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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS CODIFICAÇÃO

Codificação 

Codificação constitucional do século XIX


século XIX - projeto político do Liberalismo/ tempo da codificação

● Constitucionalismo novecentista e o movimento da codificação


As correntes dominantes do nosso constitucionalismo historiográfico, tendem
normalmente a perspetivar o processo de instauração do ​Liberalismo em Portugal
através da ótica restrita da sucessão de constituições escritas.

Antecedentes factuais e ideológicos​:


- A ideia de ​constituição escrita constitui mera parcela de um sistema político ao lado
de outras como as de ​direitos individuais naturais do homem e do cidadão​: liberdade e
igualdade de todos os Homens perante a lei, soberania popular e nacional, governo
representativo, separação de poderes e monarquia constitucional.

O Liberalismo funda-se no pensamento de John Locke. O Liberalismo político


inicia-se com a Revolução Liberal de 1820.

Direitos naturais do Homem​:


- O Homem é, herança do racionalismo do século XVIII, ponto de partida e ponto de
chegada: os seus direitos configuram o poder e limitam-no.
1. direito = liberdade
2. segurança
3. propriedade

→ transformados pela ​Revolução Francesa​ em


1. liberdade ​(o Homem constitui o Estado para conseguir a salvaguarda plena dos
direitos)
2. igualdade
3. fraternidade

O Estado deve salvaguardar estes direitos, impondo limites. A ​liberdade significa


fazer o que a lei permite e não fazer o que a lei proíbe. Se a lei é o direito natural que o
homem disporia no estado de natureza, se é o garante e o limite da salvaguarda dos direitos,
porque não passá-los a escrito?​
Outra ideia associada ao Liberalismo é a de ​Constituição​, que se imporia a
governantes e a governados. O fundamento está nos Direitos do Homem.

Ana Maria Varela


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A ​soberania deixa de estar no rei e passa a estar no povo. Surge ​necessidade de um


poder eleitoral​. O povo deve exercer a sua soberania através de representantes: ​governo
representativo​. Os que exercem o poder fazem-no em representação do povo.
Separação de poderes​: separação de funções legislativo, executivo e judicial.

O constitucionalismo do século XIX é uma resultante da eliminação do


pluralismo e dos consequentes ​monopólio da lei - como modo de criação do Direito - ​e
monopólio do Estado​ - como criador e aplicador do Direito.
A ​lei afirmar-se-á como a principal fonte de direito​, mas tendencialmente a ​única
fonte de direito​ →​ movimento da codificação constitucional​.
As constituições deste período inserem-se, pois, no grande movimento de codificação,
devendo ser entendidas como meros Códigos de direito público, ao lado dos Códigos de
outros ramos de Direito.
Código​: texto sintético, sistemático e científico, produto de vontade política.

● Confronto entre as constituições antigas e as constituições liberais


As constituições liberais constituem-se as primeiras constituições formais, mas não
são a única forma histórica de constituição material.
Sempre que há um Estado duradouro tem de existir um estatuto fundamental,
formalizado ou não, de sociedade politicamente organizada. Alguns dos antecedentes das
constituições escritas liberais são: Magna Carta Inglesa (1215), alguns forais medievais
portugueses, cartas coloniais (séculos XVII e XVIII).

O que as Constituições liberais, contudo, manifestam de ​novidade são os seguintes


caracteres:
❏ carácter de fundação efetuada por um ​poder constituinte qualitativamente
diferente do mero poder legislativo;
❏ especial formalização dos textos constitucionais​, bem distinta do exercício
do poder legislativo ordinário;
❏ carácter de de estatuto fundamental do Estado​, decretado ​ex novo pelo
poder constituinte.

Ana Maria Varela


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!! Cabral de Moncada: enquanto que ‘’as constituições políticas antigas eram quase
sempre um produto muito lento de condicionalismos complexos (...), as dos Estados
modernos são geralmente um produto repentino da vontade soberana de uma raça, atuando
sob a representação de causas finais…’’; Por outro lado, ‘’ao passo que as constituições
antigas eram o resultado de um acordo ou contrato firmado entre os dois poderes, soberano e
povo, (...) visando o bem comum, as Constituições modernas resultam também de um
contrato, mas não celebrado apenas entre duas partes contratantes: é celebrado entre todos os
membros da comunidade’’.

