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CONTRATOS AGRÁRIOS ATÍPICOS E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

RURAL

GT2 – CONTRATOS AGRÁRIOS E AGROINDUSTRIAIS

Gabriela Eduarda Marques Silva


Júlia Gaioso Nascimento

Resumo
O presente trabalho é realizado a partir da doutrina, legislação e pesquisa bibliográfica. O
método é o dedutivo, que extrai o conhecimento a partir de premissas gerais aplicáveis no
caso concreto. E o método histórico, com o estudo da herança legislativa da propriedade
rural brasileira, com uma breve análise da formação da composição fundiária brasileira dos
tempos do Brasil Colônia. Os contratos agrários típicos são instrumentos jurídicos a
serviço do cumprimento da função social da propriedade. A finalidade desse estudo é
discutir se os contratos agrários atípicos também devem cumprir a função social, dado a
valorização da autonomia privada.

Palavras-chave: Contratos agrários atípicos. Função social da propriedade rural. Normas


agrárias.

Abstract
This paper is carried out based on doctrine, legislation and bibliographic research. The
method is deductive, which extracts knowledge from the general premises applicable in the
specific case. And the historical method, with the study of the legislative generation of
Brazilian rural property, with a brief analysis of the formation of the Brazilian land
composition from the times of Colonial Brazil. Typical agrarian contracts are legal
instruments in the service of fulfilling the social function of property. The function of this
study is to discuss whether atypical agrarian contracts must also fulfill the social function,
given the valuation of private autonomy.

Key-words: Atypical agrarian contracts. Social function of rural property. Agrarian standards.

INTRODUÇÃO


Graduada em Direito, pela Universidade Estatual de Londrina (UEL), Londrina/PR. Pós-Graduanda em
direito da família pela mesma instituição. Vinculada ao projeto de pesquisa “11742 – Do acesso à Justiça no
Direito das Famílias”, do Departamento de Direito Privado do Centro de Estudos Sociais Aplicados – CESA, da
Universidade Estadual de Londrina. E-mail: gabrielamarquesadv@hotmail.com

Graduada em Direito, pela Universidade Estatual de Londrina (UEL), Londrina/PR. Pós-Graduanda em
Direito Civil e Processo Civil pela mesma instituição. Vinculada ao projeto de pesquisa "11797 – Negócios
Biojurídicos: as Tecnologias e o Direito Civil", do Departamento de Direito Privado do Centro de Estudos
Sociais Aplicados – CESA, da Universidade Estadual de Londrina, sob orientação da Profª. Drª. Rita de Cássia
Resquetti Tarifa Espolador. E-mail: julia_gn_@hotmail.com
O ramo jurídico do Direito Agrário engloba princípios e normas tanto de direito
público quanto de direito privado. O próprio legislador constituinte reconhece ser o Direito
Agrário um ramo autônomo no artigo 22, da Constituição Federal. Este ramo tem grande
relevância no ordenamento jurídico brasileiro, pois disciplina relações da atividade rural que
envolvem a função social da propriedade rural.
Para debater a respeito dos contratos agrários atípicos e o cumprimento da função
social, é essencial, antes de tudo, tratar dos contratos agrários típicos. Estes são meios de
regulamentação das relações entre propriedade e o uso da posse no imóvel rural.
Assim, seu papel é fundamental para o atendimento da função social da propriedade.
São instrumentos para que a devida destinação seja dada à propriedade, conservando-se o
meio ambiente e os direitos de propriedade, uso e posse da área rural.
Nos contratos agrários há interesse estatal na preservação da propriedade rural, visto
que tal propriedade é uma das maiores riquezas no desenvolvimento econômico do país,
devendo, por isso, ser utilizado em prol do interesse coletivo. Trata-se da função social do
contrato em sentido estrito.
O objeto das relações jurídicas contratuais agrárias é do interesse da coletividade, por
exemplo, o mercado e a exploração econômica do ambiente. A aplicação da função social
busca compensar a sociedade das externalidades que pode causar a terceiros, com fundamento
no artigo 421, do Código Civil Brasileiro.
Nesse cenário, é relevante o estudo dos contratos agrários atípicos, os que não tem
expressa descrição legal, visto que são cada vez mais empregados nas relações do campo.
Tais contratos possibilitam uma maior amplitude da autonomia privada do que os contratos
típicos.
Desse modo, questiona-se se seu uso precisa ser voltado ao atendimento da função
social da propriedade rural, dos requisitos da função social descritos no artigo 186 da
Constituição Federal. Diante disso, no presente artigo, será abordado o reflexo do princípio
constitucional da função social da propriedade rural nos contratos agrários, sobretudo os
atípicos.

