Com efeito, cria-se uma comissão de 10 jurisconsultos
para elaborar o 1º código português.
Uma das fontes de direito que deveria ser utilizada na altura da lei da boa razão era o direito das
nações civilizadas. No decreto criador desta comissão, utilizam-se substantivos e verbos para
qualificar o seu trabalho:
1. Tinha de se verificar quais eram as leis antiquadas, para serem reformuladas.
2. Verificava-se as leis que estavam revogadas, para serem retiradas.
3. Olha-se para as leis em que a prática dos foros dos tribunais era contraditória, devendo
definir-se a melhor opinião a seguir.
4. Reformar todo o sistema jurídico português.
Esta comissão nada fez.

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Assim, em 1783, D. Maria vai pôr uma resolução régia de 10 de fevereiro – nomeia um
jurista (Pascoal José de Melo Freire) e atribui-lhe a função de rever a legislação portuguesa.
Obrigava-se os professores a escrever os livros para o ensino do direito. Enquanto isso não
acontecia, utilizava-se os livros estrangeiros. Pascoal de Melo foi o primeiro a escrever livros
para serem estudados (Instituições do Direito civil).
Ele consegue rever dois livros das ordenações do reino – o livro I (direito público) e o livro V
(direito penal).
Feito o trabalho, este é entregue ao Governo e a rainha D. Maria I nomeia por decreto, a 3
de fevereiro de 1789, uma comissão de censura à revisão feita por Pascoal de Melo. Há um
professor de direito canónico que se distingue de todos os outros porque critica de forma
substantiva o trabalho de Pascoal de Melo – António Ribeiro dos Santos (liberalista).

 Vai corporizar um debate jurídico relativamente ao modo de organização da monarquia


portuguesa – Pascoal de Melo defende a monarquia pura e Ribeiro dos Santos defende a
monarquia consensual.

 Direito penal – Ribeiro dos Santos apresenta ideias humanitaristas da pena de morte;
Pascoal de Melo era a favor de algumas medidas da pena de morte.
O trabalho de Pascoal de Melo foi completamente censurado, nunca chegando a substituir as
ordenações filipinas.

Qual a solução então para Portugal?


A questão a avaliar é de Direito Público
Pascoal de Melo defende a monarquia pura – todo o poder pertence ao rei, que não abdica
dele, fundando-se nas leis fundamentais do reino (o rei não tem o seu poder vindo diretamente do
povo, mas sim indiretamente do povo e diretamente de Deus – poder divino dos reis).
O rei organiza o poder político (proporcionar o bem comum da comunidade), legisla (de acordo
com os interesses do povo), julga (os tribunais aplicavam o direito em seu nome) e exerce os
poderes de polícia (tem pessoas que fiscalizam a atuação dos cidadãos.
Pode-se afirmar que ele tem “limites” na sua atuação. Contudo, estes limites não retiram a
essência da monarquia pura enquanto sistema onde o poder reside só no rei:

• Não pode fazer leis contra o direito natural (direitos fundamentais, direitos do Homem);
• O direito divino não pode contrariar o direito consagrado nos evangelhos (prática do
cristianismo);
• O poder vem de Deus, no entanto, o rei tem uma obrigação para com a comunidade.
Esta obrigação nasce de um vínculo antigo que constitui a génese do poder político – as leis
fundamentais da monarquia portuguesa. Estas regulavam três grandes aspetos:
1. Direitos e deveres do rei;
2. Direitos e deveres dos súbditos;
3. Regras de sucessão ao trono.
Em Portugal entendia-se que as leis fundamentais estavam consagradas nas Cortes de Lamego.
As atas foram forjadas no séc. XVII (segundo Abade Correia da Serra na Monarquia Lusitana).

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D. João IV era considerado o tirano quod titulum porque ele usurpava o poder. Outro tipo de
tirania era o quod constitucionem e é tirano pelo exercício do poder, herdou o poder de forma
legítima, mas o exo do poder é injusto porque atua no sentido do seu próprio interesse e não no
interesse da sociedade.

Pascoal de Melo defende a monarquia pura

• O rei não partilhava o poder político com ninguém.


• A sua legitimidade não vem do povo, mas sim de Deus e dos seus antepassados.
• Não é ilimitada, não é uma monarquia onde não há controlo nem limites ao poder.
• O rei na sua atuação está sempre submetido ao direito natural, ao direito divino e ao direito
das gentes.
• O rei não convocava as Cortes para o ajudar.
• Crítica ao Livro I das Ordenações.

Ribeiro dos Santos defende a monarquia consensualista


O poder régio não podia ser uno, devendo o rei convocar e ouvir as Cortes (as primeiras foram as
Cortes de Coimbra). Estas Cortes aprovaram o princípio quod omnes tangit ab omnibus
aprobari debet – o que diz respeito a todos, por todos deve ser aprovado.
Ele defende que até 1894/95 houve cortes.
Ribeiro dos Santos não rejeita a monarquia absolutista, mas apresenta algumas ideias diferentes:

• Rejeita a monarquia pura.


