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ROBERTO SMITH

PROPRIEDADE DA TERRA
ETRANSIÇAO
ESTUDO DA FORMAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA
DA TERRA E TRANSIÇÃO PARA O CAPITALISMO
NO BRASIL

Em co-edição com o Programa Nacional do Centenário da República


e Bicentenário da Inconfidência Mineira
co-edição MCT/CNPq

editora brasiliense
Copyright © by Roberto Smith, 1990
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
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reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.

ISBN: 85-11-13101-9
Primeira edição, 1990

Revisão; Carmem T. S. Costa e Eduardo Keppler


Capa: Guto Lins

“La interpretación de nuestra realidad con


esquemas ajenos sólo contribuye a hacernos
cada vez más desconocidos, cada vez menos
libres, cada vez más solitários."

Gabriel García Márquez

“Condenada a um presente aberto apenas à


perspectiva imediata de uma repetição do
caminho percorrido pela Europa, a América
interessava unicamente em sua relação exter­
na com a Europa; era esta que se reconhecia
naquela, que através desse singular espelho
americano, aprofundava o conhecimento de
Rua da Consolação, 2697 si mesmã, de seus limites e virtualidades: a
01416 São Paulo SP
Fone (011) 280-1222 - Telex: 11 33271 DBLM BR 'América’ só existe na ‘Europa’."

IMPRESSO NO BRASIL José Aricó


A transição no Brasil: a absolutizaçao
da propriedade fundiária

Introdução

O referencial por nós adotado para a análise da transição


no Brasil é o da formação da propriedade fundiária enquanto
propriedade mercantil da terra. A absolutizaçao da proprie­
dade corresponde à forma de domínio incondicional, que não
poderia caracterizar o complexo e confuso quadro da ordem
jurídica da sesmaria no Brasil colônia.
O marco relevante que assinala a transformação da condi­
ção jurídica da propriedade no Brasil é a Lei de Terras, promul­
gada em 1850. Este é, sem dúvida, um marco arbitrário, como
qualquer um que se escolha, e em absoluto não significa um
entendimento de que, a partir de uma lei, as condições de
sociabilidade vigentes tendessem a se reestruturar.
A Lei de Terras conjuga, no entorno de sua aparição, um
processo em ebulição, duas décadas após a Independência do
país, respeitante às modificações nas relações de trabalho vigen­
tes e que implicaria o fim do escravismo.
A lei extinguindo o tráfico e a Lei de Terras foram pro­
mulgadas num espaço de tempo de duas semanas entre uma e
outra. Eram, na verdade, dispositivos complementares, impostos
a partir do Conselho de Estado, que ressurgira no Segundo Im-
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pério dentro do espectro da relação em que os Conservadores era, também, requisito do surto agrícola de exportação, incenti­
e o Legislativo se encontravam subordinados ao Poder Executivo vado pela alta de preços dos produtos na Europa.
imperial. A concessão de sesmarias foi suspensa em 1822 e, a partir
É impossível pensar a trajetória que levá à extinção do daí, 0 regime de franco apossamenlo de terras representa um
tráfico e à regulamentação da legitimidade da propriedade fun­ quadro em que o Estado praticamente sai de cena, na questão
diária fora de um contexto mais abrangente e internacional da do ordenamento legal da apropriação de terras.
divisão do trabalho, que o capitalismo ia impondo. Ê igual­ Na primeira seção, após essa introdução, pretende-se esta­
mente impossível, contudo, deixar de vincular as transformações belecer o elo entre a concepção da colonização sistemática, desen­
como resultante do quadro de avanço econômico que ocorria volvida na Inglaterra no âmbito da Colonization Society, no fim
com a agriçultura no início do século XIX, onde o café tenderia da década de 20, e cuja contribuição principal é devida a Wake­
a se firmar, bem como dos conflitos internos perante um quadro field e depois a Torrens. Por se tratar da concepção sob a qual
estrüturalmente desigual, oferecido pela perspectiva da socie­ o Conselho de Estado se inspira para elaborar e remeter ao
dade em formação na nova nação. Legislativo o Projeto n. 94, em 1843, e que viria a se tomar a
A concessão de sesmarias atendeu aos princípios mercan- Lei de Terras, procura-se recuperar o embasamento em termos
tilistas com os quais a Coroa portuguesa sempre esteve envolvi­ da abordagem de economia política que aqueles economistas
da. Como já abordamos, a disposição de terras através de ses­ ingleses desenvolveram, para fundamentar os novos princípios
marias nunca constituiu entrave, antes, ao contrário, favoreceu de colonização. A nós importa acompanhar a incorporação deste
a expansão mercantil com base na escravidão. ideário de inserção francamente burguesa, num contexto escra­
Durante todo o período colonial, a forma de propriedade vista, e que abria um leque de distintas implicações e percepções
mercantil relevante fora do escravo. O capital mercantil trafi­ de cunho regional, num país dotado de tal magnitude.
cante era um elemento encadeador do processo de submissão do A contribuição de Wakefield é geralmente conhecida atra­
produtor escravista ao capital mercantil. vés das inúmeras referências que a ele faz Marx nas suas “obras
A crise da ordem colonial desde a segunda metade do século econômicas”. Como existe, no Brasil, relativa dificuldade de
XVIII e a crise capitalista que assola parte da Europa no início acesso bibliográfico, procuramos ao longo desta seção trazer um
do século, após as Guerras Napoleônicas, projetariam uma série contato mais direto com os escritos de Wakefield, através de
de transformações que repercutiriam no país. citações contidas em dois dos seus principais escritos: England &
O capital mercantil tendeu a se transformar, tanto devido America, e A View in the Art of Colonization.
à presença estrangeira, notadamente inglesa, de financiamento e A concepção de Wakefield se afasta dos .princípios liberais,
participação nos interesses de exportação e importação, quanto e, nesse sentido, não era bem aceita na Inglaterra, por configurar-
devido ao novo impulso que a agricultura cafeeira passava a se como abertamente intervencionista. Esse talvez seja um elo im­
requerer. Ainda a isso se sobrepõe a formação do mercado inter­ portante que une a colonização sistemática com os desígnios do
no, que vinha apresentando um crescimento discreto desde o Conselho de Estado e os Conservadores em torno de um projeto
fim do século XVIII, nas áreas do Rio de Janeiro, Minas Gerais capitalista para o Brasil. Após a análise dos princípios em que
e São Paulo. se baseia a colonização sistemática, a segunda seção dessa parte
Desde a vinda da Corte, desenrola-se amplo processo de está voltada para a análise do papel do Estado na formação da
distribuição de terras. Vinculava favorecimentos que contem­ propriedade da terra no Brasil. Nessa direção, procura-se ques­
plavam honra e prestígio aos apaniguados do poder real. Mas tionar 0 raciocínio geralmente difundido e aceito de que as
ciasses dominantes (oligarquias agrárias) do café impuseram a
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Lei de Terras. Tal encaminhamento, atado a uma concepção do ingleses usualmente descrevem aqueles cuja única pro­
Estado aprisionado pela classe dominante, faz o Estado desapa­ priedade é o seu trabalho”.'
recer de cena na transição. Faz, sobretudo, esvanecer a relação
fundamental entre o capital mercantil e o Estado na economia. Se as relações de produção na Inglaterra punham à mostra
As transformações, que vinham ocorrendo no âmbito do capital uma generalização do assalariamento, o quadro de relações capi­
mercantil, a nosso ver deslocam essa visão hegemônica dos talistas típicas, onde a força de trabalho se constituía em mer­
“cafezistas”, a que se refere Passos Guimarães, e a idéia de que cadoria, encontrava-se ainda pouco disseminado no mundo
objetivassem mudanças radicais envolvendo transformações nas ocidental.
relações de propriedade e de trabalho na agricultura.
Após a perda dos Estados Unidos para o mundo colonial e
0 desencadeamento da crise que afeta num período de meio
século toda a armação das relações coloniais enredadas pelo
mercantilismp, assiste-se na Inglaterra à emergência de um senti­
Colonização moderna: análise do pensamento de mento econômico, político e moral bastante negativista, em rela­
Torrens e de Wakefield ção às vantagens da mahutenção do regime colonial pela “mother
country”.
Colonização moderna e economia clássica O pensamento anticolonialista sobressaía sob o argumento
dos custos envolvidos, involucrados em guerras, repressão e,
As transformações no panorama econômico e político mun­ sobretudo, no protecionismo, foco de ataque do pensamento li­
dial, ocorridas no último quartel do século XVIII, foram radi­ beral, desde Adam Smith e utilitaristas. Evidentemente, a guerra
cais, principalmente sob o rumo tomado pela industrialização na de libertação americana continuava ainda bem presente na me­
Inglaterra. mória da sociedade inglesa, no início do século XIX.
Wakefield assinala que, por volta da década de 30 do sé­ Bentham, em 1792, escreveu um panfleto denominado
culo XIX, apenas um décimo, quando muito, da população Emancipate Your Colonies, cujas idéias já anteriormente apare­
trabalhadora nos estados do Nordeste da União Americana po­ ciam nos escritos do escocês James Anderson, de quem prova­
deria enquadrar-se na situação de trabalhador assalariado. Na velmente recebera influência.
França essa proporção não atingia a um terço dos trabalhadores A preocupação de Bentham, ao escrever o panfleto, estava
e, no restante da Europa, o assalariamento era ainda muito voltada para o conflito colonial entre França e Inglaterra, no
baixo, com exceção de Holanda e Inglaterra. bojo das guerras napoleônicas, e para a injustiça que a possessão
de colônias provocava, tanto na metrópole quanto nas colônias,
Na Inglaterra a percepção de Wakefield era a seguinte:
desvirtuando, em ambas, a forma de governo.
“onde 0 sistema de grandes fazendas está estabelecido, Também James Mill, no artigo Colonies, que aparece publi­
onde uma grande, parte da população está engajada em cado ho Suplemento para a Enciclopédia Britânica (1823), afir-
manufaturas e onde, em toda a área da indústria, uma
completa separação se deu entre capitalistas e trabalha­
1. WAKEFIELD, E. G. England & America; A Comparison of the Social
dores, a classe trabalhadora compõe a massa do povo and Political State of Both Nations (1834). Nova York, Augustus M.
— esses são os termos pelos quais escritores e oradores Kelley Publishers, 1967, pp. 39-40.
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A questão colonial também iria adentrar o contexto desses


ma que existe uma “tendência das possessões coloniais para
gerar ou prolongar mau governo”.^ debates, que afetavam os meios políticos e intelectuais ingleses
na virada do século. Como veremos, no fim da década de 40, o
Já o argumento econômico derivava da noção clássica de
sentimento anticolonial, por parte do pensamento dominante, já
que a “indústria produtiva e o comércio são’limitados pelo mon­
estaria em grande parte revertido na Inglaterra.
tante de capital existente, reforçando com isso a idéia de que a
Esta é, como já mencionamos anteriormente, a fase onde a
intervenção governamental influenciava a distribuição, mas não
economia política vai fundar-se como razão imperante, ao se
0 nível da atividade econômica”,^ contrapor às razões de Estado e ao poder déclinante detido pelos
Tanto para Bentham, quanto para James Mill, as colônias grandes proprietários de terras.
não garantiam per se preços mais baixos para seus produtos Tornava-se, pois, importante ouvir o que os economistas
além do que a concorrência poderia provocar. Por outro lado, tinham a dizer, a partir de constructos teórico-abstratos erigidos
entendiam que não era necessário governar um país, para vender no campo da economia política, para que o encaminhamento
seus produtos a ele. das mudanças institucionais passasse a contar com a necessária
O período que vai do último quartel do século XVTII até legitimação de uma pretendida ordem científica.
0 fim da década de 30 do século seguinte é prolífero em termos Era mais do que isso, contudo, o que se vinha objetivando.
de contribuições ao pensamento da economia política que se Tratava-se da captação e estruturação de uma ordem racional
segue à publicação de A Riqueza das Nações, onde o destaque universal que desse conta da ordem burguesa, que o capitalismo
é a participação de Ricardo. passara a expor e impor como “missão civilizadora” . Esse aspec­
Nessa fase, de intensas transformações econômicas e polí­ to já é patente em A Riqueza das Nações.
ticas, que passam a requerer mudanças nos quadros institucio­ Se 0 racionajismo da economia política clássica é, por um
nais, é frequente nos defrontarmos com abordagens de cunho lado, fondante da objetivação de uma ordem universal burguesa,
eminentemente pragmático, circunscrevendo os enfoques abstra­ é sabido também que ele a coloca diante de uma perspectiva
to-teóricos da economia política clássica. Dessa forma, as Corn- finita, que contempla a crise no seu horizonte, sob o ponto de
Laws, a Reforma do Parlamento, bem como a, crise decorrente vista da acumulação de capital.
das Guerras Napoleônicas, a questão dos excedentes populacio­ 1 A economia política clássica expunha, através da consciên­
nais e a fome na Irlanda, afetando o nível de vida da classe cia de seus autores, a ameaça que pairava sobre a existência e
trabalhadora na Inglaterra, estarão presentes no cerne dos deba­ continuidade do capitalismo, cuja resistência amparava-se no
tes e constructos teóricos com que se defrontava o fazer-se da comportamento da taxa de lucro. A proteção ao coração do sis­
economia política. tema merecia, interpretações distintas e datadas, no âmbito do
pensamento clássico.
A questão colonial do começo do século XIX colocava-se
2. WAKEFIELD, E. G. England & America, op. cit. Wakefield, refe-
rindo-se a Mill, avalia a afirmação deste sobre “a tendência das posses­ nessa dupla perspectiva; a da estruturação de uma ordem uni­
sões coloniais em gerar mau governo” para, com base nisso e enfatica­ versal burguesa e a da sua preservação, admitida a crise. Con­
mente, condenar a colonização como fonte de proliferação de èmpregos, tudo, 0 debate da questão colonial foi na verdade encampado e
monopólios e guerras. Wakefield questiona Mill sobre se isso se devia submerso: pelo poder do pensamento econômico dominante, à
apenas a maus governos, ou se era da essência das colônias; pp. 231-232
e 250.
época, na Inglaterra, que era fundamentálmente de cunho ricar-
3. WINCH, Donald. Classical Political Economy and Colonies. Cambridge, diano; e pelo peso da tradição do Colonial Office do Ministério
Massachussets, Harvard University Press, 1965, p. 27. de Relações Exteriores inglês.
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As expressões mais significativas da formação do pensa­ advogava Horton, ou como se referia anteriormente James Mill;
mento em torno da questão colonial foram trazidas pela contri­ “quando o seu custo de remoção da mother country para a colô­
buição de dois economistas ingleses: iFdrrens (1780-1864), que, nia, que c usualmente criado pela distância, pudesse não ser
na verdade, era irlandês, e Wakefield (1796-1862). muito grande”. Posteriormente, Torrens mudará para apoiar o
Enquanto Torrens emergiu de dentro da tradição ricardiana, campo de argumentação mais integrado e coerente de Wakefield.
com a qual rompeu parcialmente, Wakefield iria buscar selecio­ O cerne do debate, e é importante ter isso presente, será
nar alguns referenciais na contribuição de Adam .Smith, para 0 da trajetória fundante do capitalismo em escala mundial, ao
servir de base ao seu próprio pensamento. Frise-se que Wake­ se introduzir a contradição que terras livres significavam para
field estava bastante familiarizado com a obra de Adam Smith, as relações de assalariamento e os limites impostos pela perspec­
destacando-se como arguto comentador da 4.^ edição de A Ri­ tiva da crise, isto é, do stationary state.
queza das Nações. Se o pensamento de Ricardo é dotado de uma abrangência
Robbins afirma: tal, que procura dar conta da estrutura e funcionamento do
capitalismo como um sistema integrado, isso o coloca num nível
“É verdade que no mundo do pensamento e no fora de comparação com Wakefield que procura entender o capi­
mundo da ação, ele [Torrens] deve buscar um segundo talismo apenas diante de uma perspectiva colonial. Nesse sen­
lugar, para Gibbon Wakefield. . . o verdadeiro autor das tido, Wakefield é apenas um teórico do neocolonialismo, conse­
modernas concepções da British Commonwealth of Na- guindo, no entanto, integrar a colônia a uma visão, avantajada
tions”.'^ para a época, da estrutura em que se baseia o capitalismo, e
que merecerá certo reconhecimento por parte de Marx. Mesmo
Ambos, mas principalmente Wakefield, ao desenvolverem o Torrens, em termos de elaboração em teoria econômica, apre­
pensamento da questão colonial, buscarão contrapor-se ao sen­ senta contribuição mais ampla do que a de Wakefield, se consi­
timento anticolonial vigente na Inglaterra. Para tanto, fora derarmos a sua obra, publicada em 1821, An Essay on the
organizada em 1830 a Colonization Society, cujos membros Production of Wealth.''
colaboravam num jornal. Colonial Gazette, terminando por se Intrigante, contudo, é o fato de que Wakefield irá contra-
constituírem «.ni fundadores de duas importantes colônias: a da por-se ao pensamento dominante, nos seus fundamentos básicos,
Austrália do Sul e a da Nova Zelândia.* e nisso estará à frente de sua época. O entendimento do capita­
O objetivo da Colonization Society era, em termos gerais, lismo de que Wakefield é portador será, nesse sentido, precursor
segundo Wakefield, substituir a prática da mera emigração pela de um fio condutor que conecta Marx e mais tarde Keynes, ao
colonização sistemática e numa escala suficiente para produzir refutar objetivamente o pensamento de Say. E esse é um de seus
efeitos importantes na “mother country’’.^ méritos, no que será acompanhado por Torrens.
Quando da fundação da sociedade, Torrens percebia ainda Nessa perspectiva, a tentativa conciliatória de Stuart Mill
a questão colonial apenas sob o prisma da emigração, tal como não encontra eco. Mill afirmou que:
"as proposições [de Wakefield] são, na minha opinião,
4. ROBBINS, Lionel. Robert Torrens and the Evolution of Classical Eco­ substancialmente verdade; e . . . o erro que parece-me
nomics. Nova York, London Macmillan & Co. Lkl. SI. Martin Press, 1958. imputável a Wakefield é este de supor suas doutrinas
5. WAKEFIELD, E. G. A View of the Art of Colonhation (1849). Nova
York, Augustus M. Kelley Publishers, 1969, I.eticr IX. 7. TORRENS, Robert. An Essay on the Production of Wealth." Reprints
6. Idem, op. cit., p. 40. of Economic Classics. Nova York, Augustus M. Kelley Publishers, 1965.
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era contradição cora os princípios da melhor escola


Smith, apesar dç trazer implícita a lei de Say na sua contri­
da economia política precedentes, era vez de, como elas
buição, não a tratava com rigor. Ele afirma em A Riqueza das
realmente são, corolário daqueles princípios, embora co­
Nações que “o que é anualraente poupado é tão regularmente
rolários que talvez nem sempre tivessem sido admitidos
consumido quanto o que é anualmente gasto”.®
por esses economistas políticos eles mesmos” .®
Ricardo irá negar, portanto, que o nível geral dos lucros
pudesse ser afetado pela abertura de novos mercados, procuran­
O debate da questão colonial, a partir da contribuição de
do destacar a importância do comércio exterior sob o enfoque
Wakefield, projeta o problema da transição para o capitalismo
das vantagens comparativas. Sob um raciocínio cujo pressuposto
no espaço colonial e a sua relação com a Inglaterra.
é 0 da existência de pleno emprego, novos mercados conduzi­
Veremos que o pensamento de Wakefield situa-se também
riam apenas a uma rearticulação de fatores entre diferentes em­
de forma precursora dentro da lógica em que estará se estrutu­
pregos.
rando 0 imperialismo.
Inicialmente, procuraremos expor o conteúdo do debate a A tendência declinante da taxa de lucro, para Ricardo, era
respeito da acumulação de capital dentro dos enfoques distintos explicada pela elevação dos salários, que espelhava a eleva­
de Smith e Ricardo para, em seguida, inserir e situar Wakefield ção dos custos de produção dos bens de salário.
e Torrens nesse debate. O mecanismo subjacente à elevação dos salários era aquele
responsável pelo avanço sobre terras menos férteis.
Ricardo vai assim refutar que o nível dos lucros pudesse
Smith e Ricardo: Acumulação crise e extensão de mercado ser afetado pela interferência de novos mercados, raciocinando
em termos de uma economia nacional, e os efeitos d,Q comércio
A concepção de Smith a respeito da teoria da queda da externo projetados sobre a balança comercial. Assim, introduz
taxa de lucro foi desenvolvida a partir do entendimento de que os elementos que o predispunham contrariamente ao protecio­
esta dependia da concorrência entre capitais. Nesse sentido, a nismo circunscrito aos produtos agrícolas.
concorrência entre capitais conduziría a uma expansão dos mes­ É importante considerar que os condicionantes históricos
mos, ocasionando queda nos lucros e elevação nos salários. Os que influenciaram Smith e Ricardo foram diferentes. Smith esta­
lucros cairíam, portanto, acompanhando a queda nos preços. ria preocupado com a alocação de recursos não empregados, o
Smith partia de um ponto de vista onde o comportamento que aparece de forma subjacente à sua análise do trabalho
dos investidores em um mesmo ramo era extrapolado para a produtivo e improdutivo. A preocupação de Ricardo era com a
economia como um todo. Para ele a extensão de mercado se remoção dos empecilhos que protegiam a classe dos proprietários
tomava significativa como elemento que se contrapunha à queda de terra e que faziam elevar o custo da reprodução da força
nos lucros, seja no Exterior, seja em termos domésticos. de trabalho e diminuir lucros.
Para Ricardo, tratar queda dos lucros como decorrência de O debate em torno dos defensores dos pontos de vista de
um excesso de capitais era uma concepção errônea. O meca­ Smith e de Ricardo tinha um elemento de choque no tratamento
nismo de Say encontrava-se presente no amparo à crítica de da saída de capitais ingleses dp país, como passível ou não de
Ricardo a Smith. ter influência positiva no nível geral de lucros, em termos do­
mésticos.
8. MILL, John Stuart. Principles of Political Economy: With Some of
Their Applications to Social Philosophy. University of Toronto Press,
Routledge & Kegan Paul, 2. vol., 1965, p. 735.
9. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações, cap. Ill, livro II.
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A oposição de cunho ricardiano a essa interpretação, basea­ perdido, essa perda de capital não leva a uma diminui­
da na extensão de mercado de Smith, será desenvolvida por ção do emprego do trabalho”.*^
Bentham, James Mill e pelo próprio Ricardo. Bentham enfati­
zava que seria a quantidade de capital e mão a extensão de Será, portanto, no argumento da extensão de mercado de
mercado que determinaria a quantidade de comércio.*® Smith que Wakefield irá basear-se para desenvolver a sua teoria
James Mill também é explícito a esse respeito: da colonização, o que não significa que ele aceite /« totum a
teoria a respeito das Colônias, de Smith.
“Se é afirmado que as colônias proporcionam um
mercado, eu respondo que o capital, que oferece merca­ “Os objetivos de uma velha sociedade em promover
dorias para esse mercado, podería ainda produzir mer­ a colonização parecem ser três: primeiro, a extensão de
cadorias, se as colônias fossem aniquiladas e aquelas mercado para a colocação de sua própria produção exce­
mercadorias ainda pudessem encontrar consumidores. dente; segundo, alívio do número excessivo [de habitan­
tes]; terceiro, ampliação do campo de emprego do ca­
O trabalho e o capital de um país não podem pro­ pital. . ,
duzir mais do que o país estará desejoso de consumir. .. . esses três objetivos podem ser reunidos sob um só;
Cada indivíduo tem um desejo de consumir, ainda que uma ampliação do campo de emprego de capital e tra-
produtiva ou improdutivamente, tudo que ele recebe. balho.”*^
Cada país, assim sendo, contém em si um mercado para
tudo que ele pode produzir”.** Wakefield podería desenvolver seu argumento favorável à
extensão de mercado, valendo-se dos termos próprios de Ricardo,
, Wakefield critica Bentham e James Mill, mostrando que o se procurasse restringir-se à importância do novo e fértil espaço
raciocínio de ambos tem por base dois princípios: “o primeiro, colonial e do baixo preço dos produtos importados.
de que nenhum trabalho é empregado a não ser pelo capital e Essa era uma linha a que James Mill já fizera menção e
0 segundo, de que todo capital emprega o trabalho”. Ele aceita o que Stuart Mill retomaria na tentativa de tentar compatibilizar
primeiro, mas ressalva: “não é verdade que todo capital emprega Wakefield com a ortodoxia. Esse não é, contudo, o caminho
todo trabalho”, e continua.. . que Wakefield opta por trilhar ao afirmar que:

“A isso se segue que o capital, para o qual não existe “os economistas modernos, ao tratarem a produção e
emprego doméstico, pode ser gasto em emigração sem distribuição de riqueza, têm negligenciado os elementos
diminuir o emprego para o trabalho na mínima extensão. centrais da produção; explicitamente, o campo em que o
Eu uso a palavra gasto em vez de investido, no sentido capital e trabalho são empregados. . ,
de prevenir a confusão de explicar detalhadamente que, Em suas teorias de renda, de fato, eles mostram que,
se o capital assim empregado, for em última análise enquanto o capital cresce num campo limitado de pro­
dução, é empregado com menos e menos produtividade,
donde a inferência pode ser tirada de que em tal caso os
10. BENTHAM. Emancipate Your Colonies. Ci(. por WINCH, D., op. cit.,
p. 30.
11. MILL, James. Elements of Political Economy [1821], p. 120, cit. por 12. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit., p. 250.
WINCH, D., op. cit., p. 44. 13. Idem, p. 242.
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIARIA 251
250 ROBERTO SMITH

lucros precisam se tornar mais e mais baixos; mas a mido como certo por Bentham, Ricardo, Mill, M’Culloch
respeito disso os economistas modernos não dizem uma e outros. Adam Smith, pelo contrário, percebeu que
palavra.”*^ existem limites ao lado do limite do capital, para o
emprego de trabalho; os limites, do campo de produção,
A preocupação central de Wakefield era, portanto, com o e do mercado para a produção de excedentes”.*^
fenômeno do rebaixamento geral da taxa de lucro na Inglaterra
desde 1815, tendo em vista o excesso de capital, e não como O raciocínio de Wakefield está ancorado na existência de
decorrência da elevação do custo de reprodução da força de excesso de capital na economia inglesa, em conjunção com
trabalho, grande contingente populacional, na crise que se segue às Guerras
Napoleônicas. A desproporção tem, na quantidade de terras, a
“No comércio da Inglaterra, desde a paz, uma baixa restrição que explicaria para ele o fenômeno de altos lucros e
taxa de lucro tem produzido o mesmo efeito tanto ria salários, nos Estados Unidos, versus baixos lucros e salários, na
agricultura como nas manufaturas. Inglaterra, que a ortodoxia econômica não conseguia explicar
Grandes comerciantes, que empregam grandes capi­ dentro da argumentação de que salários altos diminuíam lucros
tais, têm obtido baixos lucros e mesmo perdas. . . e vice-versa.
O emprego da expressão “economistas modernos”, de que O campo de emprego para o capital assinalava uma conjun­
se vale Wakefield, é uma referência aos que criticam a teoria tura onde o excesso de capital fazia com que, segundo Wakefield,
da queda da taxa de lucro, de Adam Smith, e crêem no poder “the profit, not the business is less”, donde advinha uma perspec­
ilimitado do capital em criar o seu próprio campo de em­ tiva de tendência ao estado estacionário.
prego...
“Abundância de capital investido, e pronto para ser
"desde então, no sentido de basear sua visão da onipo­ investido, é a característica marcante, mais ainda, especí­
tência do capital, sem olhar os meios de investimento, fica, da Inglaterra”.
eles têm caído sobre Adam Smith por este ter dito que
‘a concorrência mútua dos capitalistas naturalmente ten­ “ ... o que fazer com o seu capital é o quebra-cabeças
de a rebaixar os lucros’ dos ingleses” .'"

A onipotência do capital aparece em seguida, numa referên­ Tema que será retomado por Wakefield em Art of Coloni­
cia mais explícita aos seguidores de S ?«... zation, editado em 1843...

“Não se segue que, por ser o trabalho empregado “ . . . encontra-se no excesso de capital acima dos meios
pelo capital, o èapital sempre encontre um campo para o de investimento lucrativo, p fato onde esse país difere
emprego do trabalho. Esse é o non sequitur sempre assu- prejudicialmente dos Estados Unidos...

14. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit., p. 79. 17. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit., p. 252.
15. Wcm, p. 64. 18. WAKEFIELD, E. G, Op. cit., pp. 23 e 24.
16. WAKEFIELD. E. G. England & America. Op. cit., p. 79.
252 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 233

Eu faço alusão à necessidade nesse país de uma ” . . . poderia o sufrágio universal ser adiado até que tal
ocasional destruição de capital em grande escala”.*’ ajustamento tivesse produzido o efeito desejado?
A classe subjugada pode presentemente demandar o
Wakefield desenvolve a análise da colonização a partir de sufrágio universal; e tem inclusive os meios de pressionar
uma perspectiva estagnacionista na Inglaterra, que impunha não sua demanda ou de gerar aquela convulsão à qual o sufrá­
apenas o suporte à emigração de excedentes populacionais, mas gio universal pode conduzir, se este viesse cedo demais.
sobretudo a vazão de excedente de capital. Nesse sentido, existe Resistência, então, à demanda por sufrágio universal
na sua teorização uma preocupação de que o capital não viesse pode ser o mais curto e pior caminho para a sua adoção.”
a perder a sua condição de existência ao ser deslocado para
O autor'coloca em seguida o seu temor ao descontrole social,
terras abertas. Há, de sua parte, como que uma intuição da
ante a perspectiva de afetar a organização da produção, e o
concepção de que o capital é uma relação social, que Marx poria
grau de confiança que deveria servir de respaldo ao crédito,
em destaque, e que, na ausência do trabalho assalariado, o
numa economia que já possuía amplos encadeamentos e cuja
capital não projeta a sua existência ampliada. E mais: o fato
população, de acentuado caráter urbano, era dependente, inclu­
de que a acumulação de capital colonial se reverteria em acrés­
sive no tocante à alimentação, dos suprimentos industriais. O
cimo de riqueza na “mother country’’.
que se veria afetado, em última análise, segundo Wakefield,
Nos três primeiros capítulos de England & America, Wake­
seria o estatuto da propriedade.
field procura fazer uma exposição da opulência vigente na Ingla­
terra no início do século, em relação à miséria da massa da “A grande máquina a vapor da Inglaterra poderia
população, e o quadro de inquietação que cercava a classe média, estar próxima de ser aniquilada, se a i propriedade se
provavelmente expressão da própria inquietação do autor. tornasse insegura”.
A sua preocupação, no paralelo que traça em relação aos
Estados Unidos, era a de uma saída rápida para uma situação Em lugar de buscar uma saída pela via da melhoria educa­
que denotava, na época, uma perspectiva de convulsões sociais, cional, para capacitar o povo a votar, como era a voz corrente
e a impossibilidade da pretendida adoção do sufrágio universal, da época, Wakefield mostrava empenho em q u e ...
que projetaria as necessidades reprimidas de uma população em
estado miserável em direção às propostas de igualitarismo de “0 primeiro passo é elevar salários. Mas como
Owen. poderiam os salários ser elevados, a não ser pelo cresci­
mento do campo de emprego, ou pela diminuição do
“A miséria e ignorância das massas da população número de trabalhadores?”
inglesa-..|ornam-na incapaz para desfrutar, ou ainda a
capacitam para usar mal, uma grande extensão do su­ Esse entendimento voltado a uma necessária expansão do
frá g io ...” campo de emprego para o capital, que tornasse possível um
aumento de salários, é coerente com sua refutação a Say e à teoria
E o autor se pergunta, na sua preocupação com o ‘‘estabe­ do fundo de salários, subjacente ao debate dos excedentes popu­
lecimento da democracia na Inglaterra. . . ” lacionais e custeio da emigração, que se travava na época.
‘‘Abrir novos canais para um emprego mais produtivo do
19. WAKEFIELD, E. G. A View of the Of ColonirMlhm. Op. ril.. p. 76. capital inglês”, essa era a saída inspirada em Smith, que Wake-
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 255
254 ROBERTO SMITH

dês, 0 que o levou a buscar uma solução vinculada à emigração


field adotava. “ Investir em colonização em vez de emprestar
e, por extensão, à sua aproximação com a questão da colonização.
o excedente de capital para estados estrangeiros, ou desperdiçá-
Num de seus primeiros escritos, The Economist Refuted,
los em minas na América do Sul, sem gerar em contrapartida
de 1808, ele afirma o seguinte:
emprego na Inglaterra.”
“Deixar os ingleses comprar pão de todos os povos que
"Decorrente das proporções relativas com as quais a
tenham pão barato para vender,” numa alusão às Corn-Laws
população e capital se apresentam, em todas as velhas
que já se encaminhavam para um equacionamento na década de
nações, como forma de crescer, a oferta de trabalho tem
30, e “tornar a Inglaterra a oficina do mundo, para tudo que é
uma tal tendência a exceder a demanda, que as classes
produzido pelo vapor”, denotava a sua consciência da inserção
trabalhadoras, mesmo quando não ocorre uma estagnação
inglesa na divisão internacional do trabalho.^®
extraordinária ou retrocesso na indústria, são comumente
A questão que passa a dividir o pensamento colonial de
reduzidas a um nível de infortúnio, miséria e tentação,
Wakefield, do pensamento dominante ricardiano na Inglaterra, é
pelo qual no atual estágio de conhecimento e moral,
o da exportação de capitais. De forma subjacente, situa-se o
não há remédio concebível, exceto o sistema de coloni­
temor de convulsões sociais que pudessem afetar a instituição da
zação suficientemente extensivo para aliviar' a mother
propriedade...
country de números supérfluos”.^'
“Eu afirmo: qualquer convulsão social, se ela durar
A questão da superpopulação, que era o tema central da
mais de uma semana, pode gerar uma série de convulsões,
abordagem de Malthus, e que de certa forma influenciou Wake­
uma mais violenta do que a outra.”
field, leva a que na 3.® edição do Essay on Population ele incluís­
se alguma referência à emigração. Nessa época, contudo, Malthus
O amparo à questão colonial, dentro do debate geral da
não alimentava muita expectativa em relação à emigração como
época, segue dois rumos: o da simples promoção da emigração,
forma dé enfrentar a questão e, além de assinalar a dificuldade
que reunia, entre outros, Horton e Torrens; e o da “colonização
da implementação de tal política, entendia que ela terminaria
sistemática”, desenvolvido por Wakefield e integrantes da Colo­
atuando no sentido contrário ao de seus propósitos, implicando
nization Society, a que Torrens irá agregar-se posteriormente ao
posterior expansão do crescimento populacional.
publicar a sua obra principal na área de colonização: The Colo­
Ao retomar a questão em 1817, na 4.“ edição da referida
nization of South Australia.
obra, Malthus admite que a emigração seria uma saída positiva
para se contrapor ao desequilíbrio no mercado de trabalho
Na época, o grande defensor da causa da promoção da
Emigração e Fundo de Salários
emigração era Horton. O fato é que a emigração irlandesa para
a Inglaterra servia como elemento aglutinador de interesses no
Robbins avalia que a condição de irlandês e apoiador da
sentido da busca de uma resolução, e que passava a exigir uma
Emancipação Católica influenciou fortemente Torrens np seu
assistência política e subvencionada pelo Estado. Torna-se neces-
envolvimento com a extrema degradação do campesinato irlan­

21. ROBBINS, L. Op. cit., p. 147.


20. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit. Essa e as referên­ 22, ROBBINS, L. Op. cit., p. 148.
cias anteriores encontram-se na quinta nota da obra citada.
256 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 257

sário assinalar que o pensamento dominante tratava a emigração Nos seus escritos de 1835, Torrens encontrava-se às voltas
como mero paliativo. com a questão da superprodução e da desproporcionalidade da
produção, que, em fases depressivas, podériam ser responsáveis
O ponto de vista que Hortqn advogava entre os anos de
1823 e 1830 ^tav a amparado na teoria do fundo de salários, por uma queda nos preços mais intensa do que aquele movimento
posteriormente retomada por John Stuart MilI, e que pode ser de baixa pudesse originalmente justificar. Para Torrens, isso se
explicitada como segue: explicaria devido à natureza do dinheiro, onde “o desejo de
tornar bens em dinheiro se torna mais intenso do que o desejo
— os salários dependem da oferta e demanda por traba­ dç transformar dinheiro em bens”.^^
A abordagem de Torrens é a de que, em épocas normais,
lho e do estoque de capital circulante, em relação à
população ativa; a taxa de juros tende a movimentar-se na mesma direção do
comportamento da taxa de lucros. Mas em tempo de excesso
—T os salários reais tendem ao nível de subsistência: se de capital, “a taxa de juros do dinheiro pode se elevar, enquanto
a população crescesse mais rápido que o capital, os 0 lucro das ações se afundam para o quase nada”, o que ele
salários cairíam, levando a um pauperismo geral. reconhecia não tratar-se de uma situação de longa duração.^
Primeiramente, Torrens concebia a crise econômica no
A relação capital/população regularia, pois, os salários, de sentido de que se produzia na economia uma queda na “dispo­
modo que a emigração atuaria positivamente no sentido da sição para acumular dos capitalistas” e que isso terminava por
elevação dos mesmos. “estreitar a effectual demand”. Essas idéias ficam mais claras
Torrens se oporia à explicação de que a relação capital/ em Colonization of South Austrália, na sua explicitação contra
população fosse o único elemento regulador dos salários. Denota 0 princípio de que a oferta cria por si a própria demanda:
dessa forma insatisfação com o arcabouço teórico clássico da
determinação de salários. Acreditava que podería enquadrar a “Existe uma escola de economistas políticos que
solução da emigração no que ele referia como “uma verdadeira assume que o capital possui alguma qualidade oculta, ou
doutrina de salários”. A intenção de enfrentar a questão apareceu influência, pela qual ele cria por si próprio o campo
manifesta na sua obra de 1821, onde, contudo, não chegou a ser no qual é empregado e torna a demanda co-extensiva com
abordada. Será retomada apenas em 1826, em correspondência a oferta. Os economistas dessa escola sustentam que,
que mantém com Horton, onde discorre a respeito da amplitude embora possa ser parcial, não pode ocorrer superprodu­
entre os níveis de salários mínimo e máximo. Admite que o ção em geral e que, quando isso se dá, um certo remédio
nível inferior de salários seja fixado segundo padrões climáticos para o mal pode ser encontrado transferindo capital da­
e de costumes e o nível superior pela qualidade do solo cultiva­ queles empregos (ramos) nos quais ele existe em excesso
do, especialização e intensidade da aplicação do trabalho. Entre para aqueles nos quais é deficiente. Com os economistas
esses limites, os salários vigentes seriam definidos pela relação que tomam essa via prioritária, e antecipam os resultados
capital e população trabalhadora. da ciência ao assumirem os fatos dos quais seus princípios
Não é nosso intuito rever o conteúdo da teorização desen­
volvida por Torrens, que apresenta, ainda dc forma embrioná­
23. TORRENS, R. Colonization of South Australia, p. 421; cit. por
ria, aspectos in'portantes que seriam retomados por Murx e por
ROBBINS, Lionel, op. cit., p. 178.
Keynes, 24, Idem, p. 422, op. cit., p. 178,
258 ROBERTO SMITH
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 259
são deduzidos, eu presumo que não se sustentam. Con­
Robbins chama a atenção para o fato de que essa alusão
tudo, para aqueles que vêem a economia política como
de Torrens ao entesouramento é tentadora, no sentido de se
uma ciência indutiva, onde os princípios não são mais
extrapolar, como se fosse “uma completa antecipação do dia do
do que fatos gerais estabelecidos pela experiência, eu
julgamento keynesiano, num ponto em que o incentivo a- investir
seguramente submeto as seguintes considerações, para
não é suficientemente forte pafa fazer face ao desejo por liqüi-
mostrar que o capital não pode criar por si o campo
dez”. Ainda segundo Robbins, “ esta seria uma extensão simpá­
de emprego lucrativo..
tica levada muito longe do que seria o efetivo alcance do signi­
ficado de entesouramento em Torrens, por não ser este bem
Percebe-se claramente a influência do pensamento de Wa- definido, e a sua justaposição a exportações, como alternativa,
kefield em Torrens, na crítica que faz à teoria do fundo de
não sugerir um fenômeno completamente monetário”.^'^
salários, reportando-se diretamente à crítica de Say, na questão
O segundo argumento de Torrens é desenvolvido sobre a
da estagnação econômica e no seu questionamento que recai
situação de uma nação importadora de matérias-primas. Também
seriamente sobre as bases do pensamento clássico:
nesse caso, ele afirma que pode ocorrer “uma pletora de capital,
tal que ocasione estagnação, desemprego e uma queda geral
“Até agora os economistas políticos têm aceito que
nos preços, lucros e salários em todos os ramos da indústria
lucros e salários dependem da proporção entre trabalho
e capital. Mas isso tudo se relaciona a nada, a não ser nacional que supre o mercado externo.” Torrens tenta mostrar,
com a divisão da produção. De longe, uma questão mais nesse caso, a possibilidade de virem a manifestar-se condições
importante permanece — o que determina o montante do adversas nos “termos de trocas” internacionais, ainda que, como
produto a ser dividido?”.^® frisa Robbins, esta não seja a sua linguagem.
Nessa linha ele chega, portanto, à conclusão de que a alter­
Torrens desenvolve o seu raciocínio a respeito da estagnação nativa para a situação de excesso de capital e baixa geral na
em duas linhas de argumento. Na primeira, enfoca uma nação taxa de lucros é a colonização, que serviría de escoadouro de
que não importa matérias-primas, onde o investimento adicional capital, revertendo o declínio da acumulação e criando effectual
na agricultura não consegue mais reproduzir a si próprio. Então, demand para ps produtos da indústria manufatureira.
afirma ele, “nem os supersticiosos devotos do capital não podem A questão a respeito da “ determinação científica” dos salá­
negar o fato de q u e ... pode existir um excesso e abundância de rios, que preocupava Torrens, deve ser encarada, em nosso enten­
capital.. , 0 que significaria entender que, nessas condições, der, segundo dois âmbitos. O primeiro tem por referência um
“um país atingiu o estado estacionário, . . e, assim, os proprie­ requisito que apontava a necessidade de elevação de salários e
tários de terras e outros podem continuar a poupar das suas nível de vida da classe trabalhadora na Inglaterra, e que iria
rendas, mas cada nova acumulação precisa ser entesourada, inclusive estabelecer o nexo do chamado “exército industrial de
ou exportada, porque não pode ser produtivamente empregada.” reserva”, que Marx integraria, enquanto arcabouço funcional, à
acumulação de capital. Neste âmbito, há o sentido da recusa à
aceitação da concepção do fundo de salários e dos argumentos
25. TORRENS, R. Colonization of South Australia, pp. 239-240, cit. por que vão em cima da linha de provar que os custos de emigração
ROBBINS, Lionel, op. cit., p. 179.
26. WAKEFIELD, E. G. England and America. Op. c/í., p. 83. Nesse diminuíam este fundo.
sentido, a Teoria Geral de Keynes está em débito não apenas com Marx,
mas igualmente e com anterioridade com Wakefield e Torrens.
- 27. ROBBINS, Lionel. Op. cit., pp. 179-180.
A ABSOLUTIZAÇÂO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 261
260 ROBERTO SMITH
ou “casos em que a intervenção pública pode ser necessária para
O outro âtnbito, em que para ele se revela a necessidade efetivar desejos de pessoas interessadas”, entre outros o que se
de uma “verdadeira doutrina de salários”, era o da implantação refere à “disposição de terras coloniais”.^*
de relações de assalariamento em npyas áreas coloniais, onde
inexistia a propriedade da terra. Como, veremos mais, adiante,
uma “verdadeira doutrina de salários” aparecerá também em Colonização Sistemática e Trabalho Combinado
evidência como necessidade, em regiões onde era vigente a
escravidão e a perspectiva de transição para o trabalho livre A colonização sistemática, tal como concebida por Wake­
se colocava historicamente como um enigma de difícil resolução field, é um capítulo importante da economia política e expõe
para os seus sujeitos sociais. um esforço de teorização desenvolvido a partir do ponto de vista
O receituário liberal proposto por Adam Smith — de que da colônia. Implica entender que a expansão colonial passava a
em terras coloniais o salário deveria ser suficientemente elevado requerer instrumentos próprios de análise, e não apenas um
para desincentivar o trabalhador a trabalhar por conta própria campo reflexo de um conjunto de leis e princípios que tinham
— gerou um foco de teimosa permanência na argumentação por base a formação histórica e social européia. Isso num período
daqueles que reduziram a questão a mero jogo de mercado, onde em que o capitalismo se punha a avançar sobre novas fronteiras,
ele inexistia e onde inexistiam, sobretudo, relações capitalistas, impondo as condições para a valorização do Capital, mudando
que constituíam o pressuposto do raciocínio de Smith. e destruindo outras formas de produção e existência social e
Ao entenderem a crise de excesso de capital e a forma reso- criando um mundo à sua imagem.
lutiva se colocando em termos de exportação de capital, Wake­ A terra, para ser um elemento da colonização, afirmava
field e Torrens terão, no pensamento de Rosa Luxemburgo, um Wakefield, não tem apenas de ser inculta; tem de ser também
elemento de continuidade. Outro ponto que merece reflexão é o propriedade pública, passível de ser convertida em propriedade
fato de que Wakefield se coloca num campo de negação das privada. A que Marx complementa: “esse o segredo tanto do
forças auto-reguladoras do mercado. Assim, ele não pode ser florescimento das colônias, quanto do mal que as devora, sua
enquadrado como liberal. A intervenção do Estado aparece sub­ resistência à colonização do capital”}^
jacente a toda teoria colonial de Wakefield, postando-se defini­ Wakefield procura entender como se criam condições insti­
tivamente, enquanto intervencionista, tanto na definição do tucionais a partir das relações entre a “mother country" e os
preço da terra, quanto na sua conseqüência, isto é, na determi­ novos espaços coloniais, para o estabelecimento de relações
nação do nível de salários na colônia. Evidentemente, isso nada capitalistas, isto é, o capital se antevendo com o trabalho assala­
tinha em comum com as ultrapassadas políticas mercantilistas, riado, nesses espaços de terras abertas, onde a realidade européia
que alguns insistiam em vislumbrar a partir de suas conexões e sua história pouco tinham a contar.
com Adam Smith. A reflexão teórica de Wakefield na questão da colonização
Wakefield se vale de uma argumentação extraída de Smith; sistemática se reveste de um conteúdo pragmático, cujo objetivo
rompe, contudo, com os preceitos liberais. Wakefield não era um
liberal. O Estado estava, na sua concepção, destinado a jogar
um papel decisivo na formação da moderna propriedade da 28. MILL, John Stuart. Principles of Political Economy. Op. cit., pp,
958-959.
terra nas colônias, enquanto pressuposto para o assalariamento.
29. MARX, K. O Capital (Crítica da Economia Política), cap. XXV,
E interessante notar que nem por isso Stuart Mill exciuirá p. 887. A afirmação de Wakefield, citada por Marx, encontra-se em
Wakefield do campo dos liberais, quando cslabciccc as exceções England & America, op. cit.
262 ROBERTO SMITH
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIARIA 263

