Você está na página 1de 71

Dinis Abrantes Figueiredo

Teoria Geral do Direito Civil I

Ano letivo de 2021/2022


I Capítulo
1. Direito Civil
1.1 Direito Civil do ponto de vista formal e sistemático
O Direito Civil é Direito Privado Geral. Primeiro, sendo Direito Privado, tal significa
que o Direito Civil está inserido no Direito Privado, distinguindo-se do Direito Público.
Para tal a doutrina veio formular várias teorias que estabelecem critérios de distinção
entre o Direito Privado e o Direito Público:
- Teoria objetiva dos interesses: A teoria dos interesses diz que são normas de Direito
Público aquelas que tutelam interesses públicos e são normas de Direito Privado aquelas
que tutelam interesses particulares.
-» Críticas:
1) Existem normas de Direito Privado que tutelam interesses públicos.
-» Exemplo: Formalidade obrigatória para a celebração de negócios jurídicos (875º
CC)
2) Existem normas de Direito Público que tutelam interesses particulares.
-» Exemplo: Normas de Direito Penal que tutelam bens jurídicos individuais
- Teoria objetiva do interesse predominante: A teoria do interesse predominante diz
que são normas de Direito Público aquelas que tutelam predominantemente interesses
públicos e são normas de Direito Privado aquelas que tutelam predominantemente
interesses particulares.
-» Críticas:
1) É difícil estabelecer uma ordenação hierárquica dos interesses tutelados pelas normas
através da interpretação das mesmas.
2) Existem normas de Direito Privado que tutelam predominantemente interesses
públicos.
-» Exemplo: Generalidade das normas imperativas (normas que não podem ser
afastadas por aqueles a quem se destinam) de Direito Civil
3) Existem normas de Direito Público que tutelam predominantemente interesses
particulares.
-» Exemplo: Normas que fixam os estatutos dos funcionários públicos
- Teoria subjetiva da posição relativa dos sujeitos: A teoria da posição relativa dos
sujeitos diz que as normas de Direito Público regulam relações de supra-infra-ordenação
(relações em que um sujeito está numa posição de superioridade e o outro numa posição
de inferioridade) e as normas de Direito Privado regulam relações de paridade ou
igualdade (relações em que os sujeitos encontram-se ao mesmo nível).
-» Críticas:
1) Existem normas de Direito Público que regulam relações em que os sujeitos estão
numa relação de paridade.
-» Exemplo: Relações entre os Estados (Direito Internacional Público)
2) Existem normas de Direito Privado que regulam relações em que os sujeitos estão
numa relação de supra-infra-ordenação.
-» Exemplo: Relações entre a entidade patronal e o trabalhador (Direito do
Trabalho); relações entre pais e filhos (Direito da Família)
- Teoria subjetiva da identidade dos sujeitos: A teoria da identidade dos sujeitos diz
que as normas de Direito Público regulam relações entre particulares e o Estado ou entre
entes públicos entre si e as normas de Direito Privado regulam relações entre
particulares. Sendo assim, o que distinguiria o Direito Público e o Direito Privado seria

2
a presença do Estado.
-» Críticas:
1) Existem situações em que o Estado surge a atuar como um particular.
2) Existem normas de Direito Público que regulam relações entre particulares entre si.
-» Exemplo: Normas que regulam os concursos de acesso à função pública
- Teoria subjetiva da qualidade dos sujeitos: A teoria da qualidade dos sujeitos diz
que as normas de Direito Público regulam as relações entre particulares e o Estado,
particulares e entes públicos ou entre entes públicos entre si desde que o Estado surja
munido de ius imperium (poder de emitir comandos vinculativos, executáveis pela
força, contra aqueles a quem se dirigem) e as normas de Direito Privado regulam as
relações entre particulares e o Estado, particulares e entes públicos ou entre particulares
entre si desde que o Estado surja despido do seu poder de autoridade pública.
-» Imperfeições:
1) Existem normas que integram o Direito Público, embora seja difícil perceber porquê.
-» Exemplo: - Normas que regulam o funcionamento dos órgãos de soberania
(pessoas coletivas públicas)
- Normas que regulam a atribuição de determinadas subvenções ou
subsídios
→ Não obstante as suas imperfeições, a generalidade da doutrina e o ordenamento
jurídico português acolheram a teoria da qualidade dos sujeitos como critério
distintivo entre o Direito Público e Direito Privado, sendo tal evidente nos seguintes
casos:
-» 501º CC – Quando o Estado ou demais pessoas coletivas de Direito Público e
pessoas singulares ao serviço destas entidades praticam um ato danoso no exercício de
atividades de gestão privada (despidos de ius imperium), aplica-se o regime do CC.
Quando o Estado ou demais pessoas coletivas de Direito Público e pessoas singulares ao
serviço destas entidades praticam um ato danoso no exercício de atividades de gestão
pública (munidos de ius imperium), aplica-se o regime da lei n.º 67/2007.
-» 1304º CC – Relativamente aos bens que pertencem ao domínio privado do Estado
ou de qualquer ente público despido de ius imperium, aplica-se o regime do CC.
-» 2133º CC conjugado com 2153º CC – Podendo o Estado, despido de ius
imperium, ser herdeiro como qualquer outro herdeiro, tem relativamente à herança os
mesmos direitos e deveres que qualquer outro herdeiro.
1.2 Ponderação crítica
1.2.1 Dificuldades na distinção entre Direito Público e Direito Privado
Embora se possa distinguir entre Direito Público e Direito Privado segundo a teoria da
qualidade dos sujeitos, surgem algumas dificuldades no enquadramento de certas
situações nos dois ramos do Direito por dois grandes motivos:
1) Modificação da atividade administrativa:
- Por um lado, se um médico atua numa clínica privada e cause um dano a
alguém, o médico é responsável. Por outro lado, se um médico atua num hospital do
Serviço Nacional de Saúde e cause um dano a alguém, o Estado é responsável. Contudo,
a atuação do médico quer na clínica privada quer no hospital público é análoga.
- A atividade administrativa complexificou-se de tal forma que o Estado por vezes
contrata privados para cumprir funções que fazem parte da sua esfera de ação.
2) Surgimento de novos ramos de Direito compostos por normas de Direito Público e
de Direito Privado:
-» Exemplo: Direito do Consumo, Direito do Trabalho, Direito Bancário.

3
1.2.2 Importância prática da distinção entre Direito Público e Direito Privado
Apesar daquelas dificuldades, continua a ser importante manter a distinção entre Direito
Público e Direito Privado segundo a teoria da qualidade dos sujeitos pelas seguintes
razões:
1) O regime jurídico aplicável pode ser diferente consoante o problema seja
qualificado como um problema privado ou público.
2) A competência dos tribunais é determinada em função da distinção: Enquanto os
tribunais administrativos e fiscais são competentes em questões respeitantes a assuntos
de Direito Público, os tribunais comuns (tribunais cíveis, tribunais de competência
especializada (da concorrência, de família e menores, de trabalho, etc.)) são
competentes em questões respeitantes a assuntos de Direito Privado.
3) A intencionalidade de cada um dos ramos do Direito é diversa. No âmbito do
Direito Privado prevalece uma ideia de liberdade e uma ideia de justiça comutativa,
enquanto que no âmbito do Direito Público prevalece uma ideia de legalidade e uma
ideia de justiça distributiva.
1.2.3 O problema da constitucionalização do Direito Civil
A autonomia do Direito Privado é por vezes posta em causa por correntes ligadas à
constitucionalização do Direito Privado. Contudo, dever-se-á recusar esta ideia, embora
seja evidente que o Direito Constitucional tenha um impacto importante ao nível do
Direito Privado, mais concretamente, do Direito Civil:
1. As normas de Direito Civil têm que ser compatíveis com as normas
constitucionais. Se não for o caso, são inconstitucionais e devem ser desaplicadas.
2. Os direitos, liberdades e garantias são diretamente oponíveis/invocáveis nas
relações entre privados, nos termos do artigo 18º CRP.
3. Na interpretação que se faça de determinados conceitos indeterminados ter-se-á
que recorrer aos princípios constitucionais.
-» Exemplo: O artigo 280º CC diz que “É nulo o negócio jurídico contrário à
ordem pública ou ofensivo dos bons costumes.”
→ Apesar do impacto que o Direito Constitucional exerce sobre o Direito Civil, a
verdade é que o Direito Constitucional mantém intocável a intencionalidade do Direito
Civil.
-» Exemplo 1: Tanto o Direito Constitucional (artigo 13º CRP) como o Direito Civil
consagram o princípio da igualdade. Contudo, embora o princípio da igualdade vigore
nos dois âmbitos, a sua intencionalidade e a sua relevância são distintas.
-» Exemplo 2: Tanto o Direito Constitucional (inconstitucionalidade) como o Direito
Civil (ilicitude ou invalidade) têm sanções típicas, mas distintas.

2. Direito Privado como Direito Privado Geral


Segundo, sendo Direito Geral, tal significa que, estando inserido no Direito Privado, o
Direito Civil confronta-se com ramos de Direito Privado Especiais.
2.1 Direito Privado Geral e Direitos Privados Especiais
Nas suas origens, o Direito Civil confundia-se com todo o Direito Privado, pois
regulava todas as relações entre particulares. Só com a complexificação de alguns
setores de atividade (ex. Direito Comercial) e com o surgimento de especiais
necessidades de proteção (ex. Direito do Trabalho) é que começaram a ser criadas
regras especiais que, agrupando-se num corpo legislativo autónomo e coeso, acabaram
por autonomizar certos ramos do Direito Privado, os Direitos Privados Especiais,
deixando o Direito Civil de se identificar com todo o Direito Privado e passando a ser
entendido como Direito Privado Geral por estabelecer um regime-regra.

4
2.1.1 Direito Comercial
A partir de certa altura, a atividade mercantil começou a desenvolver-se bastante e
passou a trazer mais exigências para os comerciantes. Estes, por vezes, tinham que
afastar as normas de Direito Civil para tornar tudo mais célere. É por isso que surgiram
regras especiais que se aplicavam aos comerciantes e à sua atividade e que, agrupando-
se num corpo legislativo autónomo e coeso, acabaram por autonomizar aquilo que é
hoje o Direito Comercial.
2.1.2 Direito do Trabalho
A certa altura da História eclodiu a Revolução Industrial, no âmbito da qual surgiu uma
classe operária que começou a ser profundamente explorada. Por conseguinte, surgiu a
necessidade de tutelar de uma forma mais intensa os trabalhadores. Mais uma vez
surgiram regras especiais que se aplicavam aos trabalhadores e às suas condições
laborais e que, agrupando-se num corpo autónomo e coeso, acabaram por autonomizar
aquilo que é hoje o Direito do Trabalho.
2.2 Direito Civil como Direito Privado Geral, Direito mãe e Direito
subsidiário
O Direito Civil, por ser Direito Privado Geral, pode também ser qualificado como
“Direito-mãe” porque todos os ramos de Direito Privado Especiais se autonomizaram a
partir do corpo legislativo do Direito Civil. Contudo, quando algo não esteja
especificamente regulado nos Direitos Privados Especiais, aplica-se o Direito Privado
Geral, ou seja, o Direito Civil. É por isso que o Direito Civil é igualmente considerado
como Direito subsidiário dos ramos de Direito Privado Especiais.
O Direito Civil regula a generalidade das relações entre particulares, sendo o ramo do
Direito que atinge mais extensamente e intensamente o Homem. Extensamente porque o
Direito Civil acompanha toda a vida do Homem, desde antes do seu nascimento (tutela
dos direitos dos nascituros) até depois da sua morte (tutela post-mortem dos direitos de
personalidade). Intensamente porque o Direito Civil exerce a sua influência sobre a
generalidade dos atos da pessoa. Porém, para o Direito Civil, o Homem não é um mero
indivíduo, mas sim uma Pessoa. Por conseguinte, quando o Direito Civil coloca no
centro da sua disciplina a Pessoa, não é neutro do ponto de vista axiológico.

3. Os princípios fundamentais de Direito Civil


Do ponto de vista material, o Direito Civil é caracterizado por princípios fundamentais
que o estruturam.
3.1 Personalismo ético
De acordo com o personalismo ético, o Direito Civil não é neutro sob o ponto de vista
axiológico. O Direito Civil está assente no “Homem-Pessoa” e na sua ineliminável
dignidade ética.
Mas o que é ser Pessoa? Durante muito tempo, o Homem foi considerado um mero
indivíduo, ou seja, um ser isolado, egoísta, solipsista, solitário, que agia como queria
desde que não afetasse o outro. O outro era visto como uma barreira à prossecução das
suas necessidades. Contudo, ao longo de uma longa evolução sob o ponto de vista
filosófico e jurídico, percebeu-se que o Homem teria que ser concebido como Pessoa,
ou seja, como um ser de relação, que não se consegue realizar e desenvolver no seu
isolamento, mas sim através do contacto com o outro. No âmbito desse contacto, o “tu”
exige ao “eu” que o respeite como inteiramente digno e, como o “eu” reconhece o “tu”,
por um lado, como inteiramente digno e, por outro lado, como seu semelhante, percebe
que é igualmente inteiramente digno. Sem o “tu”, o “eu” deixa de o ser na sua plenitude.

5
Porém, se o “tu” se degradar através dos seus comportamentos e escolhas e dirigir ao
“eu” uma proteção de respeito, o “eu” vai-se reconhecer apenas na degradação. Ou seja,
esta relação de respeito entre o “eu” e o “tu” só pode ser alicerçada na pressuposição de
um quadro valorativo, de uma dimensão ético-axiológica de total dignidade. Resulta
daqui que o Direito Civil não é neutro sob o ponto de vista axiológico.
Corolários do personalismo ético ao nível do Direito Civil:
1) Consequências ao nível da compreensão do direito subjetivo
2) Reconhecimento do ser humano como um ser que tem uma dignidade própria e
originária
3) Reconhecimento de direitos de personalidade
4) Consequências ao nível da compreensão da liberdade
5) Consequências ao nível da compreensão da responsabilidade
6) Reconhecimento da personalidade e capacidade jurídicas a todos os homens
7) Consequências ao nível da compreensão do direito de propriedade não-
individualístico
8) Afirmação da família como um polo de integral desenvolvimento da pessoa
3.2 Princípio da autonomia privada
A autonomia privada vem dizer que o sujeito é iminentemente livre no âmbito do
Direito Privado. Esta liberdade de que o sujeito goza pode compreender diversos
sentidos:
- Liberdade negativa: No período iluminista, a liberdade era entendida como uma
liberdade negativa, ou seja, sempre que houvesse uma imposição heterónoma por parte
do Estado ao indivíduo, haveria uma limitação à sua liberdade. Ou seja, entendia-se que
o indivíduo não devia ser obrigado a fazer algo que não quisesse, sendo livre por não
encontrar obstáculos à prossecução das suas necessidades.
- Liberdade positiva: À liberdade negativa associar-se-ia uma ideia de liberdade
positiva que era entendia como autonomia ou como poder de autodeterminação, i.e.,
poder de optar entre diversas alternativas de ação.
- Liberdade ético-axiologicamente fundamentada: A liberdade tutelada ao nível
do Direito Civil não pode ser apenas uma liberdade negativa nem apenas uma liberdade
positiva, porque o Direito não pode admitir tudo. Por conseguinte, a liberdade que é
tutelada ao nível do Direito Civil é uma liberdade que se fundamenta num quadro
valorativo, numa dimensão ético-axiológica, ou seja, é a liberdade não do indivíduo que
vê o outro como um obstáculo, mas sim a liberdade da Pessoa que só se desenvolve,
realiza e reconhece como Pessoa no contacto com o outro. Ou seja, a autonomia
privada da Pessoa deve ser, então, compreendida como possibilidade que cada um tem
de conformar autonomamente as suas relações jurídicas e gerir os seus interesses, dentro
dos limites impostos pelo Direito já constituído ou pelo Direito a constituir, à luz da
dimensão ético-axiológica que o fundamenta.
Consequências da autonomia privada ético-axiologicamente fundamentada na Pessoa:
1) A autonomia privada impede que o sujeito invoque a liberdade para levar a cabo atos
que atentam diretamente contra a sua liberdade, estando em causa não o exercício da
sua autonomia, mas o abuso do exercício da sua autonomia.
2) Sendo a autonomia privada ético-axiologicamente fundamentada na Pessoa, o sujeito,
sempre que exerce a sua autonomia, tem de o fazer cumprindo uma série de deveres que
lhe permitam agir em relação ao outro com o cuidado que ele merece.

6
3.2.1 Os mecanismos de realização da autonomia privada
A ideia de autonomia privada realiza-se sobretudo através de dois instrumentos:
-» Exercício de direitos subjetivos: O direito subjetivo permite o exercício de um poder
e, exercendo um poder, a pessoa exerce a sua autonomia e liberdade.
-» Celebração de contratos: O contrato é entendido como um ato jurídico voluntário
cujo núcleo essencial é integrado por pelo menos duas declarações de vontade de
sentido oposto, mas convergentes. Baseando-se na vontade dos contraentes, estes
exercem através dele a sua autonomia e liberdade.
3.2.2 A amplitude da autonomia privada por referência aos diversos domínios do
Direito Civil
O princípio da autonomia privada, embora seja um pilar central de todo o Direito Civil,
não conhece a mesma amplitude em todos os seus domínios:
1. Direitos de personalidade: Os direitos de personalidade são direitos que a pessoa
tem sobre bens da sua personalidade (ex. direito à vida, direito à integridade física,
direito à honra, direito à liberdade, etc.). Os direitos de personalidade podem ser
limitados através do consentimento (ex.: Deixar alguém cortar o seu cabelo sem o seu
consentimento consiste num ato ilícito). Sem embargo, a limitação dos direitos de
personalidade também tem os seus limites. A limitação dos direitos de personalidade
fica condicionada pelos limites da ordem pública, pelos limites dos bons costumes e
pelos limites da salvaguarda da própria ideia de Pessoa.
2. Direito da família: No âmbito do Direito da Família, existe uma ampla margem
de liberdade que encontra alguns limites (ex.: A pessoa é livre de decidir se quer ou não
casar, com quem casar, pôr fim à relação matrimonial, qual o regime de bens que
vigorará entre o casal. Contudo, se a pessoa está casada, não pode conformar livremente
o conteúdo das relações jurídicas familiares; Ninguém pode renunciar ao estatuto de
familiar. O pai, por mais problemas que dê ao filho, não pode deixar de ser pai).
3. Direitos reais: Os direitos reais são direitos sobre as coisas. No âmbito dos
direitos reais, existe uma ampla margem de liberdade que encontra as suas limitações
(ex.: A pessoa é livre de decidir se quer ou não adquirir a propriedade de alguma coisa.
Contudo, vigora um princípio de tipicidade no que diz respeito quer aos modos de
aquisição da propriedade (1316º CC), quer aos direitos reais que se podem constituir
(1306º CC)).
4. Direito das sucessões: No âmbito do Direito das Sucessões, existe uma ampla
margem de liberdade que conhece alguns limites (ex.: A pessoa é livre de celebrar ou
não um testamento. Contudo, uma parte do património do de cuiús tem que ser
obrigatoriamente atribuída aos seus herdeiros legitimários que não podem ser afastados
da sucessão (filhos, cônjuge), a chamada legítima).
5. Direito das obrigações: O Direito das Obrigações incide sobre os direitos de
crédito (poder que o sujeito tem de exigir de outro a realização de uma prestação). É no
âmbito do Direito das Obrigações que a ideia de autonomia se agiganta e que se
confronta com duas figuras:
- Os negócios jurídicos unilaterais são atos jurídicos voluntários cujo núcleo
essencial é integrado por apenas uma declaração de vontade de sentido único.
- Os negócios jurídicos bilaterais (contratos) são atos jurídicos voluntários cujo
núcleo essencial é integrado por pelo menos duas declarações de vontade de sentido
oposto, mas convergente.
→ Enquanto que aqueles estão sujeitos a um princípio de tipicidade, uma vez que o ato
de um único sujeito desencadeia efeitos que podem afetar a esfera jurídica de terceiros,
7
no âmbito dos últimos que se consubstanciam na convergência das vontades opostas dos
contraentes, vigora uma ampla margem de liberdade, ao ponto de se poder autonomizar
o princípio da liberdade contratual.
3.2.2.1 O princípio da liberdade contratual
É no domínio dos contratos que a autonomia se agiganta verdadeiramente, ao ponto de
se poder autonomizar o princípio da liberdade contratual. Este princípio envolve
diversas dimensões e conhece limitações:
- Liberdade de celebração (ou não celebração) do contrato
Por um lado, cada um é livre de decidir celebrar (ou não) contratos, não podendo ser
forçado a fazê-lo caso tal não corresponda com a sua vontade. Por outro lado, ninguém
pode ser impedido de celebrar um contrato. Contudo, esta dimensão conhece limites:
1. Existem situações em que existe o dever de contratar:
-» O contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel é um contrato
obrigatório para todos aqueles que querem circular com o seu automóvel.
-» Os prestadores de serviços públicos essenciais (fornecimento de eletricidade,
água, comunicações, gás, etc.) têm, de acordo com a lei n.º 23/96, de celebrar um
contrato.
-» Para determinadas empresas que funcionam em regime monopolista pode
haver o dever de celebração de contrato.
-» Em certas profissões liberais (ex. médicos) pode não haver possibilidade de o
médico recusar a celebração de contrato de prestação de serviços médicos.
2. Existem situações em que a validade de um contrato fica dependente da
autorização de um terceiro:
-» 877º CC (ex.: A só pode vender um automóvel ao seu filho B, se o filho C
consentir.)
- Liberdade de escolha da contraparte
Cada um é livre de decidir com quem contrata ou com quem não contrata, não podendo
ser forçado a celebrar um contrato com determinado sujeito ou ser impedido de escolher
a contraparte. Contudo, esta dimensão conhece limites:
1. Existem situações em que é proibido celebrar certos contratos com certas pessoas
(indisponibilidade relativa):
-» 953º CC -» 2196º CC (ex.: A é casado com B, mas comete adultério com C. A
doa um automóvel a C. Este contrato é nulo.)
2. Existem situações em que é imposta a celebração de um contrato com uma
determinada pessoa (direito legal de preferência):
-» Exemplo: A celebra um contrato de arrendamento com B. A certa altura, A
decide que quer vender o apartamento que está arrendado. De acordo com o princípio da
liberdade contratual, ele pode decidir a quem quer vender o imóvel. Contudo, o
arrendatário B tem um direito legal de preferência, ou seja, no momento em que A
decide que quer vender o seu imóvel, A tem que comunicar a B a sua intenção de venda
e informá-lo sobre as condições em que quer vender o apartamento. Neste caso, B pode
preferir, o que quer dizer que B se encontra no primeiro lugar da lista de possíveis
compradores. Portanto, A só pode escolher a quem quer vender se B não quiser preferir.
→ Para além dos direitos legais de preferência, existem direitos convencionais de
preferência em que a preferência não é atribuída por lei, mas resulta de um contrato:
-» Exemplo: A celebra um contrato de arrendamento com B, no qual consta que,
se um dia A pretender vender o seu imóvel, atribuir-se-á direito de preferência a B.
Neste caso, não há uma limitação ao princípio da liberdade contratual, uma vez que o
sujeito se autovinculou convencionalmente, e não legalmente, à preferência.

8
3. De acordo com o princípio da liberdade contratual, o sujeito pode escolher com
quem contratar, não tendo que justificar a sua escolha. Contudo, existem normas no
ordenamento jurídico português que impedem que a escolha que o sujeito tome afete os
bens essenciais da personalidade do sujeito com quem ele não quer contratar.
- Liberdade de conformação do conteúdo do contrato
Cada um é livre de fixar o conteúdo dos contratos, celebrar contratos previstos na lei
(contratos típicos), inserir dentro dos contratos típicos as cláusulas que entenderem,
celebrar contratos não previstos na lei (contratos atípicos) e combinar regras de vários
tipos contratuais (contratos mistos) (405º CC). Contudo, esta dimensão conhece limites:
1. Existência de normas imperativas (normas que não podem ser afastadas pelos
destinatários a quem se dirigem)
2. Limites impostos ao objeto do negócio jurídico
-» Exemplo: “É nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente
impossível, contrário à lei ou indeterminável” (280º CC)
3. Limites impostos pela boa-fé
4. Limites impostos pelo recurso aos contratos de adesão
3.2.2.2 Contratos de adesão
Como já foi referido, o contrato consiste num ato jurídico voluntário cujo núcleo
essencial é integrado por pelo menos duas declarações de vontade de sentido oposto,
mas convergente. Em regra, entre as duas declarações de vontade (a proposta e a
aceitação) existe uma concreta negociação que garante que o acordado corresponda ao
efetivamente querido pelos contraentes. Contudo, existem determinados contratos em
que essa negociação está ausente, os chamados contratos de adesão. Os contratos de
adesão são contratos nos quais as cláusulas contratuais são redigidas de forma prévia,
rígida e unilateral por um predisponente (elaborador das cláusulas), limitando-se o
aderente a aderir ou a rejeitar a sua vinculação às ditas cláusulas. Quando as cláusulas
contratuais são elaboradas para todos os contratos futuros que serão celebrados pelo
predisponente, diz-se que o contrato de adesão foi celebrado com recurso a cláusulas
contratuais gerais. Estas, para além do caráter prévio e das características da rigidez e
da unilateralidade, caracterizam-se também pela sua generalidade.
Os contratos de adesão não emergiram devido à atuação do legislador, tendo a
necessidade da sua existência surgido no âmbito negocial/empresarial. Não podendo
contornar a sua existência, tem que se estar consciente dos riscos que os contratos de
adesão envolvem:
1) Risco de desconhecimento das cláusulas: Existe o risco de o aderente não ler
todas as cláusulas contratuais gerais, ou lendo-as, não as compreender, uma vez que são
elaboradas pelo predisponente de forma prévia, rígida e unilateral, muitas vezes em
termos demasiado técnicos e/ou escritas num tamanho diminuto.
2) Risco de adesão a cláusulas injustas ou abusivas: O aderente pode recusar
aderir às cláusulas contratuais gerais por considerá-las injustas ou abusivas. Mas muitas
vezes, essas cláusulas contratuais gerais dizem respeito a áreas de contratação que
envolvem bens essenciais, o que indiretamente faz com que o aderente tenha que aderir
mesmo contra a sua vontade.
3) Riscos processuais: Muitas vezes, o aderente que, confrontado com cláusulas
contratuais gerais abusivas às quais aderiu, pretende intentar uma ação em tribunal
contra o predisponente, terá despesas judiciais exorbitantes. Devido a estes custos, a
reação dos aderentes é, na maior parte das vezes, a inação.

