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Dinis Abrantes Figueiredo

História do Direito Português

Ano letivo de 2021/2022


1. Noção de História do Direito
Qualquer área do saber é passível de ser estudada pela História. É por isso que existe a
História da Economia, a História da Medicina, a História da Matemática, a História da
Religião e, mais importante ainda, a História do Direito que surge como uma disciplina
autónoma. A História do Direito pode ser definida como sendo a disciplina que
descreve e explica o Direito do passado nos seus múltiplos aspetos, o que engloba:
- o estudo dos antecedentes das instituições e dos princípios jurídicos que
permanecem na atualidade
- o estudo dos antecedentes das instituições e dos princípios jurídicos que foram
superados ou abolidos (ex. escravatura)

2. Objeto da História do Direito


O objeto ou conteúdo da História do Direito, que consiste naquilo sobre o que esta
incide, compreende três áreas fundamentais:
- História das fontes: No âmbito da História das fontes, estudam-se as fontes nos seus
diversos sentidos:
(1) Fontes em sentido filosófico: Estudo do fundamento da validade ou
obrigatoriedade do Direito
(2) Fontes em sentido político: Estudo dos órgãos criadores de Direito
(3) Fontes em sentido técnico-jurídico ou formal: Estudo dos modos de formação e
de revelação do Direito num determinado momento histórico
(4) Fontes em sentido material ou instrumental: Estudo dos textos ou diplomas que
contêm o Direito
(5) Fontes em sentido sociológico: Estudo dos fatores que, numa determinada fase
histórica, levaram à produção de Direito
- História das instituições: No âmbito da História das instituições, estudam-se as
instituições tal como se encontram nas normas jurídicas das diferentes épocas históricas.
Contudo, interessa também estudar se essas instituições contidas nas normas jurídicas
das diferentes épocas históricas não passavam dos textos e dos diplomas nos quais
estavam contidas (law in the books) ou se eram efetivamente praticadas (law in action).
- História do pensamento jurídico: No âmbito da História do pensamento jurídico,
estuda-se a atividade científico-cultural que, em cada época histórica, sempre
acompanha o Direito e que diz respeito à atitude mental do jurista na sua tarefa de
análise dos princípios jurídicos, das normas jurídicas e do caso concreto (ex. formação
dos juristas, correntes doutrinais e literatura jurídica).

3. Enquadramento do Direito Português na família jurídica romano-


germânica
A ciência do Direito Comparado tem procurado agrupar a grande variedade de ordens
jurídicas, cada uma com as suas especificidades mas cujas normas, conceitos, técnicas e
princípios jurídicos apresentam traços característicos próximos, em famílias ou sistemas
jurídicos. As cinco grandes famílias jurídicas no mundo contemporâneo são:
1) Família romano-germânica: predomínio da lei
2) Família anglo-saxónica: predomínio da jurisprudência
3) Família dos Direitos religiosos: engloba o Direito muçulmano, hindu e judaico
4) Família dos Direitos tradicionais: engloba alguns Direitos orientais e africanos
5) Família dos Direitos socialistas: engloba os Direitos dos países do Leste Europeu

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O Direito Português enquadra-se na família romano-germânica, bem como as ordens
jurídicas da Europa Continental e da América Latina. A família romano-germânica tem
como base três elementos fundamentais, comuns a todas as ordens jurídicas:
-» elemento romano: O Direito Romano difundiu-se na sequência da expansão
política de Roma e foi objeto de um estudo aprofundado nas universidades europeias,
tendo servido como base para a construção dos Direitos da família romano-germânica.
-» elemento cristão: A penetração e consolidação do Cristianismo no Império
Romano exerceu grande influência no Direito Romano, tendo introduzido valores e
princípios que se juntaram à técnica romana.
-» elemento germânico: O Direito Popular germânico ofereceu certas conceções e
instituições que contribuíram para a formação dos Estados Europeus na Idade Média.

4. Formação e evolução da ciência da História do Direito Português


Este capítulo versará sobre a formação e evolução da ciência da História do Direito
Português que poderá ser repartida em cinco períodos fundamentais que são marcados
por contributos significativos de grandes nomes: pré-criação (André de Resende),
criação (Luís António Verney, Pascoal Mello Freire), consolidação (Alexandre
Herculano), individualização (Henrique da Gama Barros) e renovação moderna da
ciência da História do Direito Português (Paulo Merêa, Guilherme Braga da Cruz,
Marcello Caetano).
4.1 Os estudos histórico-jurídicos anteriores à segunda metade do século
XVIII
Até à segunda metade do século XVIII, o Direito Romano renascido e o Direito
Canónico constituíam o Direito positivo, ou seja vigente, pelo que se afastava a
necessidade de um estudo histórico do Direito Português e, por conseguinte, da
existência da História do Direito Português como uma disciplina científica autónoma.
Contudo, vários foram os autores que contribuíram, de certa forma, para os estudos
histórico-jurídicos do Direito Português, sendo de assinalar André de Resende.
4.2 Criação da ciência da História do Direito Português
Só na segunda metade do século XVIII surge a História do Direito Português como
disciplina científica autónoma por influência de duas correntes de pensamento jurídico:
-» Racionalismo: O racionalismo contribuiu com aspetos metodológicos e formais.
-» Iluminismo: O iluminismo contribuiu para o estudo do conteúdo das normas e o
contexto histórico em que elas se inseriam.
Para a criação da ciência da História do Direito Português importa referir
essencialmente três contributos:
1) Luís António Verney: Influenciado pelas correntes renascentistas e iluministas,
Verney, na sua obra “Verdadeiro Método de Estudar”, defende que o Direito Português
devia ser estudado sob uma perspetiva histórico-crítica.
2) Tal concretizou-se com a introdução pelos Estatutos Pombalinos da Universidade de
Coimbra de uma cadeira de História do Direito Português nos estatutos da Faculdade de
Leis (onde se estudava o Direito Romano) e da Faculdade de Cânones (onde se estudava
o Direito Canónico), fundidas depois em 1836 na Faculdade de Direito.
3) Pascoal Mello Freire: Mello Freire contribuiu para a elaboração do primeiro manual
de História do Direito Português, aprovado em 1788, sendo reconhecido como o
fundador da História do Direito Português.
4.3 Consolidação da ciência da História do Direito Português
Para a consolidação e o desenvolvimento da Histórica do Direito Português como
disciplina científica autónoma, desempenhou um importantíssimo papel Alexandre
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Herculano que, nos meados do século XIX, procedeu a um trabalho de recolha, leitura,
interpretação e organização de fontes jurídicas até aí dispersas em documentos por todo
o país. Com base nessas fontes documentais, Herculano realizou um estudo de índole
científica, identificando os factos significativos da Nação e enquadrando-os em fases
históricas com características próprias, ao contrário do enquadramento em reinados que
se fazia até então. É graças a esse trabalho notável, que muito contribuiu para a História
das fontes, que surgiram os célebres “Portugaliae Monumenta Historica”.
4.4 Individualização da ciência da História do Direito Português
Para a individualização da historiografia jurídica portuguesa prestou grande contributo
Henrique da Gama Barros que dedicou a sua vida à autonomização da História do
Direito da História em geral e ao estudo da História do Direito Português, mais
propriamente da História das instituições e da História do pensamento jurídico.
4.5 Renovação moderna da ciência da História do Direito Português
Para a renovação moderna da ciência da História do Direito Português, contribuíram
grandes nomes, tais como Paulo Merêa, tendo sido seguido pelo seu discípulo e
sucessor Guilherme Braga da Cruz. Marcello Caetano merece igualmente prestigiada
referência.

5. Relações entre a História do Direito Português e a História do


Direito Peninsular anterior à fundação da nacionalidade portuguesa
A independência política do Condado Portucalense não foi acompanhada com o
surgimento autónomo de uma nova ordem jurídica, tendo Portugal herdado os alicerces
do Direito Peninsular anterior à fundação da nacionalidade portuguesa (mais
precisamente do Direito do Reino de Leão, do qual se tornou independente) que
continuou em plena vigência. O Direito Peninsular anterior à fundação da nacionalidade
portuguesa pode ser dividida em quatro períodos históricos:
- Período primitivo
- Período romano
- Período germânico ou visigótico
- Período da conquista árabe e da Reconquista Cristã
5.1 Período primitivo
Antes da dominação romana, a Península Ibérica era habitada por vários povos
(Tartéssios, Iberos, Celtas, Celtiberos e Franco-Pirenaicos) cujos ordenamentos
jurídicos coexistiam, ainda que apresentando diferenças uns dos outros.
5.2 Período romano
A presença dos Romanos na Península Ibérica pode ser dividida em duas fases:
- Fase de conquista: Conquista e domínio do território peninsular pelos Romanos
- Fase de romanização: Adaptação dos povos peninsulares primitivos à vida, cultura,
civilização e ao Direito dos Romanos
→ As adaptações dos povos peninsulares primitivos ao Direito Romano não foi
uniforme, pelo que existiram diversos Direitos Romanos vulgares. Esta vulgarização do
Direito Romano deveu-se aos seguintes fatores:
1. Falta de conhecimento jurídico dos povos peninsulares
2. Ausência de jurisconsultos que assegurassem a aplicação do Direito Romano
3. Decadência do Império Romano
4. Ressurgimento de instituições e princípios jurídicos peninsulares

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5.3 Período germânico ou visigótico
A decadência económica, institucional e política do Império Romano, que se verificou
principalmente no Ocidente, o caráter guerreiro dos povos germânicos e a escassez de
meios de subsistência que se verificava nos seus territórios contribuíram para o
surgimento de invasões germânicas que, por sua vez, fizeram emergir verdadeiros
Estados germânicos. Nesses Estados coexistiam os Direitos Romanos vulgares e o
Direito germânico que se foram influenciando ao longo do tempo.
5.4 Período muçulmano e da Reconquista Cristã
A chegada dos Árabes à Península Ibérica rapidamente se traduziu no domínio de todo o
território peninsular, com exceção de uma pequena região ao Norte da Espanha onde se
refugiaram nobres, bispos e soldados. Foi aí que surgiu a primeira monarquia cristã e de
onde partiu o movimento da Reconquista Cristã. Com a Reconquista Cristã foram
surgindo os Reinos de Leão, de Castela, de Navarra, de Aragão e de Catalunha.
5.5 O Direito da Reconquista
Quando Portugal obtém a sua independência política do Reino de Leão, encontra-se em
plena vigência o Direito do período da Reconquista Cristã que tinha como principais
elementos constitutivos:
- elemento primitivo através de algumas instituições
- elemento romano através do Direito Romano vulgar
- elemento germânico ou visigótico através do Código Visigótico (influenciado pelo
Direito Romano vulgar) e da figura dos ordálios ou juízos de Deus (meios de prova
usados para determinar a culpa ou a inocência do acusado através da participação divina
(ex. prova caldária)), cujos vestígios ainda se encontram em alguns forais portugueses
- elemento cristão e canónico através da regulação de alguns aspetos jurídicos pelo
Direito Canónico (ex. casamento)
- elemento muçulmano através da figura da terça (quota sucessória disponível) que se
manteve no Direito Português até à Primeira República
→ O Direito da Reconquista Cristã é um Direito muito rudimentar, para tal contribuindo
o contexto de permanente guerra, de constantes necessidades militares e de ausência de
um poder central forte.

6. Periodização da Histórica do Direito Português (Resumo)


A evolução histórica do Direito Português pode ser dividida em três períodos que
apresentam características próprias:
1) Período da individualização do Direito Português:
O período da individualização do Direito Português tem início em 1140 (D. Afonso
Henriques autointitula-se Rei de Portugal) até 1248 (reinado de Afonso III).
- Direito herdado do Reino de Leão: A independência política de Portugal não foi
acompanhada do surgimento autónomo de uma nova ordem jurídica, tendo-se mantido o
sistema jurídico herdado do Reino de Leão em plena vigência. Só pouco a pouco foram
surgindo fontes de Direito tipicamente portuguesas.
- Direito consuetudinário e foraleiro: Neste período, o Direito Português tem uma
base consuetudinária e foraleira, assentando sobretudo em duas fontes de Direito,
designadamente o costume e os forais.
- Direito caracterizado pelo empirismo jurídico: Neste período, o Direito
Português tratava-se de um Direito em que o empirismo presidia à criação jurídica,
assumindo grande relevância a atividade dos tabeliães (oficiais públicos que
desempenhavam funções equivalentes às dos atuais notários).
→ Fontes de Direito do Reino de Leão e de Direito Português
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2) Período do Direito Português de inspiração romano-canónica:
O período do Direito Português de inspiração romano-canónica tem início em 1248
(reinado de D. Afonso III) até 1769-1772 (Reformas Pombalinas). Dentro deste período
podem assinalar-se duas épocas:
2.1) Época da receção do Direito Romano renascido e do Direito Canónico renovado
(Direito Comum): Esta época tem início em 1248 (reinado de D. Afonso III) até 1446-
1447 (início de vigência das Ordenações Afonsinas).
- Renascimento do Direito Romano: Quatro ordens de fatores conduziram ao
renascimento do Direito Romano e à sua difusão na Península Ibérica, sendo de
assinalar os contributos da Escola dos Glosadores e Escola dos Comentadores.
- Renovação do Direito Canónico: Duas ordens de fatores conduziram à
renovação do Direito Canónico e à sua penetração na Península Ibérica.
- Aumento da atividade legislativa régia: Nesta época, verifica-se um enorme
aumento da atividade legislativa régia, o que veio conduzir, ainda antes das Ordenações
Afonsinas, à elaboração de coletâneas privadas de leis do Reino de Portugal.
→ Fontes de Direito Português e de Direito subsidiário
2.2) Época das Ordenações: Esta época tem início em 1446-1447 (início de vigência
das Ordenações Afonsinas) até 1769-1772 (Reformas Pombalinas).
- Ordenações Afonsinas: As Ordenações Afonsinas foram a primeira coletânea
legislativa oficial do Direito vigente no Reino de Portugal, promulgada em nome de D.
Afonso V, que consolidou a autonomização do Direito Português na Península Ibérica,
tendo sido a pedra basilar para toda a evolução subsequente do Direito Português.
- Ordenações Manuelinas: As Ordenações Manuelinas, promulgadas em nome
de D. Manuel I, foram uma coletânea revista e atualizada das Ordenações Afonsinas.
Devido ao elevado número de leis e assentos extravagantes, as Ordenações Manuelinas
foram complementadas pela Coleção das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião.
- Ordenações Filipinas: As Ordenações Filipinas foram uma coletânea cuja
elaboração foi ordenada por D. Filipe I de Portugal, tendo sobrevivido à Revolução de 1
de Dezembro de 1640 para se tornar as Ordenações mais duradouras em Portugal.
- Humanismo Jurídico e Segunda Escolástica
→ Fontes de Direito Português e de Direito subsidiário
3) Período da formação do Direito Português moderno:
O período da formação do Direito Português compreende três épocas:
3.1) Época do Jusnaturalismo racionalista: Esta época tem início em 1769 (Lei da
Boa-Razão)-1772 (Estatutos Pombalinos da Universidade de Coimbra).
- Correntes do pensamento jurídico europeu: Foram várias as correntes do
pensamento jurídico europeu que serviram de inspiração doutrinal e ideológica para as
Reformas Pombalinas, sendo de assinalar a Escola Racional de Direito Natural, o usus
modernus pandectarum, a Jurisprudência Elegante, o Iluminismo e o Humanitarismo.
- Reformas Pombalinas no âmbito da ciência do Direito: A Lei da Boa-Razão
introduziu profundas alterações na ciência do Direito e no sistema de fontes de Direito
Português.
- Reformas Pombalinas no âmbito do ensino do Direito: Os Novos Estatutos
da Universidade de Coimbra introduziram alterações fundamentais no ensino do
Direito, em resposta aos graves defeitos apontados pela Junta de Providência Literária
aos estudos jurídicos em Portugal.
3.2) Época do individualismo: Esta época tem início em 1820 (Revolução Liberal).
3.3) Época do Direito Social: Esta época tem início em 1914-1918 (Primeira Guerra
Mundial).