1 CONTEXTO HISTÓRICO

Desde os primórdios o homem tem uma estreita relação com a propriedade rural;
hoje, tal ligação se expressa nos contratos agrários típicos e nos contratos agrários atípicos.
Vinculado a esta relação, deve-se considerar a função social da terra, frente a um rompimento
com o sistema positivo nacional de cunho individualista. Para se adentrar nessa temática, faz-
se necessário um breve conhecimento do arcabouço jurídico agrário brasileiro.

1.1 Da Legislação Agrária

Desde a colonização dos portugueses no Brasil, com a divisão das terras brasileiras
em capitanias hereditárias e sesmarias, houve a necessidade de regulamentação do Direito
Agrário.  A Coroa Portuguesa cedia terras ao sesmeiro, que ficava obrigado a nela plantar
cana de açúcar. Era cobrado do sesmeiro um tributo e, se não fosse pago, este caia em
comisso, o que provocava a extinção do contrato pelo inadimplemento; com isso, as terras
voltavam para a Coroa, que poderia repassa-las para outras pessoas.
Assim, a relação do homem com a terra já era significativa e havia a necessidade de
uma regulamentação da atividade agrária, de modo a nortear os contratos agrários. “Portanto,
havia uma necessidade de ordenação jurídica, pois era necessário revalidar as concessões de
sesmaria e legitimar a posse, prática que crescia desordenada no final período colonial”.
(CAVALCANTE, 2005, p.1)
Por isso, é importante uma breve análise histórica dessa herança territorial. Durante a
colonização, o objetivo era povoar o território para assegurar a sua conquista, tanto que as
doações de terras exigiam que os portugueses que as receberam as explorassem. Assim, essa
divisão territorial foi feita de forma desigual.
A consequência da distribuição desigual foi a formação de grandes propriedades,
com reflexos no Direito Agrário brasileiro atual. Sendo este um ramo jurídico muito recente
no país, a União passou a ter competência para legislar a respeito da matéria a partir da
Emenda Constitucional nº. 10 de 1964. Essa Emenda incluiu a desapropriação para fins de
reforma agrária na Constituição, um dos temas mais importantes do Direito Agrário, pois dá
início a esse ramo do direito, não apenas no Brasil, mas em diversos outros países.
Com o fim do regime de sesmarias, teve início no Brasil o sistema de posse, que as
reconheceu, o que manteve na posse os sesmeiros que lá estavam e ratificou formalmente o
regime das posses. Esse sistema de posse durou até o advento da Lei de Terras (Lei 601 de
18/09/1850).
Após a independência do Brasil, em 1850, foi promulgado a Lei nº 601, conhecida
como “Lei de terras”, que estabeleceu que o modo de aquisição das terras devolutas,
pertencentes ao Estado, seria através da compra e venda, extinguindo a aquisição de terras por
meio da posse e aperfeiçoando a regulamentação dos contratos agrários, protegendo as
propriedades regularizadas por meio da criação de um cadastro das propriedades no Brasil.

Foi nesse sentido que se concebeu a principal legislação do período sobre ocupação
do território, a Lei de Terras (Lei n. 601, de 18.09.1850), geradora de efeitos de
longa duração para a propriedade fundiária e o povoamento do país. A medida
transformou as áreas devolutas em mercadoria comercializável pelo Estado. A
obtenção de lotes agrícolas passava a se dar exclusivamente por meio de compra e
venda, não mais por cessão gratuita em nome do sesmeiro ou do posseiro, como
ocorria desde o tempo colonial. (MENDES, 2009, p.178)