9
Em face destes riscos, o legislador resolveu intervir através do decreto-lei n.º 446/85,
sucessivamente alterado, que estabelece três grandes níveis de controlo que dão resposta
aos três riscos anteriormente analisados:
1) Controlo ao nível da formação do contrato: O legislador estabeleceu os deveres
de comunicação e de informação:
-» Dever de comunicação: O predisponente tem que comunicar todas as cláusulas
contratuais de forma prévia, integral e adequada, de forma a garantir o conhecimento
por parte do aderente.
-» Dever de informação: O dever de informação é um duplo dever:
- Dever de informação espontâneo: O predisponente tem que informar o aderente,
explicando o sentido, o conteúdo e o alcance das cláusulas contratuais gerais que
considere mais importantes ou complexas.
- Dever de informação provocado: Para além de prestar esclarecimentos, o
predisponente tem que dar resposta a todas as dúvidas que lhe sejam dirigidas pelo
aderente.
2) Controlo ao nível do conteúdo do contrato: O legislador previu longas listas de
cláusulas contratuais abusivas proibidas, podendo-se distinguir entre:
-» Cláusulas absolutamente proibidas: Cláusulas que são sempre proibidas se inseridas
num contrato individualizado.
-» Cláusulas relativamente proibidas: Cláusulas que são proibidas, mas que têm que ser
analisadas de acordo com o quadro negocial padronizado.
Além disso, podem ainda vir a considerar-se nulas as cláusulas que contrariem a boa-fé.
3) Controlo processual: O legislador consagrou a ação inibitória.
-» Exemplo: A (predisponente) celebra um contrato com B (aderente). Durante a
execução do contrato, B verifica a existência de uma cláusula abusiva no contrato de
adesão, podendo solicitar ao tribunal uma avaliação do caráter abusivo da cláusula
contratual geral alegadamente abusiva. Sendo assim, a reação típica é uma reação a
posteriori, ou seja, depois da ocorrência do litígio. Porém, a ação inibitória envolve um
controlo a priori, ou seja, antes da ocorrência do litígio e mesmo antes da celebração do
contrato. Sendo assim, apercebendo-se do caráter injusto ou abusivo de uma cláusula
contratual geral, o aderente poderá solicitar ao tribunal a avaliação do caráter abusivo da
cláusula contratual geral alegadamente abusiva, inibindo/impedindo/proibindo o
predisponente de usar tal cláusula na sua contratação futura.
3.3 Princípio da boa-fé
A boa-fé pode ser entendida num sentido subjetivo ou objetivo:
- Sentido subjetivo: A boa-fé (contrário: má-fé) em sentido subjetivo traduz-se num
estado de espírito de quem julga estar a atuar em conformidade com o Direito, ou seja,
de quem julga estar a atuar sem lesar direitos de outrem. A boa-fé, neste sentido, pode
ser entendida sob uma perspetiva meramente psicológica ou ético-psicológica:
- Perspetiva psicológica: Sob a perspetiva psicológica, entende-se que o sujeito julga
estar a atuar sem lesar direitos de outrem. Se o sujeito julga estar a atuar levando
direitos de outrem, está a atuar de má-fé.
- Perspetiva ético-psicológica: Sob a perspetiva ético-psicológica, entende-se que o
sujeito julga estar a atuar sem lesar direitos de outrem e julga sem culpa. Se o sujeito
julga estar a atuar sem lesar direitos de outrem mas tiver culpa no desconhecimento de
que está a atuar levando direitos de outrem, está a atuar de má-fé.
-» Exemplo: A vende um apartamento a B. B, por sua vez, vende o apartamento
que lhe foi vendido a C. Se o negócio entre A e B fosse inválido, B não adquiriu a

10
propriedade do imóvel. Se não é proprietário, B não poderia ter vendido o apartamento a
C. Contudo, o artigo 291º CC estabelece uma série de requisitos para proteger C, uma
vez que desconhecia o negócio inválido entre A e B. Se esses requisitos forem
cumpridos, C é protegido, sendo considerado proprietário. Dois desses requisitos são:
1. C de boa-fé -» C tem que desconhecer que o primeiro negócio era inválido.
2. C sem culpa -» C tem que desconhecer sem ter culpa.
→ O artigo 291º CC fala de boa-fé no sentido subjetivo sob uma perspetiva ético-
psicológica.
- Sentido objetivo: A boa-fé em sentido objetivo (contrário: contradição ao princípio da
boa-fé) identifica-se com o princípio da boa-fé que estabelece um padrão de
comportamento a que devem obedecer os contraentes, devendo atuar de forma honesta,
leal e correta. Este princípio atua ao nível contratual mas vai para além do mundo do
contrato, podendo ser invocado no âmbito de qualquer relação entre pessoas certas e
determinadas, mas não sendo invocável nas relações gerais. No que respeita ao domínio
negocial, o princípio da boa-fé atua na fase da execução do contrato (762º CC), na fase
pré-contratual (227º CC) e na fase pós-contratual (mesmo depois de terminado o
contrato, as partes continuam vinculadas pelos deveres de honestidade, lealdade e de
correção). Rui de Alarcão distingue duas vertentes da boa-fé em sentido objetivo:
- Vertente negativa: O princípio da boa-fé pode proibir certo tipo de
comportamentos:
1. Proíbe que o credor torne a prestação do devedor mais onerosa.
-» Exemplo: A tem que entregar uma bicicleta a B. Contudo, B cria dificuldades
para que a entrega não se realize. Este comportamento atenta contra o princípio da boa-
fé.
2. Proíbe que a pessoa vá contra o seu próprio comportamento (venire contra
factum proprium).
-» Exemplo: A vende um armazém a B. Tratando-se de um bem imóvel, seria
necessário celebrar o contrato de compra e venda por escrita pública ou documento
particular autenticado. Como B deve alguns favores a A, aquele decide aceitar que
ambos assinem um simples documento para o efeito, apesar de o contrato poder ser
considerado nulo por vício de forma. B começa então a investir no armazém e, ao fim
de alguns anos, A decide invocar a nulidade do contrato. Uma vez que foi A que deu
causa à invalidade, a sua atuação é contrária ao princípio da boa-fé.
3. Proíbe a invocação da exceção de não-cumprimento do contrato quando a falha
do cumprimento seja diminuta.
-» Exemplo: A vende uma coisa a B, tendo A o dever de entregar a coisa e B o
dever de pagar o preço da coisa. Uma vez que B não paga o preço, A pode excecionar o
não-cumprimento do contrato, ou seja, não entrega a coisa enquanto não lhe for pago.
Contudo, como a falha no cumprimento de B é diminuta, tratando-se somente de 5€ de
1000€, a exceção de não-cumprimento do contrário não deve ser invocada, agindo de tal
forma de acordo com o princípio da boa-fé.
- Vertente positiva: O princípio da boa-fé impõe deveres de colaboração entre os
contraentes. Uma relação obrigacional é composta por vários deveres:
-» Exemplo: A e B celebram um contrato de compra e venda de um ar
condicionado. A tem a obrigação de o entregar e B tem a obrigação de pagar o seu
preço. Logo aqui, existem duas obrigações. Estes dois deveres são deveres principais
de prestação, uma vez que caracterizam o tipo contratual, mesmo que não esteja
explicitado no contrato. Para além disso, A, que vendeu o ar condicionado, tem a
obrigação de explicar como o ar condicionado funciona, de o montar, transportar, etc.
Estes deveres são deveres acessórios de prestação, uma vez que estão ao serviço da

11
integral satisfação do credor.
-» Exemplo: A e B celebram um contrato de prestação de serviços. A tem a
obrigação de pintar as paredes de casa de B e B tem a obrigação de pagar o preço do
serviço prestado. Contudo, A pode prestar o seu serviço de duas maneiras: pintar sem
ter o cuidado de forrar os móveis, arredar o que poderá atrapalhar o seu trabalho, etc. ou
pintar tendo o cuidado de fazer aquilo que foi anteriormente mencionado. Para além dos
deveres principais de prestação e dos deveres acessórios de prestação, existem os
deveres de proteção que são deveres de conduta que decorrem diretamente da boa-fé e
que visam garantir a integridade/incolumidade do restante património do credor ou da
pessoa do credor.
→ É de concluir que existe uma série de deveres que são impostos pelo princípio da
boa-fé, o que permite afirmar que a relação obrigacional deve ser considerada como
uma relação obrigacional complexa, uma vez que não é integrada apenas por um direito
e um dever, mas sim por um feixe de direitos e de deveres!
3.4 Princípio da responsabilidade
A ideia de responsabilidade ao nível do Direito Civil surge como um corolário/uma
projeção do personalismo ético. A Pessoa, por ser autónoma, é necessariamente
responsável:
- Responsabilidade pelo outro: A Pessoa tem uma série de deveres a cumprir em
relação ao outro.
- Responsabilidade perante o outro: Sempre que a Pessoa viole esses deveres e com
isso lese terceiros, vai ter que compensá-los de alguma maneira.
→ Esta segunda dimensão da responsabilidade vai-se traduzir na imposição de uma
obrigação de indemnização.
3.4.1 A obrigação de indemnização
1. Reconstituição natural: O lesante terá que recolocar o lesado na situação em que
estaria se não tivesse existido o evento lesivo.
→ Contudo, existem situações em que a reconstituição natural é impossível (ex.:
destruição de uma escultura da Antiguidade Clássica), insuficiente para reparar todos os
danos (ex.: destruição de um jarro oferecido por um ente querido falecido) ou
demasiado onerosa para o lesante (ex.: reparação de telemóvel - compra de um novo
telemóvel). Nestes casos:
2. Indemnização por equivalente: O lesante terá que pagar uma indemnização em
dinheiro ao lesado.
3.4.2 Modalidades de responsabilidade civil
Para que exista uma obrigação de indemnização, é necessário que se verifique uma série
de pressupostos que são diferentes consoante a modalidade de responsabilidade civil
concretamente em causa:
- Responsabilidade civil extracontratual: Resulta da violação de direitos absolutos
(direitos que vinculam todos os membros de uma comunidade jurídica).
-» Exemplo: O direito à vida (poder de exigir a todos que respeitem a vida) e o
direito de propriedade (poder de exigir a todos que não usem o que não é deles) têm
eficácia erga omnes.
- Responsabilidade civil contratual: Resulta da violação de direitos relativos
(direitos que vinculam apenas certas e determinadas pessoas).
-» Exemplo: A (credor) emprestou dinheiro a B (devedor). A tem, em relação a B,
um direito de crédito que consiste num direito relativo porque A tem o poder de exigir a
devolução do dinheiro única e exclusivamente a B.

12
3.4.2.1 Pressupostos da responsabilidade civil extracontratual
3.4.2.1.1 Ilicitude
Um ato tem que ser ilícito e o é numa de três situações:
1. Se violar direitos absolutos (ex.: A mata B (violação do direito à vida)).
2. Se violar normas legais de proteção de interesses alheios. Há determinadas normas
que não atribuem um direito subjetivo, mas que protegem diretamente determinadas
pessoas contra um determinado risco. Essas normas, uma vez violadas, permitem
reconhecer a ilicitude (ex.: norma proibitiva de circular acima dos 120 km/h nas
autoestradas (para além de tutelar a boa fluidez do trânsito, visa proteger interesses dos
condutores (vida, integridade física, etc.) contra o risco de ocorrer um acidente).
3. Abuso do direito subjetivo.
3.4.2.1.2 Culpa
A culpa é um juízo de censura ético-jurídica que se afere de acordo com o padrão do
bonus paterfamilias, ou seja, do homem medianamente prudente, razoável, diligente
(487º, n. 2 CC). Aquilo que se terá que determinar é se o bonus paterfamilias, naquelas
circunstâncias, teria atuado da mesma forma ou não. Se a resposta for negativa,
constata-se a culpa. Existem duas modalidades de culpa:
→ Dolo: Comportamento intencional. Distinguem-se três tipos de dolo:
-» Dolo direto – Agente quer efetivamente o resultado.
-» Exemplo: A dispara um tiro sobre B porque o quer ver morto.
-» Dolo necessário – Agente não quer o resultado mas aceita-o como um resultado
necessário para alcançar o resultado efetivamente pretendido.
-» Exemplo: A não quer matar B, mas resolve assaltar a sua casa para roubar uma
peça de arte que tanto gosta. Uma vez em casa de B, A confronta-se com ele, este
oferece-lhe resistência, o que faz com que A dispare sobre B, matando-o.
-» Dolo eventual – Agente prevê o resultado, confia na produção desse resultado,
mas aceita-o como eventual.
-» Exemplo: A está a circular na autoestrada a 240 km/h e prevê que, a circular a
essa velocidade, pode provocar um acidente e matar alguém. Só que ele quer tanto
conduzir em alta velocidade que assume o risco de matar alguém.
→ Negligência (mera culpa): Comportamento que viola determinados deveres de
cuidado. Distinguem-se dois tipos de negligência:
-» Negligência consciente – Agente prevê o resultado mas confia na não-produção
desse resultado.
-» Exemplo: A está a circular na autoestrada a 240 km/h e prevê a possibilidade
de provocar um acidente e matar alguém. Contudo, A pensa que não vai acontecer nada
porque “estas coisas só acontecem aos outros”.
-» Negligência inconsciente – Agente não prevê o resultado, mas o bonus
paterfamilias, nas mesmas circunstâncias, teria previsto.
Notas adicionais:
1. O cálculo da obrigação de indemnização que o lesante terá que prestar ao lesado é
determinado em função da verificação de dolo ou negligência, podendo ser limitada no
caso de negligência (494º CC).
2. A culpa deve ser provada pelo lesado.
3.4.2.1.3 Danos
Se não houver dano, é impossível tornar indemne (indemnizar). Havendo danos, todos
os danos são indemnizáveis. Existem dois tipos de danos:
- Danos patrimoniais: São suscetíveis de avaliação pecuniária.
-» Exemplo: A atropela B. Ao atropelá-lo, B vai ter que pagar consultas médicas,

13
medicamentos, a fisioterapia, alguém que lhe faça o serviço doméstico. Para além disso,
B ficou impossibilitado de trabalhar durante dois meses e trabalha a recibos verdes.
Sendo assim, dentro dos danos patrimoniais existem:
- Danos emergentes: Prejuízos que emergem a partir do ato lesivo.
- Lucros cessantes: Perda de rendimentos que emergem a partir do ato lesivo.
- Danos não-patrimoniais: Não são suscetíveis de avaliação pecuniária.
-» Exemplo: B, atropelado, sente dores, sofre, angustia-se, ficou com uma cicatriz
que o desfigurou, deixou de ter disponibilidade para estar com os amigos, etc.
Durante muito tempo questionou-se se faria sentido indemnizar os danos não-
patrimoniais:
- Argumentos negativos:
1. A indemnização visa tornar indemne. Neste caso, os danos não patrimoniais não
seriam suscetíveis de ser apagados.
2. Indemnizar danos não-patrimoniais poderia dar a entender que determinados bens
ligados à pessoa (ex.: sentimentos) poderiam ser passíveis de mercantilização/
comercialização.
→ Esta posição foi superada.
- Argumentos positivos:
É verdade que os danos não-patrimoniais não se apagam, mas poder-se-á compensar o
lesado para não dar a entender que o ilícito compensa. Este entendimento acabou por ser
acolhido pelo legislador que no artigo 496º CC consagra uma ampla cláusula de
compensação dos danos não-patrimoniais.
3.4.2.1.4 Nexo de causalidade
É necessário que haja algo a ligar o comportamento ilícito e culposo aos danos.
-» Exemplo 1: Se A dispara um tiro contra B e mata-o -» existência de nexo de
causalidade.
-» Exemplo 2: A fez um golpe no braço a B e este teve que ir para um hospital. No
hospital, B contraiu uma bactéria hospitalar e acabou por morrer. Será A responsável
pela morte de B?
Ao longo dos tempos, foram surgindo diversas teorias para lidar com a problemática do
nexo de causalidade:
- Teoria da conditio sine qua non (condição sem a qual não): É causa do dano todo e
qualquer comportamento sem o qual o dano não existiria.
→ Crítica 1: Esta teoria não joga bem com a intencionalidade jurídica, uma vez que
parte de uma visão determinística do mundo, ou seja, se se verificar A, verifica-se
sempre B e se se verificar B, verifica-se sempre C. Esta visão não é sequer aceite no
campo das ciências exatas. Portanto, seria estranho importá-la para o mundo do Direito.
→ Crítica 2: Esta teoria leva-nos a alargar demasiado a responsabilidade.
-» Exemplo: Observe-se o exemplo 2 acima descrito. Se esta teoria for aplicada, a
ida dele ao hospital foi a condição sem a qual não teria morrido. Portanto, era causa do
dano. Poderá até chegar ao ponto de existir a probabilidade de responsabilização do pai,
avô, bisavô daquele que perpetuou o ato ilícito.
→ Crítica 3: Noutras situações, esta teoria restringe demasiado a responsabilidade.
-» Exemplo: A e B, cada um em simultâneo, disparam um tiro sobre C. Ao
dispararem, C morre. Se se eliminar o comportamento de A, o resultado “morte”
continua a verificar-se porque B também disparou. Se se eliminar o comportamento de
B, o resultado “morte” continua a verificar-se porque A também disparou. Em rigor,
numa situação como esta, a resposta tradicional de quem aplica esta teoria, seria: não
deve haver responsabilidade, uma vez que não se verifica a conditio sine qua non.

14
- Teoria da causalidade adequada: É causa do dano o comportamento que passe pelo
teste da probabilidade: “É normal e provável que do comportamento resulte o dano?”
→ Crítica 1: Problemas ao nível da descrição dos relata, ou seja, dos eventos a
relacionar. Consoante a descrição que se faça dos eventos a relacionar, diferente será a
resposta que se irá obter.
-» Exemplo: É normal e provável que de um golpe feito na cara de um sujeito resulta
a sua morte? “Não”. Mas, é normal e provável que de um golpe feito na cara de um
sujeito, quando se sabe que ele não pode ter assistência médica de imediato, resulta a
sua morte? “Sim” ou “o grau de probabilidade aumenta exponencialmente”.
Por um lado, se se optar por descrever os eventos a relacionar de uma forma abstrata,
não serão tidas em conta as especificidades do caso concreto. Por outro lado, se se optar
por descrever os eventos a relacionar de uma forma mais pormenorizada, está-se a
direcionar a pergunta para a resposta pretendida.
→ Crítica 2: Podem ser adotadas variadas perspetivas na indagação da causalidade:
- Perspetiva do observador ótimo e experiente, colocado no momento do
ajuizamento. → Resultado: O juízo probabilístico será um juízo probabilístico
estatístico que não é um juízo aceitável do ponto de vista do Direito, uma vez que a
estatística pouco nos comunica.
- Perspetiva do próprio sujeito que atuou. → Resultado: Confunde-se a probabilidade
com a previsibilidade, ou seja, a culpa com a causalidade.
→ Crítica 3: A causalidade adequada parte de uma relação causa-efeito. Ao partir dessa
relação, não consegue dar resposta a determinadas situações em que há a intermediação
do comportamento da vítima.
-» Exemplo: Um médico operou uma criança com um grave problema num rim.
Acontece que o médico que tinha que extrair o rim direito, enganou-se e extraiu o rim
esquerdo. Conclusão: A criança ficou sem o rim saudável e com o rim em falência. Não
foi difícil apurar a responsabilidade do médico perante a criança. Só que a mãe, cujo
organismo era compatível com o do filho, ofereceu-se para doar um rim ao seu filho. O
problema que se colocava era saber se o médico seria ou não responsável perante a
lesão que a mãe também sofreu. Com base na teoria da causalidade adequada, o erro do
médico dirige-se ao comportamento do filho mas a lesão ocorre no organismo da mãe.
Para se pensar numa intermediação do comportamento da mãe tem-se que pressupor que
o ser humano age deterministicamente, ou seja, perante um estímulo, o ser humano vai
agir sempre da mesma forma sob pena de não se conseguir estabelecer o cálculo
determinístico.
→ Crítica 4: Sendo a teoria da causalidade adequada uma correção da teoria da
conditio sine qua non, sofre todos os defeitos daquela teoria.
- Teoria imputacional: A doutrina passou a distinguir dois nexos de causalidade:
1) Causalidade fundamentadora da responsabilidade: A causalidade
fundamentadora da responsabilidade liga o comportamento do sujeito à violação do
direito absoluto ou do interesse protegido.
2) Causalidade preenchedora da responsabilidade: A causalidade preenchedora
da responsabilidade liga a violação do direito ou do interesse protegido aos danos
subsequentes.
1) A primeira coisa que se tem que saber é se o lesante assumiu uma esfera de
responsabilidade. Essa esfera de responsabilidade surge por uma de duas vias:
1. Quando o lesante assumiu uma das atividades perigosas que o legislador
consagrou ao nível da responsabilidade objetiva.
2. Quando o lesante, na sua atuação concreta, violou determinados deveres em

15
relação ao lesado. Uma vez violados esses deveres, a esfera de responsabilidade pelo
outro transforma-se numa esfera de responsabilidade perante o outro, tendo o lesante
que indemnizar todas as lesões que teriam sido evitadas com o cumprimento do dever.
Sem embargo, não haverá responsabilidade perante o outro…
1. … se não tiver havido um aumento do risco.
2. … se tiver havido diminuição do risco.
-» Exemplo: A empurra B contra a parede porque viu que ia sendo atropelado por um
carro.
3. … nas hipóteses de força maior e de caso furtuito.
4. … nas hipóteses em que haja um comportamento lícito alternativo, ou seja, nas
hipóteses em que mesmo que tenha atuado conforme o Direito, a lesão ocorreria de tal
forma.
2) Para além da assunção de uma esfera de responsabilidade por parte do lesante, tem-se
que confrontar esta esfera com outras esferas de responsabilidade:
- Esfera de responsabilidade geral da vida: O sujeito não será responsável se o seu
comportamento apenas determinou a presença do bem jurídico ofendido no tempo e no
espaço da lesão.
- Esfera de responsabilidade do lesado: As predisposições constitucionais do lesado e
o próprio comportamento do lesado (livre ou não) têm de ser ponderados. Existem 3
critérios para saber se o comportamento do lesado é livre ou não:
1. Critério da provocação
2. Critério da autoridade
3. Critério do défice informacional
Se o comportamento do lesado for livre, aplica-se o artigo 570º CC, podendo chegar-se
a várias conclusões. Dependendo do confronto entre o comportamento do lesado e o do
lesante, assim pode ser atenuada ou eliminada a responsabilidade do lesante.
-» Exemplo: A (lesante) não colocou a placa “Cuidado, piso escorregadio!” no chão
após ter sido limpo. B (lesado) apercebeu-se que o chão estava molhado e, em vez de
andar com alguma cautela, resolveu correr. Neste caso, tem-se que ponderar a própria
autorresponsabilidade do lesado.
- Esfera de responsabilidade de um terceiro: Tem que se ver se o comportamento do
terceiro é livre. Se não for livre, o lesante vai ser responsável. Se for livre, tem que se
ver até que ponto é que os deveres que o lesante violou tinham ou não como objetivo
evitar o comportamento desse terceiro. Tem que se confrontar e comparar ainda graus
de culpa, perigosidade, etc., donde poder-se chegar à conclusão de que ambos são
solidariamente responsáveis.
3.4.2.2 Pressupostos da responsabilidade civil contratual
3.4.2.2.1 Ilicitude
A ilicitude corresponde à prática de um comportamento ilícito que pode ser de quatro
tipos:
1. Incumprimento definitivo: A não pintou as paredes da casa de B, apesar de terem
celebrado um contrato de prestação de serviços.
2. Cumprimento defeituoso: A pintou as paredes da casa de B, mas pintou-as de outra
cor do que aquela estabelecida no contrato celebrado.
3. Mora: A pintou as paredes da casa de B, só que tinha que ter prestado o serviço até o
dia 10 de Outubro, não tendo cumprido o prazo fixado.
4. Violação positiva do contrato: A pintou as paredes da casa de B, mas quando estava
a pintá-las não teve cuidado suficiente, não tendo arredado os móveis acabando por ficar
danificados. Para além disso, A deixou o balde de tinta no corredor, B tropeçou no

16
balde, caiu e espetou um garfo no olho, acabando por ficar cego. Neste caso, A realizou
a prestação, mas violou uma série de deveres de proteção que lhe eram impostos pela
boa-fé e que visavam garantir a integridade do património do credor ou da sua pessoa.
3.4.2.2.2 Culpa
Enquanto que no âmbito da responsabilidade extracontratual é o lesado que tem que
provar a culpa, no âmbito da responsabilidade contratual a culpa presume-se (799º CC),
ou seja, cabe ao lesante provar que não teve culpa.
3.4.2.2.3 Danos e nexo de imputação
Para além de um comportamento ilícito e a presunção de culpa, é necessário que haja
também danos e o nexo de imputação entre o comportamento ilícito e os danos. Sobre
estes dois pressupostos vale o que foi dito acerca da responsabilidade extracontratual.
3.4.2.3 Responsabilidade pré-contratual
A responsabilidade pré-contratual, consagrada no artigo 227º CC, foi defendida por
Ihering que superou o entendimento individualista-formalista da inexistência de
responsabilização antes da celebração do contrato através da recuperação do critério
culpa in contrahendo (culpa na formação dos contratos). Este critério foi
sucessivamente alargado:
1. Num primeiro passo, a parte lesada pelo comportamento censurável praticado pela
contraparte ao nível das negociações iria merecer proteção jurídica se efetivamente
tivesse sido celebrado um contrato inválido.
2. Num segundo passo, a parte lesada pelo comportamento censurável praticado pela
contraparte ao nível das negociações iria merecer proteção jurídica se tivesse sido
celebrado um contrato válido, mas prejudicial por terem sido violados
determinados deveres.
3. Já num terceiro passo, a parte lesada pelo comportamento censurável praticado
pela contraparte ao nível das negociações iria merecer proteção jurídica se se tivesse
verificado uma rutura injustificada das negociações.
→ Para além disto, em qualquer destas hipóteses, é necessário que se verifique, por um
lado, a violação das regras impostas pela boa-fé e, por outro lado, culpa.
Verificados estes pressupostos, o lesante seria responsabilizado a indemnizar o lesado
pelos danos que provocou. A doutrina diverge quanto à indemnização no âmbito da
responsabilidade pré-contratual:
- Interesse contratual negativo: Há autores que argumentam que o lesante terá que
recolocar o lesado na situação em que este estava antes da celebração do contrato.
- Interesse contratual positivo: Há autores que argumentam que o lesante terá que
colocar o lesado na situação em que este iria estar se tivesse sido celebrado o contrato.
→ Menezes Cordeiro considera que o artigo 227º CC consagra a indemnização pelo
interesse contratual negativo, a não ser que já só faltasse assinar o contrato. Quando tal
fosse o caso, a indemnização devia ser pelo interesse contratual positivo.
3.4.2.4 Responsabilidade subjetiva e objetiva
A culpa é um dos pressupostos fundamentais das duas modalidades de responsabilidade
civil. Ou seja, em regra, existe responsabilidade quando o requisito da culpa está
preenchido. Fala-se aqui de responsabilidade subjetiva prevista no artigo 483º, n. 1
CC. Contudo, existem situações em que existe responsabilidade civil
independentemente de culpa e de ilicitude. Nestes casos, fala-se de responsabilidade
objetiva ou responsabilidade pelo risco prevista no artigo 483º, n. 2 CC, estando sujeita
a um princípio de tipicidade, ou seja, só existe nas situações previstas pelo legislador.
No âmbito da responsabilidade objetiva o sujeito é obrigado a indemnizar um dano, não

17
porque atuou com culpa, mas porque o dano que causou resultou de uma determinada
atividade levada a cabo da qual o sujeito retirou um determinado benefício e que
envolve riscos. O legislador, tendo em conta estes dois vetores (benefício e riscos), não
proibiu a atividade mas disse que aquele que retira dela um benefício tem que suportar
os prejuízos que com ela comporte (499º e ss. CC).
-» Exemplo: A conduz o seu automóvel e tem um acidente. Desse acidente sai ferido
B. O acidente deveu-se a uma falha mecânica. Neste caso, não há culpa mas A vai ter
que indemnizar se se verificarem os pressupostos previstos no artigo 503º CC. Sendo
assim, A vai responder independentemente de culpa.
3.5 Princípio da confiança
Alguma doutrina extrai do princípio da boa-fé, o princípio da confiança. Esta ideia
essencial de confiança permite atribuir ou dispensar uma tutela positiva e negativa à
confiança:
- Tutela positiva: Atribuição de efeitos jurídicos a uma situação que é apenas aparente.
- Tutela negativa: Surgimento de pretensão indemnizatória verificados determinados
pressupostos:
3.5.1 Pressupostos da responsabilidade pela confiança
- É necessário que haja uma situação de confiança.
- É necessário que haja uma justificação para essa confiança.
- É necessário que haja um investimento de confiança.
- É necessário que haja uma imputação da situação de confiança ao sujeito que lhe deu
causa.
-» Exemplo: A e B são vizinhos e combinaram que A daria boleia todos os dias a B
para o trabalho. Não foi celebrado qualquer contrato entre eles, uma vez que ambos não
tiveram a intenção de se vincular negocialmente. A verdade é que se gerou uma
expetativa digna de confiança mas A deixou de aparecer sem aviso prévio, sem
justificação aparente, no fundo, frustrando a confiança e fazendo com que B perdesse
uma reunião importante. Nesta hipótese eventualmente poder-se-ia invocar a ideia de
responsabilidade pela confiança.
II Capítulo
4. Relação jurídica
A noção de relação jurídica é um conceito central do Direito Civil e unifica a
sistematização do Código Civil. Contudo, nem todos os autores adotam esta
sistematização com base na relação jurídica, negando a sua importância e falando antes
de situação jurídica.
4.1 Noção de relação jurídica
Em sentido amplo, a relação jurídica é toda a relação da vida social disciplinada pelo
Direito. Em sentido restrito, a relação jurídica é toda a relação da vida social
disciplinada pelo Direito através da atribuição a um sujeito de um direito e a
correspondente imposição a outro sujeito de um dever ou sujeição.
4.2 Estrutura externa da relação jurídica
A relação jurídica estrutura-se em torno de diversos elementos:
- Sujeitos: Para existir uma relação jurídica, têm que existir sujeitos de direitos e de
deveres.
- Objeto: A relação jurídica deve incidir sobre um objeto.
- Facto jurídico: A relação jurídica emerge através do facto jurídico.
- Garantia: A garantia é um conjunto dos meios que o ordenamento jurídico
18
disponibiliza ao sujeito ativo para tornar efetivo o seu direito.
-» Exemplo: A não quer pagar a dívida a B. A tem um direito de crédito e B tem a
obrigação de pagar. Se B não quer pagar a A, A terá de recorrer a tribunal e propor uma
ação de condenação para que B seja condenado ao pagamento. Se ainda assim B não
pagar, A pode propor uma segunda ação para executar o património de B.
4.3 Estrutura interna da relação jurídica
Para além de se estruturar em torno daqueles elementos que configuram a sua estrutura
externa, a relação jurídica tem uma estrutura interna. Do lado ativo da relação jurídica
encontra-se o sujeito titular do direito subjetivo e do lado passivo da relação jurídica
encontra-se o sujeito titular do dever jurídico ou da sujeição.
4.4 O direito subjetivo em sentido amplo
4.4.1 A evolução histórica e o fundamento axiológico
-» Pré-jusracionalismo: O direito subjetivo começou por não existir, sendo as pessoas
tuteladas por estarem inseridas numa ordem natural.
-» Jusracionalismo: Com o Jusracionalismo iluminista, o indivíduo autonomiza-se da
ordem natural onde estava inserido, chegando-se à afirmação de uma série de direitos
naturais inerentes ao próprio Homem. Esses direitos naturais seriam convertidos em
direitos subjetivos através do contrato social que faria emergir uma sociedade
politicamente organizada em Estado que começou por ser entendido como Estado
absoluto (Hobbes), sendo posteriormente superado através das Revoluções ditas
Liberais por um Estado de Direito liberal (Rousseau).
-» Positivismo jurídico: Os direitos subjetivos proclamados por via revolucionária
confundiam-se com liberdades que eram atribuídas aos indivíduos pelo direito objetivo
e que eram exercidas contra o Estado para limitar os seus poderes. Contudo, não se
distinguia entre direitos fundamentais na esfera publicista e direitos subjetivos na esfera
privatística.
-» Savigny: Deve-se a Savigny a primeira formulação doutrinal do direito subjetivo na
esfera privatística. O direito subjetivo era então entendido como um poder da vontade
absoluto que radicava no indivíduo, dando origem à teoria da vontade. Ou seja, o
direito subjetivo marcava um espaço dentro do qual se encontrava o indivíduo, livre sob
o ponto de vista negativo e positivo, e dentro do qual ninguém podia interferir.
-» Ihering: O excesso do individualismo e do liberalismo associado ao poder da vontade
defendido por Savigny levou a que Ihering passasse a definir o direito subjetivo como
um interesse juridicamente protegido, dando origem à teoria do interesse. Porém,
esta ideia também não é aceite porque:
1) Há interesses que são protegidos pelo ordenamento jurídico aos quais não
corresponde qualquer direito subjetivo (normas legais de proteção de interesses alheios).
2) A definição do direito subjetivo a partir do interesse poderia conduzir a uma
funcionalização do direito subjetivo, ou seja, o direito subjetivo teria sempre de ser
exercido em nome de um determinado interesse e na prossecução desse interesse.
-» Inexistência do direito subjetivo: Alguns autores chegaram a negar a existência de
direitos subjetivos.
→ Hoje são muitos os autores que propõem compreensões diversas do direito subjetivo.
Pelo exposto, como se deve, tendo em conta a evolução histórica e a panóplia de
posições doutrinais diversas, conceber o direito subjetivo?
O direito subjetivo deve ser concebido como um poder da vontade. Contudo, não é um
poder da vontade radicado no indivíduo, ou seja no ser individualista que se desenvolve
no isolamento através do exercício da sua autonomia absoluta, como o defende Savigny,
mas antes radicado na Pessoa, ou seja no ser de relação que se desenvolve, realiza e
19
reconhece no contacto com o outro, e na sua ineliminável dignidade ética. Isto implica,
por um lado, que o exercício da autonomia através do direito subjetivo por parte da
Pessoa impede que ela incorra num abuso do exercício do direito e, por outro lado, que
a Pessoa, sendo responsável pelo outro, pode vir a ser responsável perante o outro no
caso de não cumprir os deveres de cuidado que tem em relação a ele.
4.4.2 Noção de direito subjetivo em sentido amplo
O direito subjetivo, em sentido amplo, pode ser definido como sendo o poder ou
faculdade de, em princípio livremente, exigir ou pretender de outrem um
determinado comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) ou de, por um
ato de livre vontade, só de per si ou integrado por um ato de uma autoridade
pública, produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se vão
projetar na esfera jurídica da contraparte.
4.4.3 Modalidades do direito subjetivo em sentido amplo
O conceito de direito subjetivo em sentido amplo pode dividir-se em duas partes:
4.4.3.1 Direito subjetivo em sentido estrito
A noção de direito subjetivo em sentido estrito corresponde à primeira parte do
conceito de direito subjetivo em sentido amplo e consiste no poder ou faculdade de, em
princípio livremente, exigir ou pretender de outrem um determinado comportamento
positivo (ação) ou negativo (omissão). Ao direito subjetivo em sentido estrito
contrapõe-se um dever jurídico que consiste na situação do lado passivo da relação
jurídica a praticar o comportamento negativo ou positivo exigido ou pretendido pelo
lado ativo da relação jurídica.
→ O lado passivo da relação jurídica pode violar um dever jurídico. Nestes casos, o ato
praticado considera-se ilícito e o lado ativo da relação jurídica pode recorrer a tribunal
para exigir que sejam tomadas as providências necessárias para efetivar o seu direito
(poder de exigir).
→ As obrigações naturais não podem ser judicialmente exigíveis (poder de pretender).
Consoante o tipo de direito subjetivo em sentido estrito que se encontre do lado ativo da
relação jurídica, assim se terá um específico dever jurídico do lado passivo da relação
jurídica:
- Direitos de personalidade:
Lado ativo: Direito de personalidade (ex.: direito à vida, direito à integridade física,
direito à imagem, direito à liberdade, etc.)
Lado passivo: Dever de respeito (obrigação passiva universal (dever geral de
abstenção) e deveres de comportamento positivo sempre que seja necessário
salvaguardar o direito do lado ativo)
- Direitos reais:
Lado ativo: Direito real (ex.: direito de propriedade, direito de usufruto, direito de uso e
habitação, direito de superfície, servidões prediais, direito real de habitação periódica,
etc.)
Lado passivo: Obrigação passiva universal (dever geral de abstenção)
- Direitos de crédito:
Lado passivo: Direito de crédito
Lado passivo: Obrigação em sentido técnico
4.4.3.2 Direito potestativo
A noção de direito potestativo corresponde à segunda parte do conceito de direito
subjetivo em sentido amplo e consiste no poder ou faculdade de, por um ato de livre
vontade, só de per si ou integrado por um ato de uma autoridade pública, produzir