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7. Estudo da História do Direito Português
7.1 Período da individualização do Direito Português
O período da individualização do Direito Português tem o seu início em 1140 (D.
Afonso Henriques autointitula-se Rei de Portugal) e termina em 1248 (reinado de D.
Afonso III).
7.1.1 Fontes de Direito no período da individualização do Direito Português
A independência política de Portugal não foi acompanhada do surgimento autónomo de
uma nova ordem jurídica, tendo-se mantido o sistema jurídico herdado do Reino de
Leão em plena vigência. Sendo assim, ter-se-á que estabelecer uma distinção entre as
fontes de Direito do Reino de Leão, que se mantiveram em plena vigência depois da
independência política de Portugal, e as fontes de Direito que surgiram após a fundação
da nacionalidade:
1) Fontes de Direito do Reino de Leão (anteriores à fundação da nacionalidade):
→ Código Visigótico: Trata-se de uma compilação legislativa do Reino Visigótico,
datada de 654 e com forte influência do Direito Romano ante justinianeu (anterior ao
Corpus Iuris Civilis). Existem várias referências documentais a normas do Código
Visigótico e, portanto, é de concluir que ele exerceu grande influência em Portugal até
ao fim do século XII, perdendo depois importância no século XIII.
→ Leis saídas da Cúria de Leão e dos Concílios de Coiança e Oviedo: Tratam-se
de leis gerais saídas da Cúria de Leão (1017) e dos Concílios de Coiança (1055) e de
Oviedo (1115) que se realizaram antes da fundação da nacionalidade, mas que
continuaram a ser aplicadas no Reino de Portugal. Aponta nesse sentido o facto de, por
um lado, existir documentação jurídica já surgida no Reino de Portugal (cartulários)
onde se faz referência às leis gerais saídas da Cúria de Leão e dos Concílios de
Coiança e, por outro lado, as leis gerais saídas dos Concílios de Oviedo terem sido
juradas pela Condessa D. Teresa e, depois, por D. Afonso Henriques.
1) A Cúria era um órgão auxiliar do Rei de caráter marcadamente político onde
tinham assento os representantes da nobreza, do clero e do povo. A origem desta figura
é visigótica e a sua evolução deu origem à figura das Cortes.
-» A diferença entre a Cúria e as Cortes é que nestas os representantes das três classes
sociais (nobreza, clero e povo) podiam tomar a iniciativa de colocar questões ao
monarca para serem decididas. Naquela, tal não se verificava.
2) Os Concílios eram reuniões eclesiásticas, ou seja, da Igreja.
-» Não é fácil diferenciar os Concílios da Cúria, uma vez que na Cúria chegaram a
participar membros da Igreja e nos Concílios chegou a participar o Rei. Em todo o caso,
poder-se-á utilizar como critérios de diferenciação a entidade que convocou a reunião,
as matérias de que se tratava e a natureza da sanção dada às decisões tomadas.
→ Forais de terras portuguesas concedidos antes da fundação da nacionalidade:
Tratam-se de diplomas locais que foram concedidos pelos monarcas leoneses (ex. Foral
de S. João da Pesqueira), pelo Conde D. Henrique e pela Condessa D. Teresa (ex. Forais
de Guimarães, Tentúgal e Coimbra) ou por D. Afonso Henriques antes de se
autointitular Rei de Portugal a terras que, a partir da fundação da nacionalidade, se
tornaram portuguesas e onde continuaram a ser aplicados.
Neste período, uma vez que os Reis andavam ocupados com a Reconquista Cristã e,
consequentemente, não existia ainda um aparelho de Estado particularmente forte,
assumiram grande importância as cartas de privilégio que eram diplomas que criavam
para certas comunidades uma disciplina jurídica específica e mais favorável do que a
disciplina jurídica comum. Poder-se-á distinguir duas espécies de cartas de privilégio:

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- Cartas de povoação: As cartas de povoação eram instrumentos jurídicos muito
rudimentares, através dos quais o Rei, um senhor laico ou uma instituição eclesiástica se
dirigiam a todos aqueles que se quisessem fixar numa determinada localidade do seu
domínio fundiário, tendo para tal que aderir às cláusulas estabelecidas no diploma. As
cartas de povoação tinham como objetivo povoar localidades despovoadas e/ou atrair
mão-de-obra a localidades já habitadas.
- Cartas de foral: As cartas de foral, ou somente forais, eram diplomas
concedidos pelo Rei, por um senhor laico ou por uma instituição eclesiástica a uma
localidade e que continham normas que regulavam as relações entre a entidade que
concedia o foral e os habitantes da localidade a que o foral dizia respeito e entre os
habitantes dessa localidade entre si.
→ Quanto ao conteúdo dos forais, estes continham sobretudo normas de Direito
Público (ex. liberdades e garantias das pessoas e dos bens dos habitantes, impostos e
outros tributos, sanções aplicáveis pelo cometimento de delitos, serviço militar, uso de
bens comuns (ex. forno, lagar, etc.), normas de Processo Civil relativas a matéria de
prova (ex. ordálias), citações, arrestos (apreensão de bens)).
Nunca foi fácil distinguir as cartas de povoação e as cartas de foral, podendo-se para tal
referir duas opiniões:
1. Para Alexandre Herculano, um foral era um diploma através do qual se dava
existência jurídica a um município pelo facto de se prever, no mesmo documento, a
existência de uma magistratura própria e privativa da localidade a que o foral dizia
respeito. Não estando prevista tal magistratura, não se estaria perante um foral, mas
antes perante uma carta de povoação.
2. Para Paulo Merêa, a existência de uma magistratura própria e privativa de uma
localidade não era uma condição necessária nem suficiente para que houvesse um
município. Em primeiro lugar, porque havia localidades que podiam ser consideradas
municípios ainda que não tivessem qualquer magistratura. Em segundo lugar, porque
havia localidades que tinham magistraturas e que, mesmo assim, não eram municípios.
→ Costume: Em sentido estrito, o costume é entendido como sendo a prática
constante, observada durante um largo período de tempo pela generalidade das pessoas
que participam numa determinada relação da vida social, com a convicção da sua
obrigatoriedade. Contudo, neste período, o costume era entendido em termos mais
amplos como sendo todas as fontes de Direito que não tivessem natureza legislativa.
Dentro desta noção ampla de costume cabiam o Direito consuetudinário propriamente
dito (consume em sentido estrito) mas também a jurisprudência (decisões judiciais) e
até a doutrina (pareceres de juristas conceituados). O costume consistia na fonte
principal ou quase exclusiva de Direito Privado.
2) Fontes de Direito posteriores à fundação da nacionalidade:
→ Leis gerais dos primeiros monarcas: Os primeiros monarcas portugueses não
legislaram em abundância, uma vez que andavam ocupados com a conquista de
território aos muçulmanos e com a consolidação da independência e definição dos
limites territoriais do novo Reino. Todavia, alguma coisa se legislou. Por exemplo, há
referência em bulas papais a uma lei de D. Afonso Henriques que determinou a prisão
das barregãs dos clérigos, ou seja, das mulheres que viviam em concubinato com
membros do clero. Também existe uma lei de D. Sancho I que isentou os clérigos do
serviço militar, exceto perante invasão muçulmana. Mas seria com D. Afonso II que
começou a haver uma atividade legislativa com algum volume, sendo de assinalar as
leis saídas da Cúria de Coimbra no ano de 1211, podendo ser referidas:
-» Leis que solucionam o conflito entre Direito Canónico e Direito Português

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-» Leis que protegem as populações contra abusos dos funcionários régios
-» Leis que protegem as populações contra abusos dos senhores das terras
-» Leis que condenam a vingança privada
-» Leis que consagram a liberdade de celebração do casamento, proibindo-se os
casamentos forçados
-» Leis que consagram a inviolabilidade do domicílio
→ Cartas de povoação de cartas de foral concedidas depois de 1140: Nos
primeiros reinados, foi concedido pelos Reis, pelos senhores laicos e pelas instituições
eclesiásticas abundante número de cartas de povoação e de cartas de foral, tendo
consistido numa das mais importantes fontes de Direito Português até D. Afonso III.
→ Concórdias e concordatas: Nos primeiros reinados, foram muito frequentes os
conflitos entre os monarcas e as entidades religiosas. Neste contexto, surgiram múltiplos
acordos entre o Rei e autoridades eclesiásticas nacionais (concórdias) e entre o Rei e o
Papa (concordatas) em que as partes se comprometiam reciprocamente a reconhecer-se
direitos e obrigações.
7.1.2 Aspetos do sistema jurídico da época
Direito consuetudinário e foraleiro: No período da individualização do Direito
Português, o Direito Português tinha uma base consuetudinária e foraleira, assentando
sobretudo em duas fontes de Direito, designadamente o costume (especialmente no
âmbito do Direito Privado, mas também no Direito Público) e os forais (exclusivamente
no âmbito do Direito Público). A legislação, ainda que escassa, não cessava de
aumentar.
Direito caracterizado pelo empirismo jurídico: No período da individualização do
Direito Português, o Direito Português tratava-se de um Direito em que o empirismo
presidia à criação jurídica que, no âmbito do Direito Privado, foi especialmente
orientada pelos tabeliães (oficiais públicos que desempenhavam funções equivalentes às
dos atuais notários) através dos diversos negócios jurídicos que iam praticando (ex.
contratos, testamentos, etc.). A disciplina desses negócios ia sendo modelada de forma
gradual, ato após ato. Só no período seguinte é que vai haver uma disciplina completa e
rigorosa desses negócios.
Contratos marcantes da vida económico-social: No período da individualização do
Direito Português, grande importância assumiram os seguintes contratos, quer pela
frequência da sua celebração, quer pelo relevo económico-social que tinham para o país:
1. Contratos de exploração agrícola: Os contratos de exploração agrícola são
contratos através dos quais se concede a exploração de terra a um agricultor. Durante
este período, verificou-se uma grande expansão demográfica que só viria a diminuir
com a peste. Para fazer face ao aumento de bocas por alimentar, ter-se-ia que retirar da
agricultura os meios de subsistência. Para tal, deviam existir condições atrativas para os
agricultores em relação aos senhores das terras, permitindo-se, assim, a aquisição da
propriedade da terra através do seu trabalho.
→ São contratos de exploração agrícola:
- Enfiteuse: Através da enfiteuse, o senhorio de um terreno concedia a sua
exploração a um agricultor, denominado foreiro ou enfiteuta. Essa concessão era feita a
título vitalício ou mesmo hereditário. Com a celebração do contrato de enfiteuse, ocorria
um desmembramento jurídico, e não físico, do domínio pleno que o senhorio tinha
sobre o terreno antes da celebração do contrato de enfiteuse num domínio direto a cargo
do senhorio e num domínio útil a cargo do foreiro ou enfiteuta.

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- O domínio pleno traduzia-se no direito de propriedade que o senhorio tinha sobre o
terreno antes da celebração do contrato de enfiteuse.
- O domínio direto traduzia-se no direito que o senhorio tinha de receber o foro ou
cânon que consistia numa prestação anual que o foreiro ou enfiteuta lhe tinha que pagar
e que, em regra, correspondia a uma parte dos frutos produzidos. Para além desta
obrigação, o foreiro ou enfiteuta tinha que fazer um aproveitamento diligente do terreno
que explorasse.
- O domínio útil traduzia-se no direito que o enfiteuta tinha de explorar o terreno, de
fazer seus os frutos que este lhe desse, com exceção do foro ou cânon, e de transmitir o
domínio útil a um terceiro que se tornava no novo enfiteuta com os respetivos direitos e
obrigações. Relativamente a este último aspeto cabe fazer uma breve análise:
-» Exemplo: A celebra com B um contrato de enfiteuse que recai sobre um
determinado terreno. A (senhorio) fica com o domínio direto e B (enfiteuta) fica com o
domínio útil do dito terreno. O enfiteuta B tem o direito de transmitir o seu domínio útil
a um terceiro que, neste caso, é C. Sendo assim, C torna-se o enfiteuta do terreno em
questão, sendo titular dos direitos de exploração da terra e das obrigações de pagamento
de foro ou cânon e de exploração diligente da terra.
→ Perante a transmissão do direito útil por parte de B (enfiteuta) a C (terceiro), A
(senhorio) podia exercer um de dois direitos:
1) Direito de preferência: Se o enfiteuta B pretendesse transmitir o domínio útil do
terreno a um terceiro C, teria que comunicar tal pretensão ao senhorio A, podendo este
exercer o seu direito de preferência que podia ou não estar previsto no contrato de
enfiteuse. Sendo assim, através do direito de preferência, o senhorio A podia adquirir o
domínio útil sobre o terreno, pagando ao enfiteuta B a mesma quantia que o terceiro C
lhe pagaria. Nesta hipótese, o domínio útil e o domínio direto voltavam a reunir-se na
mesma pessoa e o senhorio voltava a ter o domínio pleno sobre o terreno.
2) Direito ao laudémio: Se o senhorio A não exercesse o direito de preferência, o
domínio útil era transmitido ao terceiro C que se tornava no novo enfiteuta com os
respetivos direitos e obrigações do anterior enfiteuta B. Contudo, nesta hipótese, o
senhorio A tinha o direito a que o anterior enfiteuta B lhe pagasse uma parte do valor
que tivesse acordado com o terceiro C que, em regra, correspondia a 2%. Essa quantia
tinha o nome de laudémio.
- Complantação: Através da complantação, o senhorio de um terreno concedia a
sua exploração a um agricultor para que este o fertilizasse através da plantação de
espécies duradouras (ex. vinha e oliveira). Uma vez decorrido o prazo estabelecido
pelas partes para a exploração, que normalmente era de 4 ou 8 anos, dividia-se o terreno
em partes iguais pelos contraentes, sendo notórias as vantagens para ambas as partes:
-» O senhorio passava a ter metade do terreno, mas a produzir (ex. vinho e azeite).
-» O agricultor conseguia, através do seu investimento e do seu trabalho, tornar-se
proprietário da outra metade do terreno.
2. Contratos de crédito: Os contratos de crédito são contratos financeiros ou de
crédito que tinham a terra como objeto.
→ São contratos de crédito:
- Compra e venda de rendas (mais tarde conhecida por censo consignativo):
Através da compra e venda de rendas, o senhorio de um terreno, precisando de capital
para poder cultivar o seu terreno, recebia de determinada pessoa uma determinada
quantia em dinheiro a título definitivo, ou seja, não tendo de a restituir. Em
contrapartida, o senhorio ficava obrigado a pagar a essa pessoa uma prestação monetária
anual a título geralmente perpétuo. Essa prestação monetária anual era um ónus real, ou

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seja, era um encargo que recaía sobre o terreno, que devia ser satisfeito por quem fosse
seu proprietário. Sendo assim, se o senhorio transferisse a propriedade do terreno a um
terceiro, era este quem passava a ficar obrigado a pagar-lhe a prestação monetária anual.
-» Exemplo: A cede a B (senhorio) uma quantia de dinheiro, a título definitivo,
com o valor de 100. B recebe os 100, quantia que não tinha que restituir a A, e fica
obrigado a pagar-lhe, a título perpétuo, uma prestação monetária anual que constitui um
ónus real, ou seja, um encargo que recaía sobre o terreno, tendo que ser satisfeito por B,
seu proprietário. Sendo assim, se B vendesse a propriedade do terreno a C, era C que
passava a ter a obrigação de pagar a prestação monetária anual.
→ A figura da compra e venda de rendas teve grande importância como forma de
concessão de crédito, pois contornava a proibição canónica da usura, ou seja, do
empréstimo de dinheiro a juros.
- Penhor imobiliário: Através do penhor imobiliário, o senhorio de um terreno
recebia de determinada pessoa uma determinada quantia em dinheiro e, em
contrapartida, cedia-lhe o terreno. O terreno só lhe seria restituído após o pagamento da
dívida. A pessoa que entregou o dinheiro ao senhorio e que ficava com o terreno ia
desfrutando dele, ou seja, ia fazendo seus os frutos que o terreno produzisse. Era
frequente que as partes estabelecessem que, com esse desfrute, ocorreria uma
amortização (devolução gradual do capital obtido) da dívida.
7.2 Período do Direito Português de inspiração romano-canónica
O período do Direito Português de inspiração romano-canónica subdivide-se em duas
épocas:
- Época da receção do Direito Romano renascido e do Direito Canónico renovado
(Direito Comum)
- Época das Ordenações
7.2.1 Época da receção do Direito Romano renascido e do Direito Canónico
renovado (Direito Comum)
A época da receção do Direito Romano renascido e do Direito Canónico renovado
(Direito Comum) tem o seu início em 1248 (reinado de D. Afonso III) e termina em
1446-1447 (início de vigência das Ordenações Afonsinas).
7.2.1.1 Renascimento do Direito Romano
No século VI, o Imperador Bizantino Justiniano ordenou a organização de uma
compilação do Direito Romano, o chamado Corpus Iuris Civilis (designação devida a
Dionísio Godofredo (1583)) que era composto pelas Institutiones (espécie de manual de
Direito Romano), pelo Digesto (compilação de fragmentos extraídos de obras dos
principais jurisconsultos clássicos), pelo Codex (compilação de constituições imperiais)
e pelas Novellae (constituições imperiais). Na Europa Ocidental, do século VI ao século
XI, o Corpus Iuris Civilis não era completamente desconhecido mas não tinha grande
importância nem foi objeto de particular estudo. Só a partir do século XI é que passou a
haver um estudo em larga escala, profundo e sistemático do Corpus Iuris Civilis na
Europa Ocidental, chegando-se a falar de um renascimento do Direito Romano.
Pré-renascimento do Direito Romano
O renascimento do Direito Romano deveu-se a quatro ordens de fatores:
Fatores políticos: O Sacro Império Romano-Germânico encontrou no Direito Romano
justinianeu, que estava contido no Corpus Iuris Civilis, um sistema jurídico adequado
para o ressurgimento do Império Romano do Ocidente e para o fortalecimento da figura
do Imperador.

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Fatores religiosos: A fé cristã e as Cruzadas contribuíram para a unificação dos povos
europeus que encontraram no Direito Romano justinianeu, contido no Corpus Iuris
Civilis, uma base jurídica que lhes era comum a todos.
Fatores económicos: A grande expansão económica que se verificou devido ao aumento
populacional, à migração das populações do campo para as cidades e ao surgimento de
uma nova economia citadina colocou novos e complexos problemas para os quais se
procurou resposta no Direito Romano justinianeu, contido no Corpus Iuris Civilis.
Fatores culturais: Nos séculos XI e XII assistiu-se a um progresso da cultura que teve
reflexos no estudo do Direito Romano justinianeu, contido no Corpus Iuris Civilis.
→ Foi devido a estas quatro ordens de fatores que se passou a estudar e a aplicar
maciçamente o Direito Romano justinianeu, contido no Corpus Iuris Civilis, o que, por
sua vez, conduziu ao renascimento propriamente dito do Direito Romano.
O renascimento propriamente dito do Direito Romano com a Escola de Bolonha ou
dos Glosadores
A Escola de Bolonha ou Escola dos Glosadores deu, a partir dos séculos XI e XII,
grandes contributos para o estudo sistemático e para a aplicação e divulgação do Direito
Romano justinianeu, contido no Corpus Iuris Civilis.
1. Origem da Escola dos Glosadores
A Escola dos Glosadores, que teve a sua sede na cidade italiana de Bolonha, começou
por ser um pequeno núcleo de ensino onde um grupo restrito de discípulos se reunia à
volta do mestre Irnério, também conhecido por “lucerna iuris”, para ouvir as suas lições
de Direito Romano justinianeu. Progressivamente, esse pequeno núcleo de ensino foi-se
transformando numa autêntica Universidade, para onde os estudantes, vindos de toda a
parte, iam para se formar.
2. Sistematização do Corpus Iuris Civilis adotada pelos Glosadores
A Escola dos Glosadores adotou uma sistematização do Corpus Iuris Civilis diferente
da sua sistematização originária, principalmente por questões pedagógicas. Os
Glosadores dividiram, assim, o Corpus Iuris Civilis em cinco partes:
- O Digesto Velho ia até ao título II do livro XXIV do Digesto.
- O Digesto Esforçado ia do título III do livro XXIV até ao livro XXXVIII do Digesto.
- O Digesto Novo que compreendia os livros XXXIX a L do Digesto.
- O Codex que era composto pelos nove primeiros livros do Codex.
- O Volume Pequeno que abrangia os três últimos livros do Codex, as Institutiones e
uma coleção de Novellae.
3. Instrumento de trabalho dos Glosadores
O principal instrumento de trabalho dos Glosadores foi a glosa. Uma glosa consistia
numa exegese textual, ou seja, numa interpretação de um texto. Inicialmente, as glosas
eram pequenos esclarecimentos, em regra uma simples palavra ou expressão, que se
escreviam entre as linhas do texto (daí também se designarem “glosas interlineares”) e
que tinham como objetivo tornar inteligível uma passagem ou um preceito do Corpus
Iuris Civilis que suscitasse dúvidas. Com o tempo, as glosas tornaram-se mais
complexas e extensas e já não se referiam apenas a uma passagem ou a um preceito do
Corpus Iuris Civilis mas a todo um título e, por isso, eram escritas nas margens do texto
(daí também se designarem “glosas marginais”).
4. Atitude dos Glosadores perante o Corpus Iuris Civilis
Os Glosadores tinham um respeito quase sagrado pelo Corpus Iuris Civilis, entendendo
que o papel do jurista deveria reduzir-se ao esclarecimento das respetivas normas de