● As primeiras Constituições liberais


O movimento liberal das constituições escritas tem origem nas ​Revoluções Americana
e Francesa​, que levam ao ​aparecimento de dois estilos de liberalismo e de textos
constitucionais​.
- o liberalismo anglo-saxónico (radica numa postura consensualista que retoma
as teses do dualismo medieval); produziu a Constituição americana de 1787;
dá origem ao pensamento liberal propriamente dito
- postura absolutista​, traduzida num carácter estadualista, considerando que,
pelo ‘’contrato social’’, muitas vezes confundido com a ideia de constituição
escrita, os indivíduos conferem ao Estado os seus ​direitos naturais​, e este
devolve-os em forma de ​direitos civis​; ​origina a conceção democrática​,
acentuando a ideia de igualdade

1. A primeira Constituição francesa é de ​1791​: ​mantém o rei como chefe executivo e


estabelece uma Assembleia Legislativa única eleita por sufrágio indireto e censitário.
2. A segunda Constituição é do Ano I, elaborada pela Convenção e aprovada por
referendo popular em ​junho de 1793​, mas quase inaplicada, porque em 10 de outubro
a Convenção consagrou o ​estabelecimento do regime do Terror​.
3. Segue-se a Constituição do Ano III, aprovada por referendo em ​setembro de 1795​:
lançou as bases do regime do Diretório, acentuando a separação de poderes e
restabelecendo o sufrágio indireto e censitário, passando a existir duas Assembleias e
um diretório executivo de cinco membros.
4. …
5. Em ​4 de junho de 1814​, Luís XVIII outorga uma ​Carta Constitucional​, ​constituindo
um ​regime de ​monarquia constitucional​, ​que vai permanecer até 1848.

● Portugal
Os textos constitucionais portugueses do século XIX inserem-se na complexa teia de
influências do movimento liberal internacional. Os juristas vão procurar respostas à ​luz da
Lei da Boa Razão.​ Habituam-se a olhar para o direito de potências estrangeiras.

Ana Maria Varela


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A ​Constituição de 1822 é marcada pela Constituição de Cádis de 1812, por sua vez
influenciada pela francesa de 1791. A ​Carta Constitucional de 1826 tem a sua genealogia
na Carta Constitucional brasileira de 1824, e na francesa e 1814.
Períodos de vigência dos textos constitucionais​:
➢ A primeira Constituição foi aprovada em ​23 de setembro de 1822 e jurada
por D. João VI em 1 de outubro seguinte. Estará em vigência ​até 2 de junho de
1823​ e, num segundo período, de 10 de setembro de 1836 a 4 de abril de 1838.
➢ A Carta Constitucional outorgada em ​23 de abril de 1826 e jurada por D.
Isabel Maria em 31 de julho seguinte, terá três períodos de vigência: 1) até 3
de maio de 1828; 2) da Convenção de Évora Monte (27 de maio de 1834) e
reunião das Cortes Constituintes (15 de agosto de 1834 até 9 de setembro de
1836); 3) de 10 de fevereiro de 1842 até à implantação da República.
➢ A Constituição de ​1838 estava em vigor desde ​4 de abril e jurada por D.
Maria II ​até 10 de fevereiro de 1842​.

O movimento geral da codificação


meados do século XIX - quando a amenização da vida política e o amadurecimento da ciência
do direito permitir a elaboração e discussão dos diversos projetos de Códigos

As raízes deste movimento científico e legislativo em Portugal estão não apenas na


receção das conceções acerca da ordem jurídica e de produção doutrinal dos autores da
Escola do Direito Natural Moderno e do ​usus modernus pandectarum,​ como também na
vontade política de se proceder a reformas profundas no corpo de direito pátrio, no âmbito do
movimento reformista e revolucionário que em Portugal vai abalar as estruturas do Antigo
Regime a partir do período revolucionário de 1820.