20
determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente se vão projetar na esfera jurídica da
contraparte. Ao direito potestativo contrapõe-se uma sujeição que consiste na situação
do lado passivo da relação jurídica a suportar os efeitos jurídicos que foram
desencadeados pelo exercício do direito por parte do lado ativo da relação jurídica.
→ Ao contrário do dever jurídico que pode ser violado pelo lado passivo da relação
jurídica, a sujeição não pode ser violada pelo lado passivo da relação jurídica!
4.4.4 Classificação de direitos subjetivos em sentido estrito
Tentar-se-á classificar os direitos dentro dos direitos subjetivos em sentido estrito:
4.4.4.1 Direitos absolutos e relativos
- Direitos absolutos: Vinculam todos os membros da comunidade jurídica.
-» Direitos de personalidade: direito sobre a pessoa globalmente considerada ou
sobre certos bens da personalidade humana
Lado ativo: Direito de personalidade (ex.: direito à vida, direito à integridade física,
direito à imagem, direito à liberdade, etc.)
Lado passivo: Dever de respeito (obrigação passiva universal (dever geral de
abstenção) e deveres de comportamento positivo sempre que seja necessário
salvaguardar o direito do lado ativo)
-» Exemplo: A está a passear e vê B a afogar-se. A sabe nadar e não há mais
ninguém por perto que possa socorrer B. Sendo assim, A é obrigado a fazê-lo. Se não o
fizer, é responsabilizado por omissão.
-» Direitos reais: Direito sobre uma coisa
Lado ativo: Direito real (ex.: direito de propriedade, direito de usufruto, direito de uso e
habitação, direito de superfície, servidões prediais, direito real de habitação periódica,
etc.)
Lado passivo: Obrigação passiva universal (dever geral de abstenção)
- Direitos relativos: Vinculam apenas pessoas certas e determinadas.
-» Direitos de crédito: direito a uma prestação
Lado passivo: Direito de crédito
Lado passivo: Obrigação em sentido técnico
-» Exemplo: Se A for credor e B for devedor, B tem que pagar o dinheiro que
deve a A.
4.4.4.2 Direitos patrimoniais e não patrimoniais
- Direitos patrimoniais: São suscetíveis de avaliação pecuniária.
- Direitos não patrimoniais: Não são suscetíveis de avaliação pecuniária.
4.4.4.3 Direitos dominiais e não dominiais
- Direitos dominiais: Direitos cujo objeto está na total disponibilidade do seu titular.
-» Exemplo: O direito real é um direito dominial. O titular de um direito real pode
livremente alienar, usar, destruir a res.
- Direitos não-dominiais: Direitos cujo objeto não está na total disponibilidade do seu
titular.
-» Exemplo: O direito de personalidade é um direito não-dominial. O titular do
direito de personalidade não pode abdicar do seu direito.
4.4.4.4 Direitos plenos e menos plenos
O direito subjetivo em sentido estrito consiste no poder ou faculdade de, em princípio
livremente, exigir ou pretender de outrem um determinado comportamento positivo
(ação) ou negativo (omissão). Os verbos “exigir” e “pretender” não são sinónimos.
Sendo assim, pode-se distinguir entre:
- Direitos plenos: Aos direitos de personalidade, direitos reais e direitos de crédito, que
21
são direitos plenos, contrapõem-se deveres jurídicos que podem ser violados pelo lado
passivo da relação jurídica. Nestas hipóteses, o lado ativo da relação jurídica tem um
poder de exigir, ou seja, pode requerer ao tribunal que este decrete as providências
necessárias para efetivar o seu direito.
-» Exemplo: A deve dinheiro a B e não lhe paga. B pode recorrer para tribunal e
propor uma ação de condenação. A é condenado ao pagamento. Se A insiste em não
pagar, B pode propor uma ação executiva do património de A por parte do tribunal. O
poder de B é um poder de exigir.
- Direitos menos plenos: Contudo, existem direitos cuja efetivação não pode ser
exigida, mas meramente pretendida. Sendo assim, o lado ativo não tem o poder de
exigir o cumprimento da obrigação, mas antes o poder de pretender o cumprimento da
obrigação que, nestes casos, é uma obrigação natural (402º CC), não podendo ser
judicialmente exigível.
Lado ativo: Direito menos pleno
Lado passivo: Obrigação natural
Exemplos de obrigações naturais:
1) Dívidas prescritas depois de invocada a prescrição (304º CC).
-» Exemplo: A deve dinheiro a B. Se ao fim de 30 anos A não pagar, a dívida
prescreveu, ou seja, o tempo foi adormecendo a obrigação civil de pagar. Sendo assim,
uma vez prescrita, B não pode recorrer a tribunal e exigir judicialmente o pagamento da
dívida. Imagine-se que a dívida prescreveu e invoca-se a prescrição: A obrigação civil
torna-se uma obrigação natural. Imagine-se que B resolve pagar espontaneamente a
dívida a A. Sendo assim, B não pode posteriormente vir a exigir que A devolva o que
lhe foi entregue (403º CC).
2) Dívidas resultantes dos contratos de jogo e aposta desde que sejam lícitos e não
estejam ressalvados em legislação especial (1245º CC).
- Se o jogo ou aposta forem ilícitos, o contrato é nulo, em termos do artigo 280º CC.
Se é nulo não gera qualquer obrigação.
- Se o contrato de jogo ou aposta é lícito e esteja previsto em legislação especial,
gera-se uma obrigação civil judicialmente exigível.
-» Exemplo: Se A ganha um jogo e não lhe querem pagar, pode recorrer a tribunal
e exigir que lhe paguem.
- Se o contrato de jogo ou aposta for lícito e não esteja previsto em legislação
especial, gera-se uma obrigação natural que não é judicialmente exigível.
-» Exemplo: A aposta com B, A ganha a aposta, mas B não lhe quer pagar. A não
pode recorrer a tribunal e exigir que B lhe pague. Mas pode pretender que B lhe pague.
4.4.5 Classificação de direito potestativos
Os direitos potestativos podem ser de três tipos:
1. Direitos potestativos constitutivos: Quando o efeito jurídico que o lado ativo
desencadeia é a constituição de uma relação jurídica.
-» Exemplo: Direito a constituir uma servidão de passagem (1550º CC)
2. Direitos potestativos modificativos: Quando o efeito jurídico que o lado ativo
desencadeia é a modificação de uma relação jurídica.
-» Exemplo: Direito à separação judicial de pessoas e bens. A relação matrimonial
modifica-se pelo exercício unilateral do direito por parte de um dos cônjuges mas
mantém-se o dever de fidelidade entre os cônjuges; mantêm-se casados (1794º CC).
3. Direitos potestativos extintivos: Quando o efeito jurídico que o lado ativo
desencadeia é a extinção de uma relação jurídica.
-» Exemplo: Direito ao divórcio. A quer pôr fim à relação patrimonial com B. Pode

22
exercer o seu direito ao divórcio. Quando ele o faz, a relação patrimonial extingue-se. B
limita-se a ver na sua esfera jurídica extinta uma relação jurídica que ela ingressava.
Hipótese prática:
Imagine-se um prédio encravado, ou seja, um prédio que não tem saída para a rua. O
Código Civil reconhece o direito a constituir uma servidão de passagem. Este direito é
um direito potestativo constitutivo. Basta estarem verificados alguns pressupostos,
alguém pode exercer o direito e automaticamente constitui uma relação jurídica. A
partir do momento em que exerce este direito, ele deixa de existir enquanto direito
potestativo constitutivo. A partir daí, o direito que passa a existir é o direito de servidão
de passagem que passa a ser um direito subjetivo em sentido estrito.
4.5 Direitos funcionais/deveres funcionais/poderes-deveres
Os direitos funcionais são igualmente conhecidos como deveres funcionais ou poderes-
deveres.
-» Exemplo: O poder que os pais têm relativamente aos filhos, as chamadas
responsabilidades parentais (anteriormente designadas por poder paternal), configura
um poder-dever ou direito funcional.
Os direitos funcionais não se confundem com os direitos subjetivos.
1. Diferença:
- Os direitos subjetivos são de exercício livre.
-» Exemplo: A é credor e B é devedor. A pode ou não, consoante queira, exercer o
seu direito de crédito.
- Os direitos funcionais não são de exercício livre.
-» Exemplo: O pai não pode abdicar do exercício das suas responsabilidades
parentais.
2. Diferença:
- Os direitos subjetivos são exercidos no interesse do próprio titular.
- Os direitos funcionais são exercidos no interesse de terceiros.
-» Exemplo: O pai, quando exerce as responsabilidade parentais, exerce-as no
interesse do filho cujo interesse deve salvaguardar.
Alguns autores entendem que os direitos funcionais não são verdadeiros direitos
subjetivos em sentido amplo, mas seriam antes uma categoria à parte. Deve-se contudo
entender que, apesar das diferenças, há boas razões para se continuar a considerar que o
direito funcional se integra dentro do conceito amplo de direito subjetivo. Sendo assim,
se do lado ativo da relação jurídica se encontra um direito funcional, do lado passivo
da relação jurídica encontra-se um dever ou sujeição.
-» Exemplo: O filho tem o dever de obediência em relação aos pais e está sujeito a
muitas das decisões que os pais assumam em relação à sua própria educação.
4.6 Expetativas jurídicas
A expetativa jurídica corresponde a uma situação ativa (lado ativo da relação jurídica),
juridicamente tutelada pelo ordenamento jurídico, que corresponde a uma fase de um
processo complexo de formação de um direito. Ou seja, o direito ainda não existe; existe
apenas uma expetativa jurídica. Esta distingue-se da expetativa de facto que se traduz
numa esperança de, no futuro, vir a beneficiar de um direito ou de uma vantagem, não
sendo juridicamente tutelada pelo ordenamento jurídico.
-» Exemplo: A tem a expetativa de vir a receber uma herança do seu padrinho. Essa
expetativa corresponde a uma expetativa de facto. A foi chamado à sucessão depois do
seu padrinho falecer. Neste caso, está-se naquele período em que há uma pessoa que
morreu, o herdeiro legitimário foi chamado à sucessão mas ainda não aceitou a herança.

23
Como ainda não a aceitou, ele ainda não é proprietário dos bens do de cuiús. O que ele
tem é uma expetativa jurídica, encontrando-se numa fase de um processo complexo de
formação do direito.
A noção de “expetativa jurídica” gera alguma controvérsia entre os autores. Há alguns
autores que, na qualificação concreta de uma determinada situação, consideram que essa
corresponde a uma expetativa jurídica e outros que consideram que a mesma situação
ainda não tem a robustez suficiente para ser qualificada como expetativa jurídica,
tratando-se de uma mera expetativa de facto.
4.7 Ónus jurídicos
Um ónus jurídico traduz um encargo que o sujeito tem de suportar para obter ou
manter uma determinada vantagem/efetivar o seu direito.
-» Exemplo: A danificou o automóvel de B. B tem direito a que A lhe pague uma
indemnização. Este direito à indemnização, que é um direito subjetivo, apenas se pode
efetivar se B provar uma série de requisitos em tribunal. Fala-se a este propósito do
ónus da prova que corresponde a um encargo que o sujeito tem que suportar para
efetivar o seu direito/obter ou manter uma determinada vantagem.
O ónus jurídico não se confunde com o dever jurídico.
1. Diferença:
- O dever jurídico obriga.
-» Exemplo: Aquele que vê recair sobre si um dever, está obrigado a alguma coisa.
- O ónus jurídico não obriga.
-» Exemplo: Aquele que vê recair sobre si um ónus, tem um encargo mas não está
obrigado coisa alguma.
2. Diferença:
- Se recair sobre alguém um dever e esse alguém não o cumprir, será sancionado.
- Se recair sobre alguém um ónus e esse alguém não o satisfazer, não será sancionado,
mas não manterá ou não obterá uma vantagem.
4.8 Limites dos direitos subjetivos
O direito subjetivo começou por não existir. Ele surge historicamente no
Jusracionalismo e dogmaticamente com Savigny que o formula como sendo um poder
da vontade absoluto que radica no indivíduo, podendo este exercê-lo como quisesse
desde que respeitasse os limites do próprio direito. Ao longo da evolução jurídico-
filosófica, o direito subjetivo continua a ser compreendido como um poder, mas
radicando não já no indivíduo mas na Pessoa e na sua ineliminável dignidade ética.
Sendo assim, entende-se que, para além dos limites do próprio direito, existem dois
outros limites que são importantes:
4.8.1 Abuso do direito
O abuso do direito atualmente está previsto no artigo 334º CC, embora que a sua
conceptualização tenha divergido ao longo do tempo.
Numa primeira fase, uma vez que o direito subjetivo era entendido como um poder da
vontade absoluto que era exercido livremente pelo indivíduo desde que respeitasse os
limites do próprio direito, não fazia sentido falar de abuso do direito, sendo este
considerado pelos autores como uma situação em que o direito estaria ausente.
-» Exemplo: A e B são vizinhos. A decide construir dentro da sua propriedade uma
falsa-chaminé para impedir que B pudesse usufruir das vistas que tinha da sua casa.
Neste caso, entendia-se que não existiria uma situação de abuso do direito, uma vez que
A exerceu o seu direito dentro dos seus próprios limites.

24
Numa segunda fase, os autores passaram a remeter o problema do abuso do direito para
o domínio da equidade e da moral. O abuso do direito consistia então numa situação em
que o direito, ainda entendido como um poder da vontade absoluto do indivíduo, era
exercido em contradição com a equidade e/ou a moral.
Numa terceira fase, alterou-se a compreensão acerca do direito subjetivo enquanto
poder da vontade absoluto que radicava no indivíduo, passando a ser entendido como
um poder da vontade que radica na Pessoa, que se alicerça na pressuposição de uma
dimensão ético-axiológica de total dignidade da pessoa humana, e que está integrado
num ordenamento jurídico composto por normas que devem estar em consonância com
os princípios normativos que as alicerçam.
→ Nos casos em que o exercício de um direito subjetivo viole os princípios normativos
que alicerçam o próprio direito, verifica-se um abuso do direito.
-» Exemplo: A e B entram em negociação para a celebração de um contrato de
compra e venda. De um momento para o outro, A decide romper as negociações com B,
causando-lhe danos. Neste caso, existe um abuso do direito.
→ Nos casos em que o exercício de um direito subjetivo viole o fundamento ético-
axiológico do reconhecimento desse direito, verifica-se a ausência do direito.
-» Exemplo: Cada um de nós tem um direito à autodeterminação sobre o próprio
corpo. Este direito tem que ser reconhecido à luz do fundamento ético-axiológico do
reconhecimento desse direito que é a dignidade da pessoa humana. Imagine-se que A
invoca o seu direito à autodeterminação sobre o próprio corpo para amputar os braços e
as pernas porque viu uma estátua da Antiguidade Clássica e queria replicar isso no seu
próprio corpo. Neste caso, mais do que falar de abuso do direito, considera-se que o
direito que está a ser invocado não existe, uma vez que a invocação deste direito
contraria o fundamento ético-axiológico do reconhecimento desse direito que é a
dignidade da pessoa humana.
4.8.2 Colisão de direitos
A colisão de direitos verifica-se quando o exercício de um direito titulado por um
sujeito se mostra incompatível com o exercício de um direito titulado por outro sujeito.
-» Exemplo: A vive no primeiro andar e B vive no segundo andar. A gosta de ouvir
música aos altos berros e B trabalha durante todo o dia e não se consegue concentrar.
Neste caso, existe uma efetiva colisão de direitos (o exercício do direito titulado por A é
incompatível com o exercício do direito titulado por B).
Para que haja colisão de direitos, é necessário que os dois direitos existam validamente.
-» Exemplo: Se A exercer o direito incorrendo em abuso do direito, não haverá um
conflito com o exercício do direito de B.
Isto permite-nos distinguir entre colisões reais de colisões aparentes:
- Colisões aparentes: A colisão é aparente em duas situações:
1. Quando um direito pode limitar um outro.
2. Quando não se verificam os pressupostos formais e axiológicos de um dos direitos.
-» Exemplo: Imagine-se um grupo de trabalhadores que resolve manifestar-se
contra as condições degradantes que a empresa onde trabalham lhes oferece. Esse grupo
tem um direito à liberdade de expressão, à liberdade de manifestação que existem
legitimamente. Imagine-se que, em vez de fazer uma manifestação à porta da sede da
empresa, o grupo resolveu pintar as paredes do edifício-sede da empresa para a qual
trabalham. Neste caso, verifica-se uma colisão entre o direito à liberdade de expressão e
à liberdade de manifestação dos trabalhadores e o direito de propriedade dos titulares da
empresa. Ora, os trabalhadores poderiam ter exercido o seu direito sem terem danificado
a propriedade alheia. Neste caso, temos uma colisão aparente porque o direito dos
25
trabalhadores poderia ter sido exercido sem afetar o direito de propriedade dos titulares
da empresa. Se a colisão for aparente, diz-se que houve violação do direito de
propriedade e o grupo será responsabilizado por isso.
- Colisões reais: Se a colisão for real, aplicam-se os critérios do artigo 335º CC:
-» Se os direitos forem iguais ou da mesma espécie, lançar-se-á mão de um critério de
concordância prática, restringindo os dois direitos de modo a garantir o seu núcleo
essencial para torná-los compatíveis.
-» Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece aquele que se
deva considerar superior.
Como é que se sabe se os direitos são iguais ou desiguais? E, sendo desiguais, como é
que se sabe que um é superior ao outro?
Só se consegue saber que os direitos são iguais ou desiguais e, se desiguais, saber qual
deles é superior analisando a situação em concreto. Para isso, é possível servir-se de
alguns índices de indagação:
1) Âmbito e natureza dos bens protegidos;
2) Adequação e proporcionalidade dos meios que foram utilizados;
3) Consequências do exercício do direito;
4) Antiguidade do exercício do direito.
-» Exemplo: A vive num apartamento no primeiro andar. No rés do chão do mesmo
prédio, começa a funcionar um bar que gera ruídos que impossibilitam os sonos de
descanso de A. Em regra, o bem jurídico da integridade física e psíquica, saúde,
descanso de A prevalecerá. Imagine-se contudo que A comprou o apartamento em que
vive depois de saber que funcionava ali um bar há 20 anos. Neste caso, ter-se-á que ter
em conta a antiguidade do exercício do direito para a ponderação da colisão de direitos
que possa ocorrer.
4.9 A dinâmica da relação jurídica
Até agora, analisou-se a relação jurídica sob um ponto de vista estático:
-» Exemplo: A é titular de um direito e B é titular de um dever.
Cabe agora analisar a relação jurídica sob um ponto de vista dinâmico:
-» Exemplo: A não é desde sempre titular de um direito que possa invocar e B não é
desde sempre titular de um dever.
4.9.1 Constituição de direitos
A constituição de direitos traduz-se no surgimento de um direito pela primeira vez no
ordenamento jurídico. Em regra, a constituição de direitos envolve a aquisição de
direitos. Ao inverso, nem sempre a aquisição de direitos envolve a constituição de
direitos.
-» Exemplo: Se A vende um apartamento a B, o direito surge na esfera jurídica de B
(aquisição de direitos), mas aquele direito já existia no ordenamento jurídico (não existe
a constituição de direitos).
4.9.2 Aquisição de direitos
A aquisição de direitos traduz-se no surgimento de um direito na esfera jurídica de um
sujeito. Dentro da aquisição de direitos distingue-se a aquisição originária da aquisição
derivada:
- Aquisição originária: A aquisição é originária quando depende única e
exclusivamente do facto aquisitivo. Portanto, ela não fica dependente da existência,
extensão e conteúdo de um direito pré-existente.
-» Exemplo: A usucapião traduz-se na aquisição da propriedade com base na posse
mantida durante um período de tempo e em determinadas características.

26
- Aquisição derivada: A aquisição é derivada quando depende não só do facto
aquisitivo mas também da existência, extensão e conteúdo de um direito pré-existente.
-» Exemplo: A vende um apartamento a B. B adquire o direito de propriedade sobre
aquele apartamento (aquisição derivada). A aquisição dependeu do contrato de compra e
venda (facto aquisitivo), mas também da existência, extensão e conteúdo de um direito
que pertencia anteriormente a A (direito de propriedade).
Dentro da aquisição derivada podem-se distinguir três tipos de aquisições:
- Aquisição derivada translativa: A aquisição derivada é translativa quando o direito
que se adquire é o mesmo direito que existia na esfera jurídica de um outro sujeito de tal
modo que se fala de uma mera transferência/transmissão do direito.
-» Exemplo: A vende um apartamento B. A aquisição aqui é uma aquisição derivada
translativa porque dependeu da celebração de um contrato de compra e venda (facto
aquisitivo), da existência, extensão e conteúdo de um direito pré-existente (direito de
propriedade de A) que se transmitiu da esfera jurídica de A para a esfera jurídica de B.
- Aquisição derivada constitutiva: A aquisição derivada é constitutiva quando o
direito se adquire à custa da limitação/compressão de um direito pré-existente.
-» Exemplo: A é proprietário de um terreno e resolve constituir a favor de B um
direito de usufruto. A aquisição aqui é uma aquisição derivada constitutiva porque
dependeu da celebração de um contrato (facto aquisitivo), da existência, extensão e
conteúdo de um direito pré-existente (direito de propriedade de A) que não é transferido
da esfera jurídica de A para a esfera jurídica de B, distinguindo-se da aquisição derivada
constitutiva, mas que sofreu uma limitação/compressão, não sendo transferido o direito
de propriedade de A, mas um direito de usufruto (direito real limitado). Sendo assim, o
proprietário do terreno continua a ser A, mas B pode exercer sobre o mesmo terreno um
conjunto de poderes.
- Aquisição derivada restitutiva: A aquisição derivada é restitutiva quando o direito se
adquire à custa da descompressão de um direito pré-existente. Ou seja, a aquisição
derivada restitutiva é o inverso da aquisição derivada constitutiva.
-» Exemplo: Imagine-se que o usufruto foi constituído com o prazo de 20 anos. Ao
fim de 20 anos, o usufruto desaparece da esfera jurídica de B. Sendo assim, A readquire
a plenitude dos poderes inerentes ao direito de propriedade que anteriormente estava
limitado.
4.9.2.1 Princípio nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet
A distinção entre a aquisição originária e a aquisição derivada tem importância prático-
normativa. Uma vez que a aquisição derivada depende do facto aquisitivo e da
existência, extensão e conteúdo de um direito pré-existente, vigora o chamado princípio
nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet que significa que ninguém
pode transferir direitos que não tem ou direitos mais amplos do que aqueles que tem. Ao
nível do ordenamento jurídico, encontram-se diversas projeções deste princípio:
1) Nulidade da venda de coisa alheia (892º CC).
2) Nulidade da doação de bens alheios (956º CC)
3) Nulidade de contratos onerosos por força da aplicação das regras de compra e venda
(939º CC).
Contudo, o princípio nemo plus iuris conhece algumas exceções que se traduzem em
situações em que a pessoa adquire um direito a partir de alguém que não tem
legitimidade para o transmitir:
1. Efeito central do registo (5º CRP (Código do Registo Predial))
Os bens imóveis e alguns bens móveis (ex.: automóveis, aeronaves, embarcações,
participações sociais, etc.) são sujeitos a registo.
27
Imagine-se que A vendeu um apartamento a B. Este contrato de compra e venda de bens
imóveis tem que ser celebrado por escritura pública ou escrito particular autenticado
(875º CC). A escritura pública e o escrito particular autenticado dizem respeito à forma
do negócio que, se não for cumprida, o negócio é nulo (220º CC).
→ A forma é condição de validade do negócio!
Quando A vende um apartamento a B, a propriedade transfere-se de A para B por mero
efeito do contrato (408º CC), independentemente de B ter registado ou não a aquisição
do seu direito. O registo diz respeito à publicidade do negócio que, se não for
cumprida, o negócio continua a ser válido e eficaz inter partes.
→ O registo não é condição de validade do negócio e também não é condição de
eficácia inter partes. O registo é condição de eficácia em relação a terceiros para efeitos
de registo! Terceiros para efeitos de registo são todos aqueles que do mesmo autor ou
transmitente adquirem direitos total ou parcialmente incompatíveis ou conflituantes
sobre o mesmo objeto.
Hipótese prática:
A vende um apartamento a B. Esse negócio tem de ser celebrado por escritura pública
ou documento particular autenticado (875º CC) para ser válido. Caso contrário é nulo
(220º CC). B não regista a aquisição do seu direito de propriedade. Como não registou,
B continua a ser proprietário, uma vez que o registo não é condição de validade do
negócio nem condição de eficácia inter partes. Contudo, A resolveu vender novamente
o mesmo apartamento a C. Ou seja, o que A faz é uma venda de coisa alheia, uma vez
que o proprietário é B. Apesar de ser considerada nula por força do artigo 892º CC, o
contrato entre A e C é eficaz inter partes, uma vez que a transferência do direito se dá
por mero efeito do contrato (408º CC). Acontece que C registou a aquisição do direito
de propriedade sobre o apartamento. Como o registo é condição de eficácia em relação a
terceiros para efeitos de registo, considera-se que o contrato entre A e B não é eficaz em
relação a terceiros para efeitos de registo. Isto significa que para C era como o contrato
entre A e B nunca tivesse acontecido. Por conseguinte, C vai ser considerado
proprietário. Sendo assim, constata-se que o registo sana a invalidade que resulta da
venda de coisa alheia (892º CC), permitindo que alguém possa transferir a outrem
direitos que não tenha ou direitos mais amplos do que aqueles que tenha, violando o
princípio nemo plus iuris.
Notas adicionais:
1. O efeito central de registo funciona também quando as aquisições são gratuitas (ex.:
doação) e aplica-se mesmo se C estivesse de má-fé. Só se deixará de proteger C se, para
além de estar de má-fé, existir uma situação de abuso de Direito.
-» Exemplo: A vende um imóvel a B que não regista. Com a clara intenção de
prejudicar B, A celebra um contrato de compra e venda do mesmo imóvel com C que
age de má-fé. Neste caso, C não será juridicamente tutelado.
2. A proteção de terceiros para efeitos de registo funciona também quando em causa não
esteja a aquisição de um direito de propriedade; pode também estar em causa a
aquisição de um direito de usufruto.
-» Exemplo: A transfere o seu direito de propriedade sobre um imóvel a favor de B
que não regista e constituiu um direito de usufruto a favor de C que regista. Neste caso,
o efeito central de registo verifica-se de igual modo com base nos mesmos argumentos.
A grande diferença é que o proprietário do imóvel será B porque foi o único que
adquiriu o direito de propriedade. Contudo, B vai ser um proprietário limitado pelo
usufruto de C.