• O poder reside no rei.
• O rei não deve ter o poder sozinho – deve consultar as cortes. Não são necessariamente cortes
deliberativas (ideia de tradicionalismo).
• No séc. XVIII é que se abandonam as cortes – ideia de indivisibilidade do poder.
• O rei na sua atuação está sempre submetido ao direito natural, ao direito divino e ao direito
das gentes.

Esta questão do novo código esquece-se no tempo. Só voltamos a olhar para a ideia de criar um
novo código mais tarde.

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Relativamente ao Livro V das Ordenações (Direito e Processo penal), houve uma disputa
ideológica uma vez que eles partem de premissas diversas:

• Ribeiro dos Santos é um verdadeiro defensor de uma nova corrente de pensamento que surgiu
em Itália e que pretendia rever toda a área do direito penal – Humanitarismo jurídico. (surge
a ideia de prisões).
Beccaria, numa das suas obras, defende a necessidade de rever todo o sistema penal do direito
europeu, numa tendência de humanização das penas, nomeadamente:

− Abolir as penas de morte para alguns crimes – ele quer reduzir a pena de morte para alguns
crimes, nomeadamente aqueles que são contra o rei, ainda que esta se deva evitar a todo o
custo. Contudo, considera que nesta época não existiam condições para a abolição da pena
de morte. Quer ainda acabar com as penas corporais (talhamento dos membros).

− Uma revisão do processo penal, consagrando novos meios de prova, acabando com todos
aqueles meios que são sobrenaturais e espirituais (ordálios).

− Tem de ser dado o direito de defesa ao arguido, devendo este ser respeitado e cumprido
(formas racionais de demonstrar a sua inocência).

− Ele define algumas máximas do direito penal – nullem crimen sine legem e nullem pena
sine legem.

• Pascoal de Melo defende uma revisão deste livro à luz do novo espírito.
− Ele quer manter a pena de morte.

O séc. XIX fica marcado pelas liberdades e codificações – é o século do Direito. É necessário
tornar certo o Direito como instrumento de organização social e paz a nível mundial.
É também uma época de mudança, de forma contínua – não há um corte radical do ponto de vista
jurídico. Os tradicionalistas mantêm algumas tradições, como a manutenção das Cortes.
Ideia de liberdade surge em dois grandes axiomas:

 A liberdade é o fundamento do poder – ela sujeita e informa o poder político;


 A liberdade vai garantir os direitos individuais.
O desenvolvimento da liberdade dá-se em três premissas: a liberdade política, a liberdade da
propriedade e a liberdade individual (liberdade a ser ou não preso). Estas três liberdades estão
ligadas aos três grandes movimentos de codificações – os códigos públicos (CRP); os códigos
civis e os códigos comerciais; os códigos penais.

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O movimento liberal defende quatro grandes temas:

• Princípio da soberania nacional – crítica à monarquia pura.


• Representação política nacional – há uma recriação dos Parlamentos, das Cortes e das
assembleias nacionais.
• Divisão de poderes – resulta não só da Revolução francesa.
• Direitos e liberdades individuais – o núcleo central já estava definido na primeira CRP. Eles
já eram defendidos na monarquia pura. Defende-se então a criação de uma CRP escrita.
Portugal teve três CRP: CRP 1822, CRP 1838 e Carta Constitucional de 1926.

Movimento de codificação
• Direito civil
• Direito comercial
• Direito administrativo
• Direito penal

Para além destas áreas de direito substantivo, surgem outros códigos adjetivos (ajudam à
implementação dos direitos substantivos nos tribunais) – os códigos de processo civil e o código
de processo penal.
Os Códigos que servem de inspiração para formular o nosso Código Civil português são o CC
prociano (1794), o CC francês (1804), o CC austríaco (1811) e o CC da sardenha (1827).
Os Códigos transmitem:

 Segurança jurídica – esta não se reduz a um princípio de direito, a um valor, norma ou regra;
ela trata-se de uma garantia do cumprimento de um princípio.
 Certeza jurídica – a certeza do direito escrito que é compreendido; permite que o cidadão
possa ler e conhecer o Direito que é aplicado.

Evolução da Codificação do séc. XIX


Há codificações no Direito público e de Direito privado.
Códigos de Direito Público

− Constituição (1822) – ela vai centrar as suas ideias na construção jurídica da liberdade, da
soberania da nação e da separação de deveres. No entanto, a própria CRP consagra a liberdade
civil e a liberdade individual.
A partir desta consagração, os Governos preocupam-se com a elaboração do CC e do CP.
Contudo, esta construção exige um trabalho jurídico que era impossível de realizar. Por volta de
1824, o Governo português lançou anúncios nacionais para a formulação de um CC e um CP. Isto
mostra a importância da elaboração dos códigos e a dificuldade que houve na elaboração dos
códigos.