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forma a poderem ser aplicadas às situações concretas, não devendo desprender-se da
letra dos preceitos romanos nem elaborar doutrina que os superasse ou contrariasse.
Esta atitude perante o Corpus Iuris Civilis, contudo, foi acompanhada de dois grandes
defeitos da Escola de Bolonha: Os Glosadores tinham uma profunda ignorância
linguística (desconhecimento do latim) e histórica (desconhecimento das circunstâncias
históricas que fizeram surgir as normas contidas no Corpus Iuris Civilis). Isso conduziu
a interpretações pouco rigorosas e até à manutenção de regras obsoletas.
No entanto, é indiscutível o esforço e a obra dos Glosadores:
- Iniciaram o estudo, a aplicação e a divulgação do Direito Romano justinianeu
- Transformaram o Corpus Iuris Civilis inorgânico num conjunto justinianeu de
normas unitário e sistemático
- Fizeram nascer uma ciência do Direito autónoma
5. Apogeu e declínio da Escola dos Glosadores
O apogeu da Escola dos Glosadores dá-se no século XII. Contudo, já no século XIII
verificam-se os primeiros sinais de decadência da sua metodologia. Já não se estudava
diretamente o texto da lei justinianeia, mas a glosa. Ou seja, faziam-se glosas de glosas.
Porém, no século XIII, surge a Magna Glosa, a Glosa de Acúrsio ou, simplesmente,
Glosa. Esta obra, que se deve ao esforço notável de Acúrsio, consistia numa recolha das
principais glosas relativas ao Corpus Iuris Civilis que apresentava criticamente as várias
posições que sobre os diferentes assuntos tinham surgido. A Magna Glosa passou a
acompanhar as cópias do Corpus Iuris Civilis e teve uma grande importância em
Portugal onde chegou a ter valor oficial de fonte de Direito subsidiário.
Difusão do Direito Romano renascido e da obra dos Glosadores
O Direito Romano renascido e a obra dos Glosadores difundiram-se um pouco por toda
a Europa.
Causas da difusão do Direito Romano renascido na Europa em geral
1. Estudantes estrangeiros em Bolonha
Muitos estudantes de diversos pontos da Europa dirigiram-se a Bolonha para ouvir as
lições de Direito Romano justinianeu dadas por Irnério e pelos seus discípulos. Ao
regressarem às suas terras de origem, levavam consigo o novo sistema jurídico baseado
no Corpus Iuris Civilis, transmitindo-o no exercício de cargos universitários ou da vida
pública.
2. Fundação de Universidades
Durante os séculos XII e XIII assistiu-se à criação progressiva de Universidades em
vários pontos da Europa e onde eram estudados os diversos ramos do saber, incluindo o
Direito Romano justinianeu e o Direito Canónico. As Universidades tiveram origem
diversificada:
1. Universidades ex consuetudine: Surgiam a partir de pequenos núcleos de ensino
onde um grupo restrito de discípulos se reunia à volta de um mestre (ex. Bolonha).
2. Universidades secessione: Surgiam através da separação de uma Universidade já
constituída (ex. Cambridge que se separou de Oxford).
3. Universidades ex privilegio: Eram criadas através de uma carta do Rei e tinham
que ser reconhecidas pelo Papa para, por um lado, obter o necessário prestígio das
Universidades ex consuetudine e secessione e, por outro lado, para que os respetivos
graus académicos adquirissem valor universal (ex. Coimbra).
Causas da difusão do Direito Romano renascido na Península Ibérica em especial
Na Península Ibérica, só a partir de meados do século XIII se verificou uma difusão do

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Direito Romano renascido e da obra dos Glosadores. Para além das causas gerais da
difusão do Direito Romano renascido na Europa, observar-se-ão agora as causas
específicas relativas à Península Ibérica.
1. Presença de estudantes peninsulares nas escolas jurídicas italianas e francesas e de
jurisconsultos estrangeiros na Península Ibérica
Desde o início do século XIII verificou-se uma presença muito significativa de
estudantes peninsulares nas escolas jurídicas italianas e francesas, especialmente na
Universidade de Bolonha. Alguns juristas peninsulares atingiram grande notoriedade,
tornando-se cátedras de Direito Romano e de Direito Canónico na Universidade de
Bolonha, como foi o caso de João de Deus. Contudo, a maior parte dos juristas
peninsulares de formação bolonhesa regressava às suas terras de origem após a
conclusão dos seus estudos, onde ocupava importantes cargos na Igreja, no aparelho de
Estado e até nas Universidades peninsulares, contribuindo, assim, para a difusão do
Direito Romano renascido. Mas, se é verdade que houve estudantes peninsulares nas
escolas jurídicas estrangeiras, também é verdade que houve jurisconsultos estrangeiros
que se dirigiram à Península Ibérica onde desempenharam importantes funções de
chanceleres e conselheiros junto dos monarcas ou de cátedras nas Universidades
peninsulares.
2. Difusão do Corpus Iuris Civilis e da Glosa de Acúrsio
Os estudantes peninsulares formados nas escolas jurídicas estrangeiras e que
regressavam à Península Ibérica levavam consigo, além dos conhecimentos científicos,
os textos das disciplinas que haviam estudado. Desta forma, chegaram à Península
exemplares do Corpus Iuris Civilis e da Glosa de Acúrsio.
3. Ensino do Direito Romano nas Universidades peninsulares
Nas Universidades peninsulares começou-se a ensinar o Direito Romano. No que diz
respeito a Portugal, sabe-se que o Estudo Geral Português surgiu por iniciativa de D.
Dinis em Lisboa e que foi reconhecido pelo Papa Nicolau IV através de uma Bula de 9
de Agosto de 1290. Nessa Bula, já se faz referência à obtenção dos graus de licenciado
em Direito Canónico e em Direito Civil. A Universidade portuguesa foi, ainda no
reinado de D. Dinis, transferida para Coimbra e, ao longo dos anos, deslocou-se entre as
duas cidades até se fixar definitivamente em Coimbra, em 1537, no reinado de D. João
III.
4. Legislação e prática jurídica de inspiração romanística
Tanto as fontes jurídicas nacionais como a atividade dos tabeliães foram sendo
progressivamente influenciadas pelo Direito Romano renascido.
5. Obras doutrinais e legislativas de conteúdo romano
Assumiram grande importância na difusão do Direito Romano renascido na Península
Ibérica obras peninsulares de índole doutrinal e legislativa fortemente influenciadas pelo
Direito Romano renascido:
→ No que respeita às obras doutrinais, destaca-se a importância das “Flores de
Derecho” e dos “Nueve Tiempos de los Pleitos”, ambas da autoria do Mestre Jácome
das Leis. Estes dois compêndios de processo civil eram manifestamente influenciados
pelo processo civil romano-canónico que, pouco a pouco, foi substituindo as velhas
práticas processuais consuetudinárias e foraleiras de raiz germânica.
→ No que respeita às obras legislativas, destaca-se a importância do “Fuero Real” e
das “Siete Partidas”, ambas da iniciativa do Rei castelhano D. Afonso X, de cognome
“O Sábio”, que procurou concentrar a criação jurídica no monarca e uniformizar e
renovar o Direito nos seus Reinos:
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- “Fuero Real”: O Fuero Real era uma compilação de normas jurídicas municipais
que se destinava às cidades que não tivessem “fuero” (foral) próprio ou que, tendo-o,
quisessem substituí-lo por um mais perfeito e atualizado. A base do Fuero Real era
constituída por preceitos do Código Visigótico e por costumes castelhanos, ainda que
sejam consideráveis os reflexos do Direito Romano renascido e do Direito Canónico
renovado.
- “Siete Partidas”: As Siete Partidas eram uma imponente exposição jurídica
inspirada no sistema do Direito Comum romano-canónico que teve um importantíssimo
papel na formação dos juristas da época, uma vez que era escrito em espanhol, o que
facilitava a sua compreensão. Já no século XIV, foi consagrada legalmente no Reino de
Castela como fonte de Direito subsidiário.
Escola dos Comentadores ou Escola Escolástica
Durante o século XIV, e muito devido ao declínio da Escola dos Glosadores, afirmou-se
uma nova metodologia jurídica, nomeadamente a Escola Escolástica ou Escola dos
Comentadores, assim designada pelo facto de os Comentadores utilizarem o
comentário como principal instrumento de trabalho, à semelhança do que ocorreu com
os Glosadores a respeito da glosa.
1. Método dialético ou escolástico
Algo que marcou a Escola dos Comentadores foi o facto de se ter aplicado o método
dialético ou escolástico ao estudo do Direito que assenta em três elementos
fundamentais:
- Lectio: A lectio consistia na leitura de um texto de autores, considerados autoridades,
que era comentado pelo mestre ou através do qual este desenvolvia os seus pontos de
vista e colocava uma quaestio sobre o texto em causa.
- Quaestio: A questio consistia numa pergunta ou problema que o mestre colocava a
respeito de um determinado texto para a qual se procurava a resposta ou solução.
- Disputatio: A disputatio consistia no raciocínio que se desenvolvia para encontrar uma
resposta ou solução à quaestio colocada pelo mestre. Assim, indicavam-se as razões
pelas quais a resposta se orientava num determinado sentido e as que apontavam em
sentido contrário. Desta confrontação, obtinha-se a responsio ou solutio, procedendo-se,
por fim, à refutação das opiniões contrárias.
2. Dialética aristotélica
O método dialético ou escolástico foi caracterizado pela utilização da dialética
aristotélica materializada no silogismo que pode ser definido como sendo o discurso
através do qual de duas proposições se retira uma proposição nova.
-» Exemplo:
Premissa maior – Se todos os homens são mortais…
Premissa menor – … e todos os portugueses são homens,…
Conclusão – … então todos os portugueses são mortais.
Aristóteles admitia dois tipos de silogismos:
- Silogismo demonstrativo: Parte de proposições verdadeiras.
- Silogismo dialético: Parte de proposições prováveis, ou seja, de opiniões geralmente
aceites.
→ Foi precisamente o silogismo dialético que caracterizou o método escolástico
utilizado pela Escola dos Comentadores no estudo do Direito.
3. Atitude dos Comentadores perante o Corpus Iuris Civilis
Os Comentadores, tal como os Glosadores, viam o Corpus Iuris Civilis como um
conjunto de normas jurídicas das quais se podia retirar soluções aplicáveis às situações

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concretas. Contudo, ao contrário dos Glosadores, os Comentadores desprenderam-se
progressivamente da letra dos preceitos romanos contidos no Corpus Iuris Civilis,
tentando a partir desses mesmos preceitos e através do método escolástico e da
utilização da dialética aristotélica chegar a soluções inovadoras. Foi assim que foram
criados novos institutos e novos ramos do Direito, tais como o Direito Internacional
Privado, o Direito Comercial e o Direito Marítimo. Além do Corpus Iuris Civilis, os
Comentadores socorreram-se de outras fontes de Direito, designadamente os costumes
locais, os estatutos das cidades italianas e o Direito Canónico.
4. Apogeu e declínio da Escola dos Comentadores
O período mais criativo da Escola dos Comentadores vai dos começos do século XIV a
meados do século XV, tendo contribuído para um avanço da ciência jurídica e para a
sua maior conformidade às exigências práticas da época. Grande prestígio tiveram os
comentários de Bártolo que foram reconhecidos como fonte de Direito subsidiário no
ordenamento jurídico de vários países. Contudo, ao longo da segunda metade do século
XV, iniciou-se o declínio Escola dos Comentadores. Por um lado, o método escolástico
ou dialético, que tinha conduzido a importantes resultados, era agora utilizado de uma
forma rotineira e pouco ou nada criativa. Por outro lado, na disputatio, os Comentadores
limitavam-se agora a repetir os mesmos argumentos e os mesmos autores, dando lugar
ao império da opinião comum dos doutores, ou seja, da doutrina maioritária que abafava
toda e qualquer nova perspetiva de ver as coisas.
7.2.1.2 Renovação do Direito Canónico
Ao lado do renascimento do Direito Romano, verificou-se uma renovação do Direito
Canónico que exerceu grande influência na generalidade dos países de formação cristã.
Conceito de Direito Canónico
Entende-se por Direito Canónico o conjunto de normas jurídicas que disciplinam as
matérias respeitantes à Igreja Católica. Ou seja, é o Direito próprio da Igreja.
Fontes de Direito Canónico
Atendendo à origem ou ao modo de formação das normas, estabelece-se uma distinção
entre as fontes de Direito Divino e as fontes de Direito Humano:
- As fontes de Direito Divino são constituídas pela Sagrada Escritura (Antigo e Novo
Testamento) e pela chamada Tradição (ensinamentos de Jesus Cristo que não ficaram
reduzidos a escrito mas foram sendo transmitidos de forma oral ao longo do tempo).
- As fontes de Direito Humano são constituídas pelo costume, por diplomas dos Papas,
pelos cânones dos concílios ecuménicos, por diplomas de outras entidades religiosas
hierarquicamente inferiores aos Papas, por concórdias e concordatas, por decisões dos
tribunais eclesiásticos e ainda por normas jurídicas civis que a Igreja mandava aplicar.
Evolução do Direito Canónico
Enquanto que, inicialmente, só existiam fontes de Direito Divino, a verdade é que, com
o decurso do tempo, as fontes de Direito Humano tornaram-se o modo normal de
criação de normas jurídico-canónicas. Consequentemente, não é de admirar que se tenha
sentido a necessidade de, por um lado, reunir e sistematizar essas normas em coletâneas
e, por outro lado, proceder ao estudo do Direito Canónico. Contudo, não poderá dizer-se
que, antes do século XII, existisse uma ciência do Direito Canónico devidamente
autonomizada das demais áreas do saber.
A partir do século XII verifica-se uma grande renovação do Direito Canónico que se
deveu a duas ordens de fatores:

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Organização de novas coletâneas de Direito Canónico: A partir do século XII, inicia-se
um esforço dos Papas para centralizar a criação do Direito Canónico na Santa Sé de
forma a acabar com os particularismos nacionais e regionais. Nessa linha, identificam-
se as seguintes coletâneas de normas canónicas:
- Decreto de Graciano de 1140: O Decreto de Graciano foi uma síntese e compilação
dos princípios e normas de Direito Canónico vigentes naquela época, organizada em
1140 pelo monge e professor em Bolonha João Graciano.
- Decretais de Gregório IX de 1234: As Decretais de Gregório IX foram uma
coletânea de normas papais posteriores ao Decreto de Graciano, organizada pelo
canonista ibérico São Raimundo de Peñafort por ordem do Papa Gregório IX que a
promulgou, ou seja, deu-lhe força de lei, em 1234. As Decretais de Gregório estavam
divididas em cinco livros.
- Sexto de Bonifácio VIII de 1298: O Sexto de Bonifácio VIII foi uma coletânea de
normas canónicas posteriores às Decretais de Gregório IX, tendo sido promulgada pelo
Papa Bonifácio VIII em 1298. A sua designação deriva da sua complementaridade
relativamente às Decretais de Gregório IX, ou seja, era como se o Sexto de Bonifácio
fosse o sexto livro dos cinco livros de que eram compostas as Decretais de Gregório IX.
- Clementinas de 1317: As Clementinas foram uma coletânea de normas canónicas,
organizada por ordem do Papa Clemente V mas apenas promulgada oficialmente em
1317 pelo Papa João XXII.
- Extravagantes de João XXII e Extravagantes comuns: As quatro coletâneas
anteriores foram publicadas em conjunto por volta de 1500, já tendo sido a imprensa
inventada por Johannes Gutenberg. Ora, o editor aproveitou e acrescentou-lhes duas
coletâneas de decretais posteriores a 1317, as Extravagantes de João XXII e as
Extravagantes comuns, ou dos Papas subsequentes.
→ A expressão “extravagante” indica que são textos que se encontram fora das
coletâneas oficiais.
Todas estas coletâneas foram reunidas no chamado Corpus Iuris Canonici (corpo de
Direito Canónico) promulgado em 1580 pelo Papa Gregório XIII e que vigorou até
1917. Portanto, percebe-se agora porque é que Dionisio Godofredo, em 1583, designou
o corpo de Direito Romano justinianeu por Corpus Iuris Civilis.
Reelaboração científica do Direito Canónico com base nas novas coletâneas: Os
instrumentos de trabalho e as metodologias utilizados pelos Glosadores e pelos
Comentadores no estudo, interpretação e aplicação do Direito Romano foram
igualmente utilizados pelos canonistas no estudo, interpretação e aplicação das novas
coletâneas de Direito Canónico, especialmente do Decreto de Graciano e das Decretais
de Gregório IX.
- Os canonistas que se dedicavam ao estudo, à interpretação e aplicação do Decreto de
Graciano, chamavam-se decretistas.
- Os canonistas que se dedicavam ao estudo, à interpretação e aplicação das Decretais
de Gregório IX, chamavam-se decretalistas.
Penetração do Direito Canónico renovado na Península Ibérica
As causas da penetração do Direito Canónico renovado na Península Ibérica
coincidiram com as causas da difusão do Direito Romano renascido:
1. Presença de estudantes peninsulares nas escolas jurídicas italianas e francesas
Verificou-se uma presença muito significativa de estudantes peninsulares nas escolas
jurídicas francesas e italianas. A maior parte dos estudantes peninsulares formados nas
escolas jurídicas estrangeiras regressava às suas terras de origem após a conclusão dos