28
2. Artigo 291º CC
Imagine-se que A celebra um contrato de compra e venda sobre um automóvel com B e
que esse contrato é nulo. Se o negócio é nulo, não produz efeitos. E se não produz
efeitos, B não vai adquirir o direito de propriedade. Se B não adquire o direito de
propriedade, de acordo com princípio nemo plus iuris, ele não pode transmitir esse
direito a ninguém, sendo A o seu titular. Mas imagine-se que B celebra um contrato de
compra e venda sobre o mesmo automóvel com C. Neste caso temos uma invalidade
consequencial (ou seja, a nulidade do negócio entre A e B afeta todos os negócios
consequentes). Confrontado com esta situação, o artigo 291º CC vem dizer que,
verificados determinados requisitos, poder-se-á proteger as legítimas expetativas
daquele que, atuando de boa-fé, adquire um direito sem conhecer que quem o transmite
não tem legitimidade para tal:
1. É necessário que haja uma cadeia de transmissões;
2. É necessário que haja um negócio inválido (nulo ou anulável);
3. É necessário que haja um terceiro que não se confunde com o terceiro para efeitos
de registo. Este terceiro é todo aquele que, inserindo-se numa mesma cadeia de
transmissões, vê a sua posição jurídica afetada pela invalidade que atinge o negócio
anterior;
4. É necessário que esteja em causa um bem imóvel ou móvel sujeito a registo;
5. É necessário que o terceiro tenha adquirido a título oneroso (se A tivesse doado a
B, C não seria protegido);
6. É necessário que C tenha registado a aquisição do seu direito e que esse registo
seja anterior ao registo da ação de invalidade do negócio;
7. É necessário que C esteja de boa-fé em sentido subjetivo sob uma perspetiva
ético-psicológica (desconhecimento da invalidade do negócio sem culpa (n. 3)).
8. É necessário que tenham decorrido 3 anos a contar da celebração do negócio
inválido (n. 2).
-» Exemplo: Imagine-se que o negócio entre A e B, considerado inválido, foi
celebrado em 2010. C só seria protegido em 2013.
Proteção intercorrente:
-» Exemplo: Imagine-se que C, que comprou o automóvel a B, doou no ano de 2015
o mesmo automóvel a D. Ao doar, D não preencheria o requisito n. 5, uma vez que não
adquiriu o automóvel a título oneroso, não lhe sendo concedida tutela jurídica através
do artigo 291º CC. Contudo, C estava juridicamente protegido a partir de 2013. Ou seja,
considera-se que tudo aquilo que se passou antes de 2013 desaparece e que a partir de
2013 a posição de C não pode ser mais atacada. Se não pode ser atacado, C pode
exercer todos os seus poderes sobre o automóvel enquanto proprietário, inclusivamente
o poder de alienar gratuitamente. É neste sentido que se fala de uma proteção
intercorrente que irá ser concedida a D.
3. Artigo 243º CC
Para se explicar o funcionamento do artigo 243º CC, ter-se-á que explicar alguns
conceitos:
- O contrato é um negócio jurídico bilateral que consiste num ato jurídico voluntário
cujo núcleo essencial é integrado por pelo menos duas declarações de vontade de
sentido oposto, mas convergente.
-» Exemplo: Se A e B celebram um contrato de compra e venda, A faz uma proposta
e B aceita ou não.
Em regra, as declarações de vontade correspondem à vontade que está subjacente a
essas declarações.

29
-» Exemplo: Se A diz, “quero vender o meu automóvel por 1000€”, é porque
efetivamente quer vendê-lo por esse preço. Se B diz, “eu aceito”, é porque efetivamente
quer comprá-lo por esse preço.
Contudo, existem situações em que esta convergência entre a declaração de vontade
(aquilo que se diz) e a vontade (aquilo que se quer dizer) que lhe está subjacente não se
verifica, ocorrendo uma divergência entre a vontade e a declaração de vontade que pode
corresponder a uma simulação.
-» Exemplo: Imagine-se que A diz que quer vender o seu automóvel a B e B diz que
quer comprar o automóvel de A, mas só o fazem porque querem enganar os credores de
A, uma vez que este tem uma dívida, não tem como a pagar e tem medo de que os
credores executem o seu património. A declara que quer vender, B declara que quer
comprar, mas A não tem a real intenção de vender nem B tem a real intenção de
comprar. Mesmo assim, celebram um contrato de compra e venda para enganar os
credores de A. Sendo assim, estamos diante de um negócio simulado.
A simulação traduz-se numa divergência intencional entre a vontade (aquilo que se
quer dizer) e a declaração de vontade (aquilo que se diz), divergência intencional essa
que resulta de um conluio (acordo) entre declarante e declaratário e que tem como
intenção enganar terceiros. Dentro da simulação pode-se distinguir entre:
- Simulação absoluta: Simulação que não tem nenhum negócio real por de trás. O
valor do negócio simulado é sempre nulo, ou seja, em regra, ele não produz efeitos
(240º, n. 2 CC).
-» Exemplo: A finge vender a B e B finge comprar a A para enganar credores de
A. Contudo, na realidade, nem A nem B têm intenção de realizar a compra e venda.
- Simulação relativa: Simulação que tem um negócio real ou dissimulado por detrás
do negócio simulado. O valor do negócio simulado é sempre nulo (240º, n. 2 CC) e o
valor do negócio real ou dissimulado vai depender do tratamento que ele receberia se
não tivesse existido simulação (241º CC). Qualquer negócio pode ser válido ou inválido
(nulo ou anulável) do ponto de vista substancial e do ponto de vista formal.
-» Exemplo: A e B fingem celebrar um contrato de compra e venda, mas na
realidade A e B celebraram uma doação. O negócio simulado (compra e venda) é nulo
(240º, n. 2 CC). Quanto ao negócio dissimulado (doação), ter-se-á que olhar para ele
como qualquer negócio jurídico (241º CC).
- Ponto de vista substancial
-» Exemplo: A finge vender o seu automóvel a B. Com esta compra e venda
simulada quiseram esconder uma doação do automóvel. Pormenor importante: A e B
são amantes; A é casado com C. Neste caso, o negócio simulado (compra e venda) é
substancialmente nulo (240º, n. 2 CC) e o negócio real ou dissimulado (doação) é nulo
por se tratar de uma indisponibilidade relativa (953º CC -» 2196º CC).
- Ponto de vista formal
-» Exemplo: A finge celebrar uma compra e venda do seu apartamento com B por
escritura pública. Na realidade, A e B celebraram uma doação por escritura pública. O
negócio simulado é sempre nulo (240, n. 2 CC), independentemente da forma que
revista. E o negócio dissimulado, é formalmente válido ou nulo? No que diz respeito ao
ponto de vista formal, existe uma divergência doutrinal que se resume nestas posições:
-» Posição menos exigente: Para os autores que defendem uma posição menos exigente,
basta que o negócio simulado cumpra a forma legalmente exigida para se considerar que
o negócio dissimulado seja válido.
-» Posição mais exigente: Para os autores que defendem uma posição mais exigente,
não basta que o negócio dissimulado cumpra a forma legalmente exigida, sendo ainda
necessário que houvesse uma contradeclaração que revista a forma legalmente prevista.

30
No fundo, era necessário que as partes fizessem um escrito de reserva, onde dissessem
“A: Eu estou a doar. B: Eu estou a aceitar a doação.”
Hipótese prática:
A e B fingem celebrar um contrato de compra e venda de um apartamento, mas na
realidade A e B celebraram uma doação. O negócio simulado (compra e venda) é nulo
(240º, n. 2 CC). Quanto ao negócio dissimulado (doação), ter-se-á que olhar para ele
como qualquer negócio jurídico (241º CC), podendo ser considerado válido ou inválido.
Sendo os negócios simulado e dissimulado inválidos, a transmissão do direito de
propriedade quer por via do contrato de compra e venda quer do contrato de doação não
ocorre. Sendo assim, o proprietário do apartamento seria A, não tendo B legitimidade
para transmitir, respeitando o princípio nemo plus iuris. Mesmo assim, B decide vender
o mesmo apartamento a C. Neste caso, está-se perante uma invalidade consequencial (a
nulidade dos negócios simulado e dissimulado afeta todos os negócios consequentes).
Contudo, o artigo 243º CC consagra uma outra exceção do princípio nemo plus iuris,
estabelecendo que o simulador não pode invocar a nulidade do negócio simulado contra
terceiro de boa-fé que seria protegido se cumprisse os seguintes requisitos:
1. É necessário que o terceiro esteja de boa-fé, ou seja, quando desconhece a
simulação (n. 2);
2. É necessário que a nulidade seja invocada por um dos simuladores, ou seja, por A
ou por B, no caso concreto.
É possível que haja um terceiro a invocar a nulidade do negócio nulo.
-» Exemplo: O credor X de A tem interesse que o bem permaneça na esfera jurídica
do seu devedor para poder executá-la em caso de necessidade. Imagine-se que o credor
X invoca a nulidade do negócio simulado e comprova-o. Nestes casos, o artigo 243º CC
não é aplicável e o terceiro de boa-fé não pode ser juridicamente tutelado por este
artigo. Se o terceiro não pode ser protegido através da aplicação do artigo 243º CC,
poderá ser protegido através da aplicação do artigo 291º CC!
Simulação de preço:
-» Exemplo: A e B celebraram um contrato de compra e venda de um apartamento
por escritura pública com o valor de 100’000€. Na realidade, o que eles celebraram foi
um contrato de compra e venda por escritura pública por 200’000€, querendo esconder
o verdadeiro valor do imóvel por motivos fiscais.
O negócio simulado (compra e venda por 100´000€) é nulo (240º, n. 2 CC).
O negócio dissimulado (compra e venda por 200´000€) é válido do ponto de vista
substancial e do ponto de vista formal (241º CC), uma vez que o negócio simulado
reveste a forma legalmente prevista. A posição mais exigente quanto ao valor formal do
negócio dissimulado não pode ser aqui aplicada, uma vez que se entende que não se
pode exigir a contradeclaração quando em causa está uma simulação de preço.
-» Exemplo: Imagine-se que o apartamento estava arrendado a C. C, enquanto
arrendatário, teria, em princípio, direito de preferência na venda daquele imóvel.
Contudo, A não lhe comunicou a intenção de venda nem as condições a que queria
vender. C, apercebendo-se que a venda foi realizada (só conhece o preço simulado do
imóvel (100’000€)), põe uma ação de preferência em tribunal. A sentença favorável vai
determinar que ele vai ocupar o primeiro lugar dos possíveis compradores do imóvel
que estava a ser ocupado por B. Então C decide que quer preferir e só conhece o
negócio simulado, nomeadamente a compra e venda por 100’000€. Percebendo que
poderá perder dinheiro, A invoca a nulidade do negócio simulado, afirmando que o
valor real do negócio foi de 200’000€. Perante estas circunstâncias, C diz que é terceiro,
que estava de boa-fé porque desconhecia completamente o negócio dissimulado e

31
pretende que lhe seja aplicado o artigo 243º CC. Poderá este artigo ser aplicado a
preferentes? O artigo 243º CC não pode ser aplicado para proteger preferentes porque a
finalidade do artigo 243º CC consiste em evitar o prejuízo para aquele que está de boa-
fé. Naquele caso, C estaria a mobilizar o artigo 243º para tentar obter o benefício de
poder comprar o apartamento em questão por um valor inferior ao valor que foi
acordado na realidade entre A e B, contrariando a finalidade do próprio artigo.
4.9.3 Modificação de direitos
A modificação de direitos ocorre quando o direito, mantendo-se o mesmo, vê os seus
elementos alterar-se. A modificação de direitos pode ser:
- Subjetiva: Há uma alteração do sujeito do direito.
-» Exemplo: A vende um apartamento a B. O direito de propriedade mantém-se o
mesmo, mas a sua titularidade altera-se.
- Objetiva: Há uma alteração do objeto do direito.
-» Exemplo: A obriga-se a pintar as paredes de casa de B. Contudo, fê-lo
imperfeitamente. Este dever de prestar transforma-se num dever de indemnizar.
4.9.4 Extinção de direitos
A extinção de direitos ocorre quando o direito desaparece. A extinção de direitos pode
ser:
- Subjetiva: O direito extingue-se na esfera jurídica de um sujeito, embora permaneça a
existir no ordenamento jurídico.
-» Exemplo: A vende a B e B adquire um determinado direito. Este direito passou a
deixar de existir na esfera jurídica de A, mas continua a existir no ordenamento jurídico.
- Objetiva: O direito desaparece do ordenamento jurídico.
-» Exemplo: O computador de A ardeu. O seu direito de propriedade sobre o
computador desapareceu.
Existem ainda algumas situações especiais:
- Caducidade de direitos: 328º CC e ss. CC
- Prescrição de direitos: 300º e ss. CC
→ A caducidade e a prescrição são formas de extinção de direitos que resultam do
decurso do tempo.
III Capítulo
5. Sujeitos da relação jurídica
Os sujeitos da relação jurídica são todos aqueles estabelecem entre si um vínculo
normativo, ou seja, que são titulares de direitos subjetivos (sujeito ativo) e titulares de
deveres ou sujeições (sujeito passivo). Mais concretamente, são sujeitos da relação
jurídica todos aqueles que têm personalidade jurídica. A personalidade jurídica
consiste na suscetibilidade para se ser, em abstrato, titular de relações jurídicas, titular
de direitos e de deveres. Sendo assim, podem ser sujeitos da relação jurídica as pessoas
singulares e as pessoas coletivas.
Contudo, a personalidade jurídica das pessoas singulares não é idêntica à personalidade
jurídica das pessoas coletivas, uma vez que, enquanto as pessoas coletivas são uma
criação do Direito, as pessoas singulares têm uma dignidade intrínseca que se impõe ao
próprio Direito. Isto implica que enquanto que a personalidade jurídica é atribuída às
pessoas coletivas pelo ordenamento jurídico, a personalidade é reconhecida às pessoas
singulares pelo ordenamento jurídico. No fundo, a personalidade jurídica das pessoas
singulares traduz-se numa projeção da personalidade humana no mundo do Direito.

32
→ Orlando de Carvalho fala de subjetividade jurídica. A subjetividade jurídica traduz-
se na suscetibilidade de se ser sujeito de Direito.
6. Pessoas singulares
6.1 Noção de personalidade jurídica
A personalidade jurídica é a suscetibilidade para se ser, em abstrato, titular de relações
jurídicas, titular de direitos e de deveres.
6.2 Início da personalidade jurídica
O artigo 66º, n. 1 CC diz que a personalidade jurídica adquire-se no momento do
nascimento completo e com vida. Ou seja, a criança que nasça morta não é considerada
um sujeito da relação jurídica. O momento-chave para a aquisição da personalidade
jurídica seria o do corte do cordão umbilical. No entanto, o n. 2 do mesmo artigo
permite considerar uma série de direitos dos quais os nascituros, aqueles que ainda não
nasceram, são titulares.
6.3 Estatuto jurídico dos nascituros
6.3.1 Noção de nascituros
Os nascituros são aqueles que ainda não nasceram. Os nascituros dividem-se em:
- Nascituros já concebidos: Embrião, feto.
- Nascituros não concebidos: Meros projetos.
6.3.2 Direitos dos nascituros
O ordenamento jurídico reconhece direitos aos nascituros por via do artigo 66º, n. 2
CC. Esses direitos podem ser:
- de natureza patrimonial:
-» Os nascituros já concebidos podem receber bens por doação (952º CC) e por
sucessão legal, testamentária ou contratual (2033º, n. 1 CC).
-» Os nascituros não concebidos podem receber bens por doação (952º CC) e por
sucessão testamentária ou contratual (2033º, n. 2 CC).
- de natureza pessoal:
-» Os nascituros já concebidos são titulares de direitos de personalidade.
-» Os nascituros não concebidos não são titulares de direitos de personalidade.
Parece que a eficácia dos direitos reconhecidos por lei aos nascituros ficam dependentes
do seu nascimento (66º, n. 2 CC). Contudo, entende-se que este artigo só se aplica aos
direitos de natureza patrimonial dos nascituros porque, se ele se aplicasse aos direitos de
natureza pessoal, cair-se-ia numa verdadeira antinomia normativa (contradição do
ordenamento jurídico):
-» Exemplo 1: A atropelou Maria quando estava grávida. Com o atropelamento, A
causa graves lesões na integridade física do embrião que vem a nascer com deficiências.
Neste caso, haveria direito à indemnização, aplicando-se o artigo 66º, n. 2 CC.
-» Exemplo 2: A atropelou Maria quando estava grávida, passando com as rodas do
seu carro várias vezes pelo seu corpo. Neste caso, se fosse aplicado o artigo 66º, n. 2
CC, não haveria direito à indemnização autónoma do nascituro.
Outros problemas se levantam:
1. Despenalização da interrupção voluntária da gravidez
O Código Penal prevê no artigo 142º CP a despenalização da interrupção voluntária da
gravidez. Contudo, o facto de o comportamento não ser ilícito sob o ponto de vista
penal não significa que não possa ser considerado ilícito sob o ponto de vista civil.
Os defensores da legalização do aborto fundamentam as suas posições, invocando um
conjunto de direitos que, diga-se já, não são passíveis de serem mobilizados para
33
fundamentar a legalização do aborto:
→ Direito ao desenvolvimento da personalidade: O direito ao desenvolvimento da
personalidade traduz-se no poder de autodeterminação que a mulher tem e que a permite
desenvolver-se. No fundo, o direito ao desenvolvimento da personalidade permitiria à
mulher abortar, uma vez que a gravidez se configuraria como algo que não a
possibilitava desenvolver. Contudo, este direito não pode ser mobilizado para justificar
o aborto, uma vez que assenta numa dimensão ético-axiológica de total dignidade da
pessoa humana. Ora, a mulher, sendo Pessoa, é livre. Porém, a liberdade de que dispõe,
é ético-axiologicamente fundamentada, ou seja, na relação que ela tem com o outro, e
neste caso o outro é o nascituro, a mulher tem necessariamente que cumprir um
conjunto de deveres que lhe permitam relacionar-se com o nascituro com o cuidado que
ele merece. Ao abortar, ela viola tais deveres e, uma vez violados, ela torna-se
responsável perante o nascituro. Ora, o nascituro não pode ser compensado pelos danos
que a mulher lhe causa. E não faz sentido que a mulher seja indemnizada pelos danos
que ela própria provocou ao nascituro. Perante esta situação, muitos estudiosos do
Direito Civil advogam que o pai, que se opõe à realização do aborto por parte da mãe,
poderá vir a obter uma indemnização, não só pelo dano da morte do nascituro, como
também pela violação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade e à
autodeterminação da sua paternidade.
→ Direito à liberdade: Como anteriormente mencionado, a mulher, sendo Pessoa, é
libre. A liberdade da mulher não é, todavia, entendida numa perspetiva meramente
negativa, nem meramente positiva. A liberdade tem que ser entendida à luz da dimensão
ético-axiológica que fundamenta o Direito. Desta forma, o direito à liberdade não pode
ser entendido em termos absolutos em que a mulher pode, quer e manda, mas antes em
termos ético-axiológicos, tendo a mãe que cumprir uma série de deveres em relação ao
nascituro.
→ Direito sobre o próprio corpo: O direito sobre o próprio corpo consiste no poder
que a mulher tem de recusar o nascituro a usar o seu corpo ou no poder de pedir a um
terceiro para impedir o uso não-autorizado do seu corpo por parte do nascituro.
Relativamente a este direito, entende-se que o nascituro necessita do corpo da mulher
para viver. O direito à vida do nascituro é um direito de personalidade que lhe é
reconhecido, como anteriormente mencionado. Ora, se o nascituro é titular do direito à
vida (sujeito ativo), a mulher é titular de um dever de respeito (sujeito passivo)
relativamente àquele direito. Isto significa que a mulher é titular de uma obrigação
passiva universal, à qual se agrega o cumprimento de uma série de deveres de
comportamento positivo sempre que seja necessário salvaguardar o direito do sujeito
ativo. Pelo exposto, poder-se-á concluir que a mulher, sendo a única a poder
salvaguardar o direito à vida do nascituro, está adstrita ao cumprimento da obrigação
passiva universal, ou seja, deve abster-se de interferir com a vida do nascituro e
salvaguardar a vida do nascituro.
Concluindo, verifica-se que, por um lado, todos estes direitos que os defensores da
despenalização da interrupção voluntária da gravidez invocam para a justificar são
insuscetíveis de serem mobilizados para tal efeito. Por outro lado, o reconhecimento de
um direito ao aborto configuraria uma violação do fundamento ético-axiológico do
Direito, uma vez que permitiria que uma pessoa, invocando um direito ao aborto,
poderia pôr termo à vida de outra pessoa, neste caso do nascituro, que seria entendida
hierárquico-axiologicamente inferior. E mesmo que tal direito existisse, estaria em
conflito com o direito à vida que necessariamente teria que prevalecer sobre aquele!

34
Em suma e tendo em conta tudo o que foi mencionado, entende-se que o nascituro é
uma Pessoa e, sendo uma Pessoa, é titular do direito à vida. Sendo assim, o aborto
continua a ser considerado um ato ilícito sob o ponto de vista civil, podendo aplicar-se o
artigo 70º CC.
2. Reconhecimento da personalidade jurídica aos nascituros
Se a personalidade jurídica é a suscetibilidade, em abstrato, para se ser titular de direitos
e de deveres, qualquer sujeito que seja titular de direitos e de deveres tem personalidade
jurídica. Ora, se se reconhece que os nascituros têm direitos, então está-se a afirmar que
os nascituros têm personalidade jurídica. Por sua vez, se se afirma que os nascituros têm
personalidade jurídica, parece que se entra em contradição, uma vez que esta adquire-se
no momento do nascimento. Para este problema, os autores têm oferecido respostas
diversas:
1) Há autores que defendem que os nascituros não têm personalidade jurídica. Ou seja,
de acordo com esta perspetiva seriam reconhecidos direitos aos nascituros, mas estes, e
assim a personalidade jurídica, só integrariam a esfera jurídica dos mesmos no momento
do seu nascimento completo e com vida.
→ Esta posição não pode ser aceite por dois argumentos:
1) Esta posição contraria o princípio do personalismo ético que diz que se tem que
reconhecer a dignidade da Pessoa a todo e qualquer ser humano, independentemente das
suas condições, circunstâncias, fragilidades, etc.
2) Esta posição não explica o reconhecimento de direitos de natureza pessoal aos
nascituros antes do seu nascimento completo e com vida.
2) Há autores que falam de direitos sem sujeito. Ou seja, os direitos existiriam, ficariam
submetidos a uma condição suspensiva e só mais tarde é que entrariam na titularidade
do sujeito.
→ Esta posição não pode ser aceite porque, mais uma vez, se contraria o princípio do
personalismo ético. Isto não quer dizer que a categoria dos direitos sem sujeito possa ser
aproveitada para outras situações.
-» Exemplo: Imagine-se um bilhete de lotaria premiado. Aquele título incorpora o
próprio direito. Imagine-se que o bilhete de lotaria se perde. Neste caso, o direito existe,
mas ainda não ingressou na titularidade do sujeito.
3) Há ainda autores que dizem que os nascituros têm uma personalidade jurídica parcial.
→ Esta posição também não pode ser aceite, uma vez que a personalidade jurídica é um
conceito absoluto, ou seja, a pessoa tem ou não tem personalidade jurídica.
Posição a ser adotada: No que diz respeito aos nascituros já concebidos, deve-se
entender que o princípio fundamental que alicerça o Direito Civil, o personalismo ético,
impõe ao ordenamento jurídico o reconhecimento da personalidade jurídica a todo e
qualquer ser humano. Portanto, nessa medida, os nascituros já concebidos têm
personalidade jurídica. A personalidade jurídica, no fundo, traduz-se numa projeção da
personalidade humana no mundo do Direito. De acordo com o artigo 66º, n. 1 CC, a
personalidade jurídica adquire-se com o nascimento completo e com vida. Contudo,
relativamente aos nascituros já concebidos, o momento fundamental do nascimento
deixa de ser um momento relevante sempre que as circunstâncias determinem a
necessidade de tutela de determinados direitos mesmo antes do próprio nascimento.
No que diz respeito aos nascituros não concebidos, eles não têm personalidade jurídica
porque não passam de um mero projeto a vir a ser, não existindo ainda como seres
humanos e não fazendo sentido que haja uma ideia de dignidade ética que recaia sobre
um projeto ainda não materializado.

35
6.4 Termo da personalidade jurídica
A personalidade jurídica cessa, nos termos do artigo 68º, n. 1 CC, com a morte. Com a
morte extinguem-se os direitos de natureza pessoal e os direitos de natureza patrimonial
são transmitidos aos sucessores através do fenómeno sucessório. Fundamental é, por
isso, saber quando é que ocorre a morte.
-» Exemplo: Imagine-se que há necessidade de fazer uma colheita de órgãos com
vista a um determinado transplante. A partir de que momento é que a pessoa pode ser
considerada juridicamente morta para que a extração de órgãos seja possível?
→ O critério legal da morte é o critério da morte cerebral, ou seja, quando o tronco
cerebral da pessoa deixa de ter qualquer atividade, e não o critério da morte
cardiorrespiratória, uma vez que se considera que esta pode ainda ser revertida.
6.5 Presunções de morte
A morte deve ser declarada por escrito e comprovada pela existência de um cadáver.
Porém, há situações em que não é possível determinar se a pessoa efetivamente morreu
pelo facto de o cadáver ter desaparecido e nunca ter sido encontrado.
-» Exemplo: Imagine-se que um naufrágio ocorre mas o corpo de um dos tripulantes
nunca mais apareceu. Sendo assim, não se consegue certificar o óbito.
Numa situação como esta, se a pessoa desapareceu em circunstâncias tais que não
permitem duvidar da sua morte, presume-se que a pessoa morreu. O artigo 68º, n. 3 CC
consagra uma presunção de morte.
O artigo 68º, n. 2 CC consagra uma presunção de comoriência.
-» Exemplo: A está casado com B. A e B têm um filho C. C está casado com D.
Imagine-se que A é proprietário de um apartamento e de um estabelecimento comercial.
Imagine-se que A e C estavam embarcados num navio que naufragou, desaparecendo e
sendo dados como mortos. Contudo, não se sabe quem morreu primeiro. E nunca se irá
saber. Contudo, saber quem morreu primeiro é relevante porque:
1. Hipótese: A morre primeiro. Se A morre primeiro, os herdeiros de A são B e C.
Quando C morre, parte daquilo que C recebeu vai pertencer a B e a D.
2. Hipótese: C morre primeiro, não tendo quaisquer bens. Se não tem bens, não há
qualquer problema relativamente ao fenómeno sucessório. Quando A morre, os seus
bens vão pertencer a B.
→ Na primeira hipótese, B e D iriam ser herdeiros; na segunda hipótese, só seria B. Por
conseguinte, não é indiferente, sob o ponto de vista jurídico, saber quem morreu
primeiro. Nestas hipóteses, aplica-se a presunção de comoriência do artigo 68º, n. 2 CC,
ou seja, presume-se que eles morreram ao mesmo tempo. Se A e C morrem ao mesmo
tempo, se A morre, a esfera jurídica de C já não existe, pelo que só herda B.
6.6 Ausência
As hipóteses em que alguém desaparece em circunstâncias tais que não permitem
duvidar da sua morte não se confundem com as hipóteses em que alguém foi comprar
tabaco e não nunca mais voltou a casa. Ou seja, para que se possa aplicar a presunção de
morte do artigo 68º, n. 3 CC, é preciso que as circunstâncias não ofereçam margem para
dúvidas. No caso de alguém ter ido comprar tabaco depois do jantar e nunca mais ter
voltado a aparecer diz respeito ao problema da ausência. A ausência, em termos
técnico-jurídicos, é a não-presença acompanhada da ausência de notícias. Se a pessoa
desaparece, deixa de dar notícias e ninguém sabe do seu paradeiro, a primeira coisa a
fazer é administrar os seus bens através da curadoria provisória.
Curadoria provisória: A curadoria provisória está prevista nos artigos 89º e ss. CC.
Para que se possa requerer a curadoria provisória, é necessário preencher os seguintes

36
requisitos:
1. É necessário que se verifique uma situação de ausência.
2. É necessário que o ausente não tenha representante legal ou procurador
(representante voluntário). O representante é quem atua em nome de alguém e os efeitos
jurídicos da sua atuação verificam-se na esfera jurídica desse alguém. Se o ausente
tivesse represente legal ou voluntário não existiria a preocupação respeitante à
administração dos seus bens, uma vez que já existiria alguém encarregue de fazê-lo.
Quem é que pode requerer a curadoria provisória?
A curadoria provisória pode ser requerida pelo Ministério Público ou por qualquer
interessado (91º CC).
Quem é que pode ser escolhido como curador provisório?
Pode ser escolhido como curador provisório uma das pessoas elencada no artigo 92º
CC. O curador provisório tem que prestar caução e apresentar contas da sua atuação
(93º, n. 3 e 95º, n. 1 CC).
Quando termina a curadoria provisória?
A curadoria provisória termina numa das hipóteses previstas no artigo 98º CC.
A presunção mais forte no âmbito da curadoria provisória é a presunção do regresso do
ausente. Porém, à medida que o tempo passa, a esperança de que o ausente regresse
começa a esmorecer-se. Por conseguinte, haverá um momento em que a presunção do
regresso do ausente equilibra-se com a presunção do não-regresso do ausente. Neste
caso, passa-se da curadoria provisória para a curadoria definitiva.
Curadoria definitiva: A curadoria definitiva está prevista nos artigos 99º e ss. CC.
Para que se possa requerer a curadoria definitiva, é necessário preencher os seguintes
requisitos:
1. É necessário que se verifique uma situação de ausência;
2. É necessário que tenha decorrido um determinado período de tempo:
- 2 anos, se não houver representante legal ou procurador
- 5 anos, se houver representante legal ou procurador
Quem é que pode requerer a curadoria definitiva?
A curadoria definitiva pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo cônjuge, pelos
herdeiros do ausente e por todos aqueles que tiverem direitos sobre os bens do ausente
que estejam dependentes da morte dele (99º e 100º CC).
Com a curadoria definitiva, procede-se à abertura de testamentos (101º CC) e à entrega
dos bens do ausente aos herdeiros (103º CC), contudo, a título de curadoria e não a
título de direito de propriedade, uma vez que, apesar da presunção do regresso do
ausente ser agora muito mais fraca, ela mantém-se. É também por isso que o tribunal
pode exigir a prestação de caução aos curadores definitivos (107º CC). A caução
consiste numa quantia que se paga para garantir que se não vai alienar o património,
administrar mal o património, podendo ser posteriormente entregue.
Como os herdeiros não são ainda proprietários, mas apenas curadores definitivos, não
podem praticar todo e qualquer ato. O artigo 94º, n. 3 CC prevê que quer os curadores
provisórios quer os curadores definitivos se quiserem alienar algum bem do património
do ausente necessitam de obter a devida autorização judicial para o efeito (110º CC).
Quando termina a curadoria definitiva?
A curadoria definitiva termina nas hipóteses previstas no artigo 112º CC.