Com isso, essa lei impediu que, por exemplo, lavradores tivessem acesso à
propriedade da terra, visto que só os grandes proprietários de terra poderiam arcar com o valor
das propriedades estatais. Esse modelo de ocupação territorial brasileira consolidado pela Lei
de Terras foi o principal obstáculo jurídico ao desenvolvimento da pequena propriedade
agrícola no Brasil. 
A regulamentação do Direito Agrário se dá com o Estatuto da Terra. Trata-se de uma
das leis mais importantes do Direito Agrário Brasileiro, é a primeira lei regulamentadora, a
grande responsável por trazer uma série de conceitos e institutos.
O Estatuto da Terra, Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964, reconhecida como norma
agrária fundamental, recebeu a regulamentação pelo Decreto 59.566, de 14 de novembro de
1966; foi uma das primeiras manifestações de rompimento da valorização do individualismo
no sistema positivo nacional e trata de contratos agrários, função social da propriedade, entre
outros.
De acordo com o art. 2º do Estatuto da Terra: “É assegurada a todos a oportunidade
de acesso à terra, condicionado pela sua função social, na forma prevista nesta Lei” (BRASIL,
1964). Ainda, é nesse contexto que o art. 12, na Seção II, traz que “à propriedade privada da
terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo,
previsto na Constituição Federal e caracterizado nesta lei” (BRASIL, 1964). Foi a partir dessa
legislação agrária que se desenvolveu o sistema agrário atual, com um capítulo específico
sobre política agrícola, fundiária e reforma agrária na Constituição Federal de 1988.

1.2 Da Função Social

É importante elucidar o ramo do Direito Agrária, uma vez que este possui
autonomia; trata-se de um ramo autônomo do Direito. De acordo com a maior parte da
doutrina, o Direito Agrário possui uma natureza jurídica dupla, pois concilia tanto aspectos do
direito público quanto do privado; há uma mescla do público com o privado, demonstrando o
fim da dicotomia entre público e privado. Por exemplo, a desapropriação para fins de reforma
agrária pertence ao direito público, já os contratos agrários e usucapião são institutos de
direito privado.
Em virtude desta natureza jurídica dupla, o Direito Agrário é classificado como um
direito social, visto que possui princípios do direito público e do direito privado. Assim, pode
ser definido como “o conjunto de princípios e de normas, de Direito Público e de Direito
Privado, que visa a disciplinar as relações emergentes da atividade rural, com base na função
social da terra”. (SODERO, 1968, p. 32)
Tal ramo traz em seu cerne um “conjunto sistemático de normas jurídicas que visam
disciplinar as relações do homem com a terra, tendo em vista o progresso social e econômico
do rurícola e o enriquecimento da comunidade” (BORGES, 1996, p. 17). Portanto, o Direito
Agrário visa proteger não só o homem, mas também a terra:

O Direito Agrário (...) tem como preocupação fundamental a conservação da terra


visando a uma maior diversificação e a um máximo aproveitamento da produção
natural, o que sói acontecer se houver um uso múltiplo e integrado, bem como
mantendo-se a estrutura e destinação da terra e respeitando-se a fauna, flora e
demais elementos naturais, de forma a promover o equilíbrio ecológico necessário
ao melhor aproveitamento do solo. (COELHO, 2002, p.38)

Frente a essa proteção da terra, cabe dizer que a liberdade de contratar, atributo do
direito privado, é relativizada no âmbito do Direito Agrário, pois os direitos e vantagens
previstos em lei são irrenunciáveis. A função social da propriedade relativiza o direito de
propriedade, que não pode ser pensado como um direito absoluto.
Antes do Código Civil de 2002, imperava uma total liberdade de negociação entre as
partes do contrato agrário. O dirigismo estatal restringe a vontade das partes e garante o uso
mais sustentável e produtivo do imóvel rural.
Dessa forma, o princípio da função social do contrato, presente no art. 421 do Código
Civil de 2002, dispõe que: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato” (BRASIL, 2002), tal dispositivo serve como orientação para os
contratos agrários. A Constituição Federal também dispõe sobre a função social dos contratos
em dois artigos, o 5º, inciso XXIII e o 170, inciso III, da Constituição Federal. Isso se dá
porque a função social da propriedade não deve ser tratada somente como um direito
individual, mas também econômico.
A legislação pátria objetiva proteger a função social da propriedade, com relevância,
na Constituição de 1988, não apenas em seu artigo 5º, que trata dos direitos
individuais, mas também das normas relativas a economia, onde segue o
entendimento de grande parte dos ordenamentos mundiais, que elevam a
propriedade como um de seus principais bens, fonte de riqueza e segurança para
toda a Nação, de onde resulta a sua função social (COELHO, 2006. p. 66).