→ A ​Lei da Boa Razão e a sua interpretação autêntica feita pelos Estatutos da Universidade
em 1772, vem abrir o caminho para a citação frequente dos autores do ​usus modernus
pandectarum.​
→ Se assim estava definida aplicação do ​direito romano como fonte subsidiária, em
matérias políticas, económicas mercantis e marítimas, poder-se-ia recorrer imediamente Às
leis em vigor nas nações estrangeiras consideradas iluminadas. ​É a porta aberta para a
receção dos Códigos modernos - como os da ​Prússia ​(1794), da ​França (1804), de ​Áustria
(1811) e da ​Sardenha​ (1827).

Ferreira Borges​, ​autor do primeiro Código moderno português (Código de


Direito Privado - comercial), exprime essa tendência no seu ​Dicionário Jurídico-Comercial​.
Exprime que deveria ser aplicado o código napoleónico em Portugal (solução, em caso de
lacuna, face ao direito pátrio).

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Para além destas raízes doutrinárias e legislativas começa a ser frequente a ​intenção
de ​reformar o Direito português​, tanto na sua forma como no seu conteúdo.
Um alvará de 4 de setembro de 1810 vem dizer que toda a legislação deve ser
uniforme em sistema, coerente em princípios e mui ajustada aos de direito natural​.

● Direito comercial
A codificação em Portugal começa com o Direito Comercial. Este tema está ligado ao
nome de ​Ferreira Borges​, autor do projeto que haveria de converter-se no ​Código
Comercial de 1833​.
Em fevereiro de 1823, 3 anos após a Revolução Liberal, surgiu necessidade de dotar o
país de um novo Código Comercial, dado que a legislação pátria era incompleta nesta
matéria, e as soluções eram encontradas de acordo com os usos; o acesso a estas fontes era
dificultado.

A questão do Código Comercial aparece pela primeira vez debatido nas Cortes em
sessão de ​3 de fevereiro de 1823​.
→ intenção de sistematizar num só Código ou corpo de normas e princípios
reguladores da atividade mercantil, a qual exige, para segurança das transações, um direito
claro e certo
→ vigora como direito subsidiário e nos quadros da Lei da Boa Razão (1769) as leis
das ​nações civilizadas e polidas da Europa​, o que, tendo permitido a importação das
disposições constantes dos Códigos e leis das nações consideradas civilizadas e evoluídas,
teria deixado pairar grande confusão quanto ao direito aplicável a cada caso concreto
→ a legislação pátria é muito incompleta e casuística e as matérias de direito
comercial são muitas vezes revertidas para as praxes e usos das praças comerciais

18 de agosto de 1832​: Um ​decreto assinado por ​Mouzinho da Silveira revela a


preocupação da autoridade pública com a criação de um novo Código Comercial ‘’que trate
de decidir com justiça as diferentes dúvidas que nascem do comércio’’. ​Cria-se uma comissão
composta por cinco membros a fim de redigir os Códigos Comercial e Criminal​. Esta
comissão ficou constituída pelo Conselheiro ​Joaquim António de Magalhães, ​pelo Doutor
Joaquim António de Aguiar​,...
Contudo, passados poucos meses, o novo Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da
Justiça, ​Joaquim António de Magalhães propõe ao regente D. Pedro um decreto - que este
promulga na data de 10 de dezembro de 1832 - em que propõe a reformulação da comissão.
A essa comissão também é atribuída a tarefa de proceder imediatamente à divisão judicial do
Reino e à das províncias do Minho e Trás-os-Montes. Mas estava inviabilizado o sucesso
destas comissões parlamentares ou governamentais na feitura dos Códigos.

