Direitos e interesses que lhe são próprios, extensivos a terceiros, no processo de reforma agrária. 2. Legitimidade passiva. A responsabilidade pela implementação de políticas públicas protetivas dos Desca, do tipo reforma agrária, é somente do Estado? 3. Abrangência do objeto. A nunca demais lembrada diferença entre o valor de uso (terra de trabalho) e o valor de troca (terra de exploração).
Desde a entrada em vigor da Constituição
Federal de 1988, o debate sobre a conveniência e a oportunidade da reforma agrária para o País parece ter dado mais atenção aos objetos do que aos sujeitos dessa forma de desenvolvimento. Uma das principais razões para isso reside no fato de o art. 185, 11, da referida Carta ter previsto como imune à desapropriação, para fms de reforma agrária, a chamada "proprie- dade produtiva", numa clara confirmação da análise que Norberto Bobbio já fizera da história desse direito l . Pelo que se depreende do estudo de Luiz Edson Fachin e José Gomes da Silva, Comen- tários à Constituição Federal (Rio de Janeiro: Ed. Trabalhistas, 1991. p. 56), a simples compreensão do que possa ser enquadrado como um espaço rural adequado à hipótese prevista constitucionalmente envolve a superação de ambigüidades quase invencíveis. I "O reconhecimento gradual das liberdades civis, para não falar da liberdade política, é uma Jacques Távora Alfonsin é Professor. conquista posterior à proteção da liberdade pessoal. Quando muito, pode-se dizer que a proteção da Síntese da contribuição do autor à Conferência liberdade pessoal veio depois do direito de Nacional de Exigibilidade dos Direitos Econômicos, propriedade. A esfera da propriedade foi sempre Sociais, Culturais e Ambientais, Rio de Janeiro, abril mais protegida do que a esfera da pessoa" (A era de 1997. dos direItos, p. 123) Brasl1ia 8. 34 n. 136out./dez. 1997 191 Não só pelo fato de a Constituição ter referido programàdas para o futuro, especialmente propriedade (denominação mais apropriada ao aquelas que visam diminuir as desigualdades direito do que ao imóvel) como pelo fato de sociais, têm merecido atenção redobrada de que, conforme os mesmos autores, a Consti- quantos se dedicam ao seu estudo e procuram tuição "introduziu o conceito de "propriedade entender as razões históricas da sua pouca ou I
produtiva", não diferenciando se o adjetivo nenhuma eficácia.
"produtiva" refere-se à produção em concreto É claro que os Desca, aqui entendidos (estar produzindo) ou à produção em abstrato segundo a extensa compreensão que lhes dá o (poder produzir). O texto do pàrágrafo único Direito Internacional e, por exemplo, a do art. 185 induz ao absurdo que é a última Resolução 2.200-A, da Assembléia Geral das hipótese (produção em potencial)". . Nações Unidas de 16 de dezembro de 1966, Ainda que essa exegese possa ser cogitada, ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, porém, eles não hesitam em dissipar o~nevoeiro estão envolvidos na implementação de tais baixado pela falta de clareza do texto, políticas - a reforma agrária entre elas - advertindo: existindo base jurídica para que, além dos "Todavia, o teor do art. 184, que abre direitos e garantias fundamentais do Título 11 o capítulo, é taxativo: o imóvel rural que da Constituição Federal (arts. 5º/17), e de todo não esteja cumprindo sua função social o capítulo dedicado à dita reforma (arts. 184/ é desapropriável para fins de reforma 191), a sua exigibilidade ganhe poder de maior agrária. Logo, embora a Constituição respeito e operacionalidade, também sob a tenha previsão de "tratamento especial" disciplina dos compromissos que o País à "propriedade produtiva", quando esta, assumiu, solenemente, em suas relações mesmo que potencialmente produtiva, jurídicas externas. não esteja produzindo e cumprindo todos Seja num processo administrativo que os requisitos da sua função social (art. prepare uma desapropriação de latifúndio rural, 186 da CF), pode ser tida como desa- seja numa ação judicial relacionada com a propriável". mesma desapropriação, com a posse ou a Se um tal raciocínio encontra apoio numa propriedade agrárias, é sabido que nem sempre interpretação sistemática da CF, para a qual o ordenamento jurídico interno e específico do ainda pode ser lembrado o capítulo dos direitos País, para a matéria em discussão, está equipado e garantias individuais e coletivos, em que se para preencher todas as lacunas e vencer todas dispõe que "a propriedade atenderá a sua função as antinomias, particularmente em se consi- social" (art. 5º, XXIII), ele também parece mais derando que as urgências sociais já nem afmado com os próprios fundamentos do nosso questionam por décadas, mas quase que por ordenamento constitucional que os arts. 312 e meses, leis que entraram em vigor para 4º pretenderam explicitar. realidades superadas. Ali se determina que, entre os "objetivos No que toca aos Desca, por exemplo, talvez fundamentais da República Federativa do não se tenha valorizado, suficientemente, o Brasil" estão os de "garantir o desenvolvimento parágrafo segundo do art. 5º da Constituição nacional", "erradicar a pobreza e a margi- Federal de 1988, o qual amplia, significati- nalização e reduzir as desigualdades sociais e vamente, o campo de cogitação das normas regionais" (incisos 11 e III do art. 3º); a jurídicas aplicáveis em tais casos: República Federativa do País, de outra parte,. "Os direitos e garantias expressos rege-se, nas suas relações internacionais, pelo nesta Constituição não excluem outros princípio da "prevalência dos direitos huma-, decorrentes do regime e dos princípios nos" (inciso 11 do art. 4º), entre outros. por ela adotados, ou dos tratados Assim, parece indispensável que se en- internacionais em que a República frente, antes do mais, algumas perguntas de Federativa do Brasil seja parte". difícil resposta que estão implicadas na Alguns dos instrumentos jurídicos inter- exigibilidade dos Desca, particularmente nacionais, ratificados pelo Brasil, como a aqueles que "dependem" da reforma agrária. Resolução supialembrada, pode. melhor Esse tipo de política pública, como meio de garantir a exigibili'!.ade daqueles direitos, e de desenvolvimento, gera algum tipo de direito? maneira expressa; num contexto de reforma Todas as disposições constitucionais agrária. Note:se o que dispõe o art. 11 damesma relacionadas com políticas públicas, metas Resolução: 192 Revista de Informação Legislativa 1. Os Estados-partes no presente Para quem não ignora, portanto, as urgên- pacto reconhecem o direito de toda cias sociais que estã() ,à espera da reforma pessoa a um nível de vida adequado para agrária, é pouco convincente, argumentar-se si próprio e para sua família, inclusive à que as vítimas da não-realização da reforma alimentação, vestimenta e moradia agrária não sejam, num primeiro plano, os adequadas, assim' como uma melhoria agricultores póbres sem terra, os margi- contínua de suas condições de vida. Os nalizados, os excluídos pela concentração do Estados-partes tomarão medidas apro- espaço rural ocioso, e, num segundo momento, priadas para assegurar a conse,cução por via de conseqüência, apopulação toda do desse direito, reconhecendo, nesse País, privada de uma produção maior e mais s,entido, a importância essencial da adequada às suas necessidades básicas, de uma cooperação internacional fundada no circulação de produtos agrícolas menos livre consentimento. gravosa, e de um consumo,mais barato e 2. Os Estados~partes no presente socializado. pacto, "reconhecendo o direito funda- Se ainda remanescer alguma dificuldade, mental de toda a pessoa de estar prote- assim, para se reconhecer a realização da gida contra a fome, adotarão, indivi- reforma agrária como parte integrante de um dualmente e mediante cooperação direito coletivo ao desenvolvimento, os efeitos internacional, as medidas, inclusive jurídicos imediatos daquelas disposições programas concretos, que se façam constitUcionais supralembradas e dos pactos necessários para": internacionais assinados pelo Brasil, direta ou . a) melhorar os métodos de produção, indiretamente ligados à questão, têm de ser conservação e distribuição de gêneros respeitados, quando menos, como eficácia alimentícios pela plena utilização dos geradora de titUlaridade subjetiva dos direitos conhecime~tos técnicos e científicos, humanos (aí incluídos os Desca), em favor pela difusão de princípios de educação dessas mesmas vítimas (l e seguintes, infra). nutricional e "pelo aperfeiçoamento ou Aí elas podem e devem ser reconhecidas reforma dos regimes agrários", de como os verdadeiros sujeitos desse "direito à maneira que se assegurem a exploração função social" (!) sabidamente não cumprida e a utilização mais eficazes dos recursos por grande parte dos latifundiários brasileiros. naturais; O conhecimento, a identificação precisa e o b) assegurar uma repartição eqüi- respeito devido a tais titUlares de direitos, como tativa dos recursos alimentícios mundiais tentar-se-á justificar a seguir, fazem parte em relação às necessidades, levando-se integrante da sustentação política e da em conta os problemas tanto dos países legitimidade jurídica da reforma agrária, como importadores quanto dos exportadores de forma do desenyolvimento nacional impedido gêneros alimentícios. ou retardado pela histórica violação daquele 'Pode-se põr em dúvida, mesmo assim, os mesmo princípio constitUcional. efeitos jurídicos de uma tal disposição, em favor Os Desca implicados nos esforços de dos Desca implicados na reforma agrária, sob resposta a uma tal iniciativa que, a par de lhes o argumento de que o parágrafo segundo do interessar diretamep.te, se reflete no abaste- art. 52 da CF não fala em resolução e sim em tratado internacional. reélamações neste campo deve assim ser guiada e O estUdo do Dr. Antonio Augusto Cançado basear-se no respeito aos direitos humanos. Na implementação desses tratados e instrumentos, Trindade, sobre A proteção internacional dos dirigidos à proteção da parte ostensivamente mais direitos humqnos (São Paulo : Saraiva, 1991) fraca (as supostas vítimas), o elemento do "interesse oferece resposta a uma tal impugnação, sob luz público" comum ou geral ou ordre public exerce um dificilmente questionável, já que é a condição papel proeminente. Esses mecanismos se comple- de vítima do desrespeito aos direitos humanos, mentam uns aos outros no desempenho de suas o critério decisivo para a solução de um tal funções e na realização de seu propósito comum de impasse 2 • assegurar uma proteção eficaz e cada vez mais extensa dos indivíduos lesados. O foco de atenção 2 A despeito de sua diversidade, constitui traço principal transfere-se assim da questão tradicional distintivo do rationale dos tratados e instrumentos da delimitação de competências à do grau ou de direitos humanos o de que se dirigem eles à qualidade da proteção a ser estendida às pessoas proteção de seres humanos e de que a solução 'de vitimadas. (p. 3, grifos do autor). Brasflia a. 34 n., 136 out./dez. 1997 193 cimento de produtos alimentícios para todo o relacionada com o tipo de propriedade exercido país, como já se lembrou acima, exigem numa tal "Fazenda Alvorada", sob a jurísdição investigação criteriosa das titularidades e competência daquele Juízo. Nessa ação, o subjetivas correspondentes, hoje mal iden- MST requereu que fosse admitido como tificadas nos muitos acampamentos e assenta- assistente do Incra. Parte do despacho do juiz mentos patrocinados por esses sujeitos de parece conveniente ser transcrita: direitos - seja de direitos subjetivos, seja de "Efetivamente, no caso em pauta, é interesses legítimos, seja de destinatários da possível admitir-se a existência de função social das propriedades alheias ou das interesse jurídico de parte do MST, políticas públicas relacionadas com a terra (2 e representado pelos requerentes (a decisão 3 infra). , está se referindo a alguns agricultores A exigibilidade de tais direitos, assim, sem terra que se afirmavam represen- impõe-se analisada, ainda que de màneira tantes do MST interessados em assistir muito superficial, sob três linhas principais de o Incra, no feito), no sentido de que o abordagem: a da legitimidade ativa desses processo em tela tenha solução favorável sujeitos de direito em participarem dos ao Incra. Assim sendo, capaz de vislum- processo's de planejamento, execução e brar-se, a figura do assistente, lembran- avaliação da política de reforma agrária; a da do-se, a propósito, que tal assistência legitimidade passiva de todo esse processo, aí refere-se a este processo que trata compreendida a responsabilidade do Estado e especificamente da Produção Antecipada a do chamado "livre mercado"; a da abran- de Prova Pericial. Obviamente, o MST, gência do objeto de desenvolvimento perse- representado pelos requerentes, admitido guido pelo mesmo processo. como assistente, recebe o processo no estado em que se encontra, de sorte que o técnico por eles indicado acompanhará I. LEGiTiMidAdE ATiVA dos AGRiculTORES SEM a perícia, a partir de agora, como auxiliar TERRA. DiREiTOS E iNTERESSES QUE lHES sÃo do assistente técnico do Incra. Intimem- pRÓpRios, EXTENSivos A TERCEiROS, NO se, inclusive, o Perito e os assistentes pROCESSO dE REfORMA AGRÁRiA técnicos da admissão do assistente Algumas questões processuais ligadas à técnico do Incra. Intimados os reque- presença de grupos humanos, não neces- rentes, representantes do MST, deverão eles comunicar tal admissão ao enge- sariamente pessoas jUrídicas, e à sua repre- nheiro-agrônomo que indicaram, que sentação perante Poderes Públicos, inclusive em poderá, se quiser, acompanhar os Juízo, têm aparecido, com freqüência, nas ações trabalhos do Perito e dos assistentes reivindicatórias e possessórias de