No mundo, a origem da função social da propriedade está na Constituição Mexicana


de 1917 e na Constituição Alemã de 1919. No Brasil, a primeira lei que tratou expressamente
da função social da propriedade foi o Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), no art. 2º. A primeira
Constituição Federal a trazer o termo “função social da propriedade” foi a de 1967, no art.
157, inciso III.
O cumprimento da função social agrária está previsto no art. 186 da Constituição
Federal, que traz critérios objetivos para o cumprimento da função social da propriedade rural.
A função social rural é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, esses
critérios.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,


simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos
seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
(BRASIL, 1988)

Todos os requisitos, sem exceção, devem ser cumpridos. A função social da


propriedade agrária é o elemento central do Direito Agrário, porque faz do bem imóvel um
bem de produção de alimentos e matéria-prima.

2. ESPÉCIES DE CONTRATOS AGRÁRIOS

É imprescindível a diferenciação entre contratos típicos e atípicos, especialmente para


uma melhor compreensão sob o prisma da autonomia privada; ambos são utilizados nos
negócios jurídicos agrários e suas particularidades certamente se limitam aos princípios da
Constituição Federal no que concerne à propriedade privada.

2.1 Contratos Agrários típicos


O contrato agrário é típico quando possui regulamentação específica na lei. O objeto
no contrato agrário é o imóvel rural e sua finalidade é regulamentar as relações de uso ou
posse temporária desse imóvel rural para implementar atividade agrícola.
Trata-se de um instrumento de acordo de vontades que permite o uso temporário de
terras alheias, sendo subordinado às cláusulas obrigatórias e ao dirigismo do Estatal. Os
contratos agrários típicos são somente aqueles dispostos no Estatuto da Terra e no Decreto
59.566/1966, sendo estes os contratos de arrendamento e parceria.

O contrato agrário constitui uma limitação ao direito do proprietário das terras rurais
de usá-las e gozá-las, devido à exigência da participação dos frutos na parceria, do
teto máximo de preço no arrendamento e da fixação de prazos mínimos em ambos
os contratos. (DINIZ, 2003, p. 505)

De acordo com o artigo 92, caput, § 8º, do Estatuto da Terra, os contratos agrários
podem ser expressos ou tácitos, ou seja, o consentimento poderá ser escrito ou verbal. Outras
características são: bilateralidade, ambas as partes assumem obrigações recíprocas;
onerosidade, pois suportam redução patrimonial; consensualidade ou não solenidade, ou seja,
não dependem da entrega efetiva.
As partes podem estipular livremente cláusulas que não contrariem os dispositivos do
Estatuto da Terra, podendo inclusive utilizar garantias, sendo caução e fiança, previstas na Lei
de Locações Urbanas. Porém, não é permitido às partes renunciarem direitos garantidos pela
lei, como cláusulas obrigatórias e direito de preferência, com base no art. 88 do Decreto
59.566/66: “No que forem omissas as Leis nº. 4504/64, 4947/66 e o presente Regulamento,
aplicar-se-ão as disposições do Código Civil, no que couber.” (BRASIL, 1966)

De um autonomismo de vontade, como é a estrutura do Código Civil, passou-se para


um dirigismo estatal nitidamente protetivo, como se revestem todos os dispositivos
do direito agrário. Em outras palavras, afastou-se o sistema de liberdade de ação das
partes envolvidas em qualquer questão agrária, para uma forte e coercitiva tutela
estatal de proteção absolutamente favorável ao trabalhador rural, num claro
reconhecimento da existência de desigualdades no campo a merecer intervenção
desigual do Estado legislador. (BARROS, 1998, p. 29)

As cláusulas obrigatórias se encontram no art. 12 e o art. 13, ambos do Decreto


59566/66, e no art. 95 inc. XI, do Estatuto da Terra. Se estas forem violadas, o contrato será
nulo de pleno direito.
A rigidez da autonomia da vontade, expressa pelo liberalismo econômico, pacta sun
servanda, é flexibilizada em todo o direito, até mesmo no direito privado, e tem força
praticamente nula no Direito Agrário, tanto são as restrições impostas à vontade das partes,
sendo a função social da propriedade rural uma delas.
2.2 Contratos Agrários atípicos

