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Armando Marques Guedes

O ESTUDO DOS SISTEMAS JURÍDICOS


AFRICANOS
ESTADO, SOCIEDADE, DIREITO E PODER

1
ÍNDICE

PREFÁCIO

Parte I
INTRODUÇÃO

1. ÂMBITOS E MÉTODOS GERAIS 5


1.1. POR UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR 10
1.1.1. A ENORME PROFUSÃO DE UNIDADES JURÍDICO-
NORMATIVAS PRESENTES EM ÁFRICA: A DIVERSIDADE DAS
FONTES 15
1.1.2. A INTERACÇÃO DOS ELEMENTOS
CONSTITUTIVOS DOS PLURALISMOS JURÍDICOS
AFRICANOS: A MULTIPLICIDADE DAS FORMAS
NORMATIVAS 16
1.1.3. A IMBRICAÇÃO-DISSEMINAÇÃO DE FUNÇÕES:
AS VÁRIAS DIMENSÕES DA NORMATIVIDADE NAS
SOCIEDADES AFRICANAS CONTEMPORÂNEAS 21
1.2. A COMPLEXIDADE ESTRUTURAL DESTES
DIREITOS 22

2. POR UMA REPERSPECTIVAÇÃO (PELA) POSITIVA


DOS DIREITOS AFRICANOS 24
2.1. AS INSUFICIÊNCIAS EMPÍRICAS E A FALTA DE
SISTEMATICIDADE DOS ESTUDOS EMPREENDIDOS 24
2.2. POR UMA REPERSPECTIVAÇÃO DOS DIREITOS
AFRICANOS ENQUANTO FIGURAS CONTRA FUNDO 28
2.3. O PAPEL SOCIAL E AS FUNÇÕES DO DIREITO
EM ÁFRICA 34
2.4. AS VERTENTES SOCIOCULTURAIS DOS
DIREITOS AFRICANOS: UM QUADRO POSITIVADO E
RELATIVIZADO 40

3. O RECONHECIMENTO PROGRESSIVO DA
PLURALIDADE DE FONTES DO DIREITO EM ÁFRICA
E OS AVANÇOS E RECUOS NO ESTATUTO DESTA 44

2
3.1. O EXEMPLO PARADIGMÁTICO DA
PROGRESSÃO PARALELA DO ESTATUTO “SOBERANO”
ATRIBUÍDO PELOS ESTADOS AFRICANOS A
ENTIDADES LOCAIS TRADICIONAIS, E DO ESTUDO
SOBRE ESTAS QUESTÕES 50
3.2. UM PONTO DE MÉTODO 51
3.3. UMA PERIODIZAÇÃO GENÉRICA 52
3.4. A FASE PÓS-COLONIAL 55
3.5. AS ALTERAÇÕES NOS PONTOS DE APLICAÇÃO E
DOS FOCOS DE ANÁLISE 61
3.6. OS NOVOS ENQUADRAMENTOS SOCIAIS 64
3.7. OS NOVOS VENTOS METODOLÓGICOS 67

4. OS ESTADOS, AS SOCIEDADES, O SISTEMA


INTERNACIONAL E A ÁFRICA: PRIORIDADES,
RELAÇÕES CAUSAIS, TRANSFORMAÇÕES E
CONSTRUÇÕES RECÍPROCAS
4.1. AS TEORIZAÇÕES “CENTRADAS NO ESTADO”
4.2. AS TEORIZAÇÕES “CENTRADAS NA SOCIEDADE”
4.3. AS PERSPECTIVAÇÕES DO TIPO GENÉRICO
“ESTADO NA SOCIEDADE”
4.4. ESTADO SOCIEDADE, DIREITO E A ANÁLISE DOS
PROCESSOS POLÍTICOS E JURÍDICOS PÓS-COLONIAIS
NA ÁFRICA CONTEMPORÂNEA
4.5. AS TÓNICAS NAS MODELIZAÇÕES RELACIONAIS
MAIS RECENTES QUANTO ÀS DINÂMICAS POLÍTICAS
PÓS-COLONIAIS EM ÁFRICA
4.6. OS ESTADOS E OS DIREITOS AFRICANOS ENTRE
O INTERIOR E O EXTERIOR

5. IMPLICAÇÕES CONJUNTAS DESTE ESTADO DE


COISAS PARA O DELINEAR DE UMA DISCIPLINA DE
DIREITOS AFRICANOS 69

3
Parte II
TRÊS EXEMPLOS RELATIVOS A DIREITOS
AFRICANOS LUSÓFONOS

6. UM ENQUADRAMENTO GERAL 72

6.1. A ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA E ALGUNS DOS


MEIOS “CONSUETUDINÁRIOS” ALTERNATIVOS EM
CABO VERDE 73
6.1.1. O PLURALISMO JUDICIÁRIO EM CABO VERDE:
VARIANTES E ENQUADRAMENTO 74
6.1.2. LITÍGIOS E PLURALISMO: UMA FORMA
“TRADICIONAL” VISITADA 77
6.1.3. UM PLURALISMO MAIS OSTENSIVO: AS
COMUNIDADES DE “REBELADOS” DA ILHA DE SANTIAGO

6.2. A ADMINISTRAÇÃO PERIFÉRICA DO ESTADO, A


ADMINISTRAÇÃO LOCAL E AS AUTORIDADES
TRADICIONAIS EM ANGOLA 80
6.2.1. DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO
ADMINISTRATIVA EM ANGOLA: UMA PROGRESSÃO EM
DUAS FRENTES 81
6.2.2. A ADMINISTRAÇÃO PERIFÉRICA, A
ADMINISTRAÇÃO LOCAL E AS “AUTORIDADES
TRADICIONAIS” EM ANGOLA: UM DESDOBRAMENTO
PARALELO? 88
6.2.3. REPRESENTAÇÕES DUALISTAS: ENTRE A
CULTURA E O PODER 86
5.2.4. OS LIMITES DA CONGRUÊNCIA 88

6.3. LITÍGIOS CONSTITUCIONAIS EM S. TOMÉ E


PRÍNCIPE 91
6.3.1. OS CONFLITOS CONSTITUCIONAIS NO
ARQUIPÉLAGO: LINHAS DE FORÇA 92
6.3.2. A BICEFALIA SEMIPRESIDENCIALISTA: UMA
CATADUPA DE CRISES 95
6.3.3. DA AUSÊNCIA DE INSTÂNCIAS JURISDICIONAIS
LOCALMENTE TIDAS COMO CREDÍVEIS AO PERFIL DO
PROCESSAMENTO-RESOLUÇÃO DOS LITÍGIOS
CONSTITUCIONAIS SANTOMENSES 101

4
6.3.4. AS DIMENSÕES SOCIOLÓGICAS DA LITIGAÇÃO
CONSTITUCIONAL EM S. TOMÉ E PRÍNCIPE: TRAÇOS
DISTINTIVOS 108

Parte III
PEDAGOGIA E PROGRAMA

7. O DESIGN DO PROGRAMA DA DISCIPLINA DE


DIREITOS AFRICANOS: PEDAGOGIA, OBJECTIVOS E
FINALIDADES 113
7.1. OBJECTIVOS E FINALIDADES 114
7.2. PEDAGOGIA E SISTEMÁTICA 118
8. PROGRAMA 124

ANEXOS 140
Anexo 1: Quadro relativo a palavras e expressões relacionadas com
feitiços e bruxaria em Cabo Verde 140
Anexo 2: : Quadro relativo a palavras e expressões relacionadas com
feitiços e bruxaria em S. Tomé e Príncipe 143

BIBLIOGRAFIA GERAL DESTE ESTUDO 146

5
PREFÁCIO

1.

Desde o ano lectivo de 2001-2002 que me foi


atribuída, pelo Conselho Científico da Faculdadede Direito
da Universidade Nova de Lisboa (FDUNL), a regência de
uma disciplina intitulada “Direitos Africanos”. A existência
de uma cadeira como essa numa Universidade pública
portuguesa é uma verdadeira lança em África. Mas o seu
significado e alcance não são necessariamente claros.
De um certo ponto de vista poder-se-á seguramente
considerar que se reata assim com uma velha tradição de
estudar e ensinar, nas instituições nacionais de Ensino
Superior, ordenamentos jurídicos com os quais temos
ligações históricas e umbilicais profundas. De outra
perspectiva, parece pacífica a ideia de que não faria grande
sentido hoje em dia ensinar e investigar, numa institução
universitária portuguesa, questões que se prendam com o
Direito positivo de novos Estados africanos que, na segunda
metade do século passado, ascenderam à independência
política. Como iremos ver, neste estudo esclareço, ainda que
o faça de maneira implícita, a minha posição relativamente a
este tipo de dúvidas e quanto à sua solução.
Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada à
Reitoria da Universidade Nova de Lisboa como Relatório
integrado num concurso académico para provimento de um
lugar de Professor Associado na Faculdade de Direito da
Universisdade Nova de Lisboa. O júri, que aprovou por
unanimidade esse passo na minha progressão na carreira
académica na FDUNL, foi presidido pelo Professor Doutor
Mário Vieira de Carvalho, Vice-Reitor da UNL, e pelos
Professores Diogo Freitas do Amaral, António M. Hespanha,
Manuel Pinto Barbosa, Jill Reaney Dias, Brian Juan O’Neil,

6
José Carlos Vieira de Andrade e João Caupers. Não quero
deixar de agradecer aos membros do júri as achegas que me
deram em resultado do que foram manifestamente leituras
atentas e cuidadas.
O texto que se segue reproduz, com pequeníssimas
alterações, aquilo que constou do Relatório apresentado.
Acrescentei-lhe, porém, uma subsecção (a correspondente ao
ponto 4.) sobre a teorização dos relacionamentos entre
Estado e sociedade em África, dada a pertinência que esses
enquadramentos teóricos têm tido para a conceptualizações
levadas a cabo quanto aos papéis do Direito no Continente. E
mudei aqui e ali alguns pormenores, em resultado da releitura
muito cuidadosa em que me empenhei.

2.

Ao percorrer a literatura jurídica e as publicações afins


dos últimos decénios, torna-se evidente que asserções sobre
“os Direitos Africanos” têm sido nelas moeda corrente. Tal
tipo de enunciados é comum. E o subtexto dessas
elaborações é óbvio. Ao que parece independentemente da
sua origem ou pontos de aplicação, o grosso das formulações
teóricas mais correntes presume de maneira implícita a
existência empírica de uma unidade de análise no que toca os
ordenamentos jurídicos do Continente.
Uma unidade essa cuja fundamentação e contornos não
são fáceis de vislumbrar. Será ela continental? Racial?
Histórico-evolucionária? Diferentes autores, como iremos
ver, têm assumido uma ou outra dessas várias posições. Para
uns, a “africanidade” enquanto critério unificador deve ser
encontrada num dos domínios. Para outros, noutro. Segundo
alguns mais ainda, uma combinação deles será a chave.
Todos todavia concordam na presunção de uma qualquer
unidade que nos permitiria agregá-los e isolá-los enquanto
“família” jurídica.

7
Generalizações deste tipo, em particular porventura
aquelas mais racial-evolucionistas que muitas vezes se têm
revelado como tão acriticamente aceites, são decerto bastante
reveladoras de impensados partilhados: muitas vezes uma ou
outra das convicções que as subtendem é nítida nos trabalhos
produzidos, sejam eles do âmbito dos estudos jurídicos
propriamente ditos, ou trate-se antes de esforços
sociológicos, jurídico-antropológicos, históricos, ou
juscomparatistas. Noutros casos não, e a sua eficácia torna-se
por conseguinte mais oblíqua.
A verdade, no entanto, é que, por pouca que possa ser
a nitidez das suas fontes, os pressupostos de um unitarismo
como esse contaminam as análises de maneira tão marcada
quão enganadora. Mais do que hipotéticas chaves para
melhores interpretações, tornam-se em veículos para
representações auto-sustentadas e por isso difíceis tanto de
detectar quanto de remover. O resultado são estudos a um
tempo parciais e reducionistas, que tendem por via de regra a
conseguir chegar pouco além de fabricações sistemáticas
levadas a cabo nos termos eles mesmos dos pressupostos
sobre os quais são construídas.
Uma vez enunciadas estas hesitações poderá parecer
paradoxal a retenção, no título deste trabalho, de uma
expressão tão carregada por esses implícitos como a de
“sistemas jurídicos africanos”. A minha razão para o manter
é táctica: permite-me desconstruir a noção de maneira
didáctica. Não é difícil perceber a mecânica dessa
desconstrução pretendida. Dada a diversidade histórico-
cultural, “evolucionária”, e até “racial” dos Estados
existentes no Continente africano, uma expressão como essa
torna possível gerar uma base comparativa de enorme
utilidade analítica. Tal como iremos verificar, a variedade de
sistemas jurídicos presentes no Continente permite-o.
É possível, assim, incluir na unidade taxonómica
difusa intitulada “Sistemas Jurídicos Africanos” (ou mesmo a
de “Direitos Africanos”) ordenamentos jurídicos
provenientes de fontes muito distintas umas das outras, cujas

8
semelhanças, por isso mesmo, emergem claramente como
oriundas de factores conjunturais (ou estruturais) de menos
longa duração, para utilizar um conceito “histórico”. Torno
clara no texto a forma que encontrei para evitar incorrer nas
possíveis ambiguidades que poderiam ser um dos preços
desse subterfúgio: não capitalizando a última palavra na frase
“Direitos africanos”, torno explícito que faço assim
referência, nas generalizações que levo a cabo, não a uma
qualquer “família” de Direitos, mas antes a um agrupamento
adventício e relativamente arbitrário dos ordenamentos que
vigoram no Continente.
Por isso e porque não tento, naquilo que se segue,
esboçar quaisquer comparações, seja a que nível for, não
pretendo neste curto trabalho de introdução esquissar um
estudo de Direito Comparado. Não quer isso porém dizer que
análises do tipo das que aqui empreendo, elaboradas nos
termos dos enquadramentos metodológicos que proponho,
não possa revelar-se útil para juscomparatistas eventualmente
interessado em ir além das limitações das estratégias gizadas
em Paris no ano já longínquo de 1900, e em tentar comparar
mais do que o obviamente comparável. Bem pelo contrário.
Mas tal facto indicia, isso sim, que será decerto em termos de
enquadramentos mais amplos, sejam eles, sociológicos,
políticos, históricos, ou todos estes, que podemos ter a
esperança de saber vir a plantear extrapolações
generalizantes mais bem fundamentadas.

3.

Neste como em qualquer outro estudo é inevitável a


escolha de um ponto focal. E porque este trabalho não
pretende, de maneira nenhuma, formar um qualquer esboço
de uma eventual “Introdução” aos Sistemas Jurídicos
Africanos, em nome de alguma unidade ensaística foram
deixados de fora temas que nele poderiam ter sido tratados.

9
Em muitos casos fi-lo no quadro da disciplina de Direitos
Africanos que tenho vindo a ministrar na Faculdade de
Direito da UNL. Noutros não.
Assim, por exemplo, abordo aí por via de regra os
impactos que esforços de codificação têm tido sobre os
“Direitos consuetudinários” em vigor em África,
problematizando, ao longo de toda uma sessão, por
intermédio de diversos exemplos africanos, a ideia,
infelizmente arreigada em muitos círculos, de que tais
formalizações sejam de algum modo neutras e que por isso
não tenham pesadas consequências substantivas quanto à
normatividade assim cristalizada.
Toco também em pormenor, no contexto do programa
da disciplina, uma outra questão a que aqui não faço senão,
en passant, uma breve alusão: a dos vários sentidos de que é
passível a interpretação de noções tão difusas e tal
instrumentalizáveis como as de “tradição” e de “costume”.
No decurso do semestre em que decorremas aulas, dedico a
este tema duas sessões: numa delas, reperspectivo histórica e
“genealogicamente” a noção de “Direito tradicional”;
enquanto que na outra, esmiuço em detalhe as discussões que
tem havido,sobretudo no mundo académico anglo-saxónico,
sobre a “invenção de tradições” em África.
Da mesma maneira, não faço no presente estudo senão
muito sucintas referências a dois tópicos outras tantas sessões
do programa que tenho vindo a ministrar. Uma relaciona-se
com a aplicabilidade e a aplicação, aos casos africanos
contemporâneos, de conceitos como o de “sociedade civil”.
Nesse âmbito,discuto em pormenor não só a evuloção a que
tal conceito tem estado sujeito, como as transformações que
deve sofrer de modo a ser útil para a análise da criação
progressiva de um “espaço público”, de uma “opinião
pública”, e de “movimentos” de “participação política” no
Continente.
Um outro debruça-se sobre os problemas suscitados
pela exigência imperativa de uma real legitimação dos
Estados africanos pós-coloniais. Nos dois casos, o papel

10
do”jurídico” é central. Parece-me, no entanto, que seria
todavia prematura e algo deslocada a discussão destes temas
complexos num trabalho que não pretende mais do que
delimitar âmbitos teórico-metodológicos para o estudo dos
sistemas jurídicos em formação na África pós-colonial.

11
Parte I

INTRODUÇÃO

The African experience cannot be fully understood


through its subordination, as it were, to the experiences
of others. While an awareness of the experiences of
others can be very useful from both a scholarly and a
policy point of view, those experiences should not
themselves become the implicit or explicit narratives
from which the African reality is deduced. Africa needs
to be understood primarily in terms of its own dynamics,
which are the products of the interplay of internal and
external factors. This project is one of the most
important intellectual challenges confronting students of
Africa at this stage of the continent’s history.

Adebayo Olukoshi (1999), “State, conflict and


Democracy in Africa: the complex process of renewal”,
in (ed.) R. Joseph, State, conflict and Democracy in
Africa: 453, Lynne Rienner, Publications.

Instead of adding to Africa’s marginalization by


asserting its cultural uniqueness, we see value in
situating our studies within the ambit of mainstream
analysis. [This will allow us] to highlight [its] singularity
- as well as [its] similarity - [in relation to other parts of
the world].

Michael Bratton e Nicolas van de Walle (1997),


Democratic Experiments in Africa. Regime transitions in
comparative perspective: 10.

1. ÂMBITOS E MÉTODOS GERAIS

É minha finalidade, neste trabalho introdutório1,


esboçar uma visão de conjunto geral sobre o estudo dos
1
Para além das leituras atentas a que foi sujeito por Diogo Freitas do Amaral,
António M. Hespanha, Manuel Pinto Barbosa, Jill Reaney Dias, Brian J. O’Neil, José
Carlos Vieira de Andrade e João Caupers, o texto deste curto estudo introdutório foi

12
Direitos Africanos contemporâneos tal como tento expô-la na
disciplina a que se reporta. O que ensaio naquilo que se
segue salda-se, por isso, em pouco mais do que numa
primeira proposta para uma abordagem destes Direitos. Por
razões óbvias, o ponto focal de muito do que aqui e aí trato
está posto nos Direitos em vigor nos PALOP. Mas o âmbito
de aplicação do esforço de análise que proponho é mais
amplo.
Vale a pena começar por explicitá-lo. A expressão
“Direitos Africanos”, no sentido em que a uso, não pretende
fazer alusão a uma qualquer hipotética “família” de Direitos,
nos termos em que, por exemplo, os juscomparatistas tendem
a utilizar o conceito2. Este não é um estudo de Direito
Comparado. Vi-me, tão-somente, na contingência de dever
dar corpo a uma delimitação geográfico-continental implícita
no título de uma disciplina que sempre existiu no currículo
da licenciatura em Direito ministrada na Faculdade de
lido e profusamente comentado (umas vezes no seu todo, outras em parte) por Ana
Cristina Nogueira da Silva, Armando M. Marques Guedes, N’Gunu Tiny, Nuno
Piçarra, Ravi Afonso Pereira e Rui Pinto Duarte. A versão final muito beneficiou com
o feedback crítico resultante dessas múltiplas leituras críticas. A responsabilidade pelo
produto final é, naturalmente e no entanto, inteiramente assumida por mim.
2
Para uma discussão, breve mas muito desconstrutivista e precisa, sobre a relativa
parcialidade analítica (apesar da sua utilidade prática) da noção de “famílias jurídicas”
(ou “círculos” jurídicos) ver, por todos, Rui Pinto Duarte, 2000: 26-32. Curiosamente,
para o Direito Comparado, a expressão Direitos Africanos parece abranger apenas os
Direitos de uma ou de outra forma “originários” da África Negra (vd. K. Zweigert e
H. Kötz, 1988: 58ss). Embora os esquemas taxonómicos utilizados variem
ligeiramente de Autor para Autor, e se distingam um pouco uns dos outros no que
toca às fundamentações encontradas para delinear semelhanças e contrastes entre
sistemas (e portanto utilizadas para os agrupar), a arrumação que logram é bastante
estável. Como irei argumentar em várias notas de rodapé, a classe (uma “família”, de
acordo com a larga maioria dos especialistas) dos “Direitos Africanos” é das que me
parece menos bem fundamentada: os denominadores comuns que exibe proviriam de
hipotéticas semelhanças entre todos os grupos “negro-africanos” no que toca,
designadamente, a ideais como o “comunitarismo” ou as “noções de propriedade” (cf.
eg, R. David, 1982: 31ss). No entanto, e como tem sido muitas vezes notado, tais
convergências poderão ser resultado de paralelismos no que toca ao seu nível de
desenvolvimento e não indiciar, por isso, uma pertença comum a uma hipotética
família jurídica própria da África. No que se segue prefiro a expressão “Direitos
africanos” quando faço alusão ao conjunto dos Direitos existentes no Continente;
apenas utilizo a denominação de “Direitos Africanos” quando pretendo aludir à
disciplina ministrada ou à entidade criada por alguns juscomparatistas.

13
Direito da Universidade Nova de Lisboa. O que se segue
engloba tanto os Direitos lusófonos existentes no Continente,
como os anglófonos e os francófonos. Inclui, ainda, os
Direitos da família muçulmana lá implantados.
Convirá também não deixar de fornecer algumas
explicações gerais no que diz respeito aos métodos que
aplico. O ponto de vista que privilegio não se atém à
assunção de uma postura analítica com preocupações e
tonalidades estritamente jurídicas. Acrescenta-lhe uma
dimensão sócio-antropológica, adicionando a esse olhar
jurídico uma perspectiva panorâmica que veja essa
normatividade como estando imbricada na concreção mais
generosa que a aglutina a outras formas normativas que em
África por via de regra a ela se agregam, e encarando-a ainda
como estando embutida em contextos socioculturais muito
específicos; tal como também a tenta redimensionar,
entrevendo-a em termos histórico-políticos.
Uma curta última nota. Para além de no que se segue
me restringir a uma abordagem meramente introdutória e tão-
somente indicativa, a perspectivação que ora proponho
quanto ao estudo dos Direitos africanos é apenas uma das
várias possíveis. Se bem que não me limite a tal, encaro esses
Direitos essencialmente do ângulo que melhor realça e que
com maior nitidez põe em evidência o pluralismo a que dão
corpo. Em alternativa, poder-se-ia, por exemplo, retratá-los
de um mais amplo ponto de vista político, ou ainda de um
ângulo cultural, para só enumerar duas outras possibilidades.
Foi porém o do pluralismo o viés que preferi, se bem que
muitos outros também fossem razoáveis.
A minha preferência não é inocente: ao escolher
vislumbrar os Direitos que me proponho abordar no
enquadramento disponibilizado pelo pluralismo que
ostentam, privilegiei as tonalidades jurídicas na minha
abordagem. A essa escolha adicionei outras, que cabe
enunciar. O enfoque empírico em que entrevejo e configuro
os pluralismos africanos é o dos relacionamentos entre os
Estados pós-coloniais e as respectivas sociedades. Nos

14
termos dessa moldura e com este enfoque, encaro os Direitos
dos PALOP como sendo, no essencial, operadores complexos
da comunicação política (uma comunicação muitíssimo
negociada e contestada) existente entre as elites que
controlam esses Estados e as sociedades que neles vivem3.
O que não deixa de ter implicações, já que tanto estas
escolhas quanto essa restrição naturalmente têm um preço.
Assim, por exemplo, em resultado desta minha opção
ficaram relegadas para uma relativa penumbra investigações
tão cruciais como as que digam respeito ao apuramento do
lugar estrutural destes Direitos no sistema internacional4,
aquelas outras que se prendem com dimensões económicas
das ordens normativas na África contemporânea, ou ainda as
relativas à oratória e retórica jurídicas, com formas sui
generis no Continente.

3
Ainda que este seja tema que não cabe desenvolver na economia deste estudo
introdutório, algumas precisões parecem-me, a este respeito, apropriadas. Não
pretendo, com a formulação que utilizei, asseverar que o Direito é, para as elites
africanas que detém poder no Estado, o formato privilegiado com intencionalidade
escolhido para comunicar políticas à sociedade. Embora obviamente tal possa ser (e
muitas vezes é-o) o caso. Não é também minha intenção declarar, o que seria mais
forte ainda, que o Direito seja de natureza no essencial semiótica, se esgote no seu
formato comunicacional, e seja por isso passível de uma análise equacionada de
acordo com metodologias linguísticas ou aparentadas. Por diversas razões, não creio
ser esta uma sua descrição adequada, ainda que os factos empíricos se lhe ajustem de
maneira interessante porque reveladora de conexões e afinidades electivas de fundo.
Direitos exibem sempre aspectos performativo-pragmáticos que excedem largamente
significados e ressonâncias semânticas (muitas vezes contrariando-os de forma
ostensiva) das articulações a que dão corpo. Julgo mais apropriado, nesta linha,
conceber a normatividade jurídica (em sociedades africanas ou em quaisquer outras)
como com maior utilidade conceptualizável como estando de algum modo a meio
caminho entre a linguagem e a acção, localização essa que, aliás, partilha com formas
rituais.
4
Esta constitui uma das diferenças diacríticas entre a minha perspectivação dos
Direitos africanos e a de Boaventura de Sousa Santos: enquanto Sousa Santos em
última instância ancora os quadros explanatórios que vai gizando na localização-
inserção e na funcionalização do lugar estrutural destes Direitos num “Sistema-
Mundo” global e abrangente (vd., designadamente, B. Sousa Santos, 2003), prefiro
mais modestamente encará-los em termos da dinâmica dos relacionamentos que vão
vigorando, a um nível muito mais local, entre sociedades e Estados. Longe de se
contradizerem, estas duas posturas analíticas parecem-me complementar-se
mutuamente. Retomo este ponto noutras anotações em pé de página,bem como na
última subsecção do ponto 4. deste estudo.

15
Fazer uma escolha (quaisquer que fossem os seus
termos e apesar do seu preço) era porém inevitável. Espero
vir a abordar em trabalhos futuros esses e outros temas por
ora secundarizados.

1.1. POR UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR

Tendo em conta a perspectivação que decidi


privilegiar, parece-me imprescindível que comece pela
formulação de uma série de considerações prévias, já que por
vezes atribuo a alguns termos campos semânticos que
diferem dos convencionados no seu uso comum entre
juristas.
Faço-o desde logo no que diz respeito ao âmbito de
alguns dos conceitos a que recorro. “Direito” é termo aqui
utilizado em sentido lato: abarca, por isso, os “usos e
costumes” locais, para além da produção normativa dos
Estados. Não exclui, também, os Direitos, que tão
florescentes se têm mostrado na África contemporânea e a
que decerto podemos chamar híbridos, já que são ordens
normativas compostas por doseamentos variáveis (e
ordenamentos muitas vezes sem uma lógica própria)5 de
múltiplos elementos oriundos de vários fontes e integrando
outros tantos ingredientes institucionais também muitíssimo
diversificados.
O meu posicionamento de fundo é simples de
enunciar: só pela adopção de uma franca
pluridisciplinaridade será possível tornar inteligíveis os

5
Este ponto tem sido enunciado por virtualmente todos os autores que se têm
debruçado sobre Direitos africanos. Para duas discussões críticas recentes e sucintas
quanto aos traços distintivos desta assimilação-aglutinação, ver N. Rouland (1994,
original de 1988: 303-314) e, relativamente à integração num sistema jurídico, e
sobretudo judicial, “ocidental” dos Direitos costumeiros sul-africanos, M. Mamdani
(1996: 109-138). Os dois autores encaram os processos como expressão da vontade de
controlo e dominação coloniais. Rouland fala nas “colonisations juridiques”;
Mamdani na “theory of decentralized despotism”.

16
Direitos africanos contemporâneos6. Sem descurar métodos
jurídicos, um ponto de vista como este adiciona-lhes por
conseguinte quadros e procedimentos analítico-
interpretativos por vezes originários de domínios
disciplinares tão diversos como a Antropologia Jurídica e
Política, a Sociologia, a Ciência Política, as Relações
Internacionais e a História7.
Como é obvio, insisto, nenhum destes sucessivos
redimensionamentos que levo a cabo é metodologicamente
inconsequente8. Este é um tema que, de uma ou de outra
maneira, irei retomar ao longo de todo este trabalho.
6
Sem prejuízo, naturalmente, de uma eventual convicção de que só
pluridisciplinarmente se pode esperar tornar inteligíveis quaisquer Direitos, posição
que neste trabalho sustento em várias notas de rodapé. Parece-me que os os estudos
sobre Direitos africanos constituem, em todo o caso, um exemplo-limite das
vantagens analíticas da transdisciplinaridade.
7
O que, de qualquer maneira, não redunda numa inovação. Citando Max Gluckman,
um jurista cum antropólogo sul-africano e um dos pais fundadores tanto da
Antropologia Jurídica como do estudo dos Direitos africanos, R. David (1982, op. cit.:
565) notou, com um tom de anuência, que “les auteurs européens se sont demandés,
en présence de ce qui leur apparaît comme une inextricable confusion, s’il n’était pas
artificiel de vouloir retrouver en Afrique et Madagascar notre notion du droit, et si le
droit coutumier de ces pays ne devait pas être considéré comme un objet de recherche
pour l’anthropologue plutôt que pour le juriste”. A resposta de muitos investigadores
tem sido positiva.

8
Independentemente das linhas de argumentação que vou preferindo relativamente a
questões específicas, ou em paralelo com elas, cabe neste ponto uma breve alusão
histórico-epistemológica a um tema que aliás retomarei (sempre em pé de página) ao
longo deste trabalho: trata-se de pôr em evidência a irredutibilidade última da ciência
jurídica, encarada como ciência do espírito, por contraponto às ciências da natureza,
estas mais preocupadas em explicar do que em compreender. Esta renovação
metodológica que veio romper com a convicção positivista de unidade metódica de
todos os processos de conhecimento foi evoluindo ao longo do século XX. Um
exemplo: o Direito Público teve de esperar pela Alemanha de Weimar para que lhe
fosse reconhecida uma verdadeira autonomia dogmática, então proporcionada por
aquilo que ficou conhecido como a “querela dos métodos” (Methodenstreit). Sobre
esta evolução metodológica, decisiva para a compreensão de um novo conceito de
Constituição (que nela encontra a sua possibilidade teórica), comentou Maria Lúcia
Amaral “[p]or causa [da convicção de unidade metódica de todo o conhecimento
científico], Laband isolara assepticamente a Constituição, o Estado, a lei e todos os
restantes fenómenos jurídico-públicos de “nefastas” e acientíficas” considerações
“extra-jurídicas”. Fechara o seu estudo às interferências da história, da filosofia e de
tudo o que pudesse fazer parte do ambiente cultural envolvente – como se a ciência do
direito público pudesse ser construída com total ignorância da especificidade
teleológica dos fenómenos a que se dirigia”. E acrescentou ainda esta A.: “[a]s

17
1.1.1. A ENORME PROFUSÃO DE UNIDADES
JURÍDICO-NORMATIVAS PRESENTES EM ÁFRICA: A
DIVERSIDADE DAS FONTES

Mas há mais. Aduzir fundamentos empíricos e


explicitar motivos teórico-metodológicos tornará decerto
mais inteligíveis algumas das razões de pormenor para a
minha preferência multidisciplinar.
Sublinharei três ordens de fundamentações para a
escolha que a esse nível fiz. Uma delas, a primeira que me
parece imprescindível referir, prende-se com a (muitas vezes
enorme) profusão de unidades jurídico-normativas existentes
na maior parte das sociedades instaladas no Continente
africano.
Essa profusão é notória. Um pouco de recuo permite-
nos pô-la em perspectiva. Comecemos pelo que nela há de
mais óbvio. Não faria qualquer sentido ignorar a marca, em
África, dos Direitos modernos9 de várias origens europeias:

“teorias da Constituição”, que marcam a literatura alemã do princípio do século e que


acompanham o destino histórico da República de Weimar, exprimem a resposta dada
pela Methodenstreit a esta ignorância teleológica; cortam com o isolamento dos
estudos do direito constitucional face à interdisciplinaridade; reabilitam a irredutível
particularidade deste mesmo direito como direito político, sublinhando a
especificidade teleológica do mundo que ele pretendia ordenar” (Maria Lúcia Amaral,
1998: 261-262). Um exemplo que (como irei insistir mais adiante noutras notas em
rodapé) poderia facilmente ser generalizado a outros domínios do estudo e da análise
do jurídico. Parte daquilo que pretendo no presente trabalho mais não é do que
assegurar a implantação desta já histórica renovação metodológica, um acquis de
raízes bem definidas (e uma renovação hoje aceite de forma praticamente universal),
arvorando-a em um dos pontos de partida (se bem que não o único) para aquilo que
me esforço por levar a bom porto na área dos Direitos africanos; um domínio em que
a intrincação do político, do religioso, do económico, do histórico e do sociocultural
no jurídico nos não pode (tal como o não fazia para os defensores e protagonistas da
Methodenstreit) causar estranheza.
9
Para uma posição com bastantes afinidades com a que aqui assumo (ainda que, tanto
quanto é possível apurar por uma leitura, sem totais coincidências a nível de
pressupostos; e perseguindo objectivos e usando metodologias assaz diferentes), cf. o
estudo juscomparatista introdutório sobre a pluralidade de fontes dos Direitos
africanos de P.-F. Gonidec (1968): sobretudo pp. 2-3. Se é comum o reconhecimento
da evidência de que coexistem na maioria dos Estados do Continente várias ordens

18
directa como indirectamente, a impressão deixada, mais do
que profunda, é muitas vezes dominante; como tem sido
abundantemente sublinhado, esse imprimatur parece ter-se
intensificado com as independências.
Todavia estes Direitos transferidos, cujas fontes e
técnicas raramente coincidem com as locais, não são os
únicos a reger a vida e as interacções sociais dos africanos. E
não o são a vários níveis: a começar pela evidência de os
Direitos estaduais em vigor nos novos Estados africanos não
funcionarem verdadeiramente de modos idênticos aos
Direitos dos Estados europeus em que tiveram origem.
Mesmo quando e naquilo em que as suas arquitecturas
normativas se assemelham às dos seus ordenamentos-fonte,
seria um erro presumir que se trataria por isso de sistemas
entre si directa e linearmente aparentados; bem pelo
contrário, são “arranjos” que se vêem progressivamente
alterados pelo simples facto de que nos novos contextos de
recepção em que são inseridos convivem com outros
ordenamentos, que brotam de matrizes socioculturais muito
diferentes e que os não deixam incólumes10.
A situação hoje em dia vivida na maior parte do
Continente (nalguns casos assumida, noutros não) é com
efeito uma situação que não pode senão ser marcada por um
efectivo pluralismo jurídico. E é-o num sentido pleno. O
resultado das enormes confluências de ordenamentos que
caracterizam a África contemporânea tende a ser a
cristalização de configurações intrincadas que incluem tanto
normativas (sendo os Direitos estaduais apenas uma delas), mais rara é a assunção do
facto de que é falacioso encarar os Direitos estaduais como idênticos (ou até
semelhantes num sentido mais do que superficial) aos Direitos europeus em que
tiveram origem.
10
Se bem que esse não seja tema deste trabalho introdutório, convém notar que as
inúmeras (e muito vezes profundas em consequências) alterações introduzidas pelos
contextos de recepção, como lhes chamei, se aplicam desde sempre (por assim dizer)
aos Direitos africanos: é, por isso, descabido presumir, por exemplo, que os africanos
teriam sido recepientes e receptores passivos dos Direitos-fonte europeus que os
inspiraram. Para uma discussão pertinente, ver a primeira parte do artigo-introdução
de Jan Nederveen Pieterse e Bhikhu Parekh, (1995), que utilizo na bibliografia
obrigatória da disciplina (ver Anexo 3).

19
uma pluralidade de fontes como uma multiplicidade de
planos normativos, que se interpenetram e interagem
profusamente entre si11.
Se isso não inviabiliza a hipótese de estudar estes
verdadeiros complexos normativos segundo metodologias
jurídicas clássicas, não deixa porém de ter implicações, desta
feita a um nível epistemológico de fundo12. Implicações essas
que me parece essencial saber tomar em linha de conta,
assumindo-as com frontalidade, se os quisermos
compreender sem drasticamente os simplificar.
Exemplos disso abundam, e é fácil ilustrar o que
acabei de afirmar com alguns. Um denso pluralismo jurídico
e sociológico, com efeito, emerge um pouco por toda a
África. Em muitos casos, a densidade manifesta é
surpreendente. Exemplificando de maneira impressionística e
sem querer entrar em detalhes que aqui não teriam
cabimento: a Nigéria é um dos países africanos mais
complexos a este nível, com leis de origem britânica a
coexistir com sistemas indígenas de Direito costumeiro (um
sistema para cada um dos trezentos e cinquenta
agrupamentos etnolinguísticos oficialmente reconhecidos) e
11
Desde há já muitos anos que os problemas de unificação e harmonização dos
Direitos costumeiros e dos Direitos modernos africanos têm vindo a ser discutidos.
Duas das colectâneas mais importantes a este nível são as organizadas pelo britânico
A. Allot (1971) e pelos sul-africanos H. e L. Kuper (1965). Para uma discussão mais
recente, B. Durand (2002), num artigo denso e exímio. É curioso equacionar o muito
real dilema a que os líderes africanos pós-coloniais têm tido que fazer face, a este
nível. Para muitos políticos africanos, almejar uma integração jurídica e judiciária tem
sido encarado como um passo imprescindível para lograr construir uma sociedade
mais homogénea e por isso mais pacífica. Enquanto que, para outros, ao contrário,
respeitar a diversidade e heterogeneidade jurídica e judiciária existentes tornou-se
essencial para, ao permitir expressões socioculturais alternativas, garantir o mesmo
fim: erigir uma sociedade mais pacífica.
12
Quanto a estes pontos, ver N. Rouland (op. cit.) e o trabalho de recensão mais
recente de J. Moret-Bailly (2002), em que não só a natureza multifacetada daquilo que
tem vindo a ser entendido como pluralismo jurídico é discutido em pormenor, como
ainda são perspectivadas as implicações metodológicas desses entendimentos. Apesar
de tal tema não caber neste trabalho, compete notar que a própria noção de
“pluralismo jurídico” tem vindo crescentemente a ser problematizada e a sua utilidade
analítica tem sido mesmo posta em dúvida; para uma das muitas perspectivas críticas,
ver B. Z. Tamanaha (1993).

20
tendo adoptado (sobretudo no Norte do país) legislação
islâmica, num complexo sistema tripartido. Como que para
ainda intrincar mais as coisas, nalgumas jurisdições
nigerianas, a shari’a islâmica é aplicada como uma variante
do Direito costumeiro, noutras enquanto sistema separado e
distinto13.
Um ilustração não-bantu leste-africana exibe o mesmo
tipo de intrincação e complexidade. No Quénia estão
instalados cinco níveis de Tribunais, entre os quais seis
tribunais cádi. Vigoram entre os quenianos, para além de
uma variante da common law britânica, o Direito
muçulmano, bem como numerosos (contando-se por largas
dezenas) Direitos consuetudinários; e, para casos ligados a
casamentos, divórcios e sucessões, há no país tribunais com
competência jurisdicional para receber questões e decidi-las
em termos da lei hindu.
Estes não são casos isolados. Mesmo se sairmos das
regiões do Continente de maior penetração islâmica, esta
complexidade e este enredar de diferentes ordens normativas
não se esbatem muito14. Nos Camarões, na África Central,

13
Uma situação que se começou a intensificar a partir de 1999, ano em que o
Governador de Zamfara, um dos Estados do Norte da Federação, decidiu adoptar o
“código criminal” shari’a (uma novidade, visto que a lei islâmica, até então, apenas
tinha sido utillizada, sem grandes controvérsias, para questões de família). O efeito de
bola de neve foi rápido: a prática alastrou e entre essa data e 2003, doze dos trinta e
seis Estados nigerianos tinham anunciado que o código shari’a substituiria, nos
territórios sob sua jurisdição, os códigos seculares até aí em vigor.
14
Numa arrumação alternativa, baseada em critérios mais atidos a compatibilizações
de regras e menos ligados às fontes destes Direitos: carregados com uma herança
colonial que tendia (pelo menos na prática) a manter situações de marcadíssimos
pluralismos jurídicos e jurisdicionais, alguns dos Estados africanos pós-coloniais
ensaiaram esforços de harmonização de estruturas e procedimentos judiciais e uma
homogeneização de regras de casamento e/ou sucessórias (foi o caso,
designadamente, do Senegal e da Tanzânia). Nalguns dos casos, foi esboçada uma
unificação sob a égide de Direitos de inspiração “ocidental” (o Senegal e a Costa do
Marfim são dois dos muitos exemplos disso); noutros (como na Mauritânia ou no
Sudão, eg.) foi empreendida uma tentativa funcionalmente equivalente, dessa feita no
quadro de um outro sistema jurídico também bastante unificado, o do Direito
islâmico. Em muitos casos ainda, os Estados pós-coloniais, com algum realismo,
operaram (tant bien que mal) uma divisão do território e/ou da população sob sua
tutela em jurisdições separadas (os casos da Nigéria, do Quénia ou do Congo, para só
dar três exemplos, são testemunhos dessa estratégia alternativa). Outros Estados

21
estão instalados três sistemas judiciários: um de common law,
outro ligado ao Direito civil de origem francesa, e outros
vinculados a Direitos costumeiros representando mais de
duzentos grupos etnolinguísticos (no Sul deste Estado centro-
africano influenciados pelo Cristianismo, no Norte pelo
Islão). O Congo e Angola, ainda que sem influências
muçulmanas fortes, não divergem muito deste padrão, apesar
de, nestes casos, a situação de fluxo causada pela passado
político-militar recente não o deixar tornar-se tão evidente
para um observador externo.
Se virarmos a atenção para os Estados magrebinos do
Norte, em que o Islão é hegemónico, a situação de pluralismo
jurídico e jurisdicional mantém-se, numa convivência muitas
vezes truculenta entre, por um lado, os ordenamentos ligados
a essa religião revelada, por outro lado o Direito dos Estados
(de matriz europeia) e, por outro lado ainda, as múltiplas
normatividades tradicionais (e bastante mais localizadas) que
por norma em muitas regiões continuam a marcar uma
presença indiscutível. Muitos dos problemas políticos vividos
nesses Estados são reconduzíveis, mais ou menos
directamente, às dificuldades na assunção dessa identidade
plural.
São com efeito fáceis de imaginar as tensões e
conflitos que estes tipos de pluralismos densos
desencadeiam, tanto na vida político-judicial destes Estados
como no plano das investigações científicas levadas a cabo
sobre estes “sistemas”. Sobretudo em áreas nevrálgicas da
vida social, cultural e “política” como a família, o casamento,
as heranças, a propriedade fundiária e as transacções
materiais em geral, ou os mecanismos e dispositivos
“judiciais” e “penais”, os problemas com que esbarraram
tentativas de unificação ou, até, harmonização, cedo se
fizeram sentir.

ainda, considerando prematuras (e, é curioso, potencialmente divisionistas) quaisquer


tentativas de harmonização, as distinções normativas e jurisdicionais herdadas do
período colonial foram retidas e, até, muitas vezes plenamente assumidas pelos
respectivos líderes africanos.

22
Como seria de esperar, este e outros tipos de conflitos
e tensões (aliadas a flutuações político-programáticas de
fundo que têm marcado a vida pós-colonial em África) têm
levado a enormes fluxos e refluxos na composição e
hierarquias evidenciadas nessa amálgama plural de
ordenamentos, que se saldam por grandes avanços e recuos
nos pluralismos jurídicos, jurisdicionais e sociológicos
existentes no Continente15. Em resultado disso, a progressão
diacrónica verificada é por via de regra tudo menos linear e
não deve ser subestimada por quem verdadeiramente
pretenda compreender as suas configurações: a complexidade
existente é um verdadeiro alvo em movimento, o que não
pode senão colocar entraves a quaisquer generalizações ou
simplificações fáceis que possamos querer aventar.
A África “lusófona” não escapa a esta padronização
geral. E isto apesar das especificidades que decerto patenteia.
É verdade que, com a excepção da Guiné-Bissau16 (e, em
15
Fluxos e refluxos esses de origens variadas. As tentativas de unificação e
harmonização a que aludi tiveram com efeito elas próprias várias fontes, na África
pós-colonial. E muitos casos (designadamente no Quénia, ao tempo do Presidente
Jomo Kenyatta), verificou-se que uma harmonização dos vários regimes em vigor (o
estatutário, os costumeiros, os islâmicos e os hindus) não podia esperar por alterações
jurisprudenciais acumuladas: deixados aos tribunais este processo de integração
tornava-se lento e moroso, para além de imprevisível. A escalada dos riscos jurídico-
políticos que isso envolvia para as agendas políticas nacionalistas quenianas e a
distância do horizonte temporal levaram Kenyatta à conclusão de que o sector público
do Estado também tinha de estar activamente envolvido no processo, tomando
decisões políticas de fundo que agilizassem as convergências ansiadas; em 1967 foi,
por conseguinte, nomeada uma Comissão que, curiosamente, recomendou a
manutenção dos quatro tipos de contratos matrimoniais em vigor, limitando-se a
sugerir a imposição de exigências básicas comuns a todos eles. Não é difícil
encontrar, nos casos dos PALOP, paralelismos ostensivos. Note-se, no entanto, que
para além de questões de prudência avisada, outros motivos há para que nem sempre
estas intervenções políticas acelerem mudanças de formas muito significativas: já que
tendem muitas vezes a resultar numa proliferação de comissões, a envolver morosas
negociações entre forças políticas, e a tropeçar em concessões recíprocas quantas
vezes lentas e laboriosas entre interesses públicos e privados.
16
No que toca ao caso da Guiné-Bissau, é fascinante a leitura do artigo de A. de Silva
Dias (1996), em que são discutidos problemas suscitados, no plano do Direito Penal
(nomeadamente ao nível da responsabilidade jurídico-penal) guineense, por questões
como a da prática tradicional do infanticídio ritual de crianças suspeitas de
transportarem um ucó (um espírito maligno), comum entre as etnias Mancanha,
Manjaco, e Papel.

23
muito menor escala, Moçambique), os PALOP exibem
variantes relativamente soft dos níveis de diversidade típicos
da África subsaariana nos seus pluralismos jurídicos. Mas, de
uma ou de outra maneira, não deixam de os exibir e de viver
muitos dos problemas que isso acarreta17.
Depois de uma longa introdução, abordarei alguns
exemplos lusófonos, com bastante pormenor, na Parte II do
presente estudo.

1.1.2. A INTERACÇÃO DOS ELEMENTOS


CONSTITUTIVOS DOS PLURALISMOS JURÍDICOS
AFRICANOS: A MULTIPLICIDADE DAS FORMAS
NORMATIVAS

Uma segunda ordem de razões para preferir a


interdisciplinaridade no que ao estudo dos Direitos africanos
diz respeito, prende-se com um dos traços dos pluralismos
jurídicos e jurisdicionais que acabei de pôr em evidência: a
interacção dos seus elementos constitutivos. Uma questão
fundamental, em vários dos sentidos deste termo.
O que mais interessante se afirma no estudo dos
sistemas jurídicos africanos actuais é decerto aquilo que, ao
mesmo tempo, os torna mais refractários em relação a
quaisquer explicações simples e unitárias: a saber, o enovelar
densíssimo das múltiplas ordens normativas que neles se
conjugam, um entretecer que emerge sobre a base de uma
difícil dissociabilidade entre os ordenamentos normativos
estaduais “europeus” de que desses conjuntos fazem parte
integrante e as matrizes culturais locais que muitas vezes tão
profundamente os redimensionam.
Trata-se, infelizmente, de uma indissociabilidade que
muitas vezes tendemos a subvalorizar. Tal como, aliás,
tendemos também a subestimar a importância dessa trama,

17
Ver os três exemplos que discuto na Parte II do presente trabalho, que os abordam
segundo vários ângulos.

24
desse entretecimento ou enovelamento. Uma primeira
aproximação dos fenómenos jurídicos na África
contemporânea, por muito cursória que possa ser, revela-o
porém com clareza. Com esse intuito, vale a pena determo-
nos um pouco sobre estas características da estrutura desses
Direitos.
Para melhor aflorar e entrever essas características
estruturais, talvez seja útil começar a circunscrevê-las e
identificá-las “de cima para baixo”, por assim dizer, do mais
para o menos geral. Em muitos casos, porventura na larga
maioria, a nível jurídico como em muitos outros planos,
tradicionalismo e modernismo estão, nas sociedades
africanas pós-coloniais de hoje, de tal forma entremeados18
que se torna dúbia a utilidade analítica deste venerável par de
conceitos19.
Mais uma vez, os exemplos empíricos abundam. Em
largos sectores das vidas locais e nacionais vigoram, em
18
Um ponto magnificamente posto em evidência impressionística por Sally Falk
Moore, jubilada em finais de 2002 como professora de Antropologia Jurídica em
Harvard, quando escreveu que: “when, at the foot of Mount Kilimanjaro, one meets a
blanket wearing, otherwise naked, spear-carrying Maasai man on a back path in the
Tanzanian bush, one notices that he has a spool from a Kodak film packet in his
earlobe as an earring plug. That earring alone is sufficient to indicate that he is not a
total reproducer of an integrated ancestral culture. His film spindle is made of
extruded plastic manufactured in Rochester, New York, his red blanket comes from
Europe, his knife is made of Sheffield steel. Dangling from a thong around his neck is
a small leather container full of Tanzanian paper money, the proceeds from selling
his cattle in a government–regulated market. The price of his animals varies with
world inflation. The roads nearby have buses with tourists. The international
economy has penetrated everywhere. Ideas and information have moved with it. All
peoples live within nations and have seen the silvery side of planes flying over their
lands. The definitions of social part and social whole have changed” (1986: 4-5). É
curioso verificar que, apesar da sua aparente actualidade, isto foi redigido há já quase
uma geração. Não me parece carecer de demonstração que a generalização de
situações híbridas deste tipo a domínios como o jurídico, o político, o religioso e o
sócio-cultural, tornam difusas as fronteiras nocionais de conceitos histórico-
sociológicos “clássicos” como os de “modernidade” e “tradição”.
19
A invocação destes dois conceitos não deixa em todo o caso de constituir uma
excelente arena para a luta pela supremacia. Para uma exposição, muito bem ilustrada
com exemplos africanos contemporâneos, da manipulação dos ideais do modernismo
por tradicionalistas apostados em manter o seu ascendente (nomeadamente os de
matriz religiosa) e de alusão a “tradições ancestrais” por modernistas em busca e
suplementos de legitimação, ver B. Durand (2002, op. cit.: 246-264).

25
muitos casos, variantes compósitas de Direitos
“tradicionais”, porventura próximas dos modelos idealizados
de formas normativas “originariamente africanas”20, mas que
todavia exibem tons indeléveis deixados pelos Direitos
“modernos” e estaduais “do Ocidente” com que convivem.
Na maioria, senão na totalidade dos casos, essa
interpenetração mútua dos ordenamentos em vigor é um dado
empírico impossível de contornar.
É porém a um nível mais baixo de inclusividade que
esse entrosamento e essa permeabilidade mútuas se tornam
mais visíveis: em que as interacções melhor se manifestam.
São com efeito muitas e variadas as “hibridizações” (ou
“mestiçagens” se se preferir) a que as variantes compósitas a
que fiz alusão dão corpo.
Destrincemo-las. Comecemos por notar que as
interpenetrações exibidas não são unidireccionais. Por um
lado, é intuitivamente evidente que as formas socioculturais
africanas remodelam (em muitos casos profunda e
radicalmente) as importações estaduais europeias. Por outro
lado, e ainda que tal nem sempre seja tão óbvio, a presença
de estruturas estaduais também age sobre, e reformata (de
maneiras igualmente radicais e profundas), as formas
socioculturais existentes nos meios em que se implantam.
Um momento de atenção torna-o claro. Não é raro, por
exemplo, que conceitos transferidos para África como o de
“justiça”, o de “sistema de governo semi-presidencialista”, o
de “Boa Governação”, ou até o de “Democracia”, se vejam
sujeitos a reconfigurações locais que muito mais do que os
descaracterizar21, os re-caracterizam. Também não é raro o
20
A expressão é de Geneviève Chrétien-Vernicos (2001), uma historiadora francesa
do Direito, e com ela pretende fazer alusão àquele Direito em vigor em África que,
segundo esta A., estará supostamente fora do âmbito do contacto colonial. Um Direito
“intocado”, por assim dizer. Perspectivas destas, em minha opinião, dão corpo a
visões idílicas e desfasadas de uma realidade empírica que se tem revelado como
muitíssimo mais compósita e complexa do que aquela hipoteticamente vislumbrada
por antinomias fáceis deste tipo. Uso aqui a expressão num sentido meramente
alusivo, e faço-o com alguma ironia.
21
Como, aliás, pode ser argumentada que qualquer cultura o faz (mesmo as
“ocidentais”), dada o carácter de processo sempre inacabado que é o da Democracia.

26
recíproco e inverso: é fácil a verificação, por dar um outro
exemplo, de que as representações locais relativas ao
domínio genérico daquilo que o Estado apelida de “conflitos”
e da sua “resolução” (para só dar um de muitos exemplos
possíveis), se lançam numa fascinante colagem verbal e
categorial relativamente a figuras estaduais típicas, num
mimetismo notável.
Sem pretensões de mais do que aflorar de forma muito
breve e ligeira este último tema, esta segunda e menos óbvia
parcela de uma interacção mútua, ponhamo-la em evidência
com apenas um caso paradigmático, o do recurso a feiticeiros
no decurso de conflitos em S. Tomé e Príncipe (uma prática
comum num país onde o envolvimento dos tribunais é
raro22). Uma questão a muitos títulos fascinante.
A “colonização ideológica” do “popular” e do local
pelo estadual, em S. Tomé e Príncipe, é neste domínio
claríssima, não sendo precisa muita argúcia para a fazer
sobressair. O tópico genérico dos discursos localmente
entretidos no arquipélago sobre tensões sociais parece ser, no
essencial, económico-político-moral; ou relevando, mesmo,
de um vocabulário “jurídico” (e das representações nele
embebidas) que parecem ter colonizado aquilo que talvez não
seja abusivo descrever como “o imaginário e o vocabulário
sociais e políticos” utilizados naquelas ilhas.
A incorporação sistemática deste vocabulário e desta
imagética é, com efeito, de uma evidência notória23. São os
próprios termos crioulos (ou portugueses) utilizados pelos
santomenses no contexto de disputas interpessoais e inter-

22
Para uma discussão muitíssimo mais detalhada destas questões, ver a monografia
Armando Marques Guedes et al. (2002): sobretudo 91-121.
23
Em S. Tomé e Príncipe, esta “mestiçagem” verifica-se também em planos muito
mais macro, configurando aquilo que apelidei de “um complexo de alheamento-
mimetismo” (idem, op. cit.: 21), que subtende as relações entre Estado e sociedade
civil. Prediquei aí esse complexo no que chamei as renitências e resistências da
população face à natureza de um poder (sucessivamente esclavagista, “de plantação”,
autoritário e, mais recentemente, totalitário) como aquele que os santomenses comuns
tiveram de defrontar até à instauração, em 1990, da 2ª República pluripartidária.

27
grupais em que são mobilizados feiticeiros e feitiçaria que o
traem: pagá devê, dever, pagamento, contrato, sentença,
castigo, disprezo, xicote, vingança, preso, justiça, mestre,
paço do mestre, etc., (são estas as expressões “canónicas” e
“tradicionais”, de algum modo vernáculas, utilizadas no
arquipélago) são vocábulos que obviamente nos remetem
para metáforas alusivas a subordinações económicas e à
dominação política24.
O fundamentos desta miscigenação são assim tornados
nítidos. Os vocábulos utilizados realizam isomorfismos que
nos remetem para situações e vivências sociais, expressam
correspondências extraídas decerto da experiência histórica
dos santomenses, depois entrevistas em quadros conceptuais
por sua vez marcados por uma “juridicidade contratualista”
de ecos também curiosa e claramente estatizantes, ou
“estadualistas”25. Um ponto a que faço questão de regressar,
ainda que exceda o âmbito introdutório daquilo que tento
equacionar no presente estudo introdutório.

24
E, ao que tudo indica, não se trata apenas uma questão terminológica. Tanto quanto
consegui apurar, muitas das práticas “tradicionais” santomenses recorrem a um
marcado mimetismo relativamente às estaduais suas afins. Assim, por exemplo, há
fortes semelhanças entre a distribuição espacial das personagens em ocorrências
jurídico-políticas públicas e colectivas e os protocolos “consuetudinários” aí seguidos
e os seus equivalentes funcionais estatais; ou entre as formas (bastante formalizada,
adversarial e “mediada” por um discurso com pretensões à isenção) tradicionais e
estaduais de encaminhamento de conflitos interpessoais no arquipélago. Como
escreveu, num outro contexto, Gyan Prakash (2002: 28), é sempre um erro subestimar
“the extent to which community mimics the modern state”. Um tema fascinante para
investigações futuras. Para uma discussão interessante quanto aos usos e às
conotações dos conceitos de “hibridismo” e “miscegenização” na imagética colonial e
pós-colonial portuguesa, ver Miguel Vale de Almeida (2002).
25
Acrescentemos, no entanto, uma consideração suplementar: é interessante verificar
(neste exemplo santomense como em vários outros por toda a África pós-colonial) os
diferentes níveis de permeabilidade à “colonização ideológica” aqui em causa: a
aparente porosidade ideológica das elites, que tendem a preferir, de maneira linear,
adoptar “por atacado” modelos europeus, e a porosidade relativamente menor do resto
da população, que ao que tudo parece indicar instrumentaliza antes “à peça” e em
termos porventura mais tradicionais, apenas uma poucas das figuras e alguma da
terminologia “importada”.

28
1.1.3. A IMBRICAÇÃO-DISSEMINAÇÃO DE FUNÇÕES:
AS VÁRIAS DIMENSÕES DA NORMATIVIDADE NAS
SOCIEDADES AFRICANAS CONTEMPORÂNEAS

Fascinante como essa hibridização recíproca possa ser,


isso não é porém tudo. Como muitos juscomparatistas têm
vindo a sublinhar26, a interpenetração estrutural (porque é
disso que de facto se trata) entre ordenações jurídicas locais e
importadas, entre ordenamentos modernos e tradicionais,
estatais ou “consuetudinários”, formais e informais, exprime-
se num conjunto verdadeiramente pluridimensional. Um
agregado cujos limites e fronteiras não são, ademais,
claramente definidos: facto de que uma das consequências é
uma grande imbricação-disseminação de funções. O que
forma uma terceira ordem de razões para a minha preferência
pluridisciplinar: já que a interdependência e a pulverização
consequentes redundam num posicionamento estrutural do
jurídico na vida social concreta que não deixa de ter sérias
implicações que importa saber tomar em linha de conta.
As manifestações dessa dispersão e desse
entrosamento funcional são bem conhecidas. Virtualmente
sem qualquer excepção, nos Direitos Africanos “reais”
contemporâneos é difícil separar de maneira enxuta o
jurídico do ético e moral, o normativismo religioso de todas
essas outras formas, ou até o jurídico do político,
embrenhado como aquele está em relações de poder,
dominação e subordinação27.

26
Para me ater a apenas alguns exemplos, fá-lo R. David (1982), como o faz L.-J.
Constantinesco (1983), como ainda também K. Zweigert e H. Kötz (1987).
27
A meu ver, são essencialmente as considerações deste tipo aquelas que realçam a
futilidade de quaisquer tentativas que visem abordar o estudo dos Direitos africanos
em termos jurídicos puros. Facto que não tem passado despercebido aos analistas que
sobre estas questões se têm debruçado. Não é difícil compreender porquê. Como
notou, para o tornar a citar, P.-F. Gonidec (ibid.: 2-3), “en Afrique plus qu’ailleurs, le
droit ne ne peut pas être isolé, sinon artificiellement et arbitrairement, des autres
phénomènes. Il n’est pas un univers clos qui se suffirait à lui même, étranger a tout ce
qui n’est pas sa propre substance”. Pena é que, deste facto estrutural, raramente se
derivem as necessárias implicações metodológicas.

29
Por outras palavras: não é nítida a separação-distinção
entre, por um lado, os “elementos jurídicos” e, por outro
lado, os “elementos externos ou metajurídicos”. Mais do que
falar em ordenamentos normativos discretos de natureza seja
jurídica, religiosa, política, seja ética ou moral, em África
parece pois preferível fazer alusão a aspectos jurídicos (ou
éticos e morais e religiosos ou políticos) de todos os
ordenamentos compósitos existentes.