normativo é o de gestar um certo tipo de propriedade nos espaços


eles estão acostumados a utilizar para explicar os fenô­
coloniais — a “moderna propriedade da terra”, como iria referir-
menos de um velho país; eles tem raciocinado a partir
se Marx nos Grundrisse, enquanto peça central para a submissão
dos princípios que são verdade no velho país, para fatos
da força de trabalho ao capital. Essa abordagem irá estabelecer
que nunca existiram na colônia”,^^
uma convergência entre os pensamentos de Wakefield e Marx,
ainda que ambos se situem em espectros ideológicos distintos.^®
Se era óbvio, como apontava Wakefield, que os elementos
Ainda que Wakefield, como assinalamos, destoe do pensa­
básicos da colonização eram terras abertas e remoção de pessoas
mento clássico que lhe é contemporâneo, encontramo-lo ainda
e se 0 maior motivo que alimentava a emigração européia era
bastante vinculado a certas posições clássicas. Uma delas é a
identificado como sendo o da “paixão por possuir terra, que
que 0 leva a entender o capital e as relações de produção como
pertence à natureza humana”, a remoção de pessoas para ele era
que emanadas de uma ordem natural e a-histórica, onde aparece
uma condição secundária. Os meios de colonização, isto é, emi­
uma repartição natural da propriedade, que toma o capital como
gração e terras disponíveis tinham que ser visualizados, a partir
pressuposto. . .
de um ponto de vista colonial.
“ o gênero humano adotou um dispositivo... mais sim­ E esse ponto de vista a partir da colônia procura indagar
ples para promover a acumulação de capital em larga a respeito da forma como se estruturariam as relações sociais,
escala, eles dividiram-se por si próprios em proprietários quando populações fossem despejadas em terras abertas.
de capital e proprietários de trabalho”.*^ Nesse sentido, o ponto de partida assumido é o conceito de
divisão do trabalho de Adam Smith, como o princípio que faz
Dessa forma e sem explicitar ou considerar como a Inglaterra desenvolver as forças produtivas. Ele o utiliza, no entanto, para
chegou a esse estágio de sociabilidade, mas tendo uma certa antepor o seu conceito de combinação do trabalho, como condi­
consciência do processo, Wakefield passa a inquirir sob que ção que estabelece uma anterioridade no requisito para o aumen­
condições o espaço colonial podería vir a tornar-se viável para a to da produtividade do trabalho.
acumulação de capital.
Isso exige de Wakefield um certo rompimento com o “Inquestionavelmente o capital, a maquinaria (refe­
arcabouço teórico vigente na época, que procurava extrair, das rindo-se a Ricardo), que é capital, e a divisão do trabalho
referências às novas colônias, aplicações para o entendimento tendem a fazer crescer a produção em proporção com o
dos problemas econômicos existentes na Inglaterra e Europa. número de mãos empregadas.
Cada uma dessas melhorias é o efeito de uma causa
“ Os ingleses não poderiam ser tão desconhecedores antecedente. A primeira melhoria, então, nas forças pro­
como têm sido a respeito da economia política dos novos dutivas do trabalho sistemático {industry), parece ser
países. Seus economistas, ao tratarem as colônias, não não a divisão, mas a combinação do trabalho."
têm trabalhado* com outras ferramentas que aquelas que
A expressão cofhbinação do trabalho, também utilizada
como cooperação no trabalho, por Wakefield, apresenta sentido
30. PAPPE, H. 0 . Wakefield and Marx. The Economic History Review,
vol. IV, n. 1, 1951, pp. 88-94.
31. WAKEFIELD, E. G. Engiand'& America. Op. cii., p. 26-
32. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit., p. 261.
264 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 265

semelhante àquele que viria a ser empregado por Marx nos cooperação para o capital. Daí a sua perda de visibilidade para
capítulos XI e XII do primeiro livro de O Capital. o trabalhador, como intui Wakefield.^*
Marx explica que “não se trata aqui da elevação da força
“ . . . a operação do tratíalho sistemático (industry) em
produtiva individual através da cooperação, mas da criação de
qualquer lugar do mundo é produtivo na proporção do
uma força produtiva nova, a saber: a força coletiva... As con­
grau em que um homem ajuda a outro homem”
dições de trabalho aparecem como se fossem independentes do
trabalhador”.^* A cooperação se transforma, portanto, em coope­
Wakefield procura qualificar o teor dessa ajuda mútua no
ração para o capital, uma força externa ao trabalhador enquanto
processo de trabalho estabelecendo uma distinção entre o que
sujeito, que dá coesão a e sociabiliza o processo de trabalho,
ele denominou^ de cooperação simples e cooperação complexa.
onde se produz ao mesmo tempo mercadoria e mais-valia. A
Cooperação simples ocorre quando várias pessoas ajudam produção é para o capital, não para o homem.
umas às outras na mesma atividade produtiva e cooperação
A colocação da cooperação num campo de aceitação teóri­
complexa ocorre quando essa ajuda se dá em atividades produ­
ca, onde o indivíduo aparece na condição de egoísta, buscando
tivas diferentes. A primeira, por exemplo, se verifica quando
dois homens trabalham melhor juntos para levantar um peso, sua utilidade em termos privados, põe à mostra mais um conflito
do que separadamente. Nessas tarefas é necessário que várias entre as proposições de Wakefield e o cerne da teoria corrente
na época.
pessoas trabalhem juntas, no mesmo horário, lugar e com os
mesmos procedimentos. Wakefield assinala que esse é um pri­ É 0 tipo de cooperação complexa que vai interessar Wake­
meiro degrau na escala social. field, que, a partir do trabalho assalariado e da grande proprie­
Na cooperação complexa “um conjunto de homens dade, visualiza os meios que assegurariam produção com eleva­
combinam seu trabalho para obter mais alimentos do que eles da produtividade.
requerem, outro conjunto de homens é induzido a combinar seu O problema a ser encarado e que ocorria nos países que
trabalho com o propósito de produzir mais roupas do que eles dispunham de terras abertas — como garantir trabalho cons­
necessitam, o excedente de uns comprando o excedente de tante e combinável — colocava-se como antípoda da dispersão
outros e obtendo, pela troca, um capital próprio, para equipar da força de trabalho no território, em pequenas propriedades.
mais trabalhadores nas respectivas ocupações.” Para Wakefield essa era, sem dúvida, a missão civilizatória que
A combinação complexa permite o aumento da destreza de cabia ao capital conferir, porque, entre uma e outra alternativa,
cada trabalhador, a diminuição de tempo para passar de uma ele colocava o estado de civilização e o de barbárie.
função a outra e principalmente o uso de maquinaria. A coope­
ração simples desenvolve um processo mais visível e consciente
34. O tratamento da questão da cooperação simples e complexa é desen­
para o trabalhador do que a cooperação complexa, avalia Wake­ volvido por Wakefield in Adam Smith — An Inquiry into the Nature
field, que expõe dessa forma o estabelecimento dc um encadea­ and Causes of the Wealth of Nations, with a Commentary by the Author
mento a que Marx faria referência como cooperação enquanto of England & America (E. G. Wakefield), London, Knight, 6 vols., 1835;
encontra-se também abordada por MILL, J, Stuart. Principles of Political
Economy, op. cit., cap. VIII, pp. 116-130.
35. MARX, K. O Capital (Crítica da Economia Política). Op. cit., cap. XI,
33. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cH., p. 37.
pp. 374-375
266 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 267

“ . . . pela substituição do termo disperso por rude, e con­ mente. Descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma
centrado por civilizado, nos aproximamos, por fim, da relação social entre pessoas, efetuada através de coisas.”^*
verdade”.
O tratamento dispensado por Marx à contribuição de Wake­
‘Porque onde há mercado, a população Vive jun­
field oscila entre a ironia e a admiração. Wakefield era certa­
to » 36
mente a expressão de uma teorização burguesa, preocupada com
a extensão do processo capitalista onde ele era inexistente. Essa
A revisão que Wakefield faz da colonização, tal como ela
concepção burguesa, e ao mesmo tempo onírica da sociedade e
se dera no passado, revela que, salvo nas áreas onde o trabalho
da história, resulta da percepção de uma divisão entre proprie­
fora de natureza escrava ou forçada, o quadro punha à mostra
tários de capital e da força de trabalho como resultante de um
uma perspectiva negativa de frustração e pobreza.
entendimento voluntário, onde prefigura a acumulação de capi­
A célebre história de Mr. Peel, o colonizador que empregou tal, como já referimos. Para Marx, esse “estado de graça” deve­
um capital de £ 50.000, que carregara, além de todos os equi­ ria ser transferido aos novos espaços coloniais, substituindo o
pamentos, trezentas pessoas, entre as quais "sessenta eram homens processo de colonização espontânea pela colonização sistemá­
capazes e trabalhadores, para o River Swan, e que, após seis tica, que enquadrasse o “ trabalhador livre” no contexto social
meses, não contava com ninguém, ao menos para arrumar sua onde o assalariamento se impusesse enquanto forma genérica
cama ou trazer água do rio,^’ é uma ilustração reiterada, nas das relações sociais, tal como se dava na Inglaterra.
obras de Wakefield, da dificuldade em estabelecer relações de
trabalho, onde uns se disponham a trabalhar para os outros
“O grande mérito de E. G. Wakefield é ter desco­
quando possuem meios para subsistir de forma independente.
berto não algo novo sobre as colônias, mas a verdade,
A esse respeito, Marx afirma: nas colônias, sobre as relações capitalistas na mãe-
pátria.”3’
“ O sistema protecionista em suas origens tinha em
mira fabricar capitalistas na mãe-pátria, e a teoria da Cabe reprisar a observação de Wakefield feita em outro
colonização de Wakefield.. . , tem por objetivo fabricar contexto: “os economistas políticos têm raciocinado a partir dos
assalariados nas colônias. Chama a isso colonização sis­ princípios que são verdade no velho país, para fatos que nunca
temática”. existiram na colônia”.
‘‘^akefield descobriu que, nas colônias, a proprie­ Quando se pensa em termos de uma “lei geral”, onde a
dade do dinheiro, de meios de subsistência, máquinas expropriação dos meios de produção e subsistência dos traba­
etc., não transformam um homem em capitalista, se lhe
lhadores pode conduzir às relações de assalariamento, é possí­
falta 0 complemento, o trabalhador assalariado, o outro
vel entender o “mérito” consignado por Marx a Wakefield. Isto
homem que e forçado a vender-se a si mesmo voluntaria­
não só por entender o processo de transição para relações capi-

36. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit., pp. 198 e 200.
37. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit, p. 217. As refe­ 58. MARX, K. O Capital (Crítica da Economia Política). Op. cit, pp.
rências à desventura de Mr. Peel aparecem in A Letter from Sydney e 884-885.
também in The Art of Colonization. 39. MARX, K. Op. cit, p. 884.
268 ROBERTO SMITH
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 269
talistas, mas também a sua tentativa de introduzi-las e reproduzi-
las nos espaços coloniais. A visão que Wakefield exprime a respeito do homem é a
Wakefield não estava, porém, voltado para a destruição do de que se trata, “por natureza”, de um ser muito pouco coope­
campesinato, como ocorria na Europa, mas para a questão rativo, ainda que, segundo ele, algum tipo de cooperação o dis­
do impedimento à sua formação nas novas colônias, através da tinga da condição de animal. Isso levaria a que nas colônias os
ação do Estado, em face do capitalismo já constituído na Europa. imigrantes tendessem a se dispersar e viver uma existência iso­
A colônia requeria um quadro de análise próprio e ao mes­ lada e autônoma, sem produção de excedentes e, portanto, de
mo tempo articulado. comércio. O acesso a terras livres destruía, devido a essa “natu­
Assim, 0 mérito de Wakefield é mais amplo na medida em reza não cooperativa”, a base para o desenvolvimento do tra­
que ele estabelece uma conexão entre a realidade colonial e a balho combinado e constante.
da “mother country”, num contexto do capitalismo em escala
internacional. Ao aliar o movimento expansionista da coloni­ "O princípio da combinação de trabalho . . . pare­
zação moderna ao da crise de excesso de capital na Inglaterra, ce nos velhos países como uma propriedade natural do
ao defender a exportação de capitais e a estruturação de rela­ trabalho. Mas nas colônias o caso é totahnente diferente.
ções capitalistas nas colônias, como fórmula destinada a pre­ Lá, a dificuldade em induzir um conjunto de pessoas a
servar 0 crescimento do capital, Wakefield estava levantando combinar seu trabalho para qualquer propósito, encontra
questões procedentes, que alcançariam grande evidência para a o capitalista em todo o nível de seu espaço e em toda
análise crítica da economia política. linha de trabalho sistemático”.^
A questão, que aparece de forma subjacente a esse período
decisivo do espraiamento das relações capitalistas, é a de que o Como Marx assinalou, Wakefield confundia meios de pro­
movimento migratório para terras coloniais abertas, explicado dução e subsistência do produtor direto com capital, quando
na época pelo “desejo do gênero humano em se apossar de isso ocorre somente na medida em que estes se coloquem como
terras”, constituía, na verdade, o desejo de libertação das rela­ meio para explorar e dominar a força de trabalho.
ções de servidão, ainda vigentes ou em desagregação em signi­
ficativa parcela da Europa, e das relações de assalariamento, “Quando cada membro da sociedade emprega não
que não ofereciam melhores condições de vida na Inglaterra do mais capital do que suas próprias mãos podem usar, o
que a dos escravos, como descreve Wakefield em England & trabalho de toda a sociedade é necessariamente retalhado
America. em frações separadas tão numerosas quanto as famílias;
Tanto isso é concreto, que grande parte da emigração irlan­ cada família, necessariamente para viver, cultiva o solo,
desa para os Estados Unidos, apesar do vasto debate a respeito e não faz quase mais nada. Como cada família está
dos efeitos negativos dos gastos para subvencioná-la, em relação ocupada no mesmo modo de produção, não há motivo
ao fundo de salários, termina sendo encaminhada de forma para a troca entre diferentes famílias, e como em tal so­
quase que espontânea e financiada em termos privados. ciedade não há cooperação, assim como não poderá ocor­
Essa emigração, despregada do seu acoplamento ao deslo­ rer divisão dos empregos, capital e trabalho são tão
camento de capitais e da relação entre capital e trabalho, é a fracos, tão improdutivos, que o produto excedente, seja
fonte da preocupação de Wakefield, ao tratar do lema a respeito
do trabalho combinado e constante.
40. WAKEFIELD, E. G. Art of Colonization. Op. cit., pp. 168-169.
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 271
270 ROBERTO SMITH
“Até agora, nesse mundo, o trabalho nunca foi em­
para o comércio exterior, ou para a acumulação domés­ pregado em escala considerável, com constância e com­
tica, não pode crescer.” binação, exceto por um ou outro dos dois meios: ou
pelo assalariamento ou por algum tipo de escravidão” .^
Wakefield prossegue nesse tom tentando mostrar que isso
leva à fome e à barbárie.'^^ Os princípios que conduzem ao indi­ A noção de cooperação no trabalho, no entender de Wake­
vidualismo egoísta do utilitarismo, como se depreende, não se field, traz acoplada alguns aspectos que necessitam ser explici­
faziam, nas colônias, portadores do benefício da “mão invisí­ tados a respeito da escravidão e do tamanho da propriedade.
vel”, que fosse suficiente para manter um nível de civilização
O fato de Wakefield admitir que o trabalho combinado e
da qual os imigrantes eram portadores na mother country, e
constante em ampla escala somente se torna possível mediante
que se dissipava nas iniciativas pulverizadas no espaço colonial.
assalariamento ou escravidão tem dado origem a críticas à sua
Terras abertas seriam responsáveis por fazer o homem retomar
abordagem, por parecer condescendente com a escravidão. Esse
ao estado “rude e primitivo”. tipo de opinião busca respaldo nas críticas que o autor endereça
ao processo de colonização do Nordeste americano que, do seu
“O trabalho nunca foi combinado, exceto por um ponto de vista, tivera seu progresso devido ao amparo da escra­
dos dois meios: ou por meio da escravidão, ou por meio vidão no Sul, praticada na grande propriedade.
de pagamento. Não podemos conceber outro m eio...
Esse tipo de percepção, da qual Wakefield é efetivamente
Eu penso que posso ilustrar esse ponto. Acredito que portador, atrai para si um conjunto de críticas, como se ele esti­
se um homem pudesse ter duas mentes e que fosse pos­ vesse enaltecendo as condições vigentes no Sul dos Estados
sível cortá-lo em duas partes, cada uma tendo um desejo Unidos escravocrata, em relação ao Nordeste; ou ainda, a de
separado, então a grande facilidade em obter terra indu­ que seria um apoiador da grande propriedade aristocrática,
ziria uma metade do homem a separar-se da outra me­ opondo-se à pequena propriedade.
tade; e assim, n as, colônias, onde não havia restrição
sobre a terra, poderíamos ver as pessoas divididas em A concepção dualista, contrapondo os dois tipos de colo­
frações tão fracas como tendo apenas u’a mão cada. nização — que aparece em Marx, ao classificar as colônias em
de povoamento ou “verdadeiras” e de exploração, e seria, mais
A natureza, produz algum trabalho combinado. A tarde, retomada por Lênin, na contraposição entre a via farmer
natureza fez as duas mãos juntas; maior combinação do e a via junker de apropriação da terra e trabalho —, merece
que isso não ocorre nunca, sem escravidão, onde a terra um tratamento analítico e histórico, com o cuidado de estabe­
é extremamente barata.”^^
lecer as conexões da colonização no âmbito do quadro do mer­
cantilismo e do capitalismo, como abordamos anteriormente no
Essa justaposição entre relações escravistas aparece em capítulo 3.
outras partes da obra de Wakefield...
A abordagem de Wakefield vai sugerir um outro campo
de análise importante no tocante a essa questão; o da relação
41. Correspondência de Wakefield dirigida à Colonization Commissioners
em junho de 1835. Citado por ROBBINS, Lionel. Op. cit., p. 158. '
42. WAKEFIELD, E. G. In: Selected Committee on the Disposal of 43. WAKEFIELD, E. G. Art of Colonization. Op. cit., p. 324.
Lands, Q. 969, p. 110. Citado por ROBBINS, Lionel. Op. cit., pp. 158-159.
272 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 273

entre a produção escravista e a pequena produção da época, no pendentes, e assim sendo era possível empregar seu tra­
quadro da divisão do trabalho e formação do mercado interno. balho de forma constante e combinável”.“*
Vejamos qual é o entendiniénto de Wakefield: ele afirma
que a propriedade é mais produtiva na Inglaterra, naqueles dis­ A servidão temporária era para Wakefield a responsável
tritos onde as fazendas são maiores. Nessas, cada fazendeiro pela produção de excedentes das fazendas nos estados não escra­
empregaria um montante mais elevado de capital e não estaria vistas. New Orleans, que não teria existência sem a escravidão,
envolvido diretamente na produção, mas preocupado com o me­ era identificada como o mercado para esses produtos.
lhor uso do conhecimento, controle e da técnica. O emprego
mais vasto de capital e número de trabalhadores teria o efeito .De qualquer forma, a relação que o mercado estabelecia
de produzir mais, em proporção ao número de braços empre­ entre as áreas escravistas e de trabalho livre na América não
gados, do que ocorria nos distritos ingleses menos civilizados. permitia entendê-las separadamente. . .
Para ele, mesmo nesses distritos, o capital agrícola e o trabalho
são mais combinados do que na França e na Américâ, onde ele “ . . ,a dependência dos estados do Nordeste em relação
considera as plantations escravistas uma exceção, por serem aos do Sul, tanto para drenagem de seus excedentes co­
“distinguidas mais elevado nível de combinação no tra­ mo para a demanda de sua produção industrial é tão es­
balho".“^ treita quanto a dependência entre o padeiro e o açou­
O desenvolvimento do Nordeste americano é, no quadro gueiro que negociam juntos.”“''
colonial, uma resultante complexa e não pode ser considerado
desvinculado de sua relação com a plantation escravista, se não Existe, por parte de Wakefield, certa subestimação da pro­
do Sul dos Estados Unidos, mas principalmente das Antilhas dução manufatureira, inclusive naval, da Nova Inglaterra, desde
britânicas e francesas, como assinala Eric Williams; e assiste os tempos de vinculação colonial à Inglaterra. Sua análise está
razão a Wakefield em apontar essa vinculação.
sempre muito vinculada à produção agrícola e, mesmo em se
tratando da Inglaterra, o aumento da produtividade industrial
“ .. . embora os puritanos e os seguidores de Penn, que
através do progresso técnico não adentra a sua análise da crise.
fundaram as colônias da Nova Inglaterra, floresceram
A vinculação com a produção agrícola era elevada, e é o que ele
com a abundância de terras e sem escravos negros, eles
não teriam florescido sem escravidão.”“^ parece enfatizar, onde existiría quase que inteira subordinação
do desenvolvimento era moldes capitalistas, dotado de elevada
Wakefield também assinala a presença da servidão tem­ produtividade, aos freios impostos pela existência de terras li­
porária no Nordeste americano. . . vres. Nesse sentido, elevada produtividade perante terras livres
somente poderia ocorrer mediante regime de trabalho escravo.
“Embora normalmente brancos e livres, eles eram
realmente não livres para tornarem-se proprietários inde-
46. Idem, p. 213.
47, Idem, p. 215. Essa inter-relação entre a plantation e a pequena pro­
dução e a produção manufatureira tem que necessariamente ser visuali­
44. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cil., p. i2. zada a partir da desagregação do “sistema" colonial, nas suas cronologias
45. WAKEFIELD, E. G. England & America, p. 212. distintas, como já referimos no capítulo 3, para o caso do Brasil.
274 ROBERTO SMITH
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 275
Daí que ele afirma que “a causa original e permanente da escra­
vidão na América é a superabundância de boas terras”.“^* “Uma bem-sucedida rebelião de escravos podería
Wakefield abre aqui uma argumentação que teria segui­ em maior ou menor escala afetar cada branco na Amé­
dores — entre os quais Nieboer no início do século }ÍX e Do­ rica, causando uma revolução total em todos os merca­
mar —, de uma análise que procura estabelecer uma correlação dos de produtos, e isso os americanos em geral bem
entre terras livres e escravidão ou servidão, num campo metodo­ sabem.
lógico neoclássico. Domar escreve: “Sabedores disso, eles precisam saber também qual é
a causa da escravidão. Têm eles alguma vez perguntado
“ eu ainda esperaria encontrar uma correlação esta­ se é possível remover essa causa do maior mal? Eles não
tística positiva entre terras livres e servidão (ou escravi­ podem alterar a proporção entre população e terra na
dão). Tal correlação foi de fato indicada por H. J. Nie­
América; mas a proporção entre população e terra com
boer. »49
um bom título está dentro de seu controle ( . . . ) Os títulos
para novas terras são fornecidos pelo governo. O gover­
A hipótese de Domar é a de que assumidos três elementos
de uma estrutura agrícola relevante, a saber: terras livres, cam­ no, assim, é capaz de regular a proporção entre o tama­
poneses livres e proprietários não trabalhadores, quaisquer de nho da população e acres de terra apropriada.”*®
dois elementos, mas nunca os três, podem existir simultaneamen­
te. A combinação a ser encontrada dependeria do comporta­ Em países com terras boas, abundantes e baratas, a ques­
mento de fatores políticos, isto é, medidas governamentais, que tão era assegurar o trabalho constante e combinável, antípoda
ele trata como variável exógena ao modelo, e que necessitaria da dispersão da força de trabalho pelas pequenas posses. Não
ser endogeneizada. era a grande propriedade que estava sendo defendida, mas a
Apesar da recorrência de Domar à história, sua análise propriedade utilizada produtivamente.
pressupõe operacionalizar conceitos muitas vezes não expostos, Caberia ao Estado legitimar a propriedade da terra, dotan-
perante uma lógica capitalista sempre eterna. Ainda que o obje­ do-a, a partir daí, de titulagem segura, que lhe desse valor mer­
to de análise de Wakefield não se reduza, contudo, a um estudo
cantil e ao mesmo tempo impedisse a proliferação de “proprie­
da “produtividade de fatores”, sob a condição de existência de
dades” dispersas.
um fator livre, mas da questão da submissão do trabalho e das
relações de produção não capitalistas, ou mesmo da ausência
“é no poder, e parece ser dentro do cam.po da legisla­
dessas relações perante o capital, existe uma convergência de
ção, para interferir com a operação da economia polí­
Domar às conclusões de Wakefield.
tica; e assim por diante, isto é, para prevenir ou corrigir
Para Wakefield, tratava-se de entender quais as causas da
os efeitos danosos na produção de riqueza natural que
escravidão para poder enfrentar o problema que decorrería de
decorre de urn^ subdivisão miúda da propriedade da
seu esperado fim. terra.”*’

48. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit., p. 219.


