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DIREITO CIVIL VI:

DIREITOS REAIS

Stela Tannure Leal de Vasconcelos


Propriedade
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever a evolução e o conceito de propriedade.


 Definir propriedade rural, propriedade urbana, de bens de consumo
e de produção.
 Analisar a aquisição e a perda da propriedade.

Introdução
A propriedade é o direito real que descreve o domínio jurídico que existe
entre os titulares de coisas sobre as quais incidem os seus interesses e
todas as demais pessoas, as quais se sujeitam ao poder que decorre
da titularidade dessas coisas. Como o direito real é mais complexo, a
propriedade reúne atributos que permitem a criação de outros direitos
reais, sem que esta seja desnaturada.
Neste capítulo, você vai ler sobre o conceito de propriedade, seus
caracteres e atributos, bem como seus mecanismos de aquisição e perda.

1 Conceitos fundamentais
A propriedade é considerada o direito real por excelência. Isso acontece porque
todos os outros direitos reais descritos pelo Código Civil são desdobramentos
da propriedade. O direito de propriedade é uma preocupação doutrinária e
metodológica para os estudos jurídicos desde o Direito romano, conforme
Caio Mário da Silva Pereira (2019, p. 64):

A raiz histórica do nosso instituto da propriedade vai-se prender no Direito


Romano, onde foi ela individual desde os primeiros monumentos. Dotada de
caráter místico nos primeiros tempos. Mesclada de determinações políticas.
Somente o cidadão romano podia adquirir a propriedade; somente o solo
romano podia ser seu objeto, uma vez que a dominação nacionalizava a terra
conquistada. E a técnica da aquisição — mancipatio —, um cerimonial tipica-
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mente romano, restringia o fenômeno e limitava o domínio ex iure quiritium.


Mais tarde estendeu-se o ius commercii aos estrangeiros, ampliou-se a sus-
cetibilidade da aquisição ao solo itálico, e depois além deste; e a par daquela
modalidade aquisitiva hermética, surgiram novos usos e os jurisconsultos
elaboraram novas técnicas: traditio, in iure cessio.

Desde então, os juristas se preocupavam em classificar quais espécies de


bens eram passíveis da apropriação típica desse direito real. Essas flutuações
doutrinárias se relacionam especialmente com a caracterização da propriedade
dos bens incorpóreos, como os direitos de autor. Considerando que estes
últimos possuem regulação própria no campo dos direitos da personalidade e
do Direito Empresarial, a análise sobre a propriedade, aqui, versará somente
sobre os bens corpóreos. Assim, podemos definir a propriedade conforme
Caio Mario da Silva Pereira (2019, p. 71):

Direito real por excelência, direito subjetivo padrão, ou “direito fundamen-


tal” (Pugliatti, Natoli, Planiol, Ripert e Boulanger), a propriedade mais
se sente do que se define, à luz dos critérios informativos da civilização
romano-cristã. A ideia de “meu e teu”, a noção do assenhoreamento de
bens corpóreos e incorpóreos independe do grau de cumprimento ou do
desenvolvimento intelectual. Não é apenas o homem do direito ou o bu-
siness man que a percebe. Os menos cultivados, os espíritos mais rudes,
e até crianças têm dela a noção inata, defendem a relação jurídica domi-
nial, resistem ao desapossamento, combatem o ladrão. Todos “sentem” o
fenômeno propriedade.

Segundo Flavio Tartuce (2019, p. 133):

A propriedade é o direito que alguém possui em relação a um bem determi-


nado. Trata-se de um direito fundamental, protegido no art. 5º, inc. XXII, da
Constituição Federal, mas que deve sempre atender a uma função social, em
prol de toda a coletividade. A propriedade é preenchida a partir dos atributos
que constam do Código Civil de 2002 (art. 1.228), sem perder de vista outros
direitos, sobretudo aqueles com substrato constitucional.