1.2. A COMPLEXIDADE ESTRUTURAL DESTES


DIREITOS

As três ordens de factores que destrincei potenciam-se


uma às outras e são cumulativas. À diversidade de fontes e à
multiplicidade de formas exibidas, acresce assim o vai e vem
permanente de “mestiçagens”, e junta-se deste modo um
nível ulterior de complexidade estrutural: a adveniente de
uma enorme fluidez, tanto no recorte que exibem quanto no
seu lugar social de inserção, ou até nas articulações
socioculturais que exprimem e a que dão corpo.
As consequências de tudo isto parecem-me inelutáveis.
São precisamente a densidade da intrincação, a
multiplicidade de pontos de aplicação, e a indefinição formal
dos conjuntos normativos presentes (tudo isto características
com origem nas três ordens de factores que enumerei) aquilo
que clama por métodos mais abrangentes em relação aos
âmbitos e contextos socioculturais em causa. Aquilo que
pede uma maior atenção aos enquadramentos dessas
normatividades e uma inclusão destes nas nossas análises.
Este é um passo que me parece imprescindível saber dar, já
que as barreiras, de outro modo, serão muitas e difíceis
(senão impossíveis) de transpor.
Diligências pluridisciplinares parecem-me constituir
para isso um boa receita. Mais do que uma reperspectivação,
os complexos normativos africanos, como lhes chamei,
exigem, enquanto realidades socioculturais densas que são,

30
que façamos um esforço de redefinição dos objectos de
estudo para assim levar a bom porto uma sua análise séria,
rigorosa e com um fundamento empírico suficiente28 para
que a morfologia plural e a dinâmica que os caracterizam
sejam plenamente assumidas e ponderadas29. Ainda que de
forma tentativa, é o que tento fazer.

28
No seguimento de notas anteriores: há outra maneira de dizer isto, porventura
menos difusa, ou pelo menos bastante menos indirecta, do que esta: uma qualquer
circunscrição prévia do que seja o jurídico (seja qual for a coerência e até o interesse
intrínseco da sua fundamentação apriorística) é factualmente arbitrária. Uma solução
metodológica mais amiga do rigor consiste antes em, a partir da realidade objectiva
que se analisa, então sim formular a posteriori um conceito de jurídico adequado a
essa mesma realidade. Um ponto a que regressarei no âmbito do presente estudo.
Gostaria, no entanto, de ir aqui um bocadinho mais longe. Entre nós (e também a este
propósito), no domínio específico do Direito Constitucional, escreveu
memoravelmente, no ano distante de 1969, Rogério Soares, “[n]este modo de
sistematicamente fechar os olhos à realidade constitucional, o pensamento positivista
conduz a uma hipostasiação das soluções constitucionais históricas, que se
absolutizam na sua fisionomia formal como quadros de sentido intemporal
completamente estranhos a valores. Fórmulas como Estado de Direito, Democracia,
Separação de Poderes ficam assim imobilizadas, com o perigo de mais tarde se
manifestarem incapazes de corresponder às alterações profundas da realidade
constitucional. Donde pode surgir a tentação de as lançar pela borda fora como peças
totalmente inúteis, criando-se a obrigação de forjar outras novas que as substituam”
(R. Soares, 1969: 27). Um alerta que nem sempre se tem sabido acatar.
29
Como será evidente, a utilização estreita de metodologias jurídicas “clássicas” na
investigação sobre Direitos africanos é não só perfeitamente legítima mas também
decerto útil. Nisso se empenham as numerosas instituições académicas que, em
muitos dos países do Continente (no caso dos PALOP, as excepções são Cabo Verde
S. Tomé e Príncipe, dada a ausência nos respectivoa arquipélagos das instituições de
Ensino Superior para o efeito imprescindíveis), se especializem no estudo dos
Direitos positivos (sejam eles estaduais ou híbridos) em vigor nos seus próprios
territórios e entre as suas populações. Mas limitar a investigação sobre estes Direitos
ao estudo mais ou menos dogmático das suas eventuais expressões positivas condena-
nos, na melhor das hipóteses, a conhecê-los sem verdadeiramente os compreender. O
risco maior é o de, no processo de restrição das análises àquelas elaboradas segundo
os métodos clássicos da ciência jurídica de filiação e matriz ocidental ou islâmica, nos
estarmos a acantonar numa perspectiva que nos permita apenas aprender a manusear
entidades cujas estruturas e dinâmicas inevitavelmente nos escapam.

31
2. POR UMA REPERSPECTIVAÇÃO (PELA) POSITIVA
DOS DIREITOS AFRICANOS

Seria contudo um erro presumir que as escolhas


metodológicas impostas pelo reconhecimento desta notável,
densa e fascinante complexidade estrutural, como a apelidei,
constituem os únicos obstáculos que se erguem no caminho
dos estudiosos dos Direitos africanos pós-coloniais. Uma
outra dificuldade (esta mais comezinha) com que deparamos
prende-se com uma enorme ignorância existente a seu
respeito.
É um desconhecimento que impede uma melhor
ponderação científica destes tão multidimensionados
ordenamentos. Porque se trata de uma omissão que, mais que
no-los ocultar, dá azo a que preconcepções, muitas vezes
marcadas por uma enorme carga ideológica subreptícia, se
substituam aos resultados de esforços sérios de investigação.
Gostaria agora de me voltar para este ponto.

2.1. AS INSUFICIÊNCIAS EMPÍRICAS E A FALTA DE


SISTEMATICIDADE DOS ESTUDOS EMPREENDIDOS

Com o intuito de melhor esmiuçar esta questão, talvez


valha a pena começar por sublinhar que, em África como no
resto do Mundo, os Direitos africanos contemporâneos são
com efeito realidades infelizmente pouco conhecidas e por
norma muito mal sistematizadas30. Realidades essas, para
além do mais, imaginadas como sendo pouco coesas e muito
30
Pior, ainda, se atendermos ao facto de que os esforços de estudo e sistematização
têm quase sempre persistido em manter uma divisão malsã entre os vários
ordenamentos jurídicos coexistentes. A regra parece infelizmente ser a de num
momento e num quadro estudar uma das parcelas destes Direitos (eg. a estatal de
origem europeia) e, noutro quadro e momento, estudar cada um dos outros que com
ele convivem, como se se tratasse de entidades integralmente destacáveis umas das
outras e distintas entre si. Esta perspectivação exprime uma espécie de curioso
“primordialismo desenvolvimentista”, que atribui mais importância às fontes e à
origem histórico-genética das ordens normativas do que à sua articulação empírica
presente. E presume uma separabilidade entre essas ordens que raramente se verifica.

32
incompletas, no sentido em que é reputado faltar-lhes o que
talvez possamos chamar integridade sistémica.
Mais: é precisamente esse desconhecimento genérico
aquilo que viabiliza construções conceptuais tão mal
fundamentadas como a ideia de que existiria um Direito
Africano, enquanto entidade geral e abstracta de algum modo
unitária que subjazeria às suas várias expressões locais
concretas. A escassez de informações é gravosa. Isto não é
verdade apenas no que diz respeito aos estudos de natureza
jurídica: mesmo os trabalhos históricos, ou sócio-
antropológicos, sobre temas jurídicos africanos, sendo tantas
vezes fascinantes, para além de bastante informativos e
reveladores, são parcos e por via de regra muitíssimo
localizados (espacial e temporalmente). O panorama é, a
muitos títulos, incipiente. E dados os preconceitos com que
tendemos a vislumbrar esses Direitos, os esboços aventados
são a muitos títulos enganadores.
Não é tudo. Mais grave e limitativo no plano das
omissões, os estudos levados a cabo são, por essas razões,
bastante exíguos (não obstante o número enganadoramente
grande de publicações existentes); e tendem a restringir a
atenção à arquitectura normativa de algumas parcelas dos
Direitos estatais formais vigentes31 em África, em geral
daquelas de maior maleabilidade instrumental. Em
alternativa e ao invés, manifestando algum voluntarismo, as
poucas investigações publicadas não vêem na normatividade
estadual senão uma instrumentalização de conveniência para
benefício, mais ou menos directo, das elites detentoras do
poder32; e muitas vezes tendem a reificar a importância (e a
31
Para me ater tão-só a exemplos “lusófonos” e sem quaisquer intuitos críticos quanto
a estudos decerto excelentes: esse é manifestamente o caso de trabalhos como a
monografia de A. Simango (1999) sobre a Constituição moçambicana, ou a
colectânea sobre as autarquias locais nesse país, um volume organizado por A:
Mazula et al. (1998); neste último exemplo, constitui excepção o artigo de Vitalino
Canas (1998), sobre a “autoridade tradicional” e o “poder local”, que dele consta.
32
Restringindo-me ao mesmo âmbito, exemplo paradigmático é a entrada recente
sobre Direito angolano, incluída numa enciclopédia de Direito Comparado (H. M.
Kritzer, Legal Systems of the World. A political, social and cultural encyclopedia), da
autoria de Alexandre M. Mestre (2002), que contém afirmações e informações

33
exagerar o peso e a centralidade) que quereriam ver
atribuídos às ordens normativas costumeiras33. Em qualquer
dos casos, trata-se de limitações que geram enviesamentos de
peso.

verdadeiramente extraordinárias. Para além de, na sua informação, o A. se restringir


ao Direito do Estado (o que a própria Constituição angolana não faz) são aí arroladas,
por exemplo (op. cit.: 53), atribuições e competências a uma entidade que em Angola
nem sequer existe, i.e. um Tribunal Constitucional, que no texto é contraposto (“apart
from the Constitutional Court”, idem) ao Supremo Tribunal, esse sim existente. O
“sistema de Governo”, que em Angola é desde o início da 2ª República semi-
presidencialista de pendor presidencial, é caracterizado pelo A., no contexto de uma
descrição do sistema normativo formal angolano (ibid: 52) como “a strong
presidential system”; materialmente porventura tem-no sido num sentido forte, com
um interregno de vários anos sem que um Primeiro-Ministro fosse nomeado como
mandava a Constituição; mas não, decerto, em termos formais. Mais no sentido do
texto do presente estudo introdutório, a “informação” de Mestre inclui afirmações
curiosas tais como “any journalist who writes an opinion article critical of the
government or reveals news the leaders want suppressed is either arrested or
expelled from the country” (idem, 54). Um exagero que não deixa de ser interessante.
33
Na Bibliografia Suplementar que disponibilizo aos estudantes da disciplina de
Direitos Africanos (e que aqui incluo em Anexo), arrolo muitas das principais
referências bibliográficas pertinentes para o estudo destes Direitos. Sem querer ser
mais que meramente indicativo: depois de uma primeira fase (que decorreu no
essencial durante os períodos coloniais), em que o estudo dos Direitos em África
tendiam a ser conduzidos segundo uma perspectiva antropológica pura e a restringir-
se à investigação sobre os “usos e costumes tribais”, estas duas posições têm
emergido uma a seguir à outra, na evolução mais recente dos estudos levados a cabo
sobre os Direitos africanos pós-coloniais. A subdivisão, em fases, desta “segunda
época”, parece corresponder, by and large, à lógica das conjunturas políticas que se
sucederam com as independências: passou-se, assim, de um primeiro momento, em
que o Estado se tornou no centro de todas as atenções analíticas, para um segundo, de
um renascimento “nativista” bastante generalizado [para uma discussão iluminada
sobre a progressão jurídica pós-colonial verificada em África, ver o esplêndido texto
de R. David, de 1984: 97-110, no Capítulo 3 do II Volume de (ed.) V. Knapp, 1984] .
A última fase desta progressão parece ter coincidido, temporalmente, com as
mudanças políticas ocorridas em muitas sociedades africanas nos finais dos anos 80 e
inícios dos 90 (época em que ocorreram as célebres “transições democráticas”), que
tanta força vieram dar às sociedades civis urbanas, bem como com as alterações dos
palcos internacionais, que tiveram como resultado uma enorme aceleração de
processos de integração global (cujas consequências, para os africanos, foram tão
profundas quanto são mal conhecidas). O estudo histórico-sociológico desta
progressão das análises sobre Direitos africanos é um tema fascinante e sub-
investigado. Na subsecção 3.1. deste estudo retomo esta questão com muitíssimo
maior pormenor, se bem que num contexto menos geral, relativamente a um exemplo
concreto que tomo como paradigmático: o do reconhecimento das “autoridades
tradicionais” pelo poder político central.

34
À escassez quantitativa e temática há assim a
acrescentar um idealismo e um formalismo enganadores,
atributos que permeiam muitos dos trabalhos de investigação
empreendidos. Ou, pelo contrário, há a adicionar-lhe uma
“politização” dissolutora da relativa autonomia do jurídico,
uma redução sensível em muitas das publicações existentes.
A resultante exprime, em ambos os casos, um
empobrecimento analítico vincado. O que, por sua vez (e
num círculo vicioso) é agravado pelo marcado parcialismo de
que padecem quanto à circunscrição de um objecto de estudo
inevitavelmente induzido por qualquer uma dessas duas
tendências antinómicas.
As consequências desse tipo de polarização não são de
minimizar: só raramente estão tais estudos focados, em
simultâneo (e num quadro analítico unitário), tanto na textura
estrutural complexa que caracteriza estes sistemas jurídicos
quanto no seu desfasamento em relação à vida social
concreta vivida pelas numerosas, e muitas vezes tão
diversificadas, populações que, em África, lhes estão (com
um maior ou menor grau de intensidade) de algum modo
sujeitas34.
Uma omissão que é particularmente grave em
contextos, como a maioria dos africanos, em que são patentes
fossos tão marcados entre uma law in action e uma law in the
books como aqueles que aí se vivem.

34
Em termos mais práticos, essas não são as únicas dificuldades com que depara a
elaboração de uma disciplina deste tipo. Trata-se, ademais, da primeira vez que uma
cadeira com um conteúdo como este é ministrada numa Universidade pública
portuguesa, com todas as severas limitações de tradição pedagógica, didáctica, e de
disponibilidades bibliográficas, que isso inevitavelmente acarreta. É verdade que está
em curso, no âmbito desta Faculdade, um projecto recente de investigação sobre
Direitos Africanos, integrado por grupos que se deslocaram já a Cabo Verde, a S.
Tomé e Príncipe e a Angola. E as recolhas e análises desenvolvidas nesse âmbito
servem de suporte empírico e metodológico para voos mais altos. Mas os seus
resultados não são por ora tão extensos nem tão minuciosos quanto seria de desejar
(embora se espere que o venham a ser).

35
2.2. POR UMA REPERSPECTIVAÇÃO DOS DIREITOS
AFRICANOS ENQUANTO FIGURAS CONTRA FUNDOS

Todavia, mesmo na conjuntura de relativa rarificação


que descrevi alguma coisa pode, com utilidade, ser
asseverada. A maior parte daquilo que lemos e ouvimos
sobre Direitos africanos pós-coloniais tende, curiosamente, a
ser formulado de uma perspectiva “externa”, de maneira
amorfa e em termos generalistas; e, pior, tende a ser
equacionado pela negativa.
São assim comuns as asserções, por exemplo e para
retomar aquilo que antes disse, segundo as quais estaríamos
“em África” (sendo tacitamente assentido que apenas está em
causa a África subsaariana, numa delimitação, ao que parece,
puramente geográfico-racial ou, numa variante eufemística
desta perspectiva, em termos de uma circunscrição
“civilizacional”35) perante sistemas pouco amadurecidos, que
resultariam muitas vezes de simples transplantes directos,
integrais e acríticos, das formas vigentes nas “ex-Metrópoles
coloniais”. Tratar-se-ia de importações que exibiriam, como
outros aspectos deficitários seus (à guisa de alterações e
acrescentos) laivos de produções locais pouco sofisticadas.
Isto para além de serem sempre, por essas e por outras
razões, dispositivos localmente mal implantados36.
35
Esta foi a posição alvitrada por R. David (na primeira fase da sua produção
científica, nos anos 50), em Portugal veiculada inicialmente por Inocêncio Galvão
Telles e depois por J. de Oliveira Ascensão (citados e discutidos de maneira crítica em
R. Pinto Duarte, 2000, op. cit: 27-32). Outros autores portugueses, porventura com
alguma prudência, restringem-se a meras alusões a “famílias”, de entre as quais a
“africana”, sem entrar em quaisquer pormenores (cf. eg.. Carlos Ferreira de Almeida,
1998: 34) quanto à sua realidade ou conteúdo; este último A., em obra mais recente
sobre o ensino e método do Direito Comparado (C. Ferreira de Almeida, 2000: 116-
117), alerta-nos para “o problema [...] geral da comparabilidade entre sistemas
jurídicos cujo diferente estádio de desenvolvimento económico deriva de diferentes
alicerces sociais e culturais” e para as “dificuldades” daí resultantes. Parece-me pouco
crível que, uma vez prevenidos quanto a este tipo de barreiras conceptuais, possamos
querer insistir na viabilidade de bem fundamentar uma delimitação de “famílias” (ou
“círculos”) a partir de um conjunto híbrido e díspar de “sistemas jurídicos”, apenas
com base numa sua hipotética unidade racial, geográfica, ou até de fontes.
36
Parece ser, para o citar, mais uma vez ainda, a posição de R. David (1982, op. cit.:
579) ao lamentar que “en voulant réaliser prématurement le régne du droit conçu à

36
Se bem que muitas destas delineações críticas tenham
óbvio fundamento factual (e enquanto esquematizações
aproximativas retratem, com alguma fidelidade descritiva,
vários dos traços distintivos dos sistemas jurídicos africanos
modernos), a adopção de uma postura analítica deste tipo
esconde mais do que revela, entorpece mais do que esclarece.
Justifica-se decerto tentar rapidamente apurar algumas das
razões para isso. Deparamos, por um lado (e para revisitar de
um outro ângulo questão que atrás aflorei), com a hipótese
segundo a qual seria possível basear a caracterização
nocional de uma “família jurídica” de acordo com critérios
raciais e/ou geográficos, hipótese essa que exprime, como é
evidente e tal como insisti, um reducionismo pouco
convincente37.
Um módico de sobriedade traz à tona uma razão
suplementar para um saudável cepticismo. Para retomar de
maneira mais detalhada o que antes disse, e alterando-lhe o
ponto de aplicação, é de sublinhar que no Continente
africano se encontram sistemas jurídicos de origem bantu (da
Nigéria a Angola e de Moçambique ou do Zimbabwe à
Namíbia), de par com outros, leste-africanos (do Sudão à
Tanzânia, passando pelo Quénia, a Etiópia e a Somália), de

l’européene, on a boulversé l’ordre de sociétés qui réglaient leur existence par


d’autres moyens et qui n’étaient pas preparées à accepter l’idée européene moderne
du droit”. De acordo com este género tão comum de formulações estaríamos por
conseguinte, “em África”, perante sistemas no essencial imperfeitos, marcados por
incompletudes várias, sistemas cujo alcance tanto territorial como cultural quase
invariavelmente muito deixa a desejar. Coroa esta representação negativa a ideia,
quantas vezes veiculada, segundo a qual, de par com os Direitos dos Estados (e,
segundo estas modelizações, em muitos casos com eles envolvidos em perigosos
“conflitos de competências”), existiriam “em África” (mais uma vez sem quaisquer
distinções) formas jurídicas consuetudinárias, que expressariam uma juridicidade
tradicional e por conseguinte mais espontânea. Formas essas que, de acordo com estas
formulações, brotariam de fontes e estariam dotadas de mecanismos próprios de
legitimação inteiramente dissociados daqueles e com eles largamente incompatíveis.
37
Como escreveu R. Pinto Duarte (2000, op. cit.: 29-30), este impensado racial (o
termo é meu), mesmo quando escondido sob uma guisa “civilizacional” eufemística,
torna analiticamente inúteis quaisquer “famílias” que sirvam para tentar
circunscrever: a sua total relevância enquanto critério não me parece carecer de
demonstração.

37
raiz diversa38. No Norte dominam ordenamentos islâmicos.
No Sul, as influências romano-germânicas são marcadas (e
muitas vezes fortissimamente hibridizadas, tal como nalguns
Estados equatoriais “francófonos” desde o Gabão ao Congo
ou ao Burkina Faso ou ao Ruanda e Burundi, ou no extremo
austral do Continente, na África do Sul) por ligações a
sistemas afectos a um common law (no Gana e nos
Camarões, designadamente).
O pluralismo jurídico e sociológico exibido em África,
tal como sublinhei, também é de geometria variável. E são
múltiplos, no Continente, os seus ingredientes de base. Sem
me querer repetir, vale a pena reiterar a traço grosso algumas
das coordenadas da sua formatação externa.
Nalguns casos (por exemplo em muitos dos Estados
muçulmanos), não é clara a separabilidade entre normas e
ordens jurídicas e normas e ordens ético-religiosas39.
Noutros, o jurídico não é fácil nem porventura efectivamente
dissociável da área mais difusa do parentesco e do conjunto
denso de prescrições e proscrições que o subtendem; e esta,
por sua vez, dificilmente (se de todo) se consegue destrinçar
do político. Como insisti, a situação, longe de ser simples e
homogénea, não pode senão ser caracterizada pela sua
complexidade estrutural e variabilidade.
Mas por outro lado, de um ponto de vista
metodológico não será também difícil compreender o porquê
da ofuscação causada por tal tipo de posturas de análise. A
questão é lógico-formal: perspectivações negativas dão
origem a definições de objectos conceptuais em termos de
características que aqueles não têm, em lugar de as

38
Facto que, curiosamente, não impede autores como G. Chrétien-Vernicos (2001,
op. cit., logo nas primeiras páginas), de insistir numa “origem histórica comum” que
“agora” conheceríamos, para fundamentar a sua ideia de que se poderia falar num
Direito Africano unitário. Posição, aliás, partilhada por diversos autores franceses
empenhados em encontrar denominadores comuns nos Direitos negro-africanos
francófonos, que apelidam de Direitos Africanos (abrindo, normalmente, uma
excepção para o caso manifestamente especial e irredutível de Madagáscar).
39
No sentido forte de não ser claro que a consigamos levar a cabo de maneira
inteiramente satisfatória, seja qual for a persistência dos nossos esforços para o lograr.

38
fundamentar nos traços que efectivamente estão presentes.
Tal só pode ser justificado em termos de um comparativismo
tácito e apriorístico que, ao subordinar as descrições que faz
destes sistemas àquelas que presume noutros, acaba
insidiosamente por os subalternizar nessa justaposição.
Démarches analíticas deste género, infelizmente
comuns, parecem-me descaracterizar gravosamente os
Direitos africanos. Redundam numa postura intelectual lesiva
para o seu estudo e eventual compreensão. Pois que,
substituindo a descrição deles por uma subsunção, estes
Direitos acabam por ser definidos, de forma que não pode ser
senão grosseiramente abusiva, por aquilo de que carecem, e
nisso tão-só por o que não são senão características
específicas de outros sistemas. Em resultado, a procedência
metodológica de pré-compreensões (chame-se-lhes assim)
reducionistas deste tipo ou, talvez melhor, a sua solvência
teórica, parece-me dúbia.
Decerto muito mais útil será tratar estes ordenamentos
jurídicos, em termos seguramente mais construtivos, segundo
aquilo de que efectivamente estão dotados, de acordo com as
suas partes realmente constitutivas e em termos das
propriedades que disso decorrem. E delineando-os tal como
eles se apresentam. Ou seja, encarando a complexidade
exibida, nas suas várias dimensões e em toda a sua plenitude;
vendo-a como um facto estrutural que carece de um
enquadramento metodológico capaz de sobre ele produzir
análises que lhe façam justiça; e tentando gerar, para essa sua
caracterização, explicações que tenham um mínimo de
utilidade científica.
Reconfigurar pela positiva o estudo dos Direitos
africanos contemporâneos40 (sobretudo se uma das
40
Ou, aliás, o estudo de quaisquer outros Direitos não-Ocidentais de hoje, já que na
ordem internacional liberal que se tornou hegemónica depois da implosão da União
Soviética, muitos dos Estados pós-coloniais asiáticos, por exemplo, debatem-se com
dilemas de pluralismo jurídico e jurisdicional do mesmo tipo. Com a aceleração
crescente na circulação de pessoas e o esbatimento da impermeabilidade nacional
soberana que as transformações globais têm acarretado, não é de excluir a hipótese de
que essa complexidade estrutural e esse pluralismo tenha chegado também, de forma
irreversível, aos Direitos do “Ocidente” (cf. as teses a este respeito formuladas por

39
finalidades almejadas for a de tentar levá-lo a cabo num
quadro analítico unitário que não pressuponha um tratamento
separado do Direito estadual, das normatividades híbridas e
dos Direitos ditos consuetudinários), implica de algum modo
“sociologizar” e “historicizar” a nossa análise dos domínios
em que se move e é decantado o jurídico (ainda que não exija
necessariamente que o devamos fazer a um nível ontológico
mais profundo), desenhando para tal conceitos que logrem
abarcar e resolver a densíssima complexidade estrutural que
em África com tanta visibilidade e nitidez por via de regra o
caracteriza41. Redunda, em última instância, não apenas

Mireille Delmas-Marty, 1999, que propõe a utilização de “lógicas não standard” como
a “lógica dos conjuntos flexíveis” para dar conta das entidades jurídicas
multidimensionais geradas pelos processos actuais de globalização na Europa).

41
Cabe aqui um longo comentário de enquadramento teórico-metodológico. Ao falar
em “sociologizar” e “historicizar” a análise dos domínios em que se move e é
decantado o jurídico, não pretendo de maneira nenhuma subordinar o Direito (seja
enquanto sistema objectivo seja enquanto sistema científico) a uma realidade que o
transcende. Bem pelo contrário, reconheço-lhe uma relativa autonomia. O que não
será novidade em Portugal, onde desde há muito esse tipo de reperspectivação tem
sido enunciado: lapidar foi, mais uma vez, Rogério Soares, a propósito da necessidade
absoluta da abertura dos juspublicistas à realidade constitucional: “[e]sta atenção para
com a realidade não significa, porém, uma capitulação. Dizer que a constituição não é
independente dos dados históricos concretos do seu tempo, não significa que ela seja
pura e simplesmente dependente deles” (R. Soares, 1969: 30); o A. prosseguiu,
afirmando que as transformações estruturais sentidas no seio da sociedade (vd. Jürgen
Habermas, 1965) “faz[em] surgir para o jurista preocupado com os problemas do
Estado a obrigação de articular os seus tradicionais processos de interpretação
dogmática com os meios de interpretação funcionalista das ciências do
comportamento” (op. cit.: 33-34), alimentando a esperança de “a ciência do direito
[poder] aproximar-se das outras ciências sociais e a pouco e pouco ir quebrando o
gelo que as separa. Não só quebrar o gelo provocado por ela mesma, ao considerar as
novas indagações da ciência política ou da ciência da organização como temas de
ciências doutro clima, mas diminuir também a ‘fria distância’ com que estas ciências
encaram as possibilidades de conciliação com a ciência do direito. Esta conciliação
impõe à ciência do direito a necessidade de tratar o seu objecto de modo particular:
em vez de se voltar para indagações sociológicas individualizadas, tentar acentuar
imediatamente que numa sociedade moderna existe um dado fundamental, um sistema
normativo de ordem jurídica. A sua tarefa será a de descobrir a função do direito na
sociedade de hoje” (idem: 34-35). Diga-se que R. Soares, a par desta “necessidade”
contextual e histórica que motivou uma profunda reflexão sobre o objecto e o método
do Direito Constitucional, encontrou como sua causa um certo descomprometimento
por parte da juspublicística em relação ao formalismo da sua ciência (razão que
explicaria, segundo o A., o predomínio do Direito Administrativo até esse momento):
“[u]ma espécie de complexo de inferioridade dos publicistas em face do direito civil
vai atirá-los, desde os tempos de um Laband, para a investigação daquele sector onde

40
numa redefinição, em termos mais abrangentes e inclusivos,
daquilo a que chamamos “Direito”; mas ainda numa espécie
de “teoria unificada” da normatividade, em todas as suas
expressões no âmbito dos relacionamentos sociais.
Felizmente, apesar de pouco desenvolvidos, estes
processos de gestação conceptual e de alargamento de
inclusividade de noções e modelos não são esforços
inteiramente novos. Bem pelo contrário. Muita da
Antropologia Jurídica recente se tem vido a debater com este
tipo de questões42; tal como, aliás, também o têm feito muitos
historiadores e sociólogos do Direito.
Em todas estas áreas numerosos conceitos têm vindo a
ser propostos43 por forma a abranger, em simultâneo, as

mais facilmente se possa construir um sistema estritamente jurídico, apto a surgir sem
vergonha em frente da secular dogmática dos outros juristas. Assim, por este processo
de afirmação da independência, não admira que os publicistas viessem a exercitar-se
nos temas que lhes parecem homólogos dos que fizeram glória do direito privado”
(ibid.: 7). Em minha opinião (ecoando R. Soares) só a partir de uma revisão geral
destas se torna pensável a construção aberta e atenta de um melhor Direito. Esta
posição distingue-se com clareza do “sociologismo” oitocentista e noventista menos
criterioso, na sua variante comum entre alguns dos juristas da I República em
Portugal.
42
Têm-no feito, para só dar alguns exemplos relativamente ao estudo dos Direitos
africanos contemporâneos, Sally Falk-Moore (1986.) a partir da Law School de
Harvard, John Comaroff e Simon Roberts (1981) na Faculty of Law da Universidade
de Chicago e no Law Department do London School of Economics, June Starr e Jane
F. Collier (1989) em Stanford, Jacques Vanderlinden em Bruxelas, ou Norbert
Rouland e o extenso Laboratoire d’Anthropologie Juridique da Faculté de Droit da
Sorbonne, dirigido primeiro por M. Alliot e hoje por E. Le Roy, ou ainda o Centre
Droit et Cultures da Université de Paris X, Nanterre, fundado por A. Verdier. Vários
investigadores holandeses (mais focados, no entanto no Sudeste asiático), sediados
sobretudo na Universidade de Leiden, têm tido preocupações semelhantes. Não é fácil
encontrar unidade teórico-metodológica na produção destes e doutros autores e
agrupamentos que se têm debruçado sobre Direitos africanos. Mas os dados estão
lançados, em sentido literal e figurativo.
43
Conceitos úteis que vão desde a famosa noção “realista” de uma “law stuff” (que
tentativamente traduzo por “substância jurídica”) entre os índios Cheyenne, datada de
1942, pensada por K. Llewellyn e E. A. Hoebel, à ideia de “legal levels” de Leopold
Pospisil, em 1967, a outras como o de um “rule-generating and enforcing power” de
vários grupos sociais de Sally Falk-Moore, 1978, !986, naquilo que esta autora
apelidou de “semi-autonomous social fields”. Todas estas (e muitas outras) noções
abrem caminho para essa teorização unitária tão precisa. Retomarei noutro lugar o
desenvolvimento que este tema (que não cabe directamente na economia do presente
trabalho de introdução) me parece merecer.

41
produções normativas estaduais, as religiosas, as éticas e
morais, as políticas, e as consuetudinárias, num mesmo
enquadramento analítico integrado que as permita explorar a
todas em conjunto. O esforço a empreender para essa
reconfiguração fica por isso facilitado. Importa conseguir
fazê-lo fruir em análises histórico-sócio-antropológicas
concretas de âmbitos “jurídicos” africanos44.
No que se segue do presente trabalho tento esboçá-lo,
tal como de resto o tento delinear na disciplina de Direitos
Africanos que gizei. Faço-o, naturalmente, tentando dar
passos de maneira tão sistemática quanto possível.
Começo por disponibilizar algum enquadramento
histórico-genealógico ponderado quanto a duas questões
interligadas: primeiro, quanto à progressão da articulação-
entrosamento entre Direitos de origem europeia e os Direitos
africanos “locais”; em segundo lugar, quanto à evolução dos
estudos (pelo menos daqueles cuja natureza é não-dogmática)
empreendidos sobre os Direitos plurais complexos que em
África se têm vindo a cristalizar. Viro-me depois para
estudos concretos de caso, focalizados em exemplos
africanos “lusófonos”.
Nas duas subsecções que se seguem da presente
introdução, abordarei as duas primeiras dessas questões na
ordem em que as enunciei. Quanto ao terceiro dos passos que
enumerei, reservo-o para a Parte II deste trabalho, que lhes
sucede.
Em primeiro lugar, no entanto, urge dizer alguma coisa
quanto à natureza genérica e ao papel social preenchido pelo
Direito em África.

44
Apenas um exemplo, dos muitos possíveis: um passo nesse sentido foi o de Jean-
Pierre Olivier de Sardan (1996, 1999) com a sua conceptualização de um “economia
moral da corrupção” em África, enquanto expressão de “lógicas culturais” específicas
potenciadas por formas organizacionais próprias. Para um esboço de aplicação deste
modelo a um dos PALOP, ver o estudo de Gerhard Seibert (2001: 462-465) sobre a
operação de redes de parentesco, amizades, e favoritismo, nos processos políticos
contemporâneos em S. Tomé e Príncipe.

42
2.3. O PAPEL SOCIAL E AS FUNÇÕES DO DIREITO EM
ÁFRICA

De uma maneira muito geral e tão-só em termos de um


esboço, cabe aqui delinear um possível enquadramento
unitário para um estudo, pela positiva, dos tão complexos e
multidimensionados ordenamentos plurais em vigor na
África pós-colonial contemporânea.
Trata-se de sugerir um quadro de análise (apenas
tentativo e indicativo, e sem quaisquer pretensões teóricas de
fundo) que nos permita abarcar, no seu conjunto, tanto
quanto nos seja possível dos complexos normativos com que
deparamos. Aquilo que está em causa é lograr a delineação
de um quadro que torne analiticamente exequível esmiuçar,
em simultâneo, os Direitos estaduais “de fonte europeia”, os
Direitos islâmicos (e/ou hindus), e as normatividades
consuetudinárias, mais ou menos hibridizadas, com que
convivem.
Vários enquadramentos podem ser utilizados, que
preencheriam bem essa função, desde uma perspectivação
que dê realce à natureza funcional e maximizante dos
princípios normativos em jogo a outras que, ao invés, frisem
antes os aspectos dos Direitos mais atidos ao exercício do
poder por parte de Estados que são quer fracos, quer
autoritários, ou que estão controlados (o que, naturalmente,
não é incompatível com as duas perspectivas anteriores) por
elites neo-patrimonialistas apostadas numa apropriação
“privada” e predatória dos bens sob sua jurisdição. Ou, ainda,
aquelas outras que preferem pôr o seu foco empírico na
dimensão essencialmente cultural desses Direitos,
condenados por via das exigências crescentes de uma maior
ressonância simbólica e de uma inteligibilidade local, a
adquirir a par e passo uma integridade normativa própria que
lhes confira um suplemento de uma legitimidade que por
vezes tão urgente é na África de hoje. Todas estas
perspectivas têm a sua razão de ser e encontram, na África
contemporânea, algum fundamento.

43
Não será excessivo simplificar asseverando que tem
havido três grandes “famílias”, por assim dizer, de
interpretações dos Direitos africanos contemporâneos45. Uma
delas insiste em encarar estes Direitos como nuns casos
gizados e noutros modificados pela “tradição” e pela cultura
(cultura aqui na acepção de uma colectânea de costumes,
valores, hábitos e práticas, mantidos ao longo do tempo).
Trata-se de uma “leitura” de claros ecos durkheimianos e
weberianos, que hoje em dia tem sido retomada em
investigações sócio-jurídicas africanistas tão diversas como
as de Clifford Geertz46, Paul Bohannan, Norbert Rouland ou
Lawrence Rosen, por exemplo.
Outra destas famílias de interpretações prefere encarar
as funções essenciais e o papel do Direito como expressão de
interesses de elites e dos poderosos, vendo-o antes como uma
forma de dominação. Esta é uma leitura de ecos mais
marxizantes e, no que diz respeito a estudos sobre África,
tem sido esgrimida por autores tão díspares como Pierre
Bourdieu, Francis Snyder, ou a própria Sally Falk-Moore. É
deste tipo, para além disso, a perspectivação mais
comummente assumida pelos defensores (hoje em dia
porventura a maioria dos politólogos que estudam os novos
Estados do Continente) da utilização de modelos “neo-
patrimonialistas” para explicar as versões mais recentes dos
Estados africanos pós-coloniais.
A terceira e última destas três perspectivas, é a
partilhada por numerosos juristas dogmáticos e é mais
funcional e abstracta. Encara os Direitos africanos como

45
Para esta divisão tripartida de predilecções teóricas quanto ao estudo dos Direitos
(law) africanos, é útil a leitura do esplêndido artigo de S. Falk-Moore (2001:
sobretudo pp. 95-99), o texto de uma Huxley Memorial Lecture, proferida em 1999 na
Universidade de Manchester, sobre a progressão de conceptualizações-interpretações
histórico-sociológicas sobre os “fenómenos jurídicos” dominantes nas ciências sociais
dos últimos cinquenta anos. Aplico aqui para um caso particular (o dos Direitos
africanos) a arrumação-modelização mais geral que esta A. delineia.
46
Escuso-me de dar as referências precisas sobre os autores a que aludo nestes três
parágrafos, visto todas estarem incluídas no programa da disciplina da Direitos
Africanos que incluo na Parte III do presente estudo.

44
sendo no essencial (tal como, aliás, todos os outros Direitos)
um mecanismo racional desenvolvido para minimizar
conflitos e resolver problemas interpessoais e intergrupais. A
aplicabilidade desta perspectiva, também de ecos
weberianos, a África foi, famosamente, defendida por Max
Gluckman e pelos seus seguidores.
Como é evidente, estas três perspectivações aparecem,
na maior parte dos casos, profusamente interligadas umas
com as outras; apenas o doseamento de um ou outro dos
ingredientes varia, no que tendem a ser análises compósitas
que tomam os três factores (cultura, poder, e coerência
racional) em linha de conta47.
Para as discutir neste estudo, abordá-las-ei a partir
daquela que mais impacto tem tido nos estudos (não-
dogmáticos) levados a cabo sobre Direitos africanos: a
culturalista. Quais são as implicações que decorrem de uma
perspectivação que entreveja os Direitos de África como
parcelas das culturas presentes no Continente?
Muito sucintamente, sustentá-la traz três vantagens que
são óbvias. Em primeiro lugar, encarar a funcionamento
empírico de cada um destes Direitos como fazendo parte
integrante da operação de uma cultura minimamente coesa
(no sentido específico de dotada de um módico de

47
Uma palavra de advertência, na sequência, aliás, de notas anteriores. Proponho esta
constelação tripartida de “famílias” em termos puramente operacionais. Será
porventura possível (e até interessante) articulá-las num plano mais próximo da
ontologia jurídica strictu senso, segundo distinções de orientação metodológica
detectadas, por exemplo, na progressão do pensamento jurídico moderno como
aquelas que o subdividem no “historicismo” de Savigny, na “jurisprudência dos
conceitos” de Puchta e o “racionalismo” de Windscheid, no positivismo jurídico de
von Jehring, e na mais recente “jurisprudência dos valores” ou “da valoração”. Para
uma discussão “clássica” (datada da segunda metade do século XX) destas diferentes
orientações, equacionada do ponto de vista da metodologia do Direito ver, por todos,
Karl Larenz (1997, original de 1991: sobretudo pp. 9-261); para uma perspectivação
mais histórica sobre as mesmas ver, também por todos, Franz Wieacker (1993,
original de 1967: sobretudo pp. 397-536 e 645-679). Para uma meta-discussão desta
complexíssima progressão, ver António M. Hespanha (1998, original 1997: 137ss).
Não pretendo, neste breve trabalho, mais do que sugerir feixes de perspectivações
operacionais. Deixo assim para segundas núpcias um eventual deslinde das
articulações de pormenor entre este plano, ou nível, que proponho, e o plano mais
jurídico-metodológico-ontológico que refiro na presente nota e noutras anteriores.

45
coerência), considerando-os por conseguinte pela positiva,
torna possível que tomemos consciência do facto de que
“sistemas jurídicos” são, em simultâneo, sistemas de acção
social e sistemas de significação. Tal resulta facilmente da
observação, que nesse quadro se torna evidente, de que
“Direitos” (africanos ou quaisquer outros, aliás) dão sempre
corpo a maneiras de tentar juntar (e não se atêm a meras
formas de escolher entre) interesses sociais concretos e
significados culturais abstractos. Para além de empiricamente
mais unitária e abrangente, uma observação dessas não é, de
maneira nenhuma, um acquis neutro: bem pelo contrário,
previne-nos de que, embora a sua operação enquanto
conglomerados normativos não seja decerto nunca totalmente
indeterminada48, sistemas jurídicos são sempre entidades
com algum carácter intrínseco de imprevisibilidade, por se
tratar de entidades dotadas de uma forte dose de abertura.
Em segundo lugar, entrever os Direitos vigentes em
África enquanto dando corpo a formas culturais torna-nos
possível começar a compreender (de um ponto de vista que é
de algum modo uma variante do dos africanos comuns)
factos socioculturais puros e duros, que muitas vezes nos
parecem ser “distantes” e estar “separados” da vida
quotidiana local por se encontrarem como que embebidos em
todo o tipo de formalidades e racionalizações. Embora uma
perspectiva menos imediata e “horizontal” seja de
indubitável utilidade analítica (já que viabiliza algum recuo
em relação aos dados empíricos a explicar), um ponto de
vista como este constitui, como é evidente, uma das suas
dimensões incontornáveis, delimitando um plano (ou, talvez
melhor, uma camada) factual que devemos tomar em linha de
conta na nossa reconstrução racional dos objectos jurídico-
normativos em estudo.
Em terceiro lugar, o enquadramento dos Direitos de
África nas culturas locais (e este ponto resulta dos dois
anteriores) torna possível deslindar alguma da lógica interna

48
Discuti-lo levar-nos-ia para os meandros, fascinantes mas localizados para lá do
âmbito deste estudo, dos limites da coerência normativa destes sistemas jurídicos.

46
de práticas e teorias sociais particulares: as dos actores
sociais africanos concretos que estão sob escrutínio.
Conquanto seja seguramente possível tratar estes dois planos
(o normativo abstracto e o experiencial concreto) sem os
articular um no outro, interligá-los acrescenta alguma
inteligibilidade a ambos.
Estes três níveis são, é claro, apenas separáveis em
termos analíticos; devemos por conseguinte tê-los todos
sempre em mente no decurso de um qualquer estudo que
estejamos a empreender. Põem em evidência pressupostos de
fundo que importa explicitar. E operam uma repartição
funcional (precisamente nos termos da tripartição
fundacional proposta por Falk-Moore) dos papéis destes tão
complexos Direitos e dos lugares sociais que eles ocupam.
Se olharmos as coisas de um ângulo mais pragmático,
estou a insistir em dois pontos fundamentais, de resto
muitíssimo bem enunciados por dois africanistas norte-
americanos, Sally Falk-Moore e Lawrence Rosen. Por um
lado, estou de algum modo a fazer eco à posição de
Lawrence Rosen quando este asseverou (fê-lo no contexto do
seu esplêndido trabalho sobre o funcionamento de pormenor
de tribunais cádi marroquinos) que “the analysis of legal
systems, like the analysis of social systems, requires at its
base an understanding of the categories of meaning by which
participants themselves comprehend their experience and
orient themselves toward one another in their everyday
lives”49. Trata-se de uma formulação culturalista “interna”,
por assim dizer; uma formulação que delineia um quadro
analítico que aponta para uma predilecção nítida com noções
subjacentes com as de adequação, afinidade, ou ajustamento.
Por outro lado, no entanto, estou também a tentar
escapar a um ângulo de visão tão profunda e puramente
fenomenológico como esse; faço-o vestindo a perspectivação
culturalista com uma indumentária (por assim dizer) mais
49
L. Rosen (1989), xiv. Antropólogo cum jurista, Rosen ensina na Universidade de
Chicago, tendo-se especializado nos Direitos magrebinos contemporâneos,
designadamente no Direito marroquino..

47
pragmática. Qualquer coisa de não muito diferente das
famosas “fabrications” 50 de Sally Falk-Moore: decisões
normativas, seja qual for a sua natureza, saldam-se sempre,
no fundo, por inovações levadas a cabo enquanto
“exploitations of conventions”, mais ou menos utilitárias ou
teleológicas, suscitadas em contextos de “engagements”
específicos, conjunturais e concretos, entre actores sociais.
Uma outra formulação, a que agora subjazem ideias como a
utilidade, a de instrumentalidade, ou até a de manipulação51.
Fá-lo porém, por outro lado ainda, sem descurar os
óbvios elementos de coerência interna e sistémica que
(mesmo se de maneira fragmentária e pejada de
incompletudes várias) esses Direitos não podem deixar de
exibir. Muito nos Direitos africanos também tem essa
dimensão, weberiana se se quiser, uma vertente de
mecanismo racionalizador que, pelo menos em termos
funcionais e operativos, está vocacionado para a
minimização do impacto de conflitos pessoais e sociais,
actuando como instrumento eficaz na resolução de tensões e
disputas.

2.4. AS VERTENTES SOCIOCULTURAIS DOS


DIREITOS AFRICANOS: UM QUADRO POSITIVADO E
RELATIVIZADO

Torna-se agora mais fácil enunciar em pormenor de


que forma podemos dar conta da interdependência patente
entre as três perspectivas empíricas que, a meu ver, dada a
multidimensionalidade densa e plural de que são dotados os

50
Cf. a sua já citada e exemplar monografia sobre uma “invented tradition” de que
constariam “customary laws” leste-africanas, em S. Falk-Moore (1986).
51
Aquilo em que estou a tentar insistir não redunda, por isso, numa atitude de
descrença quanto às conexões estruturais e intrínsecas entre Direitos e culturas (e
muito menos ainda numa qualquer defesa de uma verdadeira dissociabilidade destas
duas noções). Exprime antes uma reserva, equaciona uma cláusula de limitações, visa
impor restrições no que a essas indubitáveis conexões diz respeito.

48
complexos normativos em vigor no Continente. Ou seja, é
agora mais simples apurar como essas três perspectivações se
devem entrosar num estudo sobre um Direito africano
contemporâneo. Um estudo que, como insisti, faça questão
de os configurar pela positiva. O formato metodológico que
sugiro é compósito e assenta na complementaridade existente
entre elas.
Os Direitos africanos são mais inteligíveis se
encarados, em simultâneo, como sendo expressões culturais,
como dando corpo a formas de dominação e poder, e também
enquanto entidades vocacionadas para expressar mecanismos
racionais virados para a resolução de problemas concretos.
Temos aqui uma perspectivação unitária e construtivista que,
como sugeri, nos permitirá uma melhor análise destes tão
intrincados e pluridimensionais complexos normativos.
É evidente que assumir esta postura metodológica não
se salda num unitarismo analítico muito forte, visto que tanto
a mecânica postulada como a dinâmica dela resultante
presumem a presença actuante não de um factor mas antes de
um conjunto deles. Um conjunto de factores, ademais, cujas
características são mais descritivas do que analíticas. Trata-se
porém de um patamar que nos oferece a possibilidade de
facilmente articular os Direitos vigentes no Continente com
os processos de entre-definição mútua dos Estados pós-
coloniais nele instalados e das sociedades civis que se vão
cristalizando nos territórios sob as suas tutelas. Os vários
Direitos do Continente distinguem-se uns dos outros pelo
doseamento relativo dos três ingredientes que identifiquei e
pela dinâmica, sempre variável, da sua interacção recíproca.
A unidade analítica que sugiro para o seu estudo é
assim relacional e passa por um enquadramento unitário que
me parece ser fortíssimo: aquilo que está em causa é a
necessidade de proceder a análises dos Direitos africanos
contemporâneos que os reponham, com toda a firmeza
analítica, nos seus âmbitos próprios, que são (pelo menos

49
são-no a nível interno52) os dos laboriosos e complexos
relacionamentos que se vão estabelecendo entre as
respectivas sociedades civis e os Estados presentes53.
Para regressar brevemente à minha questão-quadro
nesta subsecção: se esse for o caso, será então um qualquer
Direito (insisto, africano ou outro) verdadeiramente redutível
a uma mera forma de expressão cultural?54 Parece-me que a
resposta a esta pergunta deve ser negativa.
Não é particularmente difícil conseguir melhor
equacionar esta dúvida epistemológica. Basta, para isso,
esmiuçar um pouco os pressupostos intrínsecos (e muitas
vezes tácitos) que subtendem tais correspondências
redutoras. Julgo fundamental frisar que há um número de
conexões diferentes (articulações que é essencial saber
distinguir) que se escondem por detrás do postulado
aparentemente unívoco e pouco problemático segundo o qual
52
Já que, a nível externo, os Direitos de articulam também obviamente com a ordem
internacional implantada. Um relacionamento que os processos de globalização tem
vindo a intensificar. Para uma discussão interessante dessa articulação externa, é útil a
leitura de Boaventura de Sousa Santos (2003, sobretudo no capítulo 1 do 1º volume),
que defende a sua centralidade em casos como o de Moçambique. Parece-me porém
exagerada, como insisti, a asserção de que articulações externas seriam
preponderantes em todos os Direitos em vigor em Estados “periféricos”, a não ser que
utilizemos o expediente de definir “periferia” precisamente nesses termos.
53
Como é evidente, este enquadramento unitário que sugiro de maneira nenhuma se
restringe aos Direitos em vigor em África; se esse fosse o caso o meu esforço
redundaria numa mera redefinição dos critérios de inclusão de um grupo de Direitos
numa “família” de Direitos Africanos. Parece-me muito mais defensável a ideia de
que o enquadramento que proponho sirva como moldura metodológica para a análise
unitária de quaisquer Direitos.
54
No que toca a África (como aliás no que respeita a qualquer outra parte do Mundo)
demasiado estreita e unívoca Direitos e culturas está pejado de riscos. Enquanto forma
de acção, expressando sempre interesses para além de significados, todo o Direito
produz, fabrica, cria, inventa; e fá-lo sempre (e fá-lo inevitavelmente, pois é assim
que um qualquer Direito se torna culturalmente inteligível e se legitima) explorando
convenções socioculturais em conjunturas de envolvimentos concretos de actores
sociais uns com os outros. Facto que não deixa, decerto, de o redimensionar enquanto
ordenamento normativo. Mas convém notar que se um ordenamento jurídico tem
algum domínio próprio, e conquista, ou mantém, alguma especificidade sua (e por
conseguinte algum grau de autonomia), esses são atributos que um Direito só adquire
se o campo social em que funciona lho admite, nos termos em que este lho permite e
fá-lo sempre retendo algum carácter de instrumento político.

50
Direitos seriam parcelas de culturas. Um mínimo de atenção
revela-nos que afirmá-lo pode querer significar coisas
bastante diferentes umas das outras. E alerta-nos para o facto
de que não deve haver confusão entre estes vários sentidos
(tão independentes uns dos outros) que se escondem por trás
das relações que possamos querer afirmar existir entre um
Direito e uma cultura55.
Cabe aqui cartografá-las. Quando equacionamos um
Direito e uma cultura africana, podemos estar a afirmar,
alternativamente56,
(i) uma definição dos Direitos africanos segundo a qual
um instituto, ou instituição jurídica, se torna legítimo
se e só se for apontado na direcção de uma finalidade
ou de um interesse cultural;
(ii) uma definição dos Direitos africanos segundo a qual
um instituto, ou instituição jurídica, se torna legítimo
se e só se for motivado por preocupações ou quaisquer
outros sentimentos culturais;
(iii) uma definição dos Direitos africanos segundo a qual
um instituto, ou instituição jurídica, se torna legítimo
se e só se for culturalmente prescrito e/ou congruente
com as ideias e os valores do grupo social em tem
assento e vigora;

55
Numa colectânea que já citei, de artigos de qualidade desigual, alguns dos quais
sobre África, (eds.) J. Starr e J. Collier (1989) agregaram uma série então novas
perspectivações pragmáticas, numa tentativa de renovação dos estudos antropológico-
jurídicos.

56
Retomo aqui, sem grandes alterações, aquilo que escrevi num artigo relativo aos
sentimentos de justiça em Macau sobre a natureza “cultural” do Direito (law): Em
termos muito semelhantes aos que utilizo nos próximos parágrafos, distanciei-me
então das perspectivas culturalistas enraízadas naquilo que S. Falk-Moore (2001: 96)
tão graficamente intitulou “the elementary forms of social unanimity” (Armando
Marques Guedes, 2003b). A sistematização de alternativas que aqui exponho segue de
perto os termos formais da discussão brilhante de Steven Lukes (1973: 417-418)
quanto às conceptualizações de Émile Durkheim relativas ao que este apelidou, ao
bom estilo oitocentista francês, a “éducation morale”. O meu ponto focal, no entanto,
é muito diverso: poisa nas maneiras alternativas de formular postulados, de acordo
com escolhas teóricas sustentadas em bases diferentes.

51
(iv) a alegação de que uma cultura, ou talvez melhor, um
contexto social, é uma precondição para a existência
(seja ela um prerequisito conceptual, uma exigência
prática, ou ambas as coisas) de um dado instituto ou
instituição jurídicos; ou, finalmente, numa versão mais
abrangente e ambiciosa,
(v) a hipótese empírica segundo a qual a adesão a um
sistema jurídico (que incluiria a atribuição de
legitimidade a valores e bens jurídicos específicos, e
envolveria deferência e acatamento em relação a
decisões de uma autoridade soberana particular) é algo
socialmente determinado; como corolário disto, o
preceito metodológico de que o sistema jurídico em
causa pode ser explicado nesses termos.
Todos os pontos enumerados são defensáveis e em
vários momentos têm sido advogados por diversos autores
que sobre a questão se têm vindo a debruçar. Todos podem
ter uma enorme utilidade analítica. Para todos eles se pode
invocar alguma fundamentação. Mas diferem imenso nas
implicações que geram.
Repito: visto que as resultantes da interacção entre
significações e interesses são sempre tão imprevisíveis,
quaisquer interpretações estreitas de um Direito ancoradas
num seu eventual ajustamento substantivo em relação a uma
cultura são, seguramente, ao mesmo tempo insuficientes e
excessivas. Argumentar que um Direito (insisto mais uma
vez, um Direito africano ou um qualquer outro) equivale
apenas57 a mera expressão de uma cultura, implica que
assumimos que os cinco tipos de relações que postulei
tenham pesos idênticos, no sentido de todas elas se
ajustarem, simultaneamente, aos factos empíricos

57
Para um colecção inovadora de artigos, alguns deles relativos a casos africanos,
sobre estas conexões e relativamente a elas e à sua ligação com a “moralidade”, ver o
livro editado pela norueguesa Signe Howell (1997). È útil também a leitura do
riquíssimo estudo monográfico, durante anos tão injustamente ignorado, de T. O.
Beidelman (1986), sobre os meandros da “moral imagination” dos Kanguru da
Tanzânia.

52
observáveis. O que nem sempre será o caso, como é fácil
(mesmo se apenas intuitivamente) de verificar.
O que não parece compatível (ou sequer congruente)
nem com a complexidade estrutural nem com o
multidimensionamento, nem ainda com a fluidez de
fronteiras que, como vimos, caracterizam os Direitos pós-
coloniais em África. A equação entre cultura e Direito nunca
é senão parte da verdade. Mas constitui seguramente uma
parcela destes ordenamentos normativos complexos que,
como iremos confirmar mais adiante, sobre eles tende a
exercer enormes pressões conformadoras, à medida que as
sociedades africanas contemporâneas se vão autonomizando
e democratizando.
Um pouco de contextualização histórico-sociológica
torna tais pressões evidentes.

3. O RECONHECIMENTO PROGRESSIVO DA
PLURALIDADE DE FONTES DO DIREITO EM ÁFRICA
E OS AVANÇOS E RECUOS NO ESTATUTO DESTAS

Depois de um longo período de dois ou três séculos em


que as influências europeias exercidas foram ténues,
localizadas, avulsas e altamente variáveis, toda a África
passou, em meados do século XIX, a estar sob tutela
colonial58 de europeus. A nível dos mecanismos de controlo
social em operação no Continente, o facto adensou mais
ainda uma situação que era já complexa. Sob o que se
convencionou chamar colonialismo, em quase todas as
unidades territoriais e populacionais reconhecidas no
Continente africano (e que correspondiam, grosso modo, aos
58
É habitual traçar a linha em 1884-1885, data da célebre Conferência de Berlim que,
ao impor o controlo efectivo de territórios e populações como condição para uma
legítima invocação de tutela colonial pelos Estados europeus, desencadeou o início de
um autêntico “scramble for Africa”. Apenas a Libéria, criada em 1822 pelo Presidente
norte-americano James Monroe como entidade soberana liderada por ex-escravos
libertados “devolvidos” ao Continente, não chegou a estar sob controlo europeu.

53
futuros Estados pós-coloniais, tanto no Magrebe como na
África subsaariana) funcionavam, em simultâneo, diversos
sistemas jurídicos.
A atitude formal das administrações coloniais perante
este facto não foi de maneira nenhuma unitária59. Sem querer
operar distinções finas que não caberiam na economia desta
trabalho introdutório, não é abusivo concordar com R.
David60, considerando que a atitude jurídico-colonial dos
Britânicos, por um lado, e , por outro lado, a dos “latinos”
(sobretudo portugueses, espanhóis, franceses, e, segundo ele,
belgas), mostraram-se ser, ao nível até dos seus princípios,
bastante diferentes entre si. Os últimos (embora haja a
formular, nessa generalização, algumas nuances de detalhe),
preferindo por norma levar a cabo a sua administração
pública sob a égide de figura de “colónias”, adoptaram uma
política de assimilação, baseada no duplo pressuposto de um
igual valor dos homens associado a uma tão presumida quão
clara superioridade da “civilização” europeia sobre os
“costumes” africanos.
Os britânicos, pelo contrário, favorecendo figuras
como a de “protectorados”, privilegiaram uma política de
administração indirecta (indirect rule), aceitando por
conseguinte, pelo menos como princípio geral, a ideia de que
os “africanos nativos” pudessem continuar a auto-governar-
se e a auto-administrar-se (ainda que sob supervisão e
controlo dos britânicos) de acordo com os seus costumes e
59
É imensa a bibliografia a este respeito, e não faria muito sentido aqui discutir os
meandros das suas linhas de força. Para duas perspectivas e problematizações
alternativas quanto aos sentidos dos processos de “juridificação” e judicialização
coloniais em África, sugiro a leitura de Mahmood Mamdani (1996, op. cit.: 62-138) e
de Martin Chanock (1985). Para uma contextualização recente fascinante e
muitíssimo diferente, ver Edward Keene (2002: 60-120), que propõe um modelo que
contrasta (com algum maximalismo, em minha opinião) “tolerance” e “civilization”
como princípios complementares que subjazeriam ao desenvolvimento progressivo da
regulamentação gizada e promulgada relativamente às relações “internacionais” entre,
respectivamente, os Estados europeus entre si, e estes vis à vis as suas “colónias”.
60
R. David, op. cit.: 570-571. No que diz respeito a comparações juspublicistas entre
sistemas jurídicos europeus (neste caso, designadamente, entre regulações coloniais
oitocentistas e novecentistas), este último trabalho de fundo de R. David é notável.

54
segundo as formas tradicionais que preferissem. Sem grande
surpresa, uns como outros, muito naturalmente transpuseram
de maneira quase directa, para o plano dos seus respectivos
relacionamentos coloniais, as concepções centralistas e
descentralistas que aplicavam no seu próprio território no que
dizia respeito às suas próprias colectividades locais61.
Seja como for, poder-se-ia argumentar que, durante a
época colonial, a diversidade patente de sistemas jurídicos,
apesar dos elementos de ingovernabilidade e de iniquidade
que (aos olhos europeus) permitia, de certo modo convinha
em parte às potências administrantes, já que mantinha
divididas as populações tuteladas. Com a descolonização, a
situação inverteu-se: para os nacionalistas africanos que
lideravam os novos Estados independentes, o pluralismo
existente ameaçava a integridade interna que ambicionavam
erigir (e portanto a sua existência ela mesma, enquanto
entidades soberanas) com divisões, conflitos e o espectro de
uma eventual dissolução62.

61
Ibid.: 571. A distinção, porém, pelo menos no que toca ao relacionamento real entre
governantes e governados, era pouco mais do que uma fórmula. Na prática, as
semelhanças efectivas, evidentes na administração concretamente levada a cabo por
britânicos e por “latinos”, eram mais marcadas do que as diferenças. As distinções
entre as concepções juspublicistas da common law e as “romanistas”, neste como
noutros domínios, revelaram-se ser pouco mais do que diferenças de estilo. Uma
simples contraposição torna-o nítido: seria tão claramente abusivo assumir que os
sujeitos da tutela colonial britânica se pudessem valer significativamente dos seus
costumes face às leis imperiais, como seria descabido acreditar numa total hegemonia
dos Direitos coloniais “românicos” vis-à-vis das populações que lhes eram totalmente
alheias. Sem embargo desse facto, no entanto, mesmo meras diferenças estilísticas
parecem ser importantes. Quando, com as independências, as elites africanas
nacionalistas transpuseram para os seus respectivos Estados pós-coloniais a parte de
leão das ordenações coloniais, trouxeram consigo também esse estilo: tal como as ex-
colónias “latinas” se consideram invariavelmente como pertencentes ao que os
comparativistas chamam a “família romano-germânica” de Direitos, as ex-colónias
britânicas têm-se como aderentes ao sistema de common law.
62
Para uma enunciação e discussão do autêntico dilema político que esta situação
causou em vários dos Estados africanos (mais uma vez de maneiras marcadamente
divergentes, e por isso dificilmente reconduzíveis a uma qualquer modelização
unitária), convém a leitura da listagem de B. Durand (2002, op. cit.: 274-276), sobre
os obstáculos que se interpuseram (e continuam a interpor) na construção de
“sociedades jurídicas” no Continente.