Os contratos agrários atípicos ou inominados, são assim chamados pois não estão
positivados na legislação agrária brasileira. São exemplos os contratos de: roçado; pastoreio
ou invernagem ou de pastagem; o de cambão; e o de fica. O art. 39 do Decreto n. 59.566/66
prevê a possibilidade de existirem contratos de forma não estabelecida em lei; o importante é
que se verifique o uso ou a posse temporária da terra.
A vantagem da atipicidade repousa no poder criativo dos contratantes, pois as partes
podem criar um modelo contratual congruente com as expectativas dos contratantes. Essa
liberdade contratual que permite a elaboração de contratos atípicos é objeto de controle pelos
princípios da boa-fé objetiva, da função social e da justiça contratual.
O dinamismo da atividade econômica em conjunto com a atividade agrária, requer a
edificação de novos negócios jurídicos que, muitas vezes, não encontram apoio nos tipos
inseridos na legislação. A autonomia privada é ampliada, mas não a ponto de ofender a ordem
pública, conforme o art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil de 2002.
É impossível descrever as inúmeras e inesgotáveis modalidades de contratos atípicos
existentes no âmbito agrário; em virtude disso, para melhor elucidar a regulamentação destes
contratos, será exemplificado o comodato rural. “O contrato de comodato foi previsto no
Código Civil, nos arts. 579 a 585, é muito utilizado no meio rural, quando o proprietário
oferece de forma graciosa a moradia, com a condição de restituir quando solicitado.” (SILVA,
2008, p. 202)
Portanto, o comodato é um contrato não oneroso, um empréstimo gratuito de coisas
não fungíveis que devem ser devolvidas após o decurso do prazo acordado. Não há retribuição
pela utilização do bem imóvel rural, pois na hipótese de renda ou aluguel, o contrato não será
de comodato, e sim de arrendamento rural, frente a sua onerosidade.
O contrato de comodato rural é intuitu personae; há um favorecimento temporário ao
comodatário que recebe o objeto do empréstimo e que exercerá a posse direta sobre este bem,
mesmo que de modo precário, pois deverá restituir no prazo, sendo que o comodante mantém
a posse indireta. Com isso, o comodato rural deverá observar as regras do comodato em geral,
artigo 579 a 585, do Código Civil, com as particularidades do Direito Agrário.

ACÓRDAO EMENTA: APELAÇAO CÍVEL. DIREITO CIVIL.


REINTEGRAÇAO DE POSSE. TÉRMINO DO CONTRATO DE COMODATO E
CONSEQUENTE PERDA DA POSSE. DIREITO À INDENIZAÇAO PELO
COMODATÁRIO DE BOA-FÉ. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE
PROVIDO.
I - O acordo firmado entre a Municipalidade e o Sr. Geraldo Cazaquevis Capucho
era de "utilização da área", não configurando uma Doação, mas um Contrato de
Comodato, conforme prevê o artigo 579, do Código Civil [...]. (TJES, Classe:
Apelação Civel, 29090006460, Relator Designado: NAMYR CARLOS DE SOUZA
FILHO, Órgão julgador: SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento:
04/10/2011, Data da Publicação no Diário: 20/10/2011)

Uma parte da lide se ampara nas normas agrárias, aplicáveis ao contrato da demanda;
enquanto a parte contrária argumenta que o contrato possui natureza civil, além de ser um
contrato agrário atípico, sem regulamentação específica. Os contratos agrários atípicos
possibilitam diversas formas de se contratar nos dias de hoje, o que resulta na problemática da
aplicação das normas agrárias ou do Código Civil no caso concreto.
A compreensão da função social depende da atuação do aplicador do direito,
qualquer que seja a espécie de contrato agrário, independente da norma aplicada ao contrato;
o que importa é o cumprimento à função social daquela propriedade.
Há uma lacuna legislativa no tratamento atual dos contratos agrários atípicos que
especifique regras a respeito desses negócios jurídicos, de modo a acompanhar a evolução das
relações do meio rural que seguem os usos e costumes regionais, sobretudo no caso dos
contratos agrários atípicos.

[...] é indiscutível que a tendência é uma flexibilização dos contratos agrários, em


especial, aos atípicos, considerando a relevância dos princípios consagrados pelo
Novo Código Civil brasileiