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LESÃO DO LIGAMENTO CRUZADO POSTERIOR, ASSOCIADA A FRATURA DO REBORDO POSTERIOR DA TÍBIA, SIMULANDO FRATURA-AVULSÃO DO LCP

Lesão do ligamento cruzado posterior, associada


a fratura do rebordo posterior da tíbia,
simulando fratura-avulsão do LCP
Uma armadilha na interpretação clínico-radiológica*

JOSÉ MÁRCIO G. DE SOUZA1, MARCO TÚLIO L. CALDAS2, ALEXIA ABUHID LOPES3,


EDUARDO RAMOS M. PINA4, JORGE B. MURTA Fº4

RESUMO insertion of the PCL. Computed tomography and magnetic


resonance imaging demonstrated findings consistent with an
Os autores apresentam três casos de trauma do joelho
avulsion injury at the semi-membranous insertion. The au-
que resultaram em fraturas-avulsões na região póstero-
thors suggest caution not to misinterpret these lesions.
medial do planalto tibial, simulando fratura-avulsão da
inserção tibial do ligamento cruzado posterior. Discutem Key words – Knee lesions; knee magnetic resonance; PCL lesion;
a consistência da ação do músculo semimembranoso como avulsion injury of the knee
sendo o agente do mecanismo de tração que provoca essa
fratura-avulsão póstero-medial e alertam sobre a possibi- INTRODUÇÃO
lidade de armadilha na interpretação clínico-radiológica
O ligamento cruzado posterior (LCP) fixa-se na metade
dessa lesão.
anterior da face axial do côndilo interno do fêmur em ampla
Unitermos – Lesões do joelho; ressonância magnética do joelho; superfície e projeta-se na incisura intercondiliana, com sen-
lesão do LCP; fratura-avulsão do joelho tido médio-caudal em direção a sua inserção tibial, em área
situada na porção posterior, inferior e justalateral à linha mé-
SUMMARY dia do planalto tibial. O LCP é invariavelmente bem visto e
identificado nas imagens de cortes sagitais da ressonância
Posterior cruciate ligament injury associated to a postero-
magnética. Nas lesões agudas do LCP o ligamento aparece
medial corner fracture of the tibia simulating a PCL avul-
alargado, com contornos maldelimitados e com alteração de
sion injury. An easy way to clinical and radiologic misin-
seu sinal habitual nas várias seqüências de pulso. Apresenta-
terpretation
se caracteristicamente hiperintenso em T2, o que infere au-
Three knee injuries related to fractures of the posterome- mento de água livre, refletindo edema e hemorragia.
dial corner of the tibial plateau simulate lesions at the tibial Nas lesões por fratura-avulsão da inserção tibial do LCP, a
radiologia convencional mostra com detalhe a delimitação e
* Trab. realiz. no Serv. de Cir. do Joelho do Hosp. Ortopéd.-AMR, Belo o tamanho do fragmento; a tomografia computadorizada, atra-
Horizonte. vés de cortes transversais no nível do planalto tibial, permite
1. Chefe dos Serv. de Cir. do Joelho e Cir. Artrosc. do Hosp. Ortopéd.-AMR. melhor definição e localização do fragmento e sua relação
2. Cir. Ortoped. do Serv. de Joelho do Hosp. Ortopéd.-AMR e Hosp. Maria com a área de avulsão; a ressonância magnética mostra liga-
Amélia Lins.
mento com estrutura intersticial normal.
3. Radiol. do Setor de Res. Mag. Osteoart. do Centro de Imagem e Diagnós-
tico.
Nas fraturas do rebordo posterior do planalto tibial, que
4. Cir. Ortoped.-Estag. do Serv. de Cir. do Joelho do Hosp. Ortopéd.-AMR. são produzidas por trauma complexo no joelho, a tomogra-
Endereço para correspondência: José Márcio Gonçalves de Souza, Rua fia computadorizada define com precisão a localização, for-
Marquês de Maricá, 143 – Belo Horizonte, MG. Tel. (031) 981-8759. mato e número de fragmentos dessas fraturas; a radiologia
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convencional pode não defini-las bem e a ressonância mag-


nética vai certamente esclarecer o grau de comprometimen-
to dos ligamentos cruzados e das partes moles.
O objetivo dos autores neste trabalho é descrever e co-
mentar uma série de três casos de pacientes, vítimas de trau-
mas no joelho, com histórias, sinais clínicos e testes positi-
vos para lesão aguda do LCP, com radiografias mostrando
fragmento ósseo ao nível do rebordo posterior da tíbia, suge-
rindo fratura-avulsão do LCP.
O inusitado nesses casos foi que as lesões do LCP estavam
na estrutura do ligamento e não eram por avulsão de sua in-
serção; os fragmentos eram decorrentes de fraturas por ar-
rancamento no rebordo posterior e medial do planalto tibial,
sem nenhuma continuidade com o LCP, criando uma arma-
dilha na interpretação clínico-radiológica, induzindo a pos- Fig. 1
Ilustração
sivel erro na indicação da cirurgia. esquemática da
parte posterior
DESCRIÇÃO DOS CASOS do joelho,
mostrando as
No período entre janeiro de 1996 e outubro de 1997, tive- expansões do
músculo
mos a oportunidade de atender e assistir três pacientes que, semimembranoso
após acidentes, apresentavam sinais clínicos de lesão do LCP,
com radiografias que mostravam fragmento ósseo ao nível
sões do LCP e do rebordo póstero-medial do planalto tibial.
do rebordo posterior da tíbia, dando a impressão, à primeira
O tratamento foi conservador e o paciente ainda está sob
vista, de terem uma fratura-avulsão da inserção do LCP.
observação clínica e em reabilitação fisioterápica.
Caso 1 – WLP, 32 anos, trauma do joelho em atropela-
mento por veículo. Fez somente as radiografias convencio-
COMENTÁRIOS
nais para estudo de seu joelho (fig. 2A). Foi submetido a
tratamento cirúrgico com acesso posterior ao joelho para fi- A principal função do LCP é proporcionar estabilidade do
xação da suposta fratura-avulsão do LCP. Verificou-se, no joelho contra a translação posterior da tíbia em relação ao
ato operatório, que a fratura estava no rebordo póstero-me- fêmur. A história natural da insuficiência do LCP, a médio e
dial do planalto tibial e que a lesão no LCP estava localizada longo prazo, é de dor, derrame e instabilidade, associados a
na substância do ligamento. Foi feita a osteossíntese do frag- alterações degenerativas, principalmente no compartimento
mento ósseo (fig. 2, B, C e D) e identificada uma lesão com- femorotibial medial e no conjunto patelofemoral.
pleta do LCP. Houve consolidação da fratura e o paciente Para fazer a indicação de tratamento da lesão do LCP é
está sem queixas, apesar da instabilidade posterior. necessário diferenciar muito bem as lesões; elas podem ser
Caso 2 – CCV, 23 anos, trauma indireto do joelho, ao chu- agudas, crônicas e intersticiais, com maior ou menor grau de
tar a porta de seu automóvel. O joelho foi estudado através instabilidade; podem ser isoladas ou combinadas com outras
de radiografias convencionais, tomografia e ressonância lesões e podem ser por avulsão óssea em sua inserção tibial.
magnética. Havia lesão completa do LCP e fratura do rebor- Na lesão aguda por avulsão óssea da inserção tibial não
do póstero-medial do planalto tibial (fig. 3, A, B, C e D). existe lesão na estrutura própria do ligamento; a indicação
Optou-se pelo tratamento conservador, estando o paciente de tratamento cirúrgico é absoluta e ela deve ser executada
em reabilitação fisioterápica. precocemente. A fixação do fragmento avulsionado através
Caso 3 – RMJ, 33 anos, acidente de moto, trauma direto de acesso posterior no joelho proporciona perfeita estabili-
sobre o joelho, com equimose e grave edema na panturrilha, zação da translação posterior da tíbia.
que evoluiu para trombose venosa profunda. Realizamos es- Por outro lado, quando a lesão é na estrutura do ligamento
tudo radiológico, tomográfico e de ressonância magnética. cruzado posterior e associada a fratura no rebordo posterior
A tomografia e a ressonância magnética identificaram as le- do planalto tibial, constituindo-se em lesão mais complexa,
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LESÃO DO LIGAMENTO CRUZADO POSTERIOR, ASSOCIADA A FRATURA DO REBORDO POSTERIOR DA TÍBIA, SIMULANDO FRATURA-AVULSÃO DO LCP

músculo semimembranoso. Esse múscu-


lo insere-se distalmente na parte póste-
ro-medial do joelho através de cinco ex-
pansões: uma inserção central, uma fi-
xação profunda na cápsula e no corno
posterior do menisco medial, uma ex-
pansão anterior inserindo por baixo do
ligamento colateral medial, uma expan-
são fibrosa sobre o músculo poplíteo e,
finalmente, para o lado lateral, um re-
forço ao ligamento poplíteo oblíquo (fig.
1). Cross(1) cita em seu trabalho serem
sete as extensões desse músculo, sendo
três delas com funções motoras e que,
dentre elas, a expansão central, devido
ao tamanho de seu tendão, tem forte fun-
ção motora, ao passo que as outras qua-
tro têm mais função sensorial proprio-
ceptiva.
O músculo semimembranoso é tanto
flexor como rotador interno da tíbia; as-
sim, um presumível mecanismo de ten-
são sobre suas inserções seria através de
rotação externa com flexão do joelho.
Se associarmos a essa posição uma for-
ça em valgo no joelho, seria o clássico
mecanismo de lesão do LCA, mas se,
ao invés dessa força em valgo, o joelho
recebesse impacto direto sobre a tíbia,
produzindo translação posterior, pode-
ríamos ter lesão do LCP, ao mesmo tem-
po em que o músculo semimembranoso
faria tração sobre suas inserções na par-
Fig. 2 – Caso 1. A) RX do joelho com fragmento volumoso e rodado, na parte posterior do rebordo do
planalto tibial. B) Redução e fixação do fragmento com 2 parafusos. C) RX em AP, mostrando que o te póstero-medial do joelho, produzin-
fragmento fixado é do lado medial do planalto tibial. D) Foto do ato cirúrgico, mostrando a via de do arrancamento osteocondral.
acesso de Burks e a fixação do fragmento.
Dois de nossos pacientes tiveram suas
lesões sofrendo impactos diretos sobre
a indicação cirúrgica já não é absoluta e não exige atuação o terço superior da tíbia, comprovados por contusão e esco-
precoce. Ela passa a merecer estudo mais detalhado sobre riação na região do tubérculo anterior. Sugere-se que a posi-
possíveis lesões associadas, graus e tipos de instabilidades, ção deles no momento do impacto teria sido de flexão do
idade e atividade do paciente e a repercussão imediata e tar- joelho com rotação externa da perna e apoio do pé. O tercei-
dia dessas lesões sobre a articulação do joelho. ro paciente relata que sua lesão foi em decorrência de um
Nos três casos apresentados, a associação de lesões do LCP chute violento na porta de seu carro, em momento de raiva,
com fraturas do rebordo posterior-medial do planalto tibial sendo um trauma indireto com forte translação posterior da
levou-nos a indagar sobre o possível mecanismo dessa lesão. tíbia ao nível do joelho.
A estrutura anatômica que pode produzir arrancamento no El-Khoury & McWilliams, em 1978, já chamavam a aten-
rebordo posterior e medial do planalto tibial é o tendão do ção para o erro de interpretar as fraturas-avulsões da parte
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póstero-medial do joelho como sendo


decorrentes de tração capsular. Eles su-
gerem que os estudos radiográficos de-
vam incluir incidência em projeção oblí-
qua para visibilizar essas pequenas fra-
turas-avulsões(2).
Yao & Lee escreveram, em 1989, que
a fratura-avulsão referida como sendo
por tração do semimembranoso não ha-
via ainda sido especificamente descrita
e eles não sabiam qual era a prevalência
dessa lesão dentre o global das lesões
do joelho(4). Esses autores mostraram, em
dois casos de trauma no joelho, imagens
de ressonância magnética de avulsão do
rebordo póstero-medial do joelho em
decorrência de tração-avulsão da parte
central do músculo semimembranoso;
imagens ponderadas em T2 identifica-
vam perfeitamente o fragmento ósseo
destacado, mas contíguo ao feixe cen-
tral desse músculo.
Richmond & Sarno(3) estudaram três
casos de pacientes que, após trauma do
joelho, apresentavam fragmentos intra-
articulares localizados junto à inserção
dos cornos posteriores dos meniscos Fig. 3 – Caso 2. A) RX mostrando fratura-avulsão do rebordo posterior do planalto tibial. B) Ressonância
magnética evidenciando lesão completa na estrutura do LCP. C) Tomografia com corte transversal no
mediais, que também se apresentavam nível do planalto tibial, mostrando que a avulsão é na parte póstero-medial de seu rebordo. D) Corte
lesados. Concluíram que esses fragmen- sagital tomográfico mostrando a fratura-avulsão no ponto exato onde se insere distalmente o LCP.
tos deveriam ser avulsões da área inter-
condilar posterior e não formações ósseas heterotópicas, como Aprendemos que, em casos de fratura-avulsão do rebordo
mais comumente são consideradas. À luz do que descreve- posterior do planalto tibial na presença de instabilidade pos-
mos na anatomia das inserções distais do semimembranoso, terior do joelho, é necessário fazer estudos mais detalhados
podemos inferir que essas lesões osteocondrais junto aos cor- através de tomografia e, em especial, pelas imagens da res-
nos posteriores dos meniscos mediais seriam provocadas pela sonância magnética.
tração do feixe profundo de inserção do semimembranoso
que se fixa na cápsula e no corno posterior do menisco me- REFERÊNCIAS
dial.
1. Cross, M.: Clinical terminology for describing knee instability. Sports
Após a descrição dos casos apresentados nesta comunica-
Med Arthrosc Rev 4: 313-318, 1996.
ção e sua discussão, podemos dizer que houve erro de inter- 2. El-Khoury, G.Y. & McWilliams, F.E.: A simple radiologic aid in diagno-
pretação clínico-radiológica no primeiro caso; porém, a in- sis of small avulsion fractures of the knee. Am J Sports Med 18: 275-277,
dicação cirúrgica serviu para fixar o volumoso fragmento 1978.
póstero-medial. Nos dois outros casos, já alertados sobre a 3. Richmond, J. & Sarno, R.C.: Posttrauma intra-capsular bone fragments:
association with meniscal tears. AJR 150: 159-160, 1988.
verdadeira armadilha na interpretação radiológica existente
4. Yao, L. & Lee, J.K.: Avulsion of posteromedial tibial plateau by the semi-
nesse tipo de trauma no joelho, conduzimos o tratamento de membranosus tendon: diagnosis with MR imaging. Radiology 172: 513-
acordo com as lesões encontradas. 514, 1989.

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