49. DOMAR, Evsey D. The Causes of Slavery or Serfdom: A Hypothesis. 50. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit., p. 223.
The Journal of History, n. 1. March, 1970, pp. 18-32. 51. WAKEFIELD, E. G. In: Wealth oj Nations, vol. 1, p. 31, edição
comentada; cit. por WINCH, D. Op. cit., p. 94.
276 ROBERTO SMITH A ABSOLUT1ZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIARIA 277

Nesse sentido, Wakefield critica as grandes doações de Preço Suficiente da Terra e Salários nas Colônias
terras coloniais, que se tornavam privadas e incultas, ao mesmo
tempo em que se tornavam um'obstáculo aos objetivos de colo­ O princípio intervencionista, através do qual o Estado pas­
nização. Observa que, para tanto, as terras tinham que perma­ saria a agir no tocante à colonização sistemática, decorreria da
necer estatais, porque o que motivava a emigração era a existên­ suspensão das doações de terras, passando a vendê-las aos no­
cia de terras disponíveis para novos colonos. vos colonos.
Ao enfatizar a importância da grande propriedade, não é
a propriedade aristocrática e arcaica que Wakefield tem. em mi­ . .sob 0 plano de doações, com profusão o governo
ra, mas a grande propriedade produtiva, onde ele deixa antever tem a oportunidade, e a forte tentação, a favorecer ami­
vantagens de escala, onde o assalariamento é a norma. De fato, gos, a praticar favoritismos e negociatas oficiais na dis­
0 modelo que ele deseja transplantar para as colônias é o da tribuição de terras. Não há instância em governos colo­
agricultura inglesa mais avançada. niais que seja capaz de resistir a essa tentação. Isso
Já a leitura que Warren Dean faz de Wakefield é a de constitui uma das práticas mais evidentes e desabonado-
entender que, na visão deste, “ os Estados Unidos não foram ras da história colonial: e foi um dos impedimentos
capazes de preservar a organização social aristocrática dos ingle­ efetivos da colonização, pela criação de uma vasta safra
ses devido à terra barata”. Dean procura enquadrar Wakefield de frustrações, ciúmes, cobiças e rancores.”®'*
num espectro conservador, em oposição ao campo liberal, que
aparece defendendo as virtudes da pequena propriedade. O resultado da venda de terras deveria gerar um fundo de
emigração destinado a custear a transferência de colonos sem
“ Os conservadores tinham em Wakefield um repli- condições de adquirir terras, que iriam submeter-se a trabalhar
cador pragmático aos liberais, que seguindo Smith enal­ nas terras vendidas, em troca de salários. Nesse sentido, a pro­
teceram o baixo preço da terra e os salários altos como posta era a de que o governo deveria fixar o preço da terra a
causas da prosperidade, mas não reconheceram, ou admi­ um certo nível, que Wakefield denominou de preço suficiente.
tiram, que 0 resultado inevitável deveria ser a derrocada
do latifúndio.”®^ “O plano de vendas contém em si um efeito regu­
lador da quantidade de terras postas à disposição. Esse é
É impossível detectar na obra de Wakefield essa defesa do
0 preço que o governo requer pela nova te rra ...
latifúndio como percebe Dean, principalmente se o latifúndio
for entendido como grande área improdutiva. Wakefield não . . . dar à terra mais barata um valor de mercado que
tem nem mesmo uma postura contrária à pequena propriedade teria o efeito de compelir os trabalhadores a trabalhar
em si. Segundo ele, “o mal está na divisão, não da terra, mas um tempo considerável por salários antes que eles pu­
do capital e trabalho empregados na terra”.®® dessem vir a tornar-se proprietários. Um preço que faça
menos do que isso seria insuficiente, um que faça mais,
seria excessivo; o preço que tornasse isso possível, e não
52. DEAN, Warren. Land Policy in Ninetccnili C!cnliiiy Unir,il. IIAHR.
Op. cit., p. 614.
53. WAKEFIELD, E. G. England & Amenai. ()p. cit., |i, 2'), 54. WAKEFIELD, E. G, The Art oi Colonization. Op. cit., p. 336.
A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 279
278 ROBERTO SMITH

e do tipo de atratividade que uma determinada colônia desper­


mais, é o preço conveniente. Eu costumo denominá-lo
tasse para o emigrante.
preço suficiente.”^*
Dependia também do custo de vida na colônia e do “poder
A indicação de um preço suficiente para a terra iria des­ de poupança”, que possibilitaria ao emigrante adquirir um lote;
pertar, à época, um debate circunscrito a uma pretensa inten­ e, por fim, das próprias condições de solo e clima em relação
à produtividade do trabalho.*®
ção de sua determinação, segundo critérios científicos e univer­
sais. Wakefield expõe o conteúdo desse debate através da troca A sugestão de Wakefield, como orientação prática aos go­
de correspondência entre um estadista e um colonizador, na sua vernos para a “formação” do preço suficiente da terra, está ba­
seada na sua concepção de field of employment para o capital
pessoa, que ele estrutura na obra A View of the Art of Colo-
e trabalho e mostra uma amplitude entre os paradigmas traçados
nization.
por ele para Inglaterra e Estados Unidos.
O estadista coloca a seguinte questão para o colonizador: Como evitar preços elevados, questiona o autor?
Para ele, os indícios sairiam da verificação do comporta­
“ . . . você nunca se aventurou a dizer o que deveria mento das taxas de lucro e salários na colônia. Se ambas esti­
ser............ qual é o preço suficiente?. . . sua teoria está vessem em queda, e pudesse ser detectada a causa dessa queda
requerendo isto, dentro da precisão científica que você devido à concorrência entre capitais e entre trabalhadores, então
atribui a e la ... nosso próximo passo é determinar o o governo poderia saber que o preço requerido se encontrava
preço suficiente.”“ num patamar elevado. Portanto, o ajuste para baixo do preço
suficiente ampliaria o campo de emprego, revertendo aquela
O objetivo do preço da terra, e “a esse respeito não pode tendência.
haver dúvida alguma” , respondia W akefield... Por outro lado, se a queda de lucros e salários fosse pro­
veniente da baixa produtividade do capital e trabalho, decor­
“ . .. é prevenir os trabalhadores de virem a se tornar rente da pouca qualificação na aplicação do capital e trabalho,
proprietários de terras, de imediato; o preço precisa ser em conseqüência da grande dispersão, então, para Wakefield,
suficiente para esse propósito e não outro.”*’^ seria evidente que o preço da nova terra não era suficiente-
mente elevado.
O preço suficiente não fechava a possibilidade de o assala­ A sua atenção não se encontrava voltada apenas para o
riado vir a tornar-se proprietário. A defasagem de tempo impos­ estoque de terras tituladas, mas para a disposição em um nível
ta para isso iria depender da duração apropriada de emprego do de concentração adequado das atividades em relação à combi­
trabalhador assalariado para os proprietários, da taxa de cresci­ nação do trabalho e à proximidade do mercado. Procura lem­
mento da população na colônia, que implicaria a rotação e brar, ainda, que a direção da boa política de formação governa­
substituição entre trabalhadores que adentrassem e saíssem do mental do preço suficiente da terra ^...começar com preços
mercado de trabalho, do custo de transporte para trazer colonos baixos, ajustando-os para cima, e não o inverso, para com isso
assegurar a valorização das terras anteriormente vendidas e não
desincentivar o mercado de terras. Já a tendência dos salários
55. WAKEFIELD, E. G. The Art of Colonization. Op. cit., pp. 338-339.
56. Idem, pp. 345-346.
58. Idem.
57. Ibidem, p. 347.
280 ROBERTO SMITH A ABSOLUT1ZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 281

e do mercado de trabalho, em relação ao ajuste do preço da Para Wakefield, o objeto do seu sistema não era nem criar
terra, parece não preocupar Wakefield.^® o monopólio da terra, nem forçar o capital a se ajustar a um
Dessa forma, a política do preço suficiente tinha um sen­ gradiente do emprego mais lucrativo para o menos lucrativo,
tido regulador em dois âmbitos integrados; o de ajuste das va­ mas ‘‘reforçar... uma apropriação compacta com o objetivo
riáveis econômicas relevantes (lucro e salários) e o da organi­ de maior concentração, de maior combinação e divisão do tra­
zação espacial e locacional das atividades, visando a privilegiar balho”, com o que Torrens termina por concordar.®^
a combinação de trabalho e estruturação do mercado. Dois aspectos circunscreviam a instituição do preço sufi­
Torrens, inicialmente, postou-se contra a teoria do preço ciente: o primeiro era que o Estado criava, exogenamente ao
suficiente, nos termos de uma regulação espacial, por entender mecanismo de mercado, a propriedade mercantil da terra. O
que isso levaria a uma concentração de atividades em terras de segundo é que a vedação temporária de acesso à propriedade
qualidade inferior, enquanto as de melhor fertilidade continua­ da terra, pela fixação de um preço à mesma, tornava de certa
riam inaproveitadas. Procura demonstrar, inclusive matemati­ forma o salário dependente do preço da terra na colônia. ‘‘So­
camente, ‘‘que a venda de terras coloniais deveria ser a última mente a terra mais barata é aquela cujo preço afeta o mercado
fonte de escolha pela qual um fundo de emigração pudesse ser de trabalho”, afirma Wakefield em England & America.^^
obtido”.®® Expõe a necessidade de que a emigração, nesse caso, O caráter dessa medida imposta através do Estado entrava
deveria crescer em progressão geométrica, dobrando a cada três em conflito com os princípios liberais, que, como referimos,
anos.®^ Stuart Mill tenta amenizar. Implicava a tentativa de impor,
através de meios artificiais, um processo de ‘‘fechamento de
Wakefield aceita o raciocínio de Torrens, mas explica que
terras”, isto é, de assegurar a continuidade da expropriação do
a análise não poderia prender-se exclusivamente à questão da
trabalhador dos meios de produção e subsistência, no seu novo
fertilidade do'solo, mas principalmente à proximidade de mer­
habitat. Os enclosures, que resultaram de longo e conflituoso
cados e combinação de trabalho. O argumento de Wakefield,
processo político e social da história inglesa, nas colônias pas­
explica Robbins, utiliza o recurso de diagramas para ilustrar a
sariam a ser uma aplicação institucional pronta para receber
disposição espacial da renda da terra em círculos concêntricos,
os migrantes. Através do Estado, tentava-se estruturar formas
admitindo que, se não existissem mercados e centros de ativida­
mercantis à propriedade fundiária e à propriedade da força de
des, a fertilidade do solo seria a circunstância principal deter­
trabalho. O Estado situando-se como princípio estruturador do
minante da renda. Robbins afirma ainda que esses diagramas
mercado, por onde se daria o encaminhamento resolutivo da
eram similares àqueles desenvolvidos por von Thünen na pri­
submissão da força de trabalho e da acumulação de capital.
meira parte de seu "Der Isolierte Staat” (1826), supondo que
O motivo que induzia os indivíduos a emigrar e tornarem-
não existem razões para admitir o conhecimento prévio da con­
se colonos era a possibilidade de se tornarem detentores de uma
tribuição de von Thünen por parte de Wakefield. gleba de terra. Essa aspiração tinha que ser intercalada por um
período de tempo onde, trabalhando por salário, o colono pudes­
59. WAKEFIELD, E. G. England & America. Op. cit., p. 301. se poupar até constituir um fundo para adquirir sua propriedade.
60. Esta controvérsia entre Horton, Torrens e os membros da Colonization Para Marx, o preço suficiente da terra...
Society, onde se destaea Wakefield, é abordada por Charles Tennant in
Letter to the Right Hon, Sir George M urray.., on Sy.slcniulic Coloniza­
tion, citado por ROBBINS, L. Op. cit., pp, 167-168. 62. ROBBINS, Lionel. Op. cit.
61. Idem, p. 172. 6.3. WAKEFIELD, E. G. Op. cit., p. 332.
A ABSOLUTIZAÇÂO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 285
284 ROBERTO SMITH
atuação de José Bonifácio durante a regência de D. Pedro deixa
Pelo meu ponto de vista, os Estados Unidos da Amé­ antever, contudo, uma intencionalidade mais abrangente, na ten­
rica, formados pela emipação desse país, e ainda rece­ tativa de çquacionamento da caótica questão fundiária em que
bendo um grande incremento anual de população através se encontrava o Brasil.
de emigração desse país, são ainda colônia da Ingla­ Como se referiu anteriormente, esta situação já era reco­
terra.”*’ nhecida pelo Alvará de 5 de outubro de 1795, que pretendia
regularizar de forma global a questão da propriedade da terra
no Brasil, e afirmava no seu preâmbulo “ Que sendo-me presen­
tes em consulta do Conselho Ultramarino os abusos e irregulari­
O estado e a formação da propriedade dades, e desordens, que têm grassado, estão e vão grassando em
da terra no Brasil todo o Estado do Brasil, sobre o melindroso objeto de suas
sesmarias..
O referido Alvará provocou, no entanto, violenta reação
Antecedentes contrária e, após pouco mais de um ano, sua execução foi
suspensa por Decreto, onde era alegado que “nas circunstâncias
O regime sesmarial, em desagregação há longo tempo no atuais não é o momento mais próprio para dar um seguro
Brasil colônia, termina por ser extinto em 1822, pouco tempo estabelecimento às vastas propriedades de meus vassalos nas pro­
antes da Independência. Isso parece ter ocorrido em circuns­ víncias do Brasil”.
tâncias marcadas por certa discrição, onde institucionalmente Dentre as razões consideradas estavam as “da falta de
não se procurava fazer alarde sobre seu fim. geômetras” e “os muitos processos e causas que poderão exci­
O período, que coincidiu com a transferência da Corte tar-se. .. que o Conselho Ultramarino suspenda por ora a exe­
portuguesa, assinalou, segundo inúmeras referências, um proces­ cução e efeitos dessa saudável lei”.“
so descontrolado de concessão de terras, que necessitava ser Através de alguns escritos atribuídos a José Bonifácio, o
refreado. que parece ficar evidente é que o ato de suspensão da concessão
De fato, a medida suspensiva de doação de sesmarias, de de terras deveria ser entendido como um primeiro capítulo de
iniciativa atribuída a José Bonifácio de Andrada e Silva, tomada uma série de dispositivos de espectro mais amplo, que deveria
através da Resolução 76 de 17 de julho de 1822, encontrava-se seguir-se, relativa à questão da propriedade da terra, das rela­
inserida numa simples sentença de concessão de terra, onde, em ções de trabalho e da técnica, vinculada ao desenvolvimento
continuidade, um adendo declarava laconicamente a suspensão, da agricultura no Brasil.™
a partir daquela data, de todas as concessões futuras de sesma­
rias, até a convocação da Assembléia Geral Constituinte.“ A foi referendada por D. Pedro I, pela Provisão 154, de 22 de outubro de
1823, que recomendava aguardar a regulamentação da matéria através da
Assembléia Geral.
67. WAKEFIELD, E. G. The Art of Colonization. Op. cit,, p. 17. 69. LACÉRDÃ, M. Linhares de. Tratado das Terras do Brasil, pp. 120-121.
68. A convocação da Assembléia Geral Constituinte era um desdobra­ Refere-se ao Decreto de 10 de Dezembro de 1796.
mento da Revolução Liberal do Porto, em 1820, da qual deveríam parti­ 70. O papel desempenhado por José Bonifácio de Andrada e Silva a res­
cipar deputados representantes do Brasil. A precipitação das ocorrências peito da questão da propriedade fundiária é assinalado por GADELHA,
políticas, durante a regência de D. Pedro, lovam-no n convocar uma Regina M. D’Aquino F. na sua tese de doutorado: “Os Núcleos Coloniais
Constituinte para o Brasil, o que equivaleu a uma decisão que fez cami­ e o Processo de Acumulação Cafeeira (1850-1920)", U.S.P., São Paulo,
nhar, irrevogavelmente, para a Independência do país, A Itcsoluçno 76
286 ROBERTO SMITH
A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 287

Num desses escritos, o documento Lembranças e Aponta­


Em outro escrito de José Bonifácio, Representação à Assem­
mentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da
bléia Geral e Constituinte e Legislativa do Império do Brasil
Província de São Paulo, encaminhado em 5 de outubro de 1821
Sobre a Escravatura, o deputado procurava mostrar que a escra­
ao governo da província, contendo sugestões à Constituinte por­
vidão não conseguia fazer aumentar a população do país e “só
tuguesa, o item 11 indica os seguintes pontos de Vista e pro­
serve de obstar a nossa indústria”. Afirmava mostrar a expe­
posições:
riência que “os estrangeiros pobres . . . em pouco tempo deixam
de trabalhar a terra com seus próprios braços, logo que podem
— que a legislação das sesmarias (ainda vigente) não
ter dois ou três escravos. . . "
atendia aos interesses de expansão da agricultura e re­
A escravidão era identificada como responsável pelo não
queria novos instrumentos legais;
avanço da técnica e da produtividade e desincentivadora do
— 0 fato da existência de grandes extensões de terras trabalho livre.
concedidas e incultas assinalava a dispersão e o estado
selvagem da população, como um caso de afronta à civi­ “ . . . As Artes não se melhoram; as máquinas que poupam
lização ("seguindo-se também daqui viver a gente do braços pela abundância extrema de escravos nas povoa­
campo dispersa, e como feras no meio de brenhas e matos ções grandes são desprezadas.”
com summo prejuizo da administração de justiça e da
civilização do paíz.”); e expõe uma concepção de agricultura baseada no trabalho livre
— que não se dariam mais sesmarias gratuitas. Estas e na pequena propriedade...
passariam a ser vendidas em lotes demarcados de até
meia légua quadrada (1.089ha) e com preço estabelecido; “Ê, pois, evidente que, se a agricultura se fizer com
braços livres dos pequenos proprietários, ou por jorna­
— que 0 recurso da venda de terras deveria favorecer à leiros, por necessidade e interesse, serão aproveitadas
colonização de europeus, pobres, índios, mulatos e negros essas terras, mormente nas vizinhanças das grandes po­
forros, a quem se daria de sesmaria pequenas porções voações onde se acha sempre um mercado certo..
de terrenos;
— que as sesmarias doadas e não cultivadas voltassem e portanto.. .
novamente à massa dos “bens nacionais” , permanecendo
em mãos de seus detentores apenas meia légua quadrada “os bens rurais serão estáveis e a renda da terra não
(reafirmando, portanto, o antigo dispositivo de reversi­ se confundirá com a do trabalho e indústria individual”.
bilidade da propriedade).’*
A Representação incluía ainda a proposta do fim da escra­
vidão através da cessação do tráfico em “quatro ou cinco anos”,
1982. Esse assunto é também abordado por Viotti da Costa, Emília:
“José Bonifácio: mito e história' in Da Monarquia à República: mo­
e medidas fiscais que p.assariam a onerar o tráfico e a escravidão
mentos decisivos; Editora Brasiliense, São Paulo, 1985, pp, 55:118. nesse período.
71. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Obras Científicas,' Políticas
e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva, coligidas e reproduzidas “Torno a dizer, porém, que eu não desejo ver abolida
por CERQUEIRA FALCÃO, Edgar de, 3 vols.; Revista dos Tribunais. de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo
vol. II, 1963-65, pp. 99-100.
grandes males.”
288 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 289

Ò pensamento de José Bonifácio deixa perceber, por um e políticos, sobretudo ingleses, com certa anterioridade à publi­
lado, as pressões inglesas para a suspensão do tráfico e, por outro, cação de A Letter from Sydney e à constituição da Colonization
0 peso conservador que atuava no sentido de conceber o término Society em 1830. Ê possível também que um caminho inverso
da escravidão dentro de um horizonte distante. Esse lado con­ tenha dado, onde Wakefield tenha captado e sistematizado
servador era necessariamente levado em conta, tendo em vista a questões que já faziam parte de necessidades vivenciadas a partir
consolidação de um respaldo político mais amplo, que implicava das colônias, isto é, países dotados de áreas de terras abertas e
um pressuposto a qualquer ação governista. O encadeamento população rarefeita. É difícil resgatar esse processo, mas ele não
entre as questões da propriedade da terra, o cultivo produtivo e o é diferente da forma como surgiram outras contribuições no
trabalfio livre através da colonização, que o fim gradual da campo da economia política, onde idéias esparsas iam sendo
esc^vidão provocaria, estava, pois, na ordem de preocupações apresentadas até que alguém conseguisse articulá-las dentro de
centrais da estruturação social e normativa da nação emergente. uma concepção lógica, fundamentada e mais geral. O próprio
Com oito anos de antecedência em relação à publicação Wakefield reconhece isso em The Art of Colonization, ao afirmar
A Letter from Sydney, em 1829, e de England & America, em que a colonização sistemática é um processo de criação coletiva
1833, José Bonifácio já exprimia alguns elementos centrais da do qual ele era um editor ou, na sua expressão, apenas one of
concepção da colonização sistemática de Wakefield. the writers.
José Bonifácio foi, sem dúvida, uma das expressões mais Mas, se por um lado, existem traços comuns na comparação
relevantes .da elite intelectual e ilustrada, envolvida na extirpa­ entre as proposições de José Bonifácio à Constituinte, que seria
ção do absolutismo português e na gestação da nova ordem abortada pelo retorno absolutista à cena de D. Pedro I, em 1823,
nacional. Assim como outros intelectuais da época, travava con­ e o desiderato da colonização sistemática, por outro lado, exis­
tatos e participava estreitamente dos focos intelectuais europeus.^ tem também diferenças importantes.
Ê bastante significativo, pois, que algumas das idéias posterior­ José Bonifácio não entendia que o trabalho escravo se cons­
mente expressas por Wakefield já se encontrassem presentes nos tituísse naquilo que Wakefield assinalaria como uma das duas
seus escritos de 1821. Estes reuniam uma preocupação com a únicas formas de trabalho combinado. Para ele, o trabalho escra­
produtividade agrícola e as terras incultas das grandes sesmarias, vo implicava fundamentalmente obstáculo ao avanço da técnica.
vinculando dispersão com estado de barbárie, buscando uma
ordenação espac4.al — delimitando áreas reservadas a vilas — e, “Causa raiva ou risco ver vinte escravos ocupados
sobretudo, encaminhando a diretriz da transformação da sesma­ em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam condu­
ria de outorga gratuita em venda efetiva de áreas demarcadas zir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois
com preço instituído, cujos recursos serviriam para financiar a ou duas bestas muares.
colonização. Há também de sua parte uma preocupação subja­
cente com o estoque de terras estatais. Além disso, percebe que a presença do trabalho escravo
Tudo leva a crer que essas idéias, embora dispersas, se dava uma conotação de desestimulo ao trabalho livre. Nesse
encontrassem presentes e fizessem parte de circuitos intelectuais aspecto, contudo, José Bonifácio é contraditório. Por um lado,
percebe que os estrangeiros logo botam escravos a trabalhar para
si e "entregam-se à vadiação e desleixo”. Mas, por outro, o seu
72. José Bonifácio viveu até 1819 em Portugal e, apesar dc ter nascido
em Santos, apenas aos trinta e seis anos de idade sc transfere para o
Brasil. Viotti da Gosta, op. cit., procura mostrar como José Bonifácio foi
uma figura politicamente controvertida. 73. ANDRADA E SILVA, |. B. de. Op. cit, p. 135.
A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 291
290 ROBERTO SMITH