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seus estudos, onde ocupavam importantes cargos universitários e da vida pública,
contribuindo, assim, para a penetração do Direito Canónico renovado.
2. Difusão dos textos de Direito Canónico
A maioria dos estudantes peninsulares formados nas escolas jurídicas estrangeiras, ao
regressar às suas terras de origem, levavam consigo, além dos conhecimentos
científicos, os textos das disciplinas que haviam estudado. Desta forma, chegaram à
Península Ibérica textos de Direito Canónico.
3. Ensino do Direito Canónico nas Universidades peninsulares
Nas Universidades peninsulares começou-se a ensinar o Direito Canónico.
4. Aplicação judicial do Direito Canónico
O Direito Canónico era aplicado quer nos tribunais eclesiásticos, quer nos tribunais
civis:
1) Aplicação nos tribunais eclesiásticos: O Direito Canónico era, antes de tudo, o
ordenamento jurídico próprio dos tribunais eclesiásticos. Por conseguinte, considerava-
se, por um lado, que certas matérias apenas podiam ser julgadas ou decididas nos
tribunais eclesiásticos (ex. matrimónio). Por outro lado, entendia-se que apenas
determinadas pessoas podiam ser julgadas nos tribunais eclesiásticos (ex. clérigos e
todas as pessoas a quem fosse concedido esse privilégio).
2) Aplicação nos tribunais civis: O Direito Canónico, para além de ser o ordenamento
jurídico próprio dos tribunais eclesiásticos, também era aplicado nos tribunais civis.
Discute-se se o Direito Canónico alguma vez prevaleceu sobre o Direito Português. A
opinião generalizada manifesta-se em sentido afirmativo, com base numa lei saída da
Cúria de Coimbra de 1211 na qual se determinava que as leis do Reino não valiam
contra os direitos da Igreja. Porém, existem autores que entendem que a lei saída da
Cúria de Coimbra de 1211 apenas reconhecia determinados privilégios da Igreja, não se
demonstrando qualquer prioridade do Direito Canónico sobre o Direito Português. De
qualquer maneira, independentemente de ter prevalecido ou não sobre o Direito
Português, é absolutamente seguro afirmar-se que o Direito Canónico era visto como
fonte de Direito subsidiário, intervindo na ausência de Direito Pátrio.
7.2.1.3 Direito Comum
O renascimento do Direito Romano e a renovação do Direito Canónico contribuíram
para o surgimento do Direito Comum que foi o sistema normativo de base romana e
marcado por influências canónicas que constituiu a base da experiência jurídica
europeia até ao século XVIII, uma vez que tanto o Direito Romano como o Direito
Comum eram transversais a todo o território europeu. Ao Direito Comum
contrapunham-se os Direitos próprios, ou seja, os ordenamentos jurídicos dos vários
Estados.
Em Portugal, o Direito Comum, para além do significado anteriormente analisado,
também era entendido como Direito Português, ou seja, como Direito que devia aplicar-
se de preferência a qualquer outro.
7.2.1.4 Fontes de Direito Português na época da receção do Direito Romano
renascido e do Direito Canónico renovado (Direito Comum)
As fontes de Direito Português na época da receção do Direito Romano renascido e do
Direito Canónico renovado são marcadas por dois vetores:
- Progressiva autonomização do Direito Português face aos Direitos dos outros Reinos
da Península Ibérica, passando as fontes de Direito Português a assumir principal
destaque na criação de Direito e deixando-se de recorrer às fontes do Reino de Leão.
- Introdução do Direito Romano renascido e do Direito Canónico renovado.
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Na época da receção do Direito Romano renascido e do Direito Canónico renovado,
eram fontes de Direito Português:
→ Leis dos monarcas: Graças ao reforço da autoridade régia por influência do
Direito Romano renascido e do Direito Canónico renovado, verifica-se um grande
aumento da atividade legislativa do Rei. Inicia-se, assim, o caminho rumo ao
Absolutismo, passando a lei a ser considerada como um produto da vontade do
soberano, sendo elaborada sem necessidade do suporte político das Cortes. No exercício
da sua atividade legislativa, os Reis recorriam ao apoio técnico de juristas de formação
romanística e canonística.
Uma vez que a imprensa ainda não tinha sido inventada, as leis dos monarcas eram
manuscritas e reproduzidas através de cópias. Os originais das leis ficavam conservados
numa repartição oficial, nomeadamente na Chancelaria Régia. A publicação das leis era
realizada através dos tabeliães e o início da sua vigência terá sido de aplicação imediata.
→ Resoluções régias: As resoluções régias tratavam-se de providências legislativas
tomadas pelos Reis em resposta a agravamentos (reclamações) colocados pelos
representantes das três classes sociais nas Cortes.
→ Costume: O costume perdeu muita da importância que tinha no período da
individualização do Direito Português a favor da lei que passou a ser a principal fonte
de criação de Direito. Além disso, por influência das conceções romanísticas, o
costume, além de ser entendido como uma mera manifestação tácita do consenso do
povo, passou também a ser entendido como expressão da vontade tácita do Rei. Ou seja,
se o Rei não produzisse leis contrárias ao costume, era porque tacitamente o aceitava.
→ Foros, costumes ou estatutos municipais: Os forais continuaram a ter grande
importância como fonte de Direito local. Contudo, nesta época, surgiram, ao lado dos
forais, os foros, costumes ou estatutos municipais que consistiam em compilações de
normas concelhias, concedidas aos municípios ou até organizadas pelos próprios
munícipes. As normas contidas nos foros, costumes ou estatutos municipais podiam ser
de Direito Político, de Direito Administrativo, de Direito Privado e até de Direito e
Processo Penal.
Diferença entre forais e foros, costumes e estatutos municipais:
Na elaboração dos foros, costumes ou estatutos municipais, utilizaram-se preceitos
consuetudinários, decisões judiciais, opiniões de juristas, normas municipais já
vigentes a respeito da polícia, higiene e economia e até mesmo normas jurídicas
inovadoras de natureza legislativa, sendo consequentemente mais extensos que os
forais.
→ Concórdias e concordatas: As concórdias (acordos entre o Rei e autoridades
eclesiásticas nacionais) e as concordatas (acordos entre o Rei e o Papa) continuaram a
ter grande importância como fonte de Direito Português.
→ Direito subsidiário: Apesar da variedade de fontes de Direito Português,
existiam ainda muitos e frequentes casos omissos, ou seja, situações para as quais não
se encontrava solução no sistema jurídico nacional. Nesta época, o problema do
preenchimento das lacunas ficou ao critério dos juristas e dos tribunais. Só mais tarde,
com as Ordenações Afonsinas, o legislador estabeleceu uma regulamentação completa
sobre o preenchimento das lacunas.
Os juristas e os tribunais recorriam em larga escala ao Direito Romano renascido e ao
Direito Canónico renovado para preencher as lacunas do Direito Português. Porém,

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como o acesso às fontes romano-canónicas era difícil, uma vez que eram escritas em
latim, os juristas e os tribunais utilizavam como fonte de Direito subsidiário obras
jurídicas castelhanas de conteúdo romano-canónico que circulavam em Portugal,
nomeadamente as “Flores de Derecho”, os “Nueve Tiempos de los Pleitos”, o “Fuero
Real” e as “Siete Partidas”. A utilização destas obras como fonte de Direito subsidiário
não se devia à existência de uma ligação intrínseca entre o Reino de Portugal e Castela,
mas antes ao conteúdo romano-canónico que lhes servia de alicerce. Tanto é assim que
a utilização abusiva destas obras jurídicas castelhanas em detrimento da utilização de
preceitos de Direito Romano e de Direito Canónico foi objeto, nos meados do século
XIV, de protestos levados a D. Pedro I e que foram por este acolhidos. Começaram
então a aparecer traduções originais dos textos de Direito Romano e Direito Canónico,
bem como de obras científicas que os estudavam de forma a que os juristas e os
tribunais pudessem ter acesso direto a fontes romano-canónicas.
7.2.1.5 Coletâneas privadas de leis gerais anteriores às Ordenações Afonsinas
Como já foi mencionado, na época da receção do Direito Romano renascido e do
Direito Canónico renovado houve um grande aumento da atividade legislativa do Rei,
sendo produzido um elevado número de leis. Esse grande aumento do número de leis
conduziu a problemas de conhecimento dessas mesmas leis dada a sua dispersão. Por
conseguinte, sentiu-se a necessidade de reunir e sistematizar tais leis num único corpo.
Foi assim que, ainda antes das Ordenações Afonsinas, surgiram coletâneas privadas de
leis do Reino de Portugal que não foram objeto de uma promulgação legislativa, não
sendo, assim, oficiais, embora as leis nelas contidas tivessem sido promulgadas.
→ Há a dúvida se estas compilações já seriam trabalhos preparatórios das Ordenações
Afonsinas. Contudo, esta hipótese nunca chegou a ser confirmada.
Apenas duas coletâneas chegaram até nós:
- Livro das Leis e Posturas: O Livro das Leis e Posturas consiste numa coletânea onde
se encontravam leis de D. Afonso II, D. Afonso III, D. Dinis e ainda de D. Afonso IV.
Não se trata de uma obra de coordenação da legislação, mas antes de mera reunião, uma
vez que não há qualquer plano sistemático e verifica-se até uma repetição de algumas
leis, em diversos lugares, com variantes significativas.
- Ordenações de D. Duarte: As Ordenações de D. Duarte não são, como se poderia
supor, umas Ordenações propriamente ditas, devidas a este monarca. Trata-se, antes, de
uma coletânea que pertenceu à biblioteca de D. Duarte, que lhe acrescentou um índice
da sua autoria e um discurso sobre as virtudes do bom julgador. Nesta obra, não só
existe um maior número de leis do que no Livro das Leis e Posturas, como também são
já raras as repetições de leis, encontrando-se organizadas por reinados e, dentro de cada
reinado, por matérias, sendo evidente um plano de organização.
7.2.1.6 Aspetos do sistema jurídico da época
Substituição do empirismo jurídico: O empirismo jurídico que tinha caracterizado o
Direito Português no período da individualização do Direito Português é substituído por
um Direito de base científica, graças à difusão do Direito Romano renascido e à
penetração do Direito Canónico renovado.
No Direito Político: No âmbito do Direito Político, assinala-se uma grande tendência
de desenvolvimento e de concentração do poder real.
No Processo Criminal: Quanto ao Processo Criminal, verifica-se uma cisão entre o
Processo Civil e o Processo Criminal, prevalecendo no Processo Criminal um sistema
de índole inquisitória (em que o juiz está ativamente envolvido na investigação dos

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factos do caso), contrapondo-se ao antigo sistema de índole acusatória (em que o juiz
desempenha um papel de árbitro imparcial).
No Direito Criminal: No âmbito do Direito Criminal, o Rei concentra
progressivamente na sua figura o poder de punir, combatendo-se os fenómenos de
justiça privada. Assim, dão-se importantes passos para a uniformização dos delitos e das
penas aplicáveis a esses delitos, o que vai pôr cobro aos particularismos foraleiros, ou
seja, aos delitos e às penas aplicáveis a esses delitos determinados ao nível local. Para
além disso, apura-se uma certa tendência para o predomínio das sanções corporais (ex.
pena de morte, açoites no pelourinho, corte de membros, agulhas de albardeiro pela
língua, etc.) em detrimento das sanções pecuniárias que marcaram o período anterior.
No Direito Privado: No âmbito do Direito Privado, assiste-se a uma enorme influência
do Direito Romano renascido ao nível do Direito das Obrigações, dos Direitos Reais e
do Direito das Sucessões. Em algumas matérias, todavia, também se assistiu a uma
grande influência do Direito Canónico, especialmente ao nível do Direito da Família
(ex. casamento).
7.2.2 Época das Ordenações
A época das Ordenações tem o seu início em 1446-1447 (início de vigência das
Ordenações Afonsinas) e termina em 1769-1772 (Reformas Pombalinas).
7.2.2.1 Ordenações Afonsinas
1) Elaboração e publicação das Ordenações Afonsinas
Vários foram os pedidos feitos pelos representantes das três classes sociais nas Cortes
para se proceder à elaboração de uma coletânea do Direito vigente no Reino de Portugal
que evitasse o desconhecimento das leis devido à sua dispersão e que facilitasse a vida
jurídica e a administração da justiça. Nesse sentido, D. João I encarregou um jurista de
alto nível e corregedor da Corte (representante da Coroa no Tribunal da Corte) de seu
nome João Mendes de preparar essa obra. Acontece que D. João I e João Mendes
faleceram antes de a obra estar concluída. Por conseguinte, o sucessor de D. João I, D.
Duarte, encarregou outro jurista de elevado nível de seu nome Rui Fernandes de
prosseguir os trabalhos. Ainda assim, a obra não estaria concluída no fim do reinado de
D. Duarte. O falecimento deste Rei, todavia, não pôs cobro aos trabalhos preparatórios
da obra pretendida, tendo o Infante D. Pedro, regente na menoridade de D. Afonso V,
dado todo o apoio a Rui Fernandes para que este continuasse e terminasse o trabalho.
Assim, a 28 de Julho de 1446, Rui Fernandes dá por concluída a tarefa que lhe foi
confiada. Depois de concluída, a obra foi submetida à apreciação de uma comissão de
juristas da qual fazia parte o próprio Rui Fernandes. Após ter recebido alguns retoques,
procedeu-se à publicação da coletânea legislativa oficial, com o título de Ordenações,
em nome de D. Afonso V. Daí serem conhecidas por Ordenações Afonsinas.
2) Início de vigência das Ordenações Afonsinas
A entrega e a publicação da obra concluída das Ordenações Afonsinas ocorreram nos
anos de 1446 e 1447. Mais difícil é a determinação do ano que marca o início da sua
vigência, uma vez que não havia, na época, uma regra que regulasse a entrada em vigor
dos diplomas legais. Além disso, a imprensa ainda não tinha sido inventada, pelo que as
Ordenações tinham que ser manuscritas, tornando-se morosa a sua difusão por todo o
País. Tendo tudo isto em linha de conta, é de concluir que a aplicação generalizada das
Ordenações Afonsinas não ocorreu antes de 1450, havendo até quem diga que nunca
chegaram a ser aplicadas em termos gerais.

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3) Fontes utilizadas na elaboração das Ordenações Afonsinas
As Ordenações Afonsinas não foram uma obra particularmente inovadora, limitando-se
a sistematizar o Direito vigente no Reino de Portugal. Na sua elaboração, utilizaram-se
as várias fontes de Direito que já eram aplicadas: leis dos monarcas, resoluções régias,
costumes, concórdias e concordatas, preceitos de obras castelhanas (especialmente das
“Siete Partidas”), textos de Direito Romano e de Direito Canónico, etc.
4) Sistematização e conteúdo das Ordenações Afonsinas
As Ordenações Afonsinas eram compostas por 5 livros, talvez por influência das
Decretais de Gregório IX, e cada livro era precedido de um proémio (introdução). Os
livros dividiam-se em títulos e estes dividiam-se geralmente em parágrafos.
Quanto ao conteúdo das Ordenações Afonsinas cabe considerar o seguinte:
Livro I: O livro I continha matérias de Direito Administrativo, ocupando-se dos
regimentos dos diversos cargos públicos, tanto régios como municipais, compreendendo
o Governo, a Justiça, a Fazenda e o Exército.
Livro II: O livro II continha matérias jurídico-políticas ou constitucionais, ocupando-se
dos bens e privilégios da Igreja, dos direitos do Rei e sua cobrança, das prorrogativas da
nobreza e do estatuto dos Judeus e dos Mouros.
Livro III: O livro III trata do Processo Civil.
Livro IV: O livro IV ocupava-se dos vários ramos do Direito Civil, ou seja, o Direito
das Obrigações, Direito das Coisas, Direito da Família e Direito das Sucessões.
Livro V: O livro V disciplinava o Direito e Processo Criminal.
5) Técnica legislativa utilizada na elaboração das Ordenações Afonsinas
Existiam dois tipos de técnicas legislativas:
-» Estilo compilatório: O estilo compilatório consiste na transcrição das fontes
anteriores, declarando-se seguidamente os termos em que esses preceitos eram
confirmados, modificados ou afastados.
-» Estilo decretório ou legislativo: O estilo compilatório consiste na formulação
direta das normas, sem referência às fontes anteriores.
Na elaboração das Ordenações Afonsinas, utilizou-se, em regra, o estilo compilatório,
só tendo sido utilizado o estilo decretório em quase todo o livro I. Alega-se que tal se
deve ao facto de este livro ter sido elaborado por João Mendes, enquanto que todos os
outros terem sido elaborados por Rui Fernandes. Contudo, não parece que seja este o
verdadeiro motivo. A explicação deve antes residir no facto de a matéria do livro I ser
de índole administrativa e burocrática, sendo menos dogmática que nos demais livros.
6) Importância das Ordenações Afonsinas
As Ordenações Afonsinas foram um marco histórico da evolução do Direito Português.
Através delas, consolidou-se a autonomização do Direito Português na Península
Ibérica, sendo o Direito Romano e o Direito Canónico colocados no papel de fontes de
Direito subsidiário. Além disso, toda a evolução subsequente do Direito Português
assenta nas Ordenações Afonsinas, tendo-se procedido somente à sua atualização.
7.2.2.2 Ordenações Manuelinas
1) Elaboração das Ordenações Manuelinas
A vigência das Ordenações Afonsinas durou relativamente pouco tempo. Logo em
1505, D. Manuel I encarregou uma comissão de juristas de procederem à atualização
das Ordenações do Reino de Portugal. Apontam-se dois motivos para esta pretensão:
1) Devido à introdução da imprensa em Portugal, as Ordenações seriam uma das
primeiras obras a serem impressas. Por conseguinte, convinha que se procedesse a uma
revisão e atualização das ditas Ordenações.
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2) D. Manuel I assistiu aos pontos mais altos da época dos Descobrimentos e era
conhecido o seu ímpeto reformador. Logo, não lhe devia ser indiferente ligar o seu
nome a uma grande reforma legislativa.
A obra só ficou concluída em 1521, no ano da morte de D. Manuel I. Por ter sido
publicada em nome deste Rei, ficou conhecida como Ordenações Manuelinas.
2) Sistematização e conteúdo das Ordenações Manuelinas
Quanto à sistematização, as Ordenações Manuelinas eram, à semelhança das
Ordenações Afonsinas, compostas por 5 livros, divididos em títulos e estes, por sua vez,
em parágrafos. Quanto ao conteúdo, manteve-se a distribuição das matérias das
Ordenações Afonsinas, embora seja de assinalar consideráveis alterações:
1. Supressão dos preceitos relativos aos Judeus e aos Mouros que, entretanto, tinham
sido expulsos do País por não se terem convertido ao Catolicismo.
2. Autonomização de umas Ordenações da Fazenda relativas à matéria financeira
3. Inclusão da disciplina da interpretação vinculativa da lei através dos assentos da Casa
da Suplicação
4. Alterações em matéria de Direito subsidiário
3) Técnica legislativa utilizada na elaboração das Ordenações Manuelinas
Na elaboração das Ordenações Manuelinas, utilizou-se o estilo decretório ou legislativo.
7.2.2.3 Coleção das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião
Devido à acelerada dinâmica legislativa, as Ordenações Manuelinas viram-se
rapidamente rodeadas por inúmeras leis extravagantes que revogavam, alteravam ou
esclareciam muitos dos seus preceitos ou que ofereciam matérias inovadoras e por
muitas interpretações vinculativas da lei feitas através de assentos da Casa da
Suplicação. Sendo assim, tornava-se essencial proceder à elaboração de uma coletânea
que complementasse as Ordenações Manuelinas. Nesse sentido, o Cardeal D. Henrique,
regente na menoridade do Rei D. Sebastião, encarregou o jurista Duarte Nunes do Lião
de organizar uma coletânea do Direito extravagante, ou seja, das leis e assentos que
vigoravam fora das Ordenações Manuelinas. Duarte Nunes Lião, em vez de uma
transcrição das leis e dos assentos extravagantes, procedeu à sua síntese para tornar a
nova coletânea menos volumosa. Tal síntese das leis e dos assentos extravagantes foi
promulgada oficialmente por um Alvará de 14 de Fevereiro de 1569, com o nome de
Coleção das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião, que lhe atribuiu a mesma
autoridade dos preceitos originais.
7.2.2.4 Ordenações Filipinas
1) Elaboração das Ordenações Filipinas
As Ordenações Manuelinas não foram uma obra particularmente inovadora e a Coleção
das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião, que lhe serviu de complemento, não
passou de uma simples obra intercalar. Uma reforma profunda das Ordenações
Manuelinas tornava-se cada vez mais urgente.
Nesse sentido, D. Filipe I de Portugal ordenou a elaboração de umas novas Ordenações,
o que lhe daria a oportunidade de mostrar respeito pelas instituições portuguesas e
empenho em atualizá-las dentro da tradição jurídica portuguesa, uma vez que a sua
posição não era consensual. Os trabalhos preparatórios das novas Ordenações
começaram entre 1583 e 1585, tendo a obra ficado concluída em 1595. Todavia, as
novas Ordenações Filipinas apenas foram oficialmente publicadas pela Lei de 11 de
Janeiro de 1603, entrando em vigor nessa mesma data, já em pleno reinado de D. Filipe
II de Portugal. As Ordenações Filipinas acabaram por se tornar nas mais duradouras em
Portugal.

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2) Sistematização e conteúdo das Ordenações Filipinas
Quanto à sistematização, as Ordenações Filipinas continuam a ser divididas em 5 livros,
subdivididos em títulos e em parágrafos.
As Ordenações Filipinas tratam-se de uma obra muito pouco inovadora, reunindo e
sistematizando os preceitos das Ordenações Manuelinas e os preceitos subsequentes que
se mantinham em vigor, muitos deles reunidos na Coleção das Leis Extravagantes de
Duarte Nunes do Lião. Contudo, quanto ao conteúdo, introduziram-se certas alterações:
1. A matéria relativa ao Direito subsidiário passou do livro II para o livro III, o que,
como se verá adiante, revela uma perspetiva muito diferente do problema do
preenchimento de lacunas.
2. Pela primeira vez é disciplinado em Portugal o chamado Direito da Nacionalidade,
i.e., um conjunto de preceitos que disciplinam a obtenção da nacionalidade portuguesa.
3) Confirmação das Ordenações Filipinas por D. João IV
As Ordenações Filipinas sobreviveram à Revolução de 1 de Dezembro de 1640. Nesse
ano, D. João IV, através de uma Lei de 29 de Janeiro de 1643, confirmou expressamente
a vigência das Ordenações Filipinas, afirmando que estas seriam objeto de uma reforma,
o que, porém, não se concretizaria.
4) Os filipismos
Devido ao próprio contexto político em que os Reis castelhanos estavam inseridos, as
Ordenações Filipinas foram elaboradas dentro de um espírito de grande contenção para
não melindrar sentimentos nacionalistas portugueses. Assim, os compiladores filipinos
limitaram-se a acrescentar o novo ao antigo, reduzindo-se ao mínimo as inovações. Daí
subsistirem normas revogadas ou caídas em desuso, verificarem-se frequentes faltas de
clareza e até contradições devido à inclusão de disposições opostas a outras que não
foram eliminadas. Ora, a ausência de originalidade e os defeitos mencionados
receberam, pelos finais do século XVIII, a designação de “filipismos”.
7.2.2.5 Fontes de Direito Pátrio segundo as Ordenações
→ Lei:
1) Conceito amplo de lei
Na época das Ordenações, a lei tinha um sentido mais amplo do que aquele que se
conhece hoje em dia, sendo qualificada como toda e qualquer manifestação da vontade
do soberano destinada a introduzir alterações na ordem jurídica estabelecida. Ainda que
se reconhecesse que a lei devia ter um caráter geral e abstrato, eram qualificados como
leis diplomas sem tais características.
2) Principais diplomas desta época
A criação de Direito continuava ainda centralizada no monarca. Contudo, a sua vontade
manifestava-se de formas diversas, podendo-se distinguir vários tipos de diplomas. Os
mais importantes foram as cartas de lei e os alvarás que apresentavam como traço
comum o facto de passarem pela Chancelaria Régia:
- Cartas de lei: As cartas de lei começavam pelo nome próprio dos monarcas (ex.
“Dom Manoel per graça de Deus Rey de Portugal…”), surgindo na assinatura a
expressão “ElRei”.
-» As disposições que se destinassem a vigorar mais do que um ano eram
promulgadas em carta de lei.
- Alvarás: Os alvarás começavam pela expressão “Eu El-Rei”, surgindo na assinatura
apenas a palavra “Rei”.
-» As disposições que se destinassem a vigorar menos de que um ano eram
promulgadas em alvará.

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A verdade é que a distinção entre as cartas de lei e os alvarás foi uma distinção que, na
prática, não teve consistência, sendo os dois tipos de diplomas confundidos. Surgiram,
assim, as figuras de alvarás de lei, alvarás com força de lei ou alvarás em forma de lei.
3) Publicação e início de vigência da lei
Quanto à publicação da lei, as Ordenações Afonsinas nada regulavam sobre o assunto.
Só com as Ordenações Manuelinas passou a existir uma regulamentação legal sobre a
publicação da lei. Aí se estabeleceu que o Chanceler-Mor deveria publicar os diplomas
legais na Chancelaria da Corte e enviar cópias dos diplomas publicados aos
corregedores das Comarcas (representantes da Coroa nas Comarcas). Esta
regulamentação transitou tal e qual para as Ordenações Filipinas.
Quanto ao início de vigência da lei, tal assunto foi tratado num Alvará de 10 de
Dezembro de 1518 que estabeleceu que as leis entrariam em vigor em todo o País
decorridos 3 meses sobre a sua publicação na Chancelaria da Corte. As Ordenações
Manuelinas mantiveram esse prazo quanto às Comarcas, mas reduziram-no para 8 dias
quanto à Corte. As Ordenações Filipinas mantiveram os prazos estabelecidos nas
Ordenações Manuelinas. No que diz respeito ao Ultramar, um diploma de 1749 veio
estabelecer que a lei só se tornava obrigatória depois de publicada nas cabeças das
Comarcas do Ultramar.
→ Estilos da Corte:
1) Conceito de estilo da Corte
Os estilos da Corte consistiam na jurisprudência uniforme e constante dos tribunais
superiores (Casa da Suplicação, Casa do Cível e Relações), em rigor, apenas a
jurisprudência proferida pela Casa da Suplicação que era o Tribunal Supremo do Reino.
2) Requisitos que os estilos da Corte deveriam obedecer para serem fonte de
Direito Português
De acordo com a opinião dominante, exigia-se que o estilo da Corte:
1. Não fosse contrário às leis do monarca.
2. Tivesse 10 ou mais anos de antiguidade.
3. Fosse introduzido, pelo menos, através de dois atos conformes do tribunal
superior, ou seja, a jurisprudência tinha que se manifestar pelo menos duas vezes
através de dois atos conformes.
→ O estilo da Corte acaba por ser um costume judicial, ou seja, um modo de decidir
que se repete no tempo.
Em 1605, um diploma régio estabeleceu que os estilos da Corte da Casa da Suplicação,
se fossem objeto de dúvidas ou alterações, deviam ser objeto de assentos.
→ Costume:
1) Relação entre costume e lei
O costume manteve-se como fonte de Direito Português em qualquer das suas relações
com a lei, podendo ser:
-» Costume conforme à lei (secundum legem) - Costume consagra uma solução
idêntica à lei.
-» Costume para além da lei (praeter legem) - Costume regula matérias que a lei
não regula.
-» Costume contra a lei (contra legem) - Costume consagra uma solução oposta à
solução consagrada pela lei.
Porque é que, nesta época, se admitia o costume contra legem?
-» Na época das Ordenações, o costume, além de ser entendido como a mera

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manifestação tácita do consenso do povo, era também entendido como sendo a
expressão da vontade tácita do monarca. Sendo assim, se o Rei não produzisse leis
contrárias ao costume, era porque tacitamente o aceitava.
2) Costume nas Ordenações
As Ordenações Afonsinas limitaram-se a consagrar a vigência do costume do Reino
“antigamente usado”. Já as Ordenações Manuelinas, e no seu seguimento as Ordenações
Filipinas, estabeleceram que os costumes locais tinham a mesma validade dos costumes
gerais. Contudo, restringiram a vigência dos costumes, tanto gerais como locais, como
fonte de Direito Português às situações em que as doutrinas romanísticas e canonísticas
admitissem a sua vigência.
3) Requisitos que o costume deveria obedecer para ser fonte de Direito Português
Perante a restrição da vigência dos costumes como fonte de Direito Português às
situações em que as doutrinas romanísticas e canonísticas admitissem a sua vigência,
eram dois os requisitos para a vigência do costume como fonte de Direito Português:
1. Quanto à antiguidade, exigia-se que o costume tivesse uma duração mínima de 10
anos, embora no âmbito do Direito Canónico, houvesse vários autores que exigiam para
o costume contra legem uma vigência mínima de 40 anos.
2. Quanto ao número de atos necessários à demonstração da vigência do costume,
verificava-se um grande desencontro de opiniões doutrinais que iam da exigência de um
ato até aos que entendiam que eram necessários 10 atos. Contudo, mostrou-se mais
seguida a opinião que se contentava com dois atos de natureza judicial.
7.2.2.6 Interpretação vinculativa da lei através dos assentos da Casa da Suplicação
1) Competência
Um Alvará de 10 de Dezembro de 1518 atribuiu à Casa da Suplicação, Tribunal
Superior do Reino de Portugal, a competência para proceder à interpretação da lei com
sentido universalmente vinculativo para o futuro através de assentos. Os preceitos desse
Alvará transitaram para as Ordenações Manuelinas e para as Ordenações Filipinas.
2) Procedimento
Determinou-se no Alvará que, surgindo dúvidas aos desembargadores da Casa da
Suplicação sobre o entendimento de algum preceito legal, tais dúvidas deveriam ser
levadas ao regedor do mesmo tribunal. Este convocaria os desembargadores que
entendesse e, com eles, fixava a interpretação que se considerasse mais adequada. Se
subsistissem dificuldades quanto à fixação dessa interpretação, o regedor poderia levar
as dúvidas ao monarca que proferia uma resolução sobre o assunto. As soluções que
ficassem definidas eram registadas no Livro dos Assentos e tinham força imperativa
para futuros casos idênticos. Surgem, deste modo, os assentos da Casa da Suplicação
como jurisprudência obrigatória para o futuro.
3) Abusos
A Casa da Suplicação era o Tribunal Superior do Reino de Portugal que acompanhava
a Corte, embora, mais tarde, se fixasse em Lisboa. Nesta mesma cidade funcionava
permanentemente a Casa do Cível que constituía uma segunda instância e era
competente para:
1. Conhecer dos recursos das causas cíveis de todo o País, exceto se a sentença da
primeira instância fosse proferida no local onde se encontrasse a Corte e cinco léguas
em redor, sendo, nestes casos, o recurso apreciado pela Casa da Suplicação.
2. Conhecer dos recursos das causas criminais provenientes de Lisboa, sendo os
demais recursos apreciados pela Casa da Suplicação.

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O facto de a Casa da Suplicação e a Casa do Cível estarem concentradas, em regra, em
Lisboa, levou as populações do Norte do País a solicitarem várias vezes que um
Tribunal de Recurso estivesse mais próximo delas. Este desejo foi concretizado por D.
Filipe I de Portugal, tendo deslocado, em 1582, a Casa do Cível para o Porto,
transformando-a na Casa da Relação do Porto. A Casa da Relação do Porto
funcionava como tribunal de segunda e de última instância e era competente para:
1. Conhecer dos recursos das causas cíveis dos Tribunais da Comarca do Norte do
País, ou seja, entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beiras, exceto se o valor da causa
ultrapassasse um determinado montante, a chamada alçada, hipótese em que existiria
possibilidade de recurso para a Casa da Suplicação.
2. Conhecer dos recursos das causas criminais dos Tribunais da Comarca do Norte
do País, ou seja, entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beiras, com exceção de
Castelo Branco por estar mais próximo de Lisboa.
→ Isto mostra que havia alguma subordinação da Casa da Relação do Porto perante a
Casa da Suplicação.
Contudo, apesar de as Ordenações serem claras ao atribuir apenas à Casa da Suplicação
competência para proferir assentos, os desembargadores da Casa da Relação do Porto
começaram igualmente a proferi-los, o que, apesar de não existir qualquer base legal
que lhes atribuísse tal competência, foi seguido pelos Tribunais da Relação entretanto
criados no Ultramar (Goa, Bahia e Rio de Janeiro). Apenas no século XVIII, com a Lei
da Boa-Razão, se pôs cobro a estes abusos, reafirmando-se que só a Casa da Suplicação
tinha competência de proferir assentos.
7.2.2.7 Fontes de Direito subsidiário segundo as Ordenações
1) Problema do Direito subsidiário
Quando o Direito Pátrio não consagrava nenhuma solução para uma determinada
situação concreta, recorria-se ao Direito subsidiário para o preenchimento da lacuna
verificada. Entende-se por Direito subsidiário um sistema de normas jurídicas usado
para colmatar ou preencher as lacunas de outro sistema. O Direito subsidiário tanto pode
ser geral como especial:
- Direito subsidiário geral: Sistema de normas jurídicas usado para colmatar ou
preencher as lacunas de uma ordem jurídica na sua totalidade.
- Direito subsidiário especial: Sistema de normas jurídicas usado para colmatar ou
preencher as lacunas de um determinado ramo do Direito ou simples instituição.
Neste período, não existia, por um lado, uma verdadeira autonomia dos diversos
ordenamentos jurídicos nacionais e, por outro lado, pretensões de autossuficiência de
regulamentação da vida social. Sendo assim, entre os séculos XIII e XVIII,
compreende-se o sistema jurídico português como estando inserido no sistema jurídico
mais vasto do Direito Comum romano-canónico, ao qual era natural recorrer para
encontrar soluções que as fontes de Direito Pátrio não ofereciam. Só a partir dos séculos
XVIII e XIX, com o movimento codificador, deixou de ser assim.
2) Fontes de Direito subsidiário segundo as Ordenações Afonsinas
Como já foi referido, só com as Ordenações Afonsinas passou a existir uma
regulamentação completa sobre o preenchimento das lacunas. Assim, as Ordenações
Afonsinas estabeleceram que só na falta de Direito Pátrio (leis, estilos da Corte ou
costumes) se deveria recorrer às seguintes fontes de Direito subsidiário, só se passando
para a fonte de Direito subsidiário seguinte se não houvesse resposta na anterior:
→ Direito Romano e Direito Canónico: Na falta de Direito Pátrio, deviam ser
utilizados, antes de mais, os textos de Direito Romano (leis imperiais) e de Direito

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Canónico (santos cânones). Em questões jurídicas de natureza espiritual, era aplicável o
Direito Canónico. Já em questões jurídicas de natureza temporal, era aplicável o Direito
Romano, exceto se da sua aplicação resultasse pecado, sendo, nesta hipótese, aplicável o
Direito Canónico.
-» Exemplo: Enquanto o Direito Romano aceitava a usucapião (aquisição do
direito de propriedade pelo exercício da posse por determinado tempo) a favor do
possuidor de má-fé ao fim de 30 anos, o Direito Canónico rejeitava-o por ser pecado
adquirir o direito de propriedade, sabendo-se que se prejudicava outra pessoa.
→ Glosa de Acúrsio: Se não se encontrasse solução para o caso omisso nas fontes
de Direito Pátrio, nem nos textos de Direito Romano e de Direito Canónico, devia
utilizar-se a Glosa de Acúrsio.
→ Opinião de Bártolo: Não havendo também resposta na Glosa de Acúrsio, havia
que consultar a Opinião de Bártolo, mesmo que houvesse autores que tivessem sobre o
assunto uma opinião diferente daquela do principal representante da Escola dos
Comentadores, o que era justificado pelo grande prestígio e racionalidade de Bártolo,
bem como por ser a prática corrente desde os tempos de D. João I.
→ Resolução do monarca: Se das fontes anteriores não se conseguisse solução para
o caso omisso, devia ser consultado o Rei que proferiria uma resolução que valeria para
os futuros casos semelhantes. Dever-se-ia consultar o Rei ainda nas situações em que,
não envolvendo pecado, nem tendo solução no Direito Romano, tivessem soluções
diversas no Direito Canónico, na Glosa de Acúrsio e na Opinião de Bártolo.
Este procedimento estabelecido nas Ordenações Afonsinas sofreu algumas alterações
nas Ordenações seguintes:
3) Alterações introduzidas pelas Ordenações Manuelinas
Apesar de as fontes de Direito subsidiário terem permanecido as mesmas, foram três as
alterações introduzidas pelas Ordenações Manuelinas:
1. O legislador manuelino teve o cuidado de justificar a vigência subsidiária do
Direito Romano em Portugal devido à sua autoridade intrínseca, i.e., à sua racionalidade
e ao seu valor intelectual, assim se afastando qualquer ideia de uma subordinação do
Reino Português ao Sacro Império Romano-Germânico.
2. Quanto à aplicação dos textos de Direito Romano e de Direito Canónico, deixou-
se de distinguir entre questões jurídicas de natureza temporal e questões jurídicas de
natureza espiritual, apenas se consagrando o critério do pecado. Assim, fosse qual fosse
a natureza temporal ou espiritual do caso omisso, era-lhe aplicável o Direito Romano e,
só se da sua aplicação resultasse pecado, se aplicaria o Direito Canónico. Tal conduziu a
um aumento da importância do Direito Romano em relação ao Direito Canónico.
3. Apesar de se manter a ordem de precedência entre a Glosa de Acúrsio e a Opinião
de Bártolo, estabeleceu-se que tais fontes de Direito subsidiário só seriam aplicáveis se
não fossem contrariadas pela opinião comum dos doutores. Contudo, quanto a Bártolo,
apenas seria tida em conta a opinião comum dos doutores formada depois dele. Poder-
se-á afirmar que a opinião comum dos doutores começou a ser um filtro da aplicação
subsidiária da Glosa de Acúrsio e da Opinião de Bártolo.
4) Alterações introduzidas pelas Ordenações Filipinas
Apesar de as fontes de Direito subsidiário terem permanecido as mesmas, as
Ordenações Filipinas transferiram a regulamentação do Direito subsidiário do livro II,
onde era até aí disciplinado a propósito das relações entre o Estado e a Igreja, para o
livro III relativo ao Processo Civil. Com esta alteração, o legislador filipino quis mostrar