Ana Maria Varela


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Vai ser produto do trabalho individual de ​Ferreira Borges a elaboração do primeiro


Código de Direito Comercial português. O seu projeto foi elaborado em Londres, durante
exílio político, e apresentado ao rei e ​aprovado por decreto de ​18 de setembro de 1833​.
Promulgação do Código pelo Imperador D. Pedro. Constituído por 1860 artigos e dividido
em 3 partes: uma relativa ao comércio terrestre, outra referente ao comércio marítimo,
tratando o livro terceiro do foro mercantil e das ações comerciais.

Fontes legislativas e doutrinais do Código de 1833


Ferreira Borges acompanhou a oferta do projeto de uma ​carta e de um ​livro​, a
defender as intenções do seu Código.
Inspirou-se nos Códigos da Prússia, da Flandres, da França, de Itália, Espanha e nas
leis comerciais de Inglaterra, bem como no Direito da Escócia, Ordenações da Rússia,
Alemanha.
Das várias fontes, a influência determinante foi do Código Comercial Italiano, do de
Espanha e do Código Comercial Francês.

O Código Comercial de 1833 vem a vigorar ​até à entrada em vigor do atual Código
aprovado por ​carta de lei de 28 de junho de 1888 e para entrar em vigor em todo o
continente e ilhas adjacentes no início do ano de 1889.
→ ​segundo Código Comercial​: 1888; dividido em 3 livros, respeitantes ao comércio
em geral, aos contratos especiais do comércio e ao comércio marítimo, respetivamente; as
matérias relativas ao direito adjetivo e à organização judiciária do foro mercantil são
afastadas do Código

● Direito administrativo
Outra das preocupações codificadoras do século XIX foi a do Direito Administrativo,
traduzida em sucessivos Códigos, postulando quase pendularmente diferente atitude do poder
central face ao local, oscilando entre o modelo francês, centralizador e a tradicional
autonomia municipal.
Mouzinho da Silveira revela uma tendência centralizadora. Influência do modelo
francês.

A Constituição de 1822 e a Carta Constitucional


Os textos constitucionais da década de vinte aludiam à estrutura organizativa do país a
nível local.
Propunha a ​Constituição de 22 o enquadramento do território em circunscrições
maiores à frente das quais se encontraria um ​administrador-geral​, de nomeação régia,
auxiliado por uma ​junta administrativa​, integrada por tantos membros quanto os concelhos

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existentes no distrito. A nível concelhio, mantinham-se as ​Câmaras​, integradas por


vereadores eleitos diretamente, sendo o mais votado designado ​presidente​, dotadas de ampla
autonomia.
A ​Carta de 1826 ​não introduziu grandes alterações à doutrina constitucional anterior,
limitando-se a denominar as circunstâncias maiores, ​províncias​.

Extinção dos forais - decreto nº23


Divisão do território em províncias, comarcas ​e concelhos​, juntos dos quais
funcionariam representantes do governo central respetivamente designados ​perfeitos,
sub-perfeitos ​e ​provadores​ eleitos pelo poder central​.
Foram ​definitivamente revogados os forais​.

1º ​- Reagindo ao centralismo de Mouzinho da Silveira, vai o Setembrismo elaborar


em ​1836 ​o ​primeiro Código Administrativo ​português, na sequência de uma substancial
redução do número de concelhos.​ ​A orientação era diversa face ao projeto anterior.
Propunha-se a ​divisão do território em distritos, concelhos e freguesias​, tendo à frente
respetivamente um ​administrador geral​, um ​administrador e um ​regedor​, escolhidos pelo
governo entre listas votadas. → ​maior ​descentralização

Na vigência deste Código, surgiria a ​Constituição de 1838​.

2º ​- Contudo, a coletividade local e a curta duração dos mandatos não favoreceram a


estabilidade administrativa. Por isso, a reação manifestou-se com o ​governo de ​Costa
Cabral através da redação do ​novo Código Administrativo em ​1842​. A atitude foi
centralizadora​, passando a divisão administrativa a assentar em distritos e concelhos,
referindo-se à freguesia a dignidade que o Código anterior lhe conferira, em compensação da
drástica redução do número de concelhos. → ​governador civil como representante do
poder central no distrito
A aplicação deste Código fez-se também em territórios coloniais, nos quais se
manteria em vigor até à República, se bem que substancialmente alterado em 1869.