37
À medida que o tempo passa, a presunção do regresso do ausente desvaneceu-se por
completo. Por conseguinte, a presunção mais forte é a presunção do não-regresso do
ausente, entendendo-se que este, muito provavelmente, já possa ter morrido. Neste caso,
passa-se da curadoria definitiva para a declaração de morte presumida.
Declaração de morte presumida: A declaração de morte presumida está prevista nos
artigos 114º e ss. CC. Para que se possa requerer a declaração de morte presumida, é
necessário preencher os seguintes requisitos:
1. É necessário que se verifique uma situação de ausência;
2. É necessário que tenha decorrido um determinado período de tempo:
- Prazo regra: 10 anos
-» Exemplo: A desapareceu e deixou de dar notícias em 2010. Neste caso, a
declaração de morte presumida de A pode ser requerida em 2020.
- Prazo especial 1: 5 anos se o ausente tenha entretanto completado 80 anos.
-» Exemplo: A, quando desapareceu e deixou de dar notícias em 2010, tinha
76 anos. Neste caso, a declaração de morte presumida de A pode ser requerida em 2015.
- Prazo especial 2: x anos até o ausente completar 80 anos.
-» Exemplo: A, quando desapareceu e deixou de dar notícias em 2010, tinha
74 anos. Se esperarmos 5 anos, A não completa os 80 anos. Mas se tivéssemos que
esperar 10 anos, estaríamos a dar um tratamento diferente daquele dado à pessoa de 74
anos a uma pessoa de 76 anos só porque essa pessoa tem 2 anos a mais que a outra. A
doutrina tem entendido que, numa situação como esta, não se deve esperar nem 10 nem
5 anos, mas espera-se até que o ausente tivesse completado 80 anos, ou seja, a espera
para se requerer a declaração de morte presumida seria de 6 anos.
O artigo 114º, no seu n. 2, diz ainda que não é possível haver declaração de morte
presumida se não tiverem ainda decorrido 5 anos a partir da data em que o ausente teria
feito 18 anos.
-» Exemplo: A, quando desaparece e deixa de dar notícias em 2010, tinha 8 anos.
Passados 10 anos, A teria feito 18 anos em 2020. Neste caso, não seria possível requerer
a declaração de morte presumida. Ter-se-á que contar o segundo prazo, ou seja, 5 anos a
partir da data em que A fez 18 anos. Sendo assim, a declaração de morte presumida só
poderia ser requerida em 2025, quando A tivesse completado 23 anos.
→ Quando o ausente seja menor, nunca poder-se-á requerer a declaração de morte
presumida antes dos 23 anos.
-» Exemplo: A, quando desaparece e deixa de dar notícias em 2010, tinha 16 anos.
Passados 10 anos, A teria 26 anos em 2020. Neste caso, a declaração de morte
presumida de A já pode ser requerida ao fim de 10 anos sem esperar mais um
determinado prazo de tempo porque o prazo de 10 anos integra o prazo de 5 anos a
contar da maioridade.
Para haver declaração de morte presumida não é necessário que tenha havido curadoria
provisória ou curadoria definitiva. Da mesma maneira, não é necessário que tenha
havido curadoria provisória para haver curadoria definitiva (114º, n. 3 CC).
O problema do casamento:
A declaração de morte presumida tem os mesmos efeitos que a morte, com uma
exceção: O casamento não se dissolve (115º CC). Contudo, o cônjuge do ausente pode
contrair novo casamento (116º CC).
No caso do regresso do ausente, de acordo com o artigo 116º CC, considera-se que o
casamento entre ele e o seu cônjuge se dissolveu por divórcio à data da declaração de
morte presumida.

38
O problema dos bens do ausente:
Como se referiu anteriormente, a declaração de morte presumida tem os mesmos efeitos
que a morte. Isto significa que os bens do ausente são entregues aos herdeiros a título de
direito de propriedade, uma vez que a presunção mais forte é a presunção do não-
regresso do ausente. É também por isso que já não há lugar a caução (117º CC).
No caso do regresso do ausente, são lhe devolvidos os bens que tinham sido entregues
aos seus herdeiros no estado em que se encontram, o preço dos bens alienados, os bens
sub-rogados e os bens adquiridos mediante o preço dos bens alienados (119º CC).
-» Exemplo: A desapareceu e não deixou notícias, acabando por ter sido declarado
presuntivamente morto. A tinha um apartamento, um estabelecimento comercial e uma
conta bancária.
1. Hipótese: Imagine-se que, quando ele regressa, já só existe o apartamento e o
estabelecimento comercial. O saldo bancário tinha sido gasto pelos herdeiros. Neste
caso, ter-se-á que lhe devolver o apartamento e o estabelecimento comercial.
2. Hipótese: Imagine-se que, para além de já não existir o saldo bancário, o apartamento
foi vendido. Neste caso, ter-se-á que lhe devolver o estabelecimento comercial e o
dinheiro resultante da venda do apartamento.
3. Hipótese: Imagine-se que com o dinheiro da venda do apartamento, os herdeiros
adquiriram outro apartamento. Neste caso, ter-se-á que lhe devolver o estabelecimento
comercial e o segundo apartamento que foi comprado com o dinheiro resultante da
venda do primeiro apartamento. A este fenómeno dá-se o nome de sub-rogação que
consiste no ato pelo qual uma pessoa substitui outra no exercício de um direito.
Regresso da pessoa que desapareceu em tais circunstâncias que não permitem
duvidar da sua morte:
-» Exemplo: Imagine-se que o náufrago que desapareceu em tais circunstâncias que
não permitem duvidar da sua morte, por milagre, apareceu ao fim de um ano, tendo sido
socorrido por um navio que o encontrou à deriva no mar.
Neste caso, aplica-se por analogia a solução do artigo 119º CC às hipóteses de engano
na aplicação do artigo 68º, n. 3 CC para declarar a presunção de morte.
6.7 O conteúdo mínimo da personalidade jurídica: os direitos de
personalidade
O conceito de personalidade jurídica foi durante muito tempo entendido de um modo
formal. A partir do momento em que o Direito Civil passou a fundamentar-se num
quadro valorativo de total dignidade da pessoa humana, a personalidade jurídica deixou
de ser entendida em termos puramente formais, para ser também ela compreendida em
termos materiais que impõem o reconhecimento de um conteúdo mínimo para a
personalidade jurídica que é composto por um conjunto de direitos que necessária ou
obrigatoriamente têm que ser reconhecidos a qualquer Pessoa pelo simples facto de ser
Pessoa, ou seja, os direitos de personalidade. Os direitos de personalidade são direitos
que têm como objeto a personalidade humana globalmente considerada, falando-se do
direito geral de personalidade, ou determinados bens da personalidade humana, falando-
se de direitos especiais de personalidade.
6.7.1 Evolução histórica dos direitos de personalidade
-» Pré-jusracionalismo: Os direitos de personalidade, à semelhança dos direitos
subjetivos, começaram por não existir. Porém, tal não significa que a pessoa não fosse
protegida, sendo protegida por estar inserida numa ordem natural.
-» Jusracionalismo: Com o Jusracionalismo iluminista, o indivíduo autonomiza-se da
ordem natural onde estava inserido, chegando-se à afirmação de uma série de direitos de

39
personalidade que eram entendidos como direitos naturais inerentes ao próprio Homem.
Esses direitos naturais seriam posteriormente convertidos em direitos subjetivos através
do contrato social que faria emergir uma sociedade politicamente organizada em Estado
que começou por ser entendido como Estado absoluto (Hobbes), sendo depois superado
através das Revoluções ditas Liberais por um Estado de Direito liberal (Rousseau).
-» Positivismo jurídico: Os direitos de personalidade enquanto direitos subjetivos
proclamados por via revolucionária confundiam-se com liberdades que, por um lado,
eram exercidas em termos absolutos pelos seus titulares e, por outro lado, eram
exercidas contra o Estado para limitar os seus poderes.
Contudo, o reconhecimento dos direitos de personalidade enquanto direitos subjetivos
suscitou algum criticismo por parte de alguns autores. Há autores que negam a
autonomia dos direitos de personalidade enquanto verdadeiros direitos subjetivos,
indicando os seguintes argumentos:
1. Não faz sentido existir um direito em que o sujeito (a pessoa) e o objeto (a pessoa)
coincidem. E mesmo que fizesse sentido, tal levaria a que a pessoa fosse entendida
como um mero objeto.
2. Concebendo-se o direito subjetivo como um poder da vontade absoluto que radica
no indivíduo, e considerando que os direitos de personalidade seriam verdadeiros
direitos subjetivos, estar-se-ia a correr o risco de transformar o homem num escravo de
si mesmo. Ou seja, se um indivíduo exercer os seus direitos de personalidade em termos
absolutos, ele pode invocar formalmente um direito contra si mesmo, legitimando
comportamentos atentatórios contra a sua dignidade.
-» Exemplo: Um indivíduo vê uma estátua da Antiguidade Clássica, admira-a e
decide cortar os seus membros. Neste caso, o indivíduo que invoca o seu direito à
integridade física (direito de personalidade) estaria a transformar-se num escravo de si
mesmo.
A preocupação dos autores relativamente à conceção dos direitos de personalidade
enquanto direitos subjetivos é uma preocupação legítima que não se pode deixar de ter
em conta. Mas não parece que ela afaste a possibilidade de conceber-se os direitos de
personalidade como verdadeiros direitos subjetivos, uma vez que o direito subjetivo não
é um direito radicado no indivíduo, mas sim um direito radicado na Pessoa, Pessoa essa
que está no centro da disciplina do Direito Civil. Portanto, só se podem invocar os
direitos de personalidade se essa invocação não contrariar o fundamento ético-
axiológico do reconhecimento desses direitos, ou seja, a dignidade da pessoa humana.
-» Exemplo: No exemplo anterior, estaria em causa um atentado direto contra a
dignidade da pessoa humana e, mais concretamente, a verificação de uma ausência de
direitos, uma vez que o sujeito viola o fundamento ético-axiológico do reconhecimento
do seu direito à integridade física.
6.7.2 Características dos direitos de personalidade
Os direitos de personalidade são direitos subjetivos em sentido estrito. Enquanto que do
lado ativo da relação jurídica se encontra um direito de personalidade, do lado passivo
da relação jurídica encontra-se um dever de respeito (obrigação passiva universal
(dever geral de abstenção) e deveres de comportamento positivo sempre que seja
necessário salvaguardar o direito do lado ativo).
→ Os direitos de personalidade são direitos absolutos, porque vinculam todos os
membros da comunidade jurídica, tendo eficácia erga omnes.
→ Os direitos de personalidade são direitos gerais, porque são titulados por toda e
qualquer Pessoa pelo simples facto de ser Pessoa.
→ Os direitos de personalidade são direitos extrapatrimoniais, porque não são
40
suscetíveis de avaliação pecuniária. Isto não quer dizer que certos direitos de
personalidade não possam ser objeto de algum aproveitamento económico:
-» Exemplo: O direito à imagem é um direito de personalidade. Por ser um direito de
personalidade, é extrapatrimonial. Contudo, o conteúdo do direito à imagem é suscetível
de exploração económica pelo titular.
→ Os direitos de personalidade são direitos inalienáveis, ou seja, o titular do direito
não o pode alienar, não pode abdicar dele e, se o fizer, está a abdicar da sua própria
dignidade.
→ Os direitos de personalidade são direitos inatos, porque surgem com o próprio
surgimento da Pessoa. Por isso é que os nascituros já concebidos são titulares de direitos
de personalidade. No entanto, existem direitos de personalidade que não se caracterizam
por serem inatos:
-» O direito ao nome não surge com o surgimento da própria Pessoa, mas está
dependente do registo civil.
-» O direito moral de autor não surge com o surgimento da própria Pessoa, mas está
dependente da elaboração de uma obra de arte literária ou científica que seja original.
Ou seja, é necessário que haja uma projeção da própria pessoa num determinado objeto
que é criado por ela. Isto quer dizer que há pessoas que nunca chegarão a ter direitos
morais de autor.
→ Os direitos de personalidade são direitos tendencialmente indisponíveis, porque,
em regra, o titular não pode dispor desses direitos. Porém, há situações em que o titular
dos direitos pode limitá-los voluntariamente através do consentimento do ofendido que
está previsto no artigo 81º CC conjugado com o artigo 340º CC: O comportamento do
sujeito que lesa direitos de personalidade alheios é um comportamento ilícito por ser
violador de direitos absolutos. O consentimento do ofendido serve para excluir a
ilicitude do comportamento.
Existem várias modalidades de consentimento:
1. Consentimento vinculante: O consentimento é vinculante quando o titular de um
direito de personalidade confere um poder jurídico de agressão, envolvendo uma
vinculação jurídica. No fundo, o titular está a conferir a outrem um direito.
-» Exemplo: A cedeu a sua imagem à agência de modelos X. Neste caso, o
consentimento é vinculante porque as partes vinculam-se negocialmente. Deste negócio,
resulta para a agência X um verdadeiro direito.
→ A revogação do consentimento vinculante gera a obrigação de indemnizar o interesse
contratual positivo.
2. Consentimento autorizante: O consentimento é autorizante quando o titular de um
direito de personalidade confere um poder fáctico de agressão.
-» Exemplo: O consentimento prestado ao médico para extrair um órgão com vista à
transplantação é um consentimento autorizante, uma vez que o titular não está a conferir
um direito, mas sim um poder fáctico de agressão. A qualquer momento, a pessoa pode
retirar este consentimento. O titular do direito de personalidade só terá que indemnizar
pelos prejuízos causados às legítimas expetativas.
→ A revogação do consentimento autorizante gera a obrigação de indemnizar o dano da
confiança.
3. Consentimento tolerante: O consentimento é tolerante quando o titular não confere
um poder jurídico de agressão, nem um poder fático de agressão, mas traduz-se numa
mera causa de exclusão da ilicitude. É, no fundo, o consentimento a que se refere o
artigo 340º CC.
→ A revogação do consentimento tolerante não gera qualquer tipo de obrigação de
indemnização.

41
Algumas notas acerca do consentimento:
1) O consentimento serve para limitar direitos de personalidade. Contudo, não implica a
renúncia ao direito de personalidade. Por isso, o consentimento conhece limites, não
podendo pôr em causa a dignidade da pessoa humana que corresponde ao fundamento
ético-axiológico do reconhecimento do direito de personalidade, não pode ser contrário
a uma proibição legal ou aos bons costumes (340º, n. 2 CC) nem aos princípios de
ordem pública (81º, n. 1 CC).
-» Exemplo: A vê uma estátua da Antiguidade Clássica, fica admirado com a sua
beleza estética e decide cortar os braços. Tal comportamento não configuraria um
consentimento válido porque põe em causa a dignidade da pessoa humana.
2) O consentimento tem que ser um ato livre do titular do direito de personalidade. Para
o ser, este tem que cumprir determinados requisitos:
1. Não pode haver qualquer tipo de coação.
2. O consentimento tem que ser um consentimento específico, ou seja, o titular do
direito de personalidade não pode autorizar a lesão em termos genéricos, uma vez que
esta pode ser de diversas proporções (pode ir desde o contacto físico até ao coma). Isto
significa que, em determinados domínios caracterizados por uma especial complexidade
técnica, o consentimento pode ser acompanhado pelo cumprimento de deveres de
esclarecimento prévios. Fala-se a este propósito do consentimento informado.
-» Exemplo: O médico não pode atuar sobre o corpo do paciente sem o seu
consentimento. A falta de consentimento torna o ato médico num ato ilícito, não sob o
ponto de vista da integridade física, mas sob o ponto de vista da autodeterminação sobre
o próprio corpo. Ou seja, o médico, para atuar sobre o corpo do paciente, necessita, por
um lado, do seu consentimento, que é autorizante, e, por outro lado, de explicar a
finalidade da intervenção médica, informar sobre as vantagens e desvantagens da
realização da intervenção médica, sobre os riscos que o paciente pode correr, etc. Ou
seja, para além do consentimento autorizante por parte do paciente, o médico necessita
de cumprir uma série de deveres de esclarecimento.
3) Há domínios em que o consentimento tem que ser expresso.
-» Exemplo: Em determinados atos médicos, o consentimento tem que ser expresso.
Contudo, o consentimento também pode ser tácito, podendo ser prestado através de atos
concludentes através dos quais se pode extrair, com uma certa margem de certeza, que
aquela seria a efetiva vontade do sujeito.
-» Exemplo: A pega num telemóvel para fotografar a turma. Os alunos começam a
fazer poses e caretas. Ou seja, apesar de ninguém ter aceitado explicitamente que A o
fotografasse, aqueles comportamentos podem ser considerados concludentes.
O artigo 340º, n. 3 CC permite que se vá ainda mais longe, falando de um
consentimento presumido.
-» Exemplo: A chega inanimado à urgência, não podendo prestar o seu
consentimento. O médico pode intervencionar A, sem que o sua intervenção seja
considerada ilícita, presumindo o consentimento do seu paciente que se baseia no
interesse de A e de acordo com a sua vontade presumida.
6.7.3 A tutela post-mortem dos direitos de personalidade
Como já foi referido, os direitos de personalidade são tutelados mesmo antes da pessoa
nascer. O artigo 71º, n. 1 CC admite a tutela dos direitos de personalidade de pessoas já
falecidas. Como é óbvio, nem todos os direitos de personalidade são tutelados depois da
morte, não sendo, a título de exemplo, tutelado o direito à vida do defunto.
O artigo 71º, n. 1 CC é objeto de profunda discussão doutrinal. Os autores apresentam
posições divergentes no que diz respeito à interpretação do artigo:
42
- Há autores que entendem que o artigo 71º CC configura uma exceção à regra segundo
a qual a personalidade jurídica cessa com a morte.
→ Esta posição não deve ser acolhida, porque não há nada que aponte para a
continuidade da personalidade jurídica para além da morte. Com a morte extinguem-se
os direitos de natureza pessoal e os direitos de natureza patrimonial são transmitidos aos
sucessores através do fenómeno sucessório.
- Há autores que entendem que não são os direitos de personalidade do defunto que são
tutelados, mas sim alguns direitos dos familiares sobrevivos.
→ Esta posição não deve ser acolhida, porque se em causa estivessem direitos de
pessoas sobrevivas, estes seriam integrados na tutela da sua personalidade, não fazendo
consequentemente sentido o artigo 71º CC.
- Há autores que entendem que o que está em causa é a tutela de alguns bens da
personalidade do falecido (ex.: direito à imagem, os direitos de autor, o direito à
privacidade, o direito à história pessoal, etc.), bens esses que acabam por difundir os
seus efeitos para além da própria morte. Ou seja, nem todos os direitos de personalidade
são tutelados depois da morte (ex.: direito à vida, etc.). A proteção que é dispensada a
esses bens da personalidade do falecido é exercida pelos familiares sobrevivos.
→ Entende-se que seja esta a posição que deve ser adotada.
A tutela post-mortem dos direitos de personalidade pode gerar alguns conflitos.
-» Exemplo: De um lado, tem-se o direito da investigação histórica; do outro, tem-se
o direito à tutela da história pessoal/à honra. Estes conflitos têm que ser solucionados.
Um elemento importante da comparação para a resolução do conflito entre os direitos
de personalidade do defunto é o tempo. Ou seja, quanto mais tempo passar, menor será
a tutela que se dispensa aos bens da personalidade do defunto.
-» Exemplo: Os direitos de autor mantêm-se durante 70 anos. Este pode ser um
marco temporal importante, que não é rígido quando se fala de conflitos de direitos.
6.7.4 As duas modalidades de direitos de personalidade
O direito geral de personalidade está previsto no artigo 70º CC e tem como objeto a
personalidade humana globalmente considerada.
Os direitos especiais de personalidade são direitos que tutelam determinados bens
específicos da personalidade humana, ou porque foram autonomizados pelo
ordenamento jurídico pela sua importância axiológica, ou porque, fruto de uma especial
conflitualidade, também são objeto de um tratamento especial. Os direitos especiais de
personalidade podem ter origem legal (autonomizados pelo legislador), origem
jurisprudencial (autonomizados pela jurisprudência) ou origem doutrinal
(autonomizados pela doutrina). Podem existir tantos direitos de personalidade quantas
sejam as manifestações possíveis da personalidade humana. Portanto, o elenco de
direitos especiais de personalidade é infindável.
Como se relaciona o direito geral de personalidade com os direitos especiais de
personalidade?
Relacionam-se como se relaciona qualquer regime geral com o regime especial: Por um
lado, o regime especial derroga o regime geral. Por outro lado, sempre que um
determinado aspeto não esteja especificamente previsto no regime especial, recorre-se
ao regime geral.
6.7.5 Objeto do direito geral de personalidade
O direito geral de personalidade tutela o homem globalmente considerado, o homem
histórico-concretamente situado.

43
-» Exemplo: Tutelar-se-á a integridade física concreta de um determinado homem e
não a integridade física ideal que um determinado homem poderia ter num mundo ideal.
Ao tutelar-se o homem globalmente considerado, tem-se que ter em conta as diversas
particularidades do homem. Por isso fala-se de um direito à diferença. Esse direito à
diferença tem que ser entendido em termos prudentes, ou seja, não se poderá invocar um
direito à diferença para legitimar comportamentos que sejam atentatórios contra a
dignidade da pessoa humana, uma vez que o direito de personalidade nunca pode ser
invocado e exercido em contradição com o fundamento último do reconhecimento desse
direito pelo ordenamento jurídico.
A tutela que se dispensa à personalidade humana postula a diferença entre homens e
mulheres. Claro que esta é uma diferença no plano ontológico, biológico e social. Mas
não é nem poderá ser uma diferença do ponto de vista axiológico, postulando-se uma
ideia de igualdade entre homens e mulheres.
Se se tem em conta o homem globalmente considerado, ter-se-á em conta que o homem
é um ser dinâmico e evolutivo. Ou seja, o homem que existe no momento em que nasce
não é exatamente igual, nas suas características, ao homem que existe na idade adulta.
Por isso, alguns autores sustentam que o direito geral de personalidade deve ser
analisado de uma perspetiva dinâmica. Capelo de Sousa distingue vários ciclos
evolutivos:
1) Fase da pessoa ainda não nascida (dos nascituros)
2) Fase da pessoa já nascida. Dentro desta fase, ter-se-á em conta as seguintes sub-
fases:
- Sub-fase dos menores. A menoridade suscita alguns problemas ao nível dos direitos
de personalidade.
-» Exemplo: Os pais têm um poder-dever em relação aos filhos. Os filhos, em
contrapartida, têm um dever de obediência em relação aos pais. Para que os pais possam
exercer aquele poder-dever, por vezes têm que tomar conhecimento de aspetos
concretos da vida privada dos filhos. Portanto, o direito geral de personalidade inclui a
tutela da privacidade. A tutela da privacidade, no caso dos menores, pode ser limitada
pela necessidade que os pais têm de tomar conhecimento de certos aspetos da esfera de
privacidade dos filhos, o que não quer dizer que se elimine totalmente essa esfera de
privacidade. Portanto, à medida que o menor vai ganhando autonomia, vai maturando e
se vai desenvolvendo, os pais têm que respeitar cada vez mais essa privacidade.
- Sub-fase da vida adulta. A fase da vida adulta suscita do ponto de vista da tutela
dos direitos de personalidade alguns problemas.
-» Exemplo: O casamento pode implicar uma certa restrição de certos direitos de
personalidade: o direito à liberdade, direito à privacidade, etc.
- Sub-fase do envelhecimento. As pessoas idosas que vivem cada vez mais morrem
de problemas que outrora não existiam: demências, fragilidades físicas, etc. Portanto,
pode haver necessidades de tutela destas pessoas em fase de envelhecimento. O direito
geral de personalidade é sensível a todas essas mudanças ao longo do decurso da vida
do sujeito.
3) Fase do de cuiús. A personalidade jurídica já se extinguiu. A pessoa corporeamente
já não existe, mas há determinados bens da personalidade que se mantêm. Já foi referido
que o artigo 71º CC dispensa essa tutela a alguns bens da personalidade e que existem
algumas divergências doutrinais em torno da interpretação deste mesmo artigo.
Para além da análise dos direitos de personalidade de uma perspetiva dinâmica, há que
se analisá-la sob uma perspetiva estática. Capelo de Sousa identifica duas dimensões
que são tuteladas:
44
1) A personalidade como um complexo unitário bio-psico-somático. Nesta primeira
dimensão vai-se proteger a vida, o corpo e seus elementos, o espírito e os seus sistemas,
a capacidade criadora do homem e as suas próprias criações.
2) O ser humano não vive no isolamento, mas sim no contacto com o outro. Sendo
assim, ao nível do direito geral de personalidade vão ser tuteladas certas dimensões da
personalidade que só são problematizáveis na relação “eu-mundo”. Nesta segunda
dimensão vai-se proteger a identidade (proteção da imagem, voz, gestos, escrita, nome,
pseudónimo, história pessoa, identidade política, identidade religiosa, identidade sexual,
identidade genética, etc.), a liberdade, a igualdade, a existência e a segurança, a honra, a
privacidade, o desenvolvimento da personalidade.
6.7.6 Os direitos especiais de personalidade
Direito à vida
O direito à vida alicerça todos os outros bens da personalidade. Sem vida cessa a
personalidade jurídica e os problemas que se colocam, a partir daí, são residuais.
Quando se diz que se tutela a vida, tutelam-se todas as vidas, sem distinção. Não é
possível, do ponto de vista ético-jurídico, distinguir ou graduar vidas.
→ Por um lado, tutela-se a vida do nascituro. Ou seja, do ponto de vista do Direito
Civil, o aborto é um ato ilícito que pode gerar responsabilidade civil (70º, n. 2 CC).
→ Por outro lado, tutela-se a vida em declínio. Ou seja, do ponto de vista do Direito
Civil, o suicídio é um ato ilícito que pode dar origem a uma proteção indemnizatória
(495º CC). Para além disso, considera-se, do ponto de vista do Direito Civil, que a
eutanásia, a morte a pedido, é um ato ilícito. Por um lado, a invocação de um direito a
morrer teria por objeto uma dimensão da própria pessoa. Sendo assim, inserir-se-ia na
categoria dos direitos de personalidade. Estes direitos têm como fundamento a Pessoa e
a sua ineliminável dignidade ética, pelo que tal direito estaria a contradizer o
fundamento ético-axiológico do reconhecimento desse direito. Por outro lado, os
direitos de personalidade são direitos subjetivos, ou seja, poderes da vontade que
radicam na Pessoa, e não no indivíduo. Ou seja, um direito a morrer não poderia ser
exercido em termos absolutos (“posso, quero e mando”), mas tendo em conta o
fundamento ético-axiológico do reconhecimento desse direito, pelo que se conclui que o
direito a morrer não possa existir!
Contudo, os direitos de personalidade são suscetíveis de serem limitados através do
consentimento. Esta limitação dos direitos de personalidade, todavia, também conhece
os seus limites (81º e 340º, n. 2 CC). Por conseguinte, o consentimento não seria válido,
uma vez que ultrapassa os seus limites!
Por último, também são consideradas ilícitas as hipóteses de auto-colocação em risco.
-» Exemplo: O jogo da roleta russa é ilícito porque cria um perigo desnecessário
contra a vida.
Direito à integridade física
Ao nível da integridade física, tutela-se o corpo, as partes componentes do corpo, as
relações fisiológicas entre os diversos órgãos, as estruturas anatómicas, as partes
destacáveis do corpo (próteses), […]
-» Exemplo: Imagine-se uma pessoa com uma perna de borracha. Se essa perna fosse
destruída, do ponto de vista formal, estar-se-ia a danificar a propriedade alheia. Já do
ponto de vista material, estar-se-ia a cometer um atentado à integridade física, uma vez
que a perna de borracha é uma coisa destacável do corpo que se liga ao corpo e que
cumpre uma função anatómica para corrigir um handicap do qual a pessoa sofre.
[…], a saúde, a autodeterminação sobre o próprio corpo.
O poder de autodeterminação sobre o próprio corpo traduz-se no poder que cada um tem