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que o problema do preenchimento das lacunas era uma simples questão técnico-jurídica
e já não uma decorrência de qualquer conflito entre o poder temporal, simbolizado pelo
Direito Romano, e o poder espiritual, simbolizado pelo Direito Canónico.
5) Utilização das fontes de Direito subsidiário na prática dos tribunais
Apesar de as sucessivas Ordenações se terem preocupado com a hierarquização das
fontes de Direito Pátrio e de Direito subsidiário, ela foi frequentemente desrespeitada na
prática dos tribunais. Muitas vezes deu-se prevalência ao Direito Romano sobre o
Direito Pátrio, o que violava grosseiramente a letra e o espírito da lei. Por outro lado,
especialmente nos tribunais superiores, abusava-se da aplicação da opinião comum dos
doutores, dando-lhe nomeadamente prioridade como fonte de Direito sobre a Glosa de
Acúrsio e a Opinião de Bártolo quando as Ordenações lhe davam apenas o papel de
filtro destas fontes. Chegou até a ser aplicado nos tribunais portugueses o Direito
Castelhano que estava fora do quadro de fontes previsto pelas Ordenações.
7.2.2.8 Reforma dos forais
Os forais, que tinham tido grande importância como fontes de Direito local, foram-se
desatualizando pelas seguintes causas:
1) Uma parte do seu conteúdo foi sendo revogada por legislação régia, designadamente
os preceitos respeitantes à Administração Pública, ao Processo Civil e ao Direito e
Processo Criminais.
2) As suas normas relativas a encargos e isenções tributárias tornaram-se obsoletas, pois
referiam-se a pesos, moedas e medidas que já não se usavam.
3) A atualização das prestações devidas pelos habitantes foi sendo feita através de
providências que visavam enfrentar o problema da sucessiva desvalorização monetária,
mas a verdade é que originaram incertezas e arbitrariedades.
4) Dada a sua antiguidade, apresentavam um elevado estado de deterioração, não
permitindo a sua correta leitura nem oferendo garantias de autenticidade.
5) O progressivo robustecimento do poder do Rei e a uniformização jurídica
conduziram ao declínio das instituições concelhias, tornando-se os forais em meros
registos de tributos dos municípios.
Assim, na segunda metade do século XV, nos reinados de D. Afonso V e de D. João II,
os procuradores dos concelhos nas Cortes, realizadas em Coimbra, Évora e Viana do
Alentejo, solicitaram aos monarcas que se procedesse a uma reforma dos forais para se
pôr cobro às opressões que os habitantes das terras sofriam. Foi assim que, em 1481, D.
João II determinou que os forais fossem enviados à Corte para se proceder à sua
reforma, sob pena de perderem validade. Esta reforma não estaria concluída quando D.
João II falece. Por isso, já no reinado de D. Manuel I, os representantes dos municípios
voltaram a solicitar uma reforma dos forais ao Rei. Assim, D. Manuel I ordenou que
fossem enviados à Corte todos os forais que ainda não haviam sido entregues e nomeou
uma comissão, na qual se destacou Fernão de Pina, que foi encarregue de reformar os
forais. Esta reforma demorou mais de 20 anos e só ficou concluída em 1520, ainda no
reinado de D. Manuel I. Surgiram, deste modo, os chamados “forais novos” ou “forais
manuelinos” que eram os que tinham sido objeto da reforma. Os forais anteriores
passaram a ser designados por “forais velhos”. Já os poucos forais que foram
concedidos depois da reforma eram conhecidos por “forais novíssimos”. Quanto ao
conteúdo, os forais novos ou manuelinos apresentavam um conteúdo muito mais
limitado do que aquele dos forais velhos, regulando apenas os encargos e tributos
devidos pelas populações ao Rei e aos senhores das terras. O anterior papel de estatutos
político-concelhios que os forais tiveram desapareceu, o que se compreende pelo
fortalecimento do poder do Rei e pela centralização da criação jurídica no monarca.

29
7.2.2.9 Humanismo Jurídico, Escola Culta, Escola Histórico-Crítica ou Escola
Cujaciana
O Renascimento foi um período histórico e um movimento cultural e intelectual que
assentou numa nova perspetiva de perceber o mundo: Passou-se de uma perspetiva
predominantemente teocêntrica que via Deus como o elemento central, para uma
perspetiva antropocêntrica que via o Homem como o centro do Mundo. Tais ideais
conduziram ao surgimento do Humanismo, um movimento intelectual que exerceu
grande influência nos variados ramos do saber, como por exemplo na ciência do Direito.
Fala-se, a este propósito, de Humanismo Jurídico, também conhecido como Escola
Culta, Escola Histórico-Crítica ou Escola Cujaciana. Esta última designação deriva de
Cujácio (Jacques Cujas), considerado o principal representante do Humanismo Jurídico.
1) Causas do seu aparecimento
O surgimento do Humanismo Jurídico deve-se essencialmente a dois fatores:
-» Por um lado, os ideais do Renascimento exerceram influência na ciência do Direito.
-» Por outro lado, ao longo da segunda metade do século XV, verifica-se uma
concomitante decadência da Escola dos Comentadores, passando o método escolástico
ou dialético a ser utilizado de forma rotineira e não-criativa e limitando-se os
Comentadores a repetir, na disputatio, os mesmos argumentos e os mesmos autores,
dando lugar ao império da opinião comum dos doutores.
2) Diferenças entre Humanismo Jurídico e Escola dos Comentadores
O Humanismo Jurídico, diferentemente da Escola dos Glosadores e da Escola dos
Comentadores que viam o Corpus Iuris Civilis como um conjunto de normas jurídicas
das quais se podia retirar soluções aplicáveis às situações concretas, via o Corpus Iuris
Civilis como um produto de uma época histórica. Os juristas desta Escola foram os
primeiros a iniciar o estudo crítico das fontes romanas e a procurar detetar as
interpolações (alterações que o Imperador Bizantino Justiniano autorizou a comissão a
fazer nos textos originais, aquando dos trabalhos compilatórios do Digesto, para
modernizar e acabar com as divergências do Direito Romano) nos textos justinianeus,
tal conduzindo a uma relativização da sua autoridade. Além disso, os juristas desta
Escola defenderam a liberdade e a autonomia do jurista na interpretação dos textos,
pondo em causa o respeito pela opinião comum dos doutores.
3) Precursores e apogeu da Escola
Indica-se como o grande iniciador do Humanismo Jurídico o jurista milanês Alciato
que, apesar de ser italiano, acabou por inaugurar o ensino do Direito Romano segundo a
nova metodologia jurídica em França, mais precisamente na Universidade de Bourges.
Este percurso de Alciato acabou por ser o percurso do próprio Humanismo Jurídico
porque, apesar de ter surgido em Itália, encontrou terreno fértil na França, Reino que
não aceitava o Sacro Império Romano-Germânico nem o Papado, procurando elevar o
seu próprio Direito. No entanto, considera-se a época de Cujácio como a época do
apogeu do Humanismo Jurídico.
4) Contraposição do Humanismo Jurídico ao Bartolismo
Porém, nem mesmo em França o Humanismo Jurídico conseguiu um triunfo absoluto
sobre o Bartolismo. Iria assistir-se, do século XVI ao século XVIII, a um debate entre o
método jurídico francês que seguia o Humanismo Jurídico (mos gallicus) e o método
jurídico italiano que seguia a Escola dos Comentadores (mos italicus). Como o mos
gallicus exigia uma preparação intelectual e erudita muito superior ao mos italicus
(conhecimentos linguísticos, históricos, etc.), durante muito tempo aquele método
jurídico não se conseguiu impor. A rotina dos tribunais e a generalidade da prática

30
jurídica continuou, assim, dominada pelo mos italicus até ao século XVIII. Só a partir
do século XVIII, com o Iluminismo, é que a influência do mos gallicus aumentou.
Em Portugal, nos anos seguintes à instalação definitiva da Universidade em Coimbra
por ordem de D. João III em 1537, houve um certo florescimento do Humanismo
Jurídico no estudo do Direito, merecendo a nova metodologia aceitação pelos doutores.
Ainda assim, o Bartolismo acabou por prevalecer sobre o Humanismo Jurídico até ao
século XVIII.
7.2.2.10 Segunda Escolástica, Escola Espanhola ou Escola Peninsular de Direito
Natural
Desenvolveu-se entre o século XVI e o início do século XVII, na Península Ibérica, uma
corrente do pensamento jurídico que ficou conhecida como Segunda Escolástica, Escola
Espanhola ou Escola Peninsular de Direito Natural que procedeu a uma importantíssima
reflexão filosófico-jurídica sobre a compreensão cristã do Homem e da convivência
humana, ou seja sobre o Direito e o Estado, em face da conjuntura do tempo que se
vivia. A base da Segunda Escolástica era constituída pela escolástica medieval e pelo
pensamento de São Tomás de Aquino, à luz dos quais os teólogos juristas identificaram
os princípios fundamentais de uma ordem jurídica de Direito Natural que se fundava em
Deus. Essa ordem jurídica superior seria o modelo através do qual se deveria aferir a
validade do Direito Positivo, i.e., do Direito efetivamente vigente. A reflexão filosófico-
jurídica sobre o Direito e o Estado levada a cabo por estes teólogos juristas deu
contributos muito relevantes à teoria do Estado, ao Direito Penal, ao Direito Privado e à
discussão de problemas como a usura e o preço justo. Contudo, a Segunda Escolástica
destacou-se, sobretudo, com a criação do moderno Direito Internacional Público, sob o
impulso dos Descobrimentos e das questões que estes suscitaram, mormente a da
liberdade de navegação dos mares, a da ocupação dos territórios descobertos ou
conquistados e a do estatuto jurídico dos respetivos habitantes.
Os nomes mais representativos do pensamento jurídico da Segunda Escolástica são,
entre outros, Francisco de Vitoria, Domingo de Soto, Luis de Molina e Francisco
Suárez.
Polémica entre a ideia de mare liberum (liberdade de navegação dos mares) e a
ideia de mare clausum (monopólio da navegação dos mares)
À ideia de liberdade de navegação dos mares (mare liberum), representada e defendida
por Hugo Grócio, contrapunha-se a ideia de monopólio da navegação dos mares (mare
clausum), tendo-se Frei Serafim de Freitas destacado como seu principal defensor. Não
era, obviamente, uma pura controvérsia científica, desligada de interesses políticos e
económicos…
7.3 Período da formação do Direito Português Moderno
O período da formação do Direito Português compreende três épocas:
- Época do Jusnaturalismo racionalista
- Época do individualismo
- Época do Direito Social
7.3.1 Época do Jusnaturalismo racionalista
A época do Jusnaturalismo racionalista tem o seu início entre 1769, com a Lei da Boa-
Razão, e 1772, com os Estatutos Pombalinos da Universidade de Coimbra.
7.3.1.1 Correntes do pensamento jurídico europeu
As correntes do pensamento jurídico europeu dos séculos XVII e XVIII que serviram de
inspiração doutrinal e ideológica para as Reformas Pombalinas foram as seguintes:

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1. Escola racionalista de Direito Natural
A ordem jurídica de Direito Natural construída pela Segunda Escolástica com base na
escolástica medieval e no pensamento de São Tomás de Aquino fundava-se em Deus,
ainda que se entendesse que, mesmo que Deus não existisse, o Direito Natural seria o
mesmo. Partindo deste raciocínio, Hugo Grócio construiu uma nova conceção de
Direito Natural que já não se fundava totalmente em Deus, mas que era entendido como
produto da razão humana. Ou seja, a ordem jurídica superior através da qual se deveria
aferir a validade do Direito Positivo deixou de ser de cariz divino para se basear na
razão do Homem. Posteriormente, com os autores que desenvolveram a obra de Grócio,
tais como Hobbes, Pufendorf, Locke, Thomasius e Wolff, a compreensão do Direito
Natural desvinculou-se completamente de pressupostos metafisico-religiosos e chega-se
ao Direito Natural racionalista. Considera-se que, tal como as leis universais do mundo
físico, também as normas que disciplinam as relações entre os homens e que são
comuns a todos eles são imanentes à sua própria natureza. Por isso, o Homem, através
do uso da sua razão, consegue encontrá-las sem necessidade de recorrer à Teologia.
2. Usus modernus pandectarum
Relacionada com o Jusnaturalismo racionalista, surgiu na Alemanha, de onde passou a
outros países, uma nova metodologia de estudar e aplicar o Direito Romano que ficou
conhecida por “usus modernus pandectarum”, cuja designação deriva de uma obra de
Stryk. O usus modernus pandectarum é marcado por três vetores fundamentais:
- Vetor prático: O usos modernus pandectarum procurou separar as normas de
Direito Romano que ainda eram suscetíveis de um “uso moderno”, ou seja, de uma
prática atualizada, das normas que se tinham tornado obsoletas.
- Vetor racionalista: Na tarefa de encontrar as normas de Direito Romano
suscetíveis de uma prática atualizada, o usus modernus pandectarum aproveitou as
reflexões da Escola Racionalista de Direito Natural, embora estas duas Escolas não se
confundissem. Enquanto que a Escola Racionalista de Direito Natural consistiu num
movimento de especulação filosófica, o usus modernus pandectarum consistiu numa
escola prática de estudo dogmático do Direito.
- Vetor de nacionalismo jurídico: Para o usus modernus pandectarum, os
ordenamentos jurídicos vigentes eram formados, não só pelo Direito Romano suscetível
de um “uso moderno”, mas também pelo Direito Pátrio que tinha um papel tão ou mais
importante do que o Direito Romano, uma vez que servia de referência para saber se o
Direito Romano já se havia tornado ou não obsoleto. A atenção conferida ao Direito
Pátrio levou à sua elevação e à defesa de que este deveria ser estudado conjuntamente
com o Direito Romano.
3. Jurisprudência Elegante
Nos séculos XVII e XVIII, sob inspiração do Humanismo Jurídico francês,
desenvolveu-se, nos Países-Baixos, a Escola da Jurisprudência Elegante. Entre as causas
que explicam esta deslocação da França para os Países-Baixos encontra-se o facto de
muitos juristas franceses de tendência humanista terem sido alvo de fortíssimas
perseguições por terem abraçado o Protestantismo, tendo encontrado nos Países-Baixos,
terra de maior tolerância religiosa, o seu novo campo de ação. A designação
“Jurisprudência Elegante” advém da preocupação de rigor nas formulações jurídicas e
na expressão escrita manifestada pelos seus representantes que continuaram a estudar o
Direito Romano segundo a metodologia do Humanismo Jurídico. A Escola da
Jurisprudência Elegante não deixou, contudo, de ser influenciada pelo caráter prático do
usus modernus pandectarum.

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4. Iluminismo
Uma linha de pensamento que muito influenciou as Reformas Pombalinas foi o
Iluminismo. Esta designação advém da ideia de os seus representantes serem
“iluminados”, como que tendo recebido as “luzes da razão”. Trata-se de uma corrente
que abrangeu o século XVIII, embora em Portugal corresponda apenas à sua segunda
metade. Com o Iluminismo, o espírito individualista surgido com o Renascimento e
desenvolvido com o Jusnaturalismo racionalista atinge o seu auge com uma conceção
do Direito e do Estado alicerçada no Homem enquanto ser racional, livre, com um valor
individual e que, só pela simples circunstância de existir, tem direitos originários e
naturais. Também nos países marcadamente católicos se registaram as influências
iluministas. O Iluminismo Português filia-se especialmente no Iluminismo Italiano por
influência do “estrangeirado” Luís António Verney que trouxe as correntes iluministas
de Itália para Portugal. Contudo, estas não tiveram um caráter antirreligioso, ao
contrário do que se verificou em França.
5. Humanitarismo
As correntes humanitaristas, relacionadas com o Iluminismo, dedicaram-se ao estudo do
Direito Penal e do tratamento penitenciário, destacando-se os nomes de Montesquieu e
Voltaire, em França. O Humanitarismo desdobra-se em quatro aspetos básicos:
- Conteúdo e fundamento do Direito Penal: Entendia-se que o Direito Penal tinha
como função a defesa da sociedade e dos valores ou interesses necessários à vida
coletiva dentro de uma ideia de necessidade ou utilidade comum. Deste modo, não
seriam tutelados pelo Direito Penal valores religiosos, não fazendo sentido criminalizar
condutas que ofendessem normas de índole religiosa que até aí eram tuteladas pelo
Direito Penal.
- Fins das penas: Entendia-se que as penas não deveriam ter como fundamento uma
finalidade ético-retributiva, não devendo ser entendidas como um castigo pelo facto
passado, mas antes uma finalidade preventiva, sendo um meio de evitar futuras
violações da lei criminal, quer intimidando a generalidade das pessoas (prevenção
geral), quer intimidando e reeducando o próprio delinquente (prevenção especial).
- Respeito pela dignidade da pessoa humana: Entendia-se que a ação preventiva do
Direito Penal tinha como limites intransponíveis a justiça e o respeito pela dignidade da
pessoa humana. Sendo assim, por um lado, as penas aplicáveis deviam ser proporcionais
à gravidade do delito cometido. Por outro lado, defendeu-se a abolição das antigas
penas corporais e infamantes que deviam ser substituídas pelas penas de prisão.
- Processo Penal: Ao contrário do Processo Penal do período anterior, de estrutura
inquisitória, o Humanitarismo deu preferência ao Processo Penal de estrutura acusatória.
7.3.1.2 Reformas Pombalinas respeitantes ao Direito e à ciência jurídica
As correntes do pensamento jurídico europeu dos séculos XVII e XVIII anteriormente
analisadas, trazidas pelos “estrangeirados”, ou seja, pelos portugueses radicados no
estrangeiro, para Portugal, serviram de inspiração doutrinal e ideológica para as
Reformas Pombalinas que se produziram em três setores:
1. Modificações legislativas pontuais
Operaram-se, por via legislativa, alterações substanciais de múltiplos institutos.
Algumas dessas alterações trouxeram um progresso significativo e consolidaram-se no
ordenamento jurídico português, tendo sido de grande importância as alterações
respeitantes às grandes companhias de comércio. Contudo, não faltaram outras que,
embora estivessem de acordo com as ideias jusracionalistas, afastavam-se de tal forma
da tradição e realidade jurídicas nacionais que acabaram por não vingar. Servem de
exemplo os diplomas jurídicos pombalinos em matéria de Direito Sucessório que