3º - A sua substituição fez-se por iniciativa de ​Rodrigues Sampaio em ​1878​, que em


novo Código Administrativo retomou a divisão local tripartida de Manuel da Silva Passos
(retoma-se divisão do Código de 1836). favorecia a ​organização local​, conferindo-lhe ​maior
autonomia​, suprimindo-se genericamente a competência interventiva central. → ​pendor
mais descentralizador

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4º ​/​ 5º ​- ​Até ao fim da monarquia dois outros Códigos teriam vigência:


❏ 1886​ (Luciano Castro): orientação descentralizadora próxima de 1836 e 1878
❏ 1896 (João Freire): retoma movimento centralizador que retirava ao distrito a
qualidade administrativa

A ​transição para a República far-se-ia através da reposição em vigor do Código de


1878, em conjunção com o de João Franco, subsidiariamente utilizado.

● Direito penal
O Direito Penal português assentava ainda a sua base legislativa no ​Livro V das
Ordenações Filipinas​, onde estavam tratadas as matérias relativas aos delitos e às penas. O
sistema penal mantém características idênticas que já se apresentavam nas ​Ordenações
Afonsinas e Manuelinas​.

- a ​pena de morte é largamente utilizada, podendo em alguns casos ser precedida de


suplícios
- penas corporais
- penas infamantes
- a ​prisão tem carácter ​preventivo​, ainda que em alguns casos assuma natureza
repressiva, podendo a sua duração ser arbitrária (à mercê do rei)
- as ​penas ​são, muitas vezes, ​arbitrárias​, de ​aplicação desigual​, conforme a condição
social do réu e até mesmo ​transmissíveis
- punem-se ​factos absurdos​ e de escassa relevância ético-social
- a ​tortura​ é expressamente admitida como meio de prova

Em algumas disposições estabelecem-se princípios certos e louváveis: que a pena


deve ser conforme aos casos, e culpas, que se cometam.
No reinado de D. José em correspondência do absolutismo político que marcou o
primado governativo do Marquês de Pombal surgem-nos vários diplomas contemplando
matéria criminal e que caracterizam pelo ​rigor punitivo​.

→ ​carta régia de 21 de outubro de 1754​: responsabilidade penal permaneceria para além da


morte

Contudo, apesar destas tendências aqui reveladas em contradição com os ventos


filosóficos que sustentavam o ​humanitarismo jurídico na determinação e execução das
penas, ​não deixou a legislação Pombalina de refletir a influência dessa ideias numa clara

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demonstração da que o ambiente político e as exigências da governação nem sempre se


sobrepunham ao clima ideológico, sendo aqui e acolá penetráveis às novas doutrinas.

→ alvarás de 28 de julho de 1751 e ​12 de junho de 1769​: manifesta-se o princípio de que


as penas devem ser proporcionadas aos delitos; enquanto que em idênticos diplomas de ​11 de
agosto de 1759 e ​6 de novembro de 1769 já se vem contudo afirmar que a mudança dos
tempos faz tal alteração no estado das coisas, que nuns casos são insignificantes as penas que
em outros foram proporcionadas aos delitos

→ ​assento de 8 agosto de 1758 defende-se o princípio de que as penas não admitem


extensão pro Direito e num outro assento de ​22 de junho de 1768 sustentava-se que não
existindo culpa não deve haver castigo

O advento do Liberalismo em Portugal é marcado no campo do Direito Penal por um


trabalho doutrinário e polémico da autoria de ​Francisco Freire de Mello​, sobrinho de ​Mello
Freire​, que foi quem veio a editar alguns dos seus trabalhos.
É marcado pela entrada em Portugal de uma conceção de pensamento, que começa a
surgir no século XVIII - ​Humanitarismo​ (diferente de humanismo).

