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1. O problema
"a origem dos interditos romanos prende-se à paz quanto à terra – à proteção da pessoa
ou das coisas contra a violência e o arbítrio. (…) Longe já se estava dos interditos para a
proteção da liberdade e do ‘status familiae’, da democracia grega e do movimento
igualitário cristão. Stölzel (Jahrbücher für die Dogmatik, VII, 147) tentou provar que
todos os interditos protegiam na origem a pessoa, e só indiretamente a coisa, mas
incorria no erro de cindir a pessoa e suas necessidades, para acentuar aquelas, tal como
outros exageraram a proteção às coisas. Os interditos, no fundo, serviam à vida, à vida
tal como exsurgia, sem peias das combinações conceptuais. Nem viam eles a diferença
entre ‘res nullius’ e ‘res quae alicuius sunt’ (L, 1, pr., D, ‘de interdictis’, 43, 1). No
intuito de protegê-lo, tratavam o próprio homem livre como coisa, ‘res nullius’." 2
"A exploração das terras em comum já tinha desaparecido desde muito tempo, e a idéia
da propriedade privada se tinha estendido também ao solo, até chegar a quase eliminar
toda a diferença entre relações jurídicas sobre imóveis e os bens de raiz, e se havia
realizado uma certa mobilização da propriedade territorial, ao estender-se aos imóveis a
forma aquisitiva da propriedade sobre imóveis (‘a mancipatio’). As terras do ‘ager
publicus’ eram arrendadas ou deixadas à livre ocupação dos que quisessem pagar um
tributo moderado. Não obstante, o adquirente não obtinha deste modo a propriedade
privada. Era uma simples posse, tolerada pelo Estado (‘occupatio’), ou regulada
administrativamente (‘ager publicus’). Daí o limitar-se a sua proteção jurídica a por o
ocupante a salvo de perturbações arbitrárias, para assegurar a colheita àquele que tivesse
pacificamente cultivado as terras." 3
Ensina o mestre mineiro, em sua magnífica obra, escrita em 1937, que, dentre o
emaranhado de teorias excogitadas para explicar os motivos e os fundamentos da
proteção possessória, concedida pelo pretor romano por meio de um interdito, uma
das mais razoáveis é a de CUQ4, segundo a qual o pretor, garantindo o possuidor,
impedia que o indivíduo fizesse justiça por si mesmo. A fundamentação do instituto
há dois mil anos, mostra-se atualizadíssima, ante à imutável natureza humana:
"A teoria de Maynz completa a de Cuq. Uma consideração bem simples, diz esse
egrégio expositor, fará compreender que o legislador encontra-se na necessidade de
reconhecer o simples fato da posse, e de lhe imprimir assim um caráter de direito. Com
efeito, que pode fazer a lei em face daquele que se encontra na posse de uma coisa, sem
que esteja estabelecido que ele a adquiriu de uma maneira legal? Certamente, ela não
protegerá sua posse como protegeria um direito legalmente adquirido; mas enquanto
não ficar provado que esse estado de coisas lesa os direitos de um outro, ela respeitará a
vontade do homem, que se manifestou pela tomada da coisa. Manterá o ‘status quo’, a
menos que não adquira a certeza de que ela contém uma violação dos direitos
adquiridos. Ora, esta certeza não pode ser obtida senão por meio de uma prova legal
produzida em juízo. Daí resulta que a lei deve garantir a posse contra toda a turbação
que lhe seja feita extrajudicialmente. O respeito devido à vontade do homem, de uma
parte, e o princípio fundamental da ordem social, segundo o qual o indivíduo não pode
fazer justiça a si mesmo, doutra parte, concorrem para assegurar aos simples fato da
posse uma certa garantia e uma proteção legal. Não é provável que seja por raciocínio
abstrato que o Pretor romano foi levado a lançar as bases da legislação sobre a posse."
3. A atividade agrária
Em brilhante tese de doutorado, Giselda Novaes Hironaka 5, após enumerar as
definições sobre a atividade agrária de Carrera 6, Vivanco7, Ballarín Marcial8 e
Sodero9, observa a existência de dois momentos-limites da atividade agrária: o
preparo da terra para o recebimento do cultivo; e a colheita dos frutos, entre os
quais ocorrerá um ciclo biológico, sujeito às intempéries naturais, mas de certa
forma controlado pelo homem10. Da observação do ciclo biológico, destaca três
elementos que reputa essenciais ao ato agrário: o homem ou sujeito agrário,
executor da atividade; o meio ou ambiente, onde se processam os atos agrários; e
o processo agrobiológico, a vida11.