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Códigos Direito Privado


Códigos comerciais
1. Código comercial (1833) – era o Código de Ferreira Borges.
Este código vai olhar para o comércio como a principal fonte de riqueza do país. Tem influência
na sua elaboração nacional (período pombalino), nas legislações europeias e nas experiências de
direito comercial de outros países.
Este código está dividido em 3 partes:
a) Comércio terrestre;
b) Comércio marítimo;
c) Foro mercantil e as ações comerciais.

2. Código comercial (1888) – era o Código de Veiga Beirão; vigorou até aos anos 80.
a) Comércio em geral;
b) Contratos especiais de comércio;
c) Comércio marítimo.

3. Código das Sociedades Comerciais – era o Código de Raúl Ventura.

Códigos civis
1. Código de Seabra (1867) – está em vigor em Goa.
Inspira-se em três grandes elementos:
a) Nas ordenações – aproveita no seu conteúdo diversas soluções jurídicas que fazem parte da
tradição jurídica portuguesa (legislação das Ordenações e legislação Extravagante).
b) No contributo jusnaturalista – foi informando a matriz de raciocínio português.
c) A legislação liberal, a influência do CC francês e de todos os outros.

Estava divido em quatro partes:

− Capacidade civil – pessoas e situação familiar;


− Aquisição dos direitos;
− Direitos de propriedade;
− Ofensas dos Direitos e a sua reparação.

2. Código de Vaz Serra (1966) – é um Decreto-lei.

Códigos de Direito Penal


É uma das grandes preocupações porque havia uma grande necessidade, apos os trabalhos de
Pascoal de Melo e do seu sobrinho, de revogar o Livro V das Ordenações, na sequência dos
grandes movimentos humanitaristas.

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A CRP de 1822 vai fazer eco a esta necessidade – ela consagra alguns princípios:

• Igualdade dos cidadãos perante a lei – não pode haver diferenciação na aplicação da pena,
atendendo à categoria social do infrator.
• Princípio da necessidade da lei penal – necessária para punir o infrator.
• Princípio da proporcionalidade da pena em relação ao delito – não pode haver penas mais
gravosas do que o delito cometido.
São proibidas as penas infamantes, as penas corpóreas ou as penas relativas à confiscação de bens.

A primeira tentativa de projeto é de 1833 de José Manuel da Veiga. Este projeto, que nunca
entrou em vigor, consagra a pena de morte para alguns crimes. Apesar de o Governo ter aceite o
projeto, as Cortes não aprovaram este projeto.
A segunda tentativa deu-se em 1852, por Levy Maria Jordão. Ele elabora um código totalmente
inspirado nas correntes humanitaristas, retratando a abolição da pena de morte, mas ele não é
aplicado.
Em 1867 é publicado um Decreto que retrata a abolição da pena de morte para os crimes civis
– só é abolida para os crimes políticos na República e só é abolida para os crimes militares nos
anos 80.

Código Penal de 1886 – é influenciado pelo projeto de 1852 de Levy Maria Jordão. Ele perdura
quase 100 anos e já não previa a aplicação da pena de morte para crimes civis.

Código de Direito Administrativo


Existem vários códigos administrativos (cerca de cinco códigos administrativos até ao final do
séc. XIX) que vão oscilando em códigos mais ou menos centralizadores, consoante estejamos
perante governos mais autoritários ou liberais, respetivamente.
O primeiro ato é o Decreto nº23 de 1832, de Mouzinho da Silveira – ele vai proceder à extinção
dos forais e à possibilidade de estes manterem alguma influência na administração local. Com a
extinção dos forais, o território é dividido em três áreas – províncias, comarcas e concelhos.
Após a extinção dos forais, surgem códigos administrativos:
1. Código Administrativo de 1836 – era de Passos Manuel (código descentralizador). Ele
extingue as províncias e cria um sistema baseado em distritos, concelhos e freguesias.

2. Código Administrativo de 1842 – era de Costa Cabral (código centralizador). Ele reduz as
circunscrições administrativas, de forma a dotar o poder central de mais poder. Com efeito, a
nível nacional só surgem distritos e concelhos.

3. Código Administrativo de 1878 – era de Rodrigues Sampaio (código descentralizador). Ele


vai favorecer a organização do poder local, conferindo-lhe mais autonomia, em detrimento do
poder central.

4. Código Administrativo de 1886 – era de Luciano de Castro (código semelhante ao de


Rodrigues Sampaio).

5. Código Administrativo de 1896 – era de João Franco (código centralizador). Ele vigora até
à queda da Monarquia.

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