Freire de Mello publicou em Londres, no ano de ​1816​: ​Discurso sobre delitos e


penas​, onde expõe críticas ao Direito criminal.
Estas ideias estão em sintonia com as reclamações a propósito da reforma do Direito
penal, que vão surgir com grande frequência na ​imprensa liberal surgida após a Revolução de
1820​. Critica-se o ​estado caótico da legislação e o ​obscurantismo da lei​, que não garante a
univocidade da sua interpretação nem certeza na sua aplicação. A lei penal é considerada
bárbara e sem critério​, determinando a aplicação de ​leis cruéis​. As Ordenações são
severamente condenadas, não deixando de perpassar como pano de fundo de todo esse
discurso a ​filosofia utilitarista como base criterial da renovação​.

O trabalho de Freire de Mello vem a ser ​editado em Portugal no ano de 1822 (II ano
da liberdade civil). ​A influência da escola humanitarista de Beccaria e Filangieri é aqui
patente.
Indo buscar as ​raízes filosóficas aos autores racionalistas dos séculos XVII e XVIII e
ao enciclopedismo francês setecentista, o ​Humanitarismo no Direito penal é, de certa forma,
a maneira como o ​jusracionalismo se vai opor à ​intolerância religiosa da ortodoxia, da

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mesma forma que, no campo da construção e da sistemática jurídica renova os quadros


dogmáticos anteriores. Assente numa ​ética racionalista​, esta corrente vai pugnar pela
humanização do Direito ao registar formas gravosas de reação social (penas cruéis e
infamantes, tortura, prisão perpétua, pena de morte, condenação por motivos destituídos de
fundamentos ético-socias → crimes religiosos, bruxaria, feitiçaria, alcovitaria,...).

→ ​1764​: ​Marquês de Beccaria (César Bonesana) vai construir um texto com


influência determinante; defende a ​humanização do direito penal​; esta obra entra em
Portugal através de um trabalho doutrinário de Francisco Freire de Mello (um dos críticos da
comissão); teve um êxito significativo.
Encontram-se aqui expressas muitas das ideias da época relativamente ao Direito
penal e à necessidade da sua reforma.

Freire de Mello preconiza que a ​medida da pena deve ser determinada pelo ​fim que
esta se propõe a prosseguir​. ​A pena deve ser suficientemente dura para prosseguir o fim a
que o legislador se propõe e não mais.

Tendência do utilitarismo das penas (devem ser úteis em função do fim a que se
destinam):
➢ as leis penais estão desatualizadas (devem ser atualizadas → a pena deve ser
suficientemente dura para prosseguir o fim que o legislador quer acautelar, não outro;
utilidade)
➢ as penas cruéis devem ser abolidas​ (o fim não pode ser o de exercer vingança)
➢ a pena de prisão deve ter efeito preventivo e não de castigo perpétuo (entende-se
que qualquer criminoso pode ser recuperado pela sociedade)
➢ pena de morte para homicídio qualificado e no caso de traição à pátria (saber qual o
fundamento da mesma; a este respeito, Freire de Mello afasta o critério de Beccaria
que se baseou na ideia de contrato social para negar que alguém ao entrar no estado de
sociedade tenha oferecido a esta o direito de lhe tirarem a vida; diz Freire de Melo que
‘’não se atreva a negar ao legislador o direito de impor a pena capital’’)
➢ necessidade de clareza e segurança da lei penal​: a discricionariedade do juiz deverá
ser reduzida ao máximo sob pena de se dar azo ao ​arbítrio​ e injustiça
➢ a ​transmissibilidade​ é impugnada por Freire de Mello

No campo legislativo, desde 1822 há várias tentativas de codificação do Direito penal.


Vão ser materializadas em ​1833​ num ​projeto de​ ​Código Penal​.