Assim, como denota Fábio Maria de Mattia, o conceito de "fundus" de Bolla, deve
ser entendido por sua utilização ("utilitas"), de tal forma que a terra é simples
instrumento para o cultivo (aspecto funcional do processo produtivo) 19. Daí a
instrumentalidade do fundo agrário.
5. A posse agrária
Mattos Neto define a posse agrária como o exercício direto, contínuo, racional e
pacífico de atividades agrárias (propriamente ditas, vinculadas ou complementares,
e conexas) desempenhadas em gleba de terra rural capaz de dar condições
suficientes e necessárias ao seu uso econômico22.
Carrozza e Zeledón Zeledón23 ressaltam que Meza Lazarus 24 conclui que a posse
agrária é um instituto típico de direito agrário, na qual o corpus seria peculiar: não
bastaria o exercício de qualquer atividade material ou jurídica, mas de específicos e
bem definidos atos possessórios, que corresponderiam ao desenvolvimento daquela
série coordenada de atos que dão lugar à atividade empresarial. Somente com o
exercício continuado destes atos (e, portanto, através do exercício da empresa
agrária), seria reconhecida a posse agrária.
Em seus escólios, Mattos Neto aduz que a teoria subjetiva de Savigny conceberia o
corpus como mera possibilidade de exercício físico da coisa, o que seria
inadmissível no âmbito agrário, na medida em que não requereria a prática de um
conjunto de atos materiais a demonstrar a continuidade do uso da coisa. Em
relação ao animus domini - prossegue Mattos Neto - seria muito menos aplicável
em favor do possuidor ou mesmo detentores que labutem diretamente na terra 25.
Por outro lado, não bastaria a concepção possessória de Ihering, porque protegeria
somente as atividades correspondente ao modo normal do proprietário exteriorizar
seu poderes de domínio. Logo, não teria o condão de permitir acesso à
propriedade, pois sucumbiria diante do melhor título do proprietário. Além disso,
ambas as concepções admitiriam a aquisição e a manutenção da posse por
intermédio de terceiros. Finalmente, rechaça a teoria da apropriação econômica, de
Saleilles, pois nela o possuidor visaria apenas se assenhorar economicamente do
bem, enquanto que o fenômeno possessório agrário iria mais além, implicando a
exploração econômica do imóvel rural, pela atividade agrária, num processo de
fixação do homem ao solo, com o fim de gerar riquezas para si, sua família e para a
comunidade26.
Após adotar o critério de Carrera para caracterizar a atividade agrária 27, Mattos
Neto sustenta que a posse agrária teria a natureza jurídica de direito real definitivo,
prevalecendo sobre título dominial28.
Desde logo, porém, há que se refutar tal posição, pois natura a posse agrária como
direito real definitivo, hierarquicamente superior à propriedade, o que é
absolutamente infundado. O ordenamento jurídico concede ao possuidor agrário,
verdadeiro arsenal destinado a facilitar-lhe a aquisição da propriedade (usucapião
agrária, legitimação de posse, etc.). Dessa forma, torna definitivo aquele direito
real provisório, hierarquicamente inferior ao domínio, este, sim, açambarcado
constitucionalmente como garantia individual do cidadão. A respeito, observa
Martin Wolff que os direitos reais são definitivos ou provisórios, entre aqueles a
propriedade, as servidões e os direitos reais de garantia; entre estes, a posse 29. De
qualquer modo, traz-se à colação a apropriada preleção de Clóvis Beviláqua,
rebatendo objeções de Albino Meira ao Projeto de Código Civil30:
Ora, voltando-se para esses três fatores no âmbito do direito agrário, verifica-se
que o primeiro, natureza da coisa, consiste em imóvel rural ou no fundo de
Giangastone Bolla, portanto, dinâmico, frutífero, instrumental, em suas várias
modalidades (propriedade familiar, empresa agrária, minifúndio, latifúndio), o que
seria bastante a distinguir a posse sobre o imóvel rural da exercida sobre as demais
coisas. Da mesma forma, o segundo fator, forma de utilização da coisa sob o ponto
de vista econômico, no mundo agrário é representado pela atividade agrária,
caracterizada pela agrariedade. Finalmente, o terceiro fator - o uso, sempre
variável, segundo o país e a época - será determinado pela observância à função
social do imóvel rural35, em seus três aspectos: econômico, social e ecológico 36.
6. A solução
À míngua de previsão legal, não se pode negar aos possuidores de imóveis rurais,
os interditos possessórios, sob pena de afronta aos princípios da legalidade e do
devido processo legal, consagrados nos artigos 5º, caput, II e LIV42, da Constituição
Federal.