de Sesmarias, na conformidade do que se acha determinado por


contato mais direto com o surto açucareiro de São Paulo, na
muitas Resoluções Régias.”’'^ .x
segunda década do século XIX, leva-o a admitir a necessidade
O que parece diferenciar a posição de José Bonifácio da­
do trabalho escravo, que se expandia na ProvínciaJ“*
quela de Wakefield é a maneira explícita como o economista
Esse aspecto contraditório está na verdade presèhtè na forma inglês entende a esthituraçãó da forma de propriedade em ter­
como José Bonifácio está pensando a colonização e a reordenação ras abertas, com o objetivo de submeter a força de trabalho ao
do trabalho escravo para o trabalho livre. A sua concepção não dá capital; já os contornos expostos por José Bonifácio não são
lugar à grande produção, como na concepção de Wakefield. Ê precisos nessa direção.
provável, uma vez que ele não é explícito a respeito, que a O pensamento de José Bonifácio, que Viotti da Costa en­
concepção de José Bonifácio a propósito do lugar da grande quadra como 0 de um “burocrata intelectual”, por um lado, se
produção mercantil exportadora tivesse um encaminhamento re- postava como, “progressista” em relação à sua época e no con­
texto brasileiro. Isso principalmente por sua conduta antiaristo-
solutivo de longa duração, com a dilatação do prazo para extin­
crática e combate ao despotismo. Expressava-se também no
ção da escravidão — que seria dado pelo avanço da técnica no
seu anticlericalisrno, no envolvimento com a emancipação dos
campo — e com o crescimento da população — para o qual a escravos e a intenção de disciplinar a propriedade fundiária,
importação de escravos africanos sabidamente não contribuirá. com vistas a torná-la produtiva. Ele é, contudo, simultanea­
Isso pode explicar sua posição em relação à produção mercantil mente conservador, sem que fosse portador de uma visão de
na transição, que demandava mais terras de forma predatória, mundo burguesa. Assume uma posição monarquista e de defesa
assim como predatória era a existência dos escravos. de D. Pedro, apesar da sua conduta absolutista; é indefinido
em relação ao fim do tráfico e expressa sempre uâta visão elitis­
" .. .uma vez que acabe o péssimo método de lavoura de ta e excludente de sociedade, equiparando — para o que chama
destruir matas e esterilizar terrenos.. e se forem intro­ a atenção Viotti da Costa — o assalariado que vivia de soldo,
duzidos os melhoramentos da cultura Européia, de certo a loucos e mendigos; “os criminosos, loucos, os que vivem de
com poucos braços . . . , as Fazendas serão estáveis, e o soldada e mendigos não podem ser eleitores.”
terreno quanto mais trabalhado, mais fértil ficará,” O Estado, para Bonifácio, se colocava como uma razão
imperante dos “sábios” e dos “honrados”.^® A posição contra­
Na verdade, José Bonifácio não se afastava muito da for­ ditória que Bonifácio incorpora é importante porque extravasa a
mulação original da sesmaria, presente nas Ordenações, e sua
relação com o Estado, onde este procurava condicionar a pro­
75. Ordem Régia do Príncipe Regente ao Governo de São Paulo, de
priedade à sua exploração efetiva. Nesse sentido, um ano antes 7.7.1821, citado por PETRONE, Maria Thereza Schorer. A Lavoura Cana­
da extinção do regime de sesmarias, uma Ordem Régia era expe­ vieira em São Paulo. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1968, p. 55.
dida ao governo da Província de São Paulo, procurando, como Esse tipo de providência era parte integrante do Alvará de 5.10.1795,
que teve curta duração e visava consolidar as normas sestnariais no
outras, proteger “os cultivadores de quaisquer terrenos, ainda Brasil. Vide, também, LIMA, Ruy Çirne, Pequena História Territorial do
que estejam na posse dela sem título, e fazer que t^is terrenos, Brasil. Op, cit., p. 43; ç a Provisâô' de 14.3.1822, que tinha teor idêntico
estando em atual cultura, não sejam compreendidos em medições e genérico ao da Ordem Régia em referência, onde aparece que “as
posses prevalecerão às sesmarias posteriormente concedidas". LIMA, Ruy
Cirne. Op. cit., p. 52.
74. ANDRADA E SILVA, J. B. de. Op. cit, pp. 134 e 132. 76. VIOTTI DA COSTA, Emília. Op. cit.
292 ROBERTO SMITH
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 293
si mesmo. Provoca uma série de interesses dominantes no âmbito
da escravidão, dos grandes proprietários de terras, da Igreja, do ao açúcar, quanto pela Guerra de Independência americana e a
comércio internacional, ao mesmo tempo que exclui o povo e Guerra com a França que afeta a produção algodoeira do sul
tenta afastar qualquer participação enquanto “anarquia” — dos Estados Unidos. Esse estímulo de preços internacionais e a
memória da Revolução Francesa — como malefício da demo­ disseminação do consumo vai também fazer surgir em cena o
cracia. Expressa o pensamento e a ação de um intelectual ges- café, que viria a assumir a liderança das exportações do país
tado no bojo do Estado, como que pairando sobre os conflitos, após 1831.'^'^
e que tenta impor o saber esclarecido à sociedade. Nesse sentido, A crise que se instala na Europa, após as Guerras Napo-
o combatente do absolutismo não consegue escapar às forças leônicas entre 1812 e 1815, expressa uma queda drástica nos
culturais e políticas, herdeiras da tradição portuguesa da qual preços do açúcar e do algodão, com amplos reflexos na economia
faz parte. A figura de Bonifácio faz emergir muito do que é o do Império. Noya Pinto afirma; “ a independência política brasi­
Estado, nessa fase de transição política e econômica. Uma razão leira se faz em plena fase de recessão econômica mundial e
que se autonomiza, estabelecendo um nexo conciliador entre a de retração da economia brasileira.” Contudo, a peculiariedade
tradição e a mudança, em relação aos interesses dominantes, e da produção escravista, como vimos, é sua rigidez em relação a
excludente em relação ao povo, isto é, aos não proprietários. uma resposta a preços, ou mesmo uma expansão na produção.
A recuperação da produção açucareira no Brasil verifica-se
Entende-se, portanto, que a extinção do regime de sesma­ na área tradicional do Nordeste, que, como se viu, após a crise
rias — que, segundo Cirne Lima, apenas sancionou um fato do século XVII, nunca deixou de produzir em elevada escala, e
consumado e que já não dava conta da evolução social — fazia pelo surgimento da nova área produtora em São Paulo-
parte de um projeto cujo encaminhamento mais imediato está O surto açucareiro em São Paulo teve início modesto no
contido nas idéias de José Bonifácio. A exposição e os conflitos, último quartel do século XVIII e atingiu o auge entre os anos
que estas idéias certamente provocariam, poderiam ter avançado de 1836-37 e 1846-47.’'® Após esse período, entra em declínio,
através da Constituinte, se esta não tivesse sido truncada. Era, sendo substituído pela cultura de café, que ultrapassa o volume
em primeiro lugar, uma resposta ao intervencionismo inglês, que de exportações de açúcar entre 1850-51. Em termos de valor,
pressionava pelo fim do tráfico e iria jogar com o reconheci­ contudo, a exportação de café de São Paulo já ultrapassara as
mento da Independência do país. Era também uma proposta de açúcar, entre os anos de 1831-35.
dirigida ao quadro de poder que o legislativo mantinha em expec­
Torna-se necessário estabelecer uma análise comparativa em
tativa, antes da dissolução da Assembléia em 12 de novembro
relação ao dinamismo econômico do século XIX, entre a área
de 1823. Mas era, sobretudo, um requisito vinculado à estrutu­
açucareira do Nordeste e a área enfeixada por Rio de Janeiro,
ração do quadro econômico que o Brasil atravessava.
Minas Gerais e São Paulo, do ponto de vista da estrutura fun­
O período, que vai do último quartel do século XVIII ao diária e das relações de trabalho. É o que tentaremos expor,
primeiro quartel do século XIX, mostra o recobrar do dinamis­ sinteticamente, a seguir.
mo da economia mercantil em alguns setores, com fortes impli­ O dinamismo econômico da província de São Paulo, com
cações regionalizadas. O estímulo de preços internacionais vai 0 açúcar, onde já se desenvolvia uma cultura de subsistência,
ser responsável pela expansão das exportações de açúcar e algo­ e os efeitos inter-relacionados a partir da economia mineira, e
dão do Brasil, e isto estava relacionado tanto com as instabilida­
77. PINTO, Virgílio Noya. Balanço das Transformações Econômicas no
des políticas e de reordenamento da estrutura do produção das Século XIX. In: Brasil em Perspectiva, MOTA, Carlos Guilherme org.
Antilhas, devido ao bloqueio imposto por Napolcão cm relação Rio de Janeiro, Difel, 1978, pp. 126-145.
78. PETRONE, M. Thereza Schorer. Op. cit.
A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 295
294 ROBERTO SMITH
culturas de subsistência e o alçar vôo do café, após a chegada
envolvendo o Rio de Janeiro, iriam ser responsáveis pelo cresci­
da Família Real, com a distribuição indiscriminada de terras.
mento em escala ampliada da escravidão africana em São Paulo
Se aceita esta hipótese, é possível pensar que, na época, a dis­
e Minas Gerais, a partir do século XIX. Petrone assinala que,
tribuição de terras para finalidades improdutivas fosse ao encon­
antes do “ciclo do açúcar, as condições econômicas de São Paulo
tro dos requisitos dé expàtísão da agricultura, como. situa José
não justificavam a introdução de escravos africanos em larga
Bonifácio.
escala” ,’’ fato esse referido por José Bonifácio em 1821.
A respeito do processo de ocupação de terras com a cana
A população escrava cresceu em São Paulo num ritmo duas
em São Paulo, Petrone afirma que a ocupação de terras quase
vezes mais intenso do que o da população livre entre 1813-36
sempre precede a concessão da sesmaria, ou que, com a longa
e o avanço sobre terras conquistadas pela cana-de-açúcar se des­
posse, é freqüente o cultivador de cana não pedir a sesmaria. No
locou do litoral norte da província em direção ao vale do Paraí­
fim do século XVIII, o governador explica que “a abundância
ba, concentrando-se em importância no quadrilátero apontado
de terras nesta capitania que é bastante despovoada faz que não
por Petrone; Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu e Jundiaí. A
haja quem queira aforar terras”, e Petrone complementa: “A
fixação do porto de Santos, monopolizando as exportações, é
observação. . . ainda será válida por muito tempo, inclusive
tida como uma das razões da involução da produção no litoral
quando São Paulo entrar no ciclo do café”. Mais para o fim do
— devido a dificuldades de escoamento — e do avanço sobre
ciclo do açúcar em São Paulo, as terras apropriadas através de
o interior.**“
posse e sesmaria passam a ser adquiridas por compra, pondo em
O surto canavieiro em São Paulo faz aparecer, no fim da
evidência a trajetória da acumulação canavieira numa segunda
década de 20, o problema da “falta de braços para a agricultura”
fase, onde o empreendimento começava a exigir empate de capi­
e as reclamações decorrentes do alistamento militar requerido no
tal em terras.®^
início do Império.®^
Compra e venda de terras era uma prática observada ao
O início do avanço para as terras do interior paulista se longo do período colonial, mas isso não implica caracterizar a
verifica, portanto, com o açúcar e, posteriormente, com a substi­ transação onde a terra aparece na sua forma mercantil absolu-
tuição e expansão do café. tizada. No surto canavieiro paulista também estará presente,
Petrone reconhece que no início do surto canavieiro em São como assinala Petrone, o processo de compra e venda de terras;
Paulo “ a obtenção de sesmarias mesmo em áreas mais povoadas contudo, essa é uma fase onde a concessão de sesmaria viria a
era ainda bastante fácil”. ser suspensa e o que se expande é a prática do grande apossa-
Não é bastante clara a evidência historiográfica a respeito mento de terras, com o correlato surgimento de muitos conflitos
da exacerbação das concessões de terras de forma indiscriminada de terras.
pela Corte, após a chegada da Família Real. A agricultura mer­ A existência de terras abertas, ensejando sua ocupação e
cantil em fase de expansão, nessa época, requeria mais terras. posterior venda, implica possível processo, ainda em estágio ini­
Até que ponto as concessões seriam explicadas apenas pela prá­ cial, de valorização das terras favoráveis ao cultivo de cana em
tica do “prebendalismo” (segundo o termo de Uricoechea)? São Paulo. Esse processo iria atingir sua mais acabada forma
Possivelmente esses são aspectos que se superpõem: a ne­ após a vedação do tráfico, com o avanço sobre as terras de café
cessidade de terras para a expansão da cana, do algodão, de do Oeste Paulista, como anãlisa Martins.®®
79. Idem. Op. cit, p. 110.
82. Idem. Op. cit., pp. 54-59.
80. Idem. Op. cit., p. 24
81. Idem. Op. cit., p. 22. 85. MARTINS, fosé de Souza. O Cativeiro da Terra. Op. cit.
296 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÂO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 297

Em contraposição, no Nordeste açucareiro da Zona da Mata A distribuição de terras através de sesmarias, na área cana­
e no Recôncavo Baiano, provavelmente as terras já se encontras­ vieira do Nordeste como um todo, mostrava, em meados do
sem em grande parte apropriadas por ocasião da recuperação da século XVII, a existência de algumas sesmarias contendo grandes
economia açucareira no século XIX, onde intrincadas relações áreas, porém boa parte delas era de tamanho menor. Stuart
econômicas e de lealdade de moradores e lavradores para com Schwartz assinala que na Bahia essas sesmarias mediam usual­
os senhores de engenho asseguravam, para estes últimos, a legiti­ mente uma ou duas léguas quadradas. Célia Freire A. Fonseca,
midade da posse. numa pesquisa de 1.141 sesmarias na Paraíba, mostra que
Tollenare, em 1817, segundo Petrone, indicava uma pro­ 87,5% delas eram menores de 4 léguas quadradas.*^
porção de 1 para 24, como sendo a razão entre terras cultivadas No Nordeste, as características da produção canavieira co­
e não cultivadas de um engenho, proporção que caía em 1 para lonial se revestiram de aspectos específicos no tocante à proprie­
12 se incluídas as áreas de pastagens. A expansão açucareira dade da terra, à submissão do trabalho e à vinculação mercantil
provavelmente ocorreu no Nordeste, no interior da propriedade. do produto.
A apropriação de terras no Nordeste açucareiro deu-se sob a O aspecto que explica parte dessa relação entre terra e
vigência do regime sesmarial, num período anterior à fase de trabalho é a possibilidade da dissociação entre a produção de
crescimento agrícola no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São cana e a sua transformação artesanal, manufatureira e depois
Paulo. Nessa região, o dinamismo imposto primeiro pelo açúcar industrial em açúcar.
e depois pelo café se depara com terras abertas, sem refrea- O produto, 0 açúcar, era a moeda corrente para a aquisi­
mento de ordem jurídica ao apossamento de terras, numa área ção de escravos. Ter o controle do processo total de produção,
onde, sobretudo, um mercado interno vinha sendo gestado den­ até o açúcar, significava a possibilidade de adentrar o circuito
tro da ordem escravista, desde o último quartel do século XVIII. de crédito e acumulação escravista.
O processo de apropriação de terras no Nordeste se verificou A produção açucareira, à medida que ocorre certo adensa­
sob 0 rígido controle mercantilista colonial. O processo de apro­ mento populacional, vai expondo a formação de uma estrutura
priação de terras em São Paulo se deu em plena crise e ruptura social complexa, num quadro de relações intermediárias entre
da ordem colonial. As formas de controle e submissão da força 0 senhor de engenho e o escravo. A presença do homem livre
de trabalho apresentam condicionantes específicos internos e nesta escala social intermediária, da produção mercantil e escra­
externos, como conseqüência da defasagem temporal desses pro­ vista, é assinalada dentro e fora do engenho, mas não fora da
cessos distintos. plantação.
Torna-se necessário, pois, retomar Um pouco do processo Dentro do engenho, há a contratação de homens livres para
de apropriação de terras no Nordeste açucareiro, onde o regi­ trabalhos especializados e constantes, mediante pagamento de
me de sesmarias e sua forma bastante indefinida de estabeleci­ soldos, e ainda trabalhos contratados para certas tarefas espe­
mento, apossamesío e delimitação de áreas, culminaram no caóti­ cíficas e temporárias. Schwartz, pesquisando o Engenho Sergipe
co estado da propriedade, reconhecido pela Coroa portuguesa do Goiide, no Recôncavo Baiano, afirma que não se passava ne-
no fim do século XVIII.®'‘

85. SCHWARTZ, Stuart B. Free Labor in a Slave Economy: The Lavra­


84. A respeito das formas de delimitação de propriediide.s, c siiii.s distin­ dores de Cana o/ Colonial Bahia. Op. cit., p. 150; FONSECA, Célia Freire
ções, vide SMITH, T. Lynn. Brasil, Povo e Instituições. Uio de )imciro, A. Colonização e Doações de Terras no Brasil Colonial, 1966, mimeo.,
Editora Bloch-Usaid, 1967, pp. 289-315. cit, por SCHWARTZ, S. B.
298 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 299

nhuma safra sem a remuneração de trabalhadores livres, aungin- gundo lugar, impedir que o lavrador se tornasse ele mesmo um
do esse tipo de despesa em tomo de 19% dos gastos.*® produtor de açúcar, mesmo através da técnica rudimentar que
Externamente ao engenho, há a figura do “lavrador de era o trapiche.
cana”, posição muitas vezes almejada pelos trabalhadores livres As formas de arrendamento da terra — o partido de cana
do engenho. Schwartz explica que “o lavrador era um tipo de — variavam muito no espaço e no tempo da cultura canavieira,
trabalhador livre entre outros e que os trabalhadores livres no mas observavam, em linhas gerais, o hábito da meação da pro­
Brasil colonial não eram apenas um terceiro segmento da popu­ dução de cana e, adicionalmente, o quarto ou o terço (depen­
lação, situado entre senhores e escravos. Os trabalhadores livres dendo da fertilidade e acessibilidade do solo) do açúcar produ­
constituíam uma série de quatro a seis grupos sociais, parcial­ zido, relativo à metade da cana do lavrador. Isso implicava algo
mente diferenciados em termos de classe, raça e inserção po- em torno de dois terços da produção de cana apropriada pelo
lítica.*”' engenho.
A caracterização desses grupos inclui os lavradores de cana, A tradição de transferência de terras se formou com o de­
que podem ser subdivididos em categorias, de acordo com a na­ senvolvimento da prática da enfiteuse, através da qual se esta­
tureza da relação com a terra em que eles trabalham. beleciam as restrições e condições de uso do solc-s o pagamento
A relação dos lavradores de cana com a propriedade da de foro anual.
terra irá estabelecer distintas formas de relações sociais na estru­ Schwartz descreve um contrato de venda realizado entre um
tura da produção canavieira, como decorrência da propriedade lavrador e o Engenho Sergipe do Conde em 1670, onde este
ou posse dá terra condicionada. Assim, dois tipos de produção último, na condição de vendedor, expressava a renúncia a todos
aparecem: a “cana livre” e a “cana cativa”. Na escala referida os direitos, ações, pretensões, controle e usufruto, bem como a
por Schwartz, o proprietário de terras, totalmente livre de obri­ todo o poder presente e futuro sobre a terra descrita. É passado
gações, aparece como o grupo mais privilegiado de lavrador. Já e transferido ao comprador e herdeiros a posse, disposição e uso,
os lavradores de “cana cativa” podem ser subdivididos em lavra­ como sendo sua própria propriedade. Em seguida, aparece uma
dores de partido, posseiros ou proprietários com obrigações.** cláusula- prescrevendo as condições e obrigações, de que toda a
A forma de propriedade condicionada visava, primeiramen­ cana plantada na referida terra é obrigada a ser perpetuamente
te, controlar o fornecimento de cana para o engenho; em se- fabricada no Sergipe do Conde, como era o caso de outras trans­
ferências de terras.*’
Já no caso de arrendamento de terras e serviços obrigados
86. SCHWARTZ, Stuart B. Op. cit., p. 152. de produção de açúcar, onde o proprietário do engenho se apro­
87. Idem. Op. cit., p. 153. priava de 62 a 66% da produção de cana, Schwartz assinala que
88. A estrutura social daí decorrente traz à tona a questão assinalada por
alguns autores, entre eles Ciro Flamarion Cardoso, a respeito da deno­
na época de auge da cana, no início do século XVII, os proprie­
minada brecha camponesa no regime escravista. Contudo, á análise de tários de engenho não encontravam dificuldade em arrendar suas
Cardoso (In; Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis, Ed, Vozes, terras pelo terço, ou pela quarta, muitas vezes com contratos
1982, pp. 133-154) prende-se a atividades de subsistência realizadas pelos que asseguravam, inclusive, a reversibilidade das benfeitorias
escravos no interior da plantation. De qualquer forma, acejtamos a con­
ao proprietário de engenho, quando do término do contrato.
clusão de Cardoso de que “a ‘brecha camponesa’ nuança, más“ não põe
em dúvida o sistema escravista dominante. "
Assim sendo, a existência de trabalho livre, no interior da economia 89. SCHWARTZ, Stuart B. Op. cit., p. 159. Refere-se à escritura de venda
escravista, a nosso ver não descaracieriza o teor da acumulação enquanto que fazem os Colégios de Santo Antão de Lisboa e o de Salvador, a
acumulação escravista e mercantil. Diogo de Leão.
300 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÂO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 301