55
O que, por si só, é fascinante. Por via de regra, tudo se
passou como se as elites independentistas que, a partir dos
anos 50 e 60 do século passado, esboçaram a criação de
novos Estados, estivessem convencidas de que o Direito
poderia com facilidade criar sociedades mais homogéneas
pela simples instituição de um sistema jurídico unificado.
Mais: evidenciando a convicção, que essas elites (embaladas
num Zeitgeist ingenuamente voluntarista) partilhavam, de
que uma tal homogeneização seria aceitável para populações
tão plurais como aquelas que se viram integradas em muitos
dos Estados africanos que então se tornaram independentes.
A universalidade destas curiosas convicções foi
extraordinária, e partilharam-na tanto os Estados criados a
partir de entidades coloniais portuguesas, francesas, belgas,
espanholas, italianas e alemãs, como aqueles construídos
sobre “protectorados” ou colónias britânicas. Fizeram-no,
independentemente das opções político-ideológicas que
assumiram, tanto os Estados que optaram por modelos
políticos e vias socialistas de desenvolvimento, como aqueles
outros que preferiram adoptar economias de mercado e
sistemas políticos “democráticos”.
Alguns dos novos países tentaram-no, integrando as
leis de origem europeia que tinham herdado dos Estados
coloniais que os precederam, com um ou vários dos seus
Direitos costumeiros, por vezes esquissando harmonizações
que visavam reconciliar regras e princípios oriundos de um e
de outro desses domínios-fonte. Outros (e neste grupo se
podiam encontrar, ainda que com variações de monta63, os

63
Bastará aqui aludir a algumas variantes. A Guiné-Bissau, por exemplo, cedo tentou
equilibrar Direitos tradicionais e o Direito do Estado. Moçambique, por outro lado,
por exemplo no que diz respeito ao reconhecimento de “autoridades tradicionais” que
tinham a seu cargo a tutela local de direitos de propriedade fundiária e a resolução de
litígios, assumiu a postura aposta, ilegalizando-as liminarmente. Em Angola, a
posição das autoridades pós-coloniais da 1ª República foi intermédia; já a UNITA nos
territórios que ia ocupando, sem as mesmas responsabilidades de governação e mais
atida a modelos de “re-africanização” da sociedade angolana, preferiu (ou pelo menos
pareceu fazê-lo a nível da oratória política, embora decerto em parte essa preferência
tenha respondido a conveniências político-pragmáticas dada a precariedade da
administração no essencial militar que estabeleceu nas “terras livres de Angola”)
reconhecer um forte grau de autonomia ao que é tido como sendo consuetudinário.

56
cinco Estados africanos de língua oficial portuguesa), pura e
simplesmente decretaram sistemas unificados e unos,
inspirados em modelos jurídicos ocidentais (ou, nalguns
casos, muçulmanos), em que o ascendente hierárquico da lei
estadual tendia a tornar-se, programaticamente, muito pouco
discutível.
Poder-se-á aventar que a ratio que presidiu a estas
preferências terá sido pragmática64: para alguns dos líderes
africanos pós-coloniais uma integração aparecia como
prematura, tendo em conta a resistência muitas vezes tenaz
oferecida pelas estruturas sociais tradicionais existentes, e as
preferências terão então recaído na manutenção da
diversidade; enquanto para outros se mostrava inviável,
porventura em razão da heterogeneidade étnica e/ou religiosa
das suas respectivas populações. A maioria, em todo o caso,
decerto raciocinando sob a alçada tenaz de ideologias
desenvolvimentistas65, parece ter-se inclinado para a opinião
de que constrangimentos económicos e políticos exigiam
uma rápida fusão da diversidade jurídica plural anteriormente
existente (fosse qual fosse a textura de pormenor desse
pluralismo “colonial”) que culminasse na imposição de um
sistema jurídico unificado e homogéneo.
Nestes últimos casos, as autoridades públicas pós-
coloniais depressa se viraram para tentativas mais ou menos
veementes de erradicação pura e simples de comportamentos
encarados como obstáculos ao tipo de desenvolvimento
ansiado. A lei, para além do mais, depressa se transformou
num instrumento precioso para tentativas de legitimação do
exercício do poder nos regimes autoritários que se foram
implantando.

64
B. Durand (2002, ibid.: 227-229).
65
Idem. Para uma boa recensão crítica das discussões académicas relativas ao
impacto desta “ideologia do desenvolvimento” partilhada pela larguíssima maioria
dos governantes africanos da época imediatamente posterior às independências (que
coincidiu, nos PALOP, com as chamadas 1ª Repúblicas) ver a artigo já citado de L.
Rodriguez-Piñero Royo (2000).

57
Em muitos dos cenários (e todos os PALOP, em maior
ou menor grau, mais uma vez são disso exemplos
paradigmáticos) uma sustentação político-ideológica foi
sentida como necessária para ancorar a legislação produzida.
Noutros, a proliferação de normas estaduais no período pós-
independência tornou-se claramente contraproducente no que
dizia respeito aos projectos de modernização idealizados. Em
todos os casos, e segundo um ou outro formato,
enquadramentos como o de uma “autenticité”, de um
“socialismo africano”, ou de um marxismo-leninismo
alinhado na ordem bipolar então existente, tornaram-se
vestes legitimadoras imprescindíveis.
A situação, no entanto, não iria durar. O fim da Guerra
Fria, ao desacreditar o papel dos sistemas monopartidários e
ao suscitar questões relativamente aos reais papéis
preenchidos pelos Estados no que diz respeito por um lado às
economias e, por outro, às sociedades civis, levou os
africanos a uma travagem brusca e a uma muito rápida
inversão da marcha que até então tinha parecido dogma
inabalável. Assistiu-se em numerosos casos (por tal motivo e
em resultado de dinâmicas internas,e o processo ainda está
muitas vezes em curso) a uma renovação dos pluralismos
constitucionalistas, a uma revalorização dos debates
parlamentares, a um reavivar do controlo judicial das
políticas públicas; e tudo isso os encaminhou na sentido de
uma adopção generalizada do Direito Constitucional e da
lógica da separação de poderes66.
Com os processos em curso de globalização (e depois
de um intervalo pós-independências em que o peso do
exterior era altamente variável) factores externos e factores

66
É numerosa a bibliografia existente sobre estes tópicos relacionados com a
dinâmica causal dos processos de transição democrática que ocorreram um pouco por
toda a África nos dois anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim e à
dissolução da União Soviética. Para além de tornar a aludir a L. Rodriguez-Piñero
Royo (2000) e, sobretudo, à monografia comparativa de M. Bratton e N. van de Walle
(1997), remeto para a Bibliografia Suplementar do programa da disciplina de Direitos
Africanos, que incluo em Anexo neste breve estudo, na qual listo vários outros
trabalhos sobre questões conexas.

58
internos tornaram-se dificilmente separáveis; na nova
ordenação emergente trata-se de dimensões dificilmente
separáveis uma da outra, não só nas causas últimas mas
também no desenrolar e no desembocar das coisas67. Sem
querer generalizar indevidamente: com as transformações
ocorridas na ordem internacional, cada vez mais (e os
PALOP não são nisso excepções) os juristas e os tribunais
preenchem, em África, funções primordiais no que toca à
modernização das leis e nas tentativas, cada vez mais
intensas, de uma reconciliação entre tradição e modernidade
que possa, efectivamente, conduzir as sociedades e os
Estados do Continente para a via de uma “modernização
africana”.
Ainda é decerto cedo para aventar hipóteses bem
fundamentadas quanto ao grau de sucesso que lograrão
alcançar. Mas os dados foram lançados.

3.1. O EXEMPLO PARADIGMÁTICO DA PROGRESSÃO


PARALELA DO ESTATUTO “SOBERANO” ATRIBUÍDO
PELOS ESTADOS AFRICANOS A ENTIDADES LOCAIS
TRADICIONAIS, E DO ESTUDO SOBRE ESTAS
QUESTÕES

Não é difícil exemplificar, com exemplos detalhados,


estes avanços e recuos das pressões sistémicas que muito têm
influenciado o reconhecimento de fontes locais do Direito em

67
Ao contrário do aventado nas teses marxista e marxianas pós-marxistas do tipo
“Sistema-Mundo”, que insistem na predominância estrutural de factores externos em
relação a todos os Estados localizados na “periferia”, prefiro uma perspectiva mais
conforme as desenvolvimentos recentes na teorização quanto ao evoluir do sistema
internacional de Estados. Assim, por exemplo, parece-me mais facilmente defensável
um modelo que sublinhe o facto de que, até à implosão da União Soviética em 1989,
os Estados do então chamado Terceiro Mundo lograram manter alguma liberdade de
acção, ao abrigo das alianças tácticas e estratégicas que iam estabelecendo com os
dois blocos da ordem bipolar. Com o fim da bipolarização e a hegemonia dos modelos
“liberais” da única super-potência remanescente, o impacto dos factores externos
diversificou-se: só conseguiram manter essa liberdade de manobra aqueles Estados
mais capazes de sobreviver pelo seu próprio pé (e aqueles outros marginais
relativamente à nova ordem internacional).

59
África. De entre os muitos casos possíveis, o das alterações
nos âmbitos de jurisdição subsidiária permitidos às chamadas
“autoridades tradicionais” parece-me seguramente um dos
mais significativos, tanto pela diversidade das suas
implicações a nível jurídico (e político), como pela
pertinência que tem vindo a assumir no crescimento efectivo
do pluralismo jurídico nalguns dos PALOP.
Na subsecção que se segue deste estudo, debruçar-me-
ei, por isso, sobre essa progressão sincronizada; ainda que a
abordagem que levo a cabo possa parecer transportar-nos
para regiões marginais relativamente aos Direitos africanos
propriamente ditos, os paralelismos suscitados redirigem-nos
de maneira inexorável na sua direcção.
Começo por um enquadramento genérico da questão.
Sem pretender compilar um rasteio exaustivo de alterações
substantivas de âmbitos que em todo o caso foram bastante
heterogéneas, limitar-me-ei em consequência por ora a uma
visão de conjunto quanto à África, sem um qualquer ponto de
aplicação geográfico preciso; num segmento posterior da
segunda parte deste trabalho regressarei ao tema de maneira
um pouco mais particularizada68, abordando algumas das
questões mais concretas que, a este nível, tem emergido no
caso angolano.

3.2. UM PONTO DE MÉTODO

Um ponto de método, em primeiro lugar. Tendo em


conta o seu embutimento (ainda que parcial) em contextos
“políticos” e conceptuais, que é tornado manifesto pela
progressão paralela entre, por um lado, o relacionamento
político-administrativo dos Estado com as autoridades locais
tradicionais e, por outro, das análises científicas sobre elas

68
Mas sem no entanto entrar em grandes pormenores, já que o faço no texto do longo
relatório monográfico (Armando Marques Guedes et al., 2003ª, op. cit.) que redigi
com base nos dados recolhidos, em Luanda e no Planalto Central (nos arredores do
Huambo), com a colaboração da equipa de docentes e discentes de Direito, angolanos
e portugueses, com que a esse país me desloquei.

60
levado a cabo, é exactamente nesse contexto que deve ser
enquadrada e “decifrada” a produção legislativa que é
coetânea com estes processos emparelhados. Esse
embutimento exige uma recontextualização a que irei
regressar na Parte II deste trabalho introdutório: tanto o
significado dessa produção como os sentidos das disposições
sucessivas formuladas se tornam mais inteligíveis quando a
legislação e as mudanças e inflexões a que esta tem estado
sujeita são re-inseridas nos contextos concretos em que
foram emergindo.
Irei delinear, aqui, uma introdução genérica ao tópico.
O relacionamento e a articulação entre os Estados pós-
coloniais e as “autoridades tradicionais” que muitas vezes
estão implantadas nos seus territórios, e às quais muitas das
populações locais em muitos domínios reconhecem alguma
forma de legitimidade, tem sido um tópico “clássico” dos
estudos jurídicos e políticos levados a cabo em África. Este
interesse, em si mesmo, não constitui decerto uma surpresa:
tal tipo de ligações é crucial tanto da perspectiva da natureza
do exercício dos poderes jurídicos e políticos estatais quanto
da perspectiva “cultural” dos agrupamentos locais em causa,
como ainda do ponto de vista mais particular (mas não
menos central) do papel que o controlo efectivo dessas
populações preenche na expansão territorial e na legitimação
(e por conseguinte na consolidação) do Estado.
Para além disso, e dada a pertinência desse
relacionamento, seria difícil exagerar a importância e o
melindre assumidos por esse tipo de tópicos para a definição
estratégica, pelas elites detentoras do poder, de políticas
legislativas e de outras políticas públicas africanas. Um
exemplo valerá por todos: numa monografia recente, Jeffrey
Herbst69 pôde há pouco tempo escrever que “one of the most
contentious issues in the politics of the continent has been the
relationship between central authorities and local leaders”.

69
Jeffrey Herbst (2000: 173). Este metáfora vem expressa no contexto de um
esplêndido estudo sobre a natureza dos Estados e do poder na África contemporânea.

61
O que não só não é de maneira menhuma trivial, mas será
mesmo bastante surpreendente, se aceitarmos pelo seu valor
facial as declarações iniciais triunfalistas dos líderes
independentistas africanos.
A centralidade dos temas suscitados por estas questões
tem no entanto sofrido avanços e recuos, que se prendem
com a importância cambiante que essas relações têm
historicamente vindo a assumir num continente em mudança
acelerada. Mais ainda: os significados que lhe têm vindo a
ser atribuídos têm-se alterado num vai e vem ao que parece
incansável, uma oscilação que tem vindo a influenciar tanto o
papel e o “estatuto” dos Estados, como os dos “chefes
tradicionais”.
É por isso com razão que, fazendo uso de uma
metáfora esclarecedora, o mesmo Herbst70 tenha chamado às
transformações complexas deste relacionamento e dessas
articulações “the complicated dance between States and
chiefs”.

3.3. UMA PERIODIZAÇÃO GENÉRICA

Esboçar uma periodização geral da coreografia dessa


dança, lado a lado com um esquisso da progressão, que se lhe
associou, dos trabalhos científicos que a tentaram decifrar,
não é tarefa árdua. E é um esforço altamente compensador.
No rescaldo da Conferência de Berlim de 1884-1885 e
do imperativo do exercício de uma tutela territorial efectiva
nas colónias um entrelaçar de esforços entre Estados
coloniais e chefaturas locais era útil, interessante, e tornara-
se possível71. Em resultado, a partir de finais do século XIX,
e sobretudo de inícios do século XX, estudos sobre sistemas
jurídico-políticos e formas africanas de liderança

70
Ibid: 174.
71
Os contactos até aí existentes por via de regra limitavam-se a trocaas comerciais e à
compra de escravos.

62
(normalmente levados a cabo por antropólogos e etnógrafos
britânicos ou franceses) começaram a dar os seus primeiros
passos.
Por muito que haja quem o sustente, não é porém
inevitável presumir que uma tal correspondência denote, no
entanto, uma qualquer colusão: seria um exagero presumir
que esta convergência significasse necessariamente uma
qualquer cumplicidade entre projectos científicos de
investigadores muitas vezes independentes e agendas
político-administrativas das potências coloniais72.
Seja como for, os trabalhos continuaram pelo século
XX adentro, interrompidos por hiatos e pontuados por
relativamente pequenas reorientações: mas sempre nos
termos de uma progressão tão homogénea quanto
cumulativa. Tratava-se, todavia, de uma estabilidade
enganadora: estes programas inovadores de investigação
tinham os dias contados. O próprio tabuleiro em que se
72
Para uma posição que, ao invés, insiste de maneira assaz linear nessa cumplicidade
ver, entre autores portugueses, Rui M. Pereira (2001: sobretudo p. 127). Para uma
leitura menos polarizada e atendo-nos a investigadores nacionais, é útil a consulta de
João Pina Cabral (1998: 1085-1089), que, na direcção oposta, nota a preocupação
comum de muitos cientistas sociais com a “pouca utilidade” das investigações
fundamentais dos antropólogos, que tendem a minimizar, muitas vezes por razões
corporativas. R. Pereira, curiosamente, não mitiga a sua tomada de posição com
considerações que, por exemplo, sublinhem a afinidade electiva existente entre
“saber” e “poder”; mas parece baseá-la, antes, em afirmações radicais e redutoras de
Talal Asad (1975) e de George Stocking Jr. (1991), dois historiadores, e acaba por
assumir uma cumplicidade “útil” e muito directa das investigações antropológicas e
dos projectos políticos coloniais. Na melhor das hipóteses, trata-se de um processo de
intenção; na pior, em alegações retrospectivas de uma correlação estreita que
raramente existiu. Insistir na evidência de uma ligação parece-me óbvio, e é o que
tento aqui em parte levar a cabo. Condicionar os termos dessa ligação à lógica política
dos Estados coloniais parece-me claramente um exagero. Dificilmente, por exemplo,
poderíamos encarar dessa perspectiva os quadros analíticos dos dois principais
estudos fundadores da Antropologia Jurídica africana, o de Max Gluckman (1955,
1965) sobre o “judicial process” e a “jurisprudence” dos Lozi (ou Barotse) da
Zâmbia, e o de Paul Bohannan (1957) sobre os “tribunais” dos Tiv da Nigéria: o
primeiro tinha como objectivo central o de demonstrar (contra as teses implícitas dos
seus conterrâneos defensores do apartheid) a “racionalidade” de uma “organização
judiciária” tribal tradicional; o segundo, um norte-americano, estava pelo contrário
empenhado em argumentar contra a redutibilidade das noções e dos conceitos
“jurídicos” dos Tiv aos quadros intelectuais desenvolvidos pelos juristas europeus e
norte-americanos. Em boa verdade, nem a cumplicidade foi determinante, nem
constante no tempo.

63
efectuavam depressa iria mudar com as alterações sofridas
pela ordem internacional.
Como é bem conhecido, os primeiros decénios do
século viram-se marcados por inovações tecnológicas de
monta que, ao potenciar processos de internacionalização
acelerada, desencadearam reacções nacionalistas fervorosas
na Europa, acabaram por se saldar numa acentuada
mercantilização económica e numa afirmação de formas
estanques e exclusivistas de tipos de soberania que os
desacelararam e lhes fizeram frente. Reordenações globais
como estas não deixaram de afectar a gestão das coisas
coloniais. Mas mais uma vez o fizeram de maneira efémera:
uma 2ª Guerra Mundial, mais extensa, menos contida e muito
mais generalizada do que a 1ª, que tão dolorosamente
marcara o segundo decénio do século, recentrou os processos
de integração global que a industrialização e as colonizações
tinham encetado. Se a Grande Guerra de 1914-1918 chegara
a África, a 2ª teve no Continente um impacto muitíssimo
maior.
Após a 2ª Guerra Mundial, as pesquisas jurídicas e
políticas sobre os “chefes” africanos e as suas “chefaturas”
atingiram um primeiro pico, no contexto do reatamento de
um exercício “normal” das tutelas coloniais que teve lugar
depois dos abalos a que estas em tantos casos se viram
sujeitas com o conflito, de permeio com a emergência de
ideais de auto-determinação e de devolução subsidiária do
poder que cada vez mais se faziam ouvir em coros que
associavam as colónias africanas a organizações cívicas nas
Metrópoles, e aos novos fora internacionais73 saídos do
conflito.
Enquanto perdurou, não variou muito a formatação dos
estudos empreendidos em África no decurso do prolongado
primeiro período de “dança analítica sincronizada” que
identifiquei. O modelo estrutural genérico que os subtendia é
bastante fácil de delinear.

73
Cf. R. Jackson, 1993, E. Keene, 2002, op. cit.: 60-97.

64
Nalguns casos, os líderes locais e o tipo de liderança
que lhes cabia eram estudados enquanto dando corpo a
formas jurídicas e políticas sui generis. Tipos de organização
que ora durkheimianamente se considerava que reflectiam
estruturas locais de parentesco em sociedades cuja
“solidariedade” e coesão eram tidas como dele inseparável,
ora weberianamente se supunha que manifestavam
ilustrações de tipos ideais de (por exemplo) “liderança
carismática”74.
Foram então comuns pesquisas etnográficas
pormenorizadas (trabalhos muitas vezes de grande fôlego)
sobre as sociedades africanas “tradicionais” tout court, por
via de regra levadas a cabo com objectivos político-
administrativos pouco vincados. Mas nem sempre assim foi,
e com o andar dos tempos e as alterações supervenientes de
circunstâncias essa “inocência primordial”, como talvez lhe
possamos chamar, ver-se-ia posta em causa.
Noutros casos, mais raros, as investigações tinham
finalidades mais pragmáticas e mais terra-a-terra75; e aquilo
que verdadeiramente visavam era estudar as condições para
um mais eficaz exercício de uma “indirect rule” (a possível)
sobre populações em relação às quais o interesse concreto

74
Em termos mais genéricos de estudos sobre sistemas normativos “tradicionais”
negro-africanos (incluindo a África Oriental não-bantu), o exemplo clássico é o da
colectânea organizada por Meyer Fortes e E. E: Evans-Pritchard, em Oxford, em
1940, sobre os então muito seca e assaz contrastivamente chamados “sistemas
políticos africanos”. A esta colectânea há a acrescentar outra, virada para a dimensão
normativa central dos “sistemas africanos de parentesco e casamento”, organizada em
1950 por A. R: Radcliffe-Brown e Darryl Forde, e publicada pela mesma
universidade britânica. Os trabalhos levados a cabo relativamente aos ordenamentos
normativos próprios da África francófona apenas chegaram, como iremos verificar,
mais tarde; os relativos à África lusófona primam pela sua ausência.
75
Um ponto abundante e apaixonadamente discutido em meios académicos. Para uma
posição crítica, ver a colectânea que referi organizada por (ed.) Talal Asad (1975).
Para uma discussão destas questões no contexto da história colonial e científica
portuguesa, é útil a leitura dos já citados J. Pina Cabral (1991), ou de R. M. Pereira
(2001), entre muitos outros. Para uma leitura ponderada sobre a extensão desta
colusão-colisão entre agendas políticas e científicas ver, por exemplo, A. Kuper
(1988). Uma colectânea característica desta época é a de M. Crowder e O. Ikime
(1970).

65
dos Estados coloniais se reduzia a pouco mais do que o de
assegurar de um mínimo de controlo efectivo.

3.4. A FASE PÓS-COLONIAL

Com as independências generalizadas que ocorreram


durante os anos 60 e (no caso de Angola e do resto da África
“lusófona”, nomeadamente Moçambique e a Guiné-Bissau)
dos anos 70, essa primeira onda teve um fim abrupto.
Muito depressa, os esforços de investigadores
interessados nas formas políticas e jurídicas tradicionais
diminuíram de intensidade e “o Estado passou a ser o centro
de todas as atenções analíticas”76. O esforço e empenhamento
(quantas vezes novamente de maneira explícita um exercício
político-programaticamente motivado) necessários para
tornar inteligíveis as novas entidades africanas soberanas
assim o exigia. A convicção de que esses Estados eram os
verdadeiros garantes locais de “desenvolvimento”, da
“tradição” e, em simultâneo, da “modernização”77 tornava-o
imprescindível.

76
E. Costa Dias, 2001: 29. Esta linha histórico-política de demarcação coincide,
largamente, com a entrada, nos cenários analíticos, de investigadores de formação no
essencial jurídica; o que, aliás, é compreensível, dada a convergência de objectos (cf.
J. Vanderlinden, 1996: 38-45) que então se instalou entre africanistas preocupados
com ordenamentos normativos e juristas “clássicos”, na sequência criação-instalação
dos Estados africanos pós-coloniais. À parte alusões avulsas de antropólogos como
Jorge Dias (que no seu estudo sobre os Macondes do norte de Moçambique prestou
atenção às práticas “jurídicas” tradicionais destes), e embora tenha havido alguns
esforços de codificação de “usos e costumes”, foi com as independências e a
emergência dos Estados pós-coloniais nos PALOP que investigadores portugueses se
debruçaram com alguma atenção sobre Direitos africanos (e, exclusivamente, sobre os
Direitos em vigor nos PALOP). Destacam-se, nesse contexto os trabalhos levados a
cabo sobre os Direitos estaduais por equipas constituídas pelas Faculdades de Direito
de Lisboa (sobretudo na Guiné-Bissau e em Moçambique) e de Coimbra; neste último
caso parece-me essencial referir os projectos de investigação jurídico-sociológica
coordenados por Boaventura de Sousa Santos.
77
Cf. L. Rodriguez-Piñero Royo, 2000, para uma discussão sobre estes mecanismos
de legitimação tão comummente esgrimidos nessa época.

66
De um certo ponto de vista, aquilo a que se assistiu foi
o culminar de uma convergência de agendas que tinha sido
anunciada e que um longo interregno esbatera. As formas
políticas locais, que tinham adquirido interesse por si
próprias, como que perderam o seu apelo. Embora os estudos
etnográficos jurídico-políticos encetados nos finais do século
XIX e empreendidos de acordo com moldes “clássicos” não
tivessem desaparecido, viram-se severamente relegados para
uma posição secundária.
Para melhor compreender este refluxo basta atentar à
conjuntura. Era, com efeito, um novo tipo de poder que se
instalava. Por um lado, o fim dos impérios coloniais
aparentemente acabara com a disjunção entre as “formas
políticas indígenas” e o poder político estatal que sobre elas
se exercia; o facto, aliado às invocações “modernizantes” dos
novos líderes nacionais africanos, tornavam politicamente
correcta essa convergência-sobreposição reificadora.
Mas houve mais. Por um outro lado, a razão para a
subalternização (que viria em todo o caso a revelar-se
transitória) sofrida no decurso das conjunturas
independentistas e fundacionais dos anos 60 e 70 prendeu-se
também seguramente com a natureza jurídica e politicamente
bastante complicada da relação entre Estados pós-coloniais e
“chefes”.
Um mínimo de contextualização histórica e de atenção
sociológica revelam a olho nú essa dificuldade. Para a
maioria dos jovens nacionalistas africanos em busca de
emancipação, oriundos de grupos em ascensão social nas
colónias e ligados ou a missões religiosas ou a mais antigas
elites coloniais urbanas, as atitudes e aspirações das
autoridades tradicionais eram incompatíveis com as
inovações político-revolucionárias ambicionadas78. Em
muitos casos, essa não miscibilidade de princípios viu-se

78
Para as lutas e tensões político-ideológicas intestinas no que iriam ser os novos
Estados pós-coloniais durante este período da história africana contemporânea, não é
prescindível a leitura da excelente monografia de C. Clapham (1996), e sobretudo (e
só neles) as pp. 31-40.

67
potenciada pela postura ambígua que muitas das autoridades
“tradicionais” preencheram durante a época colonial e pelo
papel ambivalente que estas muitas vezes assumiram no
processo, nalguns casos bastante turbulento, que conduziu às
independências. Por sua vez e pelo seu lado, os chefes
tradicionais, porventura não compreendendo nem as
motivações nem os métodos das gerações afro-nacionalistas,
não raramente hesitaram em dar o devido reconhecimento às
agendas revolucionárias destes (surgidas em pouco tempo),
apostadas numa tomada do poder estadual.
A consequência dessa falta de comunicação política foi
muitas vezes a adopção de posturas “desenvolvimentalistas”
e hegemónicas, nalguns casos bastante truculentas, por parte
de jovens líderes destes novos Estados que tendiam a ver
essas estruturas locais “espontâneas” como competidores
perigosos79. A atitude das elites independentistas foi também
79
Um só exemplo “lusófono”: o jovem Estado soberano angolano, tal como outros
um pouco por toda a África, aceitou reconhecer a eficácia das autoridades
“tradicionais” na sua herança de intermediação com muitos dos grupos locais e
regionais distribuídos pelo extenso território. Mas aceitou-o com óbvias (e novas, se
comparadas com as dos “colonos”) renitências e hesitações. Compreendê-las é fácil.
Por um lado, já que, de um ponto de vista ideológico e nacionalista (e nisso estas duas
linhas de força convergiam), para as elites que detinham controlo do Estado
instaurado em Angola pela 1ª República era um claro factor de desconforto o simples
facto de a sua própria assunção do poder (enquanto “representantes” do “povo” e dos
“angolanos”) não resultar, automática e liminarmente, na eliminação da relevância
sociocultural e política das autoridades tradicionais. Por outro lado ainda, e como que
em corolário, acatar a evidência de que essas autoridades tradicionais continuavam a
desempenhar papéis importantes e bebiam de legitimidade local, equivalia a aceitar
que se mantinham espaços políticos autónomos em relação a um controlo político-
administrativo (que se queria universal e meticuloso) sobre a população e o território
do novo Estado independente. A incomodidade sentida neste plano mais concreto e
material, era decerto agravada pelos riscos que a existência de tais “vácuos” e
autonomias (pelo menos potencialmente) significavam num contexto de uma guerra
civil com várias frentes e frentes de geometria variável: um conflito em que o Estado
e um grupo insurgente, a UNITA, competiam, precisamente, pelo controlo de
território e populações. Numa primeira fase, logo depois de conseguida a
independência, viveu-se assim a este nível, em Angola, uma situação compósita, um
misto de algum distanciamento mesclado com uma forte dose de instrumentalização.
Os “sobas” não tendiam a ser encarados como entidades que merecesse a pena apoiar,
bem pelo contrário; se não eram de excluir (como foi o caso, por exemplo, em
Moçambique) eram pelo menos alvos de alguma desconfiança; não só porque se
tratava de gente reputada de ter colaborado com a tutela colonial, retirando dela
benefícios pessoais tidos como indevidos; mas também porque representavam focos
alternativos de poder, que ademais desafiavam (ainda que passivamente) a nova

68
por norma marcada pela ambiguidade80: os nacionalistas
africanos “modernos” precisavam dos chefes “tradicionais”.
O que não é difícil de compreender: se por um lado
aspiravam a substituir a autoridade deles nas áreas rurais, por
outro lado era precisamente para essas regiões não-urbanas
mais remotas que sentiam a necessidade de estender a sua
implantação e o seu poder81 e que garantiam, com essa
parceria, uma legitimidade acrescida.
Uma boa caracterização da ambivalência seguramente
sentida por uns e outros é mais uma vez a formulada por J.
Herbst82, que a intitula de “esquizofrénica”. Todavia, talvez
por isso, a reacção de antagonismo das lideranças africanas
“modernas” vis à vis as entidades “tradicionais” foi
temporária; e redundou não num desaparecimento destas
últimas, mas antes de uma fase curta e passageira de uma sua
secundarização.
Novamente tudo isso iria mudar. Os anos 80
soletraram um regresso em força de esforços monográficos e
de trabalhos comparativos sobre as autoridades
“tradicionais”e as suas competências jurídicas e políticas.
Mais uma vez a razão pode ser encontrada na conjuntura da
época. O descalabro generalizado que afligiu a maioria das
ordem nacional em termos considerados como “politicamente retrógrados”. Tanto
segundo as cartilhas político-ideológicas do partido único, como em termos das suas
agendas políticas, as “autoridades tradicionais”, quando não eram encaradas como
uma ameaça, eram em todo o caso olhadas de viés.
80
J. Herbst, 2000, op. cit., idem.
81
O facto verificou-se um pouco por toda a África. Como resumiu van Nieuwaal, no
continente, “most heads of state, revolutionary or reactionary, were suspicious of the
chief”. Fizeram-no na Guiné-Conacry, na Tanzânia, no Alto-Volta, no Uganda, no
Burundi e na Nigéria, para só citar alguns exemplos (1987: 20-21). Pelo seu lado, os
líderes tradicionais começaram muitas vezes a manifestar uma atitude de
incompreensão e em diversos casos severas reticências face aos Estados
monopartidários e altamente centralistas que se iam instalando de norte a sul do
continente. O que não constituirá surpresa: os regimes de partido único raramente
olhavam com bons olhos quaisquer desafios ao monopólio formal que
programaticamente defendiam, e que tinham dificuldades em exercer nas regiões em
que a autoridade dos “chefes” se fazia sentir.
82
Op. cit.: 176.

69
experiências estatais pós-coloniais africanas, e as sérias
crises de legitimidade daí decorrentes, repuseram no palco
entidades que, num meio académico então já mais
sensibilizado para problematizações terminológicas de fundo,
passaram a ser quasi-universalmente denominadas
“autoridades locais”83.
À consciência de um reganhar de protagonismo
empírico por parte dessas autoridades, adicionava-se outra
vez uma compreensível componente política mais
pragmática. Em países africanos tão diversos como a
Tanzânia, a Mauritânia, o Niger, ou o Chade, cujos Estados
tinham, para efeitos práticos, abolido “por decreto” as
autoridades tradicionais, ou noutros, como Moçambique, em
que tais entidades tendiam a ser olhadas com uma forte dose
de desconfiança e muitas vezes em termos de uma
hostilidade aberta, estas começaram a ser apoiadas e
acarinhadas enquanto fontes de uma legitimidade política
local que urgia a Estados em crise tentar co-optar de modo a
conseguir enriquecer a sua implantação e o seu acervo, ou
capital, de legitimação.
Num sentido forte, cristalizava-se uma ampla
convergência de agendas, novamente por obra e graça de
transformações contextuais de peso.
Importa configurá-la. A delineação que Eduardo Costa
Dias propõe para esta retoma multifacetada constitui um guia
útil para a multiplicidade de frentes conjunturais desse
renascer da investigação jurídica e política, e vale por isso a
pena citá-lo: “no plano do normativo político, assistimos

83
A alteração terminológica foi significativa. Nas conjunturas de crise que se
acentuavam de formas em muitos casos dramáticas, estas entidades (cuja
variabilidade se tornou óbvia à medida que os raros estudos se iam acumulando) eram
muitas vezes agora explicitamente encaradas como sendo instrumentos e fontes
“civis” complementares, instâncias que havia que saber cuidadosamente conjugar
para ser exequível uma urgente viabilização política e jurídico-política regional e
local: ou seja, tratava-se de entidades que havia que “conquistar”, para desse modo
lograr a ansiada sedimentação-implantação de Estados que, passada uma geração
depois das euforias nacionalistas das independências (a geração dos Founding
Fathers), se encontravam muitas vezes em deficit de legitimidade. Para estas questões
ver, nomeadamente J. Harbeson, 1994, L. Rodriguez-Piñero Royo, 2000, op. cit..

70
desde os anos 80 a sucessivas tentativas de codificação das
relações do Estado com as autoridades tradicionais [a partir
dos anos 90, no caso angolano, apesar de alguns balbuceios
experimentalistas na década anterior84], às mais
diversificadas tentativas de circunscrição, por parte do
Estado, das (“novas”) funções para as autoridades e ao
ressurgimento, sobretudo nos Estados onde a repressão das
autoridades tradicionais foi mais violenta, das reivindicações
dessas mesmas autoridades locais enquanto figuras auto-
proclamadas de incontornáveis no jogo político local e
nacional.
No plano da produção científica, assistimos em
paralelo a um redobrar no número de análises empreendidas
sobre as autoridades tradicionais, para além naturalmente de
testemunharmos um “re-questionar” das análises anteriores
ao recolocar à reflexão o “lugar” de análise das autoridades
tradicionais”85.

84
Para reter o exemplo angolano: numa segunda fase, encetada a partir do início dos
anos 90, a situação viria, em Angola, a sofrer profundas alterações. Muitos foram os
territórios em que deixou de se fazer sentir a acção do Governo angolano, com o surto
de ocupações de extensas áreas urbanas e rurais pela UNITA. Em muitas e amplas
regiões a presença do Estado deixou de existir. Nalgumas, foi substituída por uma
tutela insurgente que, como vimos, era mais difusa, menos estruturada, e mais
baseada na força político-militar do que na administração político-burocrática;
noutras, pura e simplesmente desapareceu. Mas (no seguimento, aliás, do que se vinha
a verificar desde há já alguns anos) esse apagamento, ou esbatimento, da presença
estatal teve lugar mesmo em zonas de hegemonia incontestada do Estado angolano:
em muitos casos o êxodo rural, generalizado em diversas das regiões do país
(nomeadamente, como vimos, no planalto central, na zona de Malange, no nordeste, e
nas regiões limítrofes e litorais do noroeste), juntou-se nessas zonas ao crescendo de
dificuldades económicas induzidas pela dívida militar acumulada, pelas
irracionalidades de gestão e pela corrupção local, resultando num marcado
enfraquecimento dos laços de dependência de grandes porções e camadas da
população em relação às autoridades estatais, e a algum esvaziamento nas relações
“habituais” de clientelismo local face aos representantes do Estado central. Com
rapidez, “autoridades tradicionais” de todo o tipo começaram a firmar-se em Angola:
há hoje (finais de 2002) cerca de 25.000 dessas “autoridades” oficialmente (pasme-se)
reconhecidas no país.
85
Op. cit.: 30. É precisamente esse o contexto em que cabe o curtíssimo artigo, já
citado, de Vitalino Canas (1998), sobre o lugar orgânico das autoridades tradicionais
na organização política secundo-republicana de Moçambique.

71
3.5. AS ALTERAÇÕES NOS PONTOS DE APLICAÇÃO E
DOS FOCOS DE ANÁLISE

Como seria de esperar, com a progressão das coisas no


terreno, por assim dizer, a dimensão político-pragmática das
análises firmara enfim a sua tão prenunciada preponderância
e tornara-se notória. No âmbito do “renascimento” verificado
(como John Harbeson famosamente apelidou as mudanças
que em África foram coroadas pelas “transições
democráticas” dos inícios da última década do século XX),
emergiram diferenças de fundo quanto ao tipo de
conceptualização necessária para levar a bom porto esse
último conjunto de esforços de re-enquadramento teórico de
uma questão já antiga.
Mais do que redutíveis a meros diferendos teórico-
metodológicos, as discordâncias continham agora laivos
claramente político-administrativos. Tratava-se de alterações
que mantinham cuidadosamente em vista evidências como a
de que a reposição progressiva das “autoridades
tradicionais”, ou “locais”, nos velhos palcos analíticos, se por
um lado respondia a preocupações científicas (por regra
segundo explicações ligadas a ideias de um renascimento
empírico), por outro lado reflectia ansiedades políticas e
jurídico-administrativas.
Por outras palavras: enquanto algumas das diferenças
têm, por conseguinte, sido de natureza teórico-metodológica,
outras têm tido um cariz mais “político-administrativo”, ou
seja, pragmática e instrumental. Umas são descobertas
laboratoriais, outras encomendas de poderes centrais em vias
(ou com esperanças) de expansão.
Comecemos pelas primeiras, deixando para depois as
últimas. Para além de diferenças metodológicas, que se
saldam em distinções, por vezes finas, mas muitas vezes
irredutíveis, as análises contemporâneas distinguem-se no
essencial pelo ponto nevrálgico de aplicação que privilegiam
ao tentar esmiuçar o papel de intermediação efectiva

72
preenchido pelos “poderes locais tradicionais” em relação ao
poder dos Estados africanos.
Os diferendos manifestados pelos analistas
recapitulam, como aliás seria de esperar, as clivagens
patentes nos estudos levados a cabo sobre outros aspectos do
relacionamento entre “o local” e “o nacional” em África, e
que estão em evidência um pouco por todo o domínio
científico dos últimos anos, desde os trabalhos relativos ao
“desenvolvimento”86 aos focados na ligação entre Estados e
sociedades civis no continente87, passando por toda a
problemática das difíceis e intrincadas relações (manifestas
um pouco por toda a África) entre “tradição” e
“modernidade”88.
A novas tónicas e novos enfoques juntaram-se, assim,
problemas de fundo mais latos e abrangentes. Um ampliar da
resolução de imagens evidencia-o. Mais uma vez, muito iria
mudar num domínio de análise cuja instabilidade se tornava
notória e co-extensiva com a progressão das situações

86
Cf. J. Ferguson, 1996, no contexto de um magnífico estudo deleuziano de caso
sobre um “projecto de desenvolvimento” sueco empreendido no Lesotho dos anos 80
e 90. Este esbatimento da contraposição analítica clássica entre tradição e
modernidade tinha já sido encetado por Sally Falk-Moore, no seu estudo sobre a
“invenção” oitocentista (e novecentista) de um dos “Direito costumeiros”
tanzanianos, o dos Chagga.
87
J. Harbeson, D. Rothchild e N. Chazan, 1994, J. Comaroff e J. Comaroff, 1999.
88
J. Comaroff e J Comaroff, 1993, H. Moore e T. Sanders, op. cit., 2001, discutiram o
marcadíssimo recrudescimento no uso da feitiçaria nas grandes cidades da África
contemporânea, vendo-o como um meio privilegiado de decifrar e comunicar tensões
sociais modernas segundo formatos “tradicionais”. Exemplos, porventura mais
“excêntricos” (mas talvez por isso mais interessantes), são os dos notáveis trabalhos
monográficos de Heike Behrend (1999) e de Stephen Ellis (1999), respectivamente
sobre o conflito que grassou no Norte do Uganda nos anos 80 e 90 (em particular as
curiosas Holy Spirit Mobile Forces mobilizadas pela misteriosa Alice Lukwena) e
sobre a recente guerra civil que, em finais dos anos 90, devassou a Libéria (em que,
nomeadamente, muitos dos combatentes se atacavam aldeias e centros urbanos ora em
estado de total nudez, ora como travestis, “equipados” com roupagens femininas).
Como é óbvio perante estes e outros exemplos, torna-se difícil equacionar “tradição”
e “autoridades tradicionais”, ou contrastar “modernidade” e “tradição” de uma
maneira estanque e enxuta.

73
conjunturais vividas nos vários e cada vez mais complexos
palcos sócio-políticos africanos.
O resultado é visível. Hoje em dia já não são nem os
“poderes tradicionais” nem os Estados quem monopoliza a
atenção dos estudiosos; mas sim as relações entre uns e
outros.
Uma rápida visão de conjunto das variações existentes
demonstra-o com nitidez. Para alguns autores, o lugar de
entrada preferível para os trabalhos de pesquisa a empreender
no contexto transformado do velho projecto de investigações
será essa localização intercalar: aquilo que importa neles
sobretudo salientar é precisamente a posição de charneira
assumida pelas “autoridades tradicionais” no
89
relacionamento que entretêm com o Estado.
Para outros, o ponto de aplicação escolhido recai antes
nas próprias “autoridades tradicionais”, abordadas enquanto
“agentes políticos” inseridos, a nível local, em teias densas, e
cada vez mais amplas e alargadas, de competição por um
ascendente, entidades cuja estrutura, finalidades e modos de
legitimação se entre-definem de acordo com coordenadas
“político-culturais” variáveis90.

3.6. OS NOVOS ENQUADRAMENTOS SOCIAIS


89
Cf., eg, E. A. van Nieuwall, 1996, T. von Trotha, 1996, D. Ray, 1998, são outros
tantos exemplos desta nova propensão. Para lá das diferenças, tanto uns como outros
recorrem com profusão às “teorias das redes sociais” (social network theories),
propostas nos anos 60 e 70 por asiatistas como E. Bailey ou F. Barth, bem como aos
modelos coevos de relacionamentos entre “patronos e clientes” (patron-client
relationships). Fazem-no, naturalmente segundo perspectivas teórico-metodológicas
alternativas, com a finalidade de melhor denotar e cartografar os tipos empíricos de
ligações efectivamente estabelecidas entre elites estatais e autoridades tradicionais,
através do chamado “brokerage político” destas últimas. Todos eles, no entanto, com
esta ou aquela preferência tópica, concordam que o quadro empírico-sociológico mais
adequado para essas análises do papel de intermediação das autoridades tradicionais é
o do relacionamento complexo entre as sociedades africanas e os Estados nelas
estabelecidos. E isso, junto com a rápida evolução política das coisas no terreno
africano, levou a uma rápida recontextualização, por alargamento, que veio mais uma
vez reformular algumas das coordenadas metodológicas dos estudos empreendidos.
90
P. Nugent, 1996, T. Bierschenk, 1998.

74
Vale a pena insistir um pouco neste ponto de que hoje
em dia já não são nem os “poderes tradicionais” nem os
Estados quem monopoliza a atenção dos estudiosos, mas sim
as relações entre uns e outros91.
Comecemos por um enquadramento empírico das
alterações evidenciadas nos quadros analíticos dominantes. A
velocidade e a intensidade das transformações a que se têm
visto sujeitos os Estados africanos pós-coloniais, bem como o
carácter funcional que tais mudanças têm tido, são
porventura as causas motoras dessa efectiva ampliação de
âmbitos: nas novas conjunturas emergentes, para além dos
“agentes organizados” que no fundo são as “autoridades
tradicionais”, novos protagonistas, novos “actores políticos
locais” vieram ocupar lugares nos palcos do relacionamento
entre sociedade e Estado. A preocupação renascida com as
“autoridades tradicionais” (uma denominação que,
impulsionada pelos novos ventos “tradicionalistas”,
entretanto re-emergira em força) decaiu para o estatuto de
uma simples manifestação (decerto ainda a mais importante,
mas já não a única) da teia complexa de ligações que, em
África, se vai constituindo entre o local e o nacional.
Este nível mais alto de resolução das análises articula-
se de maneira interessante com a periodização que atrás
esbocei. Novamente tudo se processou por etapas e mais uma
vez tudo se passou em resposta a pressões conjunturais.
Durante uma primeira fase, deu-se uma tomada
crescente de consciência de que actores diversos de vários
tipos, nuns casos com motivações económicas, noutros
políticas, algumas vezes com agendas médico-sanitárias,
noutras ainda místico-religiosas, alguns deles jovens ou
mulheres, começavam a emergir (ou começavam a ser

91
Uma reperspectivação “relacional”, por assim dizer, que ilumina com uma nova luz
as questões. Torna-se mais claro, por exemplo, que estas relações pluri-constitutivas
não devem ser encaradas como soluções para eventuais problemas suscitados pela
articulação entre uns e outras, dado que se trata antes de uma nova forma de
enquadramento desses memsmos problemas. Não são soluções. Apenas delineiam o
objecto dos problemas em análise.

75
“reconhecidos”, tanto nos novos quadros socioculturais com
nos novos enfoques analíticos) como “agentes” locais de seu
próprio mérito, ainda que sendo entidades e personagens
manifestamente diferentes, independentes, e até muitas vezes
antagónicas, em relação às chamadas “autoridades
tradicionais”.
Os palcos sociais repopulavam-se com o aparecimento
desses novos actores. Tratava-se, na maioria dos casos, de
agentes sociais que, embora não reinvindicando nenhuma
espécie de poder (melhor, autoridade) formal sobre as
populações de que provinham, se disponibilizavam (não
raramente, impondo-se) como interlocutores dos Estados e
intermediários entre as populações e estes últimos92. Numa
fase subsequente, muitas vezes conseguiam marginalmente
“adquirir”, conquistando-a, alguma dessa autoridade (e
continuam a consegui-lo, já que estes processos dinâmicos
ainda estão em curso) indo repescar ideias e noções aos
contextos político-sociais em que iam surgindo.
O que não deixou de ter consequências no que toca aos
quadros conceptuais utilizados para dar conta destes novos
“notáveis” emergentes. Do ponto de vista das análises
científicas levadas a cabo (muitas vezes sintonizadas com
investigações focadas em domínios afins) seriam os próprios

92
Deixo aqui em suspenso a questão dos chamados “notáveis” locais, essas figuras
fascinantes que tanta importância tiveram no mundo senegembiano (cf. E. Costa Dias,
op. cit.: 40 ss), por via de regra dignitários do Islão (marabus, xeiques, etc.), que
nesse espaço sócio-político reganharam centralidade e importância na era pós-colonial
através, nomeadamente, das numerosas confrarias muçulmanas cujo ascendente está
em alta em grande parte dessa região da África (por exemplo, ainda que pouco mais
que a um nível “residual”, na região oriental da Guiné-Bissau). Ocupando “espaços
públicos de soberania”, como têm sido apelidados, ligados ao Estado por via da
administração pública, não nos parece evidente a existência, em Angola, deste
“espaço da notabilidade”, como lhe chama E. Costa Dias (idem: 40); a excepção,
como se tornará claro, é formada pelos membros locais do partido no poder e pelos
“representantes locais” dos interesses das elites próximas deste (dois grupos não
necessariamente dissociáveis e que aqui preferimos tratar, em separado, como
entidades sui generis).

76
conceitos de “tradicional”93 e de “autoridade”94 que iriam
ver-se cada vez mais postos em causa.
As linhas de argumentação por norma esgrimidas para
justificar essas hesitações eram tão convincentes quão
previsíveis. Foi por exemplo frisado que conceitos como o de
“tradições” escondiam muitas vezes dinâmicas pré-
modernas; que as “tradições” invocadas nem sempre tinham
grande profundidade temporal, sendo muitas vezes antes
“tradições inventadas”, também se insistindo que a
perspectivação “clássica” não tomava em linha de conta a
liberdade criativa efectiva (uma plasticidade que o conceito
de “autoridade tradicional” escondia) demonstrada por
muitos destes “intermediários”, mesmo os mais “formais”,
consubstanciada nas possibilidades de inovação (das margens
de manobra realmente existentes, aos espaços conjunturais de
invenção) de que esses “agentes” locais, na maioria dos casos
investigados, efectivamente usufruem.
Em muitos casos95, tanto o âmbito semântico daquilo
que tanto analistas como actores sociais apelidam de
“tradição”, como a própria invocação de tradicionalidade,
mostraram ser coisas de tal maneira vagas, imprecisas e
conjunturalmente manipuláveis (sendo-o, de resto e por via
de regra, com a finalidade de capitalizar em legitimação), que
parecia preferível tratá-las enquanto actos políticos em lugar
de as ver como conceptualizações dotadas de uma eventual
utilidade analítica directa.

93
S. Falk-Moore, 1986, numa monografia que já citei sobre grupos vizinhos do
Kilimanjaro, na Tanzânia, T. Ranger e E. Hobsbawm, 1989, numa célebre colectânea
comparativa sobre as “invenções de tradições” enquanto estratégias bastante comuns
de legitimação política contemporãnea.
94
Eg, D. Lan, 1985, numa extraordinária monografia sobre a guerrilha da ZANU no
Zimbabwe dos anos 80, em que a articulação política dos guerrilheiros com
agrupamentos dos Korekore Shona terá sido levada a cabo por intermédio dos
médiums e “fazedores de chuva” locais especializados no “contacto directo” com os
antepassados em séances públicas de possessão espiritual.
95
Por exemplo, os estudados por D. Lan no Zimbabwe, op. cit., 1985, e por E. A. van
Nieuwaal, op. cit., 1996, no Togo.

77
Tradições e alegações de tradicionalidade passaram
assim a ser perspectivadas como outros tantos dados a
carecer de investigação96, e deixaram de ser encaradas
enquanto chaves que nos permitissem desenvencilhar
coordenadas e dinâmicas em situações políticas de enorme
complexidade.

3.7. OS NOVOS VENTOS METODOLÓGICOS

A contrapartida para esta problematização


contemporânea das conceptualizações “clássicas” relativas a
“autoridades tradicionais” tem sido um novo alargamento na
circunscrição metodológica do espaço jurídico e político do
relacionamento entre o local e o estatal em África. Uma
reformulação desta vez focada na natureza e “textura” da
multiplicidade de interacções efectivas que têm lugar.
Efectivamente, os canais em que têm tido lugar essas
interacções têm vindo a diversificar-se de maneira notória.
As alterações, tanto económicas como políticas a que as
“transições democráticas do início dos anos 90 deram corpo,
redundaram, a esse nível, no que muitas vezes só pode ser
considerado como uma verdadeira explosão. A economia de
mercado e a competição político-partidária, por esbatidas e
mitigadas que estas em África muitas vezes sejam,
propiciaram-na e deram-lhe alento. A dinâmica imprevisível
de situações plurais tão complexas como as vividas
aceleraram estes processos.
O resultado está à vista. Novas personagens têm, com
efeito, emergido e têm sido reconhecidas a níveis locais,
entidades que vão de agentes económicos de intermediação
96
Uma sumarização excelente das reperspectivações a que isso tem dado azo no que
diz respeito à alçada semântica de conceitos como o de “tradição”, tal como utilizada
na expressão “autoridades tradicionais”, é a de M. O. Hinz (1995: 6-7), na sua
introdução a uma compilação de artigos sobre as autoridades tradicionais e a
democracia na Namíbia e na África do Sul contemporâneas. Hinz pôs a tónica na
flexibilidade e na inclusividade das noções de “tradicionalidade” localmente
utilizadas, suscitando dúvidas quanto à aplicação acrítica a estes casos de conceitos
menos elásticos de “tradicional” como os desenvolvidos por Max Weber.

78
“informal” destes com patamares regionais e nacionais mais
abrangentes, a agrupamentos e movimentações, de natureza
“místico-religiosas” (muitas vezes de tom messiânico),
dotadas de lideranças muitas vezes fortemente carismáticas, a
“senhores” (big men) “políticos” que ora “representam” a
níveis locais o Estado central, ora se arvoram em “senhores
da guerra” que pretendem operar como elos de ligação entre
este e aqueles.
Conjunturalmente, como frisei, reformular quadros
analíticos para dar conta destas novas realidades tornou-se
imprescindível. As implicações disso têm sido profundas.
Nos novos enquadramentos teórico-metodológicos, nem os
“agentes locais”, nem o Estado, são em boa verdade
encaráveis como entidades unitárias. Ambos são antes
olhados como peças, ou actores, num jogo político amplo,
visto como muitíssimo mais dinâmico do que há apenas
alguns anos; um jogo que envolve outras personagens, e que
pode porventura ser caracterizado pela sua enorme
intrincação e pela sua marcadíssima multidimensionalidade.
Em conformidade com isso, eventuais “autoridades
tradicionais” tendem hoje em dia a ser vistas como um de
entre vários agentes locais, num “campo” (ou em “arenas”97)
mais ou menos ordenado em termos de posicionamentos,
competências funcionais, apoios ou fundamentos invocados,
e a consequente legitimação nesses moldes alegada. Um forte
acento tónico tende, nos esforços analíticos mais recentes, a
ser colocado na interactividade dos dois grandes domínios
97
Para uma discussão fascinante sobre o conceito de “arena” aplicado aos domínios
político e jurídico dos relacionamentos contemporâneos entre Estados e grupos locais,
é interessante a leitura do estudo monográfico de T. Svensson (1997) sobre as
ligações muito contestadas entre os Sami e a Coroa Sueca. Para um enquadramento
do problema de escolha entre a noção de “arena” e a de “campo” para análises desses
relacionamentos na África sengambiana de hoje, ver o apanhado genérico feito por E.
Costa Dias, op. cit.:36), de quem retiramos a seguinte citação: “o espaço da
‘notabilidade’ ganhou progressivamente novas dimensões [...]: para além de se ter
tornado numa espécie de lobby que pressiona permanentemente a administração,
constituiu-se numa espécie de palco informal de discussão política interna que, em
conjunturas mais favoráveis, tenta combinar tanto a escala local com a regional e
nacional, como os interesses das “autoridades tradicionais” com as imposições da
administração”.

79
circunscritos, o “local” e o “central”: têm assim sido objecto
de cada vez maior atenção98 tanto a intrusão dos agentes
locais no interior do “Estado” (por meio da sua articulação
activa com novas e velhas redes clientelares, no âmbito de
uma “participação” político-partidária ou, ainda mais
informalmente, em termos dos lobbies económicos, ou
religiosos, em que tantas vezes se integram); quanto tem sido
atribuída uma maior importância à penetração ideológica e
político-organizacional do Estado central a nível do local e
da representações que aí são produzidas99.
A consequência: a imagem “clássica”, simplificada e
reducionista, de agentes organizados envolvidos em
relacionamentos formalizados tem vindo a perder terreno de
maneira irreversível. Um pouco no que diz respeito a toda a
África, não é já automática a presunção de que a legitimação
pela “tradição” continue a ser motivo desta panóplia de
novos agenciamentos sociais, nem do ponto de vista dos
grupos localmente estabelecidos, nem do dos Estados
centrais; os quais, tal como aqueles, encontram hoje em dia
uma variedade de razões para interacções que cada vez são
mais intensas e substanciais.
Como mais adiante irei tentar pôr em realce, este é um
dos pontos cujas implicações faço sempre questão de discutir
no programa da disciplina de Direitos Africanos. Para já, no
entanto, voltemo-nos para a reponderação concomitante a
que estes processos de fragmentação da “sociedade” e do
“Estado” têm vindo a dar azo no contexto mais lato dos
estudos levados a cabo sobre as dinâmicas políticas em
África.

98
Ver, por exemplo, a excelente e longa introdução de J. Comaroff e J. Comaroff
(1999), op. cit..
99
Cf. A. Marques Guedes et al. (2001) e A. Marques Guedes et al. (2003). Refiro-me
aqui, naturalmente e muito em particular, às imagens e práticas locais que, a nível
jurídico e político, designadamente, mimetizam as formas estaduais, indo assim
buscar nelas alguma da legitimidade por que anseiam.

80
4. OS ESTADOS, AS SOCIEDADES, O SISTEMA
INTERNACIONAL E A ÁFRICA: PRIORIDADES,
RELAÇÕES CAUSAIS, TRANSFORMAÇÕES E
CONSTRUÇÕES RECÍPROCAS

Começo por uma simples constatação. Saímos há não


muito tempo de um longo período de reificação teórica ou,
talvez melhor, de naturalização, do Estado. Durante vários
anos viu-se estabelecida de maneira consensual, entre uma
muito significativa parcela dos especialistas que sobre o tema
se debruçaram, a convicção de acordo com a qual os Estados
seriam o “formato único” de integração política na época
moderna; segundo os defensores desta perspectivação eles
formariam, por conseguinte, os únicos elementos
constitutivos de um sistema internacional por isso mesmo
apelidado de “sistema internacional de Estados”100. De par
com esta convicção, pareceu facto assente a um grande
número daqueles que sobre o tema se debruçaram a ideia de
que a eficácia dos processos políticos contemporâneos
dependeria, em larga medida, da acção política estadual.
Essa naturalização, ainda que sujeita a avanços e
recuos, foi endémica: de uma ou de outra maneira, em todas
as Ciências Sociais houve quem participasse numa convicção
epistemológica que a muitos parecia inabalável. A noção da
centralidade do Estado ganhou assim foros de cidadania no
âmbito daquilo que talvez se possa chamar a “ideologia
espontânea” quanto a questões políticas de fundo. Embora o
porquê desse contágio exceda a economia do presente
trabalho introdutório, importa sublinhar que durante a
primeira trintena de anos da segunda do século XX, enquanto
formas institucionais e nexos de agregação de dispositivos
normativos (e, em particular, de dispositivos e nexos
100
Não valerá decerto a pena, neste como nos casos seguintes, ir mais longe do que
uma breve indicação dos mais importantes proponentes das perspectivações teóricas a
que faço alusão nesta subsecção. A noção de sistema internacional de Estados faz
parte da dieta comum do estudo das Relações Internacionais, e é utilizada pela
larguíssima maioria dos Autores anglo-saxónicos. Como irei sublinhar a par e passo
ao longo do presente texto, a sua utilidade analítica atinge o seu apogeu na âmbito das
teorizações realistas, neo-realistas e afins.

81
jurídicos) para a organização da governação, os Estados
apresentaram-se a investigadores, políticos e cidadãos
comuns como entidades unas, perenes, criaturas de algum
modo imutáveis, seres cuja desejabilidade era por todas essas
razões dificilmente discutível.
Afirmar que ocorreu um processo de naturalização
quando à caracterização e à centralidade dos Estado não
equivale todavia a asseverar que se verificou uma sua
hegemonia exclusiva. Seria um erro presumir uma qualquer
verdadeira universalidade nesse conglomerado de convicções,
por muito largamente partilhadas que elas tenham sido e não
obstante a propensão que se tornou patente para as
conceptualizar como um conjunto coeso e unitário.
Efectivamente, perspectivas centradas no Estado não
vigoraram sòzinhas. Repartiram o território com outras
hegemonias, de algum modo como que em contraponto. Em
paralelo, muitos outros foram os investigadores que se
ativeram a modelizações, curiosamente mais “clássicas” no
que toca à sua gestação e emergência, que de algum modo
invertiam a ordem dos factores. De par com essa reificação,
manifestaram-se assim propostas analíticas simétricas e
inversas que, em lugar de insistir na subordinação (que
conceptualmente se saldava numa subsunção) das sociedades
aos respectivos Estados, preferiam pelo contrário centrar a
atenção nas sociedades, entrevendo antes os Estados como
entidades institucionais e organizacionais por elas em larga
medida constrangidos101.
101
Stein. S. Eriksen (2000, op. cit.: 14-26), no que redunda numa recensão de
conjunto destas posturas teóricas, apelidou o primero grupo de teorizações de
“centradas no Estado” e o segundo de “centradas na sociedade”. Apesar de baseada
num contraste excessivamente simplificado, a tipificação tem vantagens em termos de
arrumação, pelo que, sem necessariamente concordar com Eriksen, a utilizo neste
estudo. Tal como alguns outros Autores coetâneos, Eriksen delineia ainda um terceiro
grupo de posturas teóricas, em que aliás se inclui: apelida-o de “relacional”. Teorias
“centradas na sociedade” (que aqui traduzo por “centradas na sociedade”) são aquelas
que explicam o carácter do Estado por referência à sociedade. Incluem as teorias
“clássicas” da modernização tal como as teorizações mais em voga nos anos 70 e 80
relativas à “sociedade civil” e ao “capital social”. Para as teorias “centradas no
Estado” (a que aqui chamo “centradas no Estado”), o tipo de explicações gerado por
esses modelos é parcial e insuficiente; em alternativa, este grupo de teorizações tenta
explcar o Estado por referência às propriedades do próprio Estado. O Estado,

82
Como irei tentar pôr em realce, estão aí incluídas as
perspectivações liberais clássicas, aquelas genericamente
apelidáveis de marxistas e aquelas outras, de carácter mais
funcionalista, que tão influentes foram, nessa época
(sobretudo durante os anos 60 e 70), nalguns círculos
intelectuais anglo-saxónicos. Para essas teorizações
alternativas, que não lograram ocupar mais do que um nicho
secundário durante a longa fase de relativa dominância das
grelhas analíticas estato-cêntricas, mas que nalguns círculos
académicos, intelectuais e políticos se mantiveram como
dominantes, o Estado só pode ser explicado (de uma ou de
outra maneira, variável consoante as características distintivas
do “sociologismo” abraçado pelos seus proponentes) por
referência à sociedade.
As coisas não se ficaram todavia por aqui. Este sócio-
centrismo não foi o único formato das alternativas teóricas a
repartir um território conceitual que o tempo, as mudanças no
Mundo contemporâneo e os diálogos e as controvérsias dos
estudiosos se encarregaram se ir redimensionando, um espaço
nocional cuja topografia e limites em qualquer caso nunca
foram muito claros. Tal como a hegemonia estato-cêntrica, as
“doutrinas” sócio-cêntricas foram-se progressivamente
esbatendo. O alcance deste autêntico redimensionamento foi
estrutural. Talvez não seja excessivo aventar que o paradigma
dualista (chame-se-lhe isso) que tantos anos durara entrou em
crise.
Em anos recentes, vários estudiosos, com um maior
ecumenismo, insistiram na evidência de uma interacção
recíproca entre Estado e sociedade, asseverando que nenhuma
destas entidades seria verdadeiramente inteligível sem alusão

argumentam os defensores do estato-centrismo, é uma instituição sui generis, dotada


de uma marcada e sensível autonomia, e por isso não pode ser reduzido às
características da sociedade. Tal como iremos ver, várias teorizações mais recentes
têm insistido na relação recíproca, e de mútua constituição, entre Estados e
sociedades, retendo embora alguns níveis de autonomia tanto para os primeiros como
para as segundas: um exemplo, para além da teorização que Eriksen apelida de
“relacional”, é a de Joel S. Migdal, que este último intitula de “state-in-society” (e a
que me refiro como perspectivações do tipo “Estado na sociedade”).