grande técnicos, na qualidade de auxiliar do número de réus, como ocorre, freqüentemente, Assistente Técnico do Incra. Santa quando em disputa de latifúndios rurais ou Maria, 16 de outubro de 1995. Hermes urbanos. Siedler da Conceição Junior. Juiz O MST, sabidamente, não tem perso- Federal". nalidade jurídica. Isso não tem impedido muitas É coisa para se estranhar, pois, que o liminares e sentenças deferidas contra grupos protagonismo das políticas públicas de reforma de agricultores sem terra, de serem executadas agrária ainda seja visto sob tanta reserva, contra os "integrantes do MST", sem outra quando ele é reivindicado pelos principais preocupação maior com a identidade, o número interessados nela, ou seja, os próprios "agricul- ou a qualificação dos RR., salvo para enquadrar tores sem terra. criminalmente· algumas das suas lideranças, Essa questão, a rigor, nem é nova; que o conforme o caso. testemunhem os interesses difusos, para se Se ao Movimento referido se atribui lembrar uma analogia mais à mão. Pontes de legitimidade passiva, há que se explicar a razão Miranda já chamava a atenção para essa da resistência que ele sofre quando, em vez de possibilidade3• réu, é autor. 3 Grupo de pessoas não-organizado de modo a Um exemplo bastante expressivo de solução compor pessoa jurídica, pode ter interesses. O desse problema - e a favor da legitimidade sistema jurídico seria falho se não visse esse fato da ativa do MST - ocorreu na Justiça Federal em vida social e, pelo menos em espécies mais Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em ação relevantes, não tutelasse esses interesses (e.g" art. cautelar de produção antecipada de prova 1669, verbis "em favor dos pobres", "estabele- 194 Revista de Informação Legislativa A indetenninação '1urídica" (!) do sujeito, Entre os interesses grupais (associativos, portanto, parece não poder se constituir em comunitários), o Dr. Batalha localiza aqueles obstáculo igual ao de se proibir o acesso à que se enquadrariam nos incisos XVII a XXII Justiça de direitos e interesses que, compro- do art. 5º da CF, em moldura na qual são vadamente, não são adjudicáveis prima facie a visíveis as possibilidades de se integrarem tanto pessoas detenninadas e, como o ensinamento pessoas jurídicas como até, na expressão do supra dá a entender, não é somente sobre próprio autor, "grupos inorganizados"..., o que interesses difusos que tal legitimidade pode ser parece abrir espaço para um tipo mais próximo reconhecida. de classe, como, por exemplo, "pobre'~ ou Wilson de Souza Campos Batalha, rio seu "excluído". estudo sobre Direito processual das coleti- É precisamente nesse contexto que os Desca vidades e dos grupos (1991), classifica os aqui estudados parecem encontrar a sua melhor interesses passíveis de proteção pela via' fonte, não só de compreensão,como de judicial, em vários tipos que, sem dúvid~; legitimidade. ,Tais direitos derivam de situações comportam indeterminação, mesmo que humanas limites, para as quàis a lei, por mais provisória, dos sujeitos4 • Lembrando lição de sábia e adequadamente baixada, nunca encontra Francesco Carnelutti, o mesmo autor situa a resposta plenamente satisfatória. Estamos nos conjuntura sob a qual pode-se dar a instrução referindo aos estados de necessidade, sejam os proéessual dos conflitos submetidos a juíz05• individuais, sejam os sociais. Uma necessidade vital não satisfeita, do tipo cimentos de caridade", "de assistência pública"). A atribuição de direitos ora é a todos referidos, ora a pão e casa, por exemplo - coisa tão tragica- alguns entre eles; de modo que, algumas vezes, há mente comum neste fmal de milênio -, não apenas elipse ("estabelecimentos de caridade", em questiona apenas o ordenamento jurídico. Ela vez de "os estabelecimentos ue caridade da vila tal") põe em causa o Estado, a sociedade civil, a ou outra indeterminação transitória (disposição economia, o mercado,a cultura, a "realidade" testamentária a favor de pessoa incerta cuja de se viver num espaço e entre pessoas identidade fique por se averiguar, art. 1667,11; legado civilizadas. Ela nega, por,si só, a dignidade da altemativo. (Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 168) pessoa humana e, conseqüentemente; a' sua 4 O direito de ação é vinculado ao interesse e o interesse comporta a seguinte classificação genérica: própria condição de cidadania. - interesses individuais, interesses gerais A esse propósito, Maria José Afton Roig, (politicos, sociais, econômicos), - interesses cole- em artigo de doutrina que integra a coletânea tivos (sindicais), - interesses grupais (associativos, de estudos reunida por Jesús Ballesteros sob o comunitários), - interesses populares (pertinentes a titulo Derechos Humanos (Madri : Tecnos, cidadãos, pessoas físicas), - interesses difusos 1992), insiste em advertir sobre a pouca atenção protegidos por ações civis públicas. (São Paulo : que se dá ao truísmo de que o reconhecimento LTR, 1991. p. 38). da dignidade humana não ganha nenhum 5 ••• pode ocorrer que a pretensão ou a resistência sentido sem a satisfação efetiva das suas afetem, ao invés de um único conflito de interesses, a uma série indeterminada de conflitos semelhantes; necessidades vitais 6 • nesse caso, fala-se em lide coletiva ou lide de < 6 reconhecer, exercer e proteger um direito básico categoria. O quid novi da lide coletiva consiste, significa, em última instância, que se pretende portanto, na relação da pretensão ou da resistência satisfazer uma série de necessidades, entendidas com uma categoria de conflitos, ao invés de um como exigências que se considerem ineludíveis para conflito singular. Os conflitos de categoria sempre o desenvolvimento de uma "vida digna"; ,- Nãó existiram; não obstante, para que esses conflitos se elegemos nossas necessidades e elas não são' il1go transformem de potenciais em atuais e adquiram sobreo que possamos ter uma atuação positiva ou aspecto de lide é necessário que a categoria revista não; - Não temos .porque justificar nossas neces~ uma certa organização, de maneira que uma ou mais sidades com razões, para dizer que uma necessidade pessoas administrem seus interesses e mantenham existe - Elas nos colocam em relação direta com ~ assim uma pretensão para tutela daqueles, ou noção de dano, privação ou prejuízo grave. para a oponham uma resistência. A lide coletiva é um pessoa - ... 0 prejuízo, ou grave,detrimento manter- fenômeno que se manifestou e se desenvolveu se-á exatamente nas mesmas condições, salvo o caso quando, desviando-se os conflitos dos indivíduos às de a necessidade ser satisfeita, cumprida ou categorias, primeiramente no campo das relações realizada, pois não há nenhuma possibilidade de trabalho, começou o movimento de organização alternativa para se ,sair dela - ... assim, (na destas e se realizaram atos de pretensão ou de necessidade) não se .trata de contratempos, resistência dirigidos à tutela de toda uma categoria problemas ou prejuízos passageiros, mas sim de uma de interesses". (Ibidem, p. 39-40). "degeneração" permanente da qualidade' de vida Brasília a. 34 n. 136out./dez. 1997 195 Pela relevância dessa análise, a busca da pela violàção dos Desca? Não existe nenhum legitimidade, 'capaz de fundamentar as "interesse difuso" que, em vez de ser protegido garantias de eficácia para as normas jurídicas como autor, possa ser perseguido como réu? que pretendam sustentar os direitos implicados Por mais estranhas que possam parecer na satisfação das necessidades vitais, exige algumas dessas questões, elas estão por trás de tratamento interdisciplinar ou, para pesar dos muitas decisões administrativas e de muitas positivis~os estritamente formais, meta- sentenças que somente não reconhecem como jurídico. E o que parece concluir a mesma adjudicáveis determinados direitos porque a autora': responsabilidade que eles geram está tão Para a reivindicação imperátiva de um escondida no tecido social e é tão trabalhoso o direito desse tipo, Roig aponta dois passos que, esforço indispensável à sua imputação, que a a rigor, nem necessitam dejustificação; sflgundo saída mais à mão é a do seu "não-conheci'" ela própria, oprimeiro, que a existência de uma mento". _ . necessidade implica diretamente:' a sua Em todo o caso, mesmo sob visível redu- satisfação e o segundo, que essa satisfação cionismo, há que se aproximar a lente constitui um direito. (...) Pode-se caracterizar compreensiva de exigibilidade dos Desca, em uma necessidade como aquilo que, por matéria de reforma agrária, daqueles espaços definição, "tem um direito à sua satisfação" jurídicos de difícil demarcação nos quais- os (. ..) e os direitos humanos como exigências direitos humanos em geral perdem densidade precisas para a satisfação de necessidades. reivindicatória, exatamente por uma cultura (idem, p. 109). interpretativa do direito positivo, pouco . Como se observa, a exigência (?) da interessada em aprofundar conceitos e funda- personalidade jurídica para um determinado mentos que, a partir dele próprio, devem se grupo de pessoas, portadoras de direitos e, ou desdobrar. interesses, protegidos pela CF no Capítulo Dos Não faltam advertências a respeito, algumas direitos e deveres individuais e coletivos e por estreitando, outras alargando a rede.de ela previstos como objetivos da própria abrangência do ordenamento jurídico positivo, República ou de políticas públicas específicas, em relação aos direitos humanos. Mesmo que previstos também em convenções ou pactos as dificuldades,' aí, sejartl grandes, até mesmo internacionais assinados pelo Brasil, não pode no que conceme àqueles que já obtiveram mais barrar ó acesso coletivo' de tais pessoas ingresso' em capítulos constitucionais do tipo aos Poderes Públicos, aí incluído o Judiciário. "direitos e garantias individuais" e "direitos sociais", como testemunham alguns dos dispositivos constantes dos artigos 5º e 6~' da 2. LÉqiTiMidAdE pAssivA. A RESPONSAbilidAdE Constituição Federal, elas têm de ser enfren- IpElA iMplEM'ENTAÇÃO dE políTicAS públicAs tadas. PROTETiVAS dos DESCA, do Tipo REfORMA Bobbio, aqui já lembrado, reluta até em nominar como "direitos" os ainda "não AGRÁRiA, É SOMENTE do ESTAdo? constitucionalizados", entre, os quais se Quem deve respeito, efetivamente, aos encontram muitos dos .Desca voltados pw:a'o direitos humanos, os Desca entre eles? contra futuro (preservação dos direitos de gerações que quem tais direitos podem ser "cobrados"? Existe estão por vir, onde a proteção do meio ambiente, mesmo uma completa impossibilidade de o por exemplo" está longe de consultar apenas os chamado livre mercado ser responsabilizado interesses imediatos de hoje). Ele prefere a humana que há de manter-se até que se obtenha uma palavra "exigências"8, expressão que Maria J. satisfação(p. 102-103, tradução livre, nossa). A. Roig também usa, como já se viu acima, 7 Quando confrontamos os direitos com a embora em contexto no qual o poder jurídico realidade (00') põe-se em relevo muitas variáveis que, do sujeito ao qual ela se refere seja bem maior. desde logo, não são somente éticas, mas também econômicas, polfticas, culturais ou sociais. Essa 8 "Pode-se sugerir aos que não querem renunciar
perspectiva relacional ou contextualizada exige ao uso da palavra "direito" mesmo no caso de
tomar como ponto de referência, para compreender exigências naturalmente motivadaS de uma proteção o desenvolvimento desses direitos e sua razão de futura, que distingam entre direito em sentido fraco ser, a tríplice esfera na qual eles têm lugar: ajurídica, é um direito em sentido forte, sempre que não a moral e a econômico-polftica; seu fundamento, quiserem atribuir a palavra "direito" somente às portanto, somente pode situar-se no vigamento exigências ou pretensões efetivamente protegidas" desses três âmbitos. (Ibidem, p. 106). (op. cit., p. 79). ·196 Revista de Informação Legislativa Jean Carbonnier, depois de distinguir os nabilidade característica de tais direitos, sua motivos históricos das diferenças entre o direito defesa, incluSive, perante o próprio titular deles. de propriedade e o direito à propriedade, É por aí, também, que parece transitar a sublinha o fato de a última expressão ter sido opinião de José Joaquim Gomes Canotilho, usada, exatamente, pela Declaração Universal quando ele aborda o problema da eficácia dos dos Direitos do Homem, '0 que permite direitos fundamentais "e direitos análogos", entender-se como sendo o acesso a um tal segundo a sua própria- expressão, não somente direito aquilo que o constituiria como direito quando' eles estejam implicados em relações humano. A conclusão que ele tira daí, l'orém, "vertiCais" - cidadão frente ao Estado - mas no que se refere à exigibilidade de um tal tambéni em relações. "horizontais", de indi- direito, não deixã"de ser irônica9 • víduo-indivíduo; nessa última hipótese São testemunhos da complexidade inerente vinculando entidades privadas. (Direito ao exercício de direitos que, queira-se ou não, Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. p. somente alcançam eficácia num ambiente 595 e segs.). ,. . "adjetivado" por outros direitos - o assim Pregando "a necessidade de soluções chamado livre mercado. diferenciadas", conforme a causa e o caso, A obviedade de que nem de reforma agrária; adverte o autor existirem três respostas todavia, como urgência imposta pela mais fundamentais para bem se interpretar' o elementar justiça social, estar-se-ia tratando, chamado "efeito externo" dos direitos funda- hoje, se não fossem os efeitos desse tipo oneroso mentais. A primeira' desconhece qualquer de distribuição do espaço rural, serve quando eficácia externa dos direitos, liberdades e menos de advertência para o fato de que um tal garantias fundamentais, em relação a entidades questionamento precisa ser levado adiante, sob privadas; a segunda, reconhece eficácia externa pena de se prosseguir considerando como mediataem relação a terceiros, de que dá fatalidade o perverso princípio de que o exemplo a atuação legiferante dos órgãos verdadeiro "governo" do Estado e das leis é o estatais; a terceira, que reconhece eficácia de reparar os excessos e estragos que a tal externa imediata em relação às mesmas _"liberdade" desencadeia, seja contra o direito, entidades privadas. " seja contra a economia, seja contra a sociedade, Separando os efeitos 'desses-direitos, , seja contra o.ambiente. , liberdades e garantias,por grupos, 'segundoa Antonio-Luiz Martinez Pujalte, na mesma sua possível capacidade vinculativa "hori- . coletânea de estudos sobre direitos humanos, zontal", Canotilho designa o quinto grupo como acima referida, faz expressa menção aos aquele que compreende "poderes privados" modernos esforços que se estão desenvolvendo frente àquela eficácia Jl •• <o no sentido de se operacionalizar a defesa desses direitos; não somente "frente ao Estado", mas individual do sujeito dos mesmos (p. 86, tradução também "frente ao mercado"lo e, pela inalie- livre, nossa). 11 As categorias "poder privado" ou "poder 9 A Declaração Universal dos Direitos do social" não são juridicamente assimiláveis a Homem afirma, em seu artigo 17, que toda a pessoa "poderes públicos" e não oferecem contornos tem direito à propriedade. Essa afirmação tem jurídicos para se transformarem em categorias provocado sorrisos e se tem censurado a ONU pelo operacionais no âmbito da problemática da fato de ter reconhecido um direito de crédito sem esta- Drittwirkung (esta palavra, segundo o autor, refe- belecer um devedor que o satisfaça (Derecho flexible. re-se à eficácia externa ou eficácia dos direitos Madri: Tecnos, 1974. p. 244, tradução livre, nossa). perante terceiros) .. Todavia: 1º) os direitos, 10 Nos últimos anos, está adquirindo um relevo liberdades e 'garantias não protegem apenas os particular na bibliografia sobre os direitos humanos cidadãos contra os poderes públicos; as ordens a ênfase na inalienabilidade, como uma das jurídicas da 'liberdade de profissão e da liberdade características definitórias de tais direitos. Inclusive, de empres'a, por exemplo, podem também ser sublinhada por Jesús Ballesteros, para quem "o perturbadas por forças ou domínios sociais (Bachof); caráter inalienável dos direitos seria precisamente 2º) a!função de proteção objetiva dos direitos, a nota especifica do modo de pensar post moderno, liberdades e garantias não pode deixar de implicar a intimamente derivado do paradigma da "qualidade eficácia desses direitos no âmbito de relações privadas de vida". Com efeito, agora do que se trata não é caracterizadas pela situaçãodesigualitária das partes; tanto de defender os direitos frente ao Estado, como 3º) conseqüentemente, as leis e os tribunais devem no caso da "liberdade dosmodemos", ou direitos da estabelecer normas (de conduta e de decisão) que primeira geração, mas sim de defendê-los frente ao cumpram a função de proteção dos direitos, liberdades mercado, e inclusive frente a própria vontade e garantias (p. 599, grifos do autor). Brasfliaa. 34n. 136outJdez. 1997 197 Mais adiante; o mesmo autor, examinando No passado, em pleno desenvolvimento de os direitos subjetivos públic~s e privados, e um direito predominantemente privado, não respondendo à pergunta sobre se eles "têm teria sido essa mesma dinâmica comparativa a eficácia nas relações civis", não duvida em inspiradora dos efeitos jurídicos que se responder que sim l2 • No fundo de toda essa retiraram, por exemplo, da chamada "responsa- questão, como se observa, o que volta a se bilidade sem culpa"? Retome-se à lição de colocar em causa, como tema recorrente em Pontes de Miranda l4 • tomo da exigibilidade dos Desca, é a força do Se isso valia para possíveis gozos· e seu garantismo jurídico-social, s~a eficácia exercícios do· direito de propriedade, não frente aos poderes determinados ou ind,eter- necessariamente derivados da vontade do minados que os constrangem ou violam, sejam proprietário, hoje a validade dessa configuração eles entidades privadas, sejam públicas. i jurídica se-desloca para os novos (e graves) Trata-se, em última análise, de toda a efeitos que tais poderes podem provocar por complicada questão inerente à medida de vontade do proprietário. compatibilidade que deve existir entre o A liberdade de iniciativa econômica, por exercício das liberdades e as responsabilidades exemplo, fundada nessa propriedade privada e à elas inerentes. Onde se encontra a linha de no livre-mercado, encontra naqueles subsídios interseção, para usar uma imagem cara a Pontes outros pilares de sustentação para a função de Miranda, entre liberdades de diferente social que deve cumprir. A relação do proprie- origem e natureza, que titulam diferentes tário com o seu bem, especialmente quando ele sujeitos de direito, onde começa a lesão à é 'de produção, como acontece com a empresa, liberdade alheia, o abuso da própria, a injustiça, não acha mais base jurídica legitimadora, no enfim; onde vai se estabelecer a garantia de momento em que, de domínio da coisa, passa a que a liberdade não será gozada sem responsa- se constituir em domínio - mesmo oculto - bilidade e de que o seu gozo não servirá de sobre outras pessoas. . pretexto para violar a liberdade alheia. . Há de se objetar que uma tal linha de Em posição um tanto diferente da de raciocínio está direcionada para uma crftic,a' à Canotilho, Jorge Miranda não chega a afirmar propriedade privada quase coincidente à da que os direitos, liberdades e garantias são, hoje, negação do direito adquirido. • iguais a direitos subjetivos, mas contribui, Independentemente de todo <> esforço significativamente, para distinguir-lhes os moderno que se está desenvolvendo em tomo conceitos, e os seus efeitos, em oportuna do direito, adquirido - do qual a afirmação comparação com ,os direitos sociais (Direito jurisprudencial de que ele não vale, por , Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993Y~, direitos sociais são direitos de libertação da r 12 Em primeiro lugar, os direitos, liberdades e necessidade (o autor lembra Roosevelt) e, ao mesmo garantias são hoje direitos subjetivos, indepen· tempo, direitos de promoção. O conteúdo irredutível dentemente do caráter. público ou privado; em daqueles é a limitação jurídica do poder (lembrança segundo lugar, não se deduzem, com base em de Jellinek), o·destes é a organização da solida- concepções imperativísticas, das normas legais. Por riedade. Liberdade e libertação não se separam, pois; isso nada impede que eles valham como direitos entrecruzam-se e completam-se; a unidade da pessoa subjetivos públicos na sua aplicação ao direito civil, não pode ser truncada por causa de direitos desti· se esta caracterização lhes trouxer uma maior nados,a servi"la e também a unidade do sistema dimensão prática jurídico (lembrança de Georges Vlachos) impõe a . Desde logo, há de fundarem o direito de acesso harmonização constante dos direitos da mesma aos tribunais para defesa desses mesmos direitos e pessoa e de todas as pessoas (p. 98-99, grifos do há de exigirem a aplicação dos princípios consti- autor). ,. tucionais materiais, como exemplo, os princípios da 14 "A responsabilidade sem culpa aparece em exigibilidade e da proporcionalidade. Na falta de espécies que se inspiram nos seguintes princípios instrumentos jurídicos concretizadores adequados, (secundários): a) o princípio do interesse mais podem transferir-se para aqui os instrumentos do relevante, pelo qualse permite a invasão da esfera direito civil... (p. 600). ' jurídica de outro, fundada em razão de interesse, 13 Os direitos, liberdades e garantias são direitos público ou privado, de mais relevância, - o que de libertação do poder e, simultaneamente, direitos supõe, aqui como alhures, escala de interesses; b) o à proteção do poder contra outros poderes (como se princípio do perigo correlativo ao interesse, que é o vê, quanto mais não seja, nas garantias de da responsabilidade da atividade conforme o direito, intervenção do juiz no domínio dos atentados à mas em si mesma provável causadora de danos;" liberdade flsica por autoridades administrativas). Os (Idem, v. 2,p. 386-387). . 198 Revista de Informação Legislativa exemplo, contra a Constituição, pelo fato de Como se observa, tanto o Estado, quanto O esta emanar do poder soberano do povo, é um chamado livre-mercado, quanto a sociedade significativo exemplo - parece oportuno' civil, quanto'os próprios titulares dos Desca (!) lembrar-se em que medida o próprio conteúdo são deles devedores e; por eles, responsáveis desse direito subjetivo, como "extensão de (direitos-deveres). Se a forma de uma tal poder", especialmente quando ele envolve "legitimação passiva" encontra dificuldade de imóveis, tem sido redimensionado. Franz ser perseguida, perante o Poder Público, o Wieacker, por exemplo, criticado em nota ao Judiciário especialmente, isso não constitui pé de página do famoso Tratado de direi~o civil novidade, pois todos os dir-eitos humanos alemão (Enneccerus; Kipp e Wolff, traduzido sempre encontraram embaraço ao seu reconhe- para o espanhol, Tomo m, De,:echo de Cosas, cimento, exatamente, no fato de, com li mais Barcelona, Bosch, p. 327) chega a afirmar qu~, respeitosa vênia, o chamado devido processo na propriedade imobiliária, não há mais do que legal ainda funcionar com muito maior eficácia, "uma atribuição de administração fiduciáriç," "para coar o mosquito do que para barrar o (tradução livre e grifos nossos). caminho do elefante". Que o testemunhe o custo , A urgência'de um tal redimensionamento histórico de algumas' construções jurídicas não é feita somente de fora para dentro, como penosamente construídas por doutrina e seria de 'se esperar, por aqueles que estão jurisprudência, do tipo sociedade de fato, pleiteando o acesso (eficácia) ao direito humano responsabilidade civil objetiva, lesão nos de propriedade. Surpreende que, em 'época de contratos e outras;' . " globalização dos mercados, com todos os reconhecidos efeitos anti-sociais que, ela comporta~"Antonio Lattuada, em coletânea de ~'. AbRANqÊNCiA do obJETO, A NUNCA dEMAis estudos sob o sugestivo, título de Forat{o lEMbRAdA difERENÇA ENTRE 'o VAlOR dE uso mercado não há salvação? (Petrópolis: Vozes, (TERRA dE'TRAbÁlHO) E'O VAlOR dE TROCA 1997), noticie iniciativas empresariais' que visam, não só garantir nova configuração' • (TERRA dE ExploRAçÃo) jurídica ao exercício 'e gozo de um tal direito, Pode-se considerar o latifúndio rural como como, até, nova configuração ética1 5• • "provável causadór de dano", em: contexto no qual Pontes de Miranda "colocou a respon- 15 Em assonância com a palavra inglesa' sabilidade sem culpa? Eis-nos retomando aos stockholder, que indica o acionista ou detentor de, uma cota do capital de uma empresa, foi com efeito com'entários iniciaisdeste estudo, a respeito do cunhado o termo stackholder, para designar toda a tipo de relações jurídicas que nascemdo imóvel pessoa cujos interesses ou direitos são de certomodo pelo só fato de ele se: <;olÍstitúir em bem de atingidos pelas atividades de uma empresà~' produção, situado nó meio'rurál.' Obviamente o recurso ao termo stackholder não se Sujeito de direito, objeto dó direito, uso, esgota em um artificio linguistico, mas tem como gozo, disposição,' exélusãó da ingerência de propósito superar a concepção privatista da empresa terceiros, tudo isso ganha, aqui, contornos que que privilegia o interesse do proprietârio - isto é, a não aparecem no êxercfcio de outros (!) direitos maximização dos lucros - e promover, ao invés, uma representação que dê adequado reconhecimento ,ao de propriedade. papel, com os correspondentes direitos e deveres,' , Se a resposta àquele questionamento, assim, dos inúmeros sujeitos que deste ou daquele modo ficar circunscrita ao espaço puro e' simples, "tomam parte" no funcionamento de uma empresa oéupado pelo pro'prietário, ou tão-somente econômica. Neste sentido, São stackholders da tituladop'or ele, parece que as medidas do "grau empresa, além dos acionistas, também os dirigentes de utilização da terra" e do "grau de eficiência ou managers nos diversos niveis, os trabalhadores na exploração" são suficientes para afastar subordinados à empresa, os clientes ou consU- midores, os fornecedores, as outras empresas' qualquer cogitação de ameaça ou mesmo concorrentes, a comunidade local em cujo território violação do direito alheio. atua a empresa, toda a sociedade civil. A utilização . Nãó é 'aqui a hora nem o lugar de se do conceito de stackholder reflete portanto unia visão' perquirir, contudo, se GUT e GEE são índices mais abrangente da empresa, representando-a como' hábei{para medir a função social da proprie- ampla rede de relações muitas vezes também dade. . • conflitivas: a justa composição dos conflitos exige' que nenhum legitimo interesse seja arbitrariamente .,Importa considerar, todavia, que as criticas ignorado ou menosprezado, e todavia deixe espaçó a registros públicos e outros recursos de para ordens' de prioridade, conforme o' caso; identificação dos imóveis rurais são muito diferentes (p. 113). antigas, exatamente pelo fato de eles serem Brasflia a. 34 n. 136out./dez. 1997 199 pouco ou nada transparentes no que toca ao voltados, predominantemente, para o' Direito uso que dos bens registrados se faz. Uso, ainda, Privado, perdem muito, senão toda a força da mais o uso "produtivo" exigido pela própria, sua vigência. letra constitucional, é coisa que não se confere, Se o sentido do conceito de '.'público'~ pode senão, por verificação empírica e, por maiores, passar, sem maior exame, como coisa própria que sejam os esforços do Incra, a respeito; num do Estado, a sua referência obrigatória - que o país áas dimensões do .Brasil, há de ser quase diga o primeiro artigo da Constituição Federal-' impossível, pelo menos com os recursos atuais, não pode esquecer os direitos do povo todo que o referido enté público consiga fiscalizar, (público no sentido de "comum") em função efetivamente, a correspondência de que os do qual esse mesmo Estado existe. registros relacionados com os espaços rurais" Muito antes das disposições da CF de 1988,. informados pelos respectivos proprietários ou assim, direta ou indiretamente relacionadas possuidores, guardam.com a realidade.. ' com .os Desca e a reforma agrária, já havia Luis de Lima Stefanini lamenta (A pr.oprie- sustentação jurídica mais que suficiente para a dade no Direito Agrário. São Paulo: Revista simples certidão do Registro de Imóveis, dos Tribunais, 1978), entre outras coisas vinculando um determinado espaço agrário a relacionadas com as limitações próprias dos um determinado nome, não servir mais como registros públicos, a importarite diferença entre prova inquestionável de domínio, pelo menos o título de propriedade agrária e os demais de' domínio que estivesse cumprindo com a títulos desse díreito, que não pode ser detectada obrigatória função social exigível pelas simples pela só visão dos tais registros1 6 • extensão e localização do bem. Esse título de propriedade "publicístico",na Nem é somente na doutrina jurídica que a' feliz expressão do autor, dá bem idéia das utilidade ou produtividade do imóvel rural são diferenças substanciais que existem entre o pregadas como de necessária investigação, a' direito de propriedade sobre bens de uso e o cada dúvida, ou a cada conflito que se estabeleça' direito de propriedade sobre os bens de em tomo do seu domínio ou posse. , produção, ao qual se dedica, praticamente, todo Além das inúmeras análises agronômicas" o direito agrário; embora ambos, pelas próprias geográficas e sociológicas já existentes a "leis" do mercado, possam se transformar em respeito nos documentos sociais da Igreja do mercadoria, os segundos, pelo só fato de Brasil, uma tal necessidade se refletiu, como é "frutificarem" (uma obviedade tão pouco sabido, na denominação, por eles preferida, de considerada no julgamento dos conflitos "terra de trabalho" e "terra de exploração",' agrários), reclamam disciplina que não permita justamente no sentido de' acentuar a predo- ao poder privado do seu titular ignorar ~s. minância ético-social da primeira sobre a direitos humanos, especialmente os Desca, que segunda, independentemente do título de convergem sobre os tais objetos, seja pela propriedade que registre uma ou outra. - própria força de exigibilidade deles, acima A questão ganha vulto bem maior, ao fmal resumida em 2, seja pelo cumprimento da deste milênio, na exata medida em que sobre a função social. ' ' . construção do espaço segundo Ô uso, hoje, o' Se um determinado título é publicístico, Estado parece ter perdido o controle, não salvo melhorjuízo, isso equivale dizer que, para somente para forças do mercado interno ele, as regras comuns sobre os efeitos jurídicos, conhecidas, mas até para forças do mercado do direito ao qual se refere e aquelas derivadas' externo desconhecidas, como nos adverte do seu registro, oriundas dos ordenamentos MiltonSantosl 7 • 16 "O proprietário de imóveis rurais é detentor 17 Nunca, como· nos tempos de agora,houve de um título jurídico sui generis, porquanto é um necessidade de mais e mais saber competente, graças 'titulo publicistico', e não se separa do caráter social à ignorância a que nos induzem os objetos que nos que o legitima (p. 101). O titular de um domínio cercam, e as ações de que não podemos escapar. É agrário é obrigado a coordená-lo para consecução dessa forma que na superflcie da terra, na crosta de, de gerar outros bens, que o grupo societário quer ter' um país, no domínio de uma região, nos limites de à disposição, de acordo com a potencialidade do solo um lugar - seja ele a cidade - reorganiza-se o espaço, de gerá-los. Não basta que se concretize a produção, recriam-se !lS regiões, redefinem~se as diferenciações mas faz-se necessário que o cultivo da terra produtiva regionais. E dessa maneira que se estabelecem novas se realize racionalmente e de 'forma hilrmônica com dinâmicas regionais, criando, sobretudo nos países os padrões aceitos, justos na produção e convenientes onde, as desigualdades sociais são grandes" aquelas na economia dos mercados': (p. 102)., áreas que são apenas regiões do fazer, do fazer sem 200 Revista de Informação Legislativa Entendendo o espaço "como um conjunto' Tais qúestõesnão interessam ao direito? Se indissociável de sistemas de objetos e de, o mundo do direito se encontra naquele que se sistemas de ações" (p. 90), o autor nos chama pode chamar de "respostas", parece impossível a atenção para a importância que, aí, representa, dizer que não, pois, na exata medida dos a informação. Numa época em que ela é direitos que estão implicados num processo de essencial para que a sociedade civil e o Estado reforma agrária, elas se 'inserem, justamente, conheçam, efetivamente" todos os fatores na responsabilidade que 'tem o discurso relacionados com o espaço físico da nossa competente interpretativo e aplicador do convivência, o seu próprio uso nos é imposto' ordenamento jurídico, de identificar tais foiças, sem que possamos saber de onde, ou por quem poderes ou energias que;' presentes nos direitos ele nos é imposto. que reclamam respeito frente àquela política Note-se em que medida os desafios do pública (aparentemente ou não, efetivamente discurso competente - o jurídico entre eles- ou não), favorecem ou desfavorecem a concreta está em discernir, diariamente, o grau 'de realização desta, e têm,; ou não, densidade persuasão e as direções transformadoras que jurídica suficiente para sustentar tal favor ou uma poderosa informação a serviço das forças tal resistência. do mercado interno e externo, paradoxalrilente O que parece' inadmissível é colocar todos baseadas, como a mídia' testemunha na os não~proprietários na condição de contri; publicidade das suas vantagens, 'podem buintes de um tributo privado, de causa e provocar no espaçol8. ' \ origem desconhecidas.' ' O problema maior, como se depreende de o reger. O fundamento etimológico da palavra região todas essas lições e é inerente ao próprio sistema é perdido, na medida em que há regiões que são econômico capitalista, se situa no fato de que, apenas regiões do fazer, sem nenhuma capacidade ao poder de exclusão "contra todos" do de comando. (Técnica, espaço, tempo: globalização proprietário, não corresponde, em nível de e meio técnico-científico organizacional. São Paulo : Hucitec, 1996. p. 