A impossibilidade prática de acesso ao açúcar pelos lavra­ e cristalizada nos padrões de apropriação da renda do escravo
dores de cana de partido, ou condicionada, implicava restrições através da propriedade ou posse condicionada da terra.
à acumulação escravista e exercício de concorrência para com A distinção, portanto, é que quando se atinge o início do
os proprietários de engenho. A pesquisa de Sch,wartz mostra que século XIX, as terras do Nordeste açucareiro estavam pratica­
os lavradores 4^ cana do Engenho Sergipe do Conde na Bahi''., mente fechadas, ainda que o quadro aparente fosse o de existir
na safra de 1626, cultivavam áreas das quais eram detentores, um elevado contingente de terras ociosas. Acreditamos que esse
da ordem de 3,07 ha, em média, para cada lavrador, o que aspecto terá importância relevante no processo de drenagem de
ajustava grande parte deles a níveis mínimos de subsistência escravos para o sul, provocado pela expansão cafeeira e restri­
(verificam-sè muitos lavradores com áreas inferiores a um hec­ ção ao tráfico, bem como reflexos na questão imigratória em
tare). Convém observar, contudo, que não é possível generalizar relação ao Nordeste. A esse assunto retornaremos mais adiante.
a condição dos lavradores de, cana dentro da característica de No início do século XIX, é pictórica a narrativa do histo­
trabalhadores livres, porque muitos deles, dentro da proprie­ riador inglês James Henderson, numa viagem pela Bahia, quan­
dade condicionada, e mesmo em meação, possuíam escravos. do dirige sua atenção para a existência de terras inaproveitadas:
De\qualquer forma, o que é importante assinalar, é que
a verificação da compra e venda de terras, tal como expõe “ As terras desaproveitadas, que eu havia observado
Schwartz, não caracteriza a existência de um mercado de terras. nesta e em outras excursões, explicavam-se pela seguinte
As transações de terras eram antes formas de controle sobre a circunstância narrada por um amigo: Tentara ele com­
produção mercantil, isto é, controle e submissão através da prar cerca de 20 acres (cerca de 8 ha) nas proximidades
produção, e não da força de trabalho. da Bahia, a quatro milhas da cidade por água e oito por
terra. Seu cultivo não se estendera além do emprego de
“Quando o Engenho Sergipe vendeu terras aos la­ um escravo solitário; viam-se ali algumas roças de man­
vradores de cana para o cultivo de cana-de-açúcar, man­ dioca e duas fileiras de árvores frutíferas; numa eminên­
teve uma aparência de domínio legal (senhorio) sobre cia erguia-se uma casa de pau-a-pique, ligada à baía por
tais lotes, através do requisito de um tributo anual de um estreito caminho. A soma exigida pela propriedade
duas galinhas.”®® definitiva era de 900$000, ou seja, mais de 20 libras,
mais o pagamento de 5 libras por ano a uma senhora
A prática da propriedade condicionada no século XVII não cuja concordância à transferência era necessária e foi
se restringe à área canavieira do Nordeste. Ela esteve presente imediatamente obtida. Meu amigo deliberou efetivar a
em outras áreas da colônia. O estudo de Abreu mostra, por exem­ compra e chamou a dona para esclarecer a circunstância
plo, a característica das doações em São Paulo.®^ A distinção de pagamento dessas 5 libras. Ela não fez objeção, mas
principal é que na região açucareira a propriedade condicionada achava a soma demasiada e disse-lhe que enviaria uma
fazia parte integrante da estrutura da produção mercantil e escra­ pessoa para avaliar as benfeitorias, isto é, o produto exis-
vista. O que é distinto nos processos de apropriação da terra . tentç no terreno, caso a outra parte desejasse vendê-lo.
é a tecitura de dominação social, tramada na região açucareira Meu amigo descobriu, portanto, que não estava adqui­
rindo uma propriedade livre, mas que essa senhora tinha
90. SCBTWARTZ, Stuart B. Op. cit., p. 164. o pleno controle no caso de o ocupante desejar passá-la
91. ABREU, Daisy B. de Lacerda. A Terra c a Lei. S, Pimlo, Roswita adiante. Estava disposto a comprar esse direito mediante
Kempf/Editores. 1983. 5 libras, mas com isso ela não concordava, e ainda exigiu
302 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 303

que a cada dois escravos que empregasse, deveria pagar terra no Brasil, após o malogro da tentativa em 1795 e das inten­
mais 5 libras. O ocupante atual devia apenas trabalhar ções de José Bonifácio.
com dois escravos. Parece que essa exigência visava a A partir do Estadoj cristaliza-se um projeto burguês para
isentá-la, em caso de transmissão da propriedade, do pa­ a nação, que estava ainda preso a um contexto escravista e
gamento de benfeitorias. Esse senhor teria investido soma “colonial”. Emanava, portanto, das elites proprietárias alojadas
considerável e teria cultivado a terra com grande cuidado no Estado, fortemente influenciadas pelo pensamento inglês.
se tivesse podido retê-la em perpetuidade em sua posse, Um projeto relativamente distanciado dos proprietários de ter­
e na de seus sucessores; mas, se as circunstâncias lhe ras e escravos que, é bom frisar, não formavam um todo homo­
exigiam transferi-la a essa senhora, segundo as leis bra­ gêneo.
sileiras, teria esta a preferência; e duas pessoas designa­
das com este fim teriam sido enviadas para avaliar o
produto sobre o solo sem levar em conta as melhorias A Lei de Terras e a Transição
introduzidas; em conseqüência, ela se manteria na posse
da propriedade por uma mera bagatela. Diante disto, meu Desde a transferência da Corte portuguesa, algumas tenta­
amigo desistiu imediatamente de continuar a negocia­ tivas vinham sendo feitas no sentido de estabelecer uma estru­
ção.”®^ tura de colonização no Brasil, baseada na imigração européia.
As iniciativas foram de natureza modesta e os resultados
Supomos que os estágios distintos de apropriação e controle pouco expressivos. Núcleos coloniais de povoamento haviam sido
da propriedade estejam na raiz do contexto do processo de dife­ estimulados, tendo os primeiros sido implementados no Espírito
renciação Regional, na história. Não há por que supor que as Santo, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e São
idéias de ]osé Bonifácio, e depois as de Wakefield, tivessem Pedro do Rio Grande do Sul.
sido permeadas no espaço das relações sociais do norte açuca- Eram, pois, ensaiados os passos iniciais de uma política
reiro. Em compensação, elas acabariam tendo aderência em imigratória, que se chocava, contudo, com resistências existen­
áreas de terras abertas como, por exemplo, o Pará, bem como tes nos países europeus, envolvidos com problemas de super­
na região onde o café se impunha como cultura dominante, população, desagregação do campesinato e crise econômica.
avançando sobre as terras existentes; isto porque, em princípio, Essas resistências tinham por base, principalmente, a vigência
não punham em xeque a possibilidade de desestruturação de da escravidão no país e a dificuldade da convivência do trabalho
uma forma já cristalizada de relações de produção, e de forças livre com o trabalho escravo. Havia também a ampla preferência
produtivas como a do Nordeste açucareiro. do movimento migratório europeu de colonização, que os Esta­
Esse tipo de diferentes inserções regionais, no tocante às dos Unidos passaram a deter na primeira metade do século XIX.
representações parlamentares, por ocasião dos debates do projeto A protelação da extinção do tráfico, apesar de sua interdi­
da Lei de Terras, estarão presentes no ano de 1843. ção formal em 1831, põe à mostra o difícil processo de substi­
Como veremos, tratava-se de mais uma tentativa de equacio­ tuição do trabalho escravo pelo trabalho livre, numa situação
nar a questão da legitimação estatal da propriedade privada da que se ia agudecendo.
Após a cessação da concessão de sesmarias — e o vazio
legado nesse sentido pela Constituição outorgada em 1824 — ,
92, HENDERSON, James. A History of Brazil; Comprising its Geo­
graphy, Commerce, Colonization, Aborigenal inhabitants. London, a resolução da questão fundiária, que impunha a iniciativa do
1821. Citado por SMITH, T. Lynn. Op. cit., pp. 322-323. Estado na tarefa de legitimar a propriedade privada e a discri-
304 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 305

minação das terras públicas ou estatais, permanece na mesma em contraposição à questão da federalização, e a perda do poder
situação que a questão do tráfico. Era algo a ser resolvido, mas policial das assembléias municipais, pela aprovação da lei de
continuamente postergado, por tratar-se de áreas que poderiam 3 de dezembro de 1841.
desestabilizar o poder estatal, uma vez que intervinham em inte­ A perda de poder político da Câmara é ratificada, quando
resses centrais da recente vida econômica e política do país. 0 Imperador a dissolve em 1842, em meio a revoltas que levam
Cabe lembrar que as duas primeiras décadas, após a Indepen­ à supressão de garantias constitucionais, prisão e banimento de
dência, caracterizam-se como um período de intensas crises polí­ lideranças liberais.
ticas e de consolidação nacional. A 5.“ Legislatura (1843-44) evidencia a retomada de um
O interregno que vai de 1822 a 1850 põe em evidência um legislativo domesticado, extirpado das lideranças liberais, num
processo de amplo apossamento de terras, que caracterizará, no resultado cômodo para os conservadores que passam a deter a
país, a formação do latifúndio, na sua forma mais acabada. O maioria e o respaldo do Imperador.
latifúndio avançará sobre as pequenas posses, expulsando o pe­ Os termos dos tratados comerciais com a Inglaterra de
queno posseiro em algumas áreas, num deslocamento constante 1810, prorrogados em 1825, estavam vencidos e o novo tratado
sobre as fronteiras de terras abertas. mostrava os interesses mercantis ingleses fortemente incrustados
Em alguns momentos desse período, a questão da proprie­ no país. O volume de escravos adentrados excedera todos os
dade e das terras públicas surgiu à tona do panorama político perfis de fluxos anteriores e o café se ia firmando como o pro­
e institucional, sem apresentar maiores repercussões. duto mais relevante da pauta de exportações.
Em 1827, D. Pedro I reafirma a proibição das sesmarias O Conselho de Estado encontrava-se envolvido com as nego­
que, mesmo com a sua interdição’^ vinham sendo concedidas ciações com a Inglaterra; em discussão: o Tratado de Comércio,
nas províncias. A instituição do foro e a do morgadio são extin­ a cláusula da extinção do tráfico, medidas protecionistas, a
tas na década de 30. substituição do trabalho escravo pela colonização estrangeira.
Em 1838, durante a Regência, a Câmara dos Deputados As medidas iniciais, tendo por objetivo regulamentar a
indica uma comissão para cuidar do levantamento das terras questão da propriedade fundiária no país, serão tomadas pouco
devolutas. A lei n. 60, de 20 de outubro de 1838, é uma conse- antes da dissolução da Câmara de maioria liberal, em 27 de
qüência da iniciativa daquela comissão, que permanece enre­ julho de 1842.
dada com a questão das terras devolutas. Em 1841, o projeto A iniciativa explicitada através dos Avisos de 6 de junho e
de lei n. 42 tratava da divisão de propriedades e delimitação de 8 de julho de 1842 formalizava a solicitação do Imperador ao
fronteiras provinciais. Conselho de Estado para a formulação de matéria legislativa a
Após 0 período das Regências, há o restabelecimento da respeito de sesmarias e colonização.’'^
monarquia em 1840. Juntamente com o início do Segundo Impé­ Em atendimento à solicitação, um anteprojeto elaborado
rio, era restaurado o Poder Moderador do Imperador e recon­ por Bernardo de Vasconcellos e José Cesário de Miranda Ribeiro
duzido 0 Conselho de Estado, no fim de 1841. é apresentado à Sessão do Império do Conselho de Estado, sendo
Os liberais ganham a maioria nas eleições para a 5." Legis­
latura da Câmara, no momento em que o grande tema político
94. O tema é abordado in: Consultas do Conselho de Estado sôbre os
era a questão da centralização do poder, bandeira conservadora Assumptos da Competência do Ministério do Império, coligidas e publi­
cadas, por ordem do Governo, por Joaquim José da Costa Medeiros e
Albuquerque, Rio de Janeiro, 1888, pp. 71 e seguintes; cit. por LIMA,
93. Resolução de 5 de fevereiro de 1827. Ruy Cirne. Op. cit., 1954, p. 59.
306 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 307

após encaminhado para discussão no plenário do Conselho de “Somente a colonização de acordo com ,o sistema
Estado, em sessões até o final daquele ano. No Conselho de de Wakefield, que pode e deve substituir, com o tempo,
Estado os debates a respeito do anteprojeto não são conclu­ 0 trabalho escravo pelo trabalho livre, sempre segundo a
sivos.®^ grande escaíá que exige a produção de alguns de nossos
A inspiração que serviu de eixo à elaboração do anteprojeto principais produtos.”®*
esteve amplamente baseada na contribuição de Wakefield. Â
proposta de Vasconcellos e Miranda Ribeiro expõe o seguinte, Bernardo de Souza Franco, liberal e representante da Pro­
na Consulta de 8 de agosto de 1842: víncia do Pará, será na 5.“ legislatura um dos maais destacados
deputados na defesa do Projeto n. 94.
“Um dos benefícios da providência que a Seção tem Na década de 40, as idéias de Wakefield surgem da discus­
a honra de propor a Vossa Majestade Imperial é tomar são em torno da necessidade de atrair colonização européia de
mais custosa a aquisição de terras. . . Como a profusão forma mais efetiva, onde não só aparecia a questão da mão-de-
em datas de terras tem, mais que outras cousas, contri­ obra, mas também a ideologia racial do “embranquecimento da
buído para a dificuldade que hoje se sente de obter tra­ população”.
balhadores livres é seu parecer que d’ora em diante sejam A necessidade da força de trabalho proveniente da coloni­
as terras vendidas sem exceção alguma. Aumentando-se, zação branca, contudo, não pode ser generalizada como orienta­
assim, o valor das terras e dificultando-se, conseqüente- ção que se destinava a atender aos interesses dos grandes deten­
mente, a sua aquisição, é de esperar que o imigrado po­ tores de terras e de escravos, nas áreas de produção mercantil
bre alugue 0 seu trabalho efetivamente por algum tempo, voltadas para a exportação.
antes de obter meios de se fazer proprietário.”®® Ê perceptível que o debate em torno da imigração européia
não estava espraiado de forma uniforme no território. Era assun­
Em 10 de junho de 1843, Rodrigues Torres, deputado con­ to que despertava interesse no Pará, no Rio de Janeiro e São
servador pelo Rio de Janeiro e também Ministro da Marinha, Paulo, mas não de forma tão incisiva no Nordeste açucareiro.
apresenta o projeto n. 94 à Câmara dos Deputados,®'^ resultado O sistema de Wakefield, como Souza Franco já expunha
do anteprojeto elaborado pelo Conselho de Estado, intitulado em 1841, destinava-se à grande exploração mercantil. Implicava
Divisão de Terras e Colonização, que seria aprovado com modi­ assalariamento e não criava aos imigrantes barreiras definitivas
ficações em outubro de 1843 e encaminhado ao Senado, onde só de acesso à propriedade. Era um modelo geral, que acenava com
se tornaria lei em 1850, com sensíveis alterações, sob a deno­ possibilidade de oferta de mão-de-obra para os agricultores e,
minação de Lei de Terras. ao mesmo, tempo, continha certa dose de atratividade aos imi­
Existem indícios de que as idéias de Wakefield já circula­ grantes europeus. Seu elemento básico era, pois, a existência de
vam no país, anteriormente à sua elaboração como matéria legis­ terras livres, isto é, terras que pertenciam ao Estado, terras de­
lativa pelo Conselho de Estado. volutas, como passam a denominar-se. O Estado necessitava.
Em 1841 Bernardo de Souza Franco, senador e presidente
da Província do Pará, defendia:
98. Discurso de Bernardo de Souza Franco, na abertura da Assembléia
Legislativa Provincial do Pará, em 14.4.1841. Cit. por ACEVEDO MARIN,
95. Idem. Rosa Elizabeth. Du Travail Esclave au Travail Libre: Le Pará sous le
96. Idem. Régime Colonial et sous l’Empire (XVlle-XIXe siècles), Paris, 1985. Tese
97. A.P.B., t. 1, pp. 592-594. (Doutorado), pp. 357-358. (Mimeografado)
308 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 309

para isto, conhecer quais eram suas terras, envolvidas na caótica de não fixar imigrantes nas tentativas de colonização no Nor­
situação da propriedade, fruto da herança colonial portuguesa. deste açucareiro, contudo, a nosso ver, foi o da percepção da
Por um lado, o modelo da colonização sistemática era gené­ inacessibilidade à propriedade da terra.
rico e oferecia uma perspectiva muito remota no tocante à per­ Terras fechadas dificilmente atrairiam imigrantes europeus,
cepção do proprietário escravista e de terras, segundo a sua em meados do século XIX. A isso se deve aliar toda a formação
visão particularizada e localizada. Por outro lado, qualquer dis- senhorial e escravista que circunscrevia o universo cultural do
ciplinamento da história passada de apropriação da terra contava protótipo do “novo empregador”. O primeiro aspecto é regional,
com rigidez muito grande, devido à incerteza que provocava, o segundo é nacioiial.
perante embasamento de arbítrio, direitos incertos, usurpações Nesse sentido, o traço marcante da experiência das colônias
e força, com qi^e remontava à propriedade da terra. de parceria era ainda o da submissão do trabalhador e não de
Era muito delicada a situação, em que se procurava fazer sua força de trabalho.
entender aos proprietários de escravos e de terras, a partir de As questões que o surgimento do Projeto 94 provoca são,
suas realidades concretas, a necessidade de submeter a força a nosso ver, fundamentais, porque mostram a relação entre o
de trabalho e não o trabalhador. E isso se inspirava no ideário Estado e a Sociedade em meados do século XIX e realçam o
inglês, que elites situadas no governo passavam a encaminhar conteúdo que joga o Estado nas transformações econômicas e
sob a forma de projeto de lei. políticas na transição, no Brasil.
O encaminhamento resolutivo da questão do trabalho no Antes de nos determos nesses aspectos, todavia, toma-se
Nordeste açucareiro e a estrutura de propriedade condicionada necessário explicitar o encaminhamento do Projeto n. 94 até sua
e de fronteira fechada apresentavam, já na sua forma de submis­ transformação em lei, sete anos após, conjuntamente com a
são, tanto da força de trabalho em si, quanto desta através do extinção, de direito e de fato, do tráfico de escravos africanos
produto, situação mais definida. Isso contribuía para ir tornando para o Brasil.*®®
as relações escravistas menos fundamentais para a continuidade Tanto a elaboração do Projeto, quanto os debates parla­
da produção canavieira, naquele espaço em crise, apesar das mentares, põem à mostra a forma de pensar, os valores e os inte­
conjunturas de melhoria do setor que ocorrem no século XIX. resses de ordem geral, isto é, nacional, e os de ordem regional,
A drenagem de escravos para o sul cafeeiro revelaria uma com as tensões decorrentes. Mostram, sobretudo, um legislativo
face desse processo. totalmente dominado pelo poder imperial.
A outra face, que se evidenciaria na segunda metade do Quando nos deparamos com afirmações a respeito do Pro­
século XIX, é a da pouca pregnância do imigrantismo europeu jeto n. 94, que se tornaria a Lei n. 601, do seguinte teor;
na região.
Eisenberg procura explicar o malogro do estabelecimento “Foi então que se partejou a Lei n. 601, de 1850,
de imigrantes europeus no Nordeste açucareiro, valendo-se do a famosa Lei de Terras, talhada sob medida pelo figurino
argumento da falta de aclimatação dos mesmos na região.^’ dos novos senhores do Império e mais tarde senhores
Esse era, na verdade, argumento bastante difundido, obstaculi-
zando a atratividade da imigração européia para o Brasil. O
elemento mais relevante que provavelmente atuou no sentido 100. Para o acompanhamento dos debates parlamentares da 5.“ e 8.* Legis­
laturas, a respeito dos projetos da Lei de Terras, valemo-nos do trabalho
de resenha realizado pela historiadora COSTA E SILVA, Genny da.
Terra e Trabalho; política de regulamentação 1843-1850, Rio de Janeiro,
99. EISENBERG, P, Modernização sem Mudança. Op. dl. 1979,
310 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA , 311

da República — os latifundiários cafezistas de São pássaro fora do ninho, no conjunto parlamentar da 5,“ legis­
Paulo.” latura.
ou ainda. . . Poder-se-ia pensâr que o Estado, a partir do ideário que
emanava do Conselho de Estado, era portador de um projeto
capitalista para o Brasil, um tanto despregado de sua realidade
“Foi então submetido (1843-1850) à Câmara e ao
social? Talvez. Era também, contudo, um projeto importado e
Senado um Projeto que atendia aos objetivos da classe
de caráter mais amplo, destinado a fazer com que capitais ingle­
dominante, sobretudo do Centro-Sul cafeeiro.
ses deparassem com trabalhadores assalariados, em terras colo­
niais, abertas. Sob este aspecto, o projeto de colonização siste­
Pensamos que é necessário cuidar para não apresentar de
mática apresentava uma perspectiva clara de divisão interna­
forma recorrente uma visão do Estado como “o Estado da classe cional do trabalho, destinada a fornecer matérias-primas e ali­
dominante” e caminhar sob esse raciocínio para o entendimento mentos para a Inglaterra na sua trajetória industrializante.
de que o Projeto n. 94 e a Lei de Terras correspondiam à expres­
são dos interesses “cafezistas”, no dizer de Passos Guimarães. Todos esses aspectos dificultavam que o projeto fosse de
Tal procedimento, linear a nosso ver, esvazia o conteúdo das interesse geral do Império, pelo menos em terras não coloniais,
tensões que se expunham entre Estado e classes dominantes, como em parte do Nordeste. Além disso, sua concepção, enquán-
nestas entre si e ainda entre o Estado e as pressões inglesas. to colonização sistemática, não contemplava a substituição do
Não há por que pensar, por exemplo, que os interesses dos trabalho senão pelo trabalho livre, em plena ascensão da agri­
agricultores “cafezistas” se afastassem dos interesses escravistas; cultura cafeeira de exportação, que fazia expandir o trabalho
embora fossem tentadas as iniciativas das colônias de parceria, escravo.
estas mais pareciam ser uma forma adaptativa das relações escra­ As chamadas classes dominantes, de raízes agrárias, não
vistas, que caminhavam para um remoto fim. criavam qualquer tipo de pressão em direção à legitimação esta­
Numa sociedade escravista e politicamente “sem povo”, tal das terras e a forma de encaminhar essa conflituosa legiti­
onde 0 “proletarismo” — pelo discurso dos sujeitos sociais mação.
através de seus representantes parlamentares — expunha a cono­ Vejamos alguns dos aspectos fundamentais do Projeto n. 94;
tação negativa e ameaçadora com que se revestia o trabalho,
ainda era difícil estabelecer clara distinção entre trabalho livre a) em relação às terras do Estado:
e trabalho escravo ou servil.
Nesse sentido, a concepção de Wakefield pensada de forma — passava a proibir a aquisição de terras devolutas, a
centtada no espaço colonial, dentro de uma concepção arraiga­ não ser pela compra;
damente burguesa e mesmo imperialista, porque já voltada para — penalizava e despejava aqueles que passassem a se
a necessidade de exportação de capitais ingleses, parecia um apossar de terras devolutas e derrubar suas matas;
— discriminaVavehqúahto terras devolutas, aquelas que
101. GUIMARAES, Alberto Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. 5.“ ed.
nunca haviam tido dono, que estivessem vagas, e as que
São Paulo, Paz e Terra, 1981, p. 134; COSTA E SILVA, Genny da. não tivessem pago o imposto territorial, que o projeto
Terra e Trabalho; política de regulamentação, 1843-1850, Rio de Janeiro. instiuía;
1979, p. 16.
— estabelecia reservas específicas.
312 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIARIA m

b) em relação à legitimação da propriedade irregular: d) em relação à colonização:

— revalidava as sesmariãs caídaé em comisso, por falta — que as terras devolutas fossem vendidas por um justo
de medição ou cultivo; preço, segundo os interesses da colonização;
— passava a reconhecer a legitimidade das posses sem — que a receita, proveniente da venda de terras e da
título de sesmaria, com mais de um ano e um dia; cobrança dos tributos, direito de chancelaria e imposto
— obrigava, tanto, as sesmarias caídas em comisso, quan­ territorial, fosse empregada na importação de colonos
to as posses, a serem medidas e tituladas em cada muni­ livres.
cipalidade dentro de prazo fixado;
Dos debates parlamentares da 5.* legislatura, destacam-se
— delimitava as posses a serem legitimadas a uma área na defesa do Projeto Bernardo Souza Franco e Joaquim José
que correspondesse ao terreno efetivamente cultivado, Rodrigues Torres.
acrescida de mais quatro vezes, desde que houvesse terra
Souza Franco intervém seguidas vezes, procurando didati­
inculta e suficiente, e não excedesse meia légua quadrada
camente expor o conteúdo da teoria de Wakefield, que alguns
(cerca de 1.089 ha);
parlamentares alegavam não conhecer e ter dificuldades para
— não fazia restrições ao número de posses por indi­ compreender. A fonte de referência explícita de Souza Franco é
víduo; a obra A Letter from Sydney (1829); e como faz também men­
— dispunha sobre colisões entre áreas a serem regulari­ ção à leitura de periódicos ingleses, acreditamos que a referência
zadas, de posses e sesmarias, e a sua redistribuição. seja ao jornal Colonial Gazette, editado com freqüência irregu­
lar pela Colonization Society, a partir de 1830. O fato é que o
c) em relação à receita patrimonial e tributária do Império: deputado paraense mostrava-se bem informado de pormenores a
respeito da colonização no Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
— instituía uma taxa, direito de chancelaria, cobrada Souza Franco não mostra, entretanto, percepção mais apro­
pela concessão do título que legitimava a propriedade fundada do caráter burguês contido no projeto de Wakefield.
que fora irregular, a posseiros e sesmeiros, calculada a Sua visão é a de que o encarecimento das terras faria baixar o
um valor fixo estipulado por braça quadrada (4,84 me­ preço da mão-de-obra, num raciocínio do tipo utilizado por
tros quadrados), específico para terras de cultivo e terras Adam Smith. Isso beneficiaria os agricultores, que, segundo ele,
de pastagem; poderiam ‘‘adquirir braços livres por diminutos preços”.
— criava um imposto territorial uniforme em todo o Por um lado, o ‘‘adquirir braços livres” mostra um discurso
país, proporcional à área da propriedade. Propunha uma onde não se apresenta ainda clara delimitação da mudança qua­
alíquota de 500 réis para o equivalente a cada 68 ha litativa que 0 assalariamento requeria. Pensa-se mais em termos
e múltiplos; áreas de medida inferior eram isentadas. de ‘‘estoque de colonos” do que mercado de trabalho. Por outro
Penalizava progressivamente no tempo os omissos e não lado, na concepção de Wakefield, preço da terra e salários
pagantes, até a perda total do imóvel; teriam correlação positiva, o que garantiria a possibilidade do
— autorizava o governo a vender lotes de terras devolu­ imigrante, num certo prazo de tempo vir a adquirir um lote.
tas, com área nunca inferior a um quarto de légua qua­
drada (272 ha), à vista e por justo preço. 102. A.P.B. Sessões de 21, 24 e 26 de julho de 1843.
514 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 3Í5

Rodrigues Torres procura ressaltar que o objetivo primeiro Rodrigues Torres procura mostrar que tanto a revalidação
do projeto era o da colonização, atuando, em seguida, como e legalização das propriedades, quanto a condiita do Governo
instrumento regulamentador da propriedade fundiária. em passar a vender, suas térras levariam a uma valorização das
A proposta de que as terras passassem a ser vendidas foi terras em geral. Esse argumento o deputado iria utilizar para
aceita sem muitas restrições pelos deputados, porque não tocava justificar a cobrança da taxa de chancelaria e o imposto terri­
nos aspectos melindrosos da regularização do apossamento indis­ torial. A matéria tributária seria a que maior contingente de
criminado do passado recente e remoto. São.várias, aliás, as críticas e obstáculos encontraria no plenário, fazendo com que
propostas no sentido de que o passado deveria permanecer como alguns deputados passassem a rejeitar o projeto in totum, devido
estava, contemplando a legislação apenas o que viesse pela fren­ à tributação.
te. Tais propostas pareciam desconhecer que era necessário dis­ Magalhães de Castro, da Bahia, concordaria com o princípio
criminar as terras estatais, o que implicava conseqüentemente colonizador do projeto e com o benefício da valorização das
mexer no passado. A orientação do projeto, a propósito, era a terras, mas estranhava o fato de que, economicamente, fosse
de que, uma vez consideradas as sesmarias confirmadas e de­ necessário vender algo para que isso passasse a ter valor. Para
marcadas, medidas e tituladas as posses e sesmarias em comisso, ele, se as terras no Brasil eram desvalorizadas, o que lhes confe­
as terras estatais apareceriam como áreas remanescentes, dentro
riria valor seria o desenvolvimento da indústria (produção sis­
do conceito de terras devolutas exposto pelo projeto.
temática) e o fato de que as terras passassem a merecer a apli­
Souza Franco observa que a venda de terras aparecia como cação de capitais. Souza Franco, em resposta, aconselha-o a 1er
a solução ideal, conciliando interesses de agricultores e de colo­ Wakefield para entender a questão, enquanto Rodrigues Torres
nos. O sistema se auto-sustentaria ensejando ao colono, no futu­ defende que “o encarecimento da terra pelo sistema de vendas
ro, comprar terras, assalariar outros colonos a seu serviço e poderia ser paradoxal, mas era verdadeiro”.
assim sucessivamente. Incorpora, pois, os aspectos ideológicos
contidos na concepção de Wakefield, que faz desaparecer quais­ Evidencia-se que os preceitos liberais não eram perceptíveis
quer elementos de conflito de classes entre proprietários da terra na concepção de Wakefield. O mercado de terras se criaria de
e assalariados. Argumenta que o preço da terra deveria ser forma artificial, através da ação governamental tornando a ter­
“não tão alto, de sorte a desanimar os que desejam vir volunta­ ra escassa.
riamente, embora suficiente, a fim de que o Governo obtivesse O debate a respeito da legitimação de posses e sesmarias
renda para investir em colonos. irregulares faria vir à tona toda a ordem de dificuldades e con­
Enfatiza a necessidade de conter a dispersão das terras flitos, particularistas e de caráter regionalizado, em virtude das
devolutas a serem vendidas, concentrando-as próximo ao litoral, diferenças circunscritas aos processos de apropriação de terras,
cidades e vilas dotadas de acessibilidade, porto etc. Põe em onde estes se encontrassem mais ou menos consolidados no
destaque a grande disponibilidade de terras devolutas na Pro­ tempo.
víncia do Pará e as facilidades fluviais para escoamento da O Projeto, de certa forma, priviiegiava as posses cultivadas,
produção. ratificando, aliás, posicionamento já tradicional no quadro legis­
lativo colonial e do Império. Ào delimitar, porém, as posses a
um máximo de meia légua quadrada (1.089 ha), criava empe­
103. Cabe lembrar que a noção de “preço suficiente” de Wakefield se
ajustava ao tempo em que o colono deveria permanecer enquanto assala­ cilhos à grande posse, que ocorrera de forma intensa e recente
riado. A preocupação com fundos para colonização será, contudo, mar­ após a extinção da concessão de sesmarias. Além disso, a grande
cante, da parte dos defensores do Projeto 94, posse, após 1822, fora a solução para a fórmula das heranças
316 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 317

da propriedade fundiária, que permanecia concentrada devido contemplar a Província do Rio de Janeiro com o Projeto. Car­
à instituição do morgadio, que só viria a ser extinta na década neiro da Cunha, da Paraíba, procura mostrar que a legitimação
seguinte. de posses e sesmarias em comisso era inexeqüível e embaraçosa
no Nordeste. Relaciona problemas que iam de títulos de sesma­
Rodrigues Torres advertia contra o mal das grandes pro­
rias perdidos nas lutas com os holandeses a conflitos entre anti­
priedades incultas. Desaprovava os que defendiam posseiros ou
gos e novos sesmeiros, passando por pendências de heranças
sesmeiros, que continuavam tendo grandes áreas. Afirmava que
sob o morgadio, além da tendência a que os pequenos proprie­
0 Projeto não tiraria direito de ninguém, mas que ao procurar
tários fossem prejudicados com as novas demarcações.
limitar a propriedade à porção cultivada acrescida do quádru­
plo, até meia légua quadrada, procurava com isso rejeitar con­ Já do ponto de vista do Nordeste, do sertão, o deputado
cessões para além das conveniências do país. No entanto, enca­ Francisco de Souza Martins procurava mostrar que a legitimação
minha emenda no sentido de proporcionar às posses mansas das terras, da forma como pretendia o Projeto, não era passível
com mais de vinte anos, isto é, anteriores ao apossamento indis­ de aplicação a nenhuma situação. Expõe as formas pelas quais
criminado ocorrido após 1822, status jurídico idêntico ao das se processava a legitimação no sertão, que ocorria e continuaria
sesmarias confirmadas. Neste caso, as posses não sofreriam res­ ocorrendo ao largo do Estado. Neste sentido, corrobora o depu­
trições de área^-e esta seria também uma forma de enquadra­ tado Manoel José Albuquerque (Ceará), afirmando que nas áreas
mento de sesmeiros que se encontrassem na posse efetiva da de criação existia um esquema indivisível de terras e que o
propriedade e tivessem perdido seus títulos. Tal medida entrava sistema de colonização nenhum proveito traria aos criadores.
em conflito com o direito costumeiro do usucapião, que era Não se manifesta, entretanto, contrário ao Projeto. Afirma:
obtido após dez anos, como adverte um deputado por São Paulo, “proprietários temos de sobra; do que temos, porém, necessidade
que desejava desvincular a limitação da área para efeito de lega­ é de jornaleiro. . . não faltam braços, mas sim mão-de-obra para
lização das posses de dez anos ou mais. a agricultura em grande escala, como a que utiliza de cem a
A restrição à legalização das áreas de posse e a colisão duzentos escravos”. Exemplifica com a província do Ceará, onde
destas com as sesmarias não confirmadas e outras mais punham no último alistamento a população escrava correspondera a
em evidência a impossibilidade de que fórmulas gerais viessem 7% da população livre. Embora houvesse terras disponíveis,
a atender os interesses em conflito. A pequena propriedade, o era rara a agricultura em grande escala, porque cada indivíduo
pequeno produtor, o pobre aparecem como temas recorrentes era quase um proprietário, cada jornaleiro um roceiro, plantando
nas argumentações — eram no entanto, apenas sujeitos de para sua necessidade, que ao ser convidado para o trabalho da
retórica. grande agricultura, rejeitava-o alegando precisar também de jor­
naleiro. Esta, segundo o deputado, a razão por que na Provinda
O ônus implícito na medição e demarcação das terras, que existiam apenas dois ou três estabelecimentos agrícolas de gran­
o projeto exigia, levantou igualmente clamores contrários. O de porte, isto é, aqueles que possuíam de cem a duzentos es­
deputado Ângelo Custódio Correia, do Pará, expõe o mesmo cravos.
argumento de 1796, o da falta de geômetras, além dos elevados
pagamentos aos pilotos e a corrupção que cercaria o processo,, José Manuel da Fonseca e Paulino J. Soares de Souza, de­
envolvendo o judiciário. Manoel Antonio Galvão, liberal da putados por São Paulo e Rio de Janeiro, respectivameníe, apóiam
Bahia, afirma que os premiados com as validações eram os de­ 0 projeto e a iniciativa do Conselho de Estado, afirmando que
tentores de grandes sesmarias, com mais de vinte e trinta léguas, aqueles que apontavam defeitos ao Projeto estavam presos a uma
e acusa o Conselho de Estado no sentido de (|ue este visava a visão parcial das suas próprias áreas, que o mesmo estava de
318 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 319

inteiro acordo com a “lei das sesmarias’’ e era importante para Francisco Diogo Pereira Vasconcelos, deputado por Minas
evitar a crise agrícola. Gerais, entendia o término da distribuição de terras e a legali­
Num aspecto convergiam as posições antagônicas: a do zação da propriedade como a “vitória da verdade’’, Já a cobran­
prazo para o cumprimento das obrigações visandd à òbfénção ça de tributos era pãfa élè a “anulação de todas as virtudes’’.
do título. Este deveria ser o mais elastecido possível, segundo a Essa posição teria muitos adeptos, que advogavam que a tributa­
opinião de vários deputados. ção empobreceria os agricultores e, no dizer de Manoel Antonio
Em verdade, a delimitação do prazo para regularização dos Galvão, estabeleceria o proletarismo no Brasil. Em seguida,
títulos era importante, porque, como expõe Souza Franco, o criticava a não distinção entre o valor das terras no Brasil, que
problema era identificar as terras devolutas a serem vendidas, fazia com que incidisse o mesmo tributo em terras no Rio de
financiando a vinda de colonos. Janeiro e em províncias com grandes extensões de terras devo­
Souza Franco mais uma vez argumenta de forma acoplada lutas, como era do seu conhecimento existirem em Minas Gerais.
ao pensamento de Wakefield, onde aparecia a necessidade de Respondendo à intervenção de Rodrigues Torres, Pereira Vas­
manter uma política pública que se pautasse pela relação entre concelos afirma que no Rio de Janeiro também existiam terras
número de colonos e área de terras vendidas, Nega que o obje­ devolutas e que em Minas Gerais estas eram tantas, que aqueles
tivo do Projeto fosse transferir terras dos proprietários à Nação, que possuíam terras cediam-nas aos interessados, sem ônus, sob
como atacavam alguns deputados, e afirma que o importante a condição de as limparem e nelas trabalharem. Nestas condi­
era a delimitação das terras disponíveis. ções, 0 pagamento da taxa de chancelaria seria, para o deputado
mineiro, o equivalente à compra da terra.
Os debates, quando expõem os quadros específicos e dis­
tintos de apropriação e uso da terra no território, explicitam Rodrigues Torres rebate afirmando que se havia Províncias
certas características regionais, onde se torna perceptível alguma onde as terras nada valiam, cujo valor não cobria a taxa de
homogeneidade na forma pela qual o Projeto afeta conjuntos chancelaria, nesse caso nenhum mal haveria que perdessem as
de interesses nesses espaços. Mostram também que, em certas terras aqueles que não as pudessem pagar, porque passariam à
áreas, tanto a regularização e valoriização das terras, quanto a propriedade da Nação, que as venderia a quem pudesse cultivá-
colonização não tinham muito significado. las, sobretudo quando isso se referia à colonização. Seria me­
Souza Franco defendia que se não devia sacrificar certas lhor que deixá-las incultas. Propõe, contudo, rebaixar a taxa
regiões, rejeitando a colonização, porque, por exemplo, as terras pela metade, emenda que seria aprovada.
do sertão não tinham valor e a medição era inexeqüível. Era o Em seguida, o deputado pelo Rio de Janeiro ataca a oposi­
interesse mais geral que deveria ser considerado e que o bene­ ção liberal, chamando-a de irresponsável, por questionar a colo­
fício seria, com o tempo, estendido às áreas menos afeitas à nização feita pelo Corpo Legislativo e pelo Governo. Questiona
colonização. se, ainda nesse caso, deveria ser seguida a doutrina do laissez-
Nos debates relativos à matéria tributária, Rodrigues Tor­ jaire. Denuncia-lhe os efeitos nefastos e acusa a oposição de
res tentaria seguidas vezes negociar a aprovação do Projeto, não procurar enfrentar a realidade, que era a necessidade
acenando com a possibilidade de diminuição da taxa de chance­ de mão-de-obra. A colonização espontânea já fora experimen­
laria e do imposto territorial, chamando a atenção para o fato tada sem êxito e deixara os colonos em má situação. Deveria a
de que 0 objetivo era a formação de um Fundo Financeiro para colonização ficar a cargo dos particulares ou ser submetida à
custear as despesas com a colonização, que, em última análise, iniciativa do Governo, como representante dos interesses da
seria revertido aos proprietários. agricultura? Procura mostrar, em seguida, por que o benefício
520 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 321

da colonização não podería ser buscado pela iniciativa de parti­ uma forma de maior controle efetivo do Governo central sobre
culares, devido à impossibilidade de reter o colono nas terras, os preços. Neste sentido, Rodrigues Torres esclarece que a forma
As intervenções contra o imposto territorial que o Projeto de venda não era prescrita no Projeto e deveria ser deixada ao
instituía foram mais fortes. Ângelo Muniz da Silva Ferraz, da arbítrio do Governo. Os debates derivam em seguida para a
Bahia, lamenta o pequeno número de proprietários na composi­ forma de estipular o preço da terra; nesta fase, são apresentadas
ção da Câmara, o que para ele significava a ausência de defesa estimativas que procuram estabelecer relação direta do preço
de seus interesses. Urbano Sabino Pessoa de Melo, penambucano da terra com as despesas de suprir determinada quantidade de
e liberal, volta à carga afirmando que o objetivo do Projeto era mão-de-obra necessária para cuidar de uma área-padrão de ter­
tirar terras dos que não as cultivavam, vendendo-as a quem as reno. O “preço justo” correspondería “ao preço que viessem a
pudesse aproveitar; concentrar população e, para atender a essa exigir os interesses da colonização” . Esta também seria, porém,
idéia, desapossar as terras, tornando o Governo o principal pro­ uma decisão ao arbítrio do Governo.
prietário. Isso fora concebido porque a maior parte das terras No tocante à área do lote mínimo a ser posto a venda —
se encontravam apossadas. Pretendia-se transpor ao BrasH a um quarto de légua, no Projeto proposto pelo Conselho de
experiência de países colonizadores europeus. Mas, observa Pes­ Estado — Souza Franco contrapropõe rebaixar para um oitavo
soa de Melo, isto ocorria em países novos desocupados, cujo ou mesmo um dezesseis avos de légua. Mais uma vez, Rodrigues
território era propriedade da nação colonizadora; não era o caso Torres iria manifestar-se contrariamente, em apoio ao Projeto
do Brasil, já ocupado. Inadmissível que o Governo do Brasil original, afirmando que a agricultura em grande escala produzia
administrasse o país como se ele fosse uma colônia, ofendendo proporcionalmente muito mais do que em pequena escala.
o direito dos proprietários, atitude que não ocorria nem entre
os governos colonizadores. Reitera a baixa representatividade de Ângelo Muniz da Silva Ferraz lembra que a Inglaterra se
agricultores na Câmara (sendo ele próprio um funcionário pú­ valia de companhias particulares para compra e venda de terras,
blico) e questiona a probidade do Governo em fixar preço de de cujo aproveitamento também se incumbiam, e que continuava
venda para as terras. trazendo africanos para as índias Ocidentais (cerca de vinte
mil), para empregá-los, enquanto impedia o. Brasil de idêntico
O posicionamento da minoria liberal na Câmara era tênue, tráfico. Defende também lotes menores e um Plano de Coloni­
no entanto, concentrando-se contra a matéria tributária, a não- zação como parte integrante do Projeto. Acha que os colonos
intervenção do Governo na colonização e na descentralização do não viríam para trabalhar para outros, porque, embora “ apa­
processo de venda de terras para a órbita das Províncias. Não nhassem trapos na Europa”, não aceitariam aqui a mesma con­
se verifica polarização em torno do processo de colonização entre dição. Que, na forma como se pensava a colonização aqui, o
a pequena e a grande propriedade mercantil. O desenvolvimento colono trabalharia como escravo e que, nestas condições, tam­
desta última, que era o cerne da concepção de Wakefield, se bém não teria motivação para vir. O deputado reconhece, con­
impõe ao longo dos debates. tudo, que a colonização a cargo da iniciativa particular fora um
A discussão da matéria relativa à colonização inicia-se com desastre. Daí defender o arrendamento, tal como procediam os
a escolha da forma que deveria presidir o processo de venda de senhores de engenho, em terras distribuídas a pequenos lavra­
terras, que não era abordada no Projeto original. Entre a hasta dores, através da meação, observando que alguns lavradores
pública e o preço fixo e uniforme, as opções dividem Souza Fran­ obtiveram assim muita renda, fazendo-se inclusive senhores. Esta
co— que, de formação liberal, prefere a primeira - e Rodrigues seria a alternativa para evitar a intervenção do Governo na
Torres, que defende a segunda. O preço fixo (' uniforme significa colonização.
322 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 323

Outro deputado liberal, Venâncio Henriques de Rezende, com a Revolução Praieira em 1848, com ampla repercussão
de Minas Gerais, defende a colonização de africanos e afirma política.
que não havia por que reclamar, nem achar estranho, que o A dissolução da 7.“ legislatura pelo Imperador, em 19 de
Governo não providenciasse os colonos. Os braços africanos vi­ fevereiro de 1849, feVultafià em novo golpe contra os liberais.
nham por conta dos particulares, que se fizesse o mesmo com Repetem-se, pois, as mesmas condições que antecederam a ava­
os colonos europeus. Em seguida, mostra que o Governo iria liação do Projeto n. 94 pela Câmara dos Deputados, na 5.“ le­
apenas multiplicar empregos públicos, para mal administrar a gislatura,
colonização.
A 8.“ legislatura será de maioria conservadora e estará em­
O projeto n. 94 — Divisão de Terras e Colonização — penhada em aprovar, sem entraves expressivos, a lei extinguindo
foi aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado em outu­ 0 tráfico de escravos (4.9.1850), a Lei de Terras (18.9.1850)
bro de 1843. Entrou na pauta dos debates do Senado em agosto e a lei que reorganiza a Guarda Nacional do Império
de 1844, onde foi formada uma comissão para examiná-lo. Gra­ (19.9,1850), com poderes para garantir o controle social como
ças à matéria controvertida, o Projeto não favorece o consenso decorrência das medidas tomadas, que poderiam ensejar revoltas
no Senado. José Cesário de Miranda Ribeiro, um dos formula- e descontentamento generalizado no país.
dores do Projeto, é incumbido de seu reexame, após o que a O Projeto n. 94, ao retornar para a apreciação da Câmara,
matéria volta ao plenário entre meados de 1846 e de 1847. No­ passara a denominar-se “Terras Devolutas e Colonização”.
vamente é criada uma comissão para examiná-la. Em fins de Há grande empenho em desassociá-lo das características de
1849, sem que fossem neutralizados os choques de opiniões e “Repartição de Terras”, associada à “Lei Agrária”.
interesses, o Projeto foi aprovado e reenviado à Câmara em
Nesse sentido, o deputado Francisco Diogo Pereira Vas­
1850.
concelos afirmaria, em defesa do Projeto:
Entre 1843 e 1850, assiste-se a um período de agitação po­
lítica e de transformações em processo no panorama do Império, “não se trata nem de lei agrária, nem de comunismo”.
que se resolveria num quadro de acomodação e conciliação.
Isso tem por substrato conjuntura econômica favorável para o O movimento operário na Europa fazia as elites vivencia-
café e para o açúcar, paralelo de contínuo esvaziamento da rem sua posição incômoda, entre o escravismo e o “proletaris-
oposição política dos liberais e gradual montagem de um esque­ mo”, mormente quando se tratava de mexer com a estrutura da
ma de controle político e social no país. propriedade, de escravos e da terra no país.
Em 1844 são estipuladas as tarifas Alves Branco, com au­ Passamos em seguida a examinar os principais pontos esta­
mento das taxas de importação da ordem de 30-60% em repre­ belecidos pela Lei de Terras:
sália à decisão inglesa de sobretaxar o açúcar brasileiro em
relação aos de outra procedência. Na Câmara, os liberais haviam a) em relação à.« t" ras do Estado:
retomado a maioria na 6.“ legislatura (1844-1848) e os embates
— proíbe a aquisição df terras devolutas, â não ser pela
haviam recrudescido. Um conjunto de leis e decretos mudava
compra;
as regras do jogo político, permitindo maior interferência do
executivo nos processos eleitorais, conferindo vantagens políti-' — penaliza e despeja aqueles que se apossarem de ter­
ras devolutas, derrubarem e queimarem matas;
cas aos comerciantes etc. A culminância do processo se verifica
— especifica o que são terras devolutas;
324 ROBERTO SMITH A ABSOLUT1ZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 325

— estabelece reservas específicas de terras devolutas pa­ — obriga os posseiros a tirar título de sua terra, pagan­
ra colonização de indígenas, povoações, estradas e servi­ do direitos de chancelaria;
dões, estabelecimentos públicos e para construção naval; — cria o registro de terras, impondo o registro aos pro­
— 0 Governo passa a medir e demarcar terras devolu­ prietários nos prazos a serem estipulados.
tas, e dá provimento administrativo para separar o do­
mínio público do particular. c) em relação à receita patrimonial e tributária do Império:

b) em relação à legitimação da propriedade: — passava a cobrar taxa de chancelaria para a expedição


de títulos de regularização aos posseiros, na base de
— revalida as sesmarias em comisso, cultivadas ou com 5|000 para cada módulo de 500 braças quadradas (cercã
princípio de cultura e morada habitual do sesmeiro, con­ dê 121 ha);
cessionário ou representante; — as terras devolutas seriam vendiilas em regime de
— legitima as posses mansas e pacíficas, ocupadas ou hasta pública, ou fora dela. Neste caso, o preço mínimo
havidas do primeiro ocupante, cultivadas ou com princí­ seria estipulado segundo a qualidade e situação do lote;
pio de cultura e morada habitual do posseiro. Delimita — a receita dos direitos de chancelaria e da venda de
a posse a ser legitimada a outro tanto de terreno equiva­ terras deveria vir a ser aplicada na medição de terras
lente e contíguo ao terreno aproveitado, desde que a área devolutas e na transferência de colonos livres;
total não exceda a área das últimas sesmarias concedidas
— fixava um crédito inicial para essas despesas da or­
na comarca ou vizinhança. Não reconhece a posse sobre
dem de 200:000$000, mais sobras orçamentárias não
terras confirmadas, a não ser o direito de indenização de
utilizadas estimadas em mais de 100:000$000.
benfeitorias. Reconhece as posses transferidas por ses-
meiros, através de sentença em julgado, posses estabele­
d) em relação à colonização:
cidas antes da medição de sesmarias e não perturbadas
nos últimos cinco anos, posses estabelecidas após as me­
— concedia naturalização após dois anos a estrangeiros
dições, porém não perturbadas por dez anos;
que adquirissem terras e se estabelecessem nelas e isen­
— conserva os campos de uso comum na prática do mes­ tava-os do serviço militar, menos o da Guarda Nacional
mo uso conforme a tradição até posterior regulamentação; no município;
— conceitua “princípio de cultura”, excluindo simples — autorizava gastos ao Tesouro para trazer colonos li­
roçados, derrubadas e queimadas de matos e levantamen­ vres a serem empregados em estabelecimentos agrícolas,
to de ranchos; ou em trabalhos de serviços públicos, ou na formação de
— indica a fixação de prazos a serem definidos para colônias;
medida de terras de posse e sesmarias em comisso, de — autorizava a criação de uma Repartição Geral das
acordo com as circunstâncias de cada província, comar­ Terras Públicas para demarcar terras devolutas e pro­
ca e município; mover a colonização nacional e estrangeira.
— penaliza o posseiro que não medir no prazo, com
perda de direito sobre a parte igual a área efetivamente As principais distinções da Lei .de Terras em relação ao
Utilizada; Projeto n. 94 eram: supressão do imposto territorial; maior rigor
326 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 327

nos requisitos de regularização das sesmarias em comisso; posse dade ao mercantilizá-la, com a redução a valor mone­
mediante a exigência da efetiva ocupação e existência de mo­ tário, transmissível e avaliável.”*®^
rada, restrição da área de posse a uma vez mais a área utilizada,
porém com limite superior ao equivalente à área dè concéssão O “desenfeudaihehto’* a que Faoro se refere é justamente a
das últimas sesmarias na comarca ou vizinhança. Passava a esta­ desarticulação da estrutura remontada e condicionada, adstrita
belecer 0 lote mínimo de terra para venda em 500 braças qua­ à propriedade da terra, vinculada à cobrança de foros e obriga­
dradas, criava o registro de terras, que, após a Regulamentação ções, que, a nosso ver, não estabeleciam um caráter feudal à
de 1854, seria conhecido como o Registro do Vigário; e vincula­ propriedade, mas eram impeditivas do seu aparecimento en­
va a receita não só à colonização, mas também à medição de quanto forma mercantil passível de aplicação, enquanto forma
terras devolutas, e à Repartição de Terras e Colonização. de capital. O processo de absolutização da propriedade fundiá­
Emilia Viotti da Costa entende que duas concepções para ria no Brasil se desenvolve dentro do embate em direção à
solução da questão da terra estavam postas no debate entre centralização do poder imperial, objetivado após o fim do pe­
1843 e 1850, onde a intenção de aliar imigração com a pequena ríodo da Regência.
propriedade não teve espaço. Esse ponto de vista é também As características da transição implicam o reconhecimento
expresso por Warren Dean que percebe nesse encaminhamento de que o caráter mercantil da terra ainda não se estabelecera
a perda política de um projeto liberal nos moldes da colonização na órbita do capital mercantil, mas caminhava para isso. Re­
do Nordeste americano, com base na ■pequena propriedade não conhecer a priori a presença de formas arcaicas, enfrentadas
escravista. pelo Estado no sentido de buscar sua superação, implica reco­
A regularização de terras não se inscrevia como um projeto nhecer que, paralelamente, o capital mercantil passava por uma
de povoamento e, sim, visando à transformação das relações de transformação.
trabalho. O seu fundamento em Wakefield, por mais formal Medidas antiarcaicas e mesmo despojadas de expressão
què possa ser entendido, não dava margem a dúvidas de que social aparecem a partir de medidas legislativas. Por exemplo;
as elites conservadoras do Estado imperial adotavam uma pro­ proibição das corporações de ofícios pela Constituição de 1824;
posta em termos e moldes do estabelecimento de relações capi­ abolição da sucessão de direitos hereditários em linha de proge­
talistas no campo, e não uma concepção aristocrática de grande nitura (que caracterizava o morgadio) em 1835; proibição do
propriedade. Essa concepção era, no entanto, arraigada entre tráfico de escravos; a própria Lei de Terras e o código comer­
os grandes proprietários de terra, que adotaram a prática da cial em 1850 e, uma década após, a regulamentação das hipo­
incorporação da posse às sesmarias. tecas fundiárias e não mais de escravos. Tais medidas elucidam
a dinâmica imposta pelas transformações econômicas e interes­
Faoro entende q u e .. .
ses antagônicos em que os debates no legislativo expressavam
como num palco a articulação entre Estado e Sociedade,
"o estatuto corresponde à tendência político-econômica Toda ação política subjacente ao estatuto legal da terra,
dos meados do século XIX, desenfeudando a proprie-
de aparente falta de poder transformador, expressa com inegá­
vel clareza a trajetória que tende a dar forma mercantil à terra.
104, COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos Mercantilização esta que segue uma lógica posta pelo capital
Decisivos. Política de Terras no Brasil e nos Estados Unidos. Op. cit., e
DEAN. Warren. Latifundia and Land Policy in Nineteenth Century Brazil.
HAHR. Op. cit. 105. FAORO, R. Os Donos do Poder. Qp. cit., p. 410-
328 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDlARlA 329

mercantil, da cidade para o campo. Mais uma vez o capital sistemática — com os discursos parlamentares dos principais
comercial organiza a estrutura produtiva à sua imagem, tal como defensores do projeto, conservadores e liberais, na 5.* e 8,* legis­
0 fizera, em outras circunstâncias, com o escravismo. Para o laturas, é possível perceber algo de desencontrado, como duas
capital mercantil, a submissão da força de trabalho ainda não dimensões que não se cruzam. A formulação jurídica tem, como
é a condição mais relevante de sua expansão, como será para eixo principal, criar o trabalho assalariado; já a preocupação
o capital. dos defensores do projeto era a de “importar colonos”. ■
A linha evolutiva da concepção de Wakefield partia da A questão era substituir o trabalho escravo e, nesse sentido,
questão da cooperação no trabalho, que Marx explicitará, en­ as propostas de arrendamento de terras e relações de meação etc.
quanto cooperação para o capital. Nesse sentido, as terras se já faziam parte do universo conhecido da prática do agricultor,
vão fechando, sem contudo submeter a força de trabalho, no enquanto forma de submeter o trabalhador e não sua força de
colonato, ou nas formas de parceria, arrendamento etc. As for­ trabalho.
mas de exploração do trabalho ainda não atingiam sua expres­ Por que a adoção, naquele contexto, de um ideário eivado
são mais acabada, sob o domínio do capital mercantil. de conteúdo capitalista, defendido pelo Conselho de Estado e
no Parlamento, com dose bastante rica de informações a respei­
Estado, Capital Mercantil e Propriedade Fundiária to do debate inglês da neocolonização, quando as chamadas
classes dominantes, isto é, os agricultores escravistas, situavam-'
A Lei de Terras é um marco histórico no processo de tran­ se relativamente afastadas dessa questão?
sição para o capitalismo no Brasil. A fase relevante, em termos Pensar que o projeto de colonização sistemática fosse uma
de periodização, que assinala esse processo, se não nos quiser­ imposição inglesa, no bojo das discussões dos tratados comer­
mos, deter num ponto apenas, é a década de 40 e início da de ciais, não constitui uma boa hipótese. As idéias de Wakefield
50, onde é possível situar o fim da acumulação mercantil ainda não eram bem-aceitas pelo Colonial Office, o que se de­
escravista. preende de sua obra A View of the Art of Colonization, editada
A Lei de Terras e a abolição do tráfico expõem medidas em 1849.
políticas, que demarcam decisões importantes, dentro da linha de Mas leis de terras foram gestadas e aprovadas em vários
acomodação de interesses e conciliação política imposta pelo países da América Latina, América do Norte e Oceania, quase
segundo Império. ao mesmo tempo, configurando um processo internacional, que
Essa fase de mudanças conciliatórias mostra a intemaliza- não pode ser entendido apenas do lado de suas determinações
ção do processo de acumulação mercantil, uma vez rompido o internas.
encacleamento estabelecido a partir do tráfico, e a estruturação Como examinamos anteriormente, a colonização sistemá­
de uma inter-relação complexa entre o capital mercantil estran­ tica tem raízes imperialistas, tendo contribuído decisivamente
geiro e nacional. na estruturação da Commonwealth. Sob este enfoque, fica evi­
A Lei de Terras obedeceu a um processo emanado das ini­ dente o seu eixo: tentar estabelecer relações de assalariamento
ciativas de elites políticas postadas no Conselho de Estado e era onde elas inexistem, para fazer crescer o capital na mother
um apêndice da imposição à abolição do tráfiço, que vinha a country.
colocar 0 fim da escravidão num horizonte não remoto. No Brasil, o capital envolvido com o tráfico expandiu-se
Comparados os textos do Projeto n. 94 e o da lei aprovada durante a primeira metade do século XIX; vinha sendo amea­
— na sua observância rigorosa aos preceitos da colonização çado de intervenção por parte dos ingleses, que chegam a efetivá-
330 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÃO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 331

la por sobre o que se poderia considerar a soberania nacional. Não é assim que entendemos o processo de transição. A
Evidentemente, o capital traficante nesse contexto era o alvo perspectiva de autonomia do Estado existia, por certo, e tem
visado, uma vez que seria inteiramente esvaziado com o fim certa pregnância com a desarticulação dos preceitos descentra-
do tráfico. lizadores criados pelos liberais no período da Regência. A forma
O fim da escravidão nas Antilhas Britânicas mudara o pela qual o segundo reinado procura, com o apoio dos conser­
quadro em que a produção açucareira com base no trabalho vadores, esvaziar a oposição libera! através da cooptação, para
escravo estava sob a proteção inglesa. Agora seguia que o açúcar depois destruí-la, assim como se empenha em reforçar o aparelho
“escravo” , tanto brasileiro quanto cubano, tinha preços compe­ repressor da Guarda Nacional, tornando-o instrumento de re-
titivos em relação ao açúcar “livre” antilhano e a Inglaterra freamento não só das revoltas populares (que se intensificam na
passa a sobretaxá-los. A medida protecionista de Alves Branco década de 40), mas também dos interesses econômicos atingidos,
em 1844, como represália à taxação do açúcar brasileiro pelos dá margem a que se encaminhe o pensar da autonomia do Estado
ingleses, é considerada um marco na afirmação da soberania no quadro do Estado autoritário.
nacional e o primeiro incentivo à produção interna de manu­ Tavares Bastos, expressão do pensamento liberal concilia­
faturados. tório, assim se exprime:
Conjugados, o fim do pretenso liberalismo tarifário, a extin­
ção do tráfico e o volume de capital traficante drenado para “se o parlamento, anulado pela sua origem, é fraco pela
outras atividades internas, além dos resultados que o café come­ sua composição, o poder executivo assume a onipotência.
ça a gerar na balança comercial na década de 50, tornam-se, Logo, este poder nega a responsabilidade, que lhe incum­
paulatinamente, determinantes ponderáveis na inflexão por que be, pelos atos do moderador, como ouvimos claramente
passa a economia do país, com o surgimento das primeiras ini­ 0 ano passado, isto é, confirme implicitamente a existên­
ciativas de implementação da indústria e dos investimentos no cia de uma cousa impossível, o governo pessoal.”'®®
escoamento da produção agrícola.
A Lei de Terras regulara finalmente a posse e a sesmaria em Quanto à economia, neste contexto mais drártico de centra­
comisso. A rigor, não fugira juridicamente de certas cláusulas lização de poder pelo executivo, e através dos conservadores,
que a legislação de terras portuguesa sempre considerara — um projeto mais “progressista” seria encaminhado para a nação,
a legitimação, em última instância, pela utilização efetiva. Era em meados do século XIX.
uma diretriz que, mesmo não obedecida, fazia, como fizera A inter-relação com o processo de amplo crescimento capi­
anteriormente na colônia, criar um fosso entre a apropriação talista industrial, após a crise européia do início do século XIX,
privada e o reconhecimento público da propriedade fundiária. contudo, projeta desde o Exterior, e especificamente da Ingla­
Principalmente porque limitava a área da propriedade. terra, a conjunção de interesses mercantis que abalaria inter­
Despidos os aspectos regionalistas — que aparecem em vir­ namente as relações entre a terra e o trabalho no país. Eviden­
tude de interesses divergentes quanto à legitimação da proprie­ temente, encontrava-se o Brasil permeado por um processo eco­
dade e a necessidade de colonização — e relevadas àg 4ifer*íP' nômico e político de cayâter capitalista internacional. O que era
ças, contraditórias, é verdade, entre liberais e conservadores, mai.s específico ao Brasil, no âmbito cpcle projetos de leis de
poderia parecer que o conjunto de determinações de ordem jurí­
dica projetava um Estado autonomizado, que tentava impor um
106. BASTOS, A, C. Tavares. Os Matas do Presente e as Esperanças do
projeto capitalista à nação. Futuro. Ed. Nacional, Brasiliana, 1939, p. 137.
332 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇÃO d a p r o p r ie d a d e f u n d iá r ia 333

terras foram aparecendo, era o teor de importância assumido mudar, no país, a face da articulação do capital mercantil na­
pelo escravismo e a qomplexidade que envolvia o processo de cional e internacional.
sua substituição. - A transformação importante que irá ocorrer nessa fase
(meados do século XIX), agilizada pelo Estado, será o desen-
As transformações sociais, que atingiam a relação entre
gajamento do capital mercantil traficante e conseqíiente subor­
terra e trabalho no país, colocavam-se em termos do avanço do
dinação do capital produtivo a formas mais evoluídas de capital
capitalismo internacional e dos requisitos da nova divisão inter­
mercantil e bancário. O significado relevante disso será o fim
nacional do trabalho, que se chocavam com certa tendência
da acumulação escravista. O tráfico interprovincial seria apenas
cristalizada no sentido de estabelecer rigidez nesse processo de
um movimento de transferências.
mudança.
A expansão cafeeira passava a demandar mais terras e mais
Em breve retrospectiva, impõe-se analisar a questão do pon­ escravos e, sobretudo, mais capital, devido ao prazo de matu­
to de vista da relação entre Estado e capital mercantil, bem ração do empreendimento cafeeiro — da ordem de cinco anos
como captar a dinâmica de transformação da acumulação de — para o início do retorno.
capital mercantil, nas mudanças que se vão impondo, já sob o É possível inferir que as transformações daí decorrentes
quadro de expansão cafeeira. se processem como um conflito intercapitais mercantis. A forma
No início do século XIX, existem algumas evidências de de submissão do agricultor do café passava por uma transfor­
que a acumulação mercantil escravista se internaliza. O signi­ mação, onde 0 endividamento através da compra de escravos
ficado disso é que uma parte da produção mercantil volta-se não era mais o elo relevante. A outra face da mesma realidade
para o mercado interno em algumas áreas. Essa desconectação é que a terra passava por um processo de valorização, que o
entre produção escravista interna e produção mercantil de expor­ apossamento indiscriminado e o avanço do café asseguravam.
tação, como já assinalamos, era apenas indireta e poderia ser A renda da terra, e não mais a renda do escravo, passava
entendida num espectro mais amplo de crise da ordem colonial. a ser o objeto de apropriação do excedente, principalmente dos
Já 0 encadeamento de interesses mercantis não permite separar agricultores de café da área de expansão do Oeste Paulista.
0 agricultor, envolvido na produção mercantil de exportação, do O financiamento à produção de café se desloca gradativa-
setor comercial e traficante, a quem confere sustentação. Existe, mente para a aquisição de escravos no mercado interno, de ter­
pois, relação econômica importante onde a agricultura mercantil ras e formação de cafezais; mais tarde, no Oeste Paulista, para
exportadora estava submetida ao capital mercantil — que, em a compra de terras dotadas de cafezais formados e pressão
meados da década de 40, mostrava firmas inglesas controlando para subsídios estatais ao desenvolvimento do colonato, mas
mais da metade das exportações —• e a importância das finanças seria ainda um processo onde o capital mercantil se impunha
inglesas na cobertura dos déficits na balança comercial. sobre o capital produtivo;*®"'
Vimos que as tentativas de estabelecimento de casas ban­ Sérgio Silva afirma:
cárias no fim do século XVIII não surtiram efeito, porque iam
contra os interesses que procuravam atrelar o produtor agrícola, “a disponibilidade relativa de terras parece constituir um
via crédito, ao traficante e ao exportador. fator independente capaz de explicar certas característi­
cas do capital cafeeiro, o seu rápido desenvolvimento de
O lento e difícil surgimento do capital bancário na primeira
metade do século XIX, o desenvolvimento do mercado interno
em certas regiões e o endividamento externo começam a fazer 107. MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. Op. cit.
A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 335
334 ROBERTO SMITH
pensamento liberal não iria conseguir impor um projeto no
Caráter extensivo, o fortalecimento do capital ao nível co­ século XIX.
mercial e 0 fraco desenvolvimento do capital ao nível da Para se ter idéia da distância do pensamento liberal em
produção.”^®* relação ao conservàdòf, é bom recorrer a Tavares Bastos, que
assim se expressa na sua obra Os Males do Presente e as Espe­
O capital financeiro, sobretudo inglês, não adentra os cir­ ranças do Futuro, editado em 1861, no apoio''que confere à
cuitos internos, onde se estrutura uma cadeia de intermediações, Lei de Terras, mas sem adentrar os aspectos centrais de seu
onde aparece o comissário vinculado aos agricultores e o comer­ conteúdo. A respeito da escravidão, o autor afirma:
ciante local, que é apenas um agente da distribuição dos pro­
dutos importados. “(o governo) estudaria os meios práticos de emancipar-
Como afirma Faoro; se lentamente a escravatura, reconstituindo-se sobre ba­
ses naturais a organização do trabalho.'’“ ^
“no topo dessa organização, o capital financeiro — os
bancos ingleses — comanda o jogo sustentando o com­ Importa considerar que é dos conservadores um projeto de
plexo exportador-importador, nação, como se coubesse ao Estado delinear e montar o puzzle
capitalista para o país. Para tanto, era necessário golpear o ca­
Existe uma tutela exercida pelo comissário sobre a agricul­ pital traficante, consolidar a legislação comercial, regularizar a
tura, envolvendo o capital financeiro e o capital mercantil, que propriedade fundiária privada e estatal para submeter o “traba­
passaria a ter com a Lei de Terras a forma de garantia que a lho”, centralizar, através do Estado, a implantação de imigran­
Lei Hipotecária regularia. A Lei Hipotecária de 1864 apenas tes livres.
ratificaria a prática mercantil de que terras, e não escravos, Esse processo encontrava-se vinculado à influência exter­
agora serviriam de garantia de dívidas. na, sobretudo inglesa, mas também americana.
Para Joaquim Nabuco: As referências ao poder econômico e político detido pelas
oligarquias agrárias, de menção freqüente, devem ser, a nosso
“ o agricultor não passa do empregado agrícola que o ver, relativizadas.
comissário ou o acionista do banco tem no interior para A partir do século XIX, como tentamos expor, ocorrem
fazer seu dinheiro render acima de 12%.”^^® mudanças na relação entre o capital mercantil e a produção
agrária de exportação, sem contudo modificar a estrutura de
A hegemonia do capital mercantil se encaixa com a lógica poder no seio das esferas de dominação política. É preciso pen­
do Estado centralizador. sar ainda que os interesses do capital mercantil e traficante
Assiste-se ao processo como se dá a transformação do Esta­ encontravam-se muito mais posicionados diante do Estado, e
do, conservando, porém, as raízes do absolutismo, que, desde mesmo inseridos em sua órbita. Neste sentido, identificar o Esta­
sua origem em Portugal, tinha forte aderência mercantil. O do com os interesses das oligarquias cafeeiras do Rio de Janeiro,
Minas Gerais e São Paúlo impjica marginalizar ps interesses do
capital mercantil e, portanto, dos interesses estrangeiros aqui
108. SILVA, Sérgio. Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil.
S. Paulo, Alfa-Ômega, 1985, p. 73.
109. FAORO, R. Os Donos do Poder. Op. cit., p. 415. III. BASTOS, A. C. Tavares. Op. cit., p. 336.
110. NABUCO, Joaquim. O Abolicionista. Cil. por FAORO, R. Op. cit.
336 ROBERTO SMITH A ABSOLUTIZAÇAO DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA 337

fincados e bastante envolventes. Além disso, como procuramos instituído, facultativamente, o registro de terras, conhecido como
ressaltar, significa também desconsiderar o fato de que havia Registro Torrens. Segundo Washington de Barros Monteiro,
um movimento que partia do Estado e tentava impor a própria “esse registro procura implantar regime de propriedade terri­
lógica nos conflitos em marcha. torial mais seguro e mais simples: por ele, é o título de proprie­
A Lei de Terras também deve ser entendida como uma ne­ dade que se registra e não o ato que a transfere. O registro
cessidade do próprio Estado em recobrar o controle sobre as Torrens é efetuado depois que o título é expurgado de toda e
terras devolutas, termo que já etimologicamente esconde o cará­ qualquer dúvida. Em compensação, admitido o título a registro,
ter de terras públicas, cujo estoque deveria ser objeto de um a propriedade acha-se garantida pelo próprio Estado. O pro­
controle social vinculado ao interesse tanto da sua utilização cesso é originário da Austrália (implantado em 1855) tendo esse
produtiva, quanto da substituição de escravos por trabalhado­ nome em atenção a Robert R. Torrens.”"^
res livres. Alguns juristas consideram-no “artificialismo e utopia”,
O encaminhamento no tempo, que se verifica desde as inten­ mas 0 Registro Torrens é plenamente vigente nos dias atuais
ções do Projeto inicial até as medidas ensejadas pela Regula­ no Brasil.
mentação, em 1854, da Lei de Terras, assinala, porém, uma Como é sabido, os resultados imediatos da Lei de Terras,
estranha inversão. Esta se dá no sentido de que inicialmente
no tocante à discriminação das terras estatais e sua venda, foram
cabia a sesmeiros e posseiros, em fase de regularização da pro­
pouco expressivos,*^* sem que isso tenha contribuído para de­
priedade, apontar e demarcar suas terras de acordo com a lei, sestimular a imigração européia no último quartel do século XIX.
para que o Estado passasse, por sua vez a discriminar e demar­
car as próprias terras. Quando solicitado às comarcas que apon­ No entanto, a dinâmica provocada pelo acelerado apor sa­
tem a existência de terras devolutas em seu território, os rela­ rnento de terras e pela estruturação de uma ordem legal que
tórios encaminhados são muito semelhantes entre si ao procurar ratificasse a legitimação da propriedade estabeleceu os contornos
negar tal existência, exprimindo pareceres baseados em opinião de um fechamento relativo das terras, nas novas áreas de dina­
formada. mismo econômico no Centro-Sul do país. Em todo esse processo,
ao longo da segunda metade do século XIX, o Estado tenderá a
Disso resulta que o propósito inicial do Estado em manter
manter posição dúbia e indefinida, que perpetuará até os dias
a direção do processo termina por esvanecer-se num terreno
de hoje a dificuldade na discriminação e legitimação da proprie­
amorfo pleno de indefinições.
dade da terra.
O registro de terras instituído pelo Regulamento de 1854
À medida que a imigração foi assumindo proporção pon­
— denominado Registro do Vigário, porque ficava sob o contro­
derável, ensejando em áreas de maior dinamismo a substituição
le das paróquias da Igreja — tinha pouco efeito prático para
do trabalho escravo, este foi passando por uma acomodação
conferir legitimidade pública às terras privadas. Baseado em
sem traumas nas áreas de subsistência e, nas áreas mais antigas
declarações imprecisas, lacônicas — cobrava-se o registro pelo
de exploração colonial, as transformações obedeciam a uma ló­
número de palavras — não tinha os meios adequados para impor
gica em que a meação e o arrendamento já esvaziavam a impor-
garantia estatal à propriedade prjjyada. Somente em 1890 seria

113. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, São Pau­


112. PETRONE, Maria Thereza Schorer. Tcn;- P vo ImIjis , Posses c Ses­ lo, Saraiva, 1953, p. 394.
marias no Vale do Paraíba cm 1854. In: Rn i^ui de iHsiíiria u. 103, vol. 114. Lei dos Registros Públicos ii. 6.015, 31.12.1973, cap. XI.
LIÍ. ano XXVI. julho-setembro 1075, pn. 37 '-504. 115. B A ST O S. A. C. T - ’ r ~ r : . O p . cit., p. 87.
358 ROBERTO SMITH

tânçia das relações escravistas. Assim, a questão da legitimidade


da propriedade fundiária tende a desaparecer como prioridade
para o Estado, até que passa a ter sua competênda descentra­
lizada para as províncias.

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