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acabaram por ser suspensos logo no início do reinado de D. Maria I, voltando a vigorar
as soluções consagradas nas Ordenações Filipinas.
2. Reformas no âmbito da ciência do Direito através da Lei da Boa-Razão
Em 18 de Agosto de 1769 foi publicada uma lei que ficou conhecida como Lei da Boa-
Razão, embora só começasse a ser assim apelidada no século XIX. A sua designação
deve-se à constante referência à boa-razão, ou seja, à “recta ratio” jusnaturalista. A Lei
da Boa-Razão consagrou várias soluções que introduziram profundas alterações na
ciência do Direito e no sistema de fontes de Direito Português em Portugal:
→ Estilos da Corte: A Lei da Boa-Razão determinou que os estilos da Corte apenas
valeriam como fonte de Direito quando aprovados através de assentos da Casa da
Suplicação. Isto significa que os estilos da Corte perderam a eficácia autónoma que
antes lhes era reconhecida.
→ Costume: A Lei da Boa-Razão estabeleceu que o costume só valeria como fonte de
Direito se preenchesse três requisitos:
1) O costume tinha de ser conforme à boa-razão, ou seja, tinha que ser um costume
aceite pelos princípios do Jusnaturalismo racionalista.
2) O costume não podia contrariar a lei, ou seja, afastou-se a vigência do costume
contra legem, apenas se aceitando os costumes secundum legem e praeter legem.
3) O costume tinha de ter mais de 100 anos de existência.
→ Assentos: A Lei da Boa-Razão determinou que os assentos proferidos pelos
Tribunais da Relação apenas teriam valor normativo quando confirmados pela Casa da
Suplicação, pondo termo aos abusos até então verificados.
→ Direito subsidiário: Quanto ao preenchimento das lacunas, a Lei da Boa-Razão
introduziu quatro alterações fundamentais:
1) O Direito Romano só seria aplicável como fonte de Direito subsidiário se se
apresentasse “conforme à boa-razão”, i.e., aos princípios de Direito Natural racionalista
e de Direito das Gentes. Este critério era, todavia, muito vago. Por isso, em 1772, os
Estatutos Pombalinos da Universidade de Coimbra determinaram que seria “conforme à
boa-razão” o Direito Romano de que os jurisconsultos das Nações europeias modernas
fizessem um “uso moderno”. Isto significa que o Direito Romano aplicado
subsidiariamente em Portugal acabava por se identificar com aquele que fosse acolhido
nas obras dos autores da Escola do usus modernus pandectarum que adquiriram, em
Portugal, valor normativo indireto de fonte de Direito subsidiário.
2) Se a lacuna dissesse respeito a matérias políticas, económicas, mercantis ou
marítimas, não se aplicaria o Direito Romano, mas sim as leis das Nações cristãs,
iluminadas e polidas, uma vez que se entendia que, pela sua antiguidade, o Direito
Romano se mostrava inadequado para integrar lacunas naqueles domínios.
3) O Direito Canónico deixou de figurar entre as fontes de Direito subsidiário,
determinando-se que só seria aplicável nos tribunais eclesiásticos.
4) Também deixaram de ser fontes de Direito subsidiário a Glosa de Acúrsio e a
Opinião de Bártolo, tendo-se proibido que fossem alegadas e aplicadas em juízo. A
mesma solução estava implícita quanto à opinião comum dos doutores. Para justificar
esta medida, a Lei da Boa-Razão recorreu à falta de conhecimentos históricos e
linguísticos e à profunda ignorância das normas fundamentais de Direito Natural e de
Direito Divino por parte daqueles autores.
3. Reformas no âmbito do ensino do Direito através dos Estatutos Pombalinos
Em 1770, foi nomeada uma comissão com o nome de “Junta de Providência Literária”,
incumbida de emitir parecer sobre o ensino universitário português e respetiva reforma.
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A comissão apresentou, em 1771, um relatório com o título “Compêndio Histórico da
Universidade de Coimbra” onde se faz uma crítica implacável e demolidora do ensino
universitário, apontando-se ao ensino do Direito como graves defeitos a preferência
absoluta do estudo do Direito Romano e do Direito Canónico, desconhecendo-se o
Direito Pátrio (1), o império abusivo do Bartolismo (2), o respeito cego pela opinião
comum dos doutores (3) e o desprezo pelo Direito Natural e pela História do Direito (4).
No seguimento, a Junta de Providência Literária elaborou os Novos Estatutos da
Universidade de Coimbra, também conhecidos por Estatutos Pombalinos, que foram
aprovados por uma carta de lei de 28 de Agosto de 1772.
Atendendo àqueles defeitos, os Estatutos Pombalinos introduziram uma série de
alterações aos estudos jurídicos:
1) Incluíram-se novas disciplinas: Direito Natural e Direito das Gentes (por influência
da Escola Racionalista de Direito Natural), História do Direito (por influência do
Humanismo Jurídico) e Direito Pátrio (por influência do usus modernus pandectarum).
Não obstante, o núcleo central dos estudos jurídicos continuou a ser constituído pelo
Direito Romano, estudado na Faculdade de Leis, e pelo Direito Canónico, estudado na
Faculdade de Cânones, embora encarados de modo diverso.
2) Determinou-se que o ensino do Direito devia ser feito de acordo com um novo
método, o chamado “método sintético-demonstrativo-compendiário”, inspirado nas
Universidades alemãs. Pormenorizadamente, o método era:
-» sintético: Era fornecida aos estudantes uma ideia geral de cada disciplina através
de definições e de uma sistematização do mais fácil para o mais difícil.
-» demonstrativo: A matéria era exposta através de um encadeamento lógico, ou seja,
depois de estudado cada ponto da matéria, o ponto seguinte era apresentado como
dedução lógica do ponto anterior.
-» compendiário: Os docentes deviam elaborar manuais de estudo, sujeitos a
aprovação oficial, que substituíssem as tradicionais postilas que consistiam em
apontamentos manuscritos que circulavam entre os estudantes, reproduzindo
grosseiramente as aulas.
→ O método analítico, que implicava a análise pormenorizada de uma única lei ou de
um único título de Direito Romano ou de Direito Canónico e que foi até então usado, só
subsistiu em duas cadeiras do final do curso relativas à interpretação e execução das
leis.
3) Os Estatutos Pombalinos traçaram de forma minuciosa o programa das várias
cadeiras e foi imposta aos docentes a escola de jurisprudência que deviam seguir.
Assim, quanto ao estudo do Direito Romano e do Direito Canónico, os docentes deviam
seguir, em vez da metodologia bartolista, as diretrizes do Humanismo Jurídico.
4) Estabeleceu-se um rigoroso regime de avaliação contínua dos estudantes.
Os Estatutos Pombalinos da Universidade de Coimbra sobreviveram até à reforma de
1836 do governo de Passos Manuel que fundiu as Faculdades de Leis e de Cânones na
atual Faculdade de Direito e consagrou o Direito Pátrio como núcleo central dos estudos
jurídicos. Refira-se ainda uma pequena reforma intercalar em 1805 onde o peso do
Direito Pátrio já tinha aumentado.
7.3.1.3 Literatura jurídica
Os Estatutos Pombalinos da Universidade de Coimbra tinham estabelecido que os
docentes deviam elaborar manuais de estudo, sujeitos a aprovação oficial, destinados
aos estudantes. Na verdade, apenas os manuais escritos por Pascoal Mello Freire foram
oficialmente aprovados, dentre os quais se encontra o “Manual de História do Direito

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Português”, o ”Manual de Instituições do Direito Pátrio”, abrangendo quer o Direito
Privado quer o Direito Público, e as ”Instituições de Direito Criminal”.
7.3.1.4 O chamado “Novo Código”
Através do Decreto de 31 de Março de 1778, a Rainha D. Maria I nomeou uma
comissão designada “Junta de Ministros” com o objetivo de proceder a uma reforma
geral do Direito vigente, muito especialmente das já velhas Ordenações Filipinas. A
verdade é que, apesar de ter havido algum trabalho, a comissão não chegou a propostas
de vulto. No ano de 1783, Pascoal Mello Freire foi encarregue de rever os livros II e V
das Ordenações. Do seu esforço resultaram dois projetos legislativos: um projeto de
Código de Direito Público e outro de Código Criminal. Para apreciá-los, nomeou-se,
pelo Decreto de 3 de Fevereiro de 1789, uma “Junta de Censura e Revisão”. A respeito
da apreciação do projeto de Código de Direito Público, surgiu uma acesa polémica entre
Pascoal Mello Freire e um dos membros da Junta, António Ribeiro dos Santos, que
ficou conhecida como a “Formidável Sabatina”. Na verdade, Mello Freire era um
partidário do Absolutismo na sua forma de Despotismo Esclarecido, ao passo que
Ribeiro dos Santos já defendia, ainda que de forma tímida, os princípios liberais. O
projeto de Código do Direito Público acabou por não vingar, não tendo sido aprovado.
Quanto ao projeto de Código Criminal, nem sequer discutido foi. Fracassou, assim, a
tentativa de reforma das Ordenações Filipinas. As circunstâncias do tempo não eram
favoráveis para se proceder a reformas legislativas de fundo que necessitam de períodos
de consolidação para poderem vingar. No entanto, nesta época, vivia-se uma fase de
transição em que o Absolutismo na sua forma de Despotismo Esclarecido se encontrava
em decadência e os princípios liberais ainda mal se avistavam em Portugal.
7.3.2 Época do individualismo
A época do individualismo tem início em 1820 com a Revolução Liberal.
7.3.2.1 Liberalismo político e económico
A época do individualismo é marcada pelo liberalismo político e económico. A ideia
iluminista do Homem enquanto ser racional, livre, com um valor individual e que tem
direitos originários e naturais, sendo a exclusiva missão do Estado reconhecê-los e
defendê-los, vai ser continuada e aprofundada pelo Liberalismo do século XIX. Desta
afirmação decorre o princípio da igualdade e o princípio da soberania popular e
nacional, segundo o qual a soberania reside na Nação, mais precisamente, no povo que a
compõe. Deste modo surgem as ideias do governo representativo, da monarquia
constitucional, da separação de poderes e das Constituições escritas.
7.3.2.2 Transformações no âmbito do Direito Público
1) O sistema liberal português inicia-se com a Revolução de Agosto de 1820 e, logo em
finais desse ano, completou-se um processo eleitoral para escolher os Deputados às
Cortes Constituintes destinadas a elaborar uma Constituição escrita. Na primeira
Constituição Portuguesa, aprovada em 1822, ficaram, desde logo, consagrados o
princípio da soberania popular e nacional, a separação de poderes, o princípio
democrático, o princípio representativo e um conjunto de direitos fundamentais dos
cidadãos como a propriedade, a segurança e a liberdade. Apesar de consagrar o
princípio da igualdade, que levou à extinção de certos privilégios da nobreza, a
Constituição de 1822, assim como todas as Constituições monárquicas, consagrou o
sufrágio censitário, i.e., baseado na capacidade económica, sendo necessário um certo
nível de rendimento para se poder votar.
2) No ano seguinte, em 1823, como consequência da “Vilafrancada”, golpe de Estado
apoiado por D. Maria II e D. Miguel, termina a vigência da Constituição de 1822, dando
lugar à Carta Constitucional de 1826, outorgada por D. Pedro IV e que reflete um
36
liberalismo de tendência mais conservadora. Ao contrário da Constituição de 1822, a
Carta Constitucional de 1826 consagra um bicameralismo, existindo ao lado da Câmara
dos Deputados, que era eleita, a Câmara dos Pares cujos membros eram nomeados pelo
Rei. Por outro lado, ao lado dos poderes legislativo, executivo e judicial, é consagrado o
poder moderador, ao abrigo do qual o Rei podia dissolver a Câmara dos Deputados e
recusar a sanção real aos projetos legislativos, o que funcionava como um efetivo poder
de veto.
3) Entre 1828 e 1834 não vigora qualquer documento constitucional devido ao reinado
absolutista de D. Miguel.
4) No final do reinado de D. Miguel, e depois da Guerra Civil que confrontou as suas
forças com aquelas de D. Pedro IV, é reposto o regime liberal, voltando a vigorar a
Carta Constitucional de 1826.
5) Todavia, com o golpe setembrista de 1836, passa a prevalecer um liberalismo mais
radical, sendo reposta a Constituição de 1822.
6) Em 1838, fruto de novas Cortes Constituintes, entra em vigor uma terceira
Constituição jurada pela Rainha D. Maria II. A Constituição de 1838 é uma solução de
compromisso entre o constitucionalismo de tendência liberal conservadora da Carta
Constitucional de 1826 e o constitucionalismo de tendência liberal radical da
Constituição de 1822. Volta, assim, a ideia de bicameralismo, existindo ao lado da
Câmara dos Deputados a Câmara dos Senadores que é eletiva e temporária e a iniciativa
legislativa é exclusiva da Câmara dos Deputados.
7) Em 1842, o golpe de Costa Cabral termina com a vigência da Constituição de 1838 e
passa a vigorar pela terceira vez a Carta Constitucional de 1826 até ao final da
Monarquia em 1910, embora reformada por Atos Adicionais.
8) A Constituição de 1911 pode ainda ser considerada como um documento que se
insere na tradição do constitucionalismo liberal, uma vez que, apesar de consagrar a
mudança do regime, limitou-se a regular a organização do poder político e a reconhecer
direitos e liberdades fundamentais. A tradição do constitucionalismo liberal é
interrompida pela Constituição de 1933 com a consagração de regras de regulação
socioeconómica.
7.3.2.3 Transformações no âmbito do Direito Privado
O triunfo do Liberalismo em Portugal não conduziu, no Direito Privado, a reformas
legislativas profundas comparáveis às inovações introduzidas no Direito Público.
Contudo, é verdade que certas modificações legislativas no campo do Direito Público
tiveram reflexos no Direito Privado, tais como as reformas judiciárias e a extinção dos
forais. Também é verdade que se assistiu a algumas medidas legislativas avulsas no
Direito Privado como as alterações aos regimes da menoridade e da emancipação
levadas a cabo pelo governo de Mouzinho da Silveira e a criação do registo de hipotecas
pelo governo setembrista, ou seja, aquele saído da revolução de Setembro de 1836.
Mesmo o Código Comercial de 1833 poucas inovações trouxe ao Direito Privado
Português, pois, na prática, consagrou soluções que já estavam presentes na legislação
de outros países europeus e que se aplicavam em Portugal a título subsidiário por força
da Lei da Boa-Razão que mandava aplicar às lacunas que dissessem respeito a matérias
mercantis as leis das Nações cristãs, iluminadas e polidas. Pelo exposto, antes de 1867,
não houve reformas de fundo no Direito Privado em termos legislativos. Foram os
jurisconsultos da época, tais como Corrêa Telles e Coelho da Rocha que, perante a
passividade do legislador, foram fixando novos rumos ao Direito Privado Português:
1. Utilização dos critérios de interpretação das leis e de integração de lacunas
presentes na legislação pombalina com um sentido diferente do original

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Os jurisconsultos dos inícios do Liberalismo usaram os critérios de interpretação da lei e
integração das suas lacunas estabelecidos na Lei da Boa-Razão de 1769 e completados
pelos Estatutos Pombalinos da Universidade de Coimbra, mas subvertendo
completamente o seu sentido de forma a adaptá-lo aos novos tempos. Assim, a boa-
razão do Jusnaturalismo racionalista passa a ser entendida de acordo com as novas
conceções do Liberalismo. Por seu turno, o “uso moderno” do Direito Romano a que os
Estatutos Pombalinos faziam referência como modo de integração das lacunas deixa de
ser entendido como uma referência às obras dos autores do usus modernus
pandectarum, para ser interpretado como uma remissão para os Códigos Civis dos
países europeus, pois se os Estatutos Pombalinos permitiam averiguar o “uso moderno”
do Direito Romano nas obras dos juristas das Nações europeias modernas, por maioria
de razão poderiam fazer essa averiguação na legislação dos seus países. Com este
expediente, os jurisconsultos da época fizeram penetrar nos quadros da ordem jurídica
portuguesa soluções consagradas no Código Civil Francês de 1804, no Código Civil
Prussiano de 1794 ou no Código Civil Austríaco de 1811.
2. Novas interpretações de preceitos das Ordenações Filipinas com base nos
critérios da Lei da Boa-Razão para se alcançarem resultados de acordo com as
reflexões do Jusnaturalismo racionalista, mas opostos às interpretações que até
então eram aceites
Existiu no Direito Romano a regra segundo a qual ninguém podia morrer em parte com
testamento e em parte sem testamento, ou seja, toda a sucessão teria que ser regulada
por testamento. Com o Jusnaturalismo racionalista, esta regra romana caiu em desgraça,
sendo fortemente criticada pelos autores. Contudo, o Direito Romano consagrava uma
exceção a essa regra: Os militares, por estarem constantemente envolvidos em cenários
de guerra e em perigo de vida, podiam morrer em parte com testamento e em parte sem
testamento. As Ordenações Filipinas, sobre o tema, apenas estabeleciam esta exceção,
não fazendo referência à regra. Desde sempre se tinha, no entanto, entendido que, se as
Ordenações consagravam a exceção, era porque aceitavam a regra. Ou seja, fora do
testamento dos militares, ninguém podia morrer em parte com testamento e em parte
sem ele. Como queriam adotar uma solução jusnaturalista racionalista contrária à regra
romana, que até então era aceite, e como a Lei da Boa-Razão mandava interpretar as leis
de acordo com a boa-razão, os jurisconsultos dos inícios do Liberalismo interpretaram
as Ordenações, afirmando que estas consagravam a exceção porque queriam afastar a
regra, acabando por transformar a exceção em regra.
3. Defesa de que certos preceitos das Ordenações Filipinas tinham caído em desuso
e não deviam ser mais aplicados
No Direito Canónico existiu uma regra que exigia a boa-fé do devedor para a prescrição
extintiva, regra essa que foi acolhida pelas Ordenações. Ora, os jurisconsultos dos
inícios do Liberalismo, alegando que o Direito Canónico já tinha sido afastado pela Lei
da Boa-Razão, defenderam que a exigência da boa-fé do devedor caíra em desuso e já
não devia ser respeitada. Deste modo, era de aceitar a prescrição extintiva dos direitos
de crédito mesmo que o devedor não estivesse de boa-fé.
4. Defesa, numa perspetiva de iure constituendo (ou seja, do direito a fazer no
futuro), embora não de iure constituto (ou seja, do direito vigente), de que certos
preceitos das Ordenações deviam ser modificados no sentido estabelecido no
Código Civil Francês de 1804
1. Exemplo: As Ordenações Filipinas consagravam a regra segundo a qual o contrato de
compra e venda tinha eficácia meramente obrigacional, ou seja, para que o direito de
propriedade fosse transmitido a favor do comprador era necessário que o vendedor lhe