92, grifo do autor). mercado, nenhum poder' da sociedade contra 18 Se, no passado, os nexos que definiam a ele. Se consideramos como eficaz uma norma organização regional eram nexos de energia,' cada que, descrevendo determinados pressupostos, vez mais, hoje, esses nexos são nexos de informação. verificados os quais, se seguem efetivamente Por isso, as segmentações e partições presentes do consequências nela 'previstas, não há como se espaço sugerem, pelo menos, que se admitam dois afastar a hipótese de que o movimento de recortes espaciais a que chamaríamos, proviso- mercado tem essa eficácia independente da lei, riamente, de horizontalidades e verticalidades. De coisa que não acontece quando os efeitos anti- um lado, há espaços contínuos, formados de pontos que se agregam sem descontinuidade, como na sociais desse movimento de~ani ser prevenidos definição tradicional de região. São as horizon- ou corrigidos. Ao poder de apropriação talidades. De outro lado, há pontos no espaço que, capitalista de acumular sem limites, em favor separados uns dos outros, asseguram o funcio- de um, contra o qual não existe qualquer tipo namento global da sociedade e da economia. São as de controle jurídico eficaz, não corresponde um vertiealidades. O espaço se compõe de uns e de poder prévio de proteção, em favor de todos, outros desses recortes, inseparavelmente. (... ) do mau uso ou do uso abusivo que o proprietário Horizontalidades são áreas produtivas: regiões poderá fazer da coisa adquirida. agrícolas, cidades, os conjuntos urbano-rurais. Verticalidades são os sistemas urbanos. (... ) A Jean Carbonnier, no mesmo trabalho aqui informação, sobretudo ao serviço das forças já referido, chama atenção para o fato: não há econômicas hegemônicas e ao serviço do Estado, é como se considerar abuso, por exemplo, o a grande regedora das ações definidoras das novas "poder de adquirir propriedade"19. realidades espaciais. Um incessante processo de Por aqui se observa em que extensão teria entropia desfaz e refaz contornos e conteúdos dos sido útil ao país a inclusão, no texto consti- subespaços, a partir das forças dominantes. Nas tucional de 1988, da famosa emenda popular áreas de agricultura moderna, as cidades são o ponto de interseção entre verticalidades e horizontalidades. de reforma agrária, proposta por movimentos As verticalidades são vetores de uma racionalidade tomar-se o [oeus de um novo tipo de planejamento, superior e de seu discurso pragmático, criando um que desafie as verticalidades que as sociedades locais cotidiano obediente. As horizontalidades são tanto não podem comandar e imponham contrafinalidades, o lugar da finalidade imposta de fora, de longe e de isto é, "irracionalidades"do ponto de vista da cima, quanto a contrafinalidade, localmente gerada racionalidade que lhes é sobreposta. (Ibidem, p. 94). (... ) Nesse sentido, as cidades regionais podem 19 op. cit., p. 231. Brasflia a. 34 n. 136out.Jdez. 1997 201 sociais da mais diversificada base e ideologia, Dr. Roger Raupp Rios, em Desapropriação e com mais de um milhão de assinaturas, que, reforma agrária (Porto Alegre : Livraria do ao lado do módulo rural já vigente (parcela- Advogado, 1997. p. 49) para servir de remate mento da terra em medida não comprometedora a tudo quanto acima ficou dito, com a vênia de do mínimo de sua exploração, suficiente para quantos entendem o contexto sócio-político da a família que, dele, retira o seu sustento), previa lei, como coisa estranha ao direito: Quando se um "módulo máximo", acima do qual ninguém diz que alguma ação pode ser boa mas é podia concentrar propriedade. politicamente inviável, entenda-se que esse é A função social da propriedade, a~sim, antes o modelo comum para proteger um interesse de preventiva, tem sido corretiva e, diga-se de socialmente adverso. passagem, com insignificante eficácia. Não é de admirar, portanto, que os D~sca, implicados na política de reforma agrária, estejam tendo a sua eficácia muito ~elhor BibliOGRAfiA patrocinada pelos seus próprios titulares, do que pela ação do Estado. BALLESTEROS, Jesús et aI. Derechos humanos. Madri: Tecnos, 1992. Talvez aqui se situe uma das principais BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito razões jurídicas (!) de sustentação das "contra- processual das coletividades e dos grupos. São fmalidades" e "irracionalidades" detectadas por Paulo: Ltr, 1991. Milton Santos, capazes de se introduzirem nos BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de próprios planejamentos públicos (I) que, senão Janeiro: Campus, 1992. neutralizam, pelo menos diminuem o poder CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito daquelas "racionalidades sobrepostas", cuja Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. convicção de estarem presentes, efetivamente, CARBONNIER, Jean. Derecho flexible. Madri : na lei, é gerada muito mais pelo caldo de cultura Tecnos, 1974. ideológico que impõem (informação!) do que, FACHlN, Luiz Edson, SILVA, José Gomes da. propriamente, pela hermenêutica da lei e do Comentários à Constituição Federal. Rio de direito. Janeiro: Ed. Trabalhistas, 1991. MIETH, Dietmar et aI. Fora do mercado não há Da "contra-informação" à essa propalada salvação? Petrópolis: Vozes, 1997. racionalidade, exercício retórico de que dá MIRANDA, Jorge. Direito Constitucional. Coim- singelo exemplo o Dr. Stefanini, com a bra: Almedina, 1993. inquestionável demonstração das outras lógicas MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. que estão presentes na própria titulação do Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. direito de propriedade agrária, depende o RIOS, Roger Raupp et alo Desapropriação e reforma reconhecimento da eficácia concreta dos Desca. agrária. Porto Alegre : Livraria do Advogado, Sem necessidade de mexer em uma vírgula do d997. direito positivo, aquele jurista prova que a SANTOS, Milton. Técnica. espaço. tempo: globa. sensibilidade ética e técnica do intérprete faz lização e meio técnico-científico informacional. mais pela justa aplicação da lei do que pela São Paulo: Hucitec, 1996. adesão acrftica a postulados sem outra STEFANINI, Luis Lima. A propriedade no Direito Agrário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. consistência do que a de terem, em passado TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Proteção remoto, adquirido foro de certeza e segurança internacional dos direitos humanos. São Paulo : perpétuos. Saraiva, 1991. É o que propomos à consideração dos mais WIEACKER, Franz. In: WOLFF, Martinet aI. capazes, não sem antes buscar o oportuno Tratado de Derecho Civil. Barcelona: Bosch, socorro d~ John K. Galbraith, lembrado pelo 1971. v. 3.
Da ressignificação do instituto do parcelamento do solo rural a partir da constitucionalização prospectiva do Direito Agrário: uma análise no município de Inhumas – GO de 2007 a 2017