Há quatro elementos que estruturam o direito de propriedade, que estão


descritos no art. 1.228, caput, do Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002, do-
cumento on-line): “[...] o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor
da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a
possua ou detenha”. Serão descritas a seguir as quatro faculdades que estru-
turam a propriedade.
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Faculdade de uso
A faculdade de uso da coisa (chamada em latim de jus utendi, ou seja, direito
de usar) é relacionada à possibilidade que o proprietário tem de usar a coisa,
dentro daquilo que é permitido no ordenamento jurídico:

Como sugere a palavra, “usar” corresponde à faculdade de se pôr o bem a


serviço do proprietário, sem modificar a sua substância. É este poder empre-
gado em benefício do titular do bem, que aproveita a serventia que apresenta,
como quando habita uma casa, ou permite que um terceiro tire a utilidade. O
uso abrange também manter a coisa inerte ou sem aproveitar os serviços que
ela pode prestar (RIZZARDO, 2016, p. 218).

Cabe destacar que o uso é limitado pelo próprio ordenamento jurídico,


como a função social da propriedade, descrita pela norma constitucional,
pela obediência às limitações impostas pelo direito de vizinhança, deta-
lhado no Código Civil, e também pela legislação extravagante, como o
Estatuto da Cidade (Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001) ou a legislação
municipal (que pode impor limitações ao uso pelo plano diretor ou pelo
código de obras).
A faculdade de uso permite que o proprietário se utilize da coisa como for
conveniente (ocupando o bem para fins comerciais ou residenciais, por exemplo),
sem alterar a substância de bem imóvel da coisa, podendo excluir terceiros de
igual uso. O proprietário poderia, até mesmo, deixar de usar a coisa, mantendo
inerte, em condições de servi-lo quando for conveniente (como uma casa de
praia que permanece fechada, sendo utilizada somente na alta temporada).

Faculdade de fruição
A faculdade de gozo ou fruição da coisa (antigamente chamada de jus fruendi)
se traduz pela possibilidade da retirada dos frutos da coisa. Esses frutos podem
ser naturais (como a colheita agrícola que venha do imóvel), industriais ou
civis (como os rendimentos de aluguéis) e representam proveito econômico
para seu proprietário.

Faculdade de disposição
A terceira faculdade que compõe o direito de propriedade é a disposição da
coisa (em latim, jus disponendi), seja por atos inter vivos ou mortis causa:
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Este predicado envolve o poder de consumir o bem, de aliená-lo ou gravá-


-lo, ou de submetê-lo ao serviço de terceira pessoa, ou de desfrutá-lo. Sem
dúvida, é o mais importante dos três atributos, pois quem dispõe dele se
mostra mais dono do mesmo relativamente à pessoa que o usa ou frui de
suas vantagens. Ao proprietário é assegurado, dentre outros atos, alienar a
coisa, transformá-la, dividi-la, aproveitar seus frutos, constituir sobre ela um
ônus como usufruto, hipoteca, penhor, além de facultar-se-lhe não a fruir e
a abandonar (RIZZARDO, 2016, p. 219).

A disposição do bem pode ser gratuita — por exemplo, nos casos de ces-
são gratuita de imóvel para a realização de evento beneficente, comodato ou
doação — ou onerosa — como em contratos de locação ou compra e venda.

Faculdade de reivindicação
A última das faculdades descritas no art. 1.228 do Código Civil se refere ao
direito de reivindicar a coisa em face de quem injustamente a detenha (ius
vindicandi, na expressão latina) (BRASIL, 2002). O exercício desse direito
ocorre pela via processual das ações petitórias, cujos pedidos são fundados
na propriedade, como a ação reivindicatória:

Pode-se afirmar que proteção da propriedade é obtida por meio dessa demanda,
aquela em que se discute a propriedade visando à retomada da coisa, quando
terceira pessoa, de forma injustificada, a tenha, dizendo-se dono. Nessa ação
o autor deve provar o seu domínio, oferecendo prova da propriedade, com o
respectivo registro e descrevendo o imóvel com suas confrontações. O autor
da ação reivindicatória deve ainda demonstrar que a coisa reivindicada es-
teja na posse injusta do réu. A ação petitória não se confunde com as ações
possessórias, sendo certo que nestas últimas não se discute a propriedade do
bem, mas a sua posse (TARTUCE, 2019, p. 134).

