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A proteção possessória do imóvel rural e a posse agrária

1. O problema

Atualmente, uma das questões mais polêmicas


em conflitos agrários, diz respeito à aplicação
da denominada Teoria da Posse Agrária em
Ações Possessórias.

De um lado, as Organizações Não


1
Governamentais – ONGs , a tutelar os
interesses dos trabalhadores sem terra,
defendem a tese pela qual o principal efeito da
denominada Posse Agrária, é o de que a proteção possessória do imóvel rural
estaria condicionada à caracterização da Teoria da Posse Agrária, em especial ao
cumprimento da função social da propriedade rural, por força dos arts. 184 e 186, I
a IV, da Constituição Federal (clique aqui). De outro lado, os fazendeiros, com
imóveis rurais esbulhados, turbados ou ameaçados, repugnam a aplicação da
Teoria da Posse Agrária, sustentando a não-incidência desses dispositivos
constitucionais à posse e, portanto, às ações possessórias, subordinadas
exclusivamente aos requisitos dos artigos 1.210, caput, do Código Civil (clique aqui);

924, 927 e 928, do Código de Processo Civil (clique aqui).

Em outras palavras, a solução desses litígios implica determinar se a proteção


possessória do imóvel rural está condicionada ao cumprimento da função social da
propriedade, ou, mais profundamente, se o ordenamento jurídico brasileiro dispõe
sobre o instituto da Posse Agrária e os seus efeitos; contrariamente, se suficiente à
proteção possessória dos imóveis rurais, a satisfação dos requisitos previstos na
legislação civil e processual civil, referidos.

2. A fundamentação dos interditos possessórios

Pontes de Miranda demonstra a antiguidade dos conflitos agrários e a


fundamentação dos interditos possessórios na paz quanto à terra:

"a origem dos interditos romanos prende-se à paz quanto à terra – à proteção da pessoa
ou das coisas contra a violência e o arbítrio. (…) Longe já se estava dos interditos para a
proteção da liberdade e do ‘status familiae’, da democracia grega e do movimento
igualitário cristão. Stölzel (Jahrbücher für die Dogmatik, VII, 147) tentou provar que
todos os interditos protegiam na origem a pessoa, e só indiretamente a coisa, mas
incorria no erro de cindir a pessoa e suas necessidades, para acentuar aquelas, tal como
outros exageraram a proteção às coisas. Os interditos, no fundo, serviam à vida, à vida
tal como exsurgia, sem peias das combinações conceptuais. Nem viam eles a diferença
entre ‘res nullius’ e ‘res quae alicuius sunt’ (L, 1, pr., D, ‘de interdictis’, 43, 1). No
intuito de protegê-lo, tratavam o próprio homem livre como coisa, ‘res nullius’." 2

Neste contexto de expansão do Direito Privado e dos poderes interditais do praetor,


é que se firma a proteção possessória. A propósito, pertinente a lição de Astolpho
Rezende, verbis:

"A exploração das terras em comum já tinha desaparecido desde muito tempo, e a idéia
da propriedade privada se tinha estendido também ao solo, até chegar a quase eliminar
toda a diferença entre relações jurídicas sobre imóveis e os bens de raiz, e se havia
realizado uma certa mobilização da propriedade territorial, ao estender-se aos imóveis a
forma aquisitiva da propriedade sobre imóveis (‘a mancipatio’). As terras do ‘ager
publicus’ eram arrendadas ou deixadas à livre ocupação dos que quisessem pagar um
tributo moderado. Não obstante, o adquirente não obtinha deste modo a propriedade
privada. Era uma simples posse, tolerada pelo Estado (‘occupatio’), ou regulada
administrativamente (‘ager publicus’). Daí o limitar-se a sua proteção jurídica a por o
ocupante a salvo de perturbações arbitrárias, para assegurar a colheita àquele que tivesse
pacificamente cultivado as terras." 3

Ensina o mestre mineiro, em sua magnífica obra, escrita em 1937, que, dentre o
emaranhado de teorias excogitadas para explicar os motivos e os fundamentos da
proteção possessória, concedida pelo pretor romano por meio de um interdito, uma
das mais razoáveis é a de CUQ4, segundo a qual o pretor, garantindo o possuidor,
impedia que o indivíduo fizesse justiça por si mesmo. A fundamentação do instituto
há dois mil anos, mostra-se atualizadíssima, ante à imutável natureza humana:

"A teoria de Maynz completa a de Cuq. Uma consideração bem simples, diz esse
egrégio expositor, fará compreender que o legislador encontra-se na necessidade de
reconhecer o simples fato da posse, e de lhe imprimir assim um caráter de direito. Com
efeito, que pode fazer a lei em face daquele que se encontra na posse de uma coisa, sem
que esteja estabelecido que ele a adquiriu de uma maneira legal? Certamente, ela não
protegerá sua posse como protegeria um direito legalmente adquirido; mas enquanto
não ficar provado que esse estado de coisas lesa os direitos de um outro, ela respeitará a
vontade do homem, que se manifestou pela tomada da coisa. Manterá o ‘status quo’, a
menos que não adquira a certeza de que ela contém uma violação dos direitos
adquiridos. Ora, esta certeza não pode ser obtida senão por meio de uma prova legal
produzida em juízo. Daí resulta que a lei deve garantir a posse contra toda a turbação
que lhe seja feita extrajudicialmente. O respeito devido à vontade do homem, de uma
parte, e o princípio fundamental da ordem social, segundo o qual o indivíduo não pode
fazer justiça a si mesmo, doutra parte, concorrem para assegurar aos simples fato da
posse uma certa garantia e uma proteção legal. Não é provável que seja por raciocínio
abstrato que o Pretor romano foi levado a lançar as bases da legislação sobre a posse."

3. A atividade agrária
Em brilhante tese de doutorado, Giselda Novaes Hironaka 5, após enumerar as
definições sobre a atividade agrária de Carrera 6, Vivanco7, Ballarín Marcial8 e
Sodero9, observa a existência de dois momentos-limites da atividade agrária: o
preparo da terra para o recebimento do cultivo; e a colheita dos frutos, entre os
quais ocorrerá um ciclo biológico, sujeito às intempéries naturais, mas de certa
forma controlado pelo homem10. Da observação do ciclo biológico, destaca três
elementos que reputa essenciais ao ato agrário: o homem ou sujeito agrário,
executor da atividade; o meio ou ambiente, onde se processam os atos agrários; e
o processo agrobiológico, a vida11.

Giselda Novaes Hironaka aponta as seguintes teorias caracterizadoras da atividade


agrária: a teoria agrobiológica, de Carrera; a teoria da agrariedade, de Carroza; e a
teoria da acessoriedade, de Vivanco12.

De acordo com a teoria agrobiológica, a atividade agrária é constituída pelos


elementos agrobiológicos - terra e processo agrobiológico -, que lhe dão
especificidade13.

Pela teoria da agrariedade, Carrozza associou o ciclo biológico à intempérie 14. A


agrariedade caracterizaria a atividade agrária a partir da sujeição do ciclo biológico
a um risco correlato.

Fábio Maria de Mattia conclui que o critério agrobiológico é qualificado como


extrajurídico por não corresponder aos dados normativos. O ciclo biológico de
produção é o processo orgânico realizado pelo agricultor, necessário à obtenção dos
bens desejados. O ciclo biológico pode, contudo, coincidir ou não com o ciclo
produtivo15.

A teoria da acessoriedade, de Vivanco, distingue a atividade agrária das demais


atividades (comerciais, industriais), constatando naquela a existência de relações
sócio-econômicas, enquanto nestas, apenas econômicas, suficientes, portanto, à
distinção entre elas16. Aponta, ainda, diversos critérios para distingui-las, dentre os
quais o mais relevante é o da acessoriedade. Assim, a atividade agrária se perfaz
se a atividade de transformação e venda dos produtos agropecuários for
complementar à atividade agrária, e a terra não constituir meio para a finalidade
principal (transformação e venda destes produtos). Por outro lado, se as atividades
de transformação e venda deixam de ocupar um lugar de mero acessório à
atividade principal desempenhada, isto é, a produtiva, aquelas assumirão um
caráter independente, configurando-se em atividades industriais ou comercias,
conforme o caso17.

4. A instrumentalidade do fundo agrário


Para a exata visualização dos elementos constitutivos da posse agrária, é
imprescindível a constatação da instrumentalidade do fundo agrário relativamente à
propriedade agrária.

Giangastone Bolla distingue, nas constituições políticas do século XX, as fórmulas


que consideram a terra como coisa, numa acepção jurídica, e como propriedade
diferenciada por força da sua finalidade. Concebe o fundus como a unidade
econômica cujo ordenamento e permanência têm relevância social e jurídica, pela
vinculação unitária que, na cultivação, aproxima o homem à terra, com o escopo de
satisfazer as necessidades e os fins próprios do indivíduo, dos grupos sociais (de
fato e família rural), do Estado, enfim, de toda comunidade 18.

Assim, como denota Fábio Maria de Mattia, o conceito de "fundus" de Bolla, deve
ser entendido por sua utilização ("utilitas"), de tal forma que a terra é simples
instrumento para o cultivo (aspecto funcional do processo produtivo) 19. Daí a
instrumentalidade do fundo agrário.

5. A posse agrária

Carrozza e Zeledón Zeledón defendem a autonomia da posse agrária, à qual


relegaria os conceitos do corpus e animus, para incorporar novos elementos, v.g.,
os critérios de morada, produtividade etc, e mediante uma determinação descritiva
daqueles atos que possam ser considerados possessórios. Assim, a posse agrária
teria deixado de ser o poder efetivamente exercido pela pessoa sobre a coisa, ou a
possibilidade de alijar qualquer outro do exercício de tal poder, para transformar-se
no poder efetivamente exercido associado à exploração econômica do bem20.

Carrozza e Zeledón Zeledón descrevem o exemplo venezuelano, onde a lei de


reforma agrária então vigente, concedia um interdito ao possuidor agrário - amparo
agrário -, que consistia na impossibilidade de despejo do possuidor agrário sem
uma prévia autorização do Instituto Agrário Nacional, que gozava, também, do
direito de permanência. Eram estabelecidos na lei venezuelana, critérios subjetivos,
que definiam o possuidor agrário como aquele pequeno ou médio produtor rural; e
critérios objetivos de realização de uma atividade agrária- necessidade de
manutenção do rebanho de gado ou criação como principal atividade econômica ou
cultivos. Além disso, havia um terceiro elemento, o econômico, consistente na
realização de um trabalho efetivo21.

Mattos Neto define a posse agrária como o exercício direto, contínuo, racional e
pacífico de atividades agrárias (propriamente ditas, vinculadas ou complementares,
e conexas) desempenhadas em gleba de terra rural capaz de dar condições
suficientes e necessárias ao seu uso econômico22.
Carrozza e Zeledón Zeledón23 ressaltam que Meza Lazarus 24 conclui que a posse
agrária é um instituto típico de direito agrário, na qual o corpus seria peculiar: não
bastaria o exercício de qualquer atividade material ou jurídica, mas de específicos e
bem definidos atos possessórios, que corresponderiam ao desenvolvimento daquela
série coordenada de atos que dão lugar à atividade empresarial. Somente com o
exercício continuado destes atos (e, portanto, através do exercício da empresa
agrária), seria reconhecida a posse agrária.

Em seus escólios, Mattos Neto aduz que a teoria subjetiva de Savigny conceberia o
corpus como mera possibilidade de exercício físico da coisa, o que seria
inadmissível no âmbito agrário, na medida em que não requereria a prática de um
conjunto de atos materiais a demonstrar a continuidade do uso da coisa. Em
relação ao animus domini - prossegue Mattos Neto - seria muito menos aplicável
em favor do possuidor ou mesmo detentores que labutem diretamente na terra 25.
Por outro lado, não bastaria a concepção possessória de Ihering, porque protegeria
somente as atividades correspondente ao modo normal do proprietário exteriorizar
seu poderes de domínio. Logo, não teria o condão de permitir acesso à
propriedade, pois sucumbiria diante do melhor título do proprietário. Além disso,
ambas as concepções admitiriam a aquisição e a manutenção da posse por
intermédio de terceiros. Finalmente, rechaça a teoria da apropriação econômica, de
Saleilles, pois nela o possuidor visaria apenas se assenhorar economicamente do
bem, enquanto que o fenômeno possessório agrário iria mais além, implicando a
exploração econômica do imóvel rural, pela atividade agrária, num processo de
fixação do homem ao solo, com o fim de gerar riquezas para si, sua família e para a
comunidade26.

Após adotar o critério de Carrera para caracterizar a atividade agrária 27, Mattos
Neto sustenta que a posse agrária teria a natureza jurídica de direito real definitivo,
prevalecendo sobre título dominial28.

Desde logo, porém, há que se refutar tal posição, pois natura a posse agrária como
direito real definitivo, hierarquicamente superior à propriedade, o que é
absolutamente infundado. O ordenamento jurídico concede ao possuidor agrário,
verdadeiro arsenal destinado a facilitar-lhe a aquisição da propriedade (usucapião
agrária, legitimação de posse, etc.). Dessa forma, torna definitivo aquele direito
real provisório, hierarquicamente inferior ao domínio, este, sim, açambarcado
constitucionalmente como garantia individual do cidadão. A respeito, observa
Martin Wolff que os direitos reais são definitivos ou provisórios, entre aqueles a
propriedade, as servidões e os direitos reais de garantia; entre estes, a posse 29. De
qualquer modo, traz-se à colação a apropriada preleção de Clóvis Beviláqua,
rebatendo objeções de Albino Meira ao Projeto de Código Civil30:

“A posse que se mantém ininterruptamente durante os longos annos exigidos para a


usucapião mas que ainda não venceu todo o prazo da lei, continua certamente a ser
"posse". Dir-se-á, com verdade, que é uma relação passageira, quando pode ter
permanecido, com o mesmo caráter, por mais de 9 annos, por mais de 19, por mais de
29, e até por mais de 39? Não; quem conserva sob o seu poder uma cousa por tam
dilatado espaço de tempo, não teve em vista uma 'necessidade de occasião'. Encaremos
a questão por outra face. 'A posse não é, não pode ser outra cousa sinão essa relação
physica que submette uma cousa corporea ao poder e auctoridade do homem. Quando
essa relação, esse 'estado de facto' vem acompanhado da vontade de torná-lo perpetuo,
quando o possuidor tem o animo de conservar a cousa perpetuamente como sua, então o
phenomeno toma o nome de propriedade". Tiremos as conseqüencial desta definição: 1º
A posse é uma relação transitória. Já vimos como os factos contradizem esta affirmação.
2º A propriedade é uma relação "de facto" ... Ao estado de facto oppõe-se o estado de
direito. Si a propriedade é um simples "fato", si os poderes que essa relação traduz e
contém não resultam, como conseqüencial immediatas, de um direito assegurado ao
indivíduo pela sociedade, qual será o estado de direito do qual a propriedade é o
succedaneo, a imitação ou o reflexo? Não encontraremos. E não encontraremos
justamente porque a propriedade é um "estado de direito" que tem por correspondente o
"estado de fato" que constitue a posse. Toda propriedade deve presupôr, da parte do
proprietário, a vontade de perpetuá-la...31

Obviamente, há que se compreender a propriedade e a posse agrárias, levando-se


em consideração o caráter instrumental do fundo em relação à atividade agrária,
esta sim o cerne da teleologia dos institutos agrários.

Para Mattos Neto, embora os elementos estruturais da posse agrária sejam o


corpus e o animus, esta se distingue da posse civil porque: (i) em relação ao
corpus, seria imprescindível a apreensão imediata e direta sobre o imóvel rural.
Contrario sensu, não haveria posse na exploração indireta em suas mais variadas
formas (arrendamento, comodato etc.); (ii) quanto ao animus, consistiria na
exploração econômica da terra ou de nela habitar, o que denomina animus
manendi, sendo irrelevantes a intenção imediata de exercer o direito de
propriedade (animus domini) e de proceder como proprietário (affectio tenendi)32.

Essas teorias possessórias buscam distinguir a posse agrária em relação à posse


civil, a partir da demonstração da inadequação desta às peculiaridades da atividade
agrária. Contudo, a questão não é tão simplória quanto possa parecer à primeira
vista. O próprio Ihering alertava que o exercício do direito de propriedade não pode
ser realizado da mesma forma com relação a todas as coisas; assim, argumentava,
o que constitui o corpus em matéria de posse, não é um fato material preciso e
determinado, como a apreensão corporal, segundo diziam os glosadores, ou ainda a
tradição realizada ante a coisa, como queria Savigny; não se pode citar
aprioristicamente nenhum fato33.

Em matéria de posse, sustenta Ihering, o corpus é uma relação de fato entre o


possuidor e a coisa, relação de tal natureza a revelar o proprietário e que
corresponde ao exercício de um verdadeiro direito de propriedade. Não se pode
afirmar de antemão, em que há de consistir essa relação de fato entre o possuidor
e a coisa, uma vez que depende da forma como se exercita o direito de
propriedade, e este exercício depende, por sua vez, de três fatores: (i) natureza da
coisa; (ii) forma de utilizá-la do ponto de vista econômico; e (iii) o uso, sempre
variável, segundo o país e a época; uso a indicar como os proprietários de um
determinado país, em um certo estado de civilização, gozam de suas coisas
conforme os costumes dominantes de sua época34.

Ora, voltando-se para esses três fatores no âmbito do direito agrário, verifica-se
que o primeiro, natureza da coisa, consiste em imóvel rural ou no fundo de
Giangastone Bolla, portanto, dinâmico, frutífero, instrumental, em suas várias
modalidades (propriedade familiar, empresa agrária, minifúndio, latifúndio), o que
seria bastante a distinguir a posse sobre o imóvel rural da exercida sobre as demais
coisas. Da mesma forma, o segundo fator, forma de utilização da coisa sob o ponto
de vista econômico, no mundo agrário é representado pela atividade agrária,
caracterizada pela agrariedade. Finalmente, o terceiro fator - o uso, sempre
variável, segundo o país e a época - será determinado pela observância à função
social do imóvel rural35, em seus três aspectos: econômico, social e ecológico 36.

Portanto, o que distingue a posse agrária da posse dita civil, é a peculiaridade de


seu corpus, vale dizer, por ser exercida atividade agrária sobre imóvel rural, com
observância à função social. É o corpus da posse agrária, ou seja, o elemento
material da posse agrária é a visibilidade da propriedade agrária, o aspecto exterior
dela.

Não se pode confundir a propriedade agrária com a propriedade do direito civil,


estas sim profundamente distintas: não se concebe a propriedade rural sem o
exercício de atividade agrária; não se concebe a propriedade rural sem a
observância à função social. O proprietário de imóvel rural que exerce normalmente
seu direito de propriedade, exerce também a posse agrária; o proprietário rural que
exerce anomalamente seu direito de propriedade (não cumprindo a função social),
não exerce a posse agrária, mas sim a civil.

Se não é possível o direito de propriedade rural sem a observância da função social,


sem o exercício da atividade agrária, a posse agrária também não o será; enfim,
onde a propriedade agrária não é possível, objetiva ou subjetivamente, a posse
também não o é; a posse agrária, portanto, é a visibilidade da propriedade agrária.

Na posse agrária, portanto, o corpus é o uso do imóvel rural, em suas diversas


modalidades, mediante o exercício da atividade agrária, com observância à função
social, requisitos esses que dão ao possuidor agrário a aparência de proprietário
agrário.
Sendo o corpus exterioridade da propriedade (uso de imóvel rural mediante o
exercício de atividade agrária, com observância a função social), o animus consiste
na intenção de ser proprietário agrário (animus domini). Assim, a posse agrária
requer, também, os dois elementos, indissociavelmente ligados: o animus é o
propósito de servir-se do imóvel rural (usar o imóvel rural mediante o exercício de
atividade agrária com observância da função social) para suas necessidades; o
corpus, a exteriorização desse propósito, ou, propriamente, o uso do imóvel rural
mediante o exercício de atividade agrária com observância à função social.

Quando se tratar de propriedade familiar, o corpus se distingue: é o uso de imóvel


rural mediante o exercício de atividade agrária e morada habitual do possuidor e
sua família, com observância à função social.

Assim, é perfeitamente correto falar-se em uma espécie de posse agrária,


denominada posse agrária própria, caracterizada pela especificidade do corpus, que
requer, além uso do imóvel rural mediante o exercício da atividade agrária e
observância à função social, a morada habitual do possuidor e de sua família.

A denominação - posse agrária própria (e não imprópria) - poderia parecer uma


contradição, pois se diz própria a espécie, e imprópria o gênero. Entretanto, a
análise histórica da posse agrária, demonstrará a maior relevância da espécie,
sempre presente no direito luso-brasileiro; desde o período da Reconquista
portugalense, é constatada nas presúrias, na Lei das Sesmarias; durante toda a
colonização do Brasil, seja no regime das capitanias hereditárias ou das sesmarias;
na Lei de Terras (Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850), etc.. Enfim, a posse
agrária assim caracterizada, é uma instituição tradicional no direito luso-brasileiro,
justificando-se, pois, seja denominada posse agrária própria.

A questão sobre a prova do animus resolve-se de acordo com a teoria de Ihering:


desde que decorra de vontade consciente, basta o corpus para que tenha lugar a
posse agrária; como se presume querido todo ato emanado de pessoa consciente,
desde que ocorra o uso de imóvel rural mediante o exercício da atividade agrária
com observância à função social e (posse agrária imprópria), eventualmente
morada habitual do possuidor e sua família (posse agrária própria), isto será o
suficiente para demonstrar que emana de uma pessoa consciente e capaz de
querer; provado isto, não há necessidade de demonstrar o elemento volitivo.

6. A solução

Nada obstante as teorias possessórias que buscam distinguir a posse agrária em


relação à posse civil, a partir da demonstração da inadequação desta às
peculiaridades da atividade agrária, não se pode negar que essa distinção é
irrelevante à proteção dos interditos possessórios.
Embora o 1.210, caput37, do Código Civil, não tenha repetido a expressa previsão
da interdicta do art. 523 do anterior Código Civil, o art. 924 38do Código de Processo
Civil assegura a tutela liminar para a denominada "ação de força nova", assim
entendida aquela intentada com menos de ano e dia 39, uma vez presentes os
requisitos dos arts. 927, I a IV40, e 92841.

À míngua de previsão legal, não se pode negar aos possuidores de imóveis rurais,
os interditos possessórios, sob pena de afronta aos princípios da legalidade e do
devido processo legal, consagrados nos artigos 5º, caput, II e LIV42, da Constituição
Federal.

O efeito do não cumprimento da função social é a sujeição do imóvel rural à


desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, nos termos e com
43 44
as restrições dos artigos. 184, caput e §§ 1º a 3º , e 185, I e II , da Constituição
45
Federal; 1º, 2º, caput e §§ , da Lei Complementar nº 76, de 1993; 1º, 2º e 18,
46
caput e parágrafo único , da Lei nº 6.383, de 1976.

Assim como a inobservância da função social não ceifa automaticamente o direito


de propriedade, também não prejudica a posse sobre o imóvel rural, em sua
acepção civil, também tutelada constitucionalmente, pois integra o patrimônio
material do possuidor.

Logo, em ação possessória de imóveis rurais, a discussão sobre o cumprimento da


função social, como supedâneo à demonstração da inexistência de posse agrária,
não encontra respaldo legal, sendo estéril. Neste sentido, é a jurisprudência 47.

Conclui-se, portanto, que a proteção possessória do imóvel rural não está


condicionada ao cumprimento da função social da propriedade rural, nem se lhe
aplica a teoria da posse agrária. Uma vez comprovada a posse dita civil sobre os
imóveis rurais, presentes os demais requisitos legais acima referidos, é obrigatória
a concessão dos interditos possessórios, sendo inconstitucional e ilegal a exigência
dos elementos constitutivos da Teoria da Posse Agrária.

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