45
de decidir o que fazer com o seu corpo e de impedir que um terceiro interfira não
autorizadamente com ele:
-» O direito à autodeterminação sobre o próprio corpo, sendo um direito de
personalidade, pode ser voluntariamente limitado através do consentimento. Contudo,
como qualquer limitação de um direito de personalidade, a limitação do direito à
autodeterminação sobre o próprio corpo conhece limites, não podendo ser invocado em
contradição com o fundamento ético-axiológico do reconhecimento desse direito,
nomeadamente a dignidade da pessoa humana.
-» Como foi referido, o direito à autodeterminação sobre o próprio corpo pode ser
voluntariamente limitado através do consentimento desde que respeite os limites que se
lhe impõe. Neste âmbito, colocam-se problemas do ponto de vista da atuação médica:
1. O médico, para realizar uma intervenção médica sobre o corpo do paciente,
necessita do seu consentimento, neste caso, autorizante. Para além do consentimento
autorizante por parte do paciente, o médico tem necessariamente que cumprir deveres
de esclarecimento, informando o paciente sobre tudo aquilo que diz respeito à
intervenção médica. Se o médico não cumprir tais deveres e intervir sobre o corpo do
seu paciente sem o seu consentimento, estará a adotar um comportamento atentatório
contra a autodeterminação sobre o próprio corpo do paciente, sendo ilícito.
2. Contudo, se o paciente chegar ao hospital num estado tal que não seja capaz de
prestar o consentimento para limitar o seu direito à autodeterminação sobre o próprio
corpo, permitindo assim a intervenção médica por parte do médico, este pode presumir
o seu consentimento (340º, n. 3 CC). Assim, o médico, limitando a autodeterminação
sobre o próprio corpo do paciente, pode intervir sobre o mesmo, salvaguardando a sua
vida que poderia estar em causa se a intervenção médica não ocorresse.
Direito à integridade psíquica
Ao nível da integridade psíquica, tutela-se o sistema cognitivo (capacidade de pensar e
de conhecer) e o sistema volitivo (vontade). Por isso serão considerados ilícitos todos os
comportamentos que afetem o sistema cognitivo ou o sistema volitivo de um sujeito (ex.
realização de leucotomias, a submissão não autorizada a práticas de hipnose, a sujeição
de um determinado sujeito a drogas alucinogénias ou outro tipo de drogas).
Por vezes, não é simples distinguir onde é que para a lesão da integridade psíquica e
onde é que começa a lesão da integridade física, uma vez que o ser humano é um ser
unitário mas complexo nos seus sistemas biológicos e psíquicos. Foi a este respeito que,
por via da jurisprudência, foi autonomizado um direito de personalidade, o chamado
direito ao repouso. Os casos que levaram à autonomização do direito ao repouso
consistiam essencialmente no facto de vizinhos ou o funcionamento de discotecas
fazerem tanto barulho que impediam os outros de descansar. Entende-se que estes
comportamentos atentam contra as dimensões fundamentais da personalidade humana,
donde ser posta em causa a integridade psíquica e a integridade física da pessoa.
Direito à integridade moral
Ao nível da integridade moral, tutelam-se todos os sentimentos que correspondam a
conceções eticamente valiosas (não são tuteláveis sentimentos de ódio). São tutelados
os sentimentos de afeição, sentimentos de piedade pelos mortos, sentimento religioso,
etc. Relativamente a estes dois últimos domínios têm-se colocado alguns problemas
interessantes:
Sentimento de piedade pelos mortos:
-» Exemplo: A, casado, morreu. A foi enterrado num jazigo de família que abria com
uma chave. O jazigo pertencia aos pais do falecido. Depois da sua morte, o cônjuge
sobrevivo e os pais do falecido entram em litígio e os pais do falecido, invocando o seu
46
direito de propriedade mudaram a fechadura do jazigo e impediram a entrada no jazigo
de família à viúva. Neste caso, estariam dois direitos em causa: por um lado, o direito de
propriedade dos pais do falecido e os direitos invocados pela viúva (tutela dos direitos
post-mortem do falecido, portanto, a tutela dos restos mortais do falecido e o sentimento
de piedade pelos mortos). Neste caso, o facto de os pais do defunto terem mudado a
fechadura impedia totalmente o exercício dos direitos por parte da viúva, enquanto que
o exercício dos direitos por parte da viúva não impedia o exercício do direito de
propriedade dos pais. Isto levou a que fosse efetivamente tutelado o direito que estava a
ser posto em causa!
Sentimento religioso:
A tutela do sentimento religioso coloca alguns problemas referentes a conflitos entre o
direito à liberdade de expressão e da criação artística (designadamente o direito de sátira
enquanto direito que envolve um exagero) e o direito de tutela do sentimento religioso.
Este problema foi colocado a propósito das caricaturas que Charlie Hebdo fazia quer de
muçulmanos quer de católicos que envolviam essa sátira. O problema é que a sátira,
embora envolva um exagero, há de conter-se dentro de determinados limites. A
jurisprudência e a doutrina italiana definiram exatamente quais os limites do direito de
sátira que passam pela proibição do achincalhamento (ou seja, da ofensa gratuita), pelo
reconhecimento do ius iocandi (ou seja, considera-se que a sátira só é legítima quando
tem como objetivo despertar o riso), pela necessária consideração e pelo necessário
respeito por direitos alheios (ou seja, considera-se que nem tudo será permitido ao
abrigo da ideia de liberdade de expressão/de direito de sátira).
Direito à identidade
Dentro do direito à identidade, prestar-se-á particular atenção ao direito à imagem que
está especificamente previsto no artigo 79º CC.
Direito à imagem
O direito à imagem traduz-se no poder que cada um tem de controlar os sinais visuais
exteriores de identificação da pessoa. Ou seja, refere-se ao retrato, ou seja a qualquer
sinal visual exterior de identificação da pessoa, e não somente ao seu rosto.
-» Exemplo: Um modelo famoso tem um sinal característico na mão. Neste caso, ter-
se-ia uma tutela à imagem que não passaria pelo rosto do modelo.
Segundo o artigo 79º, n. 1 CC, o direito à imagem implica que o retrato não possa ser
exposto, reproduzido ou comercializado. Contudo, o preceito não menciona a captação
da imagem. Sem embargo, a captação da imagem, mesmo que não se pretenda expor,
reproduzir ou comercializar, deve ser considerada ilícita, fundamentando-se tal posição
mediante os dois seguintes argumentos:
1. Argumento: O legislador não fala na captação da imagem no artigo 79º CC, mas,
como o direito à imagem corresponde a um direito especial de personalidade,
estabelecendo um regime especial, ter-se-ia que recorrer ao artigo 70º CC que diz
respeito ao direito geral de personalidade e que estabelece um regime geral, para
fundamentar a ilicitude da captação da imagem.
2. Argumento: Se o que está em causa é o poder que cada um tem de controlar os
sinais visuais exteriores da sua própria identificação, a captação da imagem aumenta o
risco de exposição da imagem. As pessoas não têm que ficar reféns do risco acrescido
que envolve a captação de imagem.
O direito à imagem pode ser limitado pelo consentimento. O artigo 79º, n. 2 CC,
porém, prevê algumas situações em que o consentimento nem sequer é necessário:
1) Quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos ou na de
factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente
47
-» Exemplo: A resolve tirar uma foto ao Pátio das Escolas e, como B vai a sair, é
captado. Este comportamento não é ilícito, uma vez que a imagem é captada de forma
enquadrada na de um lugar público.
2) Finalidades de polícia ou de justiça
Exige-se que a divulgação da imagem seja o único meio de satisfazer interesses de
polícia ou de justiça. Se tal não for o caso, a imagem deve ser tratada de forma a não
permitir a identificação da pessoa.
-» Exemplo: Está a ser feita uma reportagem sobre corrupção no quadro da atividade
X. Sabe-se de algumas pessoas que são suspeitos. Não é necessário, para prosseguir
finalidades de polícia ou de justiça, apresentar a cara da pessoa suspeita, podendo surgir
desfocada. Mas se se estiver a falar de um foragido à polícia perigoso ou de uma criança
desparecida, considerar-se-á necessária a divulgação da sua imagem para que as pessoas
estejam atentas.
3) Finalidades científicas, didáticas ou culturais
Exige-se que seja necessário que se torne imprescindível a divulgação da imagem para a
prossecução de finalidades científicas, didáticas ou culturais.
4) Notoriedade ou cargo que a pessoa retratada desempenhe
-» Exemplo: A Princesa Carolina do Mónaco passa a vida a ser assediada pela
imprensa cor de rosa. A certa altura, cansou-se e recorreu para tribunal para tentar
conter aquelas constantes intromissões de captação da sua imagem até porque essa
captação de imagem e a sua divulgação podem envolver outros direitos de
personalidade, designadamente o direito à privacidade ou o direito à honra.
Relativamente à possibilidade de captação e divulgação da imagem em caso de
notoriedade da pessoa, existem duas posições:
1) Critério do isolamento: O critério do isolamento diz que é possível a captação
da imagem de uma figura pública, de uma figura que seja conhecida pela sua
notoriedade ou pelo cargo que desempenha, exceto nas situações em que a pessoa está
num local em que, pelas suas características, se comporta de um modo diverso do que
aquele que se comporta publicamente.
2) Critério do interesse público: O critério do interesse público diz que não é
possível a captação da imagem de uma figura pública se, mesmo encontrando-se em
locais públicos, não esteja direta ou indiretamente a exercer funções pelas quais se
tornou conhecida.
-» Exemplo: A captação da imagem de um cantor famoso é possível sempre que
ele surja num ambiente relacionado com a música.
→ Considera-se que este critério é mais adequado à intencionalidade subjacente ao
artigo 79º CC, mas suscita, no entanto, algumas dificuldades quando às figuras públicas
com uma dimensão pública de tal modo ampla que se torna difícil perceber a sua esfera
da vida privada (ex.: Rainha Elizabeth II).
A violação do direito à imagem pode envolver a violação de outros direitos de
personalidade, designadamente o direito à privacidade, o direito à honra, o direito à
verdade pessoal e o direito à identidade. Este problema coloca-se hoje em dia com
especial cuidado a propósito do mundo digital e da manipulação de imagem no mundo
digital. As famosas “fake news” são muitas vezes associadas à manipulação de imagens
que podem pôr em causa aqueles direitos.
Direito à privacidade
O direito à privacidade integra-se no elenco de direitos que assentam na ideia de
dignidade da pessoa humana, sendo por isso reconhecido pelo ordenamento jurídico.

48
Entende-se que a dignidade da pessoa exige que lhe seja reconhecido um espaço de
privacidade em que possa estar à vontade, onde esteja protegido de qualquer
intromissão e para que aí possa desenvolver o seu eu e todas as suas dimensões
enquanto Pessoa. Esta privacidade não se confunde porém com a privacy norte-
americana:
- Privacidade: No âmbito do nosso ordenamento jurídico, o direito à privacidade diz
respeito ao poder que cada um tem de controlar os variados aspetos ligados à sua vida
privada (dimensão informacional).
- Privacy: No âmbito da Common Law, para além de ser um poder que cada um tem de
controlar os variados aspetos ligados à sua vida privada, o direito à privacidade diz
respeito ao poder que cada indivíduo tem de ser deixado só (dimensão decisional).
Ao nível da privacidade, o ordenamento jurídico tutela apenas a dimensão
informacional da privacidade. Isto significa que ninguém pode ter acesso a dados da
vida privada de um sujeito sem a sua autorização. Tutelam-se aqui não só
acontecimentos que tenham lugar em locais privados como também aqueles que tenham
lugar em locais públicos.
-» Exemplo: A e B têm uma conversa num local público sobre um aspeto das suas
vidas privadas. Não é pelo facto de aquela conversa ocorrer num local público que tudo
aquilo que é dito por cada um deles deixa de ser tutelado.
Sendo assim, haverá uma violação ao direito de privacidade sempre que haja a tomada
de conhecimento não autorizada de factos da vida privada alheia, a divulgação de factos
da vida privada e as perseguições.
Ao nível da privacidade, tutela-se o poder que cada um tem de controlar os dados da sua
vida. Esses dados podem dizer respeito a inúmeros aspetos da vida do sujeito: os gostos,
as preferências, a família, os hábitos de vida, a história clínica, a história pessoal, os
projetos de vida, as relações afetivas, a orientação sexual, as crenças ideológicas e
religiosas, etc. A panóplia de elementos que se integram e se tutelam ao nível da
privacidade é tão ampla que parte da doutrina entende que se devem distinguir três
esferas de privacidade:
- Esfera pessoal: A esfera pessoal diz respeito a todos os elementos que, fazendo
parte da vida pessoal do sujeito, não dizem respeito ao público, mas que facilmente
podem ser captados por alguém que tenha um mínimo de contacto com a esfera da vida
do titular do direito (ex.: as fotografias da pessoa, os seus animais de estimação,
automóveis que conduz, etc.).
- Esfera privada: A esfera privada diz respeito aos gostos, às preferências da
pessoa, às suas orientações, aos seus projetos de vida. Ou seja, a esfera privada diz
respeito a elementos que não são tão facilmente captáveis por alguém que tenha um
mínimo de contacto com a esfera da vida do titular do direito.
- Esfera de segredo: A esfera de segredo diz respeito a todos os factos que sejam
secretos pela sua própria natureza, i.e., os dados clínicos da pessoa, os diários íntimos,
os segredos de confissão ou determinados factos que sejam secretos por determinação
da pessoa (ex.: A confessa um facto a B e diz-lhe expressamente que é secreto).
→ A importância de se fazer esta análise tripartida é conseguir perceber que à medida
que se caminha mais profundamente nas esferas de privacidade, maior será a proteção
que o ordenamento jurídico dispensa a este direito ao ponto de haver decisões
jurisprudenciais em Portugal que recusam, por exemplo, a consideração de um diário
íntimo como matéria de prova de um crime por se considerar que, como diz respeito a
um elemento da esfera de segredo, a sua consideração seria ilícita.

49
Por vezes, fala-se de um direito ao esquecimento. O direito ao esquecimento
corresponde ao direito que, decorrido certo tempo, determinados factos da vida privada
deixem de poder ser divulgados mesmo quando era lícita a sua divulgação. Este direito
tem, hoje em dia, uma importância extrema a propósito da proteção de dados pessoais,
tendo acolhimento e consagração expressa no Regulamento Geral de Proteção de
Dados.
Há determinados sujeitos relativamente aos quais a esfera de privacidade sofre algumas
limitações:
- Os menores, que têm um dever de obediência em relação aos pais, veem a sua esfera
de privacidade, de algum modo, limitada para que os pais possam exercer o seu direito
funcional, o que não quer dizer que estes não tenham que, tendo em conta o grau de
maturação progressiva do próprio menor, ter em conta a privacidade e seu respeito.
- As pessoas notoriamente conhecidas estão muitas vezes confrontadas com
limitações à sua esfera de privacidade. Relativamente a estas pessoas, não são raros os
conflitos que se verificam entre o seu direito à privacidade e o direito à informação (ex.:
jornais e revistas que divulgam elementos relativos à vida privada dessas pessoas). Em
relação às pessoas notoriamente conhecidas considera-se que elas têm de facto a sua
privacidade limitada mas por vontade própria, ou seja, são elas próprias que procuram a
exposição pública, da qual depende o seu sucesso pessoal e profissional. Portanto, se as
pessoas notoriamente conhecidas adotam determinados tipos de comportamentos não
podem depois reivindicar uma proteção da privacidade idêntica a uma pessoa anónima.
Isto não quer todavia dizer que as pessoas notoriamente conhecidas vejam a sua esfera
de privacidade eliminada:
1) A sua esfera de segredo mantém-se intocável.
2) A sua esfera privada e a sua esfera pessoal conservam-se, embora possam ser
limitadas em nome do interesse público, que se distingue do interesse do público!
Direito à honra
O direito à honra traduz-se no direito à imagem exterior que os outros têm do sujeito.
Dentro do direito à honra podem-se distinguir duas vertentes:
-» Vertente pessoal: A vertente pessoal diz respeito ao respeito e consideração pela
própria pessoa enquanto tal.
-» Vertente social: A vertente social diz respeito ao respeito e consideração de que a
pessoa goza da comunidade em que se insere.
A propósito da honra, os autores têm questionado várias conceções de honra:
1. Conceção fática de honra: A conceção fática de honra mostra que o critério da
ofensa é dado pela alteração empiricamente comprovável de certos elementos de facto.
Ou seja, a honra pessoal nunca poderia ser afetada, uma vez que pertence inteiramente à
pessoa. Contudo, deixam-se sem proteção aqueles que não têm capacidade para sentir a
ofensa e protegem-se excessivamente aqueles que têm uma exacerbada autoestima.
Além disso, a honra pessoal seria equiparada ao juízo que os demais membros da
comunidade em que se insere fazem dela.
2. Conceção normativa de honra: A conceção normativa de honra mostra que a
pessoa, só pelo facto de ser pessoa, merece respeito. Dentro da conceção normativa de
honra distinguem-se esferas invariáveis de honra:
- Honra pessoal: A honra pessoal é devida à ideia de dignidade da pessoa humana
(ex.: A pessoa, por ser pessoa, é merecedora de respeito, tem a sua honra que se
identifica com a noção de dignidade da pessoa humana).
- Honra familiar: A honra não é devida à pessoa polarizada em si mesmo, mas
devido à família a que pertence (ex.: A pessoa, por pertencer a uma família, é

50
merecedora de respeito).
Para além destas esferas invariáveis de honra, existem esferas variáveis de honra: a
honra profissional, o crédito (bom ou mau pagador), o decoro (bom ou mau
profissional). Nesta perspetiva, a honra identifica-se com a reputação. Portanto, estas
esferas variáveis de honra podem ser lesadas com a divulgação de determinados factos
desonrosos que configuram um atentado contra a honra. A divulgação de determinados
factos poderá ser lícita, sendo necessário que se cumpram dois requisitos:
1. É necessário que a informação divulgada seja verdadeira. Contudo, pode ser
verdadeira, mas ilícita.
2. É necessário que haja um interesse público (ex. finalidade de justiça ou de polícia,
salvaguarda de direitos)
Estes dois requisitos têm que ser balizados pela ideia de mínimo dano.
Direito ao livre desenvolvimento da personalidade
O direito ao livre desenvolvimento da personalidade traduz-se no poder que cada um
tem de que não seja privado das condições de pleno desenvolvimento das suas
potencialidades (aspirações, projeto vocacional, construção da personalidade) como
pessoa. Tem-se entendido que poderá haver violação ao direito ao livre
desenvolvimento da personalidade sempre que as condições externas do
desenvolvimento das potencialidades da pessoa sejam postas em causa (ex.: Quando o
filho menor é privado da companhia do seu pai ou quando um jovem é impedido por
ação de alguém ou de várias pessoas de prosseguir o seu projeto vocacional).
Tem que se ter cautela com este direito ao livre desenvolvimento da personalidade, uma
vez que tem sido invocado diversas vezes para legitimar comportamentos atentatórios
da ideia da dignidade da pessoa humana, ou seja, nunca se pode esquecer que os direitos
de personalidade só podem ser invocados em obediência pelo fundamento último do
reconhecimento desses direitos, ou seja, a dignidade da pessoa humana.
6.7.7 Tutela dos direitos de personalidade
Os direitos de personalidade podem ser postos em causa; ou são lesados, ou há uma
iminência de lesão desses direitos. Como é que o titular dos direitos de personalidade
pode reagir a esses comportamentos atentatórios? Existem dois remédios:
- Responsabilidade civil: Para que haja responsabilidade civil não basta que haja uma
violação de um direito de personalidade, mas têm que estar preenchidos todos aqueles
pressupostos que já foram mencionados anteriormente.
- Lançar mão das providências a que faz referência o artigo 70, n. 2 CC: Pode-se
lançar mão de providências para atenuar os efeitos de uma lesão já consumada
(providências atenuantes) ou para prevenir essa consumação (providências preventivas).
As providências podem ser: pedido de desculpa, retratação, desmentido, recolha de
livros que tenham sido publicados com material desonroso ou atentatório da
privacidade, proibição de contacto com a pessoa, etc.
6.8 Capacidade jurídica
A capacidade jurídica desdobra-se em capacidade de gozo e capacidade de exercício:
Capacidade de gozo:
A capacidade de gozo traduz-se na suscetibilidade para se ser, em concreto, titular de
um círculo mais ou menos amplo de direitos e de deveres. A regra no que diz respeito às
pessoas singulares é a da plenitude da sua capacidade de gozo, ou seja, em regra, as
pessoas singulares podem ser titulares de quaisquer direitos e de quaisquer deveres.
Contudo, existem exceções:
- 1601º CC: Os menores de 16 anos não têm capacidade de gozo para casar. Têm

51
uma incapacidade para casar.
- 1850º CC: Quando alguém nasce, esse alguém tem um pai e uma mãe. Esse
vínculo biológico tem depois de ser estabelecido juridicamente (estabelecimento da
maternidade e da paternidade). O ordenamento jurídico considera que é mãe a mulher
que deu à luz. No que toca à paternidade, o ordenamento jurídico presume que é pai o
marido da mãe. Mas a mulher pode não ser casada. Nestes casos, a paternidade
estabelece-se através de um ato voluntário pelo qual o pai declara que é pai. Esse ato
designa-se por perfilhação. Este artigo diz que há pessoas que têm uma incapacidade
para perfilhar, designadamente os menores de 16 anos.
- 2189º CC: Incapacidade para testar (ou seja, para fazer um testamento).
→ Estas incapacidades são insupríveis, ou seja, não há nenhuma forma para as afastar.
A propósito das pessoas coletivas, que têm personalidade jurídica, a sua capacidade de
gozo é limitada.
Capacidade de exercício:
A capacidade de exercício traduz-se na suscetibilidade para pôr em movimento a esfera
jurídica, adquirindo ou exercendo direitos, assumindo ou cumprindo obrigações, por ato
próprio e exclusivo ou através de um representante voluntário. Em regra, a capacidade
de exercício adquire-se aos 18 anos. Isto significa que os menores são incapazes de
exercício de direitos. Além disso, em determinadas situações, os maiores podem, em
determinadas circunstâncias, ver a sua capacidade de exercício de direitos limitada ou
excluída.
6.9 Menores
6.9.1 A menoridade
É menor quem não completou ainda 18 anos de idade (122º CC). Juridicamente, a
maioridade atinge-se às 24h do dia em que a pessoa faz anos, ou seja, às 0h do dia
seguinte (279º, alínea c) CC).
-» Exemplo: A faz anos no dia 12/02/2000. Juridicamente, A só faz anos às 0h do dia
13/02/2000.
Sendo menor, apesar de ter plena personalidade jurídica e capacidade de gozo de
direitos, tendo em conta as exceções anteriormente analisadas, o sujeito não tem
capacidade de exercício de direitos (123º CC). Ou seja, o menor não pode
autonomamente adquirir ou exercer direitos, assumir ou cumprir obrigações, por ato
próprio ou exclusivo ou através de um representante voluntário.
6.9.2 Termo da menoridade
A menoridade termina no momento em que a pessoa cumpre os 18 anos às 24h do dia
em que ela faz anos, ou seja, com a maioridade (129º e 130º CC). Além disso, existe
outra forma de fazer cessar a incapacidade de exercício de direitos do menor,
nomeadamente através da sua emancipação (129º CC e 132º CC). A emancipação
traduz-se na equiparação do menor ao maior, sendo-lhe atribuída plena capacidade de
exercício de direitos (133º CC). Como é que ocorre a emancipação? No ordenamento
jurídico português só existe uma via para o menor ser emancipado, nomeadamente,
através do casamento (132º CC).
6.9.3 O casamento do menor
Até aos 16 anos, a pessoa não pode casar porque não tem capacidade de gozo para casar
(1601º CC). A partir dos 18 anos, a pessoa tem plena capacidade de gozo e de exercício
de direitos e pode-se casar se não se verificarem os impedimentos anteriormente
observados. Entre os 16 anos e os 18 anos existe um período intermédio em que o
menor pode casar, com uma autorização por parte dos representantes legais:

52
- Se o menor obtém autorização dos seus representantes legais para se casar, o menor
emancipa-se, passa a ser equiparado a um maior e adquire nesse momento plena
capacidade de exercício de direitos.
- Se o menor não obter autorização dos seus representantes legais mas ainda assim se
casa, o seu casamento é considerado válido, mas irregular. Isto significa que o menor
não se emancipa em relação aos bens que levou para o casamento ou que posteriormente
tenha adquirido a título gratuito (1649º CC).
-» Exemplo: Imagine-se que o menor se casa sem autorização dos seus
representantes legais e é proprietário de um apartamento que lhe foi deixado pelo avô. O
menor não se emancipa relativamente a esse apartamento, ou seja, ele continua a não ter
capacidade de exercício para celebrar negócios que tenham como objeto aquele
apartamento. Se, por acaso, o menor vier a adquirir por herança um automóvel, também
não se emancipa relativamente a esse automóvel.
6.9.4 Suprimento da incapacidade de exercício de direitos do menor
Enquanto o menor é menor, o sujeito tem plena personalidade jurídica e capacidade de
gozo de direitos, salvo algumas exceções, podendo ser titular de direitos, mas não tem
plena capacidade de exercício de direitos, não podendo exercê-los autonomamente.
Contudo, essa incapacidade de exercício de direitos pode ser suprida:
- 124º CC: Em regra, o suprimento da incapacidade de exercício dos menores é feito
por via da representação legal. Ou seja, há um determinado sujeito que atua em nome do
menor e que os efeitos jurídicos dessa atuação se produzem na esfera jurídica do menor.
Em regra, os representantes legais são os pais. Mas há situações em que não há pais ou
em que os pais, por diversos motivos, não podem exercer o poder paternal. Nesses
casos, quem representa o menor é o tutor.
→ No entanto, os pais têm algumas limitações:
-» 1889º CC: Os pais não podem fazer determinados atos sem autorização do
tribunal. Caso contrário, esses atos serão considerados anuláveis (1893º CC).
→ Relativamente ao tutor, existem igualmente algumas limitações:
-» 1937º CC: Atos proibidos.
-» 1938º CC: Atos dependentes de autorização do tribunal.
Se o tutor praticar atos contrários à lei, esses atos podem ser considerados:
-» 1939º CC: Nulidade, relativamente aos atos previstos no artigo 1937º CC.
-» 1940º CC: Anulabilidade, relativamente aos atos previstos no artigo 1938º CC.
6.9.5 Nulidade e anulabilidade
Quando se fala em atos nulos ou atos anuláveis, está-se a falar de atos inválidos. Isto
significa que existem dois tipos de invalidades: a nulidade e a anulabilidade. Aquela é
mais grave que esta, projetando-se essa gravidade em termos de regime:
1. Diferença:
- A nulidade pode ser invocada a qualquer tempo.
- A anulabilidade tem um prazo para ser invocada. Relativamente ao prazo:
-» Pode ser indicado pelo legislador.
-» Pode não ser indicado pelo legislador. Neste caso, o prazo é o prazo-regra previsto
no artigo 287º CC, ou seja, 1 ano a contar da sucessão do vício.
2. Diferença:
- A nulidade pode ser invocada por qualquer interessado.
-» Exemplo: A e B celebram uma compra e venda nula. Neste caso, a nulidade pode
ser invocada pelo A, pelo B ou por um credor X que pode ter interesse em invocar a
nulidade para que o bem volte à esfera jurídica de A, podendo o seu património
funcionar sempre como garantia geral da obrigação que A tem com C.
53
- A anulabilidade só pode ser invocada pela pessoa no interesse da qual ela foi
estabelecida.
-» Exemplo: A e B celebram uma compra e venda anulável por erro. Só pode arguir a
anulabilidade a pessoa no interesse da qual essa anulabilidade foi estabelecida. Ou seja,
o legislador diz que este negócio anulável no interesse daquele que se enganou. Neste
caso, o único que pode invocar a anulabilidade do negócio seria A.
O legislador pode dizer especificamente quem é que tem legitimidade para invocar a
anulabilidade. Nesse caso, segue-se esse critério. Em caso contrário, segue-se o critério-
regra previsto no artigo 285º CC. Contudo, existe uma situação em que a anulabilidade
pode ser invocada a todo o tempo. Essa situação está prevista no artigo 287º, n. 2 CC e
diz respeito às hipóteses em que o negócio não está cumprido.
-» Exemplo: A celebra um negócio jurídico com B. A fez a proposta e B aceitou.
Chegaram a um consenso. Este momento é o momento da celebração do negócio que é
particularmente relevante para a aquisição da propriedade. Deste momento, para além
da aquisição da propriedade, resulta um conjunto de obrigações para as partes: A fica
com a obrigação entregar da coisa e B fica com a obrigação de pagar o preço da coisa.
Estes dois momentos (celebração do negócio – cumprimento do negócio) podem não
coincidir. Ou seja, se uma das partes ainda não cumpriu com a prestação a que se
obrigou perante a outra, a anulabilidade pode ser invocada a todo o tempo.
3. Diferença:
- A nulidade é de conhecimento oficioso. Isto significa que o juiz, quando recebe a
peça processual onde não é invocada a nulidade. Percebendo-se da sua nulidade, o juiz
pode conhecer a nulidade.
- A anulabilidade não pode ser conhecida oficiosamente. O juiz até pode dizer que
existem fundamentos para invocar a anulabilidade, mas não pode conhecer a
anulabilidade. Quem teve legitimidade para o fazer, não o fez.
4. Diferença:
- A nulidade não pode ser sanada.
- A anulabilidade pode ser sanada/resolvida. Existem dois meios para sanar a
anulabilidade:
1. Pelo decurso do tempo. Se existir um prazo para invocar a anulabilidade, esse
prazo tem que ser respeitado.
2. Por confirmação. A confirmação é o ato que confirma a celebração do negócio por
aquele que pode invocar a anulabilidade.
6.9.6 Exceções à incapacidade de exercício dos menores
O menor é incapaz de exercício de direitos. Contudo, existem exceções, ou seja, existem
atos para os quais o menor tem excecionalmente capacidade de exercício previstas no
artigo 127º CC:
1) n. 1, alínea a) CC: Para que o ato praticado pelo menor seja válido…:
1. É necessário que o menor tenha mais de 16 anos, não só no momento da
celebração do negócio, como também no momento em que adquiriu o bem objeto do
negócio.
2. É necessário que o objeto do negócio seja um bem que tenha sido adquirido
pelo trabalho do menor. Aqui, trabalho deve ser entendido em sentido amplo, ou seja,
não equivale ao exercício de uma atividade profissional, mas corresponde ao dispêndio
de esforço físico e/ou intelectual. Tem-se considerado que o menor que adquire num
concurso de televisão dinheiro ou um determinado bem, se utilizá-los e/ou negociar com
eles, esse bem foi adquirido pelo seu trabalho.
2) n. 1, alínea b) CC: Para que o ato praticado pelo menor seja válido…:
54
1. É necessário que se trate de um negócio da vida corrente do menor, ou seja, de
negócios que fazem parte do ordinário da vida (ex.: compra de um livro).
2. É necessário que se trate de um negócio que esteja ao alcance da sua
capacidade natural. Ou seja, o menor tem que ter capacidade para compreender o
alcance do ato que está a praticar.
3. É necessário que se trate de um negócio que implique despesas de pequena
importância. Como saber se a despesa é ou não é de pequena importância? Dever-se-á
aferir a pequena ou grande importância das despesas, tendo em conta as condições
financeiras do agregado familiar em que o menor está inserido.
-» Exemplo: O filho menor de um multimilionário pode vender um carro? Apesar
desta despesa poder ser considerada de pequena importância para o seu agregado
familiar, o filho menor não pode vender o carro, uma vez que os requisitos são
cumulativos e não se pode considerar que o negócio praticado pelo filho esteja ao
alcance da sua capacidade natural.
3) n. 1, alínea c) CC: Para que o ato praticado pelo menor seja válido…:
1. É necessário que o negócio jurídico diga respeito à profissão, arte ou ofício que
o menor tenha sido autorizado a exercer ou ao exercício dessa profissão, arte ou ofício.
-» Exemplo: Imagine-se que o menor se dedica à realização de pinturas e vende-
as numa feira. Neste caso, os negócios são válidos embora praticados por um menor.
→ A ideia do legislador é, no fundo, permitir que não haja um corte abrupto entre a
menoridade e a maioridade. O legislador tem em conta que há uma progressiva
autonomização e maturação do menor, permitindo que alguns negócios sejam realizados
validamente pelo menor tendo sempre em conta as suas particularidades.
Relativamente aos direitos de natureza pessoal, o legislador nada nos diz. Dever-se-á
considerar que o artigo 127º, n. 1, alínea b) CC pode também legitimar a prática de
atos de natureza pessoal pelo próprio menor.
-» Exemplo: Imagine-se que é necessário dar consentimento para a limitação de
determinados direitos de personalidade que sejam limitáveis.
Tem-se entendido que o menor deve ser chamado a dar o seu consentimento,
conjuntamente com os seus representantes legais ou isoladamente, a partir do momento
em que se reconheça um grau de maturação que permita concluir que o menor
compreende o alcance do ato de autorização que está a praticar.
6.9.7 Violação da incapacidade de exercício dos menores
O que acontece se o menor pratica um ato que não poderia praticar?
Nesse caso, rege o artigo 125º CC que considera que os atos do menor são anuláveis.
Quem pode arguir a anulabilidade? Em que prazo o pode fazer?
1. Hipótese: Representante legal; no prazo de 1 ano a contar do conhecimento, mas
nunca depois de o menor atingir a maioridade.
-» Exemplo: Imagine-se que o menor celebra um negócio no dia 1/1/2018. Os pais
conheceram o ato em 1/1/2021. Neste caso, os pais têm um ano para invocar a
anulabilidade, ou seja, até 1/1/2022. Imagine-se que em Agosto de 2021, o menor fez 18
anos. Neste caso, os pais só poderiam arguir a anulabilidade até Agosto de 2021, vendo
o prazo de 1 ano encurtado.
2. Hipótese: O próprio menor; no prazo de 1 ano a contar da maioridade ou
emancipação.
-» Naquele exemplo, o menor teria até Agosto de 2022 para invocar a
anulabilidade.
3. Hipótese: A requerimento de qualquer herdeiro do menor; no prazo de 1 ano a
contar da morte do menor desde que a morte tenha ocorrido antes de terminar o prazo

55
que o menor tinha para invocar a anulabilidade.
-» Naquele exemplo, o menor tinha até Agosto de 2022 para invocar a anulabilidade.
-» 1) O menor morre em Setembro de 2022. Neste caso, os herdeiros não podem
fazer nada.
-» 2) O menor morre em Outubro de 2021. Neste caso, os herdeiros podem arguir
a anulabilidade.
→ Quem tem legitimidade para arguir a anulabilidade do ato praticado pelo menor pode
confirmar o ato, sendo a anulabilidade sanável (125º, n. 2 CC).
6.9.8 Dolo do menor
Existem situações em que o menor perde a possibilidade de invocar a anulabilidade do
negócio praticado (126º CC).
-» Exemplo: A tem 16 anos e quer comprar um automóvel. Sendo menor, não tem
capacidade de exercício para a prática daquele ato. Sendo assim, o negócio jurídico que
celebra é anulável. No entanto, A forjou o seu documento de identificação onde consta
que tem 20 anos. Nestas situações, deteta-se o dolo do menor. O dolo do menor traduz-
se na utilização de artimanhas, de mentiras com vista a fazer a contraparte acreditar que
ele é maior ou emancipado. A consequência da utilização do dolo do menor é a
impossibilidade de invocação da anulabilidade do negócio em termos do artigo 126º
CC. E quanto aos outros sujeitos que têm, de acordo com o artigo 125º CC,
legitimidade para arguir a anulabilidade do negócio praticado pelo menor?
- Herdeiros do menor: Os herdeiros do menor perdem a legitimidade, uma vez que
ocupam a posição que era detida pelo próprio menor.
- Representantes legais: Quanto aos representantes legais existe uma divergência
doutrinal:
1. Há autores que entendem que eles mantêm a legitimidade para invocar a
anulabilidade, porque o artigo 126º CC apenas se refere à impossibilidade do menor,
mas não de outros sujeitos.
2. Há autores que entendem que também eles deixam de ter possibilidade de invocar
a anulabilidade do ato do menor.
→ Entende-se que se deve adotar a segunda posição por dois argumentos:
1) O regime de menoridade e a incapacidade de exercício decorrente da
menoridade existem para a proteção do menor contra a sua imaturidade, irreflexão, falta
de ponderação na atuação, etc. O ordenamento jurídico parece considerar que se o
menor tem a esperteza suficiente para encontrar estas artimanhas no sentido de enganar
a contraparte, então não necessitará da proteção que o ordenamento jurídico lhe confere.
2) É fundamental tutelar-se a confiança da contraparte que foi enganada e que
acreditou seriamente que o negócio que estava a celebrar com o menor seria válido, uma
vez que estaria a contratar com um maior.
6.10 Maiores acompanhados
6.10.1 O acompanhamento de maiores
Cumprindo 18 anos, a pessoa deixa de ser menor e adquire, em regra, plena capacidade
de gozo e de exercício de direitos. Contudo, há pessoas que, pelas suas características,
acabam por não ter possibilidade de atuar no tráfego negocial sem estarem sujeitas a
uma grande vulnerabilidade (ex.: pessoas portadoras de uma deficiência mental
profunda, idosos que entraram num processo de demência degenerativa, pessoas que
têm um vício enraizado de consumo excessivo de bebidas alcoólicas, etc.). Estas
pessoas necessitam de alguma proteção em virtude das suas próprias características.
Apesar de, a partir dos 18 anos, a regra ser a plenitude da capacidade de exercício, o
ordenamento jurídico, desde sempre, foi sensível à necessidade de tutela que

56
determinadas pessoas evidenciavam ao nível do tráfego negocial. Até 2018, esta
situação era solucionada através do regime da interdição e da inabilitação.
6.10.2 Regimes da interditação e da inabilitação
Regime da interditação:
Podiam ser interditos os portadores de anomalia psíquica, os surdos-mudos e os cegos
quando a gravidade da situação fosse tal que se mostrassem impossibilitados de reger
quer a sua pessoa quer os seus bens. Portanto, um interdito era equiparado a um menor.
Ao ser equiparado a um menor, o interdito era incapaz de exercício de direitos.
Contudo, essa incapacidade de exercício de direitos era suprida através da
representação legal (tutor que atua em nome do interdito e que os efeitos jurídicos
dessa atuação se produzem na esfera jurídica do interdito) e havia situações em que
excecionalmente os interditos tinham capacidade para praticar certos atos,
nomeadamente aqueles previstos no artigo 127º CC.
Regime da inabilitação:
Podiam ser inabilitados os portadores de anomalia psíquica, os surdos-mudos, os cegos,
aqueles que dependessem do consumo de estupefacientes ou de bebidas alcoólicas e os
pródigos (aqueles que sofressem de habitual prodigalidade (ou seja, a propensão
desmesurada para gastar) quando a gravidade da situação fosse tal que se mostrassem
impossibilitados de reger os seus bens. A incapacidade de exercício de direitos era
suprida através da assistência (curador que acompanha o inabilitado, autorizando ou
não a prática de atos de disposição) e havia situações em que excecionalmente os
inabilitados tinham capacidade para praticar certos atos, nomeadamente aqueles
previstos no artigo 127º CC. Sendo assim, os inabilitados não veriam a sua capacidade
de exercício totalmente excluída como no caso dos interditos, mas simplesmente
limitada, continuando a ter capacidade para a prática de atos de natureza pessoal, para a
celebração de negócios mortis causa (ou seja, negócios jurídicos que produzem efeitos
depois da morte) e para a celebração de negócios de mera administração.
Distinção entre negócios de mera administração e atos de disposição:
- Negócios de mera administração: Negócios que não envolvem uma alteração do
capital nem do rendimento. Ou seja, são negócios que não potenciam grandes lucros,
mas também não envolvem o risco de grandes perdas.
- Negócios de disposição: Negócios que envolvem uma alteração do património e do
capital. Por isso, são negócios que podem potenciar grandes ganhos, mas são suscetíveis
de gerarem grandes perdas.
-» Exemplo: A venda ou compra de um computador corresponde a um negócio de
disposição. A venda de maçãs do meu pomar produz perdas como a compra de adubo
para o pomar, a compra de pedras para construir um caminho até ao pomar, etc. e
corresponde a um negócio de mera administração, uma vez que se está a celebrar
negócios à custa do rendimento do próprio bem.
6.10.3 Regime de acompanhamento de maiores
Contudo, começaram a surgir várias vozes críticas dos regimes da interditação e da
inabilitação:
1) Em primeiro lugar, dizia-se que estes regimes eram demasiado rígidos nos
fundamentos, nas consequências, deixavam de fora muitas situações merecedoras de
tutela, tornavam demasiado gravosa a posição de interditos e inabilitados noutras
situações.
2) Em segundo lugar, dizia-se que estes regimes eram estigmatizantes e impunham uma
restrição desmedida à capacidade de exercício. Esta segunda crítica não parece tão
procedente porque essa restrição era feita em nome do sujeito para o salvaguardar.
57
3) Em terceiro lugar, dizia-se que estes regimes não estariam em consonância com
convenções internacionais às quais o ordenamento jurídico deveria de respeitar.
→ Isto gerou um movimento no sentido da alteração do regime e a lei n.º 49/2018 veio
revogar os regimes da interdição e da inabilitação e veio consagrar, em alternativa, o
regime de acompanhamento de maiores consagrado nos artigos 138º e ss. CC.
Se antes da entrada em vigor do novo regime, os portadores de uma anomalia psíquica,
os surdos-mudos, os cegos, os pródigos, os que consumissem abusivamente bebidas
alcoólicas ou estupefacientes podiam ser considerados incapazes de exercício de direitos
ou ver a sua capacidade limitada para a sua proteção, com a entrada em vigor do novo
regime passou-se a entender que todos os maiores são capazes de exercício de direitos.
Isto não quer dizer, todavia, que se deixem desprotegidos determinados sujeitos que
necessitariam de tal proteção. Por isso, preveem-se medidas de acompanhamento que
visam garantir a salvaguarda dos interesses dos sujeitos quando se mostrem
impossibilitados de exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres (138º CC)!
→ A regra é a capacidade, protegendo-se sem incapacitar!
6.10.4 Medida de acompanhamento
Para que seja decretada uma medida de acompanhamento, é necessário que se
verifiquem dois pressupostos aos quais se alinhará um terceiro:
1. Pressuposto:
1. Impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente direitos ou de
cumprir plena, pessoal e conscientemente deveres (138º CC). Isto quer dizer que o
sujeito tem que mostrar a sua incapacidade para formar a sua vontade e/ou tem que se
mostrar também/em alternativa diminuído nas suas incapacidades intelectuais.
2. Os regimes da interdição e da inabilitação exigiam a habitualidade e a
durabilidade das situações, deixando de fora situações em que a pessoa necessitava
efetivamente de tutela e não a obteria. Agora, o regime do acompanhamento de maiores
não exige a habitualidade nem a durabilidade, mas exige uma certa constância.
-» Exemplo: A sofre um acidente de automóvel e os médicos preveem que ficará
em coma durante um mês. Neste caso, à luz dos regimes revogados não vigorariam as
características da habitualidade e da durabilidade, mas podia ser necessário que
houvesse alguém que conduzisse os seus negócios, uma vez que A estava
impossibilitado de o fazer. Com o novo regime A seria protegido.
2. Pressuposto:
1. A impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente direitos e de
cumprir plena, pessoal e conscientemente deveres tem que resultar de razões de saúde,
de deficiência ou do comportamento do sujeito (138º CC).
-» Integram-se nas razões de saúde todas as patologias de ordem física, de ordem
psíquica e de ordem mental. Com isto tem-se alguma flexibilidade relativamente ao
regime da interditação e da inabilitação porque não se fica preso ao conceito de
anomalia psíquica.
-» Integram-se nas razões de deficiência qualquer handicap físico, habituais situações
de surdez-mudez e cegueira. Contudo, os surdos-mudos ou os cegos, nos nossos dias,
têm um grau de autonomia maior do que aquele que tinham outrora. Portanto, o facto de
a maioria não conseguir ser autónomo, não significa que possa haver casos em que essa
autonomização ocorra.
-» Integram-se nas razões do comportamento do sujeito o comportamento pródigo e
o comportamento de consumo excessivo de estupefacientes ou de bebidas alcoólicas.
Porém, poder-se-á ir mais longe, uma vez que o regime de acompanhamento de maiores
não está sujeito a um princípio de tipicidade. Por isso, para além daqueles

58
comportamentos, integram-se neste requisito todo o tipo de adições para justificar uma
medida de acompanhamento. A título de exemplo, foi proferido um acórdão na vigência
dos anteriores regimes que colocava a questão de saber se era possível interditar ou
inabilitar um sujeito que toda a sua vida se tinha dedicado à pastorícia e se tinha
recusado a ler e a escrever e estava inadaptado à vida. À época, não era possível
interditar ou inabilitar o sujeito. Hoje talvez pudesse ser possível.
3. Pressuposto:
Estes dois requisitos que constam do artigo 138º CC têm que ser conjugados com o
cumprimento do princípio da necessidade, ou seja, a medida de acompanhamento há de
ser sempre decretada em último recurso, ou seja, quando não seja possível alcançar as
mesmas finalidades através dos deveres gerais de auxílio e de cooperação (140º CC).
6.10.5 Conteúdo das medidas de acompanhamento
A maior flexibilidade dos fundamentos da adoção de uma medida de acompanhamento
é compensada por uma menor rigidez do conteúdo dessa mesma medida de
acompanhamento. Esse conteúdo pode ir de um mínimo a um máximo, sendo o juiz
que, tendo em conta as necessidades particulares do sujeito, molda a medida de
acompanhamento. Porém, o juiz terá que ter o seguinte em atenção: A medida de
acompanhamento tem que se limitar ao necessário. A ideia é potenciar a capacidade de
exercício do sujeito até ao máximo.
Dependendo de cada caso concreto, o juiz pode cometer ao acompanhante algum ou
alguns dos regimes previstos no artigo 145º, n. 2 CC:
a) O acompanhante pode passar a exercer as responsabilidades parentais.
b) O acompanhante pode ser o representante geral do acompanhado ou pode representá-
lo para algumas categorias de atos
c) O acompanhante pode administrar total ou parcialmente os seus bens
d) O acompanhante pode ter que dar uma autorização prévia para a prática de atos
e) O acompanhante pode praticar intervenções de outro tipo devidamente especificadas
pelo juiz
O acompanhamento conserva a capacidade por parte do maior acompanhado de…
(147º, n. 1 CC):
1. Celebrar negócios da vida corrente. A celebração de negócios da vida corrente
pode ser excluída pelo juiz na conformação concreta da medida.
2. Exercer direitos pessoais. O n. 2 do mesmo artigo dá exemplos de direitos
pessoais (ex.: direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de
perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher
profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de
estabelecer relações com quem entender e de testar). Contudo, …:
1. Este elenco não esgota todos os direitos pessoais. Muitos dos direitos de
personalidade não estão contemplados no artigo.
2. Algumas hipóteses previstas no artigo 147º, n. 2 CC não configuram
verdadeiros direitos subjetivos, mas sim faculdades jurídicas primárias.
3. As incapacidades de casar, de perfilhar e de testar são levantadas, tendo sido
alargado a capacidade de gozo dos sujeitos beneficiários de acompanhamento.
4. A capacidade de exercício de direitos pessoais pode ser limitada através da
limitação voluntária do acompanhado ou excluída por decisão judicial.
Vamos ter situações em que o maior acompanhado ou tem representação legal (tutor
que atua em nome do maior acompanhado e que os efeitos jurídicos dessa atuação se

59
produzem na esfera jurídica do interdito) ou assistência (curador que acompanha o
maior acompanhado, autorizando ou não a prática de atos de disposição).
6.10.6 Mecanismos de salvaguarda do acompanhado em relação ao acompanhante
O artigo 145º, n. 3 CC tem suscitado profundas críticas.
1. Crítica: Os atos de disposição de bens imóveis praticados…
-» … pelo maior acompanhado? Não faz sentido porque ou o maior acompanhado
necessita de representação ou assistência ou tem plena capacidade de exercício.
-» … pelo representante legal do maior acompanhado? A intenção é boa porque tenta
evitar que o acompanhante pratique atos que possam ser prejudiciais para o
acompanhado. O problema é que o n. 4 diz que o regime da representação legal segue o
regime da tutela. Ora, se se aplicarem as regras da tutela, o n. 3 seria supérfluo porque já
se chegava à mesma solução pela aplicação do regime da tutela (1889º e 1937/8º CC).
2. Crítica: Não se percebe porque é que o artigo 145º, n. 3 CC fala de atos de
disposição de bens imóveis e não de outros atos que envolvem muito mais riscos e que
podem envolver quantias pecuniárias superiores aos atos de disposição de bens imóveis.
3. Crítica: O artigo 145º, n. 3 CC refere-se aos atos de disposição de bens imóveis
naquelas hipóteses em que o acompanhado necessita da autorização do acompanhante.
Também aqui parece que o artigo 145º, n. 3 CC não faz sentido porque o que este artigo
visa é um controlo da atuação do acompanhante. Esse controlo da atuação do
acompanhante, no caso de assistência, já ocorre por via da própria vontade do
acompanhado. Por outro lado, existe outro controlo da atuação do acompanhante
possível que resulta do artigo 150º CC conjugado com o artigo 261º CC.
6.10.7 Validade dos atos praticados sem capacidade por parte do maior
acompanhado
O maior acompanhado que não respeite as determinações do juiz na sentença e pratique
determinados atos para os quais não tem capacidade, verá a anulabilidade recair sobre
esses mesmos atos (154º, n. 1 CC). Porém, ter-se-á que ter em conta vários momentos
para poder afirmar com segurança qual o valor do ato praticado. Sendo assim, existem
vários regimes para diferentes momentos:
1) Atos depois do registo do acompanhamento: O juiz pronunciou-se, decretou a
medida de acompanhamento e houve registo dessa medida de acompanhamento.
-» Os atos posteriores ao registo de acompanhamento são anuláveis.
2) Atos depois de anunciado o início do processo de acompanhamento, mas antes
daquele registo: Foi anunciado o início do processo de acompanhamento, deu-se
publicidade ao início do processo e, no final, tem-se o registo.
-» Os atos posteriores ao anúncio do início do processo de acompanhamento, mas antes
do seu registo da medida de acompanhamento, são anuláveis, sendo necessário que se
verifiquem dois requisitos:
1. É necessário que seja decretada a medida de acompanhamento.
2. É necessário que os atos se mostrem prejudiciais ao acompanhado. Esta
prejudicialidade deve ser aferida no momento da prática do ato.
-» Exemplo: Imagine-se que A vendeu ações à quotação do mercado no mês de
Agosto. Se A vendeu ações à quotação do mercado significa que A vendeu ao preço
corrente de mercado, não sofrendo qualquer prejuízo. Passados dois meses, quando se
tenta perceber se o negócio é válido ou inválido, sabe-se que as ações se valorizaram,
tendo A podido ganho 5x mais. Hoje, o negócio seria considerado prejudicial, mas na
altura o negócio não era considerado como tal.
3) Atos antes de anunciado o início do processo de acompanhamento:
-» O artigo 154º, n. 3 CC diz que aos atos anteriores ao anúncio do início do processo
60
aplica-se o regime da incapacidade acidental. Dever-se-á fazer uma remissão deste
artigo para o artigo 257º CC. Considera-se que os atos são anuláveis desde que
verificados certos requisitos:
1. É necessário que, no momento da prática do ato, o sujeito estivesse privado das
suas capacidades cognitivas ou das suas capacidades volitivas.
2. É necessário que a incapacidade que se tem que verificar no momento em que ele
celebrou o ato seja conhecida da contraparte ou tem que ser notória, ou seja, quando o
homem de comum diligência teria podido notar (257º, n. 2 CC).
6.10.8 Legitimidade e prazos para arguir a anulabilidade
Se os atos práticos pelo maior acompanhado sem capacidade para os praticar são
anuláveis, quem tem legitimidade para invocar a anulabilidade e quando o poderá fazer?
1) Atos depois do registo do acompanhamento:
- Maior acompanhado: O maior acompanhado pode arguir a anulabilidade dos atos
praticados depois do registo do acompanhamento no prazo de 1 ano a contar do
momento em que a medida de acompanhamento cessa. Contudo, pode acontecer que a
medida de acompanhamento nunca venha a terminar (ex.: pessoas com uma demência
degenerativa – a tendência é para piorar e pode acontecer que nunca recupere).
- Representantes legais ou assistentes: Os representantes legais ou assistentes podem
arguir a anulabilidade dos atos praticados depois do registo do acompanhamento no
prazo de 1 ano a contar do conhecimento, mas nunca depois da cessação do
acompanhamento.
- Herdeiros: Os herdeiros podem arguir a anulabilidade dos atos praticados depois do
registo do acompanhamento no prazo de 1 ano após a morte do maior acompanhado se a
medida de acompanhamento ainda não tivesse terminado. Se o maior acompanhado
tivesse morrido depois da cessação da medida de acompanhamento, os herdeiros apenas
dispunham do prazo que o próprio de cuiús teria.
2) Atos depois de anunciado o início do processo de acompanhamento, mas antes
do registo da medida de acompanhamento:
- Maior acompanhado: O maior acompanhado pode arguir a anulabilidade dos atos
praticados na pendência do processo de acompanhamento no prazo de 1 ano a contar do
momento em que a medida de acompanhamento cessa.
- Representantes legais ou assistentes: Os representantes legais ou assistentes podem
arguir a anulabilidade dos atos pode arguir a anulabilidade dos atos praticados na
pendência do processo de acompanhamento no prazo de 1 ano a contar do
conhecimento, mas nunca depois da cessação do acompanhamento.
-» Se o acompanhante conhecer depois do registo da sentença, conta-se 1 ano a
contar do conhecimento.
-» Se o acompanhante conhecer antes do registo da sentença, conta-se 1 ano a contar
do registo da sentença.
-» Herdeiros: Os herdeiros podem arguir a anulabilidade dos atos praticados na
pendência do processo de acompanhamento no prazo de 1 ano após a morte do maior
acompanhado se a medida de acompanhamento ainda não tivesse terminado. Se o maior
acompanhado tivesse morrido depois da cessação da medida de acompanhamento, os
herdeiros apenas dispunham do prazo que o próprio de cuiús teria.
3) Atos antes de anunciado o início do processo de acompanhamento:
- Maior acompanhado: O maior acompanhado pode arguir a anulabilidade dos atos
praticados antes do anuncio do início do processo de acompanhamento no prazo de 1
ano a contar do momento em que readquire o domínio da vontade ou da cognição, ou
seja, quando a medida de acompanhamento cessa.
61
- Representantes legais ou assistentes: Os representantes legais ou assistentes podem
arguir a anulabilidade dos atos praticados antes do anuncio do início do processo de
acompanhamento desde que o ato em questão necessite de representação ou assistência.
O prazo será de 1 ano a contar do conhecimento, não podendo começar a correr antes do
registo da medida do acompanhamento. Se o prazo já tiver terminado antes de registado
o acompanhamento, já não é possível invocar a anulabilidade.
6.11 Legitimidade
A legitimidade tem a ver com a relação entre o sujeito e o conteúdo de um determinado
ato, entre um sujeito e um concreto bem ou uma relação de uma pessoa com outra
pessoa ou outras pessoas.
Para que determinados atos sejam praticados, a pessoa tem que ter legitimidade para o
efeito. Em caso contrário, verificar-se-á uma situação de ilegitimidade.
-» Exemplo: Venda de coisa alheia.
As sanções para a ilegitimidade são variadas:
- naquele exemplo, a sanção é a nulidade.
- no negócio consigo mesmo, a sanção é a anulabilidade.
- na representação sem poderes de representação, a sanção é a ineficácia.
→ Ao contrário da incapacidade que visa tutelar o incapaz, a ilegitimidade visa tutelar
terceiros!
Poder-se-á confrontar com uma panóplia larga de ilegitimidades, porém há uma que
merece destaque pela sua importância no âmbito do Direito Civil: as ilegitimidades
conjugais. As ilegitimidades conjugais não se confundem com as incapacidades
nupciais. Enquanto que estas são uma exceção à plenitude da capacidade de gozo das
pessoas singulares (proteção do próprio sujeito), aquelas são impostas para a proteção
do outro cônjuge e para proteção da família (proteção de terceiros).
O artigo 1678º CC diz qual dos cônjuges tem a administração e de que bens:
- Em regra, cada um administra os seus bens próprios (1678º, n. 1 CC).
- Relativamente aos bens comuns, a administração é conjunta (1678º, n. 3 CC).
- Existem algumas situações excecionais em que o cônjuge pode ter a administração
de bens comuns ou de bens do outro cônjuge (1678º, n. 2 CC).
A determinação do que são bens próprios ou bens comuns está dependente do regime de
bens que vigora entre o casal e pode ser de três tipos:
1. Regime de comunhão de adquiridos (1721º e ss. CC): Se nada for acordado
entre os cônjuges, o regime que vigora é o regime da comunhão de adquiridos. De
acordo com o regime da comunhão de adquiridos, são bens próprios de cada um dos
cônjuges os bens que cada um leve para o casamento e os bens que adquiram depois da
celebração do casamento a título gratuito (doação) ou através da sucessão. Tudo aquilo
que o casal adquire depois do casamento a título oneroso, é considerado bem comum.
-» Exemplo: A e B casam-se. B, no momento em que se casou, era proprietária de
apartamento e A era proprietário de uma casa e de um carro. Cada um deles continua a
ser proprietário desses bens. Depois da celebração do casamento, o avô de B morre e
deixa-lhe uma quinta. Esta é um bem próprio de B. Ainda depois da celebração do
casamento, um amigo de A doa-lhe 500’000€. Estes são um bem próprio de A. Tudo
aquilo que A e B adquirirem depois do casamento a título oneroso, é considerado bem
comum.
→ Os cônjuges podem, todavia, celebrar uma convenção antenupcial. Nessa convenção
antenupcial, os cônjuges podem optar por outros dois regimes:

62
2. Regime da comunhão geral de bens (1732º e ss. CC): De acordo com o regime
da comunhão geral de bens, todos os bens são comuns, quer os bens que os cônjuges
tinham no momento em que se casaram, quer os bens que venham a adquirir. Há,
contudo, determinados bens que são incomunicáveis, nomeadamente aqueles previstos
no artigo 1733º CC.
3. Regime da separação de bens (1735º e ss. CC): De acordo com o regime da
separação de bens, cada um dos cônjuges conserva o domínio e a fruição dos bens que
tenham no momento em que se casam e dos bens que posteriormente venham a adquirir.
Ou seja, todos os bens são próprios.
O artigo 1682º CC diz respeito à alienação ou oneração de bens móveis. Para a
alienação ou oneração de bens móveis é necessário o consentimento do outro cônjuge,
desde que esse bem se trate de um bem comum.
O artigo 1682º-A CC diz respeito à alienação ou oneração de bens imóveis. Para a
alienação, oneração ou arrendamento de bens imóveis próprios ou comuns e para a
alienação, oneração ou locação de estabelecimento comercial próprio ou comum é
necessário o consentimento de ambos os cônjuges, exceto se estiverem casados no
regime de separação de bens.
O artigo 1682º-B CC diz respeito à casa de morada de família. Para a alienação,
oneração ou arrendamento da casa de morada de família é necessário o consentimento
de ambos os cônjuges, independentemente do regime de bens que vigore entre o casal.
→ Se aqueles atos forem praticados sem a autorização ou o consentimento do outro
cônjuge, são anuláveis (1687º, n. 1 CC).
- Quem pode invocar a anulabilidade? O cônjuge que não deu consentimento ou os
herdeiros (1687º, n. 1 CC).
- Qual é o prazo para se invocar a anulabilidade? 6 meses a contar do conhecimento
do ato, mas nunca depois de decorridos 3 anos após a celebração do ato (1687º, n. 2
CC).
7. Pessoas coletivas
7.1 Noção e natureza das pessoas coletivas
As pessoas coletivas são organizações constituídas por uma coletividade de pessoas ou
por uma massa de bens que estão adstritos à prossecução de determinados interesses
comuns ou coletivos às quais o ordenamento jurídico atribui personalidade jurídica.
As pessoas coletivas são sujeitos da relação jurídica, mas não se confundem com as
pessoas singulares. Enquanto que a personalidade jurídica das pessoas singulares é
reconhecida pelo ordenamento jurídico em nome da Pessoa e da sua ineliminável
dignidade que lhe subjaz, a personalidade jurídica das pessoas coletivas é atribuída pelo
ordenamento jurídico de forma a que a prossecução de determinados interesses
humanos possa ocorrer mais eficientemente.
A natureza jurídica das pessoas coletivas é uma questão complexa do ponto de vista
dogmático e tem obtido respostas diferentes ao longo do tempo:
- Para Savigny, as pessoas coletivas seriam sujeitos da relação jurídica, sendo-lhes
atribuída personalidade jurídica pelo ordenamento jurídico, que, não sendo pessoas
singulares, eram tratadas como tal para prosseguir uma determinada finalidade.
- Para Otto von Gierke, as pessoas coletivas seriam verdadeiros organismos que não
se confundiam com as pessoas singulares que as integravam.
→ O que é que se deve entender relativamente à natureza jurídica das pessoas
coletivas? Dever-se-á considerar que as pessoas coletivas são uma criação do Direito

63
para que a prossecução de determinados interesses humanos possa mais eficientemente.
Às pessoas coletivas é-lhes atribuída personalidade jurídica. Essa atribuição resulta da
elevação de um determinado substrato à condição de sujeito de Direito no qual se
integra um fim que justifica tal atribuição.
O estudo das pessoas coletivas tem de passar pela análise dos dois elementos que as
integram e que permitem a sua constituição:
1. Substrato: Elemento de facto
2. Reconhecimento: Elemento de Direito que permite que o substrato seja elevado à
categoria de sujeito para o Direito
7.2 Elementos das pessoas coletivas
7.2.1 Substrato
O substrato é integrado por diversos elementos:
1.1 Elemento pessoal: O elemento pessoal representa o conjunto de pessoas que
estão na base da pessoa coletiva. Este é o elemento básico das corporações, ou seja, das
associações (compostas por associados) e das sociedades (compostas por sócios).
1.2 Elemento patrimonial: O elemento patrimonial representa o conjunto de bens que
é afeto à prossecução de um interesse coletivo. Este é o elemento básico das fundações.
2. Elemento teleológico: O elemento teleológico representa o fim que a pessoa
coletiva prossegue, que justifica a criação da pessoa coletiva e através do qual se
consegue determinar qual a amplitude da capacidade de gozo das pessoas coletivas que
é uma capacidade funcionalizada, ou seja, orientada pelo fim, diferentemente da
capacidade de gozo das pessoas singulares. O fim das pessoas coletivas deve obedecer
a determinados requisitos:
1) Os requisitos do 280º CC.
2) O fim tem que ser comum ou coletivo.
No caso das sociedades isso é imposto pelo artigo 994º CC que proíbe o chamado
pacto leonino, ou seja, o acordo nos termos do qual alguns sócios deixam de participar
nos lucros ou nas perdas da sociedade. Isto mostra que, no caso das sociedades, a
finalidade tem que ser uma finalidade lucrativa e comum a todos os sócios.
No caso das fundações, a exigência do caráter comum ou coletivo da finalidade da
pessoa coletiva resulta da articulação dos artigos 157º CC (fundações de interesse
social) e 188º CC (finalidade de utilidade social/coletiva).
No caso das associações, não existe um artigo do qual resulte o caráter comum ou
coletivo da finalidade da pessoa coletiva, mas essa exigência resulta da própria natureza
da associação.
3. Elemento intencional: O elemento intencional representa a intenção de criar um
ente jurídico autónomo. Essa intenção verifica-se através da celebração de um negócio
jurídico.
No caso das associações, tem-se um ato de constituição da associação.
No caso das fundações, tem-se um ato de instituição da fundação.
No caso das sociedades, tem-se um contrato de sociedade.
Há determinadas realidades que se aproximam das pessoas coletivas mas que não têm
personalidade jurídica porque falha este elemento intencional. É o caso das comissões
especiais que estão previstas no artigo 199º CC (ex.: comissão constituída para realizar
um plano de socorro), das fundações de facto (ex.: A, que é uma pessoa abastada,
resolve afetar parte do seu património para a aquisição de alimentos e cobertores para os
sem abrigo. Ao fazê-lo está a criar e a manter uma obra de utilidade social, só que não
pretende constituir um vínculo jurídico correspondente. Isto significa que, a qualquer

64
momento, A pode deixar de contribuir para aquela obra de utilidade social) e das
fundações fiduciárias que existem quando um sujeito dispõe de parte do seu
património a favor de uma pessoa coletiva já existente para a realização de um qualquer
ato de beneficência.
4. Elemento organizatório: O elemento organizatório representa a necessidade por
parte da pessoa coletiva, sendo uma organização, de ser composta por determinados
órgãos, de ter uma determinada estrutura, uma determinada organização, determinadas
regras de funcionamento, uma determinada sede, etc. Todos estes aspetos estão
previstos nos estatutos da pessoa coletiva.
7.2.2 Reconhecimento
Todos os elementos do substrato (pessoal ou patrimonial, teleológico, intencional e
organizatório), reunidos, podem não dar origem a uma pessoa coletiva. Para que possa
surgir uma pessoa coletiva é necessário preencher ainda o elemento do reconhecimento
que permite elevar à categoria de sujeito de Direito estes subelementos do substrato. Há
diversos tipos de reconhecimento:
1. Reconhecimento normativo: Resulta diretamente da lei. Dentro do reconhecimento
normativo pode-se distinguir dois subtipos de reconhecimento:
-» Reconhecimento normativo condicionado: O reconhecimento normativo
condicionado é aquele que resulta da lei mas, para além de se reunirem os subelementos
do substrato, é necessário que se cumpra alguns requisitos adicionais impostos pela lei.
Esta forma de reconhecimento vigora no nosso ordenamento jurídico para as
associações e para as sociedades.
→ No caso das associações, exige-se a obrigatoriedade de escritura pública e de
publicação para serem reconhecidas como pessoas coletivas (168º CC).
→ No caso das sociedades, exige-se o registo para serem reconhecidas como pessoas
jurídicas (5º Código das Sociedades Comerciais).
-» Reconhecimento normativo incondicionado: O reconhecimento normativo
incondicionado é aquele que resulta da lei e que se basta com a verificação dos
subelementos do substrato. Ou seja, a lei faz atribuir personalidade jurídica a partir do
momento em que estejam reunidos todos os subelementos do substrato. Este
reconhecimento normativo incondicionado não vigora no nosso ordenamento jurídico.
2. Reconhecimento individual ou por concessão: Não resulta diretamente da lei, mas
resulta de um ato administrativo que, caso a caso, discricionariamente, atribui ou não
personalidade jurídica ao substrato. O reconhecimento individual ou por concessão
vigora para as fundações.
7.3 Formação das pessoas coletivas
No caso das associações, temos um ato de constituição da associação. Esse ato de
constituição da associação tem que obedecer aos requisitos previstos no artigo 167º CC.
Além disso, é necessário que revista a forma de escritura pública e que haja publicação.
No caso das sociedades, temos um contrato de sociedade que revista a forma de
escritura pública e depois necessariamente o registo.
No caso das fundações, temos um ato de instituição da fundação. Este ato de instituição
da fundação pode ser:
-» um ato inter vivos (ou seja, o fundador ainda está vivo). Neste caso, o ato de
instituição da fundação tem que revestir a forma de escritura pública e torna-se
irrevogável a partir do momento em que é requerido o reconhecimento.
-» um ato mortis causa (ou seja, é feito por testamento). Neste caso, o ato de

65
instituição da fundação torna-se irrevogável a partir do momento em que o sujeito
morra. Os herdeiros não podem revogar a instituição.
Existe uma autoridade administrativa que controla tanto a legalidade, como no caso das
associações e das sociedades, como a oportunidade (188º CC).
Alguns autores, hoje em dia, questionam se não seria possível, no plano do Direito a
constituir, pensarmos na hipótese de fundações que tenham finalidades privadas.
7.4 Classificações das pessoas coletivas
As associações são pessoas coletivas privadas de utilidade pública e fim desinteressado,
fim interessado ideal ou fim económico não lucrativo.
As fundações são pessoas coletivas de Direito Privado de utilidade pública e fim
desinteressado.
As sociedades são pessoas coletivas privadas de utilidade privada e fim lucrativo, ou
seja, o objetivo é a obtenção de lucros para serem distribuídos pelos sócios. Dentro das
sociedades distingue-se entre as sociedades civis e as sociedades comerciais. Enquanto
estas têm por objeto a prática de atos de comércio, aquelas têm por objeto a prática de
atos não comerciais e podem adotar ou não uma das formas das sociedades comerciais:
- Sociedades em nome coletivo: Nas sociedades em nome coletivo, os sócios
respondem pessoal e ilimitadamente perante os credores sociais pelas dívidas da
sociedade.
- Sociedades por quotas: Nas sociedades por quotas, o capital social está dividido
por quotas e os sócios não respondem perante os credores pelas dívidas da sociedade,
mas sim perante a sociedade pela realização da sua quota e pela integração da sua quota.
- Sociedades anónimas: Nas sociedades anónimas, o capital social está dividido em
ações e os sócios não respondem perante os credores pelas dívidas da sociedade nem
pela integração da sua ação. Por isso é que são sociedades de responsabilidade limitada.
- Sociedades em comandita: Nas sociedades em comandita, existem dois tipos de
sócios:
-» Sócios comanditários: Os sócios comanditários não respondem perante os
credores pelas dívidas da sociedade nem pela integração da sua ação
-» Sócios comanditados: Os sócios comanditados respondem pessoal e
ilimitadamente perante os credores sociais pelas dívidas da sociedade.
→ As sociedades comerciais têm personalidade jurídica e as sociedades civis não têm
personalidade jurídica, exceto se se tratarem de sociedades civis sob forma comercial!
7.5 Capacidade de gozo das pessoas coletivas
Como já se referiu, a capacidade de gozo traduz-se na suscetibilidade para se ser, em
concreto, titular de um círculo mais ou menos amplo de direitos e de deveres.
- As pessoas singulares têm a plenitude da capacidade de gozo, ou seja, as pessoas
singulares são titulares de quaisquer direitos e de quaisquer deveres.
- As pessoas coletivas não têm a plenitude da capacidade de gozo, ou seja, as pessoas
coletivas não são titulares de todos e quaisquer direitos nem de todos e quaisquer
deveres. A este propósito definem-se duas orientações na doutrina portuguesa:
-» Alguns autores dizem que a capacidade de gozo das pessoas coletivas é genérica.
-» Alguns autores dizem que a capacidade de gozo das pessoas coletivas é uma
capacidade limitada por ser funcionalizada.
Estas duas posições, que poderiam parecer inconciliáveis, acabam por convergir. Os
autores que dizem que a capacidade de gozo das pessoas coletivas é genérica acabam
por admitir que ela conhece limitações e aqueles que dizem que a capacidade de gozo

66
das pessoas coletivas é funcionalizada acabam por reconhecer que os critérios de
limitação dessa capacidade são maleáveis, permitindo chegar a soluções muito próximas
àqueles que defendem uma capacidade genérica.
→ Destas duas posições, aquela que se considera preferível é a que olha para a
capacidade de gozo das pessoas coletivas e entende que ela é limitada por ser
funcionalizada.
7.5.1 O artigo 160º CC
O artigo 160º CC diz respeito à capacidade de gozo das pessoas coletivas que abrange
todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.
O círculo de direitos e de obrigações das pessoas coletivas vê-se todavia limitado quer
pela natureza das coisas, quer pelas disposições legais (160º, n. 2 CC):
-» Pela natureza das coisas: Há uma série de direitos que não fazem sentido por
referência às pessoas coletivas (ex.: direitos à vida, direito à integridade física, etc.).
Apesar da ligação umbilical entre os direitos de personalidade e a pessoa, existem
determinados direitos de personalidade que podem ser essenciais para a prossecução dos
fins da pessoa coletiva e que podem ser consequentemente tutelados por pessoas
coletivas (ex.: direito à honra: Imagine-se que um jornalista resolve elaborar uma peça
de reportagem em que acusa a pessoa coletiva X de se dedicar ao tráfico de
estupefacientes. Neste caso, está-se perante uma ofensa do direito à honra da pessoa
coletiva). Uma consequência da violação dos direitos de personalidade é a
responsabilidade civil. Portanto, naquele caso, o jornalista pode ser responsável
civilmente perante aquela pessoa coletiva, pagando-lhe uma indemnização. Essa
indemnização, em regra, abrange quer os danos patrimoniais quer os danos não-
patrimoniais. Porém, no caso das pessoas coletivas, estas não são indemnizadas por
danos não-patrimoniais, uma vez que não têm sentimentos.
-» Pelas disposições legais: Há uma série de direitos e deveres cuja titularidade é
vedada legalmente às pessoas coletivas. A doutrina diverge a este respeito:
- Há autores que entendem que a capacidade de gozo das pessoas coletivas é uma
capacidade limitada funcionalizada, entendendo que sempre que haja uma proibição
legal tem-se um problema de incapacidade.
- Há autores que entendem que a capacidade de gozo das pessoas coletivas é uma
capacidade genérica, reconhecendo a existência de proibições legais, mas entendendo
que o problema seria um problema de ilegalidade.
7.5.2 Princípio da especialidade do fim
A terceira limitação à capacidade de gozo das pessoas coletivas decorre do princípio da
especialidade do fim que está consagrado no artigo 160º, n. 1 CC e que diz que as
pessoas coletivas só são titulares de direitos e de deveres que sejam necessários ou
convenientes à prossecução do seu fim. O princípio da especialidade do fim gera uma
enorme controvérsia na doutrina:
- Há autores (Menezes Cordeiro) que entendem que o princípio da especialidade do
fim não faz hoje sentido nem tem hoje aplicação prática pelos seguintes argumentos:
1) Argumento histórico: Menezes Cordeiro explica o surgimento histórico do
princípio da especialidade do fim e analisa o problema histórico sob o ponto de vista do
Direito continental e sob o ponto de vista do Direito anglo-saxónico. Sob o ponto de
vista do Direito anglo-saxónico, as pessoas coletivas seriam criadas por uma lei do
Parlamento e era essa lei que definia as competências e os poderes da pessoa coletiva
em causa. Portanto, a pessoa coletiva não podia praticar um ato que fosse para além
dessas competências. Em caso contrário, esses atos seriam considerados ultra vires. Sob
o ponto de vista do Direito continental, o Direito enfrentou o problema dos bens de mão

67
morta, ou seja, dos bens não que não poderiam ser alienados e que tinham um regime
próprio (ex.: deixas de bens à Igreja). Historicamente, existiu uma tentativa de
concentração do poder nas mãos dos monarcas e, portanto, começou a tentar delimitar-
se, de algum modo, a proliferação dos bens de mão morta. Com a Revolução Francesa
acabou por haver uma perseguição à própria Igreja e uma tentativa de cerceamento
desses bens que eram legados às ordens religiosas. É neste contexto que surge o
princípio da especialidade do fim que surge para combater os bens de mão morte e para
limitar o poder das pessoas coletivas, dentre as quais as pessoas coletivas de Direito
Canónico. Menezes Cordeiro diz que, como estes problemas desapareceram, hoje em
dia, o princípio da especialidade do fim perdeu o sentido.
2) Argumento dogmático: Menezes Cordeiro diz que o princípio da especialidade do
fim não tem alcance prático porque em rigor não haverá nenhum ato que esteja
radicalmente excluído da capacidade de gozo das pessoas coletivas. Sabe-se, por
exemplo, que as sociedades comerciais têm como finalidade a obtenção de lucro para
ser distribuído pelos sócios. Apesar disso, há determinadas doações, que apesar de
envolverem um empobrecimento, podem ser realizadas por sociedades comerciais.
Portanto, o princípio da especialidade do fim não teria verdadeiro alcance prático.
→ Deve-se entender que as pessoas coletivas são criações do Direito que lhes atribui
personalidade jurídica em nome de uma finalidade que integra o seu substrato. Por isso
é que se diz que o elemento teleológico seria um dos elementos fundamentais que tinha
que estar reunido, sob pena de não se poder falar de pessoa coletiva. Se a pessoa
coletiva é admitida no ordenamento jurídico em nome da prossecução de uma
determinada finalidade faz sentido que aquela pessoa coletiva apenas possa exercer os
direitos e cumprir os deveres que sejam necessários ou convenientes à prossecução
desse mesmo fim.
É fundamental perceber que o princípio da especialidade do fim não deve ser entendido
com rigidez. Serão apresentados alguns critérios para que se possa saber mobilizar o
princípio da especialidade do fim:
O fundamento do princípio da especialidade do fim
O princípio da especialidade do fim encontra o seu fundamento na natureza da
personalidade jurídica das pessoas coletivas. Estas são suscetíveis de serem, em
abstrato, titulares de direitos e de deveres. Em concreto, as pessoas coletivas são
suscetíveis de serem titulares de um círculo mais ou menos amplo de direitos e de
deveres, nomeadamente aqueles que são necessários ou convenientes à prossecução dos
seus fins.
Capacidade e legitimidade
O que está em causa não é uma relação entre a pessoa coletiva e o conteúdo de um
determinado ato, entre a pessoa coletiva e um concreto bem ou uma relação de uma
pessoa coletiva com outra pessoa ou outras pessoas (legitimidade), mas sim a
suscetibilidade ou não de levar a cabo o referido ato (capacidade). Para além disso, o
princípio da especialidade do fim não visa proteger os interesses de terceiros
(legitimidade), mas sim antes a integridade do substrato (capacidade).
Categorias de atos e os atos em concreto
Há que se olhar para cada ato em concreto para concluir se ele se integra ou não na
categoria de atos a que abstratamente pertence. Em princípio, existe uma categoria de
atos que pode ser excluída da capacidade de gozo de certas pessoas coletivas:
-» Exemplo: As sociedades comerciais têm como fim a prossecução de lucro para ser
distribuído pelos sócios. À partida, os negócios gratuitos, como por exemplo as
doações, que envolvem sempre um empobrecimento excluem-se da capacidade de gozo
68
das sociedades comerciais por afetar o seu escopo lucrativo, sendo considerados nulos!
Contudo, pode acontecer que o ato que está abstratamente integrado na categoria de atos
que está à partida excluída da capacidade de gozo de certas pessoas coletivas, possa ser
praticado:
-» Exemplo: Uma sociedade comercial decide oferecer um computador ao seu
melhor funcionário. Aparentemente, o negócio gratuito (doação), por pertencer à
categoria de atos que se encontra excluída da capacidade de gozo das pessoas coletivas,
contrariaria o fim da sociedade comercial, nomeadamente a obtenção de lucro para ser
distribuído pelos sócios. Porém, esta doação tem ainda uma finalidade lucrativa, uma
vez que a sociedade comercial, com a prática do ato, pretende incentivar os funcionários
a produzir mais, sendo considerado válido!
Fim e objeto
O fim consiste na finalidade que a pessoa coletiva pretende prosseguir. O objeto
consiste na atividade que a pessoa coletiva decide praticar de forma a prosseguir o fim
para o qual foi constituída.
→ Entende-se que enquanto não se pode contrariar o fim, sob pena de o ato ser
considerado nulo (160º CC e 294º CC), o objeto pode ser levado mais além!
-» Exemplo 1: A associação X, que visa promover o direito à vida, adquire ações de
um banco para financiar as suas atividades. Neste caso o negócio deve ser considerado
válido, uma vez que o fim (promoção do direito à vida) não é contrariado.
-» Exemplo 2: A associação X, que visa promover o direito à vida, promove uma
campanha a favor do aborto. Neste caso o negócio deve ser considerado inválido, mais
concretamente nulo, uma vez que o fim (promoção do direito à vida) é contrariado.
7.6 Capacidade de exercício das pessoas coletivas
Como já se referiu, a capacidade de exercício diz respeito à suscetibilidade para pôr em
movimento a esfera jurídica, adquirindo ou exercendo direitos, assumindo ou
cumprindo obrigações, por ato próprio e exclusivo ou através de um representante
voluntário.
As pessoas coletivas, pela sua própria natureza, necessitam dos órgãos e dos titulares
dos órgãos que as possam movimentar. Por isso, os autores questionam se as pessoas
coletivas têm capacidade de exercício de direito:
- Há autores que dizem que as pessoas coletivas não têm capacidade de exercício de
direitos porque necessitam de alguém a representá-las. Esta representação não seria
legal, mas estatutária.
- Há autores que dizem que as pessoas coletivas têm capacidade de exercício de
direitos porque a relação que se estabelece entre os titulares dos órgãos e a pessoa
coletiva não é uma relação de representatividade, mas sim uma relação de organicidade.
Isto significa que as pessoas coletivas, embora necessitem dos órgãos e dos seus
titulares, têm capacidade de exercício de direitos.
→ Esta última posição parece ser a melhor posição a ser adotada.
7.7 Responsabilidade civil das pessoas coletivas
A responsabilidade civil das pessoas coletivas está prevista no artigo 165º CC. Este
artigo implica uma dupla remissão:
-» Se a responsabilidade for extracontratual, aplicar-se-á à responsabilidade civil das
pessoas coletivas o artigo 500º CC.
-» Se a responsabilidade for contratual, aplicar-se-á à responsabilidade civil das
pessoas coletivas o artigo 800º CC.

69
7.7.1 Responsabilidade extracontratual das pessoas coletivas
Para se poder afirmar que a pessoa coletiva é extracontratualmente responsável têm que
estar cumpridos dois requisitos:
1. O representante, agente ou funcionário da pessoa coletiva tem que ser civilmente
responsável. Isto significa que todos os pressupostos da responsabilidade civil têm que
se verificar por referência ao ato do representante, do agente ou do funcionário da
pessoa coletiva (ilicitude, culpa, danos e nexo de imputação).
2. O representante, agente ou funcionário da pessoa coletiva tem que ter praticado o
ato em questão no exercício das funções que lhe foram confiadas pela pessoa coletiva.
→ Atuar no exercício das funções significa que o sujeito atuou no quadro geral de
competência que lhe foi atribuída.
A responsabilidade da pessoa coletiva mantém-se ainda que o ato seja praticado
intencionalmente pelo representante, agente ou funcionário que, ao prosseguir interesses
exclusivamente próprios, beneficiou de uma imagem de credibilidade que a pessoa
coletiva lhe transmitiu:
-» Exemplo: O funcionário, que está no balcão do banco, recebe um maço de notas
para depositar na conta do cliente. Porém, resolve ficar com esse dinheiro para si.
Verificados os pressupostos da responsabilidade extracontratual das pessoas coletivas, a
pessoa coletiva é responsável. A responsabilidade é uma responsabilidade solidária,
podendo ser exercido o direito de regresso:
-» Exemplo: Naquele caso, o cliente foi lesado pelo ato praticado pelo funcionário do
banco. Como a obrigação é solidária, o cliente pode pedir a indemnização ao
funcionário, à pessoa coletiva ou ao funcionário e à pessoa coletiva em simultâneo.
-» Imagine-se que a pessoa coletiva pagou a indemnização ao cliente, não tendo
tido culpa. Neste caso, a pessoa coletiva pode exercer o direito de regresso, exigindo ao
funcionário o reembolso do que pagou.
-» Imagine-se agora que a pessoa coletiva indemnizou o cliente, tendo igualmente
culpa, uma vez que exigiu, através dos seus administradores, que o funcionário
trabalhasse 24h seguidas e este esqueceu-se de depositar o montante que lhe foi dado
pelo cliente na conta deste. Neste caso, aplica-se o regime do artigo 500º, n. 3 CC e
497º, n. 2 CC.
7.7.2 Responsabilidade contratual das pessoas coletivas
No âmbito da responsabilidade contratual já não se responsabiliza primeiramente o
representante, agente ou funcionário da pessoa coletiva para depois se responsabilizar a
pessoa coletiva (dupla imputação), mas responsabiliza-se diretamente a pessoa coletiva
por ser devedora, ou seja, por não cumprir aquilo a que se vinculou através de um
contrato. Os pressupostos para a responsabilidade contratual das pessoas coletivas são
os seguintes:
1. É necessário que exista uma obrigação em sentido técnico de que a pessoa coletiva
é devedora.
2. É necessário que haja uma situação de incumprimento (incumprimento definitivo,
cumprimento defeituoso, mora ou violação positiva do contrato).
3. A culpa presume-se (799º CC).
4. É necessário que hajam danos.
5. É necessário que haja um nexo de causalidade.
O artigo 800º CC permite considerar-se que um ato de não-cumprimento da pessoa
singular deve ser visto como um ato da própria pessoa coletiva. Sendo assim, só
responde a pessoa coletiva, não havendo responsabilidade solidária entre a pessoa
singular e a pessoa coletiva.

70
7.8 Problema do levantamento/da desconsideração da personalidade
jurídica das pessoas coletivas
Como foi mencionado, as pessoas coletivas têm personalidade jurídica, ou seja, são
suscetíveis de serem, em abstrato, centros autónomos de imputação de relações
jurídicas. Ao dizer-se que as pessoas coletivas são centros autónomos de imputação de
relações jurídicas, significa que determinadas relações jurídicas são imputadas às
pessoas coletivas e, como tal, não podem ser imputadas aos sujeitos que integram as
mesmas. Nisto se traduz a autonomia pessoal que caracteriza as pessoas coletivas:
-» Por um lado, se o titular da relação jurídica for a pessoa coletiva, é ela e não os
sujeitos que a integram.
-» Por outro lado, se o titular da relação jurídica for um sujeito que integra uma
pessoa coletiva, é ele e não a pessoa coletiva.
A autonomia pessoal é acompanhada da autonomia patrimonial que pode ser perfeita
ou imperfeita.
Há, porém, determinadas situações em que se verifica o abuso da personalidade
jurídica da pessoa coletiva, ou seja, em que se usa a personalidade jurídica da pessoa
coletiva para obter um resultado ilícito ou para contornar uma proibição legal:
-» Exemplo: Os pais não podem vender aos filhos sem consentimento dos outros
filhos (877º CC). Imagine-se que A tem dois filhos, B e C. A quer vender a B, mas
necessita, para que o negócio seja válido, da autorização de C e C não dá essa
autorização. Imagine-se que B constituiu uma sociedade comercial unipessoal por
quotas, sendo ele o único sócio. Imagine-se que A vende, não a B, mas à sociedade
comercial que tem como único sócio B. Neste caso, a relação jurídica não é estabelecida
entre B e a sociedade comercial, mas a personalidade jurídica da sociedade comercial
está a ser usada, ou melhor abusada, para contornar uma proibição legal. Nestas
situações fala-se de abuso da personalidade jurídica da pessoa coletiva. Perante estas
situações, é possível desconsiderar essa personalidade coletiva! Isto significa que se vai
considerar que a relação jurídica se imputa ao sócio e não à sociedade comercial.
Existem duas perspetivas para desconsiderar a personalidade jurídica da pessoa coletiva:
- Perspetiva subjetivista: A perspetiva subjetivista exige como requisitos:
-» É necessário que se verifique uma situação de abuso.
-» É necessário que se verifique o abuso da personalidade jurídica seja intencional.
-» É necessário que se verifique a intenção de obter um fim ilícito.
- Perspetiva objetivista: A perspetiva objetivista exige como requisitos:
-» É necessário que a separação pessoal e patrimonial inerente à pessoa coletiva se
mostre em contradição com a intencionalidade do reconhecimento dessa personalidade.
→ Estruturação do Código Civil
O Código Civil organiza as matérias dividindo-as em 5 livros:
1) Parte Geral contém instrumentos e definições que o Código Civil utiliza e que
poderão ser aplicados em outros livros do Código.
2) Livro das Obrigações relacionado com as bases da contratação.
3) Livro das Coisas relacionado com os direitos reais.
4) Livro da Família relacionado com o casamento, a adoção, a filiação, etc.
5) Livro das Sucessões relacionado com as heranças, testamentos, etc.

71

Você também pode gostar