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entregasse a res. Já o Código Civil Francês de 1804 estabeleceu uma solução oposta,
defendendo que o direito de propriedade seria transmitido a favor do comprador por
mero efeito do contrato, solução esta que foi preferida pelos jurisconsultos dos inícios
do Liberalismo. Não obstante, não só a regra romana estava claramente consagrada nas
Ordenações Filipinas, como um Alvará de 1810 tinha confirmado expressamente a
solução nelas consagrada, não havendo grande margem para a considerar caída em
desuso. Assim, os jurisconsultos portugueses limitaram-se a defender que se devia
consagrar futuramente a mesma solução do Código Civil Francês, o que acabou por
acontecer com o Código Civil de 1867.
2. Exemplo: As Ordenações Filipinas consagravam a regra “emptio tollit locatum”
segundo a qual o comprador do prédio arrendado podia de imediato despejar o
arrendatário. Esta solução foi amplamente criticada pelos jurisconsultos dos inícios do
Liberalismo, o que levou o Código Civil Francês a consagrar uma regra oposta àquela
proveniente do Direito Romano. Todavia, os juristas da época sentiram que não tinham
apoio suficiente para considerar aquela solução caída em desuso, pelo que limitaram-se
a defender que se devia consagrar futuramente a mesma solução do Código Civil
Francês, o que acabou por acontecer com o Código Civil de 1867 e, portanto, a regra
“emptio tollit locatum” tornou-se “emptio non tollit locatum”.
7.3.2.4 Publicação e início de vigência da lei
O pensamento racionalista e iluminista deu particular destaque à necessidade de as
normas jurídicas, para puderem ser efetivamente obrigatórias, terem de chegar ao
conhecimento dos destinatários. Em concretização desta diretriz, surge a ideia da
publicação dos textos legais num jornal oficial, o que foi concretizado em França após a
Revolução de 1789. Em Portugal, o novo método de publicação dos diplomas legais é
introduzido pelo Decreto de 19 de Agosto de 1833 que extinguiu a Chancelaria-Mor do
Reino e determinou que os diplomas legais deviam ser publicados num jornal oficial
denominado Periódico Oficial do Governo para se tornarem plenamente eficazes. O
jornal oficial manteve-se a partir de aí, ainda que viesse a receber várias designações.
Quanto aos prazos de vacatio legis, i.e., o período entre a publicação do diploma e o
início da produção dos seus efeitos, o Decreto de 19 de Agosto de 1833 manteve os
prazos já existentes: 3 meses quanto às Comarcas e 8 dias quanto à Corte. Estes prazos
foram, posteriormente, alterados com a Lei de 9 de Outubro de 1841 que os encurtou
significativamente.
7.3.2.5 As codificações
Aspetos introdutórios sobre a codificação
Até aos séculos XVIII e XIX, as grandes coletâneas de Direito, por exemplo o Corpus
Iuris Civilis ou as Ordenações, eram obras que apenas pretendiam compilar e consolidar
o Direito vigente. A partir do século XVIII, e especialmente no século XIX, por
influência jusracionalista e iluminista, começou-se a elaborar corpos legislativos
unitários que pretendiam organizar cientifica e autonomamente os ramos básicos do
Direito. Estes corpos legislativos já não tinham o objetivo de pura consolidação, tendo
antes como propósito a transformação social futura. O Direito, assim sistematicamente
organizado, passou a identificar-se com a lei e qualquer problema jurídico era resolvido
dentro desse sistema através de uma dedução lógica do sistema (geral) para o caso
concreto (particular).
O movimento codificador português
Foram os ideais da Revolução Francesa que impulsionaram, logo depois da implantação
do Liberalismo, o movimento codificador em Portugal.

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Codificação no Direito Comercial:
O movimento codificador português tem início com o Código Comercial de 1833 que
regulava os comércios terrestre e marítimo e que também era conhecido como Código
Ferreira Borges, tendo este sido o autor do respetivo projeto. Para a elaboração do
Código Comercial, quanto ao Direito Comercial substantivo, Ferreira Borges recorreu
largamente a elementos do Direito Comparado, como o Código Comercial Francês, o
Código Comercial Espanhol ou o projeto de Código Comercial Italiano. Isto significa
que apenas se codificou aquilo que já vigorava no ordenamento jurídico português a
título de Direito subsidiário, pois a Lei da Boa-Razão já mandava aplicar às lacunas que
dissessem respeito a matérias mercantis as leis das Nações cristãs, iluminadas e polidas.
Quanto ao Direito Comercial adjetivo, Ferreira Borges recorreu ao que já vigorava até aí
no ordenamento jurídico português.
→ O Código Comercial não foi, todavia, uma obra inovadora e apresentava alguns
defeitos consideráveis: Primeiro, exagerou nas qualificações e definições que não são
matéria particularmente apropriada para o legislador. Segundo, misturaram-se normas
de Direito Comercial substantivo com normas de Direito Comercial adjetivo e até de
Direito Civil. Terceiro, não foram tomadas em conta algumas soluções do Direito
Comparado como as matérias relativas às sociedades comerciais. Assim, o Código
Comercial de 1833 viu-se rapidamente rodeado por abundante legislação avulsa. Em
todo o caso, há que reconhecer que o Código Comercial muito contribuiu para a
autonomização do Direito Comercial como ramo de Direito. Acabou por ser substituído,
em 1888, por um novo Código Comercial conhecido como Código Veiga Beirão que se
encontra ainda em vigor, embora profundamente alterado e completado por numerosa
legislação avulsa, em especial o Código das Sociedades Comerciais. Este foi, portanto,
o primeiro Código Português.
Codificação no Direito Civil:
O primeiro Código Civil Português assentou num projeto da autoria de António Luís de
Seabra que foi aprovado em 1 de Julho de 1867. Os fundamentos teóricos do Código
Civil de 1867, também conhecido como Código de Seabra, estão ligados às conceções
jusracionalistas e do individualismo liberal. Atendendo a estes fundamentos, verifica-se
que a estrutura do Código foi construída em torno do indivíduo como sujeito de direitos:
- Primeira parte: Da capacidade civil
- Segunda parte: Da aquisição dos direitos
- Terceira parte: Do direito de propriedade
- Quarta parte: Da ofensa dos direitos e da sua reparação
Em suma, desta estrutura, ressalta um ordenamento jurídico construído no ângulo do
indivíduo como sujeito de direitos, não se dando relevo ao que há de institucional e
objetivo nas relações sociais e jurídicas. Reconheça-se, todavia, que o ideal liberal não
foi levado até às suas últimas consequências, pelo que o Código tratou de interesses não
puramente económicos, como por exemplo no Direito da Família. Uma questão
importante foi a que diz respeito ao casamento. Até aí, a legislação nacional não tratava
da questão do casamento cuja disciplina constava do Direito Canónico. Ora, o Código
de Seabra vai, pela primeira vez, reconhecer ao lado do casamento católico (casamento
celebrado pela Igreja Católica) o casamento civil (casamento celebrado numa repartição
do Estado com total independência do casamento católico), regulando o último.
→ Inicialmente, o Código Civil de 1867 foi objeto de ampla aceitação e aplauso e há
que reconhecer que satisfez as exigências da época, nomeadamente de justiça, utilidade,
praticabilidade e de certeza e estabilidade. Todavia, o Código de Seabra apresentou
vários defeitos, alguns originais e outros surgidos com o decurso do tempo: Quanto aos
defeitos originais, diga-se que foi obra de um homem só numa altura em que o Direito

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Civil já era demasiado amplo e complexo para isso. Por outro lado, em certas
disciplinas, Seabra optou por ser inovador, do que resultaram algumas soluções
infelizes, nomeadamente em matéria da responsabilidade civil em que não se seguiu o
modelo do Código Civil Francês de 1804. Com o decurso do tempo, foram surgindo
outros defeitos, pois tornou-se crescente o número de figuras jurídicas que não eram
reconhecidas pelo Código, tais como a propriedade horizontal ou o abuso do Direito. O
decurso do tempo fez também com que, em muitas áreas, como no Direito do Trabalho,
no Direito da Família, no Direito do Arrendamento ou nas restrições ao direito de
propriedade, surgisse uma série de diplomas legislativos com disciplinas diferentes ou
até opostas às do Código, do que resultou uma quebra de unidade no sistema jurídico,
pois o novo contexto de um Direito Social já não encontrava apoio no velho Código
oitocentista de natureza liberal. Impunha-se, portanto, uma completa revisão, apesar de
uma reforma feita em 1930. Essa revisão veio concretizar-se no Código Civil de 1966.
7.3.2.6 O costume
Já desde a Lei da Boa-Razão que o costume estava em decadência como fonte de
Direito, exigindo-se que fosse conforme à boa-razão, que tivesse uma existência mínima
de 100 anos e não se admitindo o costume contra legem. O Código de Seabra acentuou
essa sua decadência, tornando o costume numa fonte de Direito puramente mediata, ou
seja, que apenas vigorava quando a lei assim o estabelecesse. Assim resulta dos artigos
9º, que proibia a inobservância da lei com fundamento no seu desuso, i.e., em costume
contrário (proibição do costume contra legem), e 16º que disciplinava a integração das
lacunas da lei e onde não constava o costume como forma de o fazer (proibição do
costume praeter legem).
7.3.2.7 Nova perspetiva do Direito subsidiário
A matéria do preenchimento das lacunas da lei passou a ser disciplinada pelo artigo 16º
do Código de Seabra. Segundo esse preceito, perante uma lacuna, devia recorrer-se
primeiramente à analogia. A analogia é o processo intelectual através do qual, perante
um caso omisso, se lhe aplica a solução prevista para um caso análogo/semelhante, pois
a razão substancial de decidir nos dois casos é a mesma. Se não se encontrasse uma
norma suscetível de aplicação analógica, dever-se-ia recorrer aos princípios de Direito
Natural, conforme as circunstâncias do caso. Sobre o que seriam esses princípios
surgiram três correntes:
- Corrente positivista: De acordo com a corrente positivista, tratava-se dos princípios
gerais de Direito, constantes na ordem jurídica vigente.
- Corrente jusnaturalista: De acordo com a corrente jusnaturalista, tratava-se de uma
remissão para algo de metajurídico, situado para além do Direito Positivo.
- Terceira corrente: Não obstante aquelas duas correntes, acabou por prevalecer uma
terceira corrente que entendia que a referência aos “princípios de Direito Natural,
conforme as circunstâncias do caso” equivalia a confiar ao juiz o preenchimento das
lacunas, devendo este presumir que solução o legislador adotaria se tivesse previsto as
circunstâncias do caso concreto. Foi também esta a solução consagrada expressamente
no artigo 10º, n. 3 do Código Civil de 1966. Deste modo, deixou de existir no
ordenamento jurídico português um Direito subsidiário nos termos tradicionais que
consagrava o recurso a um Direito subsidiário geral estrangeiro para a integração das
lacunas. Tudo se passa, agora, dentro do sistema jurídico português que estabelece, em
várias situações, Direitos subsidiários especiais através dos quais se determina que as
lacunas de um determinado ramo do Direito serão colmatadas através do recurso a outro
ramo do Direito.

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7.3.2.8 Extinção dos forais
Na época das Ordenações, verificou-se que os forais foram-se desatualizando, o que
resultou na sua reforma. Contudo, depois e apesar desta reforma, os forais foram
perdendo a sua importância como fonte de Direito local, perdendo o anterior papel de
estatutos político-concelhios que tinham, o que se compreende com o robustecimento
do poder régio e com a concentração da criação jurídica no monarca. Mello Freire, no
seu projeto de Código de Direito Público, apontava a necessidade de se extinguirem os
forais. Mas só depois da implantação do Liberalismo em Portugal é que o problema
ficou resolvido. No dia 13 de Agosto de 1832, um decreto do governo de Mouzinho da
Silveira eliminou os forais incidentes sobre bens nacionais ou provenientes da Coroa.
Mas só uma carta de lei de 22 de Junho de 1846 aboliu definitivamente os forais.
7.3.3 Época do Direito Social
A época do Direito Social tem o seu início entre 1914 e 1918 com a Primeira Guerra
Mundial.
7.3.3.1 Direito da Primeira República
Os finais do século XIX e os inícios do século XX foram períodos fulcrais para a queda
da Monarquia Constitucional e ascensão do Republicanismo em Portugal. No dia 5 de
Outubro de 1910, dá-se a implantação da Primeira República cujo Direito apresentava
como traços característicos:
- Subsistência do Liberalismo: Considera-se que a Primeira República ainda se insere
na tradição jurídica liberal, uma vez que não foi contra o Liberalismo que o
Republicanismo se ergueu, mas antes contra a Monarquia. Com efeito, apagaram-se os
vestígios das instituições monárquicas, demitiram-se os funcionários públicos não
convertidos e deram-se destino aos bens da extinta Casa Real.
- Questão religiosa: Destacou-se o caráter anticlerical da Primeira República,
declarando-se extinta a vida em comunidade religiosa, banindo-se o ensino da religião
católica nas escolas públicas e fazendo-se desaparecer os conventos, mosteiros e
colégios da Igreja, cujos bens passaram a pertencer ao Estado.
- Registo civil obrigatório: Uma vez que o cidadão da República devia desligar da
Igreja os momentos cruciais da sua vida, instituiu-se o registo civil obrigatório, i.e.,
passou a ser obrigatória a inscrição no registo civil dos factos relativos ao estado civil
dos cidadãos, nomeadamente o nascimento, o casamento e a sua dissolução, a
invalidade do casamento, o óbito e o reconhecimento ou legitimação dos filhos.
- Lei da Separação do Estado das Igrejas: Em 1911, surgiu a “Lei da Separação do
Estado das Igrejas” que reconhecia plena liberdade de consciência e culto, deixando a
religião católica, apostólica, romana de ser a religião oficial do Estado. O vasto
património da Igreja foi integrado no domínio público e o financiamento público à
Igreja cessou.
- Transformações no âmbito do Direito da Família: No âmbito do Direito da Família,
é de referir a consagração da dissolução da relação matrimonial por divórcio litigioso
(pedido por um dos cônjuges, invocando uma causa legítima prevista na lei) ou por
mútuo consentimento (pedido por ambos os cônjuges conjuntamente, se estivessem
casados há mais de dois anos e tivessem ambos completado, pelo menos, 25 anos de
idade) e do casamento civil obrigatório (instituição do casamento civil como única
forma de casamento).
- Transformações no âmbito do Direito dos contratos: No âmbito do Direito dos
contratos, são de referir as leis de proteção dos arrendatários urbanos (controlos no valor
das rendas e proibições dos despejos) e as medidas tomadas quanto à enfiteuse
(facilitação da extinção dos contratos de enfiteuse pelo enfiteuta).

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7.3.3.2 Direito do Estado Novo Corporativo
A tremenda instabilidade política e administrativa, os focos incontroláveis de agitação
social e as terríveis dificuldades económicas e financeiras que da Primeira República
resultaram conduziram ao golpe militar de 28 de Maio de 1926 que irá desembocar na
constitucionalização do Estado Novo Corporativo em 1933.
Código Civil de 1966:
Em 1930, fez-se uma reforma do Código de Seabra que assentou num projeto
legislativo de António Pinto de Mesquita e que não pretendeu tocar na sua substância,
procurando antes esclarecer dúvidas, preencher lacunas, suprir deficiências e adaptar os
preceitos legais às novas condições económicas e sociais. A Faculdade de Direito de
Coimbra, instada a pronunciar-se, adotou uma atitude de prudente distanciamento do
projeto de reforma do Código Civil, considerando que se devia aproveitar a
oportunidade para levar a cabo uma profunda reforma do Código. É assim que, em
1944, começaram os trabalhos preparatórios do novo Código que desembocaram no
Código Civil de 1966, sendo notável a influência da doutrina jusprivatística alemã.
Constituição Política de 1933:
O Estado Novo Corporativo, que assentava na Constituição Política de 1933, a única
Constituição portuguesa objeto de plebiscito nacional, recusou o Liberalismo e o
parlamentarismo, aquele porque sobrepunha o interesse individual, este porque
sobrepunha os interesses partidários ao interesse nacional. A Nação Portuguesa
constituía uma unidade moral, política e económica que encontrava no corporativismo o
sistema económico adequado para alcançar o máximo de produção e de riqueza
socialmente útil.
Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 1940:
A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa foi assinada, na cidade do
Vaticano, em 7 de Maio de 1940 e ratificada em 1 de Junho do mesmo ano. Ora, esta
Concordata começava por reconhecer personalidade jurídica à Igreja Católica. No plano
diplomático, as relações com a Santa Sé exprimiam-se mediante um núncio apostólico
junto da República Portuguesa e um embaixador da República junto da Santa Sé.
Admitia-se que a Igreja Católica em Portugal se organizasse livremente, constituindo
por essa forma associações ou organizações a que o Estado também outorgava
personalidade jurídica. Quanto ao financiamento da Igreja e ao seu património, o Estado
limitou-se a reconhecer à Igreja a propriedade dos bens que anteriormente lhe
pertenciam, embora com importantes exceções, continuando esta, todavia, a viver
exclusivamente da generosidade dos fiéis. Para além disso, a Concordata consentiu à
Igreja a criação de escolas próprias e garantiu o ensino da religião e moral católicas nas
escolas públicas. Só assim não seria se os pais pedissem isenção.
Para a História Jurídica Portuguesa, as modificações fundamentais trazidas pela
Concordata situaram-se no âmbito do Direito da Família. Afastou-se o casamento civil
obrigatório, instituindo-se o sistema do casamento civil facultativo, abrindo aos
católicos a possibilidade de celebrarem casamento civil ou católico. A este último, o
Estado reconhecia efeitos jurídicos, desde que a ata do casamento tivesse sido transcrita
no registo civil. Além disso, os casamentos católicos que fossem celebrados depois da
entrada em vigor da Concordata não podiam ser dissolvidos por divórcio.

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