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Em ​23 de novembro de 1821​, nomeiam as Cortes Constituintes uma comissão, com


sede em Coimbra, à qual cometem o ​encargo de elaborar um projeto de ‘’Código de delitos e
penas e de ordem do processo criminal’’​. Esta comissão, formada por cinco jurisconsultos,
chegou a elaborar uma extensa parte do projeto, tendo o seu vogal - José Maria Pereira Forjaz
- publicado, em ​1823​, um ‘’Extrato de projeto de Código de delitos e penas’’.
Os trabalhos da comissão nomeada não estavam a ser suficientemente célebres, e
optou-se por estabelecer através de lei (​14 de fevereiro de 1823​) um prémio a favor de quem
apresentasse até ao último dia do mês de fevereiro de 1824, sob forma anónima, um ​Projeto
de Código Penal​, que fosse escolhido pelos deputados.

Em ​1833 ​é um projeto de Código Penal oferecido ao Governo pelo jurista José


Manuel da Veiga. Foi acompanhado de uma comissão para o auxiliar na tarefa de rever o
projeto de Código.
O Código em posse do governo desde 1833 foi revisto em apenas 11 dias, o que
explica a intenção de o aprovar antes da restabelecida normalidade constitucional (estamos na
ditadura de Passos Manuel, saída da Revolução de setembro de 1836; as Cortes Constituintes
já se encontravam convocadas desde 12 de novembro, recomeçando a funcionar a partir de 26
de janeiro de 1837).

Fracassadas todas as iniciativas, vai-se novamente criar por ​decreto de 10 de


dezembro de 1845​, uma ​comissão encarregada de redigir os projetos de Código Civil e
Código Penal​, dando prevalência ao segundo.
A comissão terminou a tarefa, concluindo o ​Código Penal​, que foi ​promulgado por
decreto ditatorial de 10 de dezembro de 1852​, sem ser revisto e aperfeiçoado.

→ revisão de legislação determinante: comissão de 1857, destinada a rever o Código de


1852; David Maria Jordão

Reforma das prisões de 1867​: marco importante na História do Direito penal


português, uma vez que é ​abolida a pena de morte em Portugal​.
À reforma de 1867, sucedeu a ​Reforma Penal de 1884; dois anos depois, em 1886,
viria a ser ​elaborado o Código Penal​, que apesar de muito alterado, revogado e completado
por diplomas autónomos, é ainda o que se encontra em vigor.

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● Direito civil
Foram várias as tentativas das Cortes para ​promoverem a codificação do Código
Civil​, quer através da designação de comissões com essa incumbência, quer através da
abertura de concursos públicos com essa intenção.

- 11 de outubro de 1821​: foi constituída uma Comissão de Justiça Civil


- 26 de novembro de 1821​: dá-se conta no Diário das Cortes Gerais e
Extraordinárias da Nação portuguesa, da entrada de uma carta do jurisconsulto
inglês Jeremias Bentham, em que oferece às Cortes um projeto de Código
Penal, outro de Código Civil e outro de Código Constitucional
- ...

Em 22 de junho de ​1867​, foi o Código Civil aprovado na generalidade, e começa a


vigorar a ​22 de março de 1868​.
Rigoroso na lógica da exposição e sistematização das matérias, original no método,
foi o ​Código de Seabra fruto do trabalho de um só homem (Visconde Seabra). Mas para a
sua elaboração foi preciso que a ciência jurídica portuguesa atingisse um certo estádio para o
que contribuiram os compêndios e exposições de direito civil devidas a ​Almeida e Sousa,
Borges Carneiro, Correia Telles​ e outros juristas portugueses.
É o único Código do Seculo XIX.

● Direito processual
O direito processual é ​consequência da necessidade de dirimir conflitos
resultantes da violação do direito substantivo​, ou da insuscetibilidade de determinar o seu
real alcance, quer entre entes privados, quer públicos, quer reciprocamente entre si. Para tal,
torna-se necessário objetivar normas especificadoras do caminho a seguir nos órgãos
adequados, preceitos esses vinculativos não só do órgão como dos que nele litigam.

Surgiu em ​1876 o ​primeiro Código de Processo Civil​, já completamente distinto do


Penal, logo seguido de outro ligado ao âmbito comercial, mantido em vigor até 1939.
Apenas em ​1929 viria a ser substituída a legislação anterior por um novo e ​primeiro
Código de Processo Penal​.

Ana Maria Varela


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