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A tutela constitucional da propriedade

intelectual na Carta de 1988


Avanço indiscutível

Maristela Basso

A Constituição Federal brasileira de


1988 consagra, nos incisos XXVII, XXVIII e
XXIX do art. 5o, a propriedade intelectual
entre o rol das garantias fundamentais do
homem, no contexto da inviolabilidade da
propriedade, como cláusula imodificável.
Sua interpretação sistemática e finalística
destina-se a todos os indivíduos, brasileiros
ou estrangeiros, residentes, ou não, que
se encontrem no território nacional, sem
distinção de qualquer natureza. Pelo con-
texto constitucional brasileiro, os direitos
intelectuais de conteúdo essencialmente in-
dustrial são objetos de tutela própria e não
se confundem com a regulação patrimonial
de cunho econômico do direito do autor.
Muito embora a definição da natureza
jurídica do direito do autor seja trabalhosa,
a perdurarem focos de resistências dou-
trinárias que insistem no já ultrapassado
modelo histórico dicotômico, e que divide
a propriedade imaterial em direito do au-
tor (e os que lhe são conexos) e direito da
propriedade industrial, fragilizando sua
definição e classificação, o inciso XXVII
do art. 5o pacifica qualquer debate. Nele se
consagra o direito do autor entre as garan-
tias fundamentais, no contexto da inviola-
bilidade da propriedade. É, portanto, a par
das infindáveis discussões que se possam
travar em doutrina sobre sua natureza
jurídica, uma espécie de propriedade com
matriz constitucional.

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Vale lembrar que a Constituição Federal Daí, concordamos com a posição de
(inciso XXII do art. 5o) garante o direito de Guilherme Carboni (2006, p. 145) ao susten-
propriedade, de forma geral, como con- tar que “o constituinte falhou ao não fazer
teúdo mínimo essencial. Por outro lado, referência expressa ao direito de paterni-
distingue claramente a propriedade urbana dade – o único direito moral do autor por
(art. 182, § 2o), a propriedade rural (art. 5o, excelência – no rol dos direitos e garantias
XXVI, e arts. 184, 185 e 186), a propriedade fundamentais do art. 5o da Carta Magna”. E
de recursos minerais (art. 176), a proprie- vai além, asseverando que apenas o direito
dade de empresa jornalística e de radiodi- de paternidade do autor que mereceria a
fusão sonora e de sons e imagens (art. 222), classificação como direito fundamental,
cada espécie com seus regimes jurídicos e não o direito patrimonial do autor que,
próprios. Ainda, institui regras especiais para ele, “são reflexos de movimentos de
para outras manifestações da propriedade. política econômica e cultural”. E vai além,
Ademais, entre as propriedades referidas ao destacar que, apesar da dimensão cons-
como garantias fundamentais, encontram- titucional social e solidária que limita o
se: a propriedade autoral, a propriedade de direito de propriedade (notadamente no
inventos e de marcas e patentes e a propriedade inciso XXIII do art. 5o, que sujeita a pro-
bem de família. priedade, em geral, à sua função social),
Assim, verifica-se que o conceito cons- esse fenômeno não ocorreu com a mesma
titucional de propriedade é amplo, e força no âmbito do direito do autor. Não
compreende o complexo de direitos patri- há nesse inciso uma referência expressa
moniais que podem ser economicamente à função que o direito do autor deveria
traduzíveis; não se restringe à propriedade desempenhar na sociedade. Mas, por não
material. Por isso, inclui-se no sentido se realizar o direito do autor afastado da
constitucional de propriedade o contexto sociedade e levando-se em conta os demais
patrimonial do direito do autor e os que preceitos expressos e implícitos dessa CF,
lhe são conexos. Portanto, entende-se que o pode-se afirmar, sem medo de errar, que o
direito do autor é uma modalidade especial direito do autor também deve ser exercido
de direito de propriedade, que represen- nos limites de sua função social.
ta relação jurídica de natureza pessoal, No inciso XXIX do art. 5o, o objetivo
patrimonial e também obrigacional – sui do legislador constituinte é a Propriedade
generis. Industrial, ou seja, os direitos do inventor,
Ao fazer menção “ao direito exclusivo ou do autor de criações com resultados eco-
de utilização, publicação ou reprodução”, nômicos e aplicabilidades industriais. Nada
e ao fato de ser “transmissível aos herdei- mais justo é assegurar ao inventor e autor
ros pelo tempo que a lei fixar”, estabelece de criações industriais privilégio exclusivo
apenas a proteção ao conteúdo patrimonial de exploração econômica e industrial sobre
do direito autoral. Ou seja, cabe ao autor, seus inventos e progressos à técnica, no
exclusivamente, o direito de utilizar, fruir decorrer de determinado lapso de tempo. É
e dispor da obra literária, artística ou cien- uma recompensa para incentivar o espírito
tífica e, ainda, autorizar o uso e transmitir inventivo, visando ao bem do progresso in-
por sucessão os direitos sobre a criação. É dustrial, ao desenvolvimento tecnológico-
esse aspecto patrimonial do direito do autor científico e econômico do país, fomentando
que a Constituição protege como direito a pesquisa e os esforços voltados para o
fundamental, e que se extingue quando de- aperfeiçoamento tecnológico.
corridos os prazos definidos na Lei, quando Da mesma forma como ocorre com o
cai a obra em domínio público, tornando-se direito do autor, a propriedade industrial
livre sua utilização e exploração. não pertence apenas à categoria dos direitos

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reais e tampouco ao direito da personalida- Portanto, os direitos exclusivos de pro-
de, em que se alojam os direitos morais, e priedade industrial não podem deixar de
nem mesmo a dos direitos obrigacionais. E estar condicionados à mesma relativização
é exatamente pelo fato de conter, ao mesmo da propriedade “em geral”, outrora absolu-
tempo, esses três feixes de direitos, que a to, que a reconduz ao “interesse social e o
propriedade industrial é um desdobramen- desenvolvimento tecnológico e econômico
to da propriedade intelectual, que também do País”, a que se destinam servir. Nesse
constitui modalidade especial de direito sentido, esses direitos exclusivos serão con-
privado – sui generis. feridos na medida em que houver interesse
Discute-se na doutrina se a proteção à coletivo na sua concessão – que devem
propriedade industrial deveria ter sido asse- prevalecer sobre o interesse individual do
gurada pela Constituição entre as garantias proprietário – e são expressamente apresen-
individuais, por não ter natureza de direito tados como privilégios temporários.
fundamental do homem. Isso porque, direi- Conclui-se, assim, que a propriedade
to aí reconhecido é de garantia relativa, uma intelectual pode ser entendida como uma
vez que decorrerá de legislação ordinária modalidade especial de direito de pro-
ulterior. É, portanto, uma norma de eficácia priedade com matriz constitucional, que
limitada, de aplicação mediata, contrastando representa uma relação jurídica de natu-
com o § 1o do art. 5o que determina que “as reza pessoal, patrimonial e obrigacional,
normas definidoras dos direitos e garantias ao mesmo tempo. Por isso, compõe uma
fundamentais têm aplicação imediata”. categoria de direito privado autônoma, sui
Muito embora exista na doutrina a dis- generis. Todavia, a proteção constitucional
cussão sobre sua natureza jurídica, o certo do direito do autor nos leva a entender
é que a propriedade industrial, nos termos que sua natureza jurídica pertence à noção
da Carta de 5 de outubro de 1988, e desde clássica de direito real-patrimonial, porque
a Constituição do Império de 1824, é uma o art. 5o, inciso XVII, da CF não faz refe-
espécie de propriedade com matriz consti- rência ao conteúdo moral, personalíssimo,
tucional, sendo um conceito de propriedade notadamente, ao direito de paternidade da
paralelo ao clássico, embora seja a nossa opi- obra. E, ao contrário do que ocorre com o
nião que devesse fazer-se incluir no elenco inciso XXIX, sobre propriedade industrial,
das garantias fundamentais. E, estando a a proteção do direito do autor não está
“propriedade geral” do art. 5o, inciso XXII, “expressamente” vinculada à função de
submetida ao atendimento de sua função promover o desenvolvimento econômico,
social (art. 5o, XXIII), é possível relacionar cultural e tecnológico do país. Entendi-
essa condição também ao exercício da pro- mento a que se pode chegar recorrendo-se
priedade industrial. E sobre o sentido cons- a princípios de interpretação mais amplos,
titucional de propriedade, José de Oliveira retirados do próprio leito constitucional,
Ascenção (1997, p. 48) ensina que que permeiam a exegese do inciso XXVII e
“quando se fala em propriedade na condicionam o gozo dos direitos autorais
Constituição abrangem-se todos os à sua função social.
direitos patrimoniais privados, e
que são esses que se justificam, que
se asseguram, que se limitam. Os Referências
direitos intelectuais exclusivos são,
sem dúvida, direitos patrimoniais ASCENÇÃO, José de Oliveira. Direito intelectual, exclu-
privados. A eventual presença de sivo e liberdade. 2.ed. São Paulo: Reonovar, 1997.
faculdades pessoais não lhes retira CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor.
essa característica”. Curitiba: Juruá, 2006.

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