Esse elemento da propriedade representa a sua proteção processual. As


outras faculdades referentes às propriedades restariam esvaziadas se não fosse
permitido ao proprietário o direito de reaver o bem em casos de apossamento
injusto de terceiros. São elementos constitutivos da propriedade:

 faculdade de usar ( jus utendi) — servir-se da destinação econômica


da coisa;
 faculdade de fruir/gozar ( jus fruendi) — perceber frutos e produtos
da coisa;
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 faculdade de dispor ( jus disponendi) — escolher a destinação da coisa;


 faculdade de reivindicar ( jus vindicandi) — utilizar-se da via processual
para reaver a coisa de terceiros.

Quando uma pessoa tiver essas quatro faculdades sobre o bem, dizemos que
ela tem propriedade plena sobre a coisa. Contudo, esses atributos podem ser
distribuídos entre pessoas distintas, havendo a chamada propriedade restrita.
Assim, podemos classificar a propriedade como:

 Propriedade plena (alodial) — hipótese em que o proprietário con-


centra os atributos de gozo, uso, reivindicação e disposição sobre a
coisa. Dessa forma, os terceiros não têm qualquer direito sobre a coisa.
 Propriedade restrita (limitada) — nesses casos, algum ônus recai
sobre a propriedade, como hipotecas, servidões ou usufrutos. Assim,
algum(ns) atributo(s) da propriedade é(são) exercido(s) por outras pes-
soas, o que caracteriza a formação de direitos reais sobre a coisa alheia.

No caso de propriedade restrita, o direito de propriedade é composto de


duas partes, destacadas entre si:

 Nua-propriedade — titularidade do domínio do proprietário. Dizemos


que essa é a propriedade “[...] despida dos atributos do uso e da fruição
(atributos diretos ou imediatos)” (TARTUCE, 2019, p. 135). Nesses
casos, o proprietário do bem é chamado de nu-proprietário, senhorio
direto ou proprietário direto.
 Domínio útil — representado pelas faculdades de usar, gozar e dispor da
coisa. A depender das faculdades que reúne, a pessoa é chamada de acordo
com o direito real em coisa alheia representada por essas faculdades.

Quando todos os elementos da propriedade estiverem concentrados em um mesmo


indivíduo, ele detém a propriedade plena. Um exemplo comum do fenômeno do
desmembramento desses elementos é a constituição do direito real de usufruto, que
é uma situação de propriedade limitada. Nessa situação, os direitos de usar e gozar
da coisa passam para o usufrutuário, permanecendo o nu-proprietário somente com
os direitos de dispor da coisa e reivindicá-la.
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Atributos da propriedade
A propriedade é um direito que possui atributos específicos. O primeiro deles
é o absolutismo, porque, apesar das relativizações existentes sobre o direito
de propriedade (normalmente relacionadas com a colisão com interesses
coletivos), este é oponível erga omnes, ou seja, contra todos. A exclusividade
indica que uma coisa determinada não pode pertencer a mais de uma pessoa,
salvo nos casos de condomínio ou multipropriedade, embora a exclusividade
não exclua interesses indiretos de outros indivíduos.
Quanto à perpetuidade, a propriedade é concebida em solução de con-
tinuidade, de maneira a permanecer, independentemente de seu exercício,
salvo causa modificativa ou extintiva, de ordem legal ou convencional. A
elasticidade se refere à possibilidade de a propriedade ser contraída ou dis-
tendida em seus elementos, constituindo direitos reais em coisa alheia. São
atributos da propriedade:

 absolutismo — a propriedade é oponível erga omnes;


 exclusividade — a propriedade da coisa exclui o senhorio potencial de
outras pessoas ao mesmo tempo;
 perpetuidade — a propriedade tem solução de continuidade, salvo se
ocorrer um fato modificativo ou extintivo;
 elasticidade — a propriedade tem a possibilidade de desmembramento
de suas faculdades.

2 Propriedade urbana, propriedade rural


e propriedade de bens móveis
O exercício das faculdades de uso e a disposição das coisas sob o domínio do
proprietário podem gerar situações jurídicas que demandam especialização
jurídica, em virtude da necessidade de contemporização entre os elementos
estabelecidos pelo Código Civil sobre a propriedade com questões relacionadas
a interesses coletivos (BRASIL, 2002). Assim, há considerações necessárias
sobre o exercício da propriedade urbana e da propriedade rural, assim como
para a propriedade de bens móveis.
As faculdades relacionadas ao direito de propriedade urbana sofrem li-
mitações, em primeiro lugar, pela necessidade de consideração do direito de
vizinhança, consubstanciado no Código Civil (BRASIL, 2002). Em paralelo,
o Estatuto da Cidade (Lei nº. 10.257/2001) determina as questões que harmo-
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nizam a propriedade urbana com elementos jurídicos de política urbana, como


a possibilidade de edificação compulsória e a cobrança de Imposto Predial
Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo para imóveis considerados
subutilizados.
A legislação municipal, instrumento de concretização de políticas urbanas,
também pode evidenciar direcionamentos para as faculdades de uso e a dispo-
sição de imóveis, em seus Planos Diretores e Códigos de Obras, entre outros.

Jairo realiza a compra de um terreno em área urbana, com a intenção de construir


um edifício de cinco andares, com destinação comercial. Contudo, o plano diretor do
município no qual se localiza o imóvel estabelece que, naquela área do zoneamento
urbano, haverá limitação de altura, sendo permitidas as construções de edifícios de
até três andares. Além disso, aquela área é classificada como estritamente residencial,
de maneira que não será possível exercer a faculdade de fruição de um imóvel para
a instalação de um centro comercial.

A propriedade rural não tem diferenciação conceitual sobre a descrição


do direito real de propriedade, mas possui um tratamento especializado em
virtude da criação de leis especiais sobre o tema, justificadas pela compre-
ensão de especificidades práticas da propriedade rural. Nesse sentido, há
uma relação de interpretação jurídica complexa entre a Constituição Federal,
o Código Civil, o Estatuto da Terra (Lei nº. 4.504, de 30 de novembro de
1964) e a Lei nº. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que discorre sobre a
reforma agrária.
O conceito de imóvel rural é definido pela Lei nº. 4.504/1964 e pela Lei
nº. 8.629/1993. O art. 4º, I, do Estatuto da Terra indica que “Imóvel Rural é o
prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se
destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal,
florestal ou agroindustrial” (BRASIL, 1964, documento on-line).
Como indica a redação do dispositivo, há duas teorias sobre a caracterização
do imóvel como rural ou urbano: a teoria da localização e a teoria da desti-
nação. A despeito de a caracterização do direito rural não diferir fortemente
entre uma e outra, há relevância do ponto de vista do Direito Tributário — se
for caracterizado como imóvel rural, este se aproxima do fato gerador de
Imposto Territorial Rural, de competência da União; se for caracterizado como
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urbano, este se aproxima do fato gerador de IPTU, de competência municipal.


O Quadro 1 explicita as diferenças entre as duas teorias.

Quadro 1. Teorias sobre a diferenciação entre propriedade rural e urbana

Teoria da A localização do imóvel é suficiente para caracterizá-


localização -lo como rural

A destinação econômica define a sua caracterização:


 há imóveis rurais em áreas urbanas — por exem-
Teoria da
plo, granja em bairro periférico;
destinação
 há imóveis urbanos em áreas rurais — por exem-
plo, área de lazer sem destinação agropecuária.

Rizzardo (2016, p. 238) pontua que o caráter distintivo de todas as


tentativas de definição do imóvel rural está relacionado com sua destinação
econômica específica, que pouco tem a ver com o local em que o imóvel
se encontra:

Já que a nota marcante está na destinação à produção, o imóvel que interessa


ao direito agrário é aquele visto como “bem produtivo”, não como um mero
“bem patrimonial”. Ou seja, a terra rural que forma o imóvel rural não é
considerada como um mero bem a ser contabilizado no patrimônio de uma
pessoa ou de uma empresa, mas é apresentada como um meio de produção
sujeito ao bem comum, ao cumprimento de sua função social. [...] Não se
considera o imóvel como rural tão somente pelo fato de estar localizado fora
do perímetro urbano, não importando a atividade que nele era desenvolvida.
A chamada Teoria da Localização não é mais aceita, vigorando o conceito
da destinação que se dá ao imóvel. Domina o critério da atividade exercida
no imóvel, pouco importando onde a propriedade está localizada. De sorte
que a definição do imóvel como rural ou como urbano encontra sua base na
chamada Teoria da Destinação.

Outra questão relevante se refere à caracterização da propriedade rural


familiar, em distinção ao minifúndio e ao latifúndio. Nesse sentido, o art.
4º, II, do Estatuto da Terra define como propriedade rural familiar aquele
“[...] imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua
família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência
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e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região
e tipo de exploração, e, eventualmente, trabalho com a ajuda de terceiros”
(BRASIL, 1964, documento on-line).

A extensão territorial do imóvel rural precisa ter o tamanho mínimo de um módulo


rural, que é calculado de acordo com cada região do país e seu tipo de exploração.
Caso seja menor do que essa medida, é caracterizada como minifúndio. Contudo, caso
seja maior, não significa que necessariamente esta propriedade será enquadrada como
latifúndio, sendo possível que se classifique como pequena ou média propriedade, ou
empresa rural, porque estas manifestações de propriedade rural podem ser constituídas
por áreas territoriais de mais de um módulo.

Quanto à propriedade de bem móvel, esta é estruturada juridicamente


em virtude da fluidez de trocas que podem ocorrer em virtude de sua na-
tureza. Assim, de maneira residual, a doutrina e o legislador estabelecem a
propriedade de bem móvel de acordo com os seus mecanismos de aquisição
(que consequentemente também se apresentam como mecanismos de perda
simultânea do bem para outrem).

3 Aquisição e perda da propriedade


As formas de aquisição e perda da propriedade constituem temas relevantes
do estudo do Direito Civil. Esse estudo aqui será iniciado pelas formas de
aquisição da propriedade imóvel. Assim como acontece na aquisição de posse,
a propriedade de coisas imóveis admite formas de aquisição originárias e
derivadas.
Essa distinção se justifica porque, nas formas originárias, há contato di-
reto da pessoa com a coisa, sem qualquer intermediação por outros sujeitos.
Em formas derivadas, há a intermediação subjetiva, porque há intervenção
prática de outros sujeitos na aquisição da propriedade. A Figura 1 apresenta
as diferentes formas de aquisição da propriedade do imóvel.
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Figura 1. Modos de aquisição da propriedade imóvel.

Flavio Tartuce (2019, p. 192) esclarece a relevância dessa distinção:

Do ponto de vista prático, a distinção entre as formas originárias e derivadas


é importante. Isso porque nas formas originárias a pessoa que adquire a
propriedade o faz sem que esta tenha as características anteriores, de outro
proprietário. Didaticamente, pode-se afirmar que a propriedade começa do
zero, ou seja, é “resetada”. É o que ocorre na usucapião, por exemplo. Já nas
formas derivadas, há um sentido de continuidade da propriedade anterior,
como se dá na compra e venda. Na prática, é interessante pontuar como essa
distinção influi na questão tributária. Se a propriedade é adquirida de forma
originária, caso da usucapião, o novo proprietário não é responsável pelos
tributos que recaiam sobre o imóvel. Essa tese foi adotada pelo Supremo
Tribunal Federal, em impactante julgado, da lavra do então Ministro Djaci
Falcão (STF, Recurso Extraordinário 94.586-6/ RS, j. 30/8/1984). O mesmo
raciocínio, todavia, não serve para a aquisição derivada, pois na compra e
venda o adquirente é responsável por esses tributos.

As ilhas e a sua formação merecem a atenção dos estudiosos do Direito


Civil quando se formam em rios não navegáveis, que pertencem ao domínio
particular. Assim, as ilhas fluviais e lacustres de zonas de fronteira, ilhas
oceânicas ou costeiras pertencem à União, aos municípios (art. 20, IV, da
Constituição Federal) ou aos Estados federados (art. 26, II e III, da Constituição
Federal), demandando questões de Direito Administrativo.
Dessa maneira, quando há formação de ilhas no meio de um rio (Figura 2a),
estas são consideradas como “[...] acréscimos sobrevindos aos terrenos ribeirinhos
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fronteiros de ambas as margens, na proporção de suas testadas, até a linha que


dividir o álveo em duas partes iguais” (TARTUCE, 2019, p. 190). Caso a ilha se
forme entre a linha média do curso d’água e uma de suas margens, esta será
considerada um acréscimo aos terrenos ribeirinhos fronteiros do mesmo lado
em que se formou (Figura 2b). Por fim, a ilha que se forma pelo desdobramento
de um novo ramo do rio continua a pertencer aos proprietários dos terrenos
às custas dos quais se constituíram (Figura 2c).

Rio Rio

Ilha

Proprietário X Ilha Proprietário Y Proprietário X Proprietário Y


100%
50% 50%

Ilha

100%

Novo desdobramento
do rio

Ilha

Proprietário X Proprietário Y

Rio

Figura 2. Formação de ilhas e domínio particular: (a) formação de ilha no meio do rio;
(b) formação de ilha entre a linha média do curso d’água e uma de suas margens; (c) ilha
que se forma pelo desdobramento de um novo ramo do rio.
12 Propriedade

O aluvião, descrito no art. 1.250 do Código Civil (BRASIL, 2002), explica


que o acréscimo discreto e contínuo de terras às margens do rio, formando uma
faixa de terra de acréscimo ao terreno, pertence ao dono do terreno marginal;
o parágrafo único diz que, se a formação de aluvião compreende mais de um
terreno, há divisão entre estes, proporcional à testada de cada um. Nesse caso,
a terra se acumula lentamente. Segundo Tartuce (2019, p. 195):

Contudo, além da aluvião própria (arts. 1.250, caput, do CC, e 17 do Código


de Águas), há ainda a aluvião imprópria (arts. 1.250, parágrafo único, do
CC, e 18 do Código de Águas). As partes descobertas pelo afastamento das
águas de um curso são assim denominadas, hipótese em que a água vai, ou
seja, do rio que vai embora.

A avulsão ocorre em uma situação abrupta, em que, pela força natural,


uma porção de terra se destaca de um imóvel e se acumula em outro. Nesses
casos, o dono do imóvel em que houve acréscimo adquire sua propriedade se
indenizar o dono do primeiro ou, sem indenização, se, em 1 ano, ninguém
houver reclamado.
O álveo abandonado consiste na circunstância em que o curso d’água seca,
de maneira que o art. 1.252 do Código Civil explica que a propriedade desse
antigo leito de rio pertence aos proprietários ribeirinhos das duas margens,
sem que tenham indenização os donos dos terrenos por onde as águas abrirem
novo curso, entendendo-se que os prédios marginais se estendem até o meio
do álveo (BRASIL, 2002).
As acessões artificiais correspondem às plantações e construções realiza-
das pelo homem (descritas nos arts. 1.253 a 1.259 do Código Civil). Segundo
Flávio Tartuce (2019, p. 199):

A regra básica relativa às acessões artificiais é aquela que consta do art. 1.253
do Código Privado: “toda construção ou plantação existente em um terreno
presume-se feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário”.
Constata-se que as construções e plantações têm natureza acessória, uma vez
que constituem bens imóveis por acessão física artificial, nos termos do art.
79 do CC/2002. Por isso é que seguem a sorte do principal, particularmente
quanto à propriedade (princípio da gravitação jurídica). De qualquer forma,
deve-se entender, por razões óbvias, que a presunção prevista no art. 1.253
do Código Civil é relativa, iuris tantum, admitindo prova e até previsão em
contrário, podendo haver um destino diverso das construções e plantações
realizadas em um bem. Relativamente à previsão em contrário, concretizando,
esta pode ocorrer no direito real de superfície.
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A usucapião representa uma circunstância em que a propriedade é adquirida


pela posse prolongada, em que uma situação de fato relacionada a essa posse,
considerada em dado intervalo de tempo, transforma-se em situação jurídica
de aquisição originária da propriedade.
O registro do título é a forma mais relevante de aquisição derivada da pro-
priedade do imóvel, porque demonstra, na sucessão de anotações registrais, todas
as intermediações pessoais ocorridas naquele imóvel. Como se trata de uma
situação de continuidade jurídica, o novo proprietário da coisa se responsabiliza
pelos seus ônus (como encargos tributários). Segundo Tartuce (2019, p. 263):

O registro imobiliário, que se situa no plano da eficácia do contrato, é que


gera a aquisição da propriedade imóvel, e deve ocorrer o Cartório de Regis-
tro de Imóveis do local de situação da coisa (arts. 1º, inc. IV, e 167 a 171 da
Lei 6.015/1973 — Lei de Registros Públicos). Da mesma forma, prevê o art.
1.227 do CC de 2002 que “os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou
transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório
de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os
casos expressos neste Código”. Um dos casos expressos no Código Civil,
em que se dispensa o registro, é na sucessão hereditária, como se verá. Em
complemento ao que consta do art. 1.227, dispõe o art. 1.245 do CC/2002 que
se transfere entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo
no Registro de Imóveis.

A propriedade de coisa móvel pode ser adquirida originariamente pela usu-


capião, pela ocupação e pelo achado do tesouro. A ocupação é a situação em que
o sujeito se apodera de coisa sem proprietário (o que contempla, inclusive, os
casos de produtos de caça e pesca) ou coisa abandonada, enquanto o achado do
tesouro descreve, segundo Tartuce, “[...] o depósito antigo de coisas preciosas,
oculto e de cujo dono não haja memória. Em suma e em tom didático, trata-se
dos velhos tesouros tão almejados pelos piratas da Idade Moderna” (TARTUCE,
2019, p. 268). A aquisição derivada da propriedade móvel pode ocorrer:

 pela tradição, que representa a entrega da coisa quando da realização


de um contrato;
 pela especificação, que é “[...] quando uma pessoa, trabalhando em
matéria-prima, obtém espécie nova. Esta será do especificador, se a
matéria era sua, ainda que só em parte, e não se puder restituir à forma
anterior” (GONÇALVES, 2019, p. 327);
 pela confusão, que é a mistura de líquidos;
 pela comistão, que representa a mistura de sólidos;
 pela adjunção, que representa a justaposição de duas ou mais coisas.
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Perda da propriedade
Sempre que há aquisição da propriedade, há concomitantemente sua perda para
outrem, independentemente de se tratar de coisa móvel ou imóvel. Assim, a
técnica legislativa adotada no art. 1.275 do Código Civil considera que algumas
hipóteses precisavam ser consideradas expressamente, como:

 alienação da coisa, que importa nos atos de despojamento oneroso do


patrimônio do titular (como em contratos de compra e venda);
 renúncia, realizada em ato unilateral pelo proprietário;
 abandono, em que “[...] o proprietário deixa a coisa com a intenção de
não mais tê-la consigo, surgindo o conceito de res derelicta, diante da
derrelição. Surgindo a coisa abandonada, qualquer pessoa pode adquiri-
-la, seja por meio da ocupação (bem móvel), seja por meio da usucapião
(bem móvel ou imóvel)” (TARTUCE, 2019, p. 283);
 o perecimento, em que a coisa é perdida ou destruída (como um bem
móvel que é despejado ao mar ou uma construção que é fulminada
por um incêndio);
 a desapropriação, modalidade na qual há perda da propriedade em face do
Poder Público — esse tema é desenvolvido de maneira mais aprofundada
no campo do Direito Administrativo, enquanto o Código Civil se limita
a tratar da desapropriação para fins de necessidade e interesse público e
da desapropriação no interesse privado, diante da posse-trabalho.

BRASIL. Lei nº. 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra,
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 30 nov. 1964. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 19 abr. 2020.
BRASIL. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial
da União, Brasília, 11 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 10 abr. 2020.
TARTUCE, F. Direito civil: direito das coisas. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 4 v.
GONÇALVES, C. R. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 16. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019. 5 v.
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PEREIRA, C. M. da S. Instituições de direito civil: direitos reais. 27. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. 4 v.
RIZZARDO, A. Direito das coisas. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

Leitura recomendada
BRASIL. Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Consti-
tuição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, 11 jul. 2001. Disponível em: https://www2.camara.leg.
br/legin/fed/lei/2001/lei-10257-10-julho-2001-327901-publicacaooriginal-1-pl.html.
Acesso em: 20 abr. 2020.
BRASIL. Lei nº. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos
dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título
VII, da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, 26 fev. 1993. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8629.htm. Acesso em: 19 abr. 2020.

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