83
à outra, já que elas se constituem mutuamente. O que
começou com uma solução sincrética para uma velha
oposição talvez esteja porém a tornar-se porém numa
inovação monta. Uma espécie de novo patamar parece poder
estar em vias de albergar uma novo paradigma.
Talvez valha a pena entrever a mudança de um outro
ângulo, de modo a aclarar os seus contornos. É certo que
durante um longo período uma preponderância indubitável
coube a teorizações que atribuíam ora ao Estado ora à
sociedade um lugar central e dominante no desenrolar dos
processos políticos contemporâneos. Pouco a pouco têm sido
trazidas à ribalta perspectivas mais sintonizadas com a ideia
de fundo de que é por norma analiticamente preferível (no
duplo sentido de que é empiricamente mais bem
fundamentado e de que assim se conseguem gizar
dispositivos conceptuais com uma melhor capacidade
explanatória) pôr a tónica no relacionamento recíproco entre
sociedade e Estado, um relacionamento que, tal como iremos
ver, em larga escala é constitutivo tanto de ambos estes
termos do binómio quanto da separação entre eles vai a par e
passo sendo reformulada102.
Nas páginas que se seguem deste trabalho introdutório,
começo por enunciar em pormenor essa progressão estrutural.
Virar-me-ei de seguida, ainda que tão-só de forma sucinta e
indicativa, para as implicações de tudo isto no que diz

102
Podemos ir mais longe. Como disse, não foram apenas a universalidade e a
centralidade do Estado aquilo que foi naturalizado, ou reificado, nem tal aconteceu
somente nos níveis da aceitabilidade e da desejabilidade das formas e processos
políticos contemporâneos. A convicção estendeu-se ao domínio dos processos
políticos e da sua progressão, com a consequência de que os palcos analíticos se viram
ocupados por discussões teórico-metodológicas muitas vezes intrincadas, nas quais se
contrapunham opiniões mais ou menos bem fundamentadas e de plausibilidade
variável quanto aos papéis respectivos de Estados e sociedades em coisas como as
dinâmicas políticas actuais e passadas, as políticas legislativas prosseguidas, os
esforços quantas vezes laboriosos de desenvolvimento, ou os processos, umas vezes
difusos outras nítidos e bem delineados, de transição política. Tal ocorreu no que
respeita às investigações sobre Estados ocidentais, latino-americanos, asiáticos, ou
africanos, e tanto no que se prende com o papel e o peso relativo dos Estados e de
outras entidades, no plano normativo como no económico, no ideológico-nacionalista,
ou no político-militar, para apenas apontar alguns dos muitos exemplos possíveis.

84
respeito ao estudo dos Estados e dos Direitos africanos
contemporâneos. O foco será firmemente colocado nas
análises que têm sido empreendidas quanto ao peso e à
extensão da acção política dos Estados. Pari passu, irei
fazendo alusão ao lugar e papéis do Direito estadual, à sua
produção, e às formas cambiantes do seu relacionamento-
separação vis-à vis as normatividades consuetudinárias com
que em África este coexiste103.
Um breve alerta. Como iremos ter a oportunidade de
verificar, as investigações levadas a cabo sobre os complexos
relacionamentos entre os Estados e as sociedades africanas
pós-coloniais não progrediram segundo padrões muito
diferentes daquelas empreendidas no que respeita aos Estados
ocidentais ou a quaisquer outros. Algumas distinções houve
no entanto, que importa saber pôr em evidência pelo interesse
de que se revestem. As inovações e tranformações a que os
estudos dedicados às realidades políticas emergentes no
Continente africano têm sido sujeitos parecem ir
precisamente num sentido paralelo aquele que dão corpo ao
novo patamar de teorizações genéricas que se têm vindo a
afirmar no âmbito da análise dos processos políticos em
geral. O como e o porquê dessas curiosas convergências são
questões que irei também aflorar, dada a importância daquilo
que nos revelam quanto às especificidades das experiências
africanas pós-coloniais.

4.1. AS TEORIZAÇÕES “CENTRADAS NO ESTADO”

Embora a assunção de uma relativa (e repartida)


hegemonia epistemológica das modelizações estato-cêntricas
a que aludi tenha sido bastante nítida, o grupo de teorizações
“centradas no Estado” para explicar as dinâmicas políticas (e,
ainda que de forma marginal, as jurídicas) actuais não se tem
103
Retomo desse modo aqui a questão, abordada numa subsecção anterior dedicada
ao lugar estrutural do Direito em África e em várias considerações (que fui
formulando e que pormenorizei na subsecção 2 da Parte I) relativas à construção de
um quadro analítico unitário que possa dar boa conta dessa tão complexa ligação.

85
apresentado com uma face, ou numa versão, monolítica. Bem
pelo contrário, investigadores diferentes têm proposto
formatos diversificados para o ascendente dos Estados que
todos concordam melhor explicaria as dinâmicas políticas
modernas. Não será abusivo agregar as formulações teóricas
estato-cêntricas em duas grandes “famílias”, por assim dizer.
Em primeiro lugar, avultam desde há bastante tempo as
construções realistas e neo-realistas104 comuns no estudo das
Relações Internacionais, segundo as quais os Estados seriam
entidades unitárias, actores racionais que se dedicariam à
prossucussão dos seus próprios interesses no contexto
daquilo que é apelidado um sistema internacional de Estados.
De acordo com os defensores deste tipo de perspectiva, já que
a finalidade última das políticas estaduais é a de proteger e
defender os interesses e assegurar a sobrevivência do Estado
num meio internacional pejado de outras entidades que
prosseguem objectivos semelhantes, as políticas estatais
(incluindo as legislativas neste caso no âmbito
jusinternacionalista) tendem no essencial a ser interpretadas
como tendo em vista a maximização dos interesses próprios
de cada Estado, “interesses” esses definidos, grosso modo,
em termos geo-estratégicos.
Para alguns proponentes deste género de postura
analítica, tais interesses são definidos objectiva e
racionalmente105. Outros discordam e consideram, ao invés,
que eles são antes subjectivos e são identificáveis com as
preferências dos líderes que controlam as rédeas do poder106.
104
Hans Morgenthau, Henry Kissinger, Kenneth Walz e John Mearsheimer estão
seguramente entre os principais realistas e neo-realistas no estudo das Relações
Internacionais. Esta perspectiva é evidenciada virtualmente em todas as numerosas
obras publicadas por estes Autores.
105
Kenneth Walz (1979), com a sua teoria das “threes images”, é porventura o mais
famoso expoente desta postura analítica, que tanta escola tem feito sobretudo nos
Estados Unidos. Como seria de esperar, as interpretações quanto ao papel do Direito
(e designadamente o do Direito Internacional) tendem a seguir de perto estas
perspectivações teóricas mais gerais.
106
Cabem decerto a um dos primeiros trabalhos analíticos de Stephen Krasner (1983)
as formulações mais minuciosas desta perspectiva de análise.

86
Para todos eles, no entanto, essas preferências, esses
interesses, a racionalidade, os processos de maximização, e a
unidade do Estado tendem a apresentar-se como
pressupostos, como dados prévios cujas características e
energência ficam inexplicadas.
A segunda “família” de teorizações estato-cêntricas faz
frente a precisamente um desses problemas que acabei de
inventariar, o da presunção não fundamentada da unidade do
Estado, e insiste em apontar as suas baterias na direcção do
Estado enquanto organização, virando a atenção para as suas
interacções internas e externas e para a consequente
complexidade dos processos de tomada de decisões. Análises
dete tipo proliferam no que toca tanto ao estudo de políticas
nacionais quanto, mais uma vez, à investigação sobre os
nexos de relações internacionais em que os Estados se
embrenham107. Nelas, as políticas estaduais emergem como
resultado dos agregados de preferências, muitas vezes
antagónicas entre si, dos diversos actores e instituições que
constituem os aparelhos de Estado. Em lugar de ser encarado
como um actor verdadeiramente unitário, tanto o Estado
como a sua produção legislativa, para os defensores deste tipo
de formulações, são por via de regra retratado como uma
arena em que outros actores (Ministérios, departamentos, e
indivíduos, por exemplo) se degladiam.
Por reveladoras que possam parecer estas modelizações
alternativas ou complementares, a verdade é que em qualquer
das suas múltiplas versões, uma perspectivação
“hegemónica” puramente estato-cêntrica não podia durar. O
rápido evoluir das conjunturas nacionais e internacionais, e a
progressão concomitante das formulações analíticas utilizadas
como quadro para a interpretação delas encarregar-se-iam de
o assegurar.
107
No que toca ao estudo dos relacionamentos internacionais dos Estados, esta
posição tem sido nomeadamente defendida por Autores como Graham Allison (1968),
num trabalho famoso relativo à chamada “crise dos mísseis de Cuba” e, de maneira
mais compósita, por Robert Keohane e Joseph Nye (1983), nos termos da escola dita
“institucionalista”. .James March e Johan Olsen (1979) são seguramente os mais
influentes defensores dete tipo de modelização às políticas internas dos Estados
contemporâneos.

87
A erosão teve duas frentes por assim dizer: a pouco e
pouco, com o andar do tempo e das coisas, tanto as anomalias
intrínsecas a esse género de teorizações “centradas no
Estado” quanto as suas desadequações empíricas se foram
tornando cada vez mais evidentes. Tal aconteceu à medida
que novos Estados, com características muitas vezes sui
generis, emergiam com as descolonizações dos anos 50, 60 e
70. Desadequações e anomalias firmaram-se a par e passo
com uma bipolarização que se instalava e depois se apagava,
primeiro subalternizando a larga maioria dos Estados em
relação às duas grandes superpotências e depois fazendo vir à
tona as suas deficiências estruturais relativamente ao modelo
ideal quando estes passaram de “Estados-clientes” a Estados-
membros, num sentido pleno, do sistema internacional.
Finalmente, o rol incongruências tornou-se
dolorosamente óbvio com a generalização do fenómeno mais
recente que resultou da evidência de que algumas dessas
novas entidades recém-“autonomizadas” (muitas delas em
África) eram, afinal, failed states. Acossado por todos os
lados, o velho paradigma hegemónico108 começou a soçobrar:
tomar a forma Estado como um dado adquirido tornava-se,
nas conjunturas emergentes, empiricamente mais e mais
incongruente. Mais e mais dúvidas sistemáticas se
começaram por isso a manifestar de forma incontornável109.
108
Para uma excelente e assaz pormenorizada discussão da ascensão e queda deste
género de perspectivações, é útil a leitura do trabalho já citado de Joel S. Migdal
(2002, op. cit.: 41-58, 97-135. Trata-se de uma monografia em que Migdal leva a
cabo um balanço de uma vintena de anos na sua elaboração da “state in society
perspective”.
109
Nalguns casos, essa acumulação de dúvidas foi mesmo pormenorizadamente
teorizada em termos que redundavam na construção de uma ponte que transmutava o
estato-centrismo criticado num sócio-centrismo alternativo. Um só caso bastará, dos
vários possíveis. Tomando África como exemplo, Robert Jackson e Carl Rosberg
(1983) puseram-nas designadamente bem em relevo ao asseverar que a convicção, tão
longamente partilhada, na universalidade e estabilidade do formato “Estado” sofreria
em muitíssimos casos danos irreparáveis se tomássemos em linha de conta questões
outras que não o estatuto jurídico de que gozam, designadamente a sua ocupação
efectiva de um território ou a tutela exercida sobre uma determinada população, se
olhássemos para os factos e não apenas para as palavras. Muitas das entidades que
apelidamos “Estados”, concluiram com mordacidade estes dois analistas, apenas o são
em termos das ficções jusinternacionalistas em vigor e em virtude do reconhecimento

88
Independentemente da qualidade das formulações teóricas
produzidas em sua sustituição, concordemos que não são
difíceis de trazer à tona as limitações mais teórico-
epistemológicas das perspectivações estato-cêntricas até há
bem pouco tempo dominantes.
Comecemos pelo plano mais geral. As teorizações
“centradas no Estado”, como pudemos notar, não nos
oferecem nenhuma explicação para as fontes do poder do
Estado e do Direito que dele brota: a capacidade que os
Estados manifestam em agir é tão-só pressuposta, sem que
quaisquer explicações sejam disponibilizadas em relação aos
mecanismos da sua emergência e estabilização. Os estatistas
tendem ainda a presumir, como vimos, a existência, senão de
uma separação radical, pelo menos de uma separabilidade
integral, entre o Estado e o seu contexto externo, constituído
por sociedades e por outros Estados.
Há que não subestimar as objecções implícitas nestas
duas limitações. Enquanto a primeira destas dificuldades põe
em realce as limitações históricas e explanatórias das
modelizações estato-cêntricas, a segunda peca ao vislumbrar
os Estados (e os seus Direitos) enquanto variáveis
excessivamente independentes relativamente às conjunturas
em que se movem, remetendo assim, artificial e
arbitrariamente, para análise posteriores e separadas, tanto a
interdependência manifesta quanto as demarcações funcionais
sempre tão patentes entre um qualquer Estado e os meios
internos e externos em que opera.

que recebem, nesses mesmos termos, pela comunidade internacional. As


consequências epistémicas deste tipo de dúvidas, que cada vez melhor se foram
fundamentando, não devem ser subestimadas. As suas implicações têm resultados que
não podem ser ignorados. Um deles verifica-se a nível das teorizações relativas ao
posicionamento internacional dos Estados. Caso levemos a sério objecções como essa,
com efeito (e parece difícil evitá-lo), os Estados não deteriam afinal um qualquer
monopólio no sistema internacional: para além deles (e das muitas entidades não-
estaduais que cada vez mais populam os palcos internacionais) há numerosos “quasi-
Estados”, entidades dotadas de uma “soberania negativa” que lhes é atribuída por
outrém. Por outras palavras, e como Christopher Clapham (1996) viria a concluir,
mais uma vez tomando os Estados sub-saarianos pós-coloniais como exemplo,
vigoram de facto na ordem internacional diferentes “graus de estaticidade”.

89
Numa outra subsecção do presente estudo irei
debruçar-me sobre este tipo de posturas analíticas no que diz
respeito a investigações levadas a cabo relativamente à África
pós-colonial. Para já, no entanto, irei poisar a minha atenção
na “família” de teorizações sócio-cêntricas que partilharam
durante tantos anos a hegemonia interpretativa com as estato-
cêntricas que tentei brevemente resumir.

4.2. AS TEORIZAÇÕES “CENTRADAS NA SOCIEDADE”

Se nos virarmos agora para o segundo grupo de


teorizações que delineei, aquelas a que chamei “centradas na
sociedade”, também não é particularmente árduo, à imagem
aliás daquilo que levei a cabo no que diz respeito ao primeiro
grupo, o das teorizações centradas no Estado, tentar fazer um
rastreio delas e das objecções que as têm erodido. Mais uma
vez tanto empírica como teoricamente, não se revelou fácil,
com efeito, postular em simultâneo que, por um lado, o
carácter do Estado e do Direito que produz derivam da
sociedade que tutela; mas que, por outro lado, os Estados se
revelam muitíssimas vezes capazes de manifestar uma
marcada autonomia em relação às sociedades a que
supostamente seriam redutíveis e que por conseguinte
hipoteticamente os “governam”.
Para melhor o compreender, vale decerto a pena
determo-nos um pouco neste ponto, que enuncei tão-somente
de maneira geral, pormenorizando-o. Comecemos pelas
teorizações “liberais pluralistas” e pelas “funcionalistas”110. E
notemos que estas duas tradições (chame-se-lhe isso)
partilham perspectivas similares quanto ao relacionamento
entre o Estado e a sociedade, embora difiram no que toca à
conceptualização que propõem quanto à relação entre o
indivíduo e a sociedade.
110
Há que realçar que cada um destes grupos de teorizações compreende várias
versões alternativas. Neste texto atenho-me apenas a um apanhado geral dos maiores
denominadores comuns existentes entre elas.

90
Talvez seja mais fácil vislumbrar estas semelhanças e
distinções de família em termos narrativos. Se para os liberais
de cepa mais “clássica” o Estado e o Direito estadual são
retratados como uma arena de competição institucionalizada
entre interesses e valores diferentes uns dos outros, para os
proponentes do funcionalismo Estado e Direito estadual são
antes encarados como expressão de uma integração normativa
mais genérica que a ambos subtenderia, representando
ademais vários pré-requisitos sistémicos, entre os quais
avultaria a reprodução telle quelle da sociedade de que
dependem. De acordo com a tradição liberal, as instituições e
as normatividades estatais são configuradas como molduras
neutras em cujo interior se degladiariam conflitos de
interesses e valores (individuais e de grupo111), e os
conteúdos das políticas estaduais não seriam mais do que um
reflexo desses valores e interesses.
O poder estatal (normativo ou outros) reflectiria, vistas
as coisas deste ângulo, o poder social relativo de grupos e
indivíduos. Pelo contrário, de acordo com a perspectivação
funcionalista as instituições estatais são em alternativa
configuradas como vocacionadas para o preenchimento de
“funções”112 tidas como imprescindíveis para a reprodução da
sociedade enquanto um sistema integrado e estável. O poder
estatal exprimiria no fundo, se olhadas as coisas deste outro
ponto de vista, um conjunto de imperativos sistémicos

111
Uma verdade a nível genérico, embora as noções tanto de indivíduo como de
grupo variem fortemente de Autor liberal para Autor liberal, tendo sido largamente
abandonadas as delineações setecentistas que sobre estes conceitos mantinham os
philosophes fundadores. Robert Dahl (1971) é provavelmente o mais articulado e
influente dos defensores contemporâneos deste postura teórica.
112
Funções essas definidas de forma claramente teleológica, que substitui (muitas
vezes subrepticiamente) causas por consequências: o resultado da operação de
prácticas e representações socioculturais (ou de instituções e esquemas conceptuais) é
muito caracteristicamente anunciado pelos funcionalistas como o motivo para elas. A
circularidade deste tipo de raciocínios não carece de melhor demonstração. O
sociólogo norte-americano Talcott Parsons (1952) tem fortes direitos de paternidade
em relação a este género de teorizações. No domíio da Ciência Política, A versão do
funcionalismo de David Easton (1965) pontificou durante mais de um decénio.

91
próprios da sociedade enquanto entidade colectiva a que os
indivíduos se subsumem.
Não será decerto necessário detalhar com muito mais
minúcia os contornos e minudências de perspectivas tão bem
conhecidas como estas. Vale seguramente no entanto a pena
distinguir entre si as várias versões delas que têm vindo a ser
ellaboradas. Teorizações liberais e teorizações funcionalistas
convergem na perspectivação do Estado e do seu Direito
enquanto representante e promotor dos interesses comuns da
sociedade como um todo. Nisso se distinguem da tradição
marxista, que ao invés recusa tanto a ideia de que Estados e
Direitos seriam molduras neutras de conflitos, lutas e
compromissos quanto a ideia de que expressariam valores
partilhados na sociedade.
O Estado e a normatividade que dele brota não
representariam quaisquer interesses comuns. Em vez disso,
representam os interesses próprios de classes sociais
específicas, os quais, por serem particulares e não universais,
não podem senão ser defendidos por recurso ao uso da
força113. Estados são por conseguinte encarados como
conjuntos de instituições que, através do recurso à violência,
asseguram a manutenção e a reprodução de relações
concretas de poder e dominação enquanto que Direitos seriam
como que a forma soft e ancilar de solidificação desses
relacionamentos. Por detrás destas diferenças, e de acordo
com uma ou outra formulação, os três grupos convergem
porém na convicção de o carácter último do Estado e do
Direito derivam da sociedade e são-lhes em última instância
redutíveis.
Tal como é o caso com as formulações estato-cêntricas
que atrás abordei, não são difíceis de trazer à tona algumas
113
Formulações marxistas mais híbridas (que alguns Autores preferem por isso
denotar como “marxianas”), admitem alguma autonomia não-classista à acção dos
Estados modernos: outras, fazem uso de uma noção alargada de “força”, incluindo
nela ideias como a de “hegemonia” ou a de “aparelhos ideológicos do Estado”. São
disso exemplo os formulações de Antonio Gramsci, as de Louis Althusser (1966), e as
de Nicos Poulantzas (1968); todos tiveram os seus seguidores. Vários investigadores
anglo-saxónicos têm tmbém partilhado também deste perspectivação mais mitigada.

92
das limitações mais teórico-epistemológicas das
perspectivações sócio-cêntricas que agora delineei. E isto
independentemente da qualidade das formulações teóricas
produzidas.
Comecemos novamente pelo plano mais geral. Insisti já
na evidência de que as teorizações “centradas na sociedade”
demonstram uma vincada incapacidade de dar conta da
autonomia tanto do Estado em geral como do seu Direito em
relação às forças sociais que, postulam, de uma ou de outra
maneira e conforme as formulações em causa o formatariam e
dirigiriam. É no entanto nítido, se olharmos os factos com um
mínimo de atenção, que essa autonomia estatal existe. Os
Estados delineiam políticas e implementam-nas; muitas vezes
fazem-no, para além do mais, de maneira coerente e
sustentada. Este tipo de teorizações, torna-se por conseguinte
evidente, não consegue dar conta de uma parcela crucial das
reais dinâmicas políticas e jurídicas muito concreta e
empiricamente observáveis.
Torna-se fácil perceber que, caso Estados e Direitos
não fossem senão arenas que refletem, ou encenam, forças
sociais em competição, essa autonomização não seria
possível. Um módico de reflexão revela-o. Para lograr
formular políticas coerentes (quer se trate de políticas
legislativas ou não) e, sobretudo, para as implementar de
forma consistente, coesa e continuada uma vez elas
aprovadas, mesmo fazendo frente às forças que se lhes
opõem, os Estados precisam claramente de ser dotados de
uma larga margem de manobra em relação a estas últimas. O
paradoxo central das teorizações sócio-cêntricas pode ser
assim equacionado: trata-se de perspectivações que
presumem um controlo total do Estado e do Direito pela
sociedade, não deixando à autonomia estatal qualquer espaço
conceptual, mas que no entanto pressupõem uma autonomia
do Estado na sua habilidade e capacidade de agir ao nível
político lato sensu.
Finalmente, e salvo raríssimas e honrosas excepções, o
pressuposto de que cada Estado e cada normatividade jurídica

93
estatal devem ser no fundamental identificados com, e
analizados como, um reflexo da sua própria sociedade
subtende tanto as teorias liberais quanto as funcionalistas ou
as marxistas. Todas estas “famílias”, com efeito, erigem a
“sociedade” como o seu conceito central, e com isso
entendem, por via de regra, a sociedade composta pela
população instalada no território delimitado pelas fronteiras
desse mesmo Estado114. Uma perspectivação deste tipo tende
naturalmente, senão a ignorar, pelo menos a subalternizar,
relações com outros Estados e populações, que tendem assim
a ser encaradas enquanto meras relações “externas” a operar
no campo de um sistema internacional de Estados115 que
formariam deste modo uma realidade no essencial
independente do relacionamento entre os dois termos de base
de um binómio pré-concebido.
Simplificações destas, como é óbvio, esbarram contra
uma objecção metodológica de fundo. Por muito que o
desejemos, um Estado não pode ser concebido como primeiro
existindo e, depois, participando no sistema internacional em
que está integrado. A sua existência não pode sequer ser
imaginada independentemente dessa sua participação e, como
vimos, para muitos Estados africanos isso é particularmente
manifesto. Designadamente, as dinâmicas políticas de um
Estado tornam-se incompreensíveis fora dos quadros
114
Isto é também o caso, apesar de o ser de forma sui generis, nas teorizações
marxistas “clássicas”, que tendem (mas fazem-no apenas num segundo passo, a
embutir as análises que levam a cabo num quadro mais “internacionalista”.
115
Para a maioria dos analistas que sobre estas questões se debruçam, um estado de
coisas como este exige mais do que um abandono genérico das velhas conceções
universalistas e reificadas sobre o lugar estrutural tanto da “sociedade nacional” como
do Estado no estudo dos processos políticos modernos. Clama também pela urgência
da gestação-delineação de elementos constitutivos das ordens políticas nacionais e
internacional, entre si diferenciados q.b. para dar conta da diversidade empírica
efectivamente observada. Alguns investigadores foram mais longe: presumindo uma
estruturação sistémica dos processos políticos a um nível mais alto (ou mais
profundo) de inclusividade, asseveraram que essa diversidade responderia a
diferenças no lugar dessas entidades na lógica mais abrangente de uma ordenação
internacional ditada por pressões de outro tipo. Increve-se nesta família de teorizações
a postura de Boaventura de Sousa Santos (2003) sobre as características particulares
dos Estados da “periferia” do “sistema mundial neoliberal hegemónico”.

94
regionais em que se inserem e das múltiplas relações em que
nesse âmbito se embrenham. No caso concreto de África, os
Estados pós-coloniais nunca são integralmente inteligíveis se
não tomarmos em linha de conta as ligações históricas e
contemporâneas com as suas ex-Metrópoles coloniais. E, por
último, quaisquer interpretações depressa se revelam
incompletas se ignorarmos o seu tipo de inserção na ordem
internacional vigente como um todo116; questão que, como
tivemos antes o ensejo de sublinhar, muitas vezes se torna
particularmente aguda quando se trata de analizar e
compreender Estados como os africanos.

4.3. AS PERSPECTIVAÇÕES DO TIPO GENÉRICO


“ESTADO NA SOCIEDADE”

Como tive a oportunidade de insistir, as teorizações


“centradas no Estado” encaram-no enquanto um actor político
e social de uma ou de outra maneira pré-existente e
autónomo, cuja propensão é a de maximizar os seus próprios
interesses face a outros Estados e a outros grupos sociais que
agregam a população que tutela no território que controla. Em
contrapartida, as teorizações“centradas na sociedade” tendem
a analizar o Estado enquanto uma mera moldura institucional,
mais ou menos neutra, no interior da qual são mediados, de
uma ou de outra forma, os relacionamentos entre
agrupamentos sociais definidos segundo critérios variáveis.
Tal como tive também o ensejo de referir, as
implicações destas duas posturas alternativas podem com
facilidade ser equacionadas. De acordo com as interpertações
geradas pela última “família” analítica, as políticas estaduais
vêem-se reduzidas a simples reflexos destes ou daqueles
interesses sociais, sem que ao Estado enquanto instituição
sejam reconhecido um qualquer papel na sua delineação. De
acordo com as intepretações gizadas nos termos da primeira

116
Apesar de haver que ter cuidado, como tive a oportunidade referir, com as
generalizações que possamos ser levados a elaborar a esse respeito.

95
das “famílias” que circunscrevi, as políticas estaduais vêem-
se pelo contrário delimitadas pelas propriedades e
características do próprio Estado ou das forças sociais que
ocupam postos no seu aparelho político-administrativo,
independentemente das características da sociedade
governada117.
Quebrando de alguma forma a longa hegemonia de um
e do outro destes dois tipos de perspectivação, em anos
recentes tem despontado, e tem-se vindo a solidificar, uma
terceira postura analítica. Um pouco por todo o âmbito das
Ciências Sociais, têm começado a ser formuladas variações
teóricas118 de uma posição alternativa que prefere antes
encarar Estado e sociedade como entidades profundamente
interligadas entre si: uma postura analítica que, a um tempo,
rejeita esse tipo de constraste-oposição radical entre essas
duas entidades, e insiste em procurar antes, professando
reconhecer a sua importância e centralidade, a relação de
influência (no sentido de interferência) recíproca entre
sociedades e Estados. Quando comparamos esta com as
posturas anteriormente descritas, aquilo que está em causa
não são já os relacionamentos recíprocos entre Estado e
sociedade, mas sobretudo o grau e a intensdade destes.
Por outras palavras, trata-se de uma “família” de
formulações-modelizações teórico-metodológicas segundo as
quais Estados e sociedades, ainda que possam ser concebidos
como instituções relativamente autónomas, tornam-se mais
inteligíveis quando encaradas como entidades entre si
mutuamente entrosadas119: num sentido forte, nenhuma delas

117
Para os marxistas, par contre, as delimitações existentes dependem da sociedade
de que fazem parte.
118
Um movimento, se se lhe pode chamar isso, que teve no essencial início no
âmbito da Antropologia e da Sociologia (sobretudo a chamada Sociologia Histórica) e
que depressa se propagou á Ciência Política.
119
No seu estudo monográfico comparativo sobre a política local na Tanzânia e no
Zimbabwe, S. Eriksen (2000, op. cit.: 31-37) intitula precisamente por isso de
“relacional” este novo tipo, mais recente, de perspectivação analítica. Embora, como
aliás tive já atrás a oportunidade de referir, a minha posição de maneira nenhuma se
possa confundir com a de Eriksen, não quereria deixar de reconhecer a utilidade de
que para mim se revestiu a leitura das considerações teóricas de fundo que formam a

96
pode ser integralmente comprendida fora do contexto da
outra. Um exemplo deste género de perspectivação
“relacional”, se se quiser assim apelidá-la, é a da estratégia
analítica genérica que proponho no presente estudo
introdutório, e que puz já em evidência nomeadamente no
que se refere à hibridização, ou “mestiçagem”, como lhe
chamei, do “jurídico consuetudinário” e do jurídico estadual
em África120.
Seria decerto excessivo tentar delimitar em qualquer
sentido útil eventuais “famílias” nas modelizações das
dinâmicas políticas e político-jurídicas deste terceiro tipo, que
intitulei de teorias “Estado na sociedade”. Trata-se, com
efeito, de teorizações demasiado novas, e demasiadamente
inovadoras a nível metodológico-epistemológico para que as
possamos com segurança agrupar desse modo121. Nada nos
impede, no entanto, de pormenorizar um pouco mais os seus
denominadores comuns.
Talvez não seja abusivo afirmar que a principal linha
de força deste conglomerado difuso de perspectivações
teóricas mais recentes consista na recusa liminar de uma
visão atomística da vida política e social. Pelo contrário, tenta
assumir enquanto tal a complexidade de interacções e
interpenetrações realmente existente segundo esta
perspectiva: ou seja, redunda numa muito real hesitação
perante uma qualquer ontologia segundo a qual entidades

abertura desse estudo monográfico. Importantes também foram os notáveis


enquadramentos teóricos providenciados por Migdal, designadamente aqueles
detalhados em Joel Migdal (2002, op.cit.) e que, repito, este último Autor apelida de
“state-in-society perspective”.
120
Na Parte II, a que se segue neste trabalho, fornecerei exemplos detalhados de como,
a nível micro e a nível macro, esse relacionamento biunívoco, por assim dizer, pode
com utilidade ser trazido à colação no estudo de alguns dos países africanos
“lusófonos”.
121
Defensores de uma ou outra versão deste tipo de teorizações são, por exemplo e
para além dos já citados Joel S. Migdal e Stein Eriksen, Anthony Giddens (e.g. 1984),
Pierre Bourdieu (19 ), Peter Evans, Dietrich Raeschsmeyer e Theda
Skocpol (1985), J.-F. Bayart (1989), Michael Mann (1993), James Ferguson (1994),
ou Jürgen Habermas (199 ), para me ater a apenas alguns dos nomes mais
influentes. Note-se que incluo nesta listagem africanistas e não-africanistas.

97
sociais (Estados, sociedades, ou quaisquer outras) existiriam
enquanto objectos de análise anteriores uns em relação aos
outros e independentes uns dos outros. Trata-se para formular
as coisas de outra forma, de assumir uma posição avessa a
quaisquer essencialismos.
Os eixos constituintes (e portanto as implicações
teórico-metodológicas) de uma reperspectivação nestes
moldes não são triviais. Na variante mais pura e dura deste
tipo de enquadramento teórico, entidades políticas, jurídicas e
sociais não são encaradas como separadas umas das outras,
como contrapostas umas com as outras, ou como entretendo
quaisquer relações variáveis entre elas: a importância (muitas
vezes a prioridade) atribuída aos relacionamentos soletra à la
limite uma perspectivação segundo a qual tais entidades
seriam, em última instância, um claro produto desses
relacionamentos e não apenas a sua causa.
As consequências não são de todo neutras: vistas as
coisas de um ângulo como este, os tipos de ligações e de
interacções actuantes entre entidades não emergem aos olhos
de um analista enquanto o peso, o impacto, ou o valor, de
uma dada variável. Pelo contrário, os múltiplos e sempre
complexos relacionamentos existentes são, nessa versão
depurada da perspectiva “Estado na sociedade”, antes
encarados como plenamente constitutivos da entidade ela
mesma dessas entidades.
Algumas das teorizações que incluo neste agrupamento
analítico-metodológico dão corpo a versões light destes
pressupostos “relacionais”, como lhes chamei. Outras a
versões mais “pesadas”. Uma implicação comum a todas elas,
ainda que em graus variáveis de intensidade, é todavia a de
que nem “indivíduos”, nem “sociedades”, nem “Estados” são
alguma vez assumidos como pontos de partida. Por um lado,
conceitos como o de “indivíduos” não são por norma
entrevistos como mais do que isso mesmo, conceitos:
restringem-se sempre, pelo menos parcialmente, a imagens
construídas como entidades que nem são separáveis dos
relacionamentos, dos contextos e das conjunturas em que

98
estão envolvidos nem verdadeiramente lhes pré-existem
enquanto unidades de análise122.
Por outro lado, esses relacionamentos, quer sejam
estruturais quer conjunturais, não podem ser nunca
configurados como verdadeiramente concebíveis fora do
contexto das acções e das actividades que desencadeiam e em
que são gerados. Não é tudo. Por um outro lado ainda, o
Estado e o Direito estadual, nos termos desta perspectivação,
nunca podem ser inteiramente dissociados, enquanto
instituições, institutos, e formas organizacionais, das
características específicas dos sempre intrincados nexos de
relacionamentos sociais sobre os quais agem e com os quais
mantém uma forte ligação umbilical.
Note-se que a arbitrariedade de uma delimitação útil de
eventuais “famílias” nas modelizações das dinâmicas
políticas e político-jurídicas deste tipo de teorias “Estado na
sociedade”, naturalmente não inviabiliza de maneira nenhuma
que tentemos levar a bom porto uma sua arrumação
ponderada. Nada nos impede, por exemplo de arrumar as
teorizações propostas segundo um eixo que corre de um pólo
em que entidades estão embutidas nas relações que as
constituem a um outro em que entidades retêem uma marcada
margem de autonomia relativamente às relações recíprocas
em que estão embebidas123. Por outras palavras, não há
impedimentos quanto a seriá-las, de alguma maneira.

122
Um ponto que infelizmente tem recebido insuficiente tratamento teórico. Não vale
decerto a pena aqui fazer mais do que uma mera alusão aos trabalhos seminais de
Marcel Mauss sobre a tão variável “notion de personne” e aos numerosos estudos
antropológicos que ao tema se têm dedicado. No quadro da sociologia política,
bastará referir Autores como Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Charles Tilly ou
Anthony Giddens.
123
Em termos daquilo que aqui nos interessa (explicações das dinâmicas políticas
modernas e os lugares estruturais nela preenchidos pela dimensão normativa que
comportam) o melhor comentário geral quanto a este tipo de perspectivação é decerto
o de Joel S. Migdal (2002, op. cit.: 11-12): “no single, integrated set of rules, wheter
encoded in state law or sanctified as religious scriptures or enshrined as the rules of
etiquette for daily bbehavior, exists anywhere. Quite simply, there is no uncontested
universal code – in law, religion, or any other institution – in any society for guiding
people’s lives. The state-in-society model […] zeroes in on the conflict-laden
interactions of multiple sets of formal and informal guideposts for how to behave that

99
No que é porventura a versão mais soft deste género de
teorizações, as formulações programáticas limitam-se a
constatar que é crucial assumir plenamente a evidência de que
Estados são sempre entidades dotadas de alguma autonomia
(e nalguns casos, até, primazia), embora o ponto focal das
análises deva ser mantido nos relacionamentos entre o Estado
e a sociedade bem como entre o Estado e os outros Estados
presentes no sistema internacional124. Outras formulações
deste tipo de perspectivação”não-atomística”, afins mas mais
polarizadas, preferem substituir a ideia de que existiria a
muito comum “primazia” e centralidade do Estado adviriam
de quaisquer propriedades suas enquanto objecto, pela
simples constatação de que quando estas se verificam tal
resulta tão-somente da maior eficácia que patenteiam no
contexto em que estão embebidos, em termos de coesão
organizacional e complexidade institucional125.

are promoted by different groups in society. These multiple groupings, all of which
use subtle and not-so-subtle rewards and sanctions – including, at times, out-and-out
violence – to try and get their way, comprise loose-knit informal collections of people
as well as highly structured organizations with manifold resources at their disposal [o
Estado sendo apenas uma delas, já que, como Migdal assevera meia dúzia de páginas
depois, “states are no different from other formal or informal organizations in a
society”]. In short, all societies have ongoing battles among groups pushing different
versions of how people should behave. The nature and outcomes of those struggles
give societies their distinctive structure and character”. Um dos resultados dessa
interacção-competição, acrescentaria eu, são os fenómenos de miscigenação recíproca
a que fiz referência.
124
Esta é, no fundo a postura programática geral assumida na famosa colectânea
intitulada Bringing the State Back In, editada por Peter Evans, Dietrich Raeschsmeyer
e Theda Skocpol (1985 op. cit.). O volume, muitíssimo influente e que inclui curtos
estudos monográficos relativos a Estados ocidentais e não-ocidentais, teve como
razão de ser e Leitmotif a quebra da “hegemonia” sócio-cêntrica que muitos Autores
norte-americanos sentiam pesar, nos anos 80, sobre os estudos políticos de então. Em
diversos trabalhos posteriores, coube sobretudo a Theda Skocpol, da Universidade de
Harvard, elaborar esta perspectivação.
125
Joel S. Migdal (2002, op.cit.) representa seguramente o expoente mais articulado e
sofisticado desta posição analítica. Note-se no entanto, que em muitas das
formulações de Migdal, Estado e sociedade, apesar de profunda e profusamente
interligados, emergem como entidades pelo menos parcialmente constituídas antes e
independentemente uma da outra. Nem sempre é porém assim; nalgumas das suas
tomadas de posição, Migdal parece preferir um postura mais relacional, tal como aliás
a mioria dos Autores proponentes deste posicionamento “intercalar”: Anthony

100
Versões mais hard destas perspectivas relacionais, por
último, advogam antes posições mais “construtivistas”,
insistindo num maior descentramento e fragmentação de
ideias como as de “Estado” ou “sociedade”, e escolhnedo dar
palco nas análises que levam a cabo, em seu lugar, a visões
menos “essencialistas”126.

4.4. ESTADO SOCIEDADE, DIREITO E A ANÁLISE DOS


PROCESSOS POLÍTICOS E JURÍDICOS PÓS-COLONIAIS
NA ÁFRICA CONTEMPORÂNEA

Tal como poderia ser de esperar, no que toca ao estudo


dos Estados e dos Direitos africanos pós-coloniais, as
modelizações que têm vindo a ser propostas não se afastam
muito do programa “tripartido” de investigação (embora
baseado num paradigma dualista que, como vimos, contrapõe
um ao outro, naturalizando-os, tanto o “Estado” quanto a
“sociedade”) que até aqui tentei delinear. Nesse sentido,
increvem-se bem nos domínios epistémicos dos contextos em
que foram enunciadas. Ou seja, e por outras palavras: as
dinâmicas evidenciadas nos processos político-jurídicos que
se alinham ao longo dos caminhos pós-coloniais percorridos
no Continente têm, grosso modo, sido interpretadas nos
termos de simples variantes dos três esquemas analíticos
gerais que esquissei, sendo por norma posicionáveis,
portanto, no quadro paradigmático que elaborei.
Isso é todavia verdade apenas a traço grosso. Se
aumentarmos a resolução de imagens, por assim dizer,
depressa verificamos a presença de alterações de pormenor

Giddens (e.g. 1984) e Michael Mann (1993) defendem o que pode sem reducionismos
excessivos ser encarado como variações sobre este tema-gradiente.
126
James Ferguson (1994) e Jürgen Habermas (1992, 1998), cada um à sua maneira,
têm vindo a defender posturas deste tipo, tal como, aliás, grande parte dos seguidores
das interpretações de Michel Foucault sobre as características do poder no Mundo
moderno. Tal como o têm feito, ainda que segundo formatos bastante distintos entre
si, J.-F. Bayart (1989) e Patrick Chabal (19 ).

101
nas modelizações realtivas a processos políticos africanos
pós-coloniais que, apesar de serem aparentemente de pouca
monta, em todo o caso inviabilizam uma arrumação enxuta
das perspectivações elaboradas de acordo com a tripartição
até aqui privilegiada. A impressão genérica que resulta de
uma leitura atenta da bibliografia sobre o Estado a sociedade
e o Direito em África é a de que, no “afeiçoamento” de
teorizações gerais às novas e muitíssimo complexas e
multidimensionadas realidades emergentes no Continente,
foram tornados explícitos pressupostos e preconcepções que
até então permaneciam escondidos nas formulações
“clássicas”, o que têm a virtude de permitir uma
ultrapassagem dos enquadramentos que os sustentam.
Uma visão ampla de conjunto, ainda que sucinta e
configurada à vol d’oiseau, põe-no em relevo127, pondo a nú
as condições que dão azo à emergência desse potencial para
uma mudança de paradigma. E, em simultâneo, traz à luz uma
das ambivalências nodais das teorizações gizadas pelos
primeiros “africanistas” logo após as independências
encetadas em meados do século passado.
Como antes fiz, começarei por arrolar diacronicamente
as perspectivações que foram sendo enunciadas, desta feita
atendo-nos às que diziam respeito a África. Durante os anos
60 (isto é, no período imediatamente após as independências
africanas iniciais e em plena fase de estabelecimento dos
primeiros verdadeiros Estados pós-coloniais no Continente),
dois conjuntos de perspectivas analíticas maiores se
afirmaram e ocuparam efectivamente o terreno: as chamadas
“teorias da modernização” e variantes das “teorias da
dependência”, estas últimas de raízes marxistas mais ou
menos ortodoxas. Ambas tiveram histórias curtas mas densas.

127
Limitamo-nos nas páginas que se seguem a uma perspectivação geral sobre os
posicionamentoss analíticos e aquilo que considero como as suas mais importantes
transformações nos trabalhos de investigação relativos a África. No que toca aos
estudos que dizem respeito às estruturas e dinâmicas políticas na África lusófona é
imprescindível a leitura da longuíssima e muito exaustiva recensão recente
empreendida por Patrick Chabal (2002).

102
Nas formulações comuns equacionadas nos termos do
primeiro destes dois agrupamentos analíticos, o das chamadas
teorias da modernização, tornava-se claro (este ponto tendia,
de resto, a ser afirmado sem quaisquer ambiguidades) que
aquilo que os investigadores pretendiam era uma transposição
pura e simples, para os novos contextos pós-coloniais
emergentes, das teorizações liberais pluralistas e das
funcionalistas defendidas pela maioria dos analistas com
convicções sócio-cêntricas. As vias de eleição eram por
norma o “desenvolvimento” e o “nation-building”; mas o que
no estudo das dinâmicas políticas eram formulações teóricas
que representavam la créme de la créme das posturas
analíticas coetâneas “centradas na sociedade”, no contexto
dos estudos políticos africanos pareciam curiosamente
preferir pôr a tónica nos Estados.
Foi com efeito nestes mesmos Estados, encarados,
como era da praxe interpretativa na época, enquanto ao
mesmo tempo organizações e instituições, que os teóricos da
modernização puseram o acento tónico. A curiosa
deslocação-omissão que tal significava foi como que tácita.
Esquecida pareceu ter ficado a perspectivação liberal
fundadora, segundo a qual o Estado seria uma arena neutra
em que se degladiariam valores e interesses existentes na
sociedade: era para as elites que controlavam o Estado, por
via de regra compostas por naturais africanos culturalmente
muitíssimo ocidentalizados, que os “modernizadores”
poisavam os olhos, ao procurar as iniciativas e a energia que,
postulavam, punha em movimento a política pós-colonial dos
novos Estados africanos independentes. As outras forças
sociais, por norma em tais formulações tidas como sendo
“tradicionais”, e por isso “retrógradas”, não entravam na
equação senão enquanto “forças conservadoras”, ou como
reacções e resistências “de bloqueio”128.

128
Sem querer, novamente, aflorar mais do que a superfície: os mais influentes porta-
vozes das leituras “modernizantes” foram, seguramente, Gabriel A. Almond e James
S. Coleman (1960) e S. N. Eisenstadt (1966). Seguiram-se-lhe muitos outros autores,
entre cientistas políticos economistas, sociólogos, antropólogos e historiadores.

103
Retrospectivamente parece-me nítido que a
reconfiguração implícita foi notável. Num acto subreptício de
prestidigitação intelectual, elaborações oriundas de
perspectivações sócio-cêntricas vestiram as vestes solenes de
enquadramentos analíticos “centrados no Estado”. Deu-se
como que uma substitução por permuta. Bem vistas as coisas,
tudo se passou como se, no quadro especial dos estudos
africanos (e terceiro-mundistas em geral), a hegemonia
estatista não pudesse ceder lugar à hegemonia
“sociologística” em voga como sua alternativa no marcado
emparelhamento contrastivo que, como insisti, dominava o
campo epistémico de então.
Esta reconfiguração-reposicionamento analítico foi no
entanto tudo menos inconsequente. Como é evidente, nos
convuluídos termos deste tipo de perspectivação o Estado
pós-colonial não era tido como sendo um representante
autêntico do conjunto dos valores presentes na sociedade; ao
invés, numa fascinante inversão, eram os próprios Estados
que se viam encarados como sendo responsáveis por gerar
nas respectivas sociedades os valores a que, idealmente,
dariam corpo, forma, substância e até futuro. O ideal do
“nation-building” emergia, nessas formulações, como difícil
de distinguir de um “state-building”129 tido como
imprescindível e urgente no processo de acessão dos novos
Estados africanos independentes ao estatuto de membros
plenos na nova versão alargada da já provecta “comunidade
das nações” e na do velho sistema internacional de Estados.
Do ponto de vista de alguns dos participantes de então,
era vísivel o alcance que essa estranha permuta iria ter. A
extensão deste reposicionamento e desta verdadeira
reconfiguração, como lhe chamei, pareciam demonstrar à
saciedade que estava perante muito mais que uma anomalia

129
Nesse contexto, seria interessante levar a cabo um estudo teórico-metodológico
comparado destas “teorias da modernização” e dos trabalhos, produzidos uma dúzia
de anos antes sobre o despontar dos movimentos nacionalistas anti-coloniais em
África como por exemplo aqueles detalhados em análises clássicas como as de
percursores como o de Thomas Hodgkin (1956) e de James Coleman (1954).

104
paradigmática localizada. Com afinidades porventura
surpreendentes com este tipo de modelização (mutatis
mutandis, naturalmente) posicionaram-se as teorizações
marxistas, no decurso dos anos 70, o período imediatamente
posterior130 à fase inicial tanto do estabelecimento dos
Estados pós-coloniais africanos como das investigações a seu
respeito.
Olhadas as coisas com os benefícios da retrospecção as
convergências que se foram evidenciando tornam-se
transparentes. Apesar de constituirem, nas suas características
teórico-metodológicas, um conjunto diferente de
perspectivações da “família” sócio-cêntrica, as análises de
uma ou de outra forma tributárias do marxismo partilharam e
trilharam, na prática, muitas das pré-compreensões
teleológicas implícitas na “teoria da modernização”
comungando, no essencial, com a interpretação evolucionária
destas. Ainda que o fizessem de maneira própria, sublinhando
alto e bom som que tanto o “avanço” providenciado pelo
capitalismo como o próprio Estado capitalista” e a
normatividade que produzia seriam forças historicamente
progressivas que tendiam a assegurar um desejável
desenvolvimento económico e sócio-político por via da
remoção sistemática de todos os obstáculos pré-modernos e
“feudais”.
Tal como as teorias liberais, as formulações marxistas
viam e identificavam no Estado e no seu Direito reflexos do
poder das elites (neste último caso, configuradas enquanto
“classes sociais” que se iriam coagulando a partir de
relacionamentos inter- e intragrupais sobretudo económicos)
dominantes131. O mesmo tipo de transmutação de um ponto

130
A correlação entre estas duas séries, a do estabelecimento dos Estados pós-
colonias africanos e a da progressão das interpretações analíticas de que foram
objecto) é de geometria variável. Não é árduo compreender porquê: dada a data
comparativamente tardia das independências dos países africanos “lusófonos”, a
emergência e por conseguinte os primeiros estudos sobre estes coincidiram com a
ascenção das terorizações marxistas.
131
Embora seja decerto abusivo reduzir o conujunto de teorizações a que Naomi
Chazan,..........Mortimer, ..............Ravenhill e Donald Rothchild (1992) chamaram,

105
de partida sócio-cêntrico para um ponto de chegada estato-
cêntrico teve assim lugar nestes outros palcos teóricos, menos
alternativos do que paralelos.
Não quero com isto de maneira nenhuma sugerir que
não tenham emergido teorizações assumidamente estato-
cêntricas, propostas sem quaisquer subterfúgios com o intuito
de reconstruir racionalmente as dinâmicas políticas patentes
em África. Bem ao invés, houve muitas formulações deste
tipo e elas foram importantíssimas na formatação de uma
opinião teórico-analítica de fundo quanto às dinâmicas
vividas nos palcos políticos africanos. Mas mais uma vez,
porém, a caracterização-arrumação de que são passíveis não é
conclusiva: nas várias formulações que estas metodologias de
análise têm assumido no âmbito dos estudos políticos
africanos, as perspectivas frontalmente “centradas no Estado”
nunca de facto se apresentaram como inteiramente distintas
das formulações obliquamente “sócio-cêntricas” que
esmiuçámos. Para o verificar, bastará detalhar as principais
traves mestras daquels que se têm apresentado como as mais
importantes de entre todas elas: as neo-patrimonialistas e as
versões estatistas das perspectivas de “rational choice”.
A ênfase posta na operação dos aparelhos de Estado
pós-coloniais instalados em África depois das independências
e na utilização política que deles fazem as elites africanas
dominantes para seu próprio benefício é o denominador
comum deste agrupamento difuso de perspectivações
teóricas. A finalidade última destas teorizações é também
semelhante: trata-se sempre de tentar oferecer uma explicação

ecoando uma prática comum, “dependency theories”, teorias da dependência essas


que, no notável estudo introdutório que publicaram sobre a política africana pós-
colonial puseram a par com as “modernization theories” e com as “state-centered
theories” em que subdividiram as expressões desta), a coincidência parcial dessas
perspectivas com as marxistas é óbvia. Como tem sido notado, as teorias da
dependência (desde as de E. Wallerstein às de A. Gundner Frank às de A. Emmanuel)
não propuseram propriamente uma modelização detalhada do Estado: o seu ponto
focal está antes com firmeza e obstinação implantado nas articulações que
“determinam” que o desenvolvimento económico está condicionado pela posição do
Estado em relação ao sistema internacional. Para uma tentativa mais recente de
elaboração no essencial “dependentista” sobre as características e a natureza dos
“Estados periféricos”, ver Boaventura de Sousa Santos (2003).

106
para as crises e os insucessos económicos e políticos
ocorridos tanto antes como no decurso da aplicação dos
famigerados “Programas de Ajustamento Estrutural”
impostos pelas instituições de Bretton Woods,
designadamente o Fundo Monetário Internacional e o Banco
Mundial. Numa frase, têm como objectivo compreender as
diferenças entre os Estados africanos pós-coloniais e o
modelo ideal dos Estados ocidentais de que derivam e de que
claramente divergem: buscam-no tentando pôr a nu a lógica
que subtende as escolhas políticas feitas pelas elites que
dominam os novos Estados africanos e aquela que subtende e
torna por isso mais inteligíveis as situações jurídicas neles de
facto verificadas.
Apesar das convergências manifestas entre as variantes
deste agrupamento difuso de teorizações, vale a pena, em
todo o caso, contrastá-las naquilo em que se distinguem entre
si. No seu âmago, as teorias estato-cêntricas baseadas na
teoria das escolhas racionais132 encaram as políticas estatais
africanas pós-coloniais como reflexos das tensões intestinas
entre grupos de interesses que neles estão representados. Uma
postura dificilmente distinguível, como se vê, daquelas
equacionadas pelos africanistas metodologicamente mais
“centrados na sociedade”133. As traves de sustenção narrativa
das formulações do tipo “rational choice” são simples: como
todos os actores sociais, os líderes políticos e os funcionários
burocráticos africanos tentam obstinadamente maximizar a
utilidade das suas posições para com isso acumular vantagens
de vários géneros. Em contextos como os da África
contemporânea, em muitos casos a maneira mais fácil de o
132
Robert Bates (1981) e William Reno (1999) são porventura os expoentes maiores
deste tipo de teorização no que diz respeito aos estudos políticos africanos.
133
No trabalho monográfico já amplamente citado relativo à articulação entre o
Estado e as comunidades locais na Tanzânia e no Zimbabwe, S. Eriksen (2000, op.
cit.: 35) notou, num sentido afim ao que aqui defendo, que “although its main focus is
on state institutions, this approach has clear affinities with the neo-liberal approach,
[generally] classified among society centerd theories”. Apesar dessas e de outras
anomalias, Eriksen mantém a dicotomia entre teorias centradas na sociedade e
aqulelas centrads no Estado na sua taxonomia política da África pós-colonial.

107
fazer é ganhando apoios, o que se pode lograr sem grandes
esforços por intermédio de uma apropriação directa e
“personalizada” de alguns dos recursos à disposição do
Estado, distribuíndo-os depois criteriosamente pela
população-alvo.
Nas conjunturas típicas dos Estados e das economias
modernas, esta estratégia genérica pode assumir várias
facetas de pormenor que são complementares e de uma certa
forma funcionalmente equivalentes: oferecendo empregos aos
apoiantes visados, entregando-lhes licenças ou adjudicando-
lhes concessões e celebrando com eles contratos vantajosos
ou, mais subtil e indirectamente, manipulando serviços,
preços ou taxas de câmbios de maneira a favorecer indivíduos
ou grupos específicos. A distribuição social consequente de
bens e serviços é tudo menos homogénea equitativa: o resto
da população, aqueles cuja participação-recrutamento
políticos não são visados, é por norma subalternizada, quando
não ignorada e esquecida no processo. Nos Estados pós-
coloniais da África contemporânea não é assim por exemplo
incomum que as populações rurais se vejam relegadas para
esta última posição, enquanto a mobilização política das
urbanas (cujas capacidades reinvindicativas e organizacionais
tendem a ser muito maiores e muito mais eficazes) é
assegurada com vista à manutenção de um módico de
estabilidade política.
Uma estratégia de exercíco do poder deste género dá
porém origem a situações instáveis e tem um tempo de vida
limitado. Não são precisos muitos conhecimentos do
funcionamento de uma economia e de um sistema político
modernos para compreender que, quando mantido por tempo
suficiente, este tipo de actuação das elites políticas gera nós
górdios em pelo menos três frentes. Um deles emerge de uma
inevitável “crise fiscal”134, já que rapidamente é criada uma

134
Ver, quanto a este ponto, o estudo geral de James O’Connor (1973). Um bom
exemplo da aplicação deste tipo de modelo a um dos países africanos lusófoos é o da
monografia de T. Hodges (2002) sobre a economia e o sistema político que
caracterizariam a 2ª República em Angola.

108
situação em que os que controlam as rédeas do poder no
quadro do Estado assistem a um progressivo mas inexorável
esgotamento das receitas disponíveis e cada vez se vêem com
menos recursos para distribuir por seguidores que se
habituaram a posicionar-se socialmente e a viver à custa do
seu acesso privilegiado a tais benesses.
Um outro dilema é político e decorre das inevitáveis
movimentações (sempre ameaçadoras, por muito
descoordenadas e ineficazes que elas possam ser) de
resistência por parte dos sectores ignorados da população e
das clivagens nacionais que a estratégia das elites insinua
entre esses e os beneficiários dos favores do poder. Por
último, e em consequência de tudo isto, instala-se uma
crescente (e cada vez mais pública) “crise de credibilidade”
quanto ao funcionamento do Estado e dos políticos e
burocratas que o utilizam.
A linha de horizonte deste tipo de dinâmica é de
simples delineação. A base económica de que depende tanto
o “Estado” como a população tende a sofrer uma erosão
acelerada. Mas o processo é imparável: os interesses
instalados por este tipo de funcionamento do sistema político
estão apostados em garantir a reprodução desta dinâmica e
assim manter a sua posição de privilégio. Em consequência,
insistem estas teorizações, naqueles Estados africanos que
enveredam por esta via (e são muitos os que acabam por fazê-
lo) rapidamente se tornam em failed states que se apresentam
como palcos de lutas ferozes entre “senhores da guerra” cada
vez mais ferozes embrenhados em contendas por sobras cada
vez mais exíguas135.
Uma versão alternativa deste género de teorizações dos
processos políticos africanos entevistos como “centrados no
Estado” é a persepectiva vulgarmente conhecida como neo-

135
Um só exemplo. William Reno (1998) disponibilizou uma análise comparativa
magistral destes processos de “warlord politics” em quatro Estados africanos, o
Congo, a Nigéria, a Serra Leoa e a Libéria.

109
patrimonialista136. As diferenças específicas que separam o
neo-patrimonialismo das teorias de escolha racional que
acabei de esquissar são poucas: trata-se de meras variações
sobre um tema comum. Mas não são inconsequentes.
A traço grosso, a modelização geral deste subgrupo de
perspectivações analíticas é no fundo a mesma que a do
anterior. Tal como foi o caso no agrupamento que antes
descrevi, as relações de poder são vistas pelos proponentes de
uma perspectivação neo-patrimonialista das dinâmicas
políticas africanas contemporâneas como reproduzidas no
essencial através de canais informais137. E tal como nas
teorizações anteriores ao acento tónico está posto com
firmeza nessas redes informais. Mas é no entanto antes nas
relações pessoais e familiarísticas de reciprocidade, de
obrigações mútuas e na lógica subjacente de “dádivas” inter-
pessoais e inter-grupais (gift-giving para os investigadores
anglo-saxónicos, para os autores francófonos dons) que está
pousado o ponto focal destas interpretações138.

136
“Neo-patrimonialismo” é uam apelidação adveniente das classificações políticas
de Max Weber. Distingue-se mal do “patrimonialismo” weberiano, tratando-se
porventura antes de uma sua versão “modernizada”, que vê a “privatização” do
público por interesses privados nos contextos políticos e económicos actuais
insistindo sempre no estabelecimento de laços personalizados, ao nível mais macro do
Estado, entre “patronos” e “clientes”.
137
São comuns assim, no contexto destas teorizações, conceitos como o de “shadow
state” ou o de “shell state”, que descreveriam modelos política e juridicamente
idealizados mas sem que as estruturas formais representem as verdadeiras relações de
poder. Essas resultariam de redes informais paralelas em que o poder real será
exercido. É fácil ver o papel meramente instrumental que, nos termos deste tipo de
interpretação, seria apanágio das produções jurídico-estatais. Tal como se tornam
óbvias as razões de fundo para a marcadíssima disjunção patente na África
contemporânea, entre law in the books and a law in action. Um bom exemplo desta
perspectivação teórica quanto a um dos PALOPs é oferecido pelo excelente estudo
monográfico de Gerhard Seibert (2001) sobre S. Tomé e Príncipe. A Guiné-Bissau
sobre a qual faz falta um qualquer estudo de conjunto, fornecerá porventura um
exemplo ainda mais nítido para testar a aplicabilidade deste género de modelos.
138
De maneira semelhante, aliás, ao que se passa nas análises sócio-antropológicas
clássicas sobre as relações ditas de “patrocinato” e “clientelismo”. René Lemarchand
(um especialista sobre as dinâmicas políticas na África Central, designadamente as do
Rwanda e do Burundi) e Richard Sandbrook (1988) são pais fundadores deste tipo de
perspectivação que, no essencial, se distingue do anterior pelas diferenças nas
formulações sociologísticas em que se fundamenta. O que mais uma vez lança

110
No fundo aquilo que separa este pólo “neo-
patrimonialista” do de “rational choice” localiza-se ao nível
das pré-compreensões exibidas pelos estudiosos quanto ao
“motor de propulsão” dos processos sociais, políticos e
económicos: para estes últimos, tratar-se-ia de uma pulsão
maximizante racionalista e formal, enquanto para os
primeiros aquilo que o alimentaria seriam antes
considerandos substantivos particulares, próprios das lógicas
internas que expressam o funcionamento sociocultural das
sociedades africanas em causa.

4.5. AS TÓNICAS NAS MODELIZAÇÕES RELACIONAIS


MAIS RECENTES QUANTO ÀS DINÂMICAS POLÍTICAS
PÓS-COLONIAIS EM ÁFRICA

Expor, como o fiz, o desenrolar da operação destes


modelos analíticos relativos a África põe em relevo a forma
como estas formulações teóricas se entrecruzam nas suas
formulações, tornando-os dificilmente dissociáveis, conceitos
como o de “Estado” e o de “sociedade”. E mostram, com
nitidez, a comparativa despreocupação dos analistas, nas
explicações de muitas das dinâmicas políticas pós-coloniais
no Continente, relativamente a uma aplicação rigorosa dessa
velha dicotomia, desse paradigma dualista. Uma
despreocupação, como vimos, tão compreensível quanto
justificável pela patente inaplicabilidade estrita e estreita de
um binómio enxuto como o “sociedade-Estado” a uma
realidade empírica que cada vez menos se lhe adequava. Em
substituição, foram com uma rapidez surpreendente
adoptados conceitos como os de shell state e o de shadow
state, com as suas desenfatizações implícitas nas estruturas
formais dos aparelhos de Estado e com a tónica posta, em
alternativa, em redes informais de controlo por elites e

dúvidas quanto à utilidade da antinomia “state centered”/“society centered” no


quadro dos estudos políticos pós-coloniais africanos.

111
agrupamentos etnolinguísticos. A realidade empírica nua e
crua impôs-se, de algum modo.
O que explica a curiosa transmutação das modelizações
sócio-cêntricas num efectivo estato-centrismo oblíquo, tal
como aquela que tivemos a oportunidade de constatar ter sido
tanto tempo utilizada. Stricto sensu, tratou-se mais de um
reconhecimento tácito das limitações e insuficiências do
dualismo “clássico” do que de uma verdadeira transmutação;
mas acabou por ser-lhe funcionalmente equivalente. Em boa
verdade, foi apenas com os anos 80 e 90 que teorizações
explícita e integralmente “centradas na sociedade” se
afirmaram alto e bom som no âmbito cada vez mais
especializado dos estudos políticos africanos139.
Retomar, em termos narrativos, o encadeamento dos
passos analíticos dados é decerto uma boa táctica reveladora
do facies assumido por essa progressiva mudança
paradigmática. No período formativo das décadas de 60 e 70,
conceitos como o de “nation-building”, o de “state-building”,
ou o de “desenvolvimento”, coalesciam sem grandes
turbulências nos quadros teóricos formulados e nas
estratégias metodológicas gizadas. Os anos das décadas de 80
e 90 progressiva mas muito rapidamente vieram pôr em
dúvida as ligações entre eles. Em particular, ideais como o
incorporado na noção de “state-building” começaram a cair
em descrédito, à medida que os Estados africanos cada vez
mais visivelmente se manifestavam como sendo afinal
entidades de uma gritante ineficiência, que em muitos casos
se desagregavam e dissolviam, ou pelo contrário se

139
Como escreveu J. Migdal (2002, op. cit.: 58-59), “in third-world studies [...] one
could probably […] say that the state was more assumed or taken for granted than
neglected during the 1950’s and 1960’s. Many social scientists writing about non-
Western societies saw the conscious manipulation of social life – public policy – as a
central ingredient of the social histories and futures of newly independent societies.
Such manipulation, of course, lies at the heart of politics”. Segundo Migdal, este facto
resultava, nas formulações então produzidas, da estreita associação postulada entre
polítca, economia e comunicação, que levavam ao estabelecimento de um constraste
marcado entre o que os analistas chamavam o “sector” moderno” e aquilo que
apelidavam de o “sector tradicional”.

112
cristalizavam em redes cada vez mais intrincadas de
“corrupção”140.
A uma tal tomada de consciência correspondeu não só
a certeza de que novos acentos tónicos se tornavam
imprescindíveis para lograr compreender os processos
políticos em África, mas também a convicção de que a velha
polaridade Estado-sociedade muitas vezes escondia mais do
que revelava quanto às lógicas reais geradoras das suas
dinâmicas. Compreensivelmente, os Estados pós-coloniais
mais e mais tendiam a ser vistos, não como os dinamizadores,
mas como obstáculos, para um qualquer dos tipos
ambicionados de desenvolvimento. Em seu lugar, segundo a
lógica de hegemonia partilhada que vinha de trás, tanto as
esperanças políticas quanto as teorizações sobre a sua
viabilidade se viraram para o papel preenchido (ou a
preencher) pela sociedade. Deu-se como que um fechar de
um círculo, embora tivesse havido uma mudança de patamar
como tal nem sempre reconhecida. A prestidigitação
intelectual e a transmutação a ela associada das
perspectivações sócio-cêntricas num estato-centrismo
“indirecto” esgotara-se: o liberalismo, numa nova versão
sócio-cêntrica, desta feita numa variante mais dura e madura,
regressou em força. Pareceu para alguns um retrocesso;
tratou-se, porém, dos primeiros passos de uma inovação de
fundo ainda hoje em dia em curso.
Para a pôr com nitidez em realce ajuda cartografar o
pano de fundo em que se deu a transição. A viragem “neo-
liberal” nas políticas e nos estudos africanos (como aliás, nos

140
Sobre o tema em geral ver, por todos, Patrick Chabal e Jean-Pascal Daloz (1999,
op. cit.) e Jean-François Bayart, Stephen Ellis e Béatrice Hibou (1999). O já citado
Gerhard Seibert (2001) toca nestas questões em pormenor relativamente a S. Tomé e
Príncipe. Para uma interpretação mais intrincada (e porventura algo excessiva) que vê
no recrudescimento da feitiçaria na África subsaariana uma forma de resistência
“tradicional” contra os novos senhores do Estado que acumulam um poder que,
segundo os “marginalizados” pelas “consequências”, directas e indirectas, dos
“Programas de Ajustamento Estrutural” há que tentar aplacar e combater, ver C. F.
Fisiy e P. Genschiere (2001). Enquanto os primeiros investigadores se posicionam em
posturas mais ou menos “liberais”, os dois últimos dão voz a um “pós-modernismo”
muito próximo das teorizações modernistas da “dependência”.

113
do resto dos “países em vias de desenvolvimento”, como o
wishful thinking teleológico dos primórdios os apelidara)
resultou, no fundo, do toda uma série de acontecimentos
convergentes141. Referi já as percepções crescentes de uma
incompetência generalizada dos Estados pós-coloniais, cuja
interpretação tendia a ser ligada as ideias cada vez mais
firmes quanto a uma enorme falta de probidade de que
padeceriam, o que depressa feriu a sua credibilidade interna e
externa. As próprias elites políticas e sociais dominantes em
muitos dos Estados africanos começaram a ver-se em apuros
cuja solução não era óbvia142. O declínio abrupto da
legitimidade de noções como a de “partido único” agravou
uma conjuntura já de si de difícil destrinça143. Entrou-se
assim numa grave crise destes Estados, difícil de resolver nos
quadros político-administrativos instalados no Continente e
impossível de ignorar, dada a gravidade dos descalabros que
se sucediam e daqueles que se anunciavam.
De par com estes processos, nos Estados ocidentais
eles mesmos o modelo do welfare state, por via de regra
caracterizado como era por doses fortes de intervencionismo,
esbarrava com sérias dificuldades. A “crise petrolífera” de
1973 abriu a porta a rápidos avanços do bloco soviético um
pouco por todo o Mundo, mas talvez sobretudo em África. A

141
É riquíssima a bibliografia existente quanto a essa tão sensível viragem nos
estudos empreendidos sobre África e nas políticas africanas propriamente ditas. Nos
comentários que passo a passo alinhávo nos próximos parágrafos, atenho-me a um
mero encadeamento, ainda que ponderado, de algumas das principais linhas de força
das interpretações mais influentes que têm sido formuladas. Caso a caso providencio
referências bibliográficas q.b. em notas de rodapé.
142
Quanto a este tema, ver Robert H. Bates (1999) e, no que diz respeito aos
primórdios da “transição democrática” em Angola, Armando Marques Guedes et al.
(2003, op. cit.: 236-240). Um excelente estudo monográfico, de sociologia estatística,
sobre as transições africanas é o de Michael Bratton e Nicolas van de Walle (1997). A
colectânea de referência editada por Richard Joseph (1999) contém arigos
importantes, designadamente os da autoria de Nicolas van der Walle (1999),
Crawford Young (1999), John W. Harbeson (1999), do próprio Richard Joseph
(1999), de Robert H. Bates (1999), Jeffrey Herbst (1999) e Adebayo Olukoshi (1999).
143
Para uma extensa recensão crítica das inúmeras tomadas de posição quanto a este
ponto preciso, ver Luis Rodriguez-Piñero Royo (2000).

114
reacção não se fez esperar: a década de 80 veria a subida ao
poder de defensores fervorosos de uma linha dura de
liberalização nos Estados ocidentais mais aguerridos:
jogavam-se os movimentos finais do que culminou na
dissolução do império soviético, na implosão da própria
URSS, e na primazia inconstestada, pela primeira vez desde o
princípio do século XX, dos velhos modelos liberais,
entretanto também reformulados144.
Talvez mais importante, ocorreu um verdadeiro
renascimento de um conceito antigo, o de “sociedade
civil”145, no contexto de análises de fundo relativas ao
desaparecimento, a partir de meados dos anos 80, de muitos
dos regimes autoritários na América Latina, na Europa do
Sul e na Ásia Oriental; bem como, sobretudo a partir dos
anos 90, no do desmantelamento de regimes autoritários e
totalitários na Europa Central e de Leste. Para muitos dos
observadores a activistas que de uma ou de outra forma se
viram empenhados nas contendas que abalaram a África da

144
Cf. J. e J. Comaroff, 1999, op. cit.: 16-17, e A. Marques Guedes et al., 2002, op.
cit.. Numa colectânea famosa de estudos “liberais”, ou “modernistas” sobre as
sociedades civis na África pós-colonial contemporânea (editada por J. Harbeson, D.
Rothchild e N. Chazan em 1994), foi levada a cabo uma defesa fervorosa da
utilização “transcultural” de conceitos como o de “sociedade civil”, baseada na
alegação, em muitos sentidos convincente, de que esta noção não é menos tangível
nem mais “etnocêntrica” que os de “classes sociais”, “burguesia”, ou “democracia” –
conceitos esses por via de regra usados com comparativa despreocupação por quase
todos os analistas que sobre África se têm vindo a debruçar. M. Bratton (ibid: 52), por
exemplo, declarou que “despite [...] formidable obstacles [...] civil society is a useful
formula for analysing state-society relations in Africa because it embodies a core of
universal beliefs and practices about the legitimation of, and limits to, state power”.
Não deixa porém de ser verdade, como J. e J. Comaroff (idem: 17) notaram com
azedume, que “if civil society is tacitly taken to be a Eurocentric index of
accomplishment, Africa’s difference once more becomes a deviation, a deficit”. Uma
distorção de perspectiva já infelizmente antiga e de consequências gravosas e não
desprezíveis. Outros estudos e colectêneas dos anos 90 sobre a aplicabilidade do
conceito aos processos políticos na África contemporânea são os de J. L. Cohen e A.
Arato (1992) e (eds.) J. Harbeson, D. Rothchild e N. Chazan (1994).
145
Quanto a este tema, é útil, por todas, a leitura de Ernest Gellner (1994) e de
Alejandro Colás (2002: 25), entre numerosos dos autores que sobre isso se
debruçaram. No que diz respeito a S. Tomé e Príncipe, ver Armando Marques Guedes
et al. (2002, op. cit.: toda a última parte); no que toca a Angola, ver Armando
Marques Guedes et al. (2003, op. cit.: 301-331).

115
última parte do século XX, “sociedades civis” eram entidades
empírica e nitidamente visíveis nos processos em curso da
desagregação das diversas formas autoritárias de poder
estatal que com tão estrondoso sucesso desafiaram. Os novos
enquadramentos metodológicos e epistemológicos daí
resultantes providenciaram um terreno fértil para um regresso
em força das teorizações liberais146.
A inovação que daí resultou revelou-se como sendo de
monta. Em relação aos modelos anteriores, o corte (pelo
menos in the books) foi radical. Até então o Estado tinha sido
encarado como a solução, por políticos e por analistas. Com
a ascensão do neo-liberalismo dos anos 80 e 90, transmutou-
se no problema. Apelos não tardaram para a urgência de
“rolling back the state”, um Estado agora retratado como
sendo a fonte de todos os males. As forças e as energias da
sociedade, imaginada por analistas, políticos e populações
como “a sociedade civil”, era em simultâneo erigida como a
grande fonte de esperança numa redenção. A velha oposição
conceitual parecia regressar de armas e bagagens, se bem que
se reconhecesse que o fazia com novas e inusitadas vestes.
Mas a ilusão de que assistíamos a uma reinstalação em força
do velho dualismo foi sol de pouca dura.
Nas novas conjunturas os investigadores (se bem que,
em África, nem sempre nisso acompanhados pelos políticos)
enfrentaram pela primeira vez depois de um longo interregno
a possibilidade de ultrapassar esse binómio já antigo, que tem

146
E, com efeito, as perspectivações neo-liberais, que em larga medida
acompanharam os modelos de desenvolvimento favorecidos pelo único pólo
remanescente depois do fim da bipolarização, entraram em África em força. De um
total de 51 Estados africanos, 47 tiveram “transições democráticas”, que redundaram
na instalação de regimes democráticos parlamentares e economias de mercado. É
edificante a leitura de Michael Bratton e Nicolas van de Walle (1997), para lograr
uma visão matizada destas “transições” no Continente e das suas causas mediatas e
imediatas. É interessante verificar (ainda que Bratton e van de Walle o não refiram),
que Angola foi porventura o primeiro país africano a encetar uma transição, S. Tomé
e Príncipe o primeiro Estado do Continente a declará-la, e Cabo Verde o primeiro a
executá-la de facto. Sem querer insinuar um qualquer excepcionalismo: ao que
parece, as independências dos países africanos lusófonos vieram tarde comparadas
com as dos vizinhos, mas as suas democratizações chegaram cedo.

116
por norma, como vimos, dado azo a formulações dicotómicas
marcadamente reducionistas.
Pela primeira vez, tornava-se pensável mudar de
patamar epistemológico, anunciando assim porventura uma
mudança crucial de paradigma. As razões para essa
oportunidade são talvez, no essencial, formais. Com a
emergência paralela de imagens teóricas de Estados dotados
de autonomia e de sociedades com eles profusa e
profundamente articuladas, estavam como que gizados os
palcos metodológicos em que se tornava possível equacionar
não só a interdependência mas também a constituição
recíproca destas duas entidades. Um inesperado patamar, um
plano de análise muitíssimo mais assumidamente relacional,
podia por fim ser ocupado.
Não foi esse novo acento tónico nas relações entre
Estados e sociedades, agora pensáveis em simultâneo, o único
factor de mudança nos quadros interpretativos. O que não é
surpreendente: toda uma nova topografia se apresentava a
carecer de um levantamento adequado. Cartografar as suas
minudências impunha-se. E isso começou a ser feito. Nas
suas versões mais recentes, os investigadores, com alguma
ambição analítica, têm tentado ir mais longe do que o foram
os “pais fundadores” que se limitaram a asseverar a
inseparabilidade da parelha Estado-sociedade: para além
dessa interligação dinâmica têm esboçado fascinantes
análises pormenorizadas147 da maneira como, nos contextos
africanos pós-coloniais e na tantas vezes sublinhada ausência
de fronteiras nítidas, rígidas, eficazes e consensuais entre
sociedade e Estado, a delimitação entre o “público” e o
147
Têm-no feito autores como Martin Chanock (1985), Jean-François Bayart (1989),
Mahmood Mamdani (1996) e Patrick Chabal (199 ) e J. Migdal (2002). Este tema,
seguramente dos mais ricos em implicações metodológicas, consequências teóricas e
reconconfigurações epistemológicas no contexto dos estudos políicos africanos pós-
coloniais, é porventura o plano de análise que melhor permite a delineação de uma
interface não-reducionsta entre Estado, sociedade e Direito. J. Migdal (2002, op. cit:
116-135), decerto o Autor que foi mais longe nesta teorização, oferece-nos mesmo
um gradiente do que apelida “the junctures of states and societies” e que corre da
sociedade às “trenches” aos “dispersed field offices” às “commanding heights”, em
termos de diversas dimensões em simultâneo.

117
“privado”, entre o estatal e o sociocultural, entre o Direito
estadual e o “consuetudinário”, é uma separação-distinção
construída, mantida e reproduzida em formatos cada vez mais
formalizados e (na precisa medida em que o Estado vai
logrando erigir-se em entidade autónoma) segundo linhas
divisórias cada vez mais estáveis148.
É nessa frente viva de análise que as investigações
contemporâneas se movem e posicionam. E seria um erro
não reconhecer o alcance daquilo que tem vindo a redundar
numa profundíssima e muito inovadora alteração de
perspectiva. Note-se, por exemplo, que os estudiosos cada
vez menos presumem a existência de uma qualquer unidade
no “Estado” ou na “sociedade” nos casos empíricos que
estudam. Uns vêem nisso o resultado e o motivo para a
mudança de paradigma, outros atêem-se a críticas mais
avulsas de algumas das formulações anteriores mais
habituais.
Uma só ilustração bastará por todas. James
Ferguson149, por exemplo, frisou no seu excelente estudo
crítico sobre as “políticas de desenvolvimento” no Lesotho,
cientistas e economistas políticos criaram um puzzle150
quanto à natureza do Estado pós-colonial africano, um
imbroglio que torna quase irresolúvel a seguinte questão: terá
este “demasiado poder”, ou “poder insuficiente”? Os
analistas parecem com efeito divididos entre estes dois pólos,

148
Como resulta evidente para um qualquer observador atento da progressão-extensão
histórica de institutos e instituições políticas, administrativas e jurídicas, é justamente
de par com essa separação-distinção que (por intermédio de rituais, edifícios, leis e
medidas polítcas) o Estado vai logrando escavar, que a sociedade” se constitui como
uma espécie de “outra margem” desse processo de autonomização.
149
James Ferguson (1994). Esta monografia minuciosíssima de Ferguson sobre um
projecto concreto de “desenvolvimento” e as suas conotações e implicações ao nível
da implantação local do Estado no Lesotho ir-se-á seguramente transformar num texto
clássico de uma variante deste novo tipo de perspectivações a que o novo paradigma
emergente tem dado fôlego.
150
Op. cit. : 271-272.

118
ora151 insistindo no seu “sobre-desenvolvimento” resultante
das assimetrias dos Estados coloniais repressivos que lhes
deram origem, ora152 salientando antes a sua fraqueza e
ineficácia face a sociedades civis enganadoramente coerentes
e a ele contrapostas.
As tendências recentes, não será descabido asseverar,
têm sido de concordar com J. Ferguson quando este afirma,
citando Michel Foucault e Gilles Deleuze, que “the state is
not an entity that “has” or does not “have” power, and state
power is not a substance possessed by those individuals and
groups who benefit from it. The state is neither the source of
power, nor simply the projection of the power of an
interested subject (ruling group, etc.). Rather than an entity
“holding” or “exercising” power, it may be more fruitful to
think of the state as instead forming a relay or point of
coordination and multiplication of power relations”153. A
generalização é significativa: nos novos palcos
paradigmáticos, mesmo reperspectivações avulsas redundam
em muitos casos em reformulações maiores que relançam os
dados.
Em consonância com esta perspectiva, tende-se em
cada vez mais das análises contemporâneas a preferir alusões
ao “poder do Estado”, à “dimensão administrativa estatal”,
ou às “elites posicionadas no Estado” em vez de aludir pura e

151
Eg, Charles Tilly, 1992. Escusado será insister na riqueza analítica e no alcance
deste tão influente trabalho de Tilly. As posições adoptadas por Michael Mann, ainda
que mais gerais e fundadas num enquadramento de partida diferente, parecem
convergir de maneira interessante com a leitura de Tilly sobre a “pós-colonialidade”
dos Estados africanos de hoje.
152
Eg, P. Geschiere, 2001, ou T. Sanders, 2001. Esta tónica é comum a muitos aitores
que se auto-qualificam como “pós-modernos”, entre os quais, no que diz respeito à
África contemporânea, avultam os já citados John e Jean Comaroff, dois norte-
americanos sediados na Universidade de Chicago.
153
Op. cit.: 272. Para Ferguson (seguindo aliás de perto G. Deleuze) o “Estado” seria
melhor concebido como uma “machine” de localização, articulação, multiplicação e
desdobramento de nexos de poder em rede do que como um organismo, um aparelho
coeso, ou uma instituição nos sentidos tradicionais em que estes termos são utilizados
nas analíses sócio-políticas.

119
simplesmente ao “Estado”; o intuito é o de sublinhar a
dimensão adjectiva sobre a substantiva daquilo que é
cartografado. Por outro lado, os investigadores têm vindo
cada vez mais a fazer questão de tornar evidentes as fracturas
patentes dentro tanto do “Estado” como da “sociedade civil”,
e as interpenetrações e processos de constituição recíproca
manifestos entre ambos estes domínios ou nexos de
relações154.
Tanto o Estado como a sociedade civil, nas leituras
mais recentes, são assim por exemplo muitas vezes
abordados como “nexos de poder” profundamente inter-
relacionados, mesmo quando essa interacção é sobretudo
“negativa” ou, tal como é cada vez mais commumente
encarada por isso corresponder à realidade política de facto
patente em África, “uma presença de uma ausência”. E a
normatividade estatal (jurídica ou outra) tende, de maneira
característica e nos termos de uma reconfiguração relacional
paralela e em muito semelhante, a ser encarada e destrinçada
como um produto das lutas, tensões, e negociações que
resultam da interacção e dos esforços de supremacia, uns em
relação aos outros desses nexos de poder: uma das dimensões
em que eles se articulam, no contexto de diálogos-
transacções ora culturais ora instrumentais, que caracterizam
esse domínio de normatividade.
Nos novos plateaux de análise em que se movem os
estudiosos a antiga dicotomia não redunda em mais do que
em pontos de referência de mero valor indicativo, sem
apresentar quaisquer verdadeiras valências operacionais.

154
Para além de conceitos, já referidos e hoje em uso comum, como o de shadow state
ou o de shell state, convém aqui aludir ao apport que este tipo de reperspectivaçção
tem vindo a significar no que diz respeito aos PALOP. Gerhard Seibert (2000, op.
cit.) e A. L. Correia e Silva (2001, op. cit., logo nas suas primeiras páginas)
relativizam nos seus estudos o conceito de Estado, fragmentando-o, respectivamente a
respeito de S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde. Em ambos os casos, aquilo que está em
causa é um autêntico descentramento da ideia de Estado, substituído no primeiro
exemplo por “redes informais” de parentes e amigos, e no segundo por um anti-
“institucionalismo” programático, aliás não plenamente seguido. Num sentido
paralelo mas de modo menos directa e mais informal e implicitamente, Boaventura de
Sousa Santos (2003, op. cit., no artigo de abertura) caminhou na mesma direcção na
sua delineação do “Estado heterogéneo” em Moçambique.

120
4.6. OS ESTADOS E OS DIREITOS AFRICANOS ENTRE O
INTERIOR E O EXTERIOR

Antes de nos voltarmos para as implicações que


decorrem de um reperspectivar das dinâmicas sociais e
políticas africanas (incluindo os complexos normativos que
aí vigoram) nestes termos, acrescentemos àquilo que acabei
de discutir outra camada, por assim dizer, de considerandos.
Desta feita, proponho que nos debrucemos rápida e
brevemente sobre o peso relativo que têm factores externos
na progressão-evolução das coisas no Continente.
Uma leitura da bibliografia existente, ainda que
cursória e mesmo se feita apenas de relance, põe claramente
em evidência a propensão, compreensível, de muitos
investigadores em tomar em especial consideração tais
factores: como escreveu Jean-François Bayart155, “[en
Afrique] les ‘dynamiques du dehors’ ne sont pas vraiment
séparables de celles ‘du dedans’ et l’État postcolonial est
produit à leur point d’interférence”. Por maximalista que nos
possa parecer esta formulação, a sua pertinência é iniludível.
Não é preciso muito afinco intelectual para concluir
que, efectivamente, “dinâmicas exteriores” têm tido uma
enorme importância nos casos africanos. Importa, porém,
saber evitar excessos na ponderação de factores externos nas
mecânicas explantórias que postulamos relativamente às
dinâmicas africanas contemporâneas. Alguns dos autores que
sobre estes temas se têm vindo a preocupar têm querido
insistir numa espécie de determinação externa, mais ou
menos difusa, que sobre esses processos actuaria, o que me
parece claramente exagerado. Urge, por conseguinte,
encontrar para tais factores o seu lugar devido.
Uma tendência comum, tributária das variantes mais
marxizantes das dependency theories a que atrás fiz alusão, é

155
Jean-François Bayart, 1989, op. cit.: 14.

121
decerto a de equacionar as pressões externas actuantes como
dominantes e muitas vezes enquanto resultado de uma
supremacia última das relações económicas que com tanta
nitidez pautam os relacionamentos complexos entre os novos
Estados africanos pós-coloniais e o sistema internacional em
que se integram. Para outros, todavia, os laços de
dependência teriam raízes no essencial políticas, e
reflectiriam a posição de subordinação em que, por uma ou
outra razão, estes Estados se encontram. Outros há que
insistem, ao invés, numa configuração de subalternidade
cultural, que redundaria numa dominação hegemónica do
“Ocidente” sobre eles. Em todos os casos, factores exógenos,
chame-se-lhes isso, aparecem posicionados como se tratando
de peças cujos papéis são preponderantes nas teorizações
levadas a cabo quanto às dinâmicas observáveis no
Continente.
Com o intuito de melhor poderar o peso relativo de
factores endógenos e de factores exógenos, irei mais uma vez
esmuiçar exemplos angolanos que considero paradigmáticos
da “mecânica causal” discutida. Começo por abordar
questões políticas. Volto-me, depois, para questões jurídicas.
Nos dois conjuntos de exemplos, aquilo que está em causa é
tentar apurar o doseamento relativo de factores internos e
externos nas reconstruções racionais propostas. A minha
escolha de Angola como ilustração não será difícil de
compreender: de todos os PALOP, Angola e a Guiné-Bissau
são seguramente os exemplos mais nítidos do jogo desses
dois tipos de factores; e Angola é indubitavelmente o caso
relativamente ao qual há mais informação e melhor
disponível.
Começando então pelos processo políticos angolanos
pós-coloniais, cabe aqui um breve esboço de um background
histórico ponderado. Os primeiros tempos da nova República
Popular de Angola foram marcados por uma rápida
degradação de uma situação política e militar conjuntural que
logo à partida, a 11 de Novembro de 1975, já não era muito
famosa. Justificavam-no não só as dissensões internas

122
existentes156, mas também as conjunturas geopolíticas
externas, tanto no plano regional como no internacional, em
que Angola se via embrenhada157. A vizinhança
relativamente a uma África do Sul, poderosa tanto económica
como político-militarmente, formava uma das suas parcelas.
A presença de inúmeros minérios estratégicos no seu
território, outra. O posicionamento do novo Estado numa
rede local de distribuição-localização de recursos, e numa
zona-chave do Atlântico sul e do continente africano,
configuravam de maneira suplementar essa marcada
centralidade regional e global. Se é indubitável que, de um
ponto de vista geográfico e do seu desenvolvimento, Angola
estava relegada a uma das periferias da ordem internacional
então instalada, não deixa de ser verdade que, de um ponto
de vista político-militar, o novo Estado se assentou, pelo

156
Seria porém um erro reduzir estas separações intestinas à luta inter-partidária. As
divisões existiam também dentro do MPLA. Para uma discussão pormenorizadíssima
destas clivagens internas a nível do próprio partido no poder, ver J.-M. M. Tali
(2001).
157
Neste mesmo dia 11 de Novembro de 1975, a FNLA e a UNITA proclamaram a
independência, na cidade do Huambo, da República Democrática de Angola; de par
com a RPA, foi assim criada uma RDA. Essas proclamações foram pre-emptivamente
precedidas por uma declaração portuguesa da independência de Angola, lida a 10 de
Novembro (a véspera) às 12,00 horas, pelo Alto Comissário português, Leonel
Cardoso: “Em nome do Presidente da República Portuguesa proclamo solenemente –
com efeito a partir das 0 horas do dia 11 de Novembro de 1975 – a independência de
Angola e a sua soberania, radicada no povo angolano, a quem pertence decidir das
formas do seu exercício”. Um grande número de Estados (liderados pelo Brasil)
apressou-se a reconhecer a Angola cuja independência fora declarada pelo Governo
do MPLA, o mesmo não se tendo passado com as proclamadas pelos outros
movimentos. Posição ambígua foi porém a inicialmente assumida pela OUA. O
problema vinha de trás. Sem músculo nem autoridade suficientes (e convenhamos que
teriam sido precisos bastantes), a OUA pura e simplesmente não logrou uma
coligação dos três movimentos armados angolanos (como o estipulava o “Comité de
Libertação” da organização antes de formalmente apoiar a FNLA), o que deixou aos
Estados membros a discricionaridade para reconhecer, em alternativa e nos termos
canónicos, ou aquele que ocupasse a capital, Luanda (J. Herbst, 2000, op. cit.: 110)
ou, seguindo um infeliz precedente estabelecido em 1966, no Gana (quando o peso-
pesado Joshua Nkrumah foi vítima de um golpe de Estado num momento em que se
encontrava fora da capital), qualquer um dos agrupamentos em contenda. Quando em
finais de 1975, face à vitória efectiva do MPLA sobre os seus adversários, a
organização se decidiu finalmente por um apoio a este, o mal estava feito e os Estados
membros estavam divididos em alianças com movimentos angolanos que passaram
com rapidez à “clandestinidade” (cf. D. Birmingham, 2002, op. cit.: 147).

123
contrário, num lugar central relativamente aos processos que
sobre aquelas agiam.
A coalescência dessas várias coordenadas tinha
implicações profundas para o equilíbrio das relações entre as
duas superpotências que então contracenavam nos palcos
globais em formação, cujo papel era fulcral na ordenação do
sistema internacional. Tudo isso fez com que Angola
desempenhasse um papel geo-estratégico importante durante
os anos 80 e 90, indissociável do contexto geral da Guerra
Fria bipolar que então se vivia.
Com efeito, o novo Estado ir-se-ia rapidamente
transformar no palco de uma das tristemente célebres, mais
violentas e mais prolongadas “guerras de substituição”
(proxy wars) que caracterizaram os cenários do interlúdio
bipolar da ordem internacional do pós-2ª Guerra Mundial. As
frentes, interna e externamente, eram muitas. Mas a
determinação do partido único no poder em Luanda no que
toca a essas várias frentes ir-se-ia revelar inabalável: a
teimosia das novas autoridades angolanas em tentar fazer-
lhes face não esmoreceu.
Numa primeira fase, o sucesso governamental parecia
assegurado. Impulsionado por uma forte ajuda
“internacionalista” cubana, e contando com o apoio de
conselheiros militares soviéticos e leste-europeus, o Estado-
MPLA infligiu, logo em 1975 e 1976, pesadas derrotas
militares à UNITA e FNLA; o que permitiu ao partido no
Governo, pelo menos inicialmente, assegurar o controlo de
grande parte do país. Esta intervenção foi paralela a outras,
uma delas zairense, uma segunda sul-africana, e uma última
norte-americana158. Algumas dessas ingerências duraram
mais do que outras; todas tiveram consequências pesadas.
158
A guerra civil angolana tomou proporções inusitadas a partir do momento em que
forças zairenses e sul-africanas entraram no país em apoio dos beligerantes. Na
verdade, a África do Sul interveio em auxílio das forças da UNITA e da FNLA,
invadindo o sul de Angola em Agosto de 1975, avançando em Outubro e Novembro
tanto pelo litoral como pelo interior e chegando até cerca de 200 Km de Luanda. Dois
batalhões do exército regular sul-africano, denominados “Zulu” e “Foxbat”, num total
de seis mil homens, equipados com carros blindados e beneficiando de apoio aéreo,
progrediram, em Outubro de 1975, respectivamente pela costa e pelo interior,

124
Em qualquer o caso, a vida do jovem Estado
prosseguiu. As conjunturas gerais não soavam decerto a
excessivamente desfavoráveis, para os ouvidos do Governo
de então. Suspensa a intervenção (ou pelo menos a
ingerência “legal” e directa) dos Estados Unidos da América
(na sequência da aprovação, pelo Congresso norte-
americano, da célebre Emenda Clark, que impedia o apoio a
qualquer uma das facções angolanas), e rechaçadas ou
contidas as forças sul-africanas e zairenses, parecia livre o
caminho para o partido único, o MPLA, assumir um controlo
pleno do recém-criado Estado.
No entanto, tal não iria ser fácil. Nem iria revelar-se
célere. Dos dois outros movimentos concorrentes na luta
anti-colonial, apenas a FNLA fora erradicada do mapa
político-militar159; uma vez que a UNITA, onde começava a
despontar a liderança carismática de Jonas Malheiro
Savimbi160, desde logo iniciou uma guerra de guerrilha em
ocupando sucessivamente, à medida que se deslocaram para Norte, as principais
cidades; foram parados em Kifangondo, numa batalha que contou com uma
intervenção decisiva da artilharia cubana. Por sua vez, o exército zairense invadiu em
simultâneo o norte, em apoio da FNLA; foi rapidamente desbaratado, mais uma vez
com apoio cubano, e bateu em retirada de regresso ao então Zaire. Mas o conflito ir-
se-ia contiunuar a internacionalizar. Por forma a reequilibrar o jogo de forças entre os
movimentos de libertação, Cuba enviou milhares de soldados para Angola, sobretudo
a partir de Outubro de 1975. Uma escalada começara em que os números falam por si.
Até à data da independência, cerca de três mil soldados cubanos chegaram ao país.
Desde Agosto anterior, estavam em Angola cerca de quinhentos instrutores militares
cubanos, duas centenas dos quais treinavam, em CIRs (Centros de Intrução
Revolucionária), “recrutas” angolanos ligados ao MPLA. Em meados dos anos 80, as
forças expedicionárias cubanas em Angola (as famosas auto-apelidadas “tropas
internacionalistas”) totalizavam mais de 50 mil homens. É ainda importante não
esquecer o permanente apoio que as superpotências da altura, os EUA e a URSS,
forneciam às partes em contenda. Para maior desenvolvimento, vd. John Stockwell
(1978) e T. Hodges (2002), pp. 26 e 27.
159
Especialmente depois do regime do Zaire (hoje Congo), dirigido na altura por
Mobutu Sese Seko, ter normalizado relações com o Governo de Angola em 1978.
160
O surgimento da UNITA como movimento de guerrilha na sequência da derrota
infligida pelo MPLA, na qual resultou a perda do Bailundo e do Andulo, foi apelidado
de recuo estratégico pelos seus dirigentes. Note-se ainda que o apoio da África da Sul
se traduziu na disponibilização de bases no norte da Namíbia, armamento e instrução
militar, o que fez com que a UNITA centrasse o seu comando de operações no
Cuando Cubango, as apelidadas terras do fim-do-mundo, onde mais tarde fundou a
Jamba, também conhecida como a capital das terras livres de Angola.

125
larga escala contra o Governo instalado na capital e nos
outros centros urbanos do recém-criado Estado angolano
independente.
Foi uma insurgência coerente e perigosa para o
controlo efectivo exercido pelo partido único governamental:
sustentada logisticamente pela África do Sul e
financeiramente apoiada nos Estados Unidos da América, a
UNITA depressa iria ocupar extensões enormes de um
território a que as autoridades estatais só com dificuldade
conseguiam acudir. O recém-criado Estado angolano, cedo
em deficit de facto tanto em termos de legitimidade como em
implantação, tinha inesperadamente pela frente uma tarefa
ciclópica. E, pelo menos enquanto a URSS existiu, viu-se
alinhado com o bloco liderado pelos soviéticos.
Algum cuidado é todavia imprescindível quanto à
estipulação que daí teriam resultado eventuais relações
lineares de hegemonia-dependência que, como poderemos
facilmente verificar, seriam injustificadas. As relações não
foram sempre boas, nem sequer podem ser encaradas como
tendo sido homogeneamente de relações de mera submissão,
como é tornado evidente por questões como a tensão
desencadeada durante e após um 27 de Maio de 1977161, e
por numerosas questiúnculas avulsas que se foram
acumulando. O que por si só lança dúvidas quanto à
procedência do “monismo explanatório” sempre de uma ou
de outra maneira implícito em explicações “externalistas”,
quaisquer que sejam as suas linhas de força principais.
Para lá destes avanços e recuos “microscópicos”,
poder-se-á, no entanto, postular de modo convincente uma
supremacia “macro” de factores externos em Angola?
Entrever as coisas num enquadramento mais genérico tem

161
A tristemente célebre movimentação “fraccionista” de Nito Alves, apoiada pela
URSS e que deu origem a uma primeira grande depuração “pró-Agostinho Neto” nas
fileiras do MPLA, então partido único. Noconlito entre “Nitistas” e “Netistas”, a
URSS apoiou inicialmente Nito Alves, talcomoaliás o fez também o Partido
Comunista Português. O Primeiro-Secretário da Emaixada soviética em Luanda
reputadamente suicidou-sequando os cubanos decidiram apoiar A. Neto. A tensão nas
relações bilaterais manteve-se durante algum tempo.

126
óbvia utilidade, quanto mais não seja pelo efeito de revelação
que produz.
Comecemos por um ponto cujo alcance é sobretudo de
método. Durante a 1ª República, a aparente posição de
subordinação da República Popular de Angola face à União
Soviética, bem como a sua posição de subalternidade
política, económica e militar em relação tanto a esta como
aos Estados Unidos da América, significaram, por via de
regra, que as análises das relações entre o país e as
superpotências tomassem sempre como ponto de partida (e
como linha de chegada) a superpotência em causa, em
detrimento do lado angolano da ligação. A margem de
manobra de Angola era, ou ignorada, ou de forma implícita
tida como sendo reduzidíssima. O que redunda num
reducionismo que ignora a evidência de que, como escreveu
recentemente Patrick Chabal162, no caso de Angola como no
dos outros PALOP, “any proper understanding of their place
in the international system must analyse their foreign policy
in terms of their own historical development”, sem se ater
apenas à dos seus parceiros ou às posturas, porventura mais
pró-activas que estes possam assumir. O que, por sua vez,
resulta numa gravosa subalternização do papel preenchido,
neste caso, pelas entidades angolanas envolvidas no
processo, que subtilmente as minoriza.
Podemos abordar a questão que aqui suscito de um
ponto de vista ligeiramente diferente. O parcialismo patente
nas (de qualquer maneira poucas) análises levadas a cabo,
tem resultado em mais do que numa mera produção de
meias-verdades. O ponto a destacar é que para além disso
esse viés tem tido implicações heurísticas sérias. Implicações
essas que são bastante fáceis de equacionar: como bem nos
alertou Christopher Clapham163, preocupado com um quadro
continental mais geral, “one result of this emphasis was that
the contours of the Afro-superpower relationship from an
162
Patrick Chabal, 2002, op. cit.: 73.
163
Christopher Clapham, 1996: 135-136.

127
African perspective were often neglected, or reduced to the
sterile formula of African independence versus superpower
imperialism”. Enunciada assim a questão, não estamos muito
longe daquilo que Chabal escreveu e que antes citei. A essa
simplificação adicionam-se porém quantas vezes uma
omissão metodológica muitíssimo grave.
Importa salientar (o que, aliás, Clapham também fez)
que, dada a relativa falta de importância de África para as
superpotências, a margem de manobra dos Chefes de Estado
e dos Governos africanos nas suas relações com os dois
líderes da bipolarização era grande. Nas palavras de
Clapham164, “for African rulers, the superpowers could [...]
be regarded very largely as a resource”, um recurso a ser
instrumentalizado nas suas contendas domésticas pelo
controlo do poder. E histórias de manipulação instrumental
desse “recurso” não faltam, no progredir da política pós-
colonial de muitos dos novos Estados africanos.
Encarar as coisas desta perspectiva mais “biunívoca”
tem consequências imediatas e interessantes. Ao contrário
daquilo que é ainda muitas vezes o senso comum, torna-se
por exemplo óbvio que os “superpowers did not impose
themselves on Africa, nearly as much as they were sucked
into it through the search for competing forces within the
continent for external resources through which they could
pursue their internal rivalries”. Um ponto que passa
despercebido a quem se atenha ao parcialismo que acima
expuz.
Neste sentido menos reducionista, pelo contrário,
torna-se ainda claro que a relação dos Estados africanos (e
nomeadamente a Angola que, como insisti, nos oferece um
caso paradigmático disso mesmo), com as superpotências na
época bipolar nos fornece um exemplo clássico da chamada
“política de extraversão”, um conceito, (segundo por
exemplo C. Clapham e Jean-François Bayard165) central para
164
Ibid., op. cit.: 139.
165
Cf. Christopher Clapham e Jean-François Bayard, 1989.

128
a inteligibilidade do funcionamento dos Estados africanos
pós-coloniais. Contra alguma “sabedoria convencional”, que
em contrapartida, repito, tende infelizmente a esquissar as
relações de Angola (e, aliás, a de quaisquer outros países do
chamado “Terceiro Mundo”, ou da “periferia”, na versão
wallersteiniana) com as superpotências, de maneira muito
redutora e bastante abusiva e “infantilizante”, como tendo
estado indexadas num “imperialismo” voraz e expansionista
destas últimas, ou numa situação de uma qualquer simples
“periferização”.
O salto não é grande dessas pré-compreensões para
generalizações (tão abusivas e descabidas quão convincentes
para aqueles que partilham visões reducionistas, e mais ou
menos deterministas, quanto à ordem internacional
contemporânea) sobre as pressões a que tem sido sujeito o
“jurídico” nessas zonas de um Mundo em época de
globalização acelerada. Um só exemplo bastará, relativo a
uma teorização recente tributária das formulações
“dependentistas”, as fascinantes deambulações de
Boaventura de Sousa Santos166 sobre o Direito e o “Estado
heterogéneo”, como apelidou o de Moçambique.

166
E.g. Boaventura de Sousa Santos, 2003, op. cit.,: 67-69. Em páginas fascinantes
relativas ao que apelida “o pluralismo jurídico interno em Moçambique” (que antes
definira como “uma situação de extrema heterogeneidade no interior do direito
estatal” (ibid: 62), Sousa Santos alude a “uma [sua] outra vertente [...] que resulta das
fortes pressões da globalização hegemónica a que Moçambique tem estado sujeito.
Trata-se [...] do impacto do global no local e no nacional, em condições em que nem o
local nem o nacional podem endogeneizar, interiorizar, adaptar e muito menos
subverter as pressões externas”. Segundo este A., “nestas condições, tais pressões,
porque muito intensas e selectivas, provocam alterações profundas em algumas
instituições e em alguns quadros legais, impondo-lhes lógicas de regulação muito
próprias, ao mesmo tempo que deixam outras instituições e quadros legais intocados
e, portanto, sujeitos sujeitos às suas lógicas próprias”. Nos termos deste
enquadramento, Boaventura Sousa Santos contrasta “o sector do direito económico e
financeiro” com “o sector do direito da família”, dele “fragmentado” e “segmentado”
(ibid.: 68). O primeiro seria fortemente ”transnacionalizados” e os segundos
“nacinalizados”, devido aofactode ser “pouco importante para as forças
transnacionais”. Esta disjunção e a consequente heterogeneidade (ou “segmentação
jurídico-institucional”) resultariam do lugar estrutural “periférico” que Moçambique
ocupa no “sistema capitalista internacional”.

129
Não quereria pronunciar-me relativamente a uma
realidade jurídica, política e institucional, o Direito
moçambicano, que Sousa Santos com toda a probabilidade
conhece melhor do que ninguém. Cumpre no entanto alertar
para o facto de que essas pressões externas e essa dinâmica
de mudança por elas causadas não se exercem inteiramente
da maneira em que tal se verificaria caso resultassem, como
Sousa Santos assevera, do mero posicionamento “periférico”
de Moçambique no sistema internacional. Os factos assim o
demonstram. Em Angola, cuja posição (apesar do petróleo e
dos diamantes que nopaís abundam) está também firmemente
localizada na “periferia” do “sistema mundial”, o panorama
jurídico-político, ou jurídico-institucional, se assim se
preferir equacionar as coisas, pelo menos nas frentes
aludidas, é muito diferente; e é-o de uma maneira que põe
seriamente em cheque a generalização teórica formulada167.
As transformações jurídicas pós-coloniais que têm tido
lugar ao nível do Direito angolano da Família têm sido, em
muitos sentidos, mais importantes do que aquelas que têm
ocorrido no plano do Direito económico e financeiro:
precisamente o inverso daquilo que se tem passado em
Moçambique e que a interpretação-generalização teórica
“dependentista” que resumi visa explicar. De modo a melhor
evidenciar tanto esta progressão como os limites de modelos
que postulem determinações externas lineares sobre o
desenvolvimento de processos jurídicos pós-coloniais, vale a
pena pormenorizar q.b. algum do caso relativo ao Direito
angolano pós-colonial. Como iremos ter a oportunidade de
verificar, o enovelamento existente é tal, e de tal maneira
complexo, que se torna pouco convincente qualquer
modelização que insista num contraste entre pressões
exercidas por “agências multinacionais” e aquelas exercidas
por “elites nacionais e locais”.

167
Ver, para todos estes pontos, A. Marques Guedes et al., op. cit.: 2003, sobretudo a
introdução.

130
Durante todo o período colonial, o Direito em vigor em
Angola foi sobretudo (pelo menos nas áreas sob a alçada do
Estado) o Direito português. Nalguns casos, para algumas
das muitas populações do território, as “práticas
‘consuetudinárias’ tradicionais” eram nominalmente
reconhecidas. Mas eram poucas e raras as instâncias em que
isso efectivamente ultrapassava o nível da mera declaração
de intenções.
A hegemonia (ou pelo menos a preponderância
inquestionada) do Direito português naturalmente não
sobreviveu à independência angolana168. Quando a 11 de
Novembro de 1975 foi proclamada a República Popular de
Angola entrou em vigor uma Lei Constitucional para o novo
Estado, que o definia como uma entidade soberana,
independente e democrática. Nesse mesmo ano, entrou
igualmente em vigor a primeira Lei da Nacionalidade,
através da qual foi concedida a nacionalidade angolana a
todos os indivíduos nascidos em Angola ou no estrangeiro,
desde que filhos de mãe ou pai angolanos. Estes momentos
consagraram uma ruptura.
O próprio texto da Lei Fundamental traçava as novas
linhas de falha, bem como as continuidades. Com efeito, a
Lei Constitucional angolana de 11 de Novembro de 1975
continha uma norma de recepção material no seu artigo 84º,
por meio da qual as leis e regulamentos do ordenamento
jurídico português em vigor em Angola à data da
independência nacional continuaram em vigor "…enquanto
não forem revogados ou alterados e desde que não
contrariem o espírito da presente lei e o processo
revolucionário angolano". Evitou-se assim o vazio jurídico
que, de outra forma, se seguiria à proclamação do novo
Estado; tendo-se, no entanto, acautelado a possibilidade do
recurso à declaração de inconstitucionalidade daquelas
disposições legais que pudessem de alguma forma estar em

168
Agradeço a Carlos de Freitas, Professor da Faculdade de Direito da Universidade
Agostinho Neto, em Luanda, pelos dados de pormenor que se seguem quanto à
progressão pós-colonial, em Angola, do Direito Económico e do Direito da Família.

131
contradição com os fundamentos e o "espírito" da então
recém-criada República Popular de Angola.
É certo que ainda hoje, transcorridos que são quase
trinta anos sobre a data do nascimento do Estado que agora
se intitula de a República de Angola, muitas das leis e
regulamentos de fonte portuguesa se mantêm em vigor169.
Não é, contudo, menos verdade que desde os primeiros
momentos da sua existência como Estado, em Angola se tem
vindo gradualmente a dar corpo a profundas alterações, que
têm redundado na criação de um quadro jurídico próprio.
Essas modificações não têm, contudo, sido homogéneas.
As alterações foram de início (e, em boa verdade, na
Angola pós-colonial têm sempre sido) sobretudo levadas a
cabo ao nível do Direito Público. A produção legislativa dos
primeiros anos visou, em essência, matérias relacionadas
com a protecção da soberania e da independência nacionais e
com a estruturação do Estado, tal como então este fora
ideologicamente projectado. Foi assim que se assistiu, logo
no ano de 1976, por exemplo (e sem pretendermos ser
exaustivos), à “nacionalização” do ensino, ao confisco do
Banco de Angola e de Bancos comerciais, à aprovação das
leis relativas às nacionalizações e confiscos de empresas e do
património imobiliário.
Não foram essas, porém, as únicas frentes “políticas”
de inovação jurídica pós-colonial em Angola. A repressão ao
crime (o que incluía alguma redefinição do âmbito deste
conceito) conheceu igualmente nesta fase uma atenção
particular. Foram aprovadas leis que introduziram novos
tipos de crime: por um lado, como aconteceu com a
aprovação da Lei sobre a Prevenção e Repressão do Crime de
Mercenarismo (Lei nº 4/77, de 25 de Fevereiro); e, por outro
lado, foram retomados e adaptados às circunstâncias
específicas de Angola, vários tipos de crime já previstos,
nomeadamente no Código Penal Português, como aconteceu

169
Veja-se, a título de exemplo, o Código Civil português de 1966 (excepto o livro da
família) e o Código Penal português de 1888.

132
com a entrada em vigor da Lei dos Crimes Contra a
Segurança do Estado - Lei nº 7/78, de 26 de Maio.
Essas inovações não eclodiram naturalmente sòzinhas.
A organização judiciária conheceu de igual modo em Angola
alterações profundas. Cabe destacar-se aqui a criação dos
Tribunais Populares Revolucionários (pela Lei nº 8/78, de 26
de Maio) destinados a julgar “crimes contra a segurança do
Estado”, “crimes de mercenarismo”, “crimes de guerra e
contra a Humanidade”, mas que tinham o poder de avocar
quaisquer processos por crimes que, pela sua natureza,
qualidade dos agentes, repercussão social e dano causado aos
interesses fundamentais do Estado, o tribunal entendesse
julgar. Os Tribunais e a Procuradoria Militares foram
institucionalizados em 1978, e nesse mesmo ano foi aprovada
a Lei dos Crimes Militares. Com o andar das coisas na
Angola pós-colonial, esta disseminação judicial não iria
durar. Com a institucionalização do Sistema Unificado de
Justiça (instaurado pela Lei nº 18/88, de 31 de Dezembro) o
Tribunal Popular Revolucionário da Província de Luanda, o
único que acabou por ser constituído (e que acabou por
projectar a sua acção ao conjunto do território nacional
angolano), foi convertido na Sala dos Crimes Contra a
Segurança do Estado do Tribunal Provincial de Luanda.
Logo de início, o domínio da organização dos órgãos
locais do Estado pós-colonial mereceu, do mesmo modo,
uma particular atenção. De 1975 a 1981 houve uma evolução
administrativa que começou com a autonomia local e
terminou com o centralismo democrático (nomeadamente
com a Lei nº 7/81, de 4 de Setembro, mais tarde revogada
pela Lei nº 21/88, de 31 de Dezembro, que instituiu os
Órgãos Locais do Estado, regulamentando as disposições
constitucionais a isso relativas). Verificaram-se também aqui
recentemente actualizações, primeiro através do Decreto-Lei
nº 3/99, de 25 de Fevereiro, que estabeleceu a estrutura e
composição do Governo da República de Angola, do
Decreto-Lei nº 17/99, de 29 de Outubro, que veio aprovar a
nova orgânica dos Governos Provinciais e das

133
Administrações dos Municípios e das Comunas e do Decreto
nº 27/00, de 19 de Maio, que aprovou o Regulamento e o
Quadro de Pessoal dos Governos das Províncias e das
Administrações, dos Municípios e Comunas170.
Ainda no domínio público, houve mais. Com a
independência e dadas as opções político-ideológicas desde
cedo assumidas pelo novo Estado angolano soberano, o
sector empresarial do Estado foi também objecto de
tratamento jurídico adequado com a aprovação do regime
específico das Unidades Económicas Estatais ("UEE")
contida na Lei nº 17/77, de 15 de Setembro. Essas alterações,
por sua vez e no entanto, depressa se veriam, elas próprias,
alteradas. Com a emergência da chamada 2ª República em
Angola, muito iria, também nessa frente, mudar. A matéria
viria a beneficiar de actualizações em 1988 e 1995, por via
das Leis nº 11/88, de 9 de Julho (Lei das Empresas Estatais)
e nº 9/95, de 15 de Setembro (Lei das Empresas Públicas). O
investimento estrangeiro também não deixou de ser objecto
de atenção, tendo a primeira lei a ele consagrada sido
aprovada em 1979171. A lei do investimento estrangeiro
actualmente em vigor, é a Lei nº 15/94, de 26 de Julho.
Não foi só a esses níveis que as alterações no Direito
Público induzidas pela “transição democrática” em Angola se
fizeram sentir172. Importa frisar que, a partir de 1991,
mereceu tratamento legislativo uma série de outras matérias
“públicas” (consideradas como particularmente relevantes)
que não podemos deixar de aqui realçar. Tratou-se
nomeadamente das revisões constitucionais, da legislação
relativa às eleições, à nacionalidade, à administração pública,
170
Evolução que será sinteticamente enunciada e esmiuçada em mior pormenor na
primeira parte (a Parte I) da presente monografia.
171
Para uma tentativa de visão de conjunto da progressão normativa angolana neste
domínio genérico da economia, ver J. A. Morais Guerra (1994).
172
É curioso notar que as transformações do Direito Público começaram no domínio
da intervenção do Estado na economia e só depois se propagaram para o nível político
com a transição democrática, a partir de 1991. Alguns juristas angolanos
consideraram mesmo essas leis como materialmente inconstitucionais.

134
à impugnação dos actos administrativos e ao contencioso
administrativo, às associações, aos partidos políticos, ao
direito de reunião e de manifestação, ao estado de sítio e de
emergência, à imprensa, aos sindicatos e ao direito à greve.
Tais instrumentos jurídicos foram tidos, nos novos climas
políticos, como sendo cruciais para a defesa dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos, constitucionalmente
alicerçados.
Como antes referi, uma qualquer simples observação-
comparação impressionística (sempre a nível macro) do
espectro da produção legislativa do Estado angolano depressa
nos leva à conclusão, pacífica, de que o domínio de
intervenção privilegiado foi este, o do Direito Público; as
relações jurídico-privadas continuam basicamente a reger-se
pela legislação que se encontrava em vigor em Angola antes
da Proclamação da Independência. O que não será
surpreendente.
As alterações que a esse outro nível ocorreram não se
distribuíram, contudo, de maneira homogénea. Há que referir
os casos excepcionais que são o das relações jurídico-
laborais e jurídico-familiares. Mais uma vez tão-somente de
forma indicativa, comecemos pelo último destes âmbitos, o
das relações jurídico-familiares. A necessidade de proteger, à
luz dos novos princípios constitucionalmente consagrados, a
igualdade do género, de redefinir o regime do instituto do
casamento, da filiação e da adopção, entre outras questões,
foi motivo para que se aprovasse um Código da Família, logo
em 1988, que revogou toda a legislação sobre tais matérias
então em vigor, particularmente o Livro IV do antigo Código
Civil.
Excepcional, como indiquei, foi também o caso da
progressão-diferenciação do quadro normativo das relações
jurídico-laborais. O advento da 2ª República angolana, cujo
quadro jurídico-político foi esquissado na Lei Constitucional
revista em 1992, depressa levou também o Estado pós-
colonial em Angola a dar tratamento a matérias do sector
jurídico-privado que melhor se coadunasse com o novo

135
ambiente que na sociedade angolana se começava a viver.
Embora aí o processo tenha vindo a ser mais lento. É o caso
do Direito Comercial (mantém-se ainda, parcialmente, o
venerando Código Comercial português de 1888, e a Lei de
11 de Abril de 1901, que regula as sociedades por quotas)
cujos projectos de alteração foram aprovados na sessão de 20
de Maio 2003 da Assembleia Nacional. Já em 1981 fora
aprovada a primeira Lei Geral do Trabalho, a que se seguiu
uma enorme produção de diplomas complementares. A
desadequação evidente dos regimes fixados naqueles
diplomas relativamente aos fundamentos políticos,
ideológicos, económicos e sociais a que a 2ª República
angolana cedo se vinculou, levou a alterações profundas que
foram plasmadas na Lei nº 2/00, de 11 de Fevereiro.
Não seria difícil continuar com exemplos que
demonstram, para o caso angolano como para muitos outros,
que não tem cabimento a asserção segundo a qual a situação
de “dependência” e “periferização” (definidas, ademais, em
termos no essencial económico-financeiros) de algum modo
determinariam desenvolvimentos consentâneos (e, por isso
mesmo, assimétricos) nos ordenamentos jurídicos pós-
coloniais. Tal como não faz grande sentido a ideia de que
alguns sectores do Direito estadual estariam “sujeitos” a
pressões de “agências financeiras” capitalistas enquanto
outros, aoinvés, seriam deixados à mercê das elites locais:
muitas das alterações económicas resultaram de pressões
oriundas do antigo “bloco socialista” (ou da sua ideologia),
tal como, de resto, muitas das mudanças ao nível familiar
também; e menos sentido fariam ainda eventuais asserções
de que a regulamentação legal da economia e das finanças
tem sido intensa e a da família exígua, comoparece ter sido o
caso em Moçambique. A ordem internacional está marcada
por uma enorme interdependência; mas trata-se de uma
interdependência complexa, cujas traves-mestras não se

136
reduzem nem a quaisquer determinações lineares, nem a uma
mera hegemonia das relações económicas173.
É em todo o caso de sublinhar que, entre os PALOP,
designadamente, Angola parece ter uma posição privilegiada,
já que por via do petróleo existente no território que tutela
tem logrado escapar ao controlo (e muitas vezes até ao
escrutínio) de entidades postuladas como sendo cruciais para
uma implementação do Consenso de Washington, tais como
o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional; Angola
nunca se deixou submeter a “condicionalidades políticas e
económicas” e aos famigerados “Programas de Ajustamento
Estrutural” destas duas instituições de Bretton Woods174.
Podemos ir mais longe. Noutro sentido, tal como antes
asseverei, também a Guiné-Bissau parece escapar a essa
“periferização” e “dependência”; o seu pouco interesse
económico e estratégico coloca-a decerto mais naquilo que E.

173
A primeira discussão deste conceito fundamental para o estudo das relações
internacionais modernas data de inícios dosegundo quartel do século XX; ver Robert
Keohane e Joseph Nye (1977).
174
Em termos económico-financeiros, o “registo histórico” de Angola é efectivamente
pouco claro deste ponto de vista: desde finais dos anos 80, e depois de um longo
período em que pouca atenção prestaram a uma Angola que só após a crise dos preços
do petróleo de 1985-1986 começou, de maneira sistemática, a recorrer a dadores
internacionais, as instituições de Bretton Woods, nomeadamente o Banco Mundial e o
Fundo Monetário Internacional (FMI) a que Angola aderiu, na sequência do programa
de Saneamento Económico e Financeiro de 1987 (o precursor SEF), em 1989, têm
tentado, (sem grande sucesso, é verdade) impor exigentes condicionalidades
económicas e políticas aos apoios que concedem. Fizeram-no, por exemplo, depois de
programas de reforma por regra pouco rigorosos na concepção e na execução, no
início dos anos 90, em 1995, com o Programa Económico e Social (PES), em que o
FMI conseguiu finalmente negociar a sua monitorização. Em 1998, depois do
insucesso do célebre Programa Nova Vida de 1996, o Fundo tentou, sem o conseguir,
celebrar um novo acordo relativo à política de desvalorizações então tida por
imprescindível face à inflação galopante do annus horribilis de 1996 (embora o
Governo tenha então decidido liberalizar as taxas de câmbio que assim se
aproximaram das informais praticadas no “mercado paralelo”); num novo PES, este
para o ano de 2001, as negociações com vista ao reatamento da monitorização dos
programas económicos governamentais (tratava-se do 14º desde o SEF de 1987) pelo
FMI surtiram por fim efeito (T. Hodges, op. cit.: 156-186).

137
Wallerstein chamou a “arena externa” do “sistema mundial”
que delineou do que propriamente na sua periferia175.
Como pode facilmente ser verificado estamos muito
longe de generalizações causais que exijam enormes
alterações ao nível económico, por pressão de interesses
externos incontornáveis, e uma marcada indeferença em
relação ao Direito da Família. Há periferias e periferias. E,
coisa que os defensores de modelos dependentistas parecem
nunca querer tomar em consideração, em muitos sentidos,
como tem sido afirmado, nomeadamente por Michael
Mann176 e Joel Migdal177, “globalization actually also
empowers states”: em muitos casos entre outras coisas
oferecendo-lhes, mesmo a nível económico e por via da rede
complexa das interpendências variadas em que estão
embrenhados, margens de manobra que importa saber não
subestimar. Em conjunturas internacionais como aquela em
que hoje em dia vivemos é particularmente difícil arriscar
generalizações, por muito que elas se possam coadunar com
as nossas pré-compreensões.
Apetrechados com mais dados e com cuidados
suplementares, podemos agora regressar ao tema central
deste estudo introdutório.

5. IMPLICAÇÕES CONJUNTAS DESTE ESTADO DE


COISAS PARA O DELINEAR DE UMA DISCIPLINA DE
DIREITOS AFRICANOS

175
Para uma discussão pormenorizada quanto às coordenadas pertinentes nas
variações da importância que creio ser de atribuir a factores externos na padronização
de uma ordem jurídica, no caso a de Angola, ver Armando Marques Guedes et al.
(2003a, sobretudo na introdução e na parte III desse estudo monográfico).
176
Michael Mann, 1996.
177
Joel Migdal, 2002, op. cit..

138
Tudo aquilo que até este momento aduzi nesta Parte I,
a introdutória, do presente estudo, traça limites vários que
circunscrevem o que é possível levar a cabo a nível do ensino
sobre Direitos africanos ministrado no contexto da
licenciatura em Direito da FDUNL. O conteúdo que dei ao
programa da disciplina de Direitos Africanos, desde que no
ano passado (o ano lectivo de 2001-2002) a regência desta
disciplina me foi atribuída pelo Conselho Científico da
Faculdade, é mais analítico do que descritivo. E é muitíssimo
menos completo do que tópico e indicativo.
Não podia ser de outra maneira. Na ausência de dados
pormenorizados e em número suficiente quanto a esses
Direitos e dada a complexidade, a diversidade, e a
mutabilidade das configurações jurídicas patentes em África,
optei por proceder na sua leccionação a uma abordagem a um
tempo mais teórica e mais ilustrativa. O que não deixa de ter
implicações.
Preferi, por exemplo, não tentar fazer um levantamento
de fundo de um qualquer aspecto de uma qualquer das ordens
jurídicas em vigor naquele Continente. Nem sequer tem sido
minha intenção proceder a uma (eventualmente
interessantíssima) comparação sistemática entre os Direitos
oficiais em vigor nos PALOP e aqueloutro, a estes
claramente aparentado e que com eles mantém laços
genéticos de paternidade, que está vigente em Portugal. Tal
como não intento demonstrar a existência de um qualquer
eventual paralelismo profundo entre os vários Direitos
africanos “lusófonos”, que nos levaria a entrevê-los como
outras tantas variações sobre um tema comum e unitário que
brotaria, porventura, precisamente dessa relação histórica de
filiação.
Confesso, em todo o caso, sustentar as maiores
reservas relativamente a quaisquer dessas hipóteses que a
“sabedoria convencional” parece ter por adquiridas178. O meu
178
Para uma discussão mais minuciosa de questões aparentadas com esta (que aí
apelido de “teses excepcionalistas” e que vejo como uma herança colonial transmitida
às elites africanas que detém o controlo dos Estados pós-coloniais), ver A. Marques
Guedes (2002, no prelo). Em P. Chabal et al. (2002: 3-134), é levada a cabo uma

139
intuito tem sido antes o de lograr equacionar bases para um
eventual enquadramento metodológico (sempre numa
perspectiva multidisciplinar) que melhor nos permita um dia
empreender tanto estas comparações179 quanto aquele
levantamento de fundo.
Antes de regressar a estes constrangimentos de
maneira mais pormenorizada (ou pelo menos às suas
implicações no que diz respeito à estruturação de uma
disciplina como a de Direitos Africanos) parece-me, porém,
útil dar corpo ao tipo de estratégia pluridisciplinar que
escolhi, por intermédio de alguns exemplos relativos aos
Direitos dos PALOP.

desmontagem-desconstrução sistemática da ideia, curiosamente comum, de que os


Estados e os processos históricos dos PALOP seriam casos “crioulos” marcadamente
excepcionais em África e todos do mesmo tipo, muito particular.
179
Não quer isto de maneira nenhuma dizer que considere de particular relevância
explanatória esta relação “genética” de filiação de grandes parcelas dos Direitos
estaduais em vigor nos PALOP em relação ao Direito português. Sublinho-a, não para
asseverar a centralidade da ligação umbilical existente mas antes com o intuito de
sugerir a necessidade de uma sua problematização. Para além das evidente existência
de homologias (em muitos casos verificaram-se transposições directas de códigos,
diplomas, entidades institucionais e formas de organização), não é óbvio nem o
potencial analítico dessa filiação nem o são as eventuais vantagens de um dos seus
corolários, a convicção de que existiriam relações estruturais de germanidade entre
entre os vários Estados africanos “lusófonos”. Mais do que mero wishful thinking, tais
presunções ecoam de forma suspeita com modelizações conjunturais herdadas
relativas a uma hipotética “portugalidade intrínseca” (ou congénita) destas populações
africanas. Em lugar de paralelismos superficiais e dúbios, parece-me claro que o
enquadramento apropriado para investigar os Direitos dos PALOP (mesmo as
parcelas estatais deles) são os regionais africanos em que estão socioculturalmente
integrados.

140
Parte II

TRÊS EXEMPLOS RELATIVOS A DIREITOS


AFRICANOS LUSÓFONOS

[In Africa it is] the history of the relations between state


and society, not constitutional frameworks, which
determines [a country’s] fate. […] It is strange that
students of the Portuguese-speaking African countries –
which only became independent some fifteen years after
the French and British colonies – should so readily have
repeated the mistakes of those who had studied French-
and British-speaking Africa in the early years of their
independence. Strange indeed, for it was precisely in the
late seventies that the experience of these countries
suggested that it was time to seek other interpretations of
the postcolonial African state.

Patrick Chabal (2002), op. cit.: 38.

6. UM ENQUADRAMENTO GERAL

Para melhor ilustrar o tipo de abordagem que preferi


nesta disciplina, irei debruçar-me sobre três exemplos
paradigmáticos. Em primeiro lugar, tocarei, ainda que o faça
apenas de maneira breve e sucinta, na complementaridade
complexa existente, no interior do pluralismo jurídico patente
em Cabo Verde, entre a organização judiciária do Estado e
alguns dos meios alternativos (as “formas consuetudinárias”)
existentes. Num segundo passo, dispensarei alguma atenção
às tensões suscitadas pelo pluralismo jurídico que nestas
sociedades é tão patente: neste caso pelo imperativo
constitucional (proclamado na 2ª República) de uma
articulação entre a administração periférica do Estado, a
administração local incipiente e as “autoridades tradicionais”
em Angola. Em terceiro e último lugar, tentarei esmiuçar os

141
litígios constitucionais endémicos que tão visivelmente têm
pautado a vigência da 2ª República em S. Tomé e Príncipe,
precisamente no que respeita às dificuldades que ilustrei nos
casos anteriores.
Escolhi estes três e não outros tópicos de entre os
numerosos que irão ser discutidos no decurso do semestre,
por razões de transparência metodológica. Trata-se, com
efeito, de três temas, cada um deles relativo a um dos
PALOP, cuja análise (ainda que aqui tão-só superficial e
indicativa) me permite tornar claro o método que prefiro para
empreender um estudo destes Direitos. Em todos estes casos,
esforço-me por isso em aliar a pluridisciplinaridade que me
parece imprescindível para dar conta de sistemas jurídicos e
jurisdicionais complexos e multidimensionados à tentativa de
o levar a cabo no âmbito de um quadro analítico unitário.

6. 1. A ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA E ALGUNS MEIOS


“CONSUETUDINÁRIOS” ALTERNATIVOS EM CABO
VERDE

O exemplo de Cabo Verde é particularmente revelador


do entrosamento multidimensional e muito sui generis entre
o “jurídico” e o sócio-religioso180. Na cidade da Praia, a
capital, tal como na maior parte (senão no todo) do
arquipélago, o Estado caboverdiano pós-colonial montou um
sistema de organização judiciária. A nível superficial, pelo
menos, este sistema configura uma variante simples do seu
congénere português: o que não é surpreendente se tivermos
em conta os antecedentes históricos da relação bilateral

180
Os dados aqui expostos foram discutidos, em muitíssimo maior pormenor, em A.
Marques Guedes et al. (2001), “Litígios e pluralismo em Cabo Verde. A organização
judiciária e os meios alternativos”, Themis, Revista da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa:1-66. O texto desse Relatório foi republicado em Cabo
Verde, na revista Direito e Cidadania, em 2002. Agradeço a Yara Miranda, João
Dono e a Maria José Lopes o apoio prestado na recolha, na Praia e na ilha do Maio,
de algumas das informações factuais e terminológicas que aqui utilizo.

142
muito especial que existiu (e, em larga escala, ainda se
mantém) entre os dois países.
Como iremos verificar, no entanto, a semelhança é
pouco mais do que superficial. E é, além disso, apenas
parcial.

5.1.1. O PLURALISMO JUDICIÁRIO EM CABO VERDE:


VARIANTES E ENQUADRAMENTO

A situação genérica em Cabo Verde, a este nível (o da


condução e resolução de disputas e litígios), aparece-nos
como sendo de um “pluralismo judiciário light”, para
inventar uma expressão que se lhe coadune. Existem no
arquipélago Tribunais civis comuns, distribuídos por
Comarcas judiciais e, no topo da pirâmide judicial, um
Tribunal Supremo. Os militares estão sujeitos a um Tribunal
especial, com competências relativas a “crimes militares”.
Tal como em Portugal, há também em Cabo Verde
mecanismos “judiciários” híbridos, que põem a tónica na
condução-resolução de classes particulares de disputas:
assim, por exemplo, conflitos menores relativos a
“conciliações laborais” são muitas vezes “ouvidos” e
“negociados” (por vezes com sucesso) sob a égide de uma
espécie de mediador da chamada Direcção-Geral do
Trabalho, um organismo ministerial; caso os litigantes não
consigam alcançar um consenso rápido e abrangente nessas
sessões de mediação relativamente informal, a disputa é
imediatamente remetida para um Tribunal competente.
Um outro ingrediente de pluralismo judicial
caboverdiano é disponibilizado pela localmente bastante
influente Igreja Católica, que muitas vezes (mas por via de
regra sem grande eficácia, de acordo com os dados que
recolhi) aplica disposições extraídas do Direito Canónico181
181
Fá-lo formal e informalmente e aí parecem residir algumas das suas condições de
eficácia. De acordo com os membros do clero caboverdiano com quem troquei
impressões sobre estes “tribunais eclesiásticos” (e que insistiram que, “sobretudo em
zonas rurais”, “os párocos” eram muito procurados “para o efeito de servir de

143
e, por meio da sua utilização, tenta “arbitrar” algumas
disputas familiares, por norma casos que dizem respeito a
separações difíceis entre cônjuges, heranças, ou litígios
focados na tutela de crianças.
Mas há em Cabo Verde mais do que isso. Lado a lado
com esse pluralismo judicial soft (ou light, como lhe chamei),
uma forma mais hard, ou mais pesada, parece operar nas
ilhas. A organização judiciária do Estado não consegue
alcançar todos os meandros da sociedade, e não o logra por
toda uma série de razões. Cabo Verde é geograficamente
muito disperso, e economicamente bastante pobre; até 1975,
os esmagadora maioria dos juízes eram portugueses: o
Estado recém-independente não tinha nem os meios
financeiros nem o pessoal necessário para acorrer a todo o
seu disseminado território.
Talvez tão ou mais diacrítico, os caboverdianos foram
instalados nas ilhas e sujeitos a quatro séculos de uma tutela
colonial estrangeira, inicialmente com o objectivo explícito
de explorar um tráfico atlântico de escravos182 durante muitos
anos intenso. Esse mesmo Estado foi tomado (e largamente
mantido) por uma parte das elites locais, organizadas num
sistema unipartidário rígido183, durante a década que
sobreveio à independência. No tempo colonial, os juízes das
Comarcas eram, por lei, os Administradores portugueses;

árbitros”) a sua intervenção (“talvez pelo menos em parte por isso mesmo”) parece só
muito raramente revelar-se eficaz na solução desses conflitos. Foi-me no entanto
sublinhado serem eficazes a outro nível, no que toca nomeadamente a questões tidas
como do foro mais canónico (por exemplo, na anulação de casamentos religiosos).
Decisões dessa ordem, por via de regra tomadas “pelo bispo” e não a nível local, foi-
me dito terem uma larga aceitação geral. Se isso for apenas mera impressão, seria
interessante apurar as razões desta diferença de eficácia.
182
No que toca ao enquadramento histórico destes processos ver, por todos, Luís
Felipe Alencastro (2000), numa magnífica (ainda que algo parcial) monografia
recente dedicada ao papel do tráfico atlântico de escravos na formação do Brasil.
183
Para uma revisão pormenorizada das várias análises produzidas sobre as funções
preenchidas pelos sistemas unipartidários que grassaram em África depois das
independências e até inícios dos anos 90, é útil a leitura do longo artigo de L.
Rodriguez-Piñero Royo (2000).

144
depois da independência, e até meados dos anos 80, não
havia muito em termos de uma separação de poderes: os
juízes nos então vigentes Tribunais de Zona (uma versão
indígena, assaz aguada, dos Tribunais Populares
Revolucionários soviéticos184) eram, por via de regra,
membros de confiança do Partido único.
Com este quadro, não será surpresa constatar que os
caboverdianos não confiassem grandemente (ou não
atribuíssem verdadeira legitimidade, se se preferir esta
formulação) em pessoas e num sistema que, do seu ponto de
vista, tendiam a ser encarados essencialmente como
delegados locais do poder central do Estado. Uma espécie de
“cultura de resistência” passiva, ainda que informal, parece
ter-se ido sedimentando como correlato: e ainda hoje, muitos
são os caboverdianos que temem e não confiam
verdadeiramente no sistema judicial do Estado185, e que
184
A. Marques Guedes et al (2001, op. cit.: 33-35). Boaventura de Sousa Santos
redigiu, em meados dos anos 80, uma monografia (obra de difícil acesso) sobre os
Tribunais de Zona caboverdianos; estes tribunais foram abolidos, formalmente ainda
no decurso da 1ª República, , devido aos reputados abusos cometidos.
185
Ou melhor, no Estado tout court. Valerá a pena citar neste particular a
perspectivação, muito diferente, de Correia e Silva (2001: 55-56) sobre o
relacionamento entre a “sociedade civil” e o Estado caboverdiano, embora este Autor
o faça com um ponto de aplicação diferente. Numa definição decerto maximalista,
Correia e Silva propôs olharmos “a política”, em Cabo Verde, como a legitimação de
uma relação de poder de uma elite sobre uma sociedade, relação essa mediada pelo
Estado através de projectos de atendimento social”. Segundo Correia e Silva, “a
personificação do poder” (logo o neo-patrimonialismo, tão comum no resto de África)
ter-se-ia mantido “sempre larvar” nestas ilhas norte-atlânticas ao longo de todo o
período pós-colonial, e isso seria o segredo do indubitável sucesso político e
económico conseguido pelo país. E isso dever-se-ia ao crescimento, logo com a 1ª
República, de “uma pequena burguesia burocrática”, portadora de um ethos
“performante” aliado à necessidade imperativa de “produzir uma imagem política
aceitável para os países ocidentais” em nome da urgência de uma efectiva captação de
ajuda que viabilizasse o progresso económico daquele arquipélago. Se bem que
convidativa, a linha de argumentação não é totalmente convincente. O Autor parece
considerar (com alguma circularidade e incongruência) que “os constrangimentos
impostos pela necessidade de reprodução social tão prementes neste país-arquipélago”
devem ser encarados, por um lado, como o quadro que torna inteligíveis as
implicações das “circunstâncias do nascimento” do “processo de estruturação
institucional do Estado em Cabo Verde” (a resposta “assistencial” à estiagem de
1968); e, por outro lado, como o enquadramento que nos permite compreender as suas
“contradições” (ibid.: pp. 55-56, 58 e 67-68). Descontada, porém, a remissão à
“reprodução social” (que me parece pouco mais que a curiosa utilização, no contexto

145
muito profundamente se ressentem daqueles seus
conterrâneos que se atrevam a “levar a tribunal questões
pessoais”186:: fazê-lo, mais do que resolver seja o que for,
leva muitas vezes a retaliações violentas, seguidas de uma
rápida escalada.

6.1.2. LITÍGIOS E PLURALISMO: UMA FORMA


“TRADICIONAL” VISITADA

Como é que então os caboverdianos comuns dirimem


as disputas que inevitavelmente eclodem no decurso da sua
vida do dia a dia? A solução não é simples. Uma resposta
possível é que não as resolvem. Muitos conflitos pura e
simplesmente marinam e fervilham, outros vão-se esbatendo
à medida que os protagonistas começam a evitar-se estudiosa
e mutuamente, outros ainda vêm-se coroados por actos
terríveis de violência.
Alguns destes conflitos e muitas destas querelas (e este
ponto é particularmente interessante) são obliquamente
canalizados na direcção de práticas tradicionais como a
possessão espiritual, a feitiçaria e a bruxaria. Práticas essas
entendidas no seu contexto e com um vocabulário próprio.
De uma forma muito sucinta: tensões familiares são
comummente postas em evidência, e de algum modo
arejadas, em Cabo Verde, quando um finado (a palavra usada
em crioulo para um ser humano morto) camba (entra em)

de um bem delineado quadro teórico weberiano, de um conceito funcionalista


apresentado sob roupagens terminológicas marxistas) que insiste em fazer, a dinâmica
sugerida por Correia da Silva é muitíssimo interessante, ainda que porventura
exagerada; e sublinha a existência de alguma cumplicidade entre os caboverdianos e o
seu .Estado, facto raro na África pós-colonial.
186
Tanto quanto me foi possível apurar, em Cabo Verde (pelo menos na cidade da
Praia), este sentimento de ultraje é com efeito particularmente agudo naqueles casos
tidos como sendo do foro “privado”, envolvendo familiares ou vizinhos. O recurso a
um Tribunal é, segundo esse quadro de representações, encarado como um “insulto
mortal”, que em vez de resolver um conflito ou litígio causará decerto uma sua
escalada em flecha.

146
uma das pessoas envolvidas e, a não ser que seja afundado
(ibid. em português), começa a falar com autoridade através
dele ou dela, por via da “boca” do hospedeiro “vivo”.
Litígios regularmente desencadeiam recurso a mestres
(bruxos), que tendem a usar os seus poderes e conhecimentos
para intervir activamente, e muitas vezes de maneira
decisiva, nas tribulações entre as pessoas, quantas vezes
redimensionando-as e agravando-as. Não é raro que
conflitos, quando “processados”187 segundo as configurações
socioculturais locais, envolvam mestres e finados, não
verdadeiramente mediadores ou árbitros, apesar de terem um
pouco de ambos: não verdadeiramente “de fora”, são muitas
vezes também aliados ou inimigos, parceiros e não
personagens neutras. Assim, muitas disputas vêem-se menos
resolvidas que “processadas” e reordenadas, no sentido em
que são tão-só canalizadas para novas trajectórias à medida
que adquirem elementos e formatos de uma “agressão
mística”.
A padronização desse “processamento” de litígios é
visivelmente oeste-africana, mas como parte de um todo
densamente salpicado por traços, uma imagética e formas
rituais tomadas de empréstimo ao Catolicismo e ao Estado188.
187
Traduzo directamente da expressão conflict processing, tão útil quanto cara aos
antropólogos jurídicos anglo-saxónicos,. O ponto focal está assim com firmeza posto
não na eventual resolução normativa do conflito, mas antes na sua condução formal.
188
Ver quadro terminológico 1, que apresento em anexo, em que as próprias
expressões utilizadas denotam a importância destas duas fontes para a composição-
configuração destes mecanismos alternativos. Fácil se torna verificar que o tópico
genérico dos discursos localmente tidos no arquipélago sobre tensões sociais parece
ser, no essencial, económico-político-moral; ou relevando, mesmo, de um vocabulário
“jurídico” (e das representações nele embebidas) que parecem ter colonizado aquilo
que talvez não seja abusivo descrever, tal como atrás referi, como “o imaginário e o
vocabulário sociais e políticos” caboverdianos. Como insisti, são os próprios termos
crioulos (e portugueses) utilizados que o traem: em Cabo Verde (como aliás, e talvez
ainda mais fortemente, em S. Tomé e Príncipe, ver quadro terminológico 2, também
em anexo) pagá devê, pagamento, contrato, sentença, castigo, disprezo, xicote,
vingança, preso, justiça, mestre, paço do mestre, etc., repito, são termos que
obviamente nos remetem para metáforas alusivas a subordinações económicas e à
dominação política, a correspondências que aludem a situações e experiências sociais
entrevistas em quadros conceptuais por sua vez marcados por uma “juridicidade
contratualista” de ecos também curiosa e claramente estatizantes, ou “estadualistas”.

147
Um duplo sincretismo. Restringindo-me à incorporação
“popular” espontânea de um imaginário estatal, há uma outra
maneira, mais directa e linear, de exprimir este ponto. Está-se
em Cabo Verde longe de uma situação em que haja apenas
uma persistente recusa local em aceitar os termos da
mediação estadual em tensões sociais que o Estado insiste em
retratar como “litígios”: os “princípios alternativos”
encontrados pela população do arquipélago têm uma curiosa
relação (parcialmente) mimética com as formas impostas
pelo Estado, pelo menos ao nível do imaginário “jurídico”
que lhes parece servir de “guia cosmológico”. A terminologia
utilizada demonstra-o abundantemente.
Tudo isto não é tema que os caboverdianos (e em
particular os membros das elites instruídas e ocidentalizadas)
apreciem discutir, ou muitas vezes sequer queiram
reconhecer. Mas trata-se claramente de um dos “idiomas de
poder” locais189, e é um fenómeno que parece estar em
crescimento. As tensões sociais são expressas em termos
carregadamente simbólicos, segundo uma lógica cultural que
tende a perspectivar disputas e desacatos190 como sendo
indissociáveis das interacções diárias, dos sentimentos
interiores de cada um dos actores sociais, e da ideia
subjacente de que o “poder”, a “potência”, ou o
“conhecimento” são recursos escassos, para cujo controlo as
pessoas competem (por vezes violentamente) umas com as
outras. Apesar da sua tão famosa crioulidade, ou talvez
melhor como um seu ingrediente essencial, está claramente
189
Uma boa colectânea de artigos sobre estes tópicos, na sua maioria relativos a
sociedades oeste-africanas, pode ser encontrada no volume dos (eds.) J. Comaroff and
J. Comaroff (1993).
190
O termo “lógica cultural” (cultural logic) foi, neste contexto, pela primeira vez
utilizado por John Comaroff e Simon Roberts (1981) , num estudo sobre conflict
processing num grupo da África Austral. Em F. Snyder (1981), “Anthropology,
dispute processes, and law: a critical introduction”, British Journal of Law and
Society 8(2): 141-180, podemos encontrar uma visão geral bastante bem delineada
(apesar de teoricamente bastante carregada) das forças e fraquezas da tendência, então
em voga nos trabalhos de investigação sócio-antropológicos, de estudar a resolução
de litígios (disputes) como dando corpo a mecanismos jurídicos quintessenciais que
reflectiriam representações socioculturais implícitas.

148
instalada em Cabo Verde, como seria aliás de esperar, uma
sociedade oeste-africana191.

6.1.3. UM PLURALISMO MAIS OSTENSIVO: AS


COMUNIDADES DE “REBELADOS” DA ILHA DE
SANTIAGO

Mas há mais no arquipélago. Uma das unidades, ou


parcelas, mais fascinantes da situação de pluralismo jurídico
existente em Cabo Verde diz seguramente respeito aos vários
agregados residenciais que se encontram dispersos um pouco
por todo o território, sobretudo da ilha de Santiago. Trata-se
de agrupamentos muito característicos de pequenas
comunidades autónomas, que se recusam a aceitar quaisquer
interferências por parte do Estado, e que, por conseguinte, a
si próprios se intitulam Rebelados192. As comunidades são
integradas por seguidores de agrupamentos politico-
religiosos desde meados dos anos 40 “dissidentes”
relativamente à Igreja Católica; que se isolaram na sequência
de uma reacção generalizada ocorrida em Cabo Verde
quando da introdução, nessa época e por um grupo
missionário então recém-chegado ao arquipélago (os Padres
da Congregação do Espírito Santo), de algumas mudanças
litúrgicas nas práticas rituais católicas “tradicionais”193. Alvo

191
Esta conclusão é iniludível se compararmos estes factos, por exemplo, com os
vários casos oeste-africanos discutidos em R. A. Austen (1993), “The moral economy
of witchcraft: an essay in comparative history”, um artigo publicado em (eds.) Jean &
John Comaroff, op. cit.: 89-111. Como é óbvio, um copo meio cheio está também
meio vazio: a crioulidade caboverdiana significa que está igualmente instalada no
território (em todo o caso entre as elites que controlam o Estado) uma sociedade
“ocidental”.
192
Ou Rabelados, em vernáculo.
193
Os Padres da Congregação do Espírito Santo chegaram a Cabo Verde em 1941.
Nas palavras de Júlio Monteiro Jr., eram “portadores de um novo estilo de vida
espiritual” (1974: 41); vieram substituir um grupo de sacerdotes saídos do célebre
Colégio das Missões Ultramarinas de Cernache do Bonjardim, cuja ida para as ilhas
datava de 1867. A reacção dos Rebelados ocorreu sobretudo na ilha de Santiago e, aí,
no tristemente célebre concelho do Tarrafal. Ao que parece, os Rebelados exprimiam

149
de repressão imediata e violenta por parte das autoridades
portuguesas desse período (diz-se que muitos foram presos,
outros mortos, e inúmeros outros expulsos das comunidades
em que viviam e exilados para outras ilhas194), os
sobreviventes mais apegados à sua própria marginalização
lograram reagregar-se em pequenos núcleos localizados
principalmente na ilha de Santiago.
Estes Rebelados foram objecto de um estudo
monográfico detalhado e interessante em meados dos anos 70
(1974195) e, em 1996 e 1998, a Rádio Televisão
Caboverdiana (RTC) produziu sobre algumas das
comunidades três longas reportagens de indubitável
qualidade. Felizmente conseguimos obter tanto esse livro
como cópias dos três filmes. Avistámos também (à distância,
por falta de tempo) uma aldeia de Rebelados; e lográmos
contactos que nos permitirão, se assim o quisermos, um
acesso fácil a pelo menos um desses agrupamentos. Não
obtivemos porém, de momento, informações em primeira
mão sobre estas curiosas comunidades. Por isso, e pela
atipicidade deste caso singular, não iremos fornecer neste
Relatório grandes detalhes sobre elas e sobre os Rebelados
em geral.
Importa, no entanto, dizer alguma coisa sobre umas e
outros. Estes grupos vivem em conjuntos de casas bastante
rudimentares, pequenas habitações construídas com telhados
simples de colmo (com veemência característica, os
Rebelados repudiam de maneira sistemática aquilo que
consideram como sinais de desenvolvimento ou
modernização). De costas viradas para o Estado

o desencanto sentido como uma clivagem, ou uma distinção, entre os Padres Negros e
os novos Padres Brancos, numa referência às cores das batinas de uns e outros.
Monteiro usa ainda a expressão “Padres do tipo antigo”, mas não é claro de quem é
esta terminologia, se dele se dos Rebelados.
194
Segundo Monteiro, alguns dos “cabecilhas e famílias” terão mesmo sido enviados
para o “desterro”, e mandados para S. Tomé, “a fim de incutirem verdadeiro temor
aos outros” (op. cit.:130-138, e em particular p. 132).
195
Ver, na bibliografia, a referência à obra de Júlio Monteiro Jr. (1974).

150
caboverdiano, estas comunidades não registam nascimentos
nem mortes, escapam ao fisco, e por via de regra os seus
membros não frequentam Escolas nem fazem o serviço
militar “obrigatório”. A nível político como a nível judicial,
gozam também de uma largíssima autonomia, funcionando
com órgãos próprios. Um panorama decerto fascinante.
Talvez o mais interessante seja, porém, a atitude de
tolerância e bonomia relativamente aos Rebelados
evidenciada por todas as autoridades caboverdianas com
quem troquei impressões; atitude que, de início, muito me
surpreendeu. Haverá, seguramente, para essa postura, várias
ordens de razões. Embora se trate de um agrupamento
“confessional” e “marginal” (agrupamentos estes que
constituem quantas vezes “grupos de alto risco” na
perspectiva dos poderes públicos), os Rebelados não são um
agrupamento messiânico196 ou proselitista que tenda pelas
suas actividades a pôr directamente em causa a ordem
pública do país. Ao que tudo indica, ademais, o tamanho das
suas (em qualquer caso exíguas) comunidades está a
diminuir. Das conversas que tive com numerosos
caboverdianos de todos os estratos sociais, não foi difícil
concluir que a pose de desafio e o percurso histórico dos
Rebelados os transformaram, aos olhos da opinião pública,
numa espécie de “heróis da resistência anti-colonial”197, cuja
relativa autonomia e sobrevivência importa por isso mesmo
salvaguardar. Longe de se tratar de pessoas tidas como de
alguma maneira avessas à identidade nacional de Cabo
196
Contrastando os Rebelados com os “tocoístas” [sic] de Angola e do Congo e “as
testemunhas de Jeová “(!), J. Monteiro sublinhou logo em 1974 que, em sua opinião
(e ao contrário do Prof. Ilídio do Amaral), “entre os Rebelados falta, em absoluto,
[um] elemento central: entre eles não existem nem profetas, nem messias, nem se faz
referência a qualquer idade do ouro” (op. cit.: 78).
197
Na monografia citada, Monteiro conta como, nos anos 40, “polícias armados
cercaram as casas dos Rebelados cujos moradores foram presos”, após o que foram
levados “não [para] a Administração do Concelho ou qualquer outro edifício público,
mas [para] a própria residência dos Missionários” onde, refere, terão sido submetidos
a “exorcismos” (ibid.: 136). Como Monteiro escreveu, premonitiva e filosoficamente,
“a acção policial tem sido dura, deixando, no espírito simples e inculto do povo,
profundo ressentimento, como tivemos ocasião de sentir” (idem: 137).

151
Verde, os Rebelados tornaram-se assim, de certo modo, em
modelos simbólicos precisamente dessa mesma identidade198,
apesar de o serem em versão soft e muito idealizada.
Ainda que seguramente atípicas, as pequenas
comunidades de Rebelados que hoje em dia pontilham
sobretudo a ilha de Santiago constituem, indubitavelmente,
uma das parcelas mais fascinantes de um evidente pluralismo
jurídico implantado em Cabo Verde.

6.2. A ADMINISTRAÇÃO PERIFÉRICA DO ESTADO, A


ADMINISTRAÇÃO LOCAL E AS AUTORIDADES
TRADICIONAIS EM ANGOLA

Um segundo exemplo que me parece útil aqui decantar


(pormenorizando um pouco aquilo que antes expus, e que de
algum modo retrospectivamente lhe poderá agora servir de
quadro genérico e preâmbulo) diz respeito à articulação
entre, por um lado, a administração periférica do Estado199
angolano, por outro lado a administração local em formação
e, por um outro e terceiro lado ainda, o reconhecimento
paralelo de áreas relativamente autónomas de jurisdição de
“autoridades tradicionais” em muito do território e sobre uma
parte significativa das populações que esse mesmo Estado
tutela200.
198
Não deixa de ser interessante, neste contexto, verificar (os filmes da RTC
mostram-no) que nalguns dos seus rituais os Rebelados, para além de estandartes
religiosos arvorem, ainda hoje, bandeiras do PAIGC! Uma forma emblemática de
adesão, ou uma prudente coloração protectiva?
199
Para um circunscrição precisa do conceito, cf. João Caupers (1994). De notar que,
em Angola, esta administração periférica do Estado tende a ser apelidada, algo
confusamente, aliás logo no Capítulo VII, artº 145 da Lei Constitucional angolana,
“administração local”, confundindo-se assim implicitamente descentralização com
desconcentração (vd. Carlos Feijó, 2001: 141-142). No texto que se segue, tentarei
manter clara a distinção entre estes dois processos tão diferentes um do outro.
200
Disposições constitucionais desse tipo são comuns em muitos dos Estados vizinhos
da África Austral contemporânea desde a África do Sul ao Zimbabwe, passando pela
Namíbia e o Botswana. O seu sucesso tem sido variável. Para uma discussão

152
Como irei tentar demonstrar, trata-se de um problema
complexo, que põe em relevo vários dos limites políticos da
administração do Estado em Angola; para além disso, suscita
questões que iluminam a luz fria algumas das incongruências
que são inevitáveis em tentativas de compatibilização de
ordenamentos normativos quando estes se revelam
marcadamente diferentes uns dos outros, tal como iremos
verificar que é aqui o caso. Um escolho que os recentes
esforços de extensão do controlo estatal às “terras livres de
Angola”, até há bem pouco tempo ocupadas pela UNITA,
tornam particularmente significativo, actual e urgente.
Enquanto no caso caboverdiano anterior me preocupei com
perspectivar a análise do ângulo das categorias e
conceptualizações localmente entretidas, no caso presente o
ponto focal está, ao invés, sobretudo colocado no Estado e
em conceitos que visam descrever a sua arquitectura política
e administrativa, bem como as condições de uma sua
articulação com outras entidades não-estaduais.
Insisti, numa das subsecções da Parte anterior deste
curto estudo introdutório (designadamente no ponto 3.1.)
que, para tornar mais inteligível a legislação relativa à
actividade político-administrativa periférica do Estado, tal
como a referente à implantação local autárquica deste (latu
senso), assim como para melhor compreender as mudanças e
inflexões de ambas, havia que as contextualizar bem. No que
se segue, procedo, em conformidade, com um
enquadramento (ainda que tão-só a traço grosso) da
progressão da produção legislativa pós-colonial em Angola
embutida nos dois processos paralelos que identifiquei (a
administração periférica do Estado e a administração local
que parece despontar), no que diz respeito ao caso angolano
pós-colonial.
Repito que, em minha opinião, é precisamente nesse
quadro coetâneo que ela se torna mais plenamente

fascinante que inclui uma comparação crítica das dificuldades encontradas, ver B.
Hlatshwayo (1998).

153
inteligível201. Deixo para um passo posterior as questões
relacionadas com a ambicionada regulamentação estatal de
uma articulação de cada um e do conjunto de ambos estes
processos com o terceiro termo que identifiquei, as
“autoridades tradicionais”. Concluo com uma revisitação de
conjunto.

6.2.1. DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO


ADMINISTRATIVA EM ANGOLA: UMA PROGRESSÃO
EM DUAS FRENTES

No que diz respeito à administração periférica do


Estado e à administração local em Angola, vale a pena
começar por enquadrar histórica e empiricamente (ainda que
aqui o faça de maneira sucinta e tão só indicativa) as
principais questões suscitadas com essa reposição em
contexto. Esquissar o pano de fundo diacrónico e o
sincrónico, por assim dizer.
Desde a independência, o Estado pós-colonial tem
vindo a tentar assegurar uma implantação efectiva em toda a
extensão do território que tem sob sua tutela. Por vicissitudes
de vária ordem (de entre as quais avulta a guerra e a
consequente ocupação, por forças não-governamentais
ligadas à UNITA, de largas fatias do território angolano,
ademais em configurações de geometria variável e
relativamente a agrupamentos populacionais em constante
movimento e recomposição), essa efectiva implantação
nunca foi plenamente conseguida. Mas esforços nesse
sentido é coisa que não tem faltado.
Para retratar com maior precisão e fidelidade as várias
vias, complementares entre si mas distintas umas das outras,
201
O meu ponto é, evidentemente, sociológico e não jurídico. Ainda que me pareça
(neste como noutros casos) não ser fácil integralmente dissociar estas duas
perspectivas: aquilo que está em causa prende-se, pelo menos em parte, com
condições de exercício do poder estadual, questão cuja resposta é decerto crucial para
quaisquer análises jurídicas interessadas numa factualidade (neste caso política e
administrativa) que releve de mais do que de meros ajustamentos e adequações
formais de enunciados normativos e comandos uns em relação aos outros.

154
desse empenhamento, podemos servir-nos de dois conceitos
directamente importados da dogmática jurídico-
administrativa, os de desconcentração e de
202
descentralização . A sua utilização permite-nos, neste caso,
uma muito útil separação de águas.
Com o intuito de melhor a lograr, é decerto útil
começar por um enquadramento geral. A organização
administrativa que hoje (estes dados são de finais de 2002)
vigora em Angola203, reticulando território e populações,
pode ser descrita, em síntese, da seguinte maneira: existem
ao todo, no território reinvindicado pelo Estado angolano,
dezoito Províncias. Essas Províncias (as mesmas que
existiam quando foi proclamada a independência)
subdividem-se em Municípios, de que há em Angola um
número total de cento e sessenta e quatro. Dentro de cada
Município contam-se as Comunas, havendo ao todo
quinhentas e cinquenta e sete dessas circunscrições no
território nacional angolano. Dentro destas Comunas, nas
zonas urbanas, encontram-se Bairros; para além dos Bairros
há, no território, aglomerados populacionais dispersos,
situados fora das zonas urbanas, que se denominam
Povoações204.
202
Cf. Diogo Freitas do Amaral (1994: 424-425). Para uma discussão pormenorizada
relativa ao caso angolano, vd. Carlos Feijó, 2001, op. cit.: 134 ss. Para um
enquadramento mais genérico e detalhadíssimo, cf. João Caupers, 1994, op. cit..
203
Cf. Decreto-Lei n.º 17/99, de 29 de Outubro, que regula a orgânica dos Governos
Provinciais e das administrações dos Municípios, ainda hoje (Fevereiro de 2003) em
vigor. A matéria vinha regulada anteriormente no estatuto orgânico do Ministério da
Administração do Território, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 8/98. Já no ano 2000,
dando cumprimento ao n.º 2 do art. 63.º e do art. 64.º do Decreto-Lei n.º 17/99, de 29
de Outubro, o paradigma e o quadro de pessoal dos Governos das Províncias, das
Administrações dos Municípios e das Comunas foram objecto de regulamentação no
Decreto-Lei n.º 27/00, de 19 de Maio, aprovado em Conselho de Ministros.
204
Tal como nos outros casos que abordo de maneira sucinta neste relatório
monográfico, todos os dados que aqui discuto são tratados, em muitíssimo maior
pormenor (que inclui uma discussão detalhada de toda a legislação produzida desde a
independência em 1975), nos trabalhos de investigação que redigi em resultado de
actuação no terreno e que vou referenciando, desta feita em A. Marques Guedes et al
(2003b); No texto presente, limito-me a uma contextualização genérica (a traço
grosso, como indiquei) das fases sucessivas que identifico. Esta referência consta da
bibliografia obrigatória da disciplina de Direitos Africanos. Os meus agradecimentos

155
O Estado pós-colonial angolano está firmemente
sediado em Luanda. Mas desde o seu alvor têm sido gizados
esforços para uma desconcentração dos poderes de que
constitucional e legalmente goza, por via de uma sua
implantação-extensão a níveis locais. Mais ambiciosamente,
tem sido prevista uma verdadeira descentralização de alguns
desses poderes, por via do reconhecimento-criação de
entidades locais “autárquicas”.
A cronologia pós-colonial dos processos de
desconcentração e descentralização verificado em Angola é
interessante: grosso modo, a evolução das coisas parece
seguir linhas políticas atidas às duas formas sucessivas
escolhidas para o Estado, a da 1ª e a da 2ª República205. A
sequência genérica é instrutiva. Depois de um longo período,
o da colonização de Angola por Portugal, marcado por uma
muito vincada concentração e por uma centralização que se
foram esbatendo nos seus últimos decénios, em processos
lentos e inconclusivos a que a 1ª República pós-colonial não
só não deu continuidade mas antes fez esmorecer de maneira

recaem, neste caso, sobre Carlos Feijó e Ravi Afonso Pereira com quem, em Luanda,
no Huambo e em Lisboa, tive a oportunidade de discutir e ponderar em pormenor
estas e outras questões afins; no Huambo, todos aprendemos com o notável Dr.
Paulino Máquina.
205
Passo deliberadamente por cima do primeiro diploma que procurou, durante o
período de transição, estabelecer princípios organizacionais do Estado no que respeita
à divisão administrativa do território. Refiro-me à Lei Fundamental de Angola, de 30
de Junho de 1975. Isto porque, apesar de aqui se procurar afirmar o princípio da
descentralização administrativa, tendo em vista a participação de todos os residentes
na consolidação dos órgãos da administração regional e local, a verdade é que os
novos corpos administrativos (para a Província, a Comissão Provincial; para o
Concelho, a Comissão Local; para a Comuna Urbana a Comissão Urbana e para a
Comuna Rural, a Comissão Rural (cf. art. 131.º) não se traduziam na observância
prática daquele princípio constitucional. Antes pelo contrário. Com efeito, o Governo
era representado em cada Província e em cada Concelho, respectivamente, por um
Comissário Provincial e por um Comissário Local, entidades que eram nomeadas sob
proposta do Ministério do Interior. Note-se, por outro lado, que esta Lei Fundamental
a que me tenho vindo a referir nunca chegou a ser aplicada. Os órgãos nela previstos
não foram preenchidos; as eleições não foram realizadas; e o país mergulhou numa
guerra. Pouco tempo depois, os Acordos de Alvor foram suspensos pelo Governo
português (através do Decreto-Lei n.º 458-A/75, de 22 de Agosto). Em Novembro
desse ano, Angola tornou-se independente.

156
abrupta em nome da doutrina do centralismo democrático206,
desde a “transição democrática” de inícios dos anos 90 têm
sido reatados os esforços incipientes para as realizar.
Incipientes mas não inteiramente vazios de conteúdo.
E esforços não levados a cabo de forma homogénea. O
Estado secundo-republicano tem-se desdobrado, por um lado,
em tentativas sistemáticas de lograr alguma desconcentração
administrativa207; tem-no feito através de um processo de

206
Encarado o processo em termos de uma menor duração, não sem curiosos avanços
e recuos, para além da lentidão e da inconclusividade que partilhou com o período
colonial terminal. Também nisso a Lei Constitucional da República Popular de
Angola, de 11 de Novembro de 1975 poderá causar alguma perplexidade. É que, em
clara contradição com o dogma do centralismo democrático de inspiração marxista-
leninista, o primeiro texto constitucional da Angola pós-colonial veio prever
invocações da unidade, da descentralização e da iniciativa local como princípios
orientadores da administração local do Estado e da administração local autárquica (cf.
art. 47.º). Para além da divisão administrativa do Estado em circunscrições,
designadamente em Províncias, Concelhos, Comunas, Círculos, Bairros e Povoações
(art. 46.º), consagrava-se paralelamente a criação de autarquias locais, dotadas de
personalidade jurídica, e gozando autonomia administrativa e financeira (art. 51.º).
Dada a contradição patente, este figurino foi sol de pouca dura. O legislador ordinário
angolano deu execução à Lei Constitucional aprovando uma Lei que consagrava o
centralismo democrático, concretizado na figura da “unicidade do poder” e na da
“dupla subordinação”. Tratou-se da Lei n.º 1/76, de 5 de Fevereiro, a Lei dos Órgãos
do Poder Popular. Assim, o art. 54.º vinha esclarecer que “os Comissários nomeados
para as Províncias e para os Municípios são órgãos de poder local e de Administração
e representam o Governo nas suas respectivas Circunscrições”. De não menor
importância era o enunciado no art. 57.º, que dispunha que “no exercício das suas
funções, os órgãos do poder local e da Administração [...] actuam em estreita
coordenação com as organizações de massas do MPLA-Partido do Trabalho”. O elo
mais fraco cedera. Com este diploma as famigeradas “autarquias locais” da Lei
Constitucional foram substituídos por mais consentâneos “órgãos do Poder Popular”,
e todo o processo evoluiu no sentido de uma muito marcada centralização
administrativa.
207
Mesmo antes da 2ª República, já a Lei de Revisão Constitucional de 1980, de 23
de Setembro, tinha como principal objectivo a criação de órgãos eleitos do Poder
Popular, nomeadamente a Assembleia do Povo e as Assembleias Populares
Provinciais (art. 64.º). Esta nova filosofia constitucional foi concretizada pela Lei n.º
7/81, de 4 de Setembro (LOLE), que teve o mérito de reunir, num só diploma, todas
as matérias atinentes aos órgãos locais do Estado. Em boa verdade, não se tratou
porém, nem de descentralização por serviços “impura” ou “imperfeita”; nem foi
verdadeiramente legislação que se esgotasse num meio caminho entre a
desconcentração e a descentralização administrativa. Do que se tratou foi de canalizar
a necessidade, sentida pelo centralismo democrático, de assegurar que certos assuntos
ou matérias viriam a ser tratadas e decididas a nível local, enquadrando-se assim
naquilo que foi apelidado de “autonomia imperfeita administrativa na dependência
política”. Esta Lei veio depois a ser complementada pela Lei n.º 21/88, de 31 de

157
definição de circunscrições territoriais onde os vários
Ministérios executam a política do Governo em porções
geográficas mais pequenas através das suas dependências a
nível da Província, do Município, da Comuna e do Bairro ou
Povoação: trata-se, em qualquer caso, de serviços na
dependência directa dos serviços centrais. Por outro lado,
pelo menos ao nível das declarações de intenção, tem
manifestado disposto a progredir na via de uma
descentralização efectiva dessa administração estadual de
pessoas e território208, como expressão de um professado
empenhamento num eventual processo de autarquização a
nível local. Com uma dose de ironia, poder-se-ia afirmar que
tudo se tem passado como se, no período pós-colonial, as
elites que em Angola controlam o Estado têm vindo a
manifestar uma maior disposição para uma extensão eficiente
do seu poder do que uma qualquer disponibilidade para uma
sua partilha. A progressão normativa assim parece sugerir.
Seria todavia arriscado prescindir de uma mais cuidada
contextualização da lógica que subtende estes esforços, se os
quisermos bem compreender. Os ritmos do duplo processo de
descentralização e de desconcentração evidente em Angola
não têm sido regulares, nem podem ser confundidos. Mas a
tendência para a intensificação de ambas, pelo menos a nível

Dezembro, para dar resposta à necessidade de, a par de órgãos executivos das
Assembleias Populares, i.e., órgãos representativos do Governo, os Comissariados
como que fazerem as vezes de verdadeiros entes da administração local.
208
Enquanto a primeira Lei Constitucional do período democrático, a Lei n.º 12/91,
de 6 de Maio, não trouxe (ou, pelo menos, não trouxe de maneira directa) nada de
novo no plano da divisão do território, i.e., da organização administrativa do Estado e
da sua implantação a nível local, já a segunda, a Lei n.º 23/92, de 16 de Setembro,
representou uma viragem e ruptura com o sistema anterior. Ela veio, expressamente,
consagrar, na Angola pós-colonial, um Estado unitário descentralizado e
desconcentrado. Não quero com isso dizer que esta “separação de águas”, plasmada
de forma cristalina pelo legislador constituinte angolano, quando este previa, no art.
145.º, que “a organização do Estado a nível local compreende a existência de
autarquias locais e de órgãos administrativos locais”, tenha obtido qualquer
ressonância na prática administrativa. Como insisto no texto, o princípio
descentralizador ficou até hoje longe de ser concretizado, fosse de que maneira fosse,
pelo legislador ordinário.

158
constitucional, não deixa margem para dúvidas209. Nem,
aliás, a sua muito diferente concretização in action. Estes
factos são muitíssimo reveladores. E não podem deixar de
lançar dúvidas sobre interpretações instrumentais
precipitadas. O desfazamento temporal que os dois processos
exibem é significativo. A própria assunção programática de
um projecto desconcentrador e descentralizador a nível
constitucional não pode ser desconsiderado.
Vale a pena esmiuçar a sua progressão com algum
pormenor suplementar para o pôr em relevo, e a par e passo
fazer sobressair outras condicionantes que actuam sobre
ambos e que convergem para a sua dissonância mútua. Não é
árduo verificar que em Angola, pelo menos desde a
independência, foi tendo lugar uma progressiva
desconcentração político-administrativa embora, como
vimos, esse processo não tenha sido linear e tenha antes
oscilado consoante o quadro político vivido e a menor ou
maior apetência (uma apetência, como iremos ver, com

209
Note-se que o grau de “descentralização” operado pelo legislador ordinário
equivale, em larga medida, ao seu grau de cumprimento dos preceitos constitucionais
“descentralizadores”. Hoje, e conforme resulta do Decreto-Lei n.º 17/99, de 29 de
Outubro, ao lado de uma Administração Central, o aparelho do Estado angolano
encontra-se arvorado em quatro níveis de circunscrição territorial. Aquilo a que se
convencionou chamar de Administração Periférica do Estado. Repito: trata-se de
circunscrições territoriais onde os vários Ministérios executam a política do Governo
em porções geográficas mais pequenas através das suas dependências a nível da
Província, do Município, da Comuna e do Bairro ou Povoação. Estamos, em qualquer
caso, perante serviços desconcentrados na dependência directa dos serviços centrais:
podendo falar-se por isso, ainda, em “administração directa do Estado”. A Lei
Constitucional não se fica por aqui na afirmação da importância que a autonomia
local, enquanto pilar de um Estado de Direito democrático assume para o legislador
constituinte. Este reitera a existência daquilo a que podemos chamar um dever
Constitucional de legislar, uma espécie de prescrição médica para tratamento
permanente que o farmacêutico, a dada altura, recusa aviar. Cf. arts. 145.º e ss..
Estamos perante aquilo que a dogmática jurídico-constitucional designa como
Untermassverbot ou de “proibição do défice”. Com efeito, segundo o critério da
densidade normativa, o legislador fica obrigado na medida daquilo que seja
materialmente determinável a partir dos preceitos constitucionais. J. Gomes Canotilho
(2002: 1158-1159) refere-se ao carácter determinado das tarefas nas regras
constitucionais impositivas. Numa palavra: o grau de vinculação do legislador face à
Constituição será tanto maior quanto maior for a densidade normativa dos preceitos
constitucionais. Cf., para uma abordagem de conjunto sobre a matéria, J. C. Vieira de
Andrade, 2001.

159
múltiplas causas) para a absorção de poderes pelo aparelho
central do Estado pós-colonial.
Reiterando aquilo que antes foi dito: numa primeira
fase, porventura em parte como expressão-repercussão da
ideologia dominante numa 1ª República mais apegada ao
dogma “centralista democrático”, o Estado central guardou
para si, em Luanda, a larga maioria dos poderes, na prática
desconcentrando muito pouco. Em parte fê-lo todavia
também por falta pura e simples de pessoal e de capacidade
logística. Como aconteceu em muitos outros Estados
africanos recém-independentes, sobretudo se expostos a
situações centrífugas de guerra ou insurgência, ou de perda
de quadros e de know-how organizacional (e de tudo isto
Angola padeceu de maneira agudíssima), no país o grosso do
controlo estadual tendeu a ser exercido à distância, a partir de
medidas e decisões tomadas na capital.
Na 2ª República a situação iria mudar: com a
“transição democrática” depressa se verificaram em Angola
passos rápidos na direcção de uma desconcentração dos
poderes estaduais exercidos a nível regional e local. Novos
quadros, disponívies para o provimento de lugares criados a
nível regional e local, tinham entretanto sido preparados.
Alguma aprendizagem técnico-administrativa fora
conseguida e um módico de capacidade logística tinha no
intervalo sido adquirido. É certo que a desconcentração
empreendida não contemplou, de maneira homogénea, todo o
território nacional, como é fácil de compreender se nos
lembrarmos que nos anos 90 se assistiu, em Angola, a uma
séria deterioração da situação político-militar,
designadamente com a perda de controlo, pelo Estado, de
muitas das cidades do país. É também verdade que, para
muitos angolanos, estes processos de desconcentração dos
poderes estaduais exercidos a nível regional e local não
foram suficientemente longe, muito caminho havendo ainda
para andar no sentido de um desejável esbatimento da
primazia hegemónica das estruturas estatais instaladas em

160
Luanda. Mas não há dúvida de que, uma vez materialmente
tornados possíveis, eles foram encetados.
Muito diferente foi aquilo que se passou no que toca a
uma descentralização. Não se pode efectivamente falar de
descentralização em Angola, nem mesmo hoje em dia, em
plena 2ª República. Não quer isto dizer que não tenha havido,
pela parte do Estado, expressões de uma intenção clara de
levar para a frente este outro processo. Pelo contrário, tais
expressões têm sido comuns, sobretudo no que respeita aos
projectos formulados em relação a algumas regiões do país.
Mas têm-se revelado pouco eficazes.
Quais os seus pontos de aplicação? A descentralização
tem sido uma intenção que, em Angola, se tem vindo a
delinear como devendo contemplar duas frentes maiores: a
concretização do imperativo constitucional de
“autarquização” do território, e a instituição, no país, de um
verdadeiro “poder local”. A par e passo tocarei estas duas
frentes de descentralizações, bem como a ligação entre elas.
Antes disso, importa porém introduzir um terceiro
termo na nossa equação: as “autoridades tradicionais”. O que
insere, na nossa análise, um muitíssimo maior grau de
complexidade. De facto, a progressão administrativa pós-
colonial em Angola não tem sido simples. De par com, por
um lado, o esbatimento na concentração de poderes estaduais
que até há bem pouco tempo fora habitual em Angola e, por
outro lado, a expressão de uma intenção, se bem que todavia
não concretizada, de uma efectiva descentralização político-
administrativa, verificam-se desde inícios dos anos 90 no
país alguns esforços de dar corpo a um conjunto muitíssimo
mais inovador de iniciativas que visam o reconhecimento-
integração, no sistema de organização administrativa
nacional, das chamadas “autoridades tradicionais”. Esforços
esses que estão apoiados numa disposição constitucional
explícita que, com o fim da guerra civil, se intensificaram
rapidamente. E que, embora se possam inscrever no âmbito
de um processo genérico de descentralização autárquica
“normal”, dele se distinguem com clareza tanto pela

161
variabilidade que implicam (de acordo com as características
político-organizacionais da entidade “tradicional” em causa)
quanto pelo tipo de questões que suscitam.
Por outras palavras: em simultâneo com a
desconcentração e a descentralização, tem-se verificado o
esboço de um crescendo no reconhecimento, pelo Estado
angolano pós-colonial, de “entidades políticas tradicionais”
dotadas de algumas características autárquicas próprias210 e
variáveis caso a caso. Embora uma tal equação com três
termos viesse de trás, todavia, só com a evolução da guerra
em termos favoráveis ao Governo se veio a tentar um
primeiro esboço de uma sua concretização conjunta efectiva.
Como seria de esperar, o processo foi (e continua a ser)
moroso.

6.2.2. A ADMINISTRAÇÃO PERIFÉRICA, A


ADMINISTRAÇÃO LOCAL E AS “AUTORIDADES
TRADICIONAIS” EM ANGOLA: UM
DESDOBRAMENTO PARALELO?

Mantendo os olhos nos desenvolvimentos ocorridos


nos últimos anos, revisitemos então aquilo que foi dito, desta
feita com uma maior resolução de imagens. E façamo-lo
trazendo a progressão até ao presente.
A nova orquestração do aparelho do Estado no
território nacional angolano sofreu alterações de relevo com
a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 17/99, de 29 de
Outubro211. É este o diploma que ainda hoje nos diz qual a
210
Convém aqui precisar que uso esta expressão consciente de que ela fica, ao mesmo
tempo, aquém e para lá do sentido e alcance que é semanticamente habitual. Por um
lado, não nos podemos esquecer que a autarquia pressupõe um sentimento de pertença
a uma comunidade política cuja linha divisória entre o “público” e o “privado” tem
uma localização sui generis. Por outro lado, trata-se do exercício de um poder que
excede os muros da autarquia, no sentido de concentrar em si funções próprias da
máquina estadual, como legislativa e a jurisdicional. Parece-me, em todo o caso,
simulaneamente útil e inócua a utilização da expressão.
211
A matéria vinha regulada anteriormente no estatuto orgânico do Ministério da
Administração do Território, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 8/98. Já no ano 2000,

162
forma pela qual o aparelho do Estado se organiza. Ao lado de
uma Administração Central, o Estado angolano pós-colonial
encontra-se arvorado em quatro níveis de circunscrição
territorial: aquilo a que se convencionou chamar de
Administração Periférica do Estado212. Trata-se de
circunscrições territoriais onde os vários Ministérios
executam a política do Governo em porções geográficas mais
pequenas do território do país, através das suas dependências
a nível da Província213, do Município214, da Comuna215 e do
Bairro ou Povoação216. Estamos, em qualquer caso, perante
serviços desconcentrados na dependência directa dos
serviços centrais: podendo falar-se por isso, ainda, em
“administração directa do Estado”217. Deixo à margem a
questão de saber se com a entrada em vigor deste Decreto-
Lei se deu cumprimento ao imperativo constitucional de
descentralização e desconcentração administrativa que vem
previsto na Lei Fundamental, no seu art. 54.º, al. e).
O mesmo preceito constitucional indica, ao mesmo
tempo, a autonomia local218 como princípio pelo qual os

dando cumprimento ao n.º 2 do art. 63.º e do art. 64.º do Decreto-Lei n.º 17/99, de 29
de Outubro, o paradigma e o quadro de pessoal dos Governos das Províncias, das
Administrações dos Municípios e das Comunas foram objecto de regulamentação no
Decreto-Lei n.º 27/00, de 19 de Maio, aprovado em Conselho de Ministros.
212
Cf. João Caupers, Administração Periférica do Estado – Estudo de Ciência da
Administração, Lisboa, 1994.
213
Existem ao todo 18 Províncias. São elas: Bengo; Benguela; Bié; Cabinda; Cunene;
Huambo; Huila; Kuando Kubango; Kwanza Norte; Kwanza Sul; Luanda; Lunda
Norte; Lunda Sul; Malange; Moxico; Namibe; Uige; Zaire.
214
É 164 o número de Municípios espalhados pelas diversas Províncias angolanas.
215
É 557 o número de Comunas espalhadas pelos diversos Municípios.
216
Cf. art. 55.º da Lei Constitucional.
217
Como foi sublinhado por Carlos Feijó, 2001, “[o]s órgãos administrativos locais
desconcentrados não gerem nem administram interesses próprios das comunidades
locais e não são órgãos representativos das populações locais”. Cf. Problemas actuais
do Direito Público Angolano – Contributos para a sua compreensão, p. 70.
218
A Lei Constitucional não se fica por aqui na afirmação da importância que a
autonomia local, enquanto pilar de um Estado de Direito democrático assume para o

163
órgãos do Estado se devem organizar e funcionar. Quanto a
esta, pode-se desde já adiantar que a sua recepção pelo
legislador tem sido problemática, não se antevendo em
Angola, por ora, qualquer grande passo no sentido da sua
eventual implantação219. Poucos passos têm efectivamnte

legislador constituinte. Este reitera a existência daquilo a que podemos chamar um


dever Constitucional de legislar, uma espécie de prescrição médica para tratamento
permanente que o farmacêutico, a dada altura, recusa aviar. Cf. arts. 145.º e ss..
Estamos perante aquilo que a dogmática jurídico-constitucional designa como
Untermassverbot ou de “proibição do défice”. Com efeito, segundo o critério da
densidade normativa, o legislador fica obrigado na medida daquilo que seja
materialmente determinável a partir dos preceitos constitucionais. J. Gomes Canotilho
fala de carácter determinado das tarefas nas regras constitucionais impositivas em
Direito Consitucional e Teoria da Constituição, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, 2000,
pág. 1136. Numa palavra: o grau de vinculação do legislador face à Constituição será
tanto maior quanto maior for a densidade normativa dos preceitos constitucionais. Cf.,
para uma abordagem de conjunto sobre a matéria, J. C. Vieira de Andrade, 2001, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª. edição, Coimbra.
219
Perspectivá-lo contra o seu pano de fundo histórico é revelador. É certo que, em
relação ao poder local, a Comissão Constitucional aprovou princípios como “a
autonomia local e a descentralização e desconcentração administrativa e financeira no
quadro do Estado unitário visando o exercício harmonioso do poder e a promoção e
consolidação da unidade nacional” bem como “a eleição por sufrágio universal, livre,
directo, secreto, igual e periódico [...] dos órgãos representativos do poder local”, só
que, em nosso modo de ver, não estamos perante nenhum progresso no sentido da
plena consagração do poder local. Porquê? Desde logo, porque não há nenhuma
inovação naquilo que será a nova redacção da Constituição de 1992 (com efeito, todos
estes princípios já anteriormente tinham dignidade Constitucional). Por outro lado,
nada garante que, à imagem do que sucedeu desde 1992, a inércia do legislador não
continue a adiar sine die a concretização das opções constitucionais. Mesmo em
relação à desconcentração dos órgãos do Estado, o legislador ficou muito aquém do
que se lhe impunha. Depois de enumerar os vários diplomas que densificam as
competências desconcentradas sobre o regime financeiro, a saber: o Decreto n.º 6/95,
de 7 de Abril, Despachos Conjuntos n.º 29/96, de 8 de Maio e n.º 38/96, de 29 de
Março, no Decreto-Executivo n.º 80/99, de 28 de Maio, no Decreto-Executivo n.º
30/00, de 28 de Abril e Decreto n.º 11/95, de 5 de Maio (sobre investimento público),
Vergílio Pereira considera “esta legislação insuficiente para esvaziar a excessiva
centralização administrativa e para o que se pretende com um processo de
desconcentração profunda, [sendo] praticamente inexistente para a efectiva
institucionalização do poder local”. Cf. O poder local e o desenvolvimento, in
Conferência Internacional – Angola: Direito, Democracia, Paz e Desenvolvimento,
Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, Luanda, 2001, p. 320. Na
mesma linha de raciocínio, e apesar do aventado no plano político, Rui Ferreira
queixou-se da falta de um “processo gradual de autarquização”. Quando lhe
perguntámos se ele conseguia periodizar esse processo em curto, médio e longo
prazo, o Professor respondeu-nos, com alguma graça: “eu tenho uma ideia sobre o
curto; já devia ter começado”. Já o Presidente da República se colocou ao lado
daqueles que têm vontade política para caminhar no sentido da concretização da

164
sido dados em Angola no sentido de uma qualquer
decentralização político-administrativa.
Em todo o caso nem tudo tem estado parado nessa
frente. Com a paz e o acesso governamental a todo o
território e a toda a população, tudo indica haver uma nova
disponibilidade para encetar esse tão protelado processo de
descentralizar a administração estadual de Angola. Em
Fevereiro de 2002, o Conselho de Ministros angolano
aprovou um “plano estratégico” sobre a desconcentração e
descentralização administrativa num país ao que parece
finalmente pacificado. Trata-se de um documento em que se
adoptam linhas para uma relativamente célere evolução
política, administrativa e legislativa da administração ao
nível local, nos seguintes termos: por um lado, foi adoptado
um princípio de gradualismo nos termos do qual se cuidará
primeiro de uma fase de desconcentração administrativa (que
deverá durar mais ou menos 2 ou 3 anos), seguir-se-lhe uma
fase de descentralização administrativa e a
institucionalização das autarquias locais (num intervalo de
mais ou menos 4 ou 5 anos), salvo se, antes desses períodos,
algumas circunscrições administrativas se revelarem em
condições para, mais cedo, se verem dotadas, caso a caso, de
autarquias locais.
Por outro lado, foi adoptado um princípio de
transitoriedade funcional, em cujos termos as funções
exercidas pelos actuais órgãos locais do Estado
(desconcentrados localmente) deverão ser transferidas para
os órgãos autárquicos na fase da descentralização
administrativa. O momento oportuno da passagem da fase da
desconcentração para a descentralização administrativa será
determinado pelo Parlamento e obedecendo ao princípio do
gradualismo nos termos do qual deverá ver-se determinada,
orientação Constitucional ao criar, pelo Despacho n.º 7/00, de 17 de Novembro, uma
Comissão Técnica, sob a coordenação do Ministério do Território e integrada por
individualidades destacadas em vários domínio (desde geógrafos a arquitectos e
juristas). Trata-se da Comissão Técnica para a divisão político-administrativa, que
tem como tarefa estudar a divisão actual do território e propor novas alterações,
parametrizadas pela consagração constitucional da descentralização administrativa e
da autonomia local.

165
por Lei, a oportunidade da institucionalização efectiva das
autarquias, o alargamento das suas atribuições e o
doseamento da tutela de mérito. Caberá, também, ao
Parlamento determinar a antecipação de acções de uma e
outra fase.
Muitíssimo mais complicado se irá, no entanto, decerto
revelar, ou traduzir, o desdobramento simultâneo de áreas de
jurisdição “paralela” de “autoridades tradicionais” em
Angola. Não se trata, apenas, de temer pelo futuro, tendo em
mente a inextricabilidade de problemas (tanto técnico-
jurídicos como políticos) que não deixarão certamente de ser
suscitados pela simultaniedade de três frentes de alterações.
Apesar de uma preocupação a esse nível ser compreensível: a
introdução de um terceiro grupo de variáveis irá seguramente
dificultar enormente tanto a conceptualização como a
implementação das inovações programadas, sejam elas quais
forem. É muito mais do que isso.
Como iremos ter oportunidade de verificar, o carácter
não-estadual das “autoridades tradicionais” pode vir a criar
problemas político-administrativos de fundo, a vários níveis
e em vários planos, que poderão pôr em cheque, não só a
governabilidade, como até a própria legitimidade, do Estado
pós-colonial em Angola220.

6.2.3. REPRESENTAÇÕES DUALISTAS: ENTRE A


CULTURA E O PODER

220
É certo que, ao submeter-se a um processo de reconhecimento pelo Estado
(incluindo uma submissão, simbólica e pecuniária a este), as autoridades passam de
algum modo de “tradicionais” a criações modernas desse Estado. Mas isso é apenas
verdade da perspectiva do Estado e do seu Direito: nada nos garante que essa
submissão ao “poder público” seja assumida pelas autoridades elas próprias. O que,
para antecipar um pouco as minhas conclusões nesta subsecção deste estudo, faz eco
das preocupações sugeridas em termos gerais por Joel Migdal (2001: 125), quando
este nos alertou (com África em mente) para o facto de que “the meeting grounds of
states and other social forces have been ones in which conflict and complicity,
opposition and coalition, corruption and cooperation have resolved the shape of
countrywide social and political changes. They have determined whether domination
is integrated or dispersed, as well as the varying contours of integrated or dispersed
domination”.

166
Se repostas nos seus contextos concretos, as
justificações-fundamentações para os desdobramentos
paralelos dos três termos da equação (chame-se-lhe isso) que
enumerei são simples de elucidar. Para além de algum
instrumentalismo, o que manifestamente tem estado em
causa em Angola, neste plano, é uma mistura saborosa de um
novo e saudável realismo político-administrativo com
persistentes e mais velhas representações nacionalistas.
Desfiar os Leitmotifs do Estado angolano no processo
(ou melhor, os daqueles que nele detêem o poder) não é
difícil. Uma das suas motivações é clara e assumidamente
político-pragmática e está relacionada tanto com a fraqueza e
a pouca capacidade administrativa que na Angola pós-
colonial têm sido tão manifestas como com a crise de
legitimidade com que depara o controlo estatal. Como vimos,
o Estado angolano está longe de ter conseguido uma efectiva
e homogénea penetração de todo o território e de toda a
população que, nominalmente, tem como função tutelar. As
insuficiências a estes níveis podem ter tendência a diminuir
com o advento recente da paz; mas, por outro lado, tornaram-
se mais visíveis nos últimos anos com a liberdade de
expressão e os processos, ainda que incipientes, de formação
de opiniões públicas locais, regionais, e nacionais. Foi
essencialmente sobre as “autoridades tradicionais” (ou seja,
sobre os vários tipos de dignatários que, caso a caso, foram
assumindo tais funções) que a manutenção da ordem social
recaíu, durante o longo intervalo desde a independência,
sobretudo nos territórios ocupados pela UNITA, ou naqueles
em que por razões logísticas (ou como resultado de outras
prioridades estratégicas) estiveram fora da alçada político-
administrativa estadual221.
221
Não muito longe desta posição parece estar Boaventura de Sousa Santos (2003, op.
cit.), que em relação ao muito diferente caso moçambicano asseverou: “a nosso ver, a
maior visibilidade das autoridades locais está [em Moçambique] relacionada com a
fraqueza do Estado por duas vias principais: pela incapacidade administrativa do
Estado e pela perda de legitimidade do poder estatal”. Concordo ainda com B. De
Sousa Santos quando este afirma que “a questão decisiva [com o reconhecimento da
“presença” e “actuação” destas autoridades no “tecido administrativo”] é a de saber

167
No entanto, estes considerandos político-pragmáticos,
como lhes chamei, não contituíram seguramente a única
motivação do Estado em Angola para permitir e incentivar
uma maior visibilidade das “autoridades tradicionais”. Uma
vez assumidos os constrangimentos materiais existentes e a
sua evolução na Angola pós-colonial, torna-se bastante
transparente a lógica da progressão que tem tido lugar.
Sobretudo se tomarmos em linha de conta as invocações de
“africanidade” e de “autenticidade tradicional” que a UNITA
tem vindo a fazer suas, designada, mas não somente, na sua
principal área de implantação, o Planalto Central:
precisamente uma das regiões de Angola em que estão
estabelecidas “autoridades tradicionais” mais vigorosas e
incontornáveis.
Invocações de africanidade não caem em saco roto,
numa Angola que disso se orgulha. E por muito que os seus
conterrâneos urbanos professem desprezá-las, as
“autoridades tradicionais” tendem a ser concebidas pelos
angolanos como instâncias “anteriores ao Estado”, cuja
legitimidade estaria por isso mesmo ancorada em formas
históricas de organização social. Toda a educação
nacionalista anti-colonial da 1ª República militou
ardorosamente, e com alguma eficácia, no sentido de criar
tais convicções. Os processos de formação de uma opinião
pública desencadeados pela 2ª República cristalizaram-nas,
em mais larga escala.
A recuperação-reconhecimento das “autoridades
tradicionais” é, por isso, uma acção de interesse mútuo para o
Estado e para os lideres dessas “formas políticas ancoradas
na tradição”. Do ponto de vista do Estado angolano, o seu
reconhecimento-integração preencherá duas funções: uma
extensão da sua própria implantação, ainda que em moldes
“indirectos”; e um “retorno” a formas de organização
“tradicionais”, manipuladas ou destruídas pelo colonialismo.

até que ponto a partilha do controlo administrativo envolve a partilha do controlo


político”. É precisamente nesse espaço problemático que ancoro as dúvidas com que
termino a presente secção deste estudo introdutório.

168
O preenchimento de ambas estas funções, sobretudo tendo
em vista que o formato assumido é o de uma “submissão”
das “autoridades tradicionais”, ampliaria a legitimidade do
Estado. Do ponto de vista das “autoridades tradicionais” em
causa, um reconhecimento-integração preenche igualmente
diversas funções, que vão de um potencial aumento da sua
implantação efectiva num território e junto a uma população,
logrado por meio do suplemento de legitimidade acumulada
pela ligação ao Estado, à aquisição dos vários proventos e
das diversas “mordomias” que esse novo estatuto lhes
concede222.
Num plano mais geral, também não é difícil entrever o
quadro nocional que tornou possível que questões deste tipo
viessem acrescentar um previsível grau suplementar de
complexidade ao funcionamento da administação estadual
angolana. Enunciemo-lo, na sua versão mais comum, a
dodiscurso oficial.
O discurso oficial sobre o tema entretido em Angola
parece ter dois níveis: um, político-pragmático, ligado a uma
intencionalidade política e a uma leitura da realidade social
complexa com que depara; e um outro, que manifesta uma
pré-compreensão mais profunda dessa realidade social,
cultural e histórica sobre a qual se debruça. A nível
ostensivo, raciocina-se muitas vezes em Angola em termos
“logísticos” e “instrumentais”, mas sempre de acordo com
modelizações cujos conteúdos e pontos de aplicação variam
em função dos diferentes objectivos e preocupações mantidos
por quem entretenha esses discursos e formule as asserções
que os compõem.
Nada de muito surpreendente. Interessante será em
todo o caso frisar as especificidades dessa dualidade nos
discursos angolanos contemporâneos. Já que me parece que
222
Da atribuição de uma viatura todo-o-terreno ao pagamento de um salário regular e
ao direito a utilizar um uniforme especialmente desenhado para o efeito. Não será
surpresa verificar que cresceu de maneira abrupta o número de pessoas que invocam
tal estatuto. De acordo com a documentação oficial, existiriam, em meados de 2002,
cerca de 25.000 autoridades tradicionais “registadas” e a receber essas mordomias, em
Angola.

169
aquilo que ela põe em evidência são representações
socioculturais profundas, implícitos impensados mas nem por
isso menos actuantes.
A regra que subjaz ao “jogo” é simples. Ao nível da
pré-formatação de conceitos, vive-se hoje (entre as elites que
detêm o poder) uma nítida tensão entre, por um lado, uma
ambição político-administrativa “modernizante”, que visa a
cobertura geral e hegemónica do território angolano pelo
Estado; e, por outro lado, uma muito sensível ânsia
nacionalista (que nalguns casos assume feições mais
“nativistas” de uma “autenticidade africana” menos
sintonizada com os projectos de “modernização”
dominantes) que insiste numa retoma das formas políticas
“tradicionais”, tidas como “autónomas e espontâneas” (isto é,
não influenciadas pela dominação europeia), cuja legitimação
é construída pelo imaginário político como um reencontro,
política e culturalmente imperativo, com “tradições
ancestrais destruídas, ou subalternizadas, vítimas violentas da
colonização”. De acordo com essa segunda parcela das pré-
formatações que subtendem os discursos dos detentores
angolanos do poder, redundaria, no fundo, numa questão de
dignidade cultural e política assegurar esse reencontro
histórico, reatando com essas “formas tradicionais”.
Muitas das autoridades estatais com quem falei em
Angola esforçaram-se por tentar conciliar esses dois pólos,
largamente antinómicos, da sua própria pré-formatação, num
modelo unificado que permitisse levar a cabo a extensão, por
fim político-militarmente possível com a derrota da UNITA
(mas um modelo que, tal como no período imediatamente
posterior á independência, depara com inúmeras dificuldades
“logísticas”, nomeadamente em termos de organização e de
recrutamento de pessoal), da administração do território e das
populações do país pelo Estado. E pressente-se que a tensão,
que é tão inevitável quão difícil de neutralizar, entre essas
duas forças antagónicas223, tem de alguma forma dominado

223
Para uma perspectiva parcialmente diferente da minha, é útil a leitura do artigo já
citado de M. O. Hinz (1995), em que é defendida a possibilidade de uma

170
as discussões e a ponderações político-jurídicas que têm
vindo a ter lugar.
Antes de me debruçar sobre as implicações disto, vale
no entanto a pena determo-nos um pouco no que subtende o
jogo desta antinomia difícil, fornecendo-lhe alguma
inteligibilidade histórica suplementar. Levar a cabo um
pequeno excurso lateral, se se quiser.
Comecemos por trás. Uma das primeiras atitudes, no
que toca à África, daquilo que Jan Nederveen Pieterse e
Bhikhu Parekh224 graficamente apelidaram de “cultural
decolonizing gestures”, foi sem dúvida a teoria da négritude,
desenvolvida em Paris nos anos 30 do século XX por
intelectuais africanos francófonos que aí sonhavam com a
auto-determinação dos seus povos, personalidades como
Léopold Sedar Senghor e Aimé Césaire. Tratava-se da
gestação de uma “filosofia” (era o termo usado) que
advogava o reconhecimento de uma simultânea alteridade e
humanidade dos africanos, uma asserção então tida (entre as
elites europeias que pontificavam nos contextos coloniais,
pacificados mas efervescentes, do entre-Guerras) como
expressiva de uma postura saudavelmente “revolucionária”.
Todavia, a boa recepção destas ideias, mesmo quando
elas eram conciliáveis com as ideologias universalistas então
vigentes na Europa, tinha limites materiais muito concretos.
Limiares que com rapidez a evolução das coisas galgou. Os
tempos tinham mudado, e o que antes eram asserções de
equivalência cultural, depressa se transformou em invocações
“separatistas”. Variações sobre esse tema precursor, essas
menos bem recebidas pelas intelligentsias ocidentais oficiais,
adoptaram nomes como o de Africanité, autenticité africaine
ou African authenticity, e transformaram-se (tanto na África
francófona, como na anglófona, como ainda na lusófona) em
compatibilização-integração jurídica, desde que “não-hierárquica”, dos dois sistemas
de legitimação: o “tradicional” e o “democrático”. Em minha opinião, Hinz atem-se
excessivamente, no seu trabalho, a questões técnico-jurídicas de harmonização,
perdendo de vista o seu enquadramento político e diacrónico (precisamente as
dimensões em que as maiores dificuldades me parecem ser suscitadas).
224
Jan Nederveen Pieterse e Bhikhu Parekh, 1995: 7.

171
títulos de programas nacionalistas firmemente anti-coloniais
e anti-“neo-coloniais” que muitas vezes se assumiam como
vanguardas militantes de experiências socialistas em África.
A adopção deste tipo de posturas, nos anos 50 a 70,
intervalo em que emergiu e se afirmou a maior parte dos
agrupamentos nacionalistas, propagou-se a numerosos líderes
e movimentos irredentistas africanos da mais variada
coloração político-ideológica, de Kwame Nkrumah a Mobutu
Sese Seko, passando por Julius Nyerere, Jonas Savimbi e
Kenneth Kaunda. Porventura potenciadas pela sua
apropriação por políticos africanos tidos como
“colaboracionistas” e “reaccionários”, muitas foram as
críticas internas a este tipo de “gesto”, desde as que insistiam
na improcedência de favorecer a libertação cultural e
“espiritual”, na prática assim secundarizando a luta
económica e política, às que alertavam para os perigos de
uma romantização idílica do passado africano pré-colonial,
ou àquelas outras que ridicularizavam a veleidade de
proclamar uma negritude evidente por si própria.
Cedo em Angola, por exemplo, e perante um MPLA
com fortes bases nas comunidades angolanas mestiças e
brancas, foi assumida, pela mão autoritativa de Agostinho
Neto, uma posição de firmeza contra expressões políticas de
“negritude” ou “autenticidade”, insistindo (embora o tivesse
feito com alguma ambiguidade) que não representavam
correctamente a realidade empírica da fusão colonial e
denunciando-as, para além do mais, como sendo retrógradas.
Para o regime angolano da 1ª República (pelo menos
oficialmente) posturas deste tipo redundavam em pouco mais
do que numa espécie generalizada de “tribalismo”, que nos
termos da “teoria das nacionalidades” local, afim da
congénere soviética de pergaminhos estalinistas, tendiam a
ser olhadas como tão perigosas como “fraccionistas”.
Curiosamente, os anos 70 e 80, apoiados primeiro na
contestação a favor da universalização das liberdades cívicas
nos Estados Unidos e depois na crescente agitação anti-
apartheid focada no regime em vigor na África do Sul,

172
vieram dar palco a diversos movimentos de afirmação negra,
do anódino black is beautiful ao black power, ao muitíssimo
mais radical black consciousness propugnado pelo activista
sul-africano Steven Biko. Movimentos esses que, pela
importância e centralidade política dos contextos de luta (os
EUA e a África do Sul, o “último bastião do colonialismo em
África”) em que se inseriam (tanto em termos da ordem
bipolar, como num sentido humanista menos conjuntural),
significaram um reganhar de legitimidade política, pelo
menos em meios africanos que se consideravam “de
esquerda”, para estas novas tendências político-identitária e
de reconhecimento.
Em Angola, o apogeu desta fertilização cruzada situa-
se em meados dos anos 80. A tónica dessas novas
formulações (a expressão mais plena desta postura foi
decerto a do carismático Steven Biko, uma espécie de
Doppelgänger “negro”, em sentido literal e figurativo, de
Nelson Mandela, expeditamente assassinado, quando já na
prisão, pelas autoridades do regime do apartheid) era a da
necessidade imperativa de uma afirmação política autónoma
e independente dos africanos negros, sem que fossem feitas
nenhumas concessões a hipotéticos apoios ou alianças com
quaisquer outros agrupamentos “étnicos”. Esse apogeu
coincidiu com as viragens prenunciadas no 2º Congresso do
MPLA, em 1985, e as primeiras decisões de subalternização
da tendência “argelina” (uma alusão tanto à sua cor de pele
como à sua passagem por Argel) mais marxista-leninista até
então ainda com foros de cidadania plena no partido único no
poder, uma “sensibilidade” protagonizada por Lúcio Lara,
“Iko” Carreira e Paulo Jorge, por exemplo225 e, a um nível
mais “intelectual”, o poeta António Jacinto.
Para diversos observadores da época, nomeadamente
vários dos membros das novas e velhas elites “crioulas” e
brancas226 situados no interior do MPLA, não se tratava de
225
Cf. T. Hodges, op. cit.: 79.
226
D. Birmingham, 2002: 148ss.

173
uma coincidência; muitos entreviram antes a mudança como
um forte indício de uma fase mais aguerrida de uma velha
luta por uma sobrevivência “racial”, cujos antecedentes no
próprio interior do partido, alegou-se então, seriam
“detectáveis desde os tempos áureos da luta armada”227. Em
consonância, as tensões étnicas subiram de tom em Angola,
um processo que continuou pelos anos 80 afora, assumindo
várias faces e manifestando-se de múltiplas formas.
Esta dimensão da “etnicidade” (ou de “política de
identidade e reconhecimento”) no interior do MPLA é um
tema quase tabu em Angola, ao que porventura não será
indiferente o facto de o exclusivismo étnico e o “racismo”
serem críticas comuns tradicionalmente lançadas contra a
UNITA. Nada disto foi objecto de qualquer estudo, pese
embora a sua óbvia centralidade para a compreensão dos
processos socioculturais subsequentes em Angola.
Os projectos de re-africanização integral da sociedade
angolana pós-colonial, para além dos melindres e das
dificuldades sociológicas com que tem deparado num país
racialmente heterogéneo, em que muitos agrupamentos de
não-negros se constituem em elites com alguma
profundidade histórica228, esbarram também em condições
materiais menos evidentes, limites de viabilidade conceptual.
A minha finalidade, no longo comentário que se segue, é a de
identificar a natureza de algumas dessas dificuldades
conceptuais. Nesse contexto, e no que diz respeito às
dificuldades inerentes à ligação das elites angolanas com
Portugal, alguma coisa podemos acrescentar, no fundo
revisitando as questões de um outro ângulo do que o do senso
comum, numa resolução mais microscópica, por assim dizer.
Continuemos, novamente com um enquadramento
geral. Como afirmaram Jan N. Pieterse e Bhiku Parekh229,

227
Vd. e.g. J.-M. M. Tali, 2001, vol. 1: 119-161.
228
Cf. J. Dias, 1984, ou D. Birmingham, 1995, 2002: 148-151.
229
Jan N. Pieterse e Bhiku Parekh , 1995, op. cit.: 1).

174
“conquest and domination may have been perennial in
human history, but Western imperialism differs from other
episodes of domination” em vários sentidos interessantes que
o tornaram num “much more complex and far-reaching
process than any previous mode of domination”. À
hegemonia nas esferas científica e tecnológica juntaram-se
uma clara predominância nas áreas da economia e da
política, numa mistura peculiar profundamente marcada por
um universalismo programático que se reflectiu em conceitos
como por exemplo os de raça, progresso, evolução,
civilização, ou desenvolvimento, permeados de forma
indelével por aquilo que não será exagerado apelidar de
“efeitos de poder”.
A dominação colonial portuguesa em muitos sentidos
acrescentou a esses efeitos da hegemonia ocidental geral
outros mais, que em muitas instâncias se lhes adicionaram:
uma forte tónica religiosa e um marcado sentido de
“excepcionalismo” e de “destino manifesto” (para utilizar
expressões norte-americanas emprestadas), bem como uma
“personalização” das relações de dominação que ia
estabelecendo. As configurações que isso assumiu variaram
pouco. O colonialismo português foi em muitos casos
persistente, como o foi em Angola, em garantir uma
implantação local de portugueses e da “cultura portuguesa”,
duas coisas concebidas e comunicadas como permanentes; e
fez questão, por via de regra, de exercer o seu controlo
colonial através de laços (reais ou putativos) de
consanguinidade e afinidade que “naturalizaram” essa
permanência.
Não é árduo compreender a potenciação que isso
significou ao nível dos efeitos de poder a que fizemos alusão.
Há porém uma dimensão das suas implicações que por norma
negligenciamos.
Mais uma vez, esbocemos um enquadramento
genérico. É comum insistir que a dominação colonial
ocidental (e a portuguesa nisso não forma excepção) trouxe
consigo ideias e valores “modernos”, e ideais como por

175
exemplo os do liberalismo, os da industrialização, ou a ideia
ela mesma do Estado. No caso específico da colonização de
Angola, as formas discursivas “clássicas” que a intentam
descrever concedem sempre, como arenas dessa
“transmissão”, instituições como a instrução e a Casa dos
Estudantes do Império (cuja centralidade para os movimentos
nacionalistas independentistas é invariavelmente acentuada);
as elites são, nessas narrativas, retratadas como “correias
dessa transmissão”.
Um mínimo de atenção revela porém que a situação foi
decerto bem mais complexa. As populações angolanas
dominadas não foram seguramente meros receptores passivos
de ideologias e sistemas importados “à peça” ou “por
atacado”. Sofreram uma “tradução”, no sentido mais forte do
termo. Como Pieterse e Parekh230 insistiram, “values and
institutions introduced by colonial rule could not last or even
be understood unless they were grafted onto their hospitable
traditional analogues”. Isso significou, naturalmente,
processos complexos de interpretação e adaptação de ideias,
instituições e práticas, tanto pelos colonos como pelos
colonizados: os novos valores e instituições introduzidos pelo
processo colonial penetraram como que por osmose; mas
fizeram-no sempre mediados por uma forte “auto-
consciência crítica”, chamemos-lhe assim, resultante das
traduções e interpretações levadas a cabo. Sofreram
reconfigurações. Muitas vezes, aliás, a dominação colonial
não foi exercida sobre toda a população, nem o foi
directamente231.
Não é verdade, pura e simplesmente (sejam quais
forem as versões messiânicas destes processo que a mitologia
colonial e salvífica portuguesa prefira arvorar), que as
tradições e instituições locais angolanas tenham sido
destruídas, ou apagadas, pela colonização. Foram antes
reformuladas, na maioria dos casos por intermédio da

230
Ibid: 2.
231
Cf. J. Herbst, 2000, op. cit.: 58-80.

176
mediação dos próprios africanos, ou pelo menos de membros
“co-optados” (quantas vezes por recurso aos processos de
“naturalização” a que aludimos) das elites locais.
Da perspectiva de uma enorme parte das populações
angolanas “subjugadas”, os colonizadores eram decerto
entrevistos como mais um grupo incursor, portador de mais
um idioma organizacional e relacional; um grupo ademais
em muitos caso visto como um recurso a ser
instrumentalizado para benefício próprio no meio sócio-
político circundante232. Falar, como muitas vezes se fala, de
transferências culturais directas e de uma “ocidentalização
hegemónica” dos subalternos colonizados significa, por um
lado, uma reificação e uma glorificação (ou, pelo contrário,
uma demonização) indevidas da dominação colonial que
efectivamente teve lugar, e são coisas que por isso tendem a
ser enunciadas quase em exclusivo pelos mais fervorosos
pró- e anti-colonialistas; para além do que, repetimos,
redunda, por outro lado, numa minorização dos conquistados,
implicitamente representados como meras vítimas passivas
de um novo poder avassalador.
O resultado é conhecido. A imagem decorrente,
profundamente enganadora, é a de sujeitos (angolanos ou
quaisquer outros ex-colonizados) impotentes e submetidos,
que ficariam inevitável e dolorosamente divididos entre uma
parte “tradicional” e outra “moderna”.
Todavia, a realidade é bem mais complexa, como aliás
seria de esperar tendo em vista a natureza da dominação
colonial exercida, os múltiplos canais utilizados, e a
participação nela (ambígua mas activa) de muitos dos mais
bem posicionados (em termos de legitimidade local)
“formadores de opiniões” entre os próprios colonizados. Ao
contrário do que advogam as narrativas pró- e anti-coloniais
“clássicas”, a resultante não é a criação de uma

232
E: L. Schieffelin, 1995

177
“esquizofrenia cultural”: é antes uma de fusão, lograda em
termos de uma “hibridez cultural” profunda233.
O que foi produzido em Angola foi uma hibridização
em que se torna extremamente difícil, e em muitos casos
mesmo impossível, identificar quais os valores, instituições e
identidades que fazem parte do legado colonial de origem
estrangeira234. O produto final é uma configuração
conceptual (ou “cultural”, se se preferir o termo)
generalizada em que não se pode em boa verdade falar de
fontes locais e de fontes externas, mas antes apenas em
dimensões locais e em dimensões externas de todas as
fontes235.
Para os actores sociais angolanos envolvidos que
estejam apostados em exorcisar as “importações coloniais”, e
em redescobrir (para com elas reatar) as formas
“tradicionais”, as consequências podem tornar-se
angustiantes. Já que, para tornar a citar Pieterse e Parekh236,
“even as colonialism did not involve the imposition of
something entirely new and foreign, decolonization cannot
consist in discarding what is deemed to be alien. Colonialism
evolved a new consciousness out of the mixture of old and
new; decolonization has to follow the same route. It requires
not the restoration of a historically continuous and allegedly
pure precolonial heritage, but an imaginative creation of a
new form of consciousness and way of life”. Compreende-se
que num contexto nocional deste género, re-africanizar por
um retorno puro e simples a um “corpo de tradições” seja
pouco mais que uma declaração de intenções237. Como
também se compreende a veemência das reacções de
frustração desencadeadas pelas tentativas goradas de

233
Vd., eg, H. Bhabha, 1994, ou Z. Bauman, 1999.
234
Cf. F. Pacheco, 2002, op. cit: 11.
235
Vd. M. C. Neto, 2002: 7-8
236
Idem, 3-
237
Cf. M. C. Neto, 2002, op. cit.: 8.

178
conseguir esse retorno em nome de agendas independentistas
que advoguem formas exclusionárias de “nacionalismo
angolano”.

6.2.4. OS LIMITES DA CONGRUÊNCIA

Uma coisa, no entanto, são as motivações dos actores


sociais, outra a realidade político-jurídica nua e crua.
Quaisquer que sejam os motivos, ou as justificações
esgrimidas pelos seus defensores e independentemente das
suas óbvias ressonâncias político-nacionalistas, a verdade é
que o processo não deixa de esbarrar com escolhos.
Valerá a pena enumerar algumas das principais frentes
de problematização238 que esse desdobramento em duas
calhas suscita: a exequibilidade político-democrática de
conciliar-integrar entidades não-eleitas, e muitas vezes
autocráticas, com outras eleitas e responsabilizáveis por
sufragantes que as podem depor; as dificuldades “técnicas”
de delimitação de competências de entidades que não só não
reconhecem uma separação de poderes semelhante à
embutida nas cartilhas democráticas, mas que tendem a não
operar sequer distinções claras entre domínios como o
jurídico, o político, ou o místico-religioso; ou a
incongruência potencial resultante de delimitações-
circunscrições diferentes entre o “público” e o “privado”, que
238
Boaventura de Sousa Santos (2003), na sua introdução geral ao trabalho já citado
sobre “as justiças” em Moçambique, listou como “temas principais dos debates”
contemporâneos sobre “tradicionalidade” e “multiculturalidade” naquele país: (i) “a
africanidade e as políticas identitárias”, (ii) a “dupla legitimidade do poder e a
patrimonialização do Estado”, (iii) “a especificidade das autoridades tradicionais”,
(iv) “os limites do [seu] reconhecimento”, (v) a democraticidade das autoridades
tradicionais”, e (vi) “a feitiçaria e a gestão multicultural dos conflitos”. Porventura
com a excepção do último tópico (cuja discussão resulta certamente, em grande parte,
da criação em Moçambique de “tribunais comunitários”, instituições que não têm
contrapartida no caso angolano) são também estes os principais temas debatidos em
Luanda e nalgumas das capitais provinciais pelos políticos, juristas, cientistas socias e
responsáveis por ONGs implantadas em Angola que se preocupam com estas
questões. Acrescenta-se-lhes, em Angola, uma recusa “modernista” liminar dessas
autoridades, porventura menos representada em Moçambique.

179
não deixará de afligir muitos dos esforços de uma eventual
articulação-divisão de atribuições e competências entre estas
autoridades e o Estado239.
Podemos enunciar isto de uma maneira alternativa,
mais atida ao “jurídico” e aos ideais democráticos de uma
Boa Governação que a 2ª República angolana pretende
defender. Sem querer generalizar, não será demasiado
abusiva a asserção de que as formas político-jurídicas
tradicionais africanas têm por regra pouco em comum com
um Estado de Direito: nelas, nem a legitimidade dos
detentores do poder nem os seus actos estão submetidos ao
“império da lei”. Em vez de Constituições, as “autoridades
tradicionais” regem-se por um repertório muitas vezes
riquíssimo, mas comparativamente pouco diferenciado, de
preceitos morais, interpretações e re-interpretações dinâmicas
de costumes, provérbios ou adágios. A sua autoridade tende a
ser tão difusa como abrangente; mas não deixa por isso de ser
imensa. Tudo isto é problemático. De facto, e como escreveu
T. W. Bennett240, “the inclusion of traditional rulers in a
Constitution dedicated to democracy is a conspicuous
anomaly”. Alguns dos pontos de aplicação dessa “anomalia”
são fáceis de enumerar.
No que diz respeito às autoridades tradicionais, por
exemplo, é de notar que por norma o exercício de funções
legislativas não está na dependência de quaisquer sufrágios
populares periódicos, antes resulta de regras de
hereditariedade. Uma questão que não pode assim deixar de

239
A um nível politico, o risco incorrido é.nos ensinado pela experiência histórica.
Como escreveu J. Migdal (2001, op. cit.: 128): “in parts of colonial Africa […] the
British attempted to extend the scope of the colonial state by incorporating tribal
chiefs as paid officials. Many chiefs, for their part, gladly accepted the salary and any
other perquisites that they could garner but often ignored the directives from their
superiors in the state hierarchy. The demarcation between the state and other parts of
society in such instances was difficult to locate and was in constant flux. Chiefs were
state officials but sometimes – indeed, many times – simply used their state office and
its resources to strengthen their rule as chiefs”.
240
T. W. Bennett. 1998: 16. A citação foi extraída de um muito interessante estudo
deste juspublicista sul-africano sobre a contitucionalidade do reconhecimento da
autoridades tradicionais na Namíbia e na África do Sul.

180
ser colocada é a de eventuais contradições entre estes
sistemas hereditários e as cláusulas anti-discriminatórias da
Constituição angolana. Poderá, designadamente, uma mulher
no quadro das formas políticas “tradicionais” que o Estado
reconhece-integra ocupar um lugar de chefia? Em todo o
caso, legislações não são uma das características do Direito
costumeiro africano.
Também a nível dos poderes executivos, as
autoridades tradicionais tendem a ter um controlo pleno
(muitas vezes legitimado por via de uma espécie de ligação
directa aos antepassados, e cuja harmonização jurídica com o
Direito estadual não é simples) na escolha e na distribuição
de terras, na alocação de direitos de residência ou em
eventuais expropriações, na mobilização de mão-de-obra, e
na colecta de tributos e impostos: há poucas normas, nos
costumes que na sua actuação as autoridades tradicionais
invocam, que regulem o exercício de funções
administrativas. Tanto a nível burocrático-normativo como a
nível legal ou constitucional, há um claro deficit de checks
and balances.
O mesmo pode ser dito, mutatis mutandis, no que toca
aos poderes judiciais: tanto na delimitação de jurisdição
como no plano dos procedimentos, como ainda no das
punições e dos castigos, a actuação das autoridades
tradicionais parece dificilmente compatibilizável com o que é
legal e constitucionalmente aceitável.
O futuro nos dirá quais as soluções encontradas para
os escolhos com que, previsivelmente, irá esbarrar este
processo. Mas as questões suscitadas não me parecem ser de
fácil resolução. E, por omissão ou por comissão, a progressão
do processo político-legislativo angolano na regulamentação
destas e doutras questões que esta tensão não deixará de
suscitar está seguramente condenada a continuar a dar palco
ao conjunto de pré-formatações que subtendem a sua
intelegibilidade cultural local.

181
6.3. LITÍGIOS CONSTITUCIONAIS EM S. TOMÉ E
PRÍNCIPE

Se é verdade que o exemplo caboverdiano que atrás


aflorei põe claramente em evidência um curioso e
interessante entrosamento do jurídico e do sócio-religioso
naquele país africano, e se o exemplo angolano que acabei de
abordar é pelo seu lado revelador do tipo de dificuldades e
incongruências de fundo suscitadas pelo pluralismo existente,
o caso de S. Tomé e Príncipe é paradigmático da relativa (e
também curiosa, porque com alguns pontos de aplicação
inesperados) inextricabilidade do jurídico em relação ao
político e ao sociocultural. No terceiro e último dos exemplos
que esmiuço neste estudo-trabalho introdutório, abordarei
algumas das questões mais fascinantes que resultam de um
decantar detalhado da progressão histórico-política da 2ª
República em S. Tomé e Príncipe. Novamente me preocupo
com descortinar um enquadramento analítico unitário para a
complexidade estrutural manifestada.
O ponto de aplicação do que se segue estará
firmemente colocado nos litígios constitucionais tão
característicos da 2ª República: não, evidentemente, por os
considerar como causas da instabilidade política
regularmente sentida nesta fase da vida política pós-colonial
do arquipélago, mas visto se tratar de sintomas dela, e
sintomas de particular interesse.
O percurso analítico que me proponho percorrer é
simples. Aflorarei, um a um e também no seu inter-
relacionamento, os dois traços distintivos maiores que
enunciei. Em congruência com aquilo que tentei fazer no que
diz respeito à resolução-condução de litígios em Cabo Verde,
manterei sempre na linha da frente das preocupações que vou
tentando equacionar os múltiplos mecanismos de legitimação
política que, no arquipélago, subtendem aquilo que me vejo
tentado a chamar o regime de funcionamento do sistema.

182
6.3.1. OS CONFLITOS CONSTITUCIONAIS NO
ARQUIPÉLAGO: LINHAS DE FORÇA

Começando pelo pano de fundo: por muito breve que


seja a descrição da segunda e mais recente fase (a da 2ª
República que sobreveio à transição democrática encetada
em 1987 e concretizada com eleições multipartidárias e uma
nova Constituição em 1990241) da evolução política pós-
colonial do arquipélago e micro-Estado de S. Tomé e
Príncipe, as regularidades nela encontradas facilmente nos
permitem enumerar algumas das características que lhe são
transversais. O que é posto em evidência são outros tantos
traços distintivos que (embora seja de realçar alguma
tendência para uma estabilização progressiva) têm vindo a
acentuar os contornos da esfera político-constitucional
santomense.
Dois deles saltam à vista, por assim dizer. Por um lado,
assiste-se ciclicamente em S. Tomé a uma marcada
instabilidade política, um desequilíbrio periódico crónico
(talvez a melhor descrição seja a de um equilíbrio instável)
que originou crises governativas profundas, e que tem vindo
a dar corpo a mudanças abruptas e democraticamente
imprevistas de Chefes de Governo das ilhas, dissoluções
repentinas da Assembleia Nacional, um perigoso
levantamento militar, conflitos institucionais, etc..
Por outro lado, verifica-se em S. Tomé e Príncipe uma
fulanização constante e sistemática dos processos políticos.
O facto não é novo: no arquipélago, as questões pessoais
241
Na data de 1987 S. Tomé e Príncipe tornou-se no primeiro Estado africano a
esboçar uma transição para o multipartidarismo e uma economia de mercado. Facto
esse que parece ter passado despercebido a Michael Bratton e Nicolas van de Walle
no seu magnífico estudo político comparativo, publicado em 1997, sobre aquilo que
tão graficamente apelidaram de “democratic experiments” e de “regime transitions”
que, entre 1989 e 1991 afectaram 48 dos 51 Estados do continente africano. Para uma
visão minuciosíssima dos processos políticos pós-coloniais, é imprescindível a leitura
da longa monografia de Gerhard Seibert (2001). Para uma discussão de pormenor
sobre os conflitos político-constitucionais, ver A. Marques Guedes et al. (2002),
sobretudo a terceira e última parte do trabalho de investigação levado a cabo).

183
dominaram sempre a senda política, sobrepondo-se às
questões públicas, institucionais ou formais, ferindo ou
enfraquecendo incontestavelmente uma eventual acção
política prolongada empreendida com “sentido de Estado”.
Com o advento da democracia isso tem-se vindo a tornar
mais nítido. Desta perspectiva destaca-se, sobretudo, o
confronto político-social recorrente entre Miguel Trovoada e
M. Pinto da Costa, que aliás começou logo na 1ª República e
no âmbito do MLSTP, o partido único de então.
Trata-se de um litígio cuja retoma constante de facto
marcou todo o panorama político do jovem Estado equatorial
durante os anos 90242. Mas é também de salientar a rica
coreografia de constante criação e recriação, em S. Tomé e
Príncipe, de entidades político-partidárias e forças activas nas
arenas formais e informais do arquipélago, sob a égide de
personalidades (regra geral membros das elites tradicionais
locais243) dotadas de marcado poder carismático e por isso
com uma notável capacidade de mobilização popular244.
O que me leva a formular um ponto que creio bastante
óbvio. Sugiro que um dos principais focos de problemas
político-constituiconais de S. Tomé e Príncipe se prende com
242
Esta curiosa “bipolaridade personalizada” teve porventura o seu canto de cisne
com a chegada ao poder do actual Presidente, Fradique de Menezes, e com a sua
rápida cristalização nos panoramas políticos de S. Tomé e Príncipe.
243
Gerhard Seibert (op. cit.: 439-484), levou a cabo um estudo minucioso das relações
de patrocinato e clientelismo políticos (para além de um esboço minucioso e
impressionante no seu alcance, das relações de parentesco) entre as várias
personagens (na sua larga maioria membros das elites “forras” dos ilhéus
santomenses) que se movem nos palcos políticos do arquipélago.

244
Por outro lado ainda, e em terceiro e último lugar, assistimos em S. Tomé e
Príncipe a uma relativa hegemonia, difícil de abalar e patente sobretudo a nível local e
autárquico, do antigo partido único da 1ª República, o (comparativamente) muito bem
organizado MLSTP. As racionalizações abundam, no arquipélago, para esta
surpreendente capacidade de sobrevivência que a todos entra pelos olhos dentro; mas
trata-se de um facto que quase todos têm dificuldade em compreender e em explicar:
é curioso, com efeito, que os santomenses tanto empenho tenham tido em exorcisar
um regime, para depois continuarem a manter sistematicamente aberta a porta por
onde a tentação de uma sua restauração (levada a cabo, ademais, com as mesmas
faces) ameaça esgueirar-se. No estudo já citado (sobretudo nas conclusões finais que
redigi), propus uma explicação sociológica detalhada para este facto.

184
a distribuição dos poderes pelos diversos órgãos de soberania
consagrados na Constituição, maxime a sua disseminação
entre a Assembleia Nacional, o Governo e o Presidente da
República; bem como com o consequente modo de
relacionamento entre estes órgãos. Os problemas cíclicos que
daí advêm não são compreensíveis senão no contexto do
figurino constitucional de distribuição de poderes adoptado
nas ilhas desde o início da 2ª República.
Desta perspectiva, é de particular interesse o recorte
constitucional que diz respeito ao sistema de Governo
santomense, visto ser isso o que está no cerne dos problemas
político-constitucionais que têm vindo a ocorrer: uma
simples observação das crises que têm eclodido, por muito
cursória que possa ser, permite-nos asseverá-lo com
confiança.

6.3.2. A BICEFALIA SEMIPRESIDENCIALISTA: UMA


CATADUPA DE CRISES

É fácil equacionar, em termos formais, as dificuldades


encontradas. E, por conseguinte, não é difícil gizar os termos
de uma interpretação delas. Uma plena compreensão do
sistema de Governo e da natureza agonística do
relacionamento pessoal entre os vários actores políticos, tão
típico dos cenários políticos no país, são o que melhor nos
permite explicar grande parte dos litígios político-
constitucionais existentes. Mais: num contexto sociocultural
como o santomense, o sistema de Governo tal como está
configurado na Constituição Política proporciona,
positivamente, a existência de conflitos latentes.
A Constituição Política de 1990 de S. Tomé e Príncipe
adoptou um sistema de Governo semipresidencial245. Embora
inspirada na Constituição da República Portuguesa, neste
245
Dentro da doutrina nacional ver, por todos, Armando M. Marques Guedes (1978) e
J. Gomes Canotilho (2002). Entre os autores estrangeiros ver, por todos, Maurice
Duverger (1978).

185
aspecto a Constituição Política santomense aproximou-se
mais da actual Constituição Francesa, uma vez que
consagrou a instalação na ordem político-jurídica formal do
Estado de um semipresidencialismo de pendor
presidencialista246.
Note-se que, por natureza, o chamado sistema
semipresidencialista tanto pode dar origem a uma situação de
predominância presidencial ou governativa247, dependendo a
distinção do jogo simultâneo das maiorias parlamentares, da
posição do Presidente em relação à maioria parlamentar em
cada momento e conjuntura existente e, quando o Presidente
e o Primeiro-Ministro são da mesma cor partidária, da
posição e influência de cada um dentro do partido que
partilham. Mas certos sistemas de Governo
semipresidenciais, como o sistema de Governo equacionado
na Constituição Francesa e na Constituição Política de S.
Tomé e Príncipe, contêm elementos que, independentemente
das vicissitudes acima enunciadas, conferem ao Presidente
um protagonismo dentro, no interior, do “jogo” político248.

246
No mesmo sentido, Jorge Bacelar Gouveia, em discurso proferido na Assembleia
Nacional, a 22 de Agosto de 2000, quando da cerimónia comemorativa dos 10 anos
da actual Constituição de S. Tomé e Príncipe. Em sentido aparentemente divergente,
cfr Vital Moreira (1992). O autor considera haver em S. Tomé e Príncipe um semi-
presidencialismo com pendor presidencial, mas coloca tal sistema, não a par do
francês, mas entre o francês e o português. No sentido do texto, ver a discussão
incluída na monografia de Carlos Araújo (2000).
247
Ou até parlamentar, se bem que essa hipótese não seja muito crível em S. Tomé e
Príncipe, onde a hegemonia dos partidos políticos e de figuras individuais esbatem
quaisquer veleidades de protagonismo autónomo de entidades parlamentares; como
lapidarmente me declarou o Presidente Miguel Trovoada, “não temos tribos para
politizar, mas temos partidos para tribalizar”.
248
Maurice Duverger afirmou, famosamente, que, no sistema semipresidencial, existe
como que uma “águia com duas cabeças” (referindo-se à posição de bicefalia em que
nele convivem o Chefe de Estado e o Chefe de Governo). Essa bicefalia tende a não
ser fácil de gerir. Tal é particularmente verdade naqueles casos em que, para manter a
imagem de Duverger, uma das águia tenha o bico mais afiado do que o da outra; é
aquilo que se verifica, por exemplo, em situações de semipresidencialismo de pendor
presidencial como aquele que vigora em S. Tomé e Príncipe. Para uma discussão
fascinante sobre esta questão aplicada ao caso português, ver o curto mas incisivo
artigo, já antigo, de M. Rebelo de Sousa (1977).

186
Será este o caso no arquipélago desde a instauração da 2ª
República.
Cabe agora ilustrar a prática político-constitucional em
S. Tomé e Príncipe, sobretudo no que respeita aos litígios
constitucionais que emergiram. Tentarei, sempre que
possível, ilustrar com alusões pormenorizadas aos casos
desses conflitos que marcaram a actividade política no
período da 2ª República249.
A ausência de regras claras e precisas tem-se associado
a divergências no exercício de poderes políticos. O que deu
azo em S. Tomé e Príncipe, na última dezena de anos, a
vários litígios político-constitucionais graves. Podemos
aventar hipóteses mais ou menos plausíveis para as suas
causas de fundo; mas não restam dúvidas de que se
encontram na Constituição em vigor motivos que os
propiciam. Dedicarei os próximos parágrafos desta secção do
meu estudo a ilustrar, um a um250, estes conflitos.

Caso 1

249
Dada a ausência de informações fidedignas em relação à crise constitucional que
muito recentemente tem vindo a assolar (o Presidente Fradique de Menezes dissolveu
a Assembleia, e por conseguinte, desencadeou eleições antecipadas, em finais de
Janeiro de 2003) este último caso não irá ser abordado. É, no entanto, praticamente
indistinguível dos anteriores que aqui afloro.
250
A reconstituição pormenorizada de cada um destes casos envolveu esforços de
vários tipos. Por um lado, leituras de notícias em jornais (em S. Tomé e em Portugal),
bem como de artigos de opinião publicados na época. Mas por outro lado, foi por
vezes imprescindível completar imagens e detalhar minudências em conversas com
alguns dos protagonistas neles envolvidos. Não quero deixar de aqui agradecer a
disponibilidade para connosco longamente rememoriar acontecimentos, involuções e
alegações, de Miguel Trovoada, Francisco Fortunato Pires, Armando M. Marques
Guedes (que encabeçou uma das missões de “intermediação”, a relativa ao Caso 1, a
seguir a exercer funções, para que fora eleito, de primeiro Presidente do Tribunal
Constitucional português) e Jorge Miranda, três dos personagens-chave dos dois
primeiros casos. Não posso deixar também de aqui exprimir gratidão a N’gunu Tiny e
Ravi Afonso Pereira, por todo o apoio empenhado que me prestaram na recolha e
tratamento destes dados, tanto em S. Tomé e Príncipe quanto em Lisboa. Os casos são
aqui descritos exactamente nos mesmos termos que utilizei ao redigir o Relatório de
então (A. Marques Guedes et al., 2002: 142-147).

187
A 22 de Abril de 1992 o Presidente Miguel Trovoada
demitiu o Primeiro-Ministro, Daniel Daio, do Governo
formado pelo PCD, como vimos o partido vencedor das
primeiras eleições livres em S. Tomé e Príncipe. O agravar
pontual da crise económico-social, em virtude da aplicação
dos princípios de desenvolvimento social e económico
exigidos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco
Mundial, desencadearam uma onda indignada de protestos na
sociedade santomense. A reacção de Trovoada foi imediata:
terá sido em resposta a isso, como foi então alegado, que o
Presidente santomense demitiu o Primeiro-Ministro251. O
fundamento invocado foi “a necessidade de se acabar com a
instabilidade política e de se repor o normal funcionamento
das instituições”. O descontentamento popular desceu de
tom, mas não se calou.
A 16 de Maio Norberto Costa Alegre foi nomeado e
empossado Chefe de Governo pelo Presidente Miguel
Trovoada. Iniciou-se um novo período de coabitação, que
não durou muito tempo.
Em 1994 uma nova crise de proporções maiores
abalou os alicerces da então muitíssimo jovem democracia
santomense. Este conflito nasceu de uma divergência, mais
programática e menos genérica, entre o Governo e o
Presidente, uma clivagem relativa à política governamental
económico-financeira. O pano de fundo de protestos
mantinha-se.
Nas suas tentativas de gerir a situação e de aplicar as
receitas exigidas, o Governo aprovou, como órgão
competente para “conduzir a política geral do País” (art. 96º
da Constituição Política), um conjunto de diplomas legais
que diziam respeito à gestão orçamental.
O Presidente da República, ao abrigo do art. 76º, al.
m), e art. 77º do texto fundamental, vetou os diplomas
governamentais. Tratava-se de uma intervenção com a
251
Ver Gerhard Seibert (2001: e.g. 396-437), para outras razões que terão estado na
génese da atitude de M. Trovoada. Para mais pormenores relativamente à petite
histoire política da 2ª República, é utilíssima a leitura deste esplêndido estudo de
Seibert.

188
natureza de clara interferência na orientação e condução da
política governamental. Intervenção e interferência essas
inteiramente legítimas (no sentido de estarem de acordo com
a Constituição) segundo o entendimento do Presidente da
República. Foram as seguintes as palavras do Presidente
Trovoada quando do estalar desta segunda fase da crise: “
...concordei com a existência de organizações autónomas
para a promoção de certos financiamentos. O que vetei foi a
criação de fundos dirigidos directamente pelo gabinete do
Primeiro-Ministro e sob a sua tutela. Foi a falta de
transparência”. Mais, continuou o Presidente Trovoada com
alguma mordacidade: “...as taxas de juro devem ser iguais
para todos os cidadãos. Não pode ser o Primeiro-Ministro a
fixá-las, com um director executivo que, por acaso, até era a
sua mulher. Quero transparência na coisa pública”252.
Os termos em que estes volte-faces foram retratados
eram reveladores. Para o Governo, para além de excessiva, a
intervenção do Presidente ultrapassara os poderes que a
Constituição lhe confere. Por isso, a actuação do Chefe de
Estado violava o texto fundamental. Em consequência, um
despacho do Primeiro Ministro pretendeu “anular” o diploma
presidencial e “declará-lo inconstitucional”.
A situação de crise agravou-se, mas tornou-se também
mais específica. O Presidente da República entendeu que
actuara no âmbito dos seus poderes constitucionais; e
sustentou, ainda, que Primeiro Ministro e Assembleia
Nacional só teriam competência para declarar a
inconstitucionalidade das suas próprias leis e dos diplomas
governamentais, mas nunca a de um Decreto Presidencial.
Os acontecimentos precipitaram-se em catadupa. O
Primeiro-Ministro, Norberto Costa Alegre, foi demitido. Foi
nomeado um Governo de iniciativa Presidencial. A
Assembleia Nacional foi dissolvida a 10 de Julho de 1994.
Eleições legislativas foram marcadas para 2 de Outubro do
mesmo ano. O clima de turbulência foi amainando.

252
Miguel Trovoada em entrevista concedida ao Jornal Publico, Portugal, 17 de Julho
de 1994.

189
Caso 2
Uma polémica, desta vez em torno da vacatura do
cargo presidencial.
Em meados de 1996 (e na sequência dos
acontecimentos delineados no Caso anterior), o Presidente da
Assembleia Nacional pretendia ocupar o cargo de Chefe de
Estado enquanto não se realizassem as novas eleições
presidenciais e até ter lugar uma nova tomada de posse. O
Presidente da República defendeu que deveria ele próprio
manter o cargo até às novas eleições, nas quais seria mais
uma vez candidato.
Alguns juristas portugueses, na sequência desta
posição do Presidente da República, pronunciaram-se
casualmente sobre o assunto na comunicação social
portuguesa253. As opiniões formuladas parecem ter sido
unânimes: os constitucionalistas deram a entender que, mais
uma vez neste conflito, a razão e o direito estavam do lado do
Presidente da República.
Em S. Tomé e Príncipe, o ambiente político-social re-
aqueceu: em círculos próximos do poder e das oposições
discutiu-se aberta e insistentemente a possibilidade de uma
nova dissolução da Assembleia Nacional. Ao que tudo indica
tendo em conta a opinião informal de jurisconsultos
portugueses, ventilada por meios de comunicação social e
abundantemente esgrimida no arquipélago, a questão foi
resolvida pacificamente. Miguel Trovoada manteve-se na
presidência até à sua reeleição.

Caso 3254

253
Nomeadamente Marcelo Rebelo de Sousa, em comentário na Rádio portuguesa.
254
Um quarto litígio, de menores proporções e mais fácil resolução, mediou entre
estes dois, e envolveu um diferendo entre o Presidente e o Governo no que diz
respeito ao reconhecimento de Taiwan (a que o Presidente era favorável).

190
Depois de dois mandatos sucessivos de Miguel
Trovoada, e não podendo este recandidatar-se, Fradique de
Menezes foi eleito para a chefia da Presidência da República
em Julho de 2001. Fradique de Menezes assumiu o cargo e
claramente sentiu-se legitimado para mais: na sequência da
sua expressiva vitória, o novo Presidente alegou que a
mesma implicara “um juízo de reprovação” popular em
relação à política seguida pelo MLSTP. Este partido tinha
apresentado como candidato presidencial o líder do partido e
ex-Presidente Pinto da Costa, tendo este sido derrotado.
O primeiro movimento coube a Fradique de Menezes.
O Presidente convidou o Primeiro-Ministro a colocar o seu
lugar à disposição. Em resposta, Posser da Costa anuiu,
acedendo mas solicitando ao Presidente uma manifestação de
confiança política materializada numa sua recondução no
cargo.
Fradique de Menezes aparentemente não concordou. E
em consequência Presidente e partido do Governo ficaram
como que de candeias às avessas. Seguiram-se sucessivos
desentendimentos com o MLSTP na escolha de um Chefe de
Governo alternativo. Sem solução à vista, a situação depressa
se tornou insustentável. A breve trecho, agastado, o
Presidente da República resolveu formar um Governo de sua
própria iniciativa (uma possibilidade que a Constituição lhe
confere), o que acabou por fazer em Setembro de 2001. Este
executivo de iniciativa presidencial manteve-se em funções
por um período aproximado de 5 meses. Não teve grande
sucesso: durante este período o executivo não apresentou o
seu programa de Governo ao Parlamento.

6.3.3. DA AUSÊNCIA DE INSTÂNCIAS


JURISDICIONAIS LOCALMENTE TIDAS COMO
CREDÍVIES AO PERFIL DO PROCESSAMENTO-
RESOLUÇÃO DOS LITÍGIOS CONSTITUCIONAIS
SANTOMENSES

191
Com o intuito de tornarmos clara a origem e a natureza
dos conflitos político-constitucionais que têm eclodido em S.
Tomé e Príncipe, importa analisar, ainda que de forma leve e
breve, a natureza da forma do seu processamento-resolução.
Em S. Tomé e Príncipe não existe um Tribunal
Constitucional para a eventual fiscalização dos actos
políticos e normativos dos órgãos detentores do poder
político. A ausência de tal instância jurisdicional resultará255,
na opinião dos santomenses com quem conversei sobre o
tema, de três factores, constituindo todos eles (para ela)
causas bastantes plausíveis: (i) insuficiência de recursos
humanos qualificados; (ii) insuficiência de meios financeiros;
e (iii) receio de politização da instância julgadora, uma vez
que a Democracia ainda está a dar os seus primeiros passos
em S. Tomé e Príncipe.
Se a opção da não criação de um tribunal deste tipo
nas ilhas me parece defensável por uma ou várias dessas
razões, já tenho dificuldades em concordar com aqueles que,
na prática, defendem a manutenção das coisas tal como estão,
por isso que a situação existente me parece perigosa. E isto,
em boa parte, porque não existe em S. Tomé e Príncipe
nenhuma instância jurisdicional autónoma que assegure uma
efectiva fiscalização da constitucionalidade. É verdade que se
poderia ter optado por atribuir tal competência a uma secção
autónoma do Supremo (tal como, por exemplo, se passa em
Cabo Verde); mas até a data tal solução não foi seguida. Nos
termos do art. 111º da Constituição santomense, é a
Assembleia da República que detém o poder de fiscalização
da constitucionalidade, embora dentro de determinados
limites e sob determinadas condições. É necessário que os
tribunais remetam a questão da inconstitucionalidade,
levantada por sua iniciativa, pela iniciativa do Ministério
Público ou por qualquer das partes, para a Assembleia

255
E ainda que (e este ponto é fundamental) seja genericamente aceite entre as élites
santomenses a necessidade de criar no arquipélago uma instância (variando depois as
opiniões existentes quanto à sua natureza) que permita dirimir litígios constitucionais.

192
Nacional e que esta, antes de decidir, admita a arguição da
inconstitucionalidade256.
Não é líquido, porém, que a Assembleia Nacional
santomense possa dirimir conflitos entre o Presidente da
República e o Governo, apesar de que a Constituição, para
balancear os poderes, prudentemente exija que o Presidente
da República tome posse perante a Assembleia Nacional. A
questão da eventual competência da Assembleia santomense
para o fazer pode suscitar opiniões divergentes; mas, na
história política recente do país, a verdade é que isso teve
resposta “jurisprudencial”, como mais adiante veremos.
Em suma e numa palavra, para resumir este meu
primeiro ponto: se os litígios político-constitucionais já são
graves pela sua natureza, mais graves ainda se tornam não
havendo qualquer instância jurisdicional de processamento-
resolução que deles se encarregue. Isto mesmo foi ilustrado
nos Casos 1 e 3. Em ambas as situações o Presidente da
República de S. Tomé e Príncipe demitiu um Chefe de
Governo que era apoiado por uma maioria parlamentar
absoluta, formando, de seguida, um Governo de iniciativa
presidencial. Em ambos os casos, apesar de se estar face a
fortes clivagens institucionais, não se pode afirmar
peremptoriamente que se tratasse de situações que pusessem
em perigo o normal funcionamento das instituições
democráticas no arquipélago, ou sequer perante uma
situação de grave crise política. E sendo estas as condições
normais (até do ponto de vista do Direito Comparado) para a
demissão do Primeiro-Ministro e substituição de um elenco
governativo por outro (ainda que de iniciativa presidencial),
não é de fácil compreensão a legitimidade da atitude do
Presidente santomense nos casos referidos.
Não deixa porém, insisto, de haver aqui um problema
real de omissão. Se a Assembleia Nacional de S. Tomé e
Príncipe não tinha (como ainda não tem) poderes de
fiscalização do acto que estiver em causa (no caso um

256
Este artigo da Constituição suscita várias dúvidas de interpretação e tem vindo a
ser contestado pelas mais altas autoridades do país.

193
Decreto Presidencial), como se poderá então fiscalizar a
actuação do Presidente da República nestes casos? Não
havendo uma instância jurisdicional que possa sindicar tais
actuações, apenas o juramento prestado pelo Chefe de Estado
à Constituição, o bom senso político, e a vontade expressa do
povo, poderão de algum modo servir de guia para o bom
exercício dos poderes presidenciais. Há no arquipélago uma
nítida carência de (digamo-lo assim) instâncias capazes de
objectivamente assegurar a resolução de pelo menos alguns
dos problemas mais complexos e importantes da “saúde
democrática” da 2ª República.
Não é, porém, essa a única carência a que haverá que
obviar. A falta de instâncias subjectivas para a resolução
deste tipo de situações de crise política em S. Tomé e
Príncipe também é notória. Este segundo ponto,
complementar do primeiro mas não menos importante que
ele, parece-me fundamental: diz respeito ao papel crucial
preenchido nestes processos pelas representações
socioculturais localmente mantidas. Entendo aqui por
instâncias subjectivas de resolução de conflitos o conjunto de
juristas e outros especialistas em determinada matéria (para o
caso, Direito Constitucional e porventura Ciência Política)
que de forma independente e utilizando os seus
conhecimentos possam dar pareceres interpretativos de textos
normativos (no caso, a Constituição santomense e outros
textos para-constitucionais). Em princípio, “instâncias” deste
segundo género existem no arquipélago: em S. Tomé e
Príncipe residem juristas santomenses de grande qualidade
intelectual e científica que, prima facie, poderiam elaborar
tais pareceres interpretativos em matéria constitucional. Mas
apenas em princípio: em virtude da marcada partidarização
da vida social, estes juristas encontram-se, na sua maioria,
conotados com uma determinada cor partidária, o que lhes
retira (em todo o caso parece ser essa a opinião geral dos
santomenses) “legitimidade” e independência para poderem
ser olhados como instâncias capazes de assegurar uma “boa”

194
resolução dos conflitos que eclodem. Na ausência de tais
instâncias, como resolver os litígios?
Entra aqui em operação uma dimensão “cultural”
curiosa do “jurídico” em S. Tomé e Príncipe. Uma
observação atenta revela-a. Qualquer litígio político-
constitucional, tal como aliás o seu próprio nome indica,
contém em si mesmo uma elevada carga política. Por
conseguinte a resolução de conflitos como estes, na ausência
de mecanismos de “juridificação”257 eficazes (como, por
exemplo, um Tribunal Constitucional, ou outra instância
jurisdicional funcionalmente equivalente), remete
inevitavelmente para uma solução política.
No Caso 2, a solução foi resolvida politicamente,
apesar de alguns especialistas (portugueses) em Direito terem
opinado sobre a situação. O Presidente da República de S.
Tomé e Príncipe, através do diálogo político, resolveu a
questão em termos institucionais com a Assembleia Nacional
e directamente com o Presidente da Assembleia, Dr.
Francisco Fortunato Pires.
No Caso 1, a situação assumiu, como vimos,
proporções de elevada e potencialmente perigosa
instabilidade política, pondo em causa o normal
funcionamento das instituições democráticas. Contudo,
apesar desse clima de forte instabilidade e conflitualidade
política, podemos afirmar que a (aparente?)258 pacificação
ocorreu por via política. De facto, o diálogo, ainda que
difícil, entre o Presidente da República, a Assembleia
Nacional, o PCD e os restantes partidos políticos, bem como
a omissão de certos comportamentos políticos por parte do
PCD, foi sem dúvida aquilo que possibilitou o delineamento
de uma via para a estabilização política santomense.
257
No sentido de mecanismos que consensualmente logrem restringir questões ao
domínio considerado como sendo do espaço mais ritual, formalizado e enxuto do
jurídico, sem as deixar efervescer no âmbito quotidiano “comum” da conflitualidade
político-faccional típica no arquipélago.
258
A interrogação encontra justificação nas páginas deste trabalho que
especificamente se debruçam sobre este caso e os seguintes, já que em todos eles
aquilo que parece estar em causa são os limites do poder presidencial.

195
O mesmo, mutatis mutandis, quanto ao Caso 3.
Sendo assim, torna-se particularmente interessante
suscitar a questão da relevância do Direito (em sentido
estreito e formal) na resolução de conflitos como os que
estão em causa. A questão é pois: ainda é o Direito
relevante? A resposta, apesar de hesitante, deverá ser
positiva; mas assume contornos inesperados.
Analisemos a fundamentação da resposta que sugiro.
A componente política na resolução de tais conflitos assume
um carácter natural. De facto não se poderia compreender,
nesta sede, a ausência da dimensão política. Mas podemos
também encontrar uma dimensão jurídica na resolução dos
conflitos em análise. E, se sim, como e onde? De uma forma
no mínimo curiosa. Ao recorrer-se (como foi o caso) a
pareceres jurídicos produzidos por constitucionalistas
portugueses259, incorporou-se de alguma forma o “jurídico”
na resolução dos conflitos político-constitucionais; ao
chamá-los a formular e veicular uma opinião sobre as
questões no centro dos conflitos, definindo por exemplo o
desenho constitucional dos poderes dos diversos órgãos de
soberania (no caso Assembleia Nacional, Governo e
Presidente da República), como que existiu o que talvez
possamos chamar uma “legitimação” do político através do
fenómeno jurídico (ou como consequência do processo de
“juridificação” destas tensões).
Mas não, porém, de maneira linear. Note-se que
existindo essa dimensão jurídica na resolução dos conflitos,
esta não se manifesta em todo o caso de forma isolada, antes
aparecendo imbricada com a dimensão política260. Apesar
259
À parte o parecer publicado por Vital Moreira (listado na bibliografia final), não
são públicos os estudos levados a cabo pelos vários juristas portugueses envolvidos.
Repito aqui os meus agradecimentos a Armando M. Marques Guedes e a Miguel
Trovoada pelas conversas que comigo e a minha equipa tiveram e que permitiram a
sua reconstituição (confirmada com a totalidade daqueles com quem no arquipélago
troquei impressões sobre estes temas).
260
A minha conclusão mais abstracta é, como pode verificar-se, a de que a resolução
dos conflitos político-constitucionais em S. Tomé e Príncipe apresenta assim, e mais
uma vez de uma maneira não-trivial, um dupla natureza: política e jurídica. O Direito,
por isso, se bem que apenas parcialmente e muitas vezes de forma indirecta, ainda é

196
dos pareceres jurídicos produzidos por constitucionalistas
portugueses não terem naturalmente em S. Tomé e Príncipe
uma qualquer força vinculativa, eles trazem em todo o caso
(e fazem-no de maneira que julgo intrinsecamente
interessante escrutinar) uma legitimidade acrescida às
diversas opiniões dos actores políticos, contribuindo para um
ambiente de pacificação.
É em si mesmo interessante o facto de que esta
legitimidade tenha, ao que tudo indica, duas bases de
sustentação. Em primeiro lugar, o facto de os pareceres
decisivos serem enunciados em termos “jurídicos” e não em
termos “políticos”. Como se o “idioma” e o tipo de coerência
normativa em causa fizessem a diferença para os diversos
protagonistas envolvidos. Em segundo lugar, o facto de os
pareceres serem enunciados por juristas portugueses e não
por nacionais santomenses. Como se o estar (ou melhor, o ser
tido como estando) acima da refrega política e, de algum
modo, “mais perto da fonte”, desse aos primeiros uma
credibilidade e por isso uma legitimidade acrescidas.
Não é precisa uma grande reflexão para notar que este
último é um facto extraordinário, que remete efectivamente
as questões para fora do âmbito do Direito Constitucional e
porventura mesmo do do Direito em geral. Com efeito,
podemos considerar haver, como genericamente relevantes
do ponto de vista do “Direito Político”, três grandes
dimensões de quaisquer litígios (ou outras questões)
constitucionais: a textual, a factual e a normativa.
relevante no arquipélago. Poderá para lá disto existir uma outra relevância do jurídico
nestes processos, que seria instrutivo investigar. Fracassando a resolução política,
haverá sempre a hipótese (pelo menos nocional) do recurso a uma intervenção dos
tribunais. Ainda que para questões com elevada carga política (quaisquer que elas
sejam), ao que sabemos os tribunais em S. Tomé tendem, por via de regra, a colocar
muitos entraves a uma intervenção desse tipo. Se o fariam também no que diz respeito
a conflitos constitucionais, é coisa em relação à qual não podemos, senão, aventar
hipóteses académicas. Além disso, actuando o poder judicial não se sabe qual seria a
sua “legitimidade” e força para executar decisões. As dúvidas justificam-se sobretudo
pela ausência de um Tribunal Constitucional ou de uma secção constitucional no
Supremo, num contexto social local em que uma politização do discurso jurídico é
culturalmente muitíssimo mais compreensível esperado (e é decerto bem mais
habitual) do que uma juridificação da acção e das práticas políticas.

197
Particularmente interessante no caso santomense é o facto de
a normatividade em causa não ser claramente “jurídica”261 E
é surpreendente verificar que, para além de escolher
privilegiar essa normatividade “híbrida”, os santomenses
elegem muitas vezes recorrer à mediação de juristas da ex-
potência colonial.
A conjugação destes dois factos, por um lado, remete
as interpretações textuais para um limbo “para-jurídico”. E,
por outro lado, torna a sua recepção (ainda que com o
estatuto de “pareceres”), uma questão que defere a solução
para âmbitos sociológicos com curiosas vertentes históricas e
culturais que seriam de fascinante exploração. Como diriam
os estruturalistas, tudo se passa como se a ausência de
instâncias objectivas ou subjectivas formais abrisse a porta à
mediação informal de “autoridades” portuguesas tidas como
particularmente aptas a dirimir litígios em âmbitos (os da
separação de poderes no Estado, por exemplo) em que a
antiga potência colonial é reputada como legítima visto,
nomeadamente, se considerar que terá quanto a eles uma
maior expertise ou neutralidade e isenção262.
Em suma: os conflitos constitucionais são em S. Tomé
e Príncipe resolvidos politicamente; mas parecem sê-lo
melhor se esse esforço for reforçado por uma dimensão
jurídica. É verdade que isso também se verifica noutros
Estados. Mas no arquipélago o desenho da combinação entre
esses dois factores é especialmente interessante; nele essa
solução compósita opera sobretudo (ou tem-no feito) através
de pareceres jurídicos, opiniões de jurisconsultos respeitados

261
Quanto mais não seja visto não ser produzida por uma entidade “soberana”, seja
pelo Estado santomense, por um seu “Tribunal Constitucional”, ou sequer por
cidadãos nacionais do arquipélago.
262
Nesse quadro, será particularmente interessante apurar qual o papel (se algum de
peso) preenchido pelos jurisconsultos portugueses quanto ao mais recente litígio no
arquipélago: aquele que levou, em inícios do presente ano de 2003, à dissolução
unilateral da Assembleia Nacional pelo Presidente da República santomense e à
consequente convocação de eleições antecipadas no país. Vários juristas portugueses
se pronunciaram de imediato, em diversos meios de comunicação social. Veremos
qual o desenlace de um conflito cujo padrão corresponde, assaz exactamente, aquele
que delineei para os anteriores.

198
que reforçam, quer a montante quer a jusante, a legitimidade
das decisões eventualmente tomadas.

6.3.4. AS DIMENSÕES SOCIOLÓGICAS DA


LITIGAÇÃO CONSTITUCIONAL EM S. TOMÉ E
PRÍNCIPE: TRAÇOS DISTINTIVOS

Esta conclusão não é de maneira nenhuma trivial:


dispomos agora de informações suficientes para, se não levar
a cabo (propondo uma resposta de maneira final e
conclusiva), pelo menos encetar uma análise mais
sociológica no sentido pleno (isto é, sem que o social seja
encarado como um mero contexto externo), e por
conseguinte mais bem fundamentada, das razões de fundo
para a eclosão, aparentemente tão sistemática, de questões e
diferendos que estão na base dos conflitos político-
constitucionais. Uma análise que vai além tanto de leituras
jurídico-constitucionais puras e depuradas como daquelas
outras que se limitam a personalizar os motivos dos
participantes. Tais equações jurídicas ou psicologísticas são,
infelizmente, os tipos mais comuns de explicações
formuladas para dar conta das situações de crise politico-
constitucional em S. Tomé e Príncipe. Mas não são muito
convincentes. Já que me parece que, ainda que possam
seguramente ter algum fundamento, são perspectivas
redutoras que, ao secundarizar de uma ou de outra maneira a
imbricação sociológica da vida constitucional no todo da
vida sociocultural santomense, nos condenam a pouco ou
nada compreender quanto à mecânica dos acontecimentos
turbulentos que têm vindo a colorir os processos políticos no
arquipélago. Uma perspectivação “unitarista” como a que
sugeri permite-nos, para além de tudo o mais, propor
generalizações mais dinâmicas e mais bem fundamentadas, e
com maior eventual utilidade comparativa, para a eclosão
regular destas crises em S. Tomé e Príncipe.

199
Com efeito, chegados a este patamar, não é árduo
equacionar uma explicação de fundo mais inclusiva que, para
concluir este já longo exemplo, gostaria de esboçar. Da
perspectiva proposta, os traços mais marcantes dos conflitos
político-constitucionais santomenses parecem-me ser três: (i)
o fenómeno da ocidentalização do Direito Constitucional
santomense, (ii) algum desvirtuamento do texto
originalmente previsto e (iii) as práticas constitucionais
geradas pelos diversos actores “oficiais” da cena política do
arquipélago.
Nos mesmos termos em que ouvi esta expressão
utilizada por numerosos santomenses (que repetidamente no-
la lamentaram), entendo aqui por “ocidentalização” do
Direito Constitucional do arquipélago o fenómeno que se
caracteriza pela importação das regras constitucionais
vigentes nas democracias ocidentais, sem ter em atenção as
particularidades da sociedade onde estas regras aspiram a
vigorar. Isto é: a “ocidentalização” é como que um
mecanismo cujo traço distintivo primordial se salda pela
realização de transferências efectuadas ou levadas a cabo
sem ter em conta o contexto sócio-político do “país de
acolhimento”. Foi precisamente isso o que aconteceu em S.
Tomé e, em geral, nos países da África Central e Austral, em
Estados onde as práticas tradicionais apontariam porventura
para a preferência por um outro tipo de sistema, ou recorte de
normas constitucionais.
Recordemos alguns pormenores basilares quanto à 2ª
República santomense e ponhamo-los em contexto. No
arquipélago foi adoptado, depois da transição democrática e
em virtude da influência da Constituição Portuguesa de 1976,
um sistema de Governo semi-presidencialista; e foi-o mesmo
quando a preferência tradicional da enorme maioria dos
santomenses (ainda que talvez menos que em muitos outros
casos de sociedades africanas da região) sugeria antes a
adopção de um sistema onde a responsabilidade de
representação e governação estivessem reunidas numa única
personagem, a do Presidente da República. E, na prática, é

200
precisamente isso o que muitas vezes tende a ser localmente
presumido.
Na realidade, quando o cidadão comum de S. Tomé e
Príncipe tem um problema no seu dia-a-dia dirige-se não
raramente ao Presidente da República, não entendendo – nem
fazendo o mínimo esforço no sentido dessa compreensão,
visto a ideia lhe ser culturalmente alheia – o facto de o Chefe
de Estado por via de regra lhe afirmar que não tem poderes
para resolver a sua pretensão263. Não será excessiva a
seguinte generalização: a bicefalia embutida no figurino
constitucional santomense roça o culturalmente
incompreensível no arquipélago.
Um segundo traço de marca tem por base aquilo que
designei por desvirtuamento da Constituição santomense, e
será decerto aquele que menos interesse tem para este
trabalho. A primeira versão original da Constituição,
produzida em Lisboa para S. Tomé e Príncipe, desenhou para
o arquipélago, como já tive ocasião de referir, um sistema
semi-presidencialista. Seguiu-se pior: porventura por estar
(erroneamente, como se veio a verificar com o andar das
coisas) confiante numa vitória fácil e segura, o MLSTP,
então ainda o partido único, alterou o texto daquela versão,
reforçando os poderes presidenciais; e permitindo, em linhas
gerais, que o Presidente partilhasse as funções governativas.
O problema é aqui técnico-jurídico. E reside no facto
de, a par destes “novos” poderes, não terem sido
estabelecidos de maneira suficiente os imprescindíveis
mecanismos de fiscalização, uma divisão minuciosa e enxuta
de competências, bem como uma nova lógica de checks and
balances. Em resultado na Constituição santomense como
que é esboçado um presidencialismo que nunca nela aparece
assumido.
263
As preferências expressas (explícita e implicitamente) por todos os santomenses
com quem troquei impressões apontam efectivamente com veemência e nitidez para
um sistema “presidencialista”. Esta conclusão é hoje pacífica no arquipélago.
Pressionado por esse género de responsabilização popular, o Presidente santomense
(supomos, seja este quem seja) vê-se constantemente empurrado a invadir a esfera de
actuação do Governo e, com isso, a provocar crises institucionais graves. Fá-lo tendo
a vontade popular, na maioria dos casos, do seu lado.

201
Termino este exemplo fazendo uma referência ao
terceiro ponto focal que identifiquei: o enviesamento das
práticas. Qual o problema a meu ver aqui em causa? A
jusante das duas deficiências anteriores, foi-se moldando em
S. Tomé e Príncipe uma prática constitucional pouco clara e
que se tem traduzido num sem-fim de conflitos e lutas
institucionais e pessoais. Sem sombra de dúvida que poderão
ser aventadas motivações de natureza mais personalizada
como estando na origem dos litígios verificados: é o que, na
sua maioria, os santomenses parecem inclinados a fazer. Mas
uma análise que se ativesse a esses limites seria pobre.
Ao longo do tempo, os diversos actores políticos da 2ª
República santomense foram invocando (na maioria dos
casos com algum fundamento) a legitimidade das suas
decisões e actuações com base nos precedentes criados pelos
seus antecessores. Isto conduz-me, uma vez mais, a
mencionar o factor negativo da ausência de instâncias
objectivas de resolução-processamento destes conflitos. Na
ausência de tais mecanismos só uma futura (e, ao que tudo
indica, fortemente desejada) revisão constitucional poderá
interromper as práticas reiteradas do passado mais recente.
Revisão já hoje (2003) em curso.

202
Parte III

PEDAGOGIA E PROGRAMA

[W]e believe that comparative study can aid us in our


more parochial task of understanding the law itself. We
think we can understand our own “England” better by
having visited other shores, and we are confident that
others can benefit from the same experience.

J. M. Balkin (1991), “Law, Music, and other


Performing Arts” 4, University of Pennsylvania Law
Review: 6.

7. O DESIGN DO PROGRAMA DA DISCIPLINA DE


DIREITOS AFRICANOS: PEDAGOGIA, OBJECTIVOS E
FINALIDADES

Perante todos os condicionalismos que fui enumerando


ao longo desta introdução, face aos objectivos que me
prossigo, e tendo em mente o tipo de enquadramento
transdisciplinar que ilustrei nos três exemplos paradigmáticos
que acabei de expor, não será difícil compreender o design
global do programa que organizei e que me proponho
ministrar no corrente ano lectivo. Tudo aquilo que tentei pôr
em evidência no que precede foi tomado em linha de conta
na sua elaboração. Ou seja, foram ponderadas tanto as
finalidades almejadas quanto as limitações existentes.
Voltando ao que atrás foi dito, mas agora de outro
ângulo: por essas e outras razões o programa que apresento
não é excessivamente ambicioso nem, dada a escassez de
dados fiáveis, em bom rigor poderia sê-lo, se quisermos dele
exigir, como me parece imprescindível, um mínimo de
seriedade científica. Sem me querer repetir
desnecessariamente, reafirmo que não é minha intenção
delinear uma qualquer verdadeira “família” de Direitos

203
Africanos, o que em todo o caso não creio que seja realmente
possível. Insisto também ainda que não é ensaiada uma
cobertura exaustiva do âmbito jurídico em nenhum dos casos
aqui abordado. Pretendo, no entanto, chegar mais além, para
lá de um programa pura e simplesmente indicativo; e intento
conseguir bem equacionar e formular mais do que meras
generalidades.

7.1. OBJECTIVOS E FINALIDADES

Convém decerto pormenorizar com maior minúcia em


que sentido me esforço por fazê-lo. Longe de tentar apenas
sugerir direcções e métodos de estudo e investigação, a
disciplina semestral leccionada visa disponibilizar
conhecimentos jurídicos úteis. E tenta levá-lo a cabo nos
termos de um quadro analítico que permita tornar mais
inteligíveis as dinâmicas próprias de vários dos Direitos em
vigor em África, os inputs, e as restrições materiais (umas
políticas, outras económicas, algumas outras ainda culturais,
para além daquelas que paradoxal e pura e simplesmente
resultam da complexidade estrutural e da
multidimensionalidade dos nexos plurais em que se
embrenham os domínios jurídicos africanos contemporânea)
com as quais estes sistemas têm tido que conviver.
Tal como já tive a oportunidade de insistir, o
enquadramento analítico que preferi é histórico e
sociocultural (ou sócio-antropológico, como também o
apelidei). Para o delinear, repito, recorro a metodologias
oriundas de variados domínios disciplinares. E circunscrevo
a sua aplicação a um âmbito de estudo particular: com o
intuito de conseguir gizar um quadro analítico unificado para
ordenamentos jurídicos tão pluridimensionais e complexos
como aqueles de que tento começar a dar conta nesta
disciplina, centro a minha atenção na constituição
progressiva de uma interacção (tanto positiva como negativa)
entre o Estado e a sociedade civil presentes em cada um dos

204
países africanos sobre os quais me debruço. Parece-me ser
esse o contexto, ou enquadramento, mais amplo em que se
torna possível encetar uma ponderação de conjunto das
múltiplas ordens normativas que em cada caso coexistem264.
Por outro lado ainda, e a nível mais geral, será
empreendido durante o semestre um esforço no sentido de
delinear uma articulação sistemática daquilo que aqui é
abordado (esforço esse logrado por intermédio de uma série
de conexões empíricas e metodológicas, umas vezes
explícitas, outras implícitas) com conteúdos programáticos
de diversas outras disciplinas do Curso. Esta dimensão
interdisciplinar (lato sensu) parece-me crucial. O tipo de
estudo dos Direitos africanos que proponho sugere
ressonâncias múltiplas. As razões exógenas para tal são
simples de compreender: a expectativa é a de que esta
disciplina (e este programa), em conjunto com o trabalho de
investigação que no terreno tenho vindo a levar a cabo com
grupos de alunos da Faculdade, venham a constituir o germe
de uma frutuosa linha de acção científica e pedagógica265
bem implantada e firmemente ancorada na FDUNL.
Tendo em conta aquilo que precede, e respeitando e
situando-se sempre nos termos da progressão histórico-
cronológica dos Estados e das populações em causa, esta
disciplina do Curso visa dois objectivos principais: em
primeiro lugar, tenta demonstrar a utilidade de uma
abordagem que utilize conceitos e métodos pluridisciplinares
para uma melhor compreensão e uma melhor circunscrição
dos “sistemas jurídicos” africanos contemporâneos e das
“estruturas políticas” que os sustentam. Em segundo lugar, e
sobretudo, a disciplina propõe-se ilustrar, por meio de casos

264
O que tentei levara a cabo, de maneira pormenorizada, nos trabalhos que publiquei
sobre Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, e que detalhei também, no que toca ao caso
angolano, no último estudo que produzi (vd. A. Marques Guedes et al., 2001, 2002,
2003, ops. cit.:secções relevantes). Dedico uma sessão do programa da disciplina (a
sessão 21, a penúltima) a uma discussão comparativa sobre este tema (ver Anexo).
265
Reatando, aliás, um ensino, uma aprendizagem, e esforços de investigação
relativamente a Direitos sobre os quais (salvo raras e honrosas excepções) as
Universidades portuguesas infelizmente pouco se têm debruçado.

205
seleccionados (relativos a tópicos por regra de interesse para
a formação de juristas, mas naturalmente segundo critérios de
relevância também histórico-político-sociológica) em
contextos tão distintos quanto possível, tanto a variabilidade
dos dispositivos e “sistemas políticos e jurídicos” existentes,
como algumas das coordenadas sócio-políticas por que se
afere (e que, em simultâneo, condicionam) a diversidade
verificada.
De um ponto de vista mais genérico, e em consonância
com as perspectivas recentes nas Ciências Sociais, e
sobretudo na Antropologia e na Ciência Política (e, espera-
se, em ressonância óbvia com o levado a cabo noutras
cadeiras da licenciatura em Direito), o programa que elaborei
pretende realçar, com um intuito no essencial didáctico, a
importância de referências sistemáticas aos contextos sociais
e culturais e à utilização de métodos e conceitos
comparativos para uma maior compreensão tanto dos nexos
sociais jurídicos como dos políticos; e destes dois últimos, no
que à sua interrelação diz respeito. Como é evidente, sem
qualquer pretensão de exaustividade; mas lançando a rede
num arco tão amplo quanto o possível para um ensino restrito
a duas aulas semanais durante, apenas, um semestre.
Antes de passar ao programa propriamente dito, resta-
me sublinhar que o ensino dos Direitos africanos no
estrangeiro é levado a cabo em moldes bastante semelhantes
ao que escolhi, pelo menos naqueles casos em que não está
em causa a aprendizagem sistemática do Direito positivo em
vigor num determinado Estado ou grupo de Estados. A título
meramente indicativo, e tendo em mente a natureza do
presente estudo, alguns exemplos bastarão.
Na maior parte das instituições britânicas, francesas,
holandesas, alemãs, ou norte-americanas de Ensino Superior
(para me restringir aos exemplos mais óbvios e mais
significativos) a análise destes ordenamentos jurídicos tende
a ser empreendida no quadro do estudo do Direito
Comparado; assim é a norma em Oxford, Cambridge, ou na
Universidade de Londres, em Paris, Leiden, Frankfurt, Yale

206
ou Harvard. Mas nem sempre esse é o caso. Em muitas
outras instituições não africanas onde estes Direitos são
ensinados, como por exemplo no School of Oriental and
African Studies de Londres, no London School of
Economics, em Bruxelas, na Sorbonne (Paris I) e na
Université de Paris X (Nanterre), ou na Universidade de
Leiden, é antes assumida uma postura histórico-político-
sociológica explícita como quadro analítico de eleição.
Em muitíssimos dos casos, estão apenas sob escrutínio
parcelas destes Direitos, a maioria das vezes aquelas ligadas
a áreas económicas, político-administrativas, ou à família e à
propriedade. Não é tudo: as preferências económico-
geográficas são igualmente marcadas. Os Direitos islâmicos
tendem a ser privilegiados em detrimento de outros, como
também é o caso daqueles Direitos em vigor em Estados
negro-africanos grandes e poderosos como a África do Sul, a
Nigéria, e o Quénia, ou ainda os daqueles outros, como o
Botswana, cujos índices de desenvolvimento são
considerados como sendo especialmente promissores.
A estes critérios pragmáticos de selecção junta-se um
último, de natureza histórica; o que não constituirá decerto
surpresa. Assim, os estudos sobre Direitos africanos levados
a cabo tendem a colocar os seus principais pontos de
aplicação nos Direitos dos Estados pós-coloniais com os
quais os Estados ocidentais em que se estão implantadas as
instituições que albergam o ensino desses Direitos
mantiveram no passado (ou mantém ou retêm no presente)
relacionamentos particularmente intensos: nas instituições
francesas estuda-se, por conseguinte, sobretudo os Direitos
dos Estados africanos francófonos, na Grã-Bretanha são
privilegiados os Direitos dos Estados anglófonos do
Continente, enquanto que holandeses, belgas e alemães se
dedicam preferencialmente ao ensino dos Direitos em vigor
nas suas respectivas áreas de influência histórica. Em minha
opinião, é também este um dos quadros em que, mutatis
mutandis, devemos ver as escolhas geográfico-nacionais das
Universidades norte-americanas em que são empreendidos

207
estudos sobre estes Direitos: são nelas ensinados os Direitos
dos Estados que instrumentalmente mais importantes se
apresentam para os Estados Unidos, para a Universidade em
causa, para o regente da cadeira ministrada, ou para os alunos
que potencialmente a frequentam266.

7.2. PEDAGOGIA E SISTEMÁTICA

O programa aqui proposto para a disciplina semestral


de Direitos Africanos como disciplina de opção para os
alunos da licenciatura em Direito (sobretudo alunos do 5º e
4º anos) corresponde, com algumas alterações, àquele que
ministrei no ano lectivo de 2001-2002. Aproxima-se bastante
mais do que utilizei no segundo ano em que a disciplina
funcionou, em 2002-2003. Algumas modificações houve, no
entanto, como resultado, sobretudo, das lições aprendidas
com essas experiências.
O programa está dividido num módulo introdutório e
três partes substanciais, cada uma delas com um título
genérico. Por sua vez, cada uma dessas partes foi subdividida
em sessões temáticas (de três a seis por parte, algumas delas
plurais), de que se apresenta um resumo e para cada uma das
quais é indicado um conjunto de referências bibliográficas.
Ao título de cada sessão segue-se um número (nalguns casos,
os das plurais, mais do que um) entre parêntesis, que as
ordena. De um total de vinte seis sessões, apenas vinte e duas
correspondem a aulas em que é discutida matéria nova. Três
das sessões remanescentes incluem uma aula de revisão
ministrada depois de terminada cada uma das partes do
programa da disciplina. Por uma questão de prudência uma
sessão será mantida como lastro.

266
Menos relevância me parecem ter invocações de motivos como eventuais
“responsabilidades históricas” (que em todo o caso me parecem versões modernizadas
da velha “missão civilizacional” ocidental) face às ex-colónias, quaisquer que sejam
as boas intenções de quem as advoga. As instituições ocidentais, pelo menos neste
caso, parecem pautar-se por considerações menos idealizadas nas escolhas que fazem
quanto às cadeiras ministradas.

208
Dadas as suas características e os seus objectivos e
finalidades, a disciplina semestral de Direitos Africanos irá
ser ministrada segundo um método didáctico particular. Cada
sessão abrange uma hora lectiva e meia. O programa está
organizado numa vintena de sessões, cujo formato será o de
seminários temáticos.
A Parte introdutória do programa (o grupo das
primeiras sessões substantivas deste) irá consistir de outras
tantas apresentações-discussões, de uma espécie de colóquios
orientados, esmiuçando os temas genéricos de
enquadramento abaixo arrolados. Nas cinco sessões
seguintes, da Parte I, bem como nas da Parte II e última do
programa, a forma preferida deverá ser a de seminários mais
participados e interactivos: as discussões estarão focadas em
curtos trabalhos apresentados por alunos e/ou em mais
prolongadas intervenções levadas a cabo por especialistas
para o efeito convidados.
O formato, pelo menos idealmente, ganhará se
propender para o de um brainstorming controlado sobre os
tópicos escolhidos para o programa da disciplina. Nas
sessões intercalares de revisão, um apanhado dos temas que
constam de cada uma das partes do programa será levado a
cabo a um mais alto nível de generalidade. O facto de a
disciplina ter sido programada para contar sobretudo com
inscrições de alunos dos 4º e 5º anos torna pedagogicamente
viável a utilização deste formato, mais participado e
interactivo, e por isso intelectual e cientificamente
muitíssimo mais exigente.
Em termos mais deliberadamente pedagógicos, uma
das finalidades é a de problematizar, pondo-os em
perspectiva implícita, alguns dos pressupostos tácitos tão
típicos das abordagens jurídicas mais dogmáticas levadas a
cabo quanto a estes Direitos. Outra é a de levar os discentes a
tomar consciência da utilidade de incluir, no estudo dos
Direitos africanos, uma atenção especial a níveis de análise
que se complementam uns aos outros. Espero assim
concorrer para uma aprendizagem e uma compreensão mais

209
ampla e criativa dos âmbitos jurídicos africanos em sentido
lato. O programa da disciplina dá, nomeadamente, forte
relevo à imbricação entre “o político”, “o jurídico” e a
economia, “o político”, “o jurídico” e a religião, o
parentesco, etc., no âmbito genérico de uma reflexão sobre a
articulação estreita entre a organização social, a cultura e o
normativo; ou a sociedade, a cultura e o poder na África
contemporânea. Simultaneamente no geral e nos mais
diversos contextos geográficos e históricos, e muito em
particular nos PALOP.
Respeitando, como não poderia deixar de ser, os
Regulamentos da Faculdade, a avaliação dependerá de um
exame escrito final, sendo no entanto tomados em linha de
conta, para uma sua valorização positiva, tanto os trabalhos
apresentados pelos alunos como as suas intervenções nas
aulas.
Como afirmei (e é facilmente verificável que sigo essa
prescrição) tanto o conteúdo das sessões propostas como a
sua selecção enquanto tópicos substantivos e como, ainda, o
seu encadeamento, respondem a muitas das condicionantes
histórico-metodológicas e das preocupações pedagógicas
atrás expostas. A preocupação foi, primeiro, a de
disponibilizar aos alunos uma passagem (inevitavelmente à
vol d’oiseau, dada a duração semestral ser exígua) sucinta
mas tão exaustiva quanto possível por alguns dos textos
fundamentais para o estudo dos Direitos africanos em geral e,
em particular, para o dos PALOP. Segundo, o lograr levá-lo a
cabo sem nunca perder de vista tanto a natureza do curso que
frequentam (em termos de currículo e de objectivos), quanto
a dimensão “táctica” e “cosmopolita” que uma disciplina
como esta sempre tem. Aqui e ali, o programa proposto
potencia ainda, expondo-as, algumas das articulações
transdisciplinares que uma investigação antropológico-
jurídica como aquela que aqui proponho exige e tem vindo a
ajudar a concretizar.
Cumpre-me tornar evidentes algumas dessas
potenciações tácticas e cosmopolitas, como as apelidei. A

210
primeira secção do programa desta disciplina trata, em
conformidade com elas, vários temas interligados, o que para
além de melhor situar, de um ponto de vista histórico e
político, as questões substantivas que posteriormente irão ser
esmiuçadas, tem a virtude (assim o espero) de nos permitir
mais claramente delinear um quadro analítico e metodológico
que as torna mais inteligíveis. Nesse sentido serão
circunscritos na primeira parte, introdutória, do programa,
tópicos muito específicos.
Enumerarei alguns. A investigação sobre Direitos
africanos e a sua inserção no âmbito do estudo geral dos
sistemas jurídicos comparados. Uma problematização, se
bem que incipiente, da natureza estrutural do pluralismo
jurídico: o que inclui atenção a mecanismos como os da
diversidade, policentralidade e hierarquias. Os novos Estados
africanos e as suas múltiplas ordens normativas: os Direitos
estatais e os regimes ditos consuetudinários. O impacto do
tipo de sistema jurídico herdado do país colonizador. A
invenção de tradições. O estatuto dos “Direitos tradicionais”
na nossa ordem jurídica e nas das ex-colónias portuguesas
em África.
O programa apresentado não procura, naturalmente e
no seguimento do que já antes se disse, dar corpo a uma
cobertura exaustiva dos complexos e multidimensionados
sistemas jurídicos africanos que aqui são tocados; aborda tão
somente, ainda que o faça em pormenor, alguns tópicos
muito específicos relativos aos Direitos contemporâneos dos
Estados “lusófonos” em África. Depois das sessões
introdutórias de enquadramento com que o programa desta
disciplina começa, segue-se por isso um bloco modular de
seis temas (organizados num número variável de sessões, de
acordo com a quantidade e o detalhe dos dados fiáveis
disponíveis) que versam (por esta ordem) uma introdução
geral aos Direitos do Estado (no essencial de origem
portuguesa) vigentes nos cinco PALOP (uma sessão), a
resolução de litígios e o pluralismo em Cabo Verde (três
sessões), a administração pública, a administração da justiça,

211
e os conflitos constitucionais em S. Tomé e Príncipe (mais
uma vez três sessões), a multiplicidade de fontes normativas
na Guiné-Bissau (uma só sessão), o não-reconhecimento do
poder local e a crise da tutela do Estado em Angola (quatro
outras sessões), a estruturação do Estado e o sistema jurídico
em Moçambique (novamente apenas uma sessão).
Outros tópicos poderiam ter sido escolhidos. Estes são
porém temas que, para além de diversificados, me parece
oferecerem o valor acrescentado de ajudar a construir
imagens relevantes das realidades sócio-políticas vividas nos
cinco Estados “lusófonos”, compostas através de lentes
jurídicas. Embora tal não signifique um desconhecimento das
especificidades próprias destas ex-colónias, essas abordagens
serão levadas a cabo contra o pano de fundo de análises de
outros casos semelhantes conhecidos na África pós-colonial.
Mas tento não me ficar por aí. Depois de se deter neste
núcleo substantivo de temas, o programa da disciplina
debruça-se sobre várias das suas implicações-condições. De
alguma forma retomando aquilo que foi indicado e tratado
nas sessões introdutórias, a nossa atenção virar-se-á, num
terceiro passo, para questões que talvez devam ser apelidadas
de “meta-jurídicas”. Serão, nesse contexto, tratados temas
ligados com as relações entre modelos normativos abstractos
e práticas concretas, ou outros que se prendem com a
articulação genérica entre a definição de jurisdições e
mecanismos de legitimação. O contraste entre Estados
africanos democráticos e não-democráticos é ponderado. É
discutido também o papel crucial preenchido, na África
contemporânea, pela interacção entre as sociedades civis
locais e os respectivos Estados.
Em termos mais gerais, nesta última secção são postas
em evidência questões suscitadas pela ligação próxima, por
via de regra patente nesses países, entre o campo da política e
o do Direito. Uma ponderação contextualizada das situações
de crise que tais intimidades desencadeiam, forma o fecho do
programa.

212
Como já referi, o programa que se segue corresponde
àquele entregue aos alunos na sessão inicial de apresentação
da disciplina (no segundo semestre do ano lectivo de 2002-
2003). Cada aula tem um título, dele consta um resumo e,
ainda, uma bibliografia. Logo no primeiro dia de aulas, a
cada sessão será atribuída uma data concreta. Todos os
alunos ficam assim, desde cedo no semestre, informados
quanto ao programa da disciplina e ao encadeamento dos
temas uns nos outros.

213
8. PROGRAMA

Introdução

OS DIREITOS AFRICANOS EM TERMOS COMPARATIVOS E


NUM ENQUADRAMENTO ANALÍTICO E METODOLÓGICO
HISTÓRICO-SOCIOLÓGICO

O ESTUDO DOS DIREITOS AFRICANOS: DO DIREITO


COMPARADO À ANTROPOLOGIA JURÍDICA (1)
A constituição dos Direitos africanos como objecto de estudo
científico. O costume e o Direito não-escrito. As formas normativas
“consuetudinárias” e os Direitos estaduais: dos modelos
evolucionistas aos modelos pluralistas. Entre a comparação de
sistemas e a comparação funcional. As diferentes expressões do
jurídico na África contemporânea.
Paul Bohannan (1965), “The differing realms of the law”, em (ed.) L.
Nader, The Ethnography of Law, American Anthropologist, special
publication 67(6, parte 2): 33:42.
Max Gluckman (1969h) “Concepts in the comparative study of tribal
law”, em (ed.) L. Nader Law in Culture and Society: 349-374,
University of California Press.
Paul Bohannan (1969), “Ethnography and Comparison in Legal
Anthropology”, ibid: 401-419.
René David (1982), Les Grands Systèmes de Droit Contemporains: 14-
15, 563-593, Dalloz, Paris.
Jacques Vanderlinden (1996), “L’Anthropologie Juridique, science de
la coutume”, Anthropologie Jurudique: 47-60, Connaissance du Droit,
Dalloz, Paris.
K. Zweigert e H. Kötz (1998, trad. da 3ª ed. alemã de 1996), An
Introduction to Comparative Law: 48-62 e outros extractos, Clarendon
Press, Oxford.
Geneviève Chrétien-Vernicos (2001), “Les Droits originellement
africains”, em Cours D’Histoire du Droit, 5, Université de Paris 8,
Vincennes.

OS DIREITOS AFRICANOS PÓS-COLONIAIS E O PLURALISMO


JURÍDICO EM ÁFRICA (2)
As ordens jurídicas plurais na África contemporânea. Natureza
complexa de muitos dos sistemas jurídicos africanos e algumas das

214
questões que tal suscita. Multiculturalidade e diversidade de ordens
normativas. Os limites do Direito dos Estados na África de hoje e o
pluralismo daí decorrente. A oscilação nas perspectivas doutrinárias
sobre o estatuto do costume como fonte do Direito em Portugal.
Brian Z. Tamanaha (1993), “The folly of the “social scientific”
concept of legal pluralism”, Journal of Law and Society 20 (2):192-
217.
Étienne Le Roy (1997), “La face cachée du complexe normatif en
Afrique francophone”, em (eds.) Robert, Ph., Soubiran-Paillet, F., e van
de Kerchove, M., Normes, Normes Juridiques, Normes Pénales. Pour
une sociologie des frontiéres (tomo 1): 123-138, L’Harmattan, Paris.
Jacques Vanderlinden (1998), “Villes africaines et pluralisme
juridique”, Journal of Legal Pluralism and Unofficial Law 42: 245-274.
António A. V. Cura (1999), “O costume como fonte do Direito e
Portugal”, Boletim da Faculdade de Direito: 241-272, Universidade de
Coimbra.
Bernard Durand (2002)”The construction of a juridical society”, em J.
Kirshner e L. Mayali, Privileges and the Rights of Citizenship. Law and
the juridical construction of civil society: 227-276, Michigan State
University.

OS USOS E COSTUMES, A CODIFICAÇÃO E OS “DIREITOS


TRADICIONAIS” (3)
A codificação como mecanismo de transformação profunda dos
Direitos tradicionais não-escritos em África. A redução de uma
normatividade plural a um sistema simples “rule-oriented”. A perda do
dinamismo original pela cristalização artificial de “regras”. A
normalização como forma de poder.
Francis Snyder (1981), “Colonialism and legal form. The creation of
‘customary law’ in Senegal”, The Journal of Legal Pluralism: 49-81,
London.
Martin Chanock (1985), Law, Custom and Social Order, The Colonial
Experience in Malawi and Zambia, Cambridge University Press,
extractos.
Pierre Bourdieu (1986), “Habitus, code et codification”, Actes de la
Recherche en Sciences Sociales, 64: 40-44.
António M. Hespanha (1993), “Sabios y rústicos. La dulce violencia
de la razón jurídica”, em La Gracia del derecho, Economia de la
Cultura en la Edad Moderna, Madrid, Centro de Estudios
Constitucionales.
Jacques Vanderlinden (2000), “Les Droits Africains entre positivisme
et pluralisme”, Bulletin des Séances de l’Académie Royale des Sciences
d’Outre-Mer 49: 279-292, Bruxelles.

215
Rui M. Pereira (2001), “A ‘Missão Etognósica de Moçambique’. A
codificação dos ‘usos e costumes indígenas’ no Direito colonial
português”, Caderno de Estudos Africanos 1: 125-178, Centro de
Estudos Africanos, ISCTE, Lisboa.

A ESCOLA DA INVENTION OF TRADITION E OS DITOS


DIREITOS COSTUMEIROS AFRICANOS (4)
A codificação (formal ou informal) dos Direitos tradicionais e a
alteração do seu estatuto. Um caso paradigmático de fabricação de
uma ordem jurídica africana pseudo-tradicional. A invocação da
tradição enquanto mecanismo, ou instrumento, pragmático
legitimador.
Sally Falk-Moore (1986), Social Facts and Fabrications.
“Customary” Law in Kilimanjaro, 1880-1980, Cambridge University
Press, extractos, sobretudo introdução e conclusões.

SOBRE O DIMENSIONAMENTO CULTURAL DAS ORDENS


JURÍDICAS (5)
Uma perspectivação fenomenológica e culturalista de um tipo
de”pluralismo jurídico” em África: o exemplo magrebino dos tribunais
cádi em Marrocos, hoje. O lugar destes tribunais no sistema judiciário
geral. O jurídico ou uma perversão-instrumentalização de um sistema?
As lógicas próprias das formas tradicionais.: mecanismos alternativos
de resolução de litígios? Os limites destes tipos de modelizações.
Lawrence Rosen (1991), The Anthropology of Justice: law as culture
in an Islamic society, Cambridge University Press

Parte 1

DIREITOS NALGUNS ESTADOS AFRICANOS DE LÍNGUA


OFICIAL PORTUGUESA

OS DIREITOS OFICIAIS NAS EX-COLÓNIAS PORTUGUESAS


EM ÁFRICA ANTES E DEPOIS DAS INDEPENDÊNCIAS.
TRADIÇÃO E INOVAÇÕES (6)
Um esboço geral, a traço grosso, dos Direitos oficiais contemporâneos
dos Palops. Das ordens jurídicas tradicionais aos regimes coloniais, às
transformações ocorridas depois das independências: passos de uma
progressão histórica. As traves mestras essenciais destes Direitos.
Marcello Caetano (1934), lições coligidas por Mário Neves, Direito
Público Colonial Português: 18-66, texto reproduzido em (org.) Diogo

216
Freitas do Amaral, 1994, Estudos de História da Administração
Pública Portuguesa: 449-502, Coimbra.
Jorge Miranda (1997), “Os sistemas constitucionais dos países
africanos de língua portuguesa”, em Manual de Direito Constitucional.
tomo 1. Preliminares. O Estado e os sistemas constitucionais: 237-241,
Coimbra Editora.
Raúl C. Araújo (2000), Os sistemas de transição democrática nos
Palop, Studia Iuridica 53, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora.
Jorge Bacelar Gouveia (2001, 2ª ed., original de 1993), “A influência
da Constituição portuguesa de 1976 nos sistemas jusconstitucionais
lusófonos”, em As Constituições dos Estados Lusófonos: 11-18, Ed.
Notícias, Lisboa.
Patrick Chabal (2002), “Lusophone Africa in Historical and
Comparative perspective”, em Patrick Chabal et al, A History of
Postcolonial Lusophone Africa: 137-185, Hurst & Company, London.

A RESOLUÇÃO “OFICIAL” DE LITÍGIOS E OS PLURALISMOS


JURÍDICO E JURISDICIONAL EM CABO VERDE (7, 8 e 9)
A organização judiciária, dos tribunais civis aos militares. As formas
híbridas de resolução e encaminhamento de litígios: natureza e pontos
focais, das instâncias de mediação laboral aos “tribunais de família”,
passando pelos “Tribunais de Zona” da primeira República. A
possessão e a bruxaria como mecanismos tradicionais profundamente
ligados à conceptualização e ao “processamento” local de conflitos.
Armando Marques Guedes et al. (2001), “Litígios e pluralismo em
Cabo Verde. A organização judiciária e os meios alternativos”, Themis.
Revista da Faculdade de Direito da UNL 3: 1-69, Lisboa.
Elisa Silva Andrade (2002), “Cape Verde”, em Patrick Chabal et al, A
History of Postcolonial Lusophone Africa: 264-291, Hurst & Company,
London.
Está disponível muita legislação caboverdiana, bem como uma
colectânea de toda a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de
Cabo Verde. Há ainda numerosos artigos, uns científicos, outros
doutrinários, sobre o Direito estadual caboverdiano.

A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, A JUSTIÇA, E OS CONFLITOS


CONSTITUCIONAIS EM S. TOMÉ E PRÍNCIPE (10, 11 e 12)
A organização judiciária contra o pano de fundo da natureza da
administração pública no arquipélago. As formas híbridas de
resolução e encaminhamento de litígios: natureza e pontos focais

217
existentes. Mestres, bruxos, curandeiros e conflituosidade social. Os
litígios constitucionais endémicos durante a Primeira e a Segunda
Repúblicas.
Augusto Nascimento (2001), “Mutações sociais e políticas em S.
Tomé e Príncipe nos séculos XIX e XX: uma síntese interpretativa”,
Centro de Estudos Africanos e Asiáticos, IICT, Lisboa.
Gerhard Seibert (2002), “São Tomé e Príncipe”, em Patrick Chabal et
al, A History of Postcolonial Lusophone Africa: 291-316, Hurst &
Company, London.
Armando Marques Guedes et al (2002), Litígios e legitimação.
Estado, sociedade civil e Direito em S. Tomé e Príncipe, Almedina.
Está disponível toda a legislação santomense produzida desde a
independência até 2000 e muita outra posterior. Há ainda vários livros e
artigos sobre temas conexos com as práticas locais de encaminhamento
e resolução de litígios.

A MULTIPLICIDADE DE FONTES NORMATIVAS NA GUINÉ-


BISSAU: O PLURALISMO E A SUA RECEPÇÃO (13)
Resumo a definir posteriormente.
Luís Barbosa Rodrigues (1995), A Transição Constitucional
Guineense, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa.
Augusto Silva Dias (1996), “Problemas do Direito Penal numa
sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-
Bissau”, Revista Portuguesa de Direito Criminal 6: 209-232; Lisboa.
António Duarte Silva (1997), A independência da Guiné-Bissau e a
descolonização portuguesa: estudo de história, direito e política,
Edições Afrontamento, Porto, extractos.
Joshua Forrest (2002), “Guinea-Bissau”, em Patrick Chabal et al, A
History of Postcolonial Lusophone Africa: 236-264, Hurst & Company,
London.
Mais bibliografia a definir posteriormente.

O PODER LOCAL, AS AUTORIDADES TRADICIONAIS E A


CRISE DE LEGITIMIDADE DO ESTADO E DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM ANGOLA (14, 15, 16 e 17)
O Estado na Angola colonial e o Estado angolano pós-colonial. O
criação-reposição de uma administração local (ou periférica) e as
eventuais formas de autonomia. Os poderes locais tradicionais e a sua
ponderação. Tradição e mudança. Da eventual natureza de uma

218
reforma constitucional do Estado angolano a esse nível: política e
Direito.
M. O. Hinz (1998), “The “traditional” of traditional government:
traditional versus democracy-based legitimacy”, em (eds.) F. M.
Engelbronner, M. O. Hinz e J. L. Sidano, op. cit.: 1-14, University of
Namibia.
B. Hlatshaswayo (1998), “Harmonizing traditional and elected
structures at the local level: experiences of four Southern African
Development Community countries”, em (eds.) F. M. Engelbronner, M.
O. Hinz e J. L. Sidano, op. cit.: 131-155, University of Namibia.
Carlos Feijó (2001), Problemas actuais do Direito Público angolano.
Contributos para a sua compreensão, Principia, Lisboa, extractos.
David Birmingham (2002), “Angola”, em Patrick Chabal et al, A
History of Postcolonial Lusophone Africa: 137-185, Hurst & Company,
London.
Armando Marques Guedes et al (2003), Pluralismo e Legitimação. A
edificação jurídica pós-colonial de Angola, Almedina.
Está disponível toda a legislação angolana produzida desde a
independência sobre o tema. Há ainda vários livros e artigos científicos
e doutrinários, bem como muitos outros sobre temas ligados às práticas
locais de encaminhamento e resolução de litígios em diversas regiões
daquele país.

UM EXEMPLO GENÉRICO: A ESTRUTURAÇÃO DO ESTADO E


O SISTEMA JURÍDICO EM MOÇAMBIQUE (18)
O sistema jurídico à data da independência. Os Direitos tradicionais.
A ordem jurídica moçambicana depois da independência:
continuidades e transformações. As Constituições de Moçambique. A
organização judiciária do Estado. As mudanças políticas e as
alterações jurídicas resultantes: da tutela colonial ao período
democrático e pluripartidário actual passando pelo monopartidarismo.
Susana B. Brito (2002), “Mozambique national report”, em
International Encyclopedia of Comparative Law, Max Planck Institut,
Hamburg.
Malyn Newitt (2002), “Mozambique”, em Patrick Chabal et al, A
History of Postcolonial Lusophone Africa: 185-236, Hurst & Company,
London.
Está disponível alguma legislação moçambicana produzida desde a
independência. Há ainda vários livros e artigos científicos e
doutrinários (produzidos tanto por especialistas moçambicanos como
por portugueses), bem como muitos outros sobre temas ligados às
práticas locais de encaminhamento e resolução de litígios em diversas
regiões daquele país.

219
Parte 2

SISTEMAS JURÍDICOS PLURAIS, OS ESTADOS E A


LEGITIMAÇÃO

OS CONTEXTOS POLÍTICOS DAS ORDENS JURÍDICAS


ESTATAIS NA ÁFRICA CONTEMPORÂNEA (19)
Os Estados africanos face à globalização: especifidades histórico-
políticas. Os processos de descolonização e os regimes militares:
estruturas e mecanismos causais. A “quasi-soberania” e os “graus de
estaticidade”. Mecanismos políticos internos e pressões sistémicas. Os
processos de democratização na África contemporânea. Implicações
ao nível jurídico.
Charles Tilly (1992), “Soldiers and states in 1992”, capítulo 7,
Coercion, Capital, and European States, AD 990-1992: 192-228,
Oxford, Basil Blackwell.
Luis Rodríguez-Piñero Royo (2000), “Del partido único al ‘buen
gobierno’: el contexto internacional de los processos de
democratización en el África Subsahariana después de la guerra fria”,
em (ed.) Francisco Xavier Peñas, África en el sistema internacional.
Cinco siglos de frontera: 209-267, Universidad Autónoma de Madrid.
Christopher Clapham (2000), “Degrees of statehood”, em (ed.) S. O.
Vandersluis, The State and Identity Construction in International
Relations: 31-49, Millenium, London.

IMPACTOS POLÍTICOS DA GLOBALIZAÇÃO EM ÁFRICA E AS


SUAS CONSEQUÊNCIAS AO NÍVEL DA NATUREZA
ESSENCIAL DOS ESTADOS E DO SEU PODER (20)
Estudos paralelos de quatro exemplos de impactos nefastos da
globalização em regimes políticos autoritários africanos. A competição
interna e o acesso aos recursos externos. A “privatização” do Estado.
A soberania enquanto “valor acrescentado”. O papel de organizações
não-estatais. E o jurídico?
William Reno (1998), Warlord Politics and African States, Lynne
Rienner Publishers, Boulder and London.

220
OS ESTADOS E A PROGRESSÃO DAS SOCIEDADES CIVIS NA
ÁFRICA LUSÓFONA. DA LEGITIMIDADE À LEGITIMAÇÃO (21)
Especificidades das sociedades civis africanas. As características
particulares das incipiências exibidas. Os referencias comunicacionais
comuns e a eficácia dos mecanismos de legitimação jurídica. A
interlocução entre as sociedades civis dos PALOP e os respectivos
Estados e a legitimidade destes últimos. Outros mecanismos de
legitimação.
(eds.) Jean & John Comaroff (1999), Civil Society and the Political
Imagination in Africa, University of Chicago Press, introdução e
extractos.
E. Gyimah-Boadi (2000), “Civil society and democratic development
in Africa”, comunicação lida no Workshop on Democracy and
Development in Africa, Fundação Calouste Gulbenkian.
António Leão Correia e Silva (2001), “O nascimento do Leviatã
crioulo. Esboços de uma Sociologia Política”, Cadernos de Estudos
Africanos 1: 52-69, Centro de Estudos Africanos, ISCTE, Lisboa.
Fernando Pacheco (2001), “Sociedade civil em Angola”, em Angola.
Direito, Democracia, paz e desenvolvimento: 259-275, Faculdade de
Direito da UAN, Luanda.
Armando Marques Guedes et al (2001, 2002 e 2003), op. cit.: secções
relevantes.

O JURÍDICO, O FUTURO E A LEGITIMIDADE DOS ESTADOS


AFRICANOS PÓS-COLONIAIS (22)
A ideologia estatista ocidental como modelo. O pós-colonialismo
enquanto ideologia e sistema justificativo. Os imaginários presentes.
Das reformas democráticas aos imperativos políticos descentralizantes
e ao pluralismo etnolinguístico e cultural. A legitimação pelo
desenvolvimento económico. O que é o jurídico na África pós-colonial
contemporânea? Que futuro para África?
Jan Nederveen Pieterse e Bhikhu Parekh (1991), “Shifting
imaginaries: decolonization, internal decolonization, postcoloniality”,
em Pieterse, J. N. e Parekh, B., The Decolonization of Imagination.
Culture, knowledge and power: 1-20, Zed Books, London and New
Jersey.
Étienne Le Roy (1997), “Gouvernance et décentralisation, ou le
dilemme de la legitimité dans la réforme de l’État africain de la fin du
XXéme siécle”, em (ed.) Gemdev, Les Avatars de l’État en Afrique:
153-160, Karthala, Paris.
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conditions à reunir en vue de l’instauration d’un État plural en Afrique

221
francophone” (comunicação não publicada, apresentada num colóquio
em Dakar).
Peter Englebert (2000), State Legitimacy and Development in Africa,
Lynne Rienner Publishers, introdução e conclusões.

BIBLIOGRAFIA SUPLEMENTAR

Para um melhor enquadramento e uma mais detalhada contextualização


da disciplina, serão porventura úteis mais referências bibliográficas,
umas de índole geral, outras de carácter mais particular. Assim, e à
parte os textos listados para as sessões sugiro a consulta de:

(i) geral, sistemas jurídicos plurais em África, os Estados e os sistemas


políticos africanos
R. Abel (1974), “A comparative theory of dispute institutions in
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(ii) o caso de Cabo Verde


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Revista Jurídica (publicação periódica oficial), vários dos números
regulares.
Raul Varela (1998), “Que organização judiciária para Cabo Verde”,
Revista Jurídica, 25: 21-27, Ministério da Justiça e da Administração
Interna de Cabo Verde, Praia.

(iii) o caso de S. Tomé e Príncipe


Gerhard Siebert (2001), Camaradas, Clientes e Compadres.
Colonialismo, socialismo e democratização em S. Tomé e Príncipe,
Vega, Lisboa.
Paulo Valverde (2000), Máscara, Mato e Morte em S. Tomé. Textos
para uma etnografia de S. Tomé, Celta Editora, Oeiras.

(iv) o caso da Guiné-Bissau


a acrescentar

(v) o caso de Angola


Raúl C. Araújo (2000), Os sistemas de Governo de transição
democrática nos PALOPS, Studia Iuridica, Coimbra Editora.
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Angola”, na Revista da Faculdade de Direito Agostinho Neto, n.º 2,
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Angola (2001), Diagnóstico Preliminar sobre o Sistema de
Administração da Justiça–perspectiva estático-estrutural, Luanda.
Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto (2001),
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Carlos Feijó (2001), “O semi-presidencialismo em África e, em
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229
ANEXOS

Anexo 1: Quadro relativo a palavras e expressões


relacionadas com feitiços e bruxaria em Cabo Verde

1-Termos crioulo 2- Significado 3- Expressões


contratado contratado Pessoas que não têm o
poder de fazer feitiços,
mas celebraram com o
diabo um contrato nos
termos do qual lhe dão
a sua alma e a alma de
outras pessoas, como
pagamento pelos
serviços por ele
prestados. Dão as
almas ao diabo através
de “presentes”
amaldiçoados, que
oferecem ás suas
vítimas.
malfêtu maldade feitiço negativo
corda corda feitiço negativo
fazi corda; fazi fazer corda; Fazer um feitiço
malfêtu fazer uma negativo
maldade
cordeiro aquele que faz Aquele que faz
corda feitiços por
encomenda de
outrem, que não tem
conhecimentos para
tal. Não possui, em
princípio, poderes
sobrenaturais, mas
“estudou” feitiçaria.

230
curandeiro aquele que cura Aquele a que se
recorre para obter
curas para os males
(físicos e não só) de
que as pessoas
padecem. Fá-lo
através de rezas,
rituais, poções...
casa di corda casa de corda casa ou “consultório”
do “cordeiro”
méstri mestre Um misto de
“cordeiro” e
“curandeiro”
casa di méstri casa do mestre casa ou “consultório”
do “mestre”
bruxa(o) bruxa(o) Mais poderosa(o) e
mais temida(o) do
que a feiticeira(o), é
alguém que por
natureza tem certos
poderes, entre os
quais o de se
transformar num
animal ou mesmo em
outra pessoa.
fiticêra Feiticeira(o) Menos poderosa e
menos temida do que
a bruxa, é alguém que
aprendeu o “ofício” e
normalmente utiliza
os seus “poderes”
para fazer “corda” em
vez de curar ou
ajudar.
messinho; guarda guarda Espécie de amuleto
ou talismã. São
objectos que depois

231
de submetidos a um
ritual se acredita que
protegerão as pessoas
que os usarem.
fitcha corpo fechar o corpo Fazer ou submeter-se
a certos rituais, cujo
[opp. «da objectivo é colocar
camba pé» ] dentro do corpo de
uma pessoa, algo (um
objecto ou uma
poção) que se
acredita que o
protegerá. É,
portanto, “fechar o
corpo” para que
nenhum mal possa
entrar, mesmo que a
pessoa se submeta a
grandes riscos. Estas
pessoas perdem,
normalmente o medo
de se expor ao perigo,
pois sentem-se
invencíveis
da camba pé [camba= fazer um grande
entrar] feitiço
opp. «fitcha
corpo»
Fulano cumi Fulano comeu Diz-se que Fulano
Beltrano Beltrano “comeu” Beltrano,
porque através de um
olhar ou de um
“presente”
amaldiçoado, Fulano
fez com que Beltrano
adoecesse, tivesse um
acidente, ou se

232
tornasse infeliz.

Anexo 2: : Quadro relativo a palavras e expressões


relacionadas com feitiços e bruxaria em S. Tomé e Príncipe

1-Termos crioulos 2- Significado 3- Expressões


Paga devê Pagar um dever “Se não pagá
que se deixou por devê morre”;
cumprir numa
outra vida anterior; “tá doente porque
alguém que se não pagou devê
deixou noutra direito”;
encarnação está a
reivindicar alguma “tá devido”.
coisa que não vai
deixar a alma da
pessoa em causa
em paz nesta vida
enquanto não for
satisfeita;
normalmente trata-
se de prestação
como dar de comer
ao marido, por ex.;
muito associado à
doença das
crianças.
Flêcê267 Oferecer na igreja “Se pariu tem que
pelo bom parto flêcê a parida ao
que teve; padre”.

267
Uma questão sem contornos “jurídicos”, mas aqui incluída para sianlizar a
importância “extra-económica” das relações de troca em S. Tomé e Príncipe.

233
normalmente a
oferta é um ritual
com elementos
necessários como a
presença de um
padre ou vela a
arder.
Trancar/Fechar o Tornar a pessoa “Tá com corpo
corpo imune aos feitiços muito aberto”;
que contra si “tem que lavar
possam lançar; corpo com banho
ritual que de flores para
normalmente se trancar”.
faz à nascença mas
que pode ser feito
a qualquer
momento.
Quibanda Local de trabalho “Eu vou a uma
de um curandeiro. quibanda”.

Sentença “Ritual receitado”“Depois de ir ao


pelo curandeiro curandeiro, ele
para que o doente diz que tem
pague o seu dever.sentença”.
Xicote Bater em alguma “Ele tem que ir
coisa. para uma estrada
em cruz com
outra, leva flores,
arranja sete
crianças para dar
xicote na estrada
e esta fica
sozinha na
estrada”.
Disprezo Praga; “Ela fez um
normalmente cura- disprezo por
se esta com a mim”.

234
Bíblia, através da
oração: colocam-
se folhas à volta da
igreja e para
afastar a praga tem
que se apanhar as
folhas, cozinhá-las
e pô-las dentro de
um cesto que se
equilibra na
cabeça; ao
despejar a água do
cesto as folhas não
podem cair.

Paulo Valverde268: Quadro terminológico (S. Tomé e


Príncipe)

“Trocar cabeça” – operação através da qual um curandeiro,


com o objectivo de consolidar os seus poderes, mata um
outro, mediante feitiço, apoderando-se depois do espírito do
morto.
“Ver mato”, “andar no mato”, “ir ao mato” - acto de ir a um
curandeiro. Trata-se de um mato metafórico, visto ser no
mato que existem recursos terapêuticos e alimentares; mas os
curandeiros vivem em espaços habitados.
“A caixa” ou “o navio” - referência ao corpo do curandeiro
enquanto receptáculo das entidades espirituais mobilizadas
para a cura.
“Limpar”- é um sinónimo de purificar e aparece a maioria
das vezes em relação ao corpo.

268
Esta lista suplementar de termos foi extraída da obra póstuma notável de Paulo
Valverde (2000).

235
“Praga”, “pedir praga”, “cortar praga” - a praga pode ser de
qualquer natureza e quem “tem praga” pode não conseguir
fazer as mais variadas coisas devido àquela. Por exemplo, um
jovem vinhateiro nunca mais conseguiu trepar ás palmeiras
para extrair o vinho da palma, porque o seu rival lhe “pediu
uma praga”.
“Capela” ou “paço do mestre curandeiro” - trata-se de um
espaço considerado como sagrado, que é englobado e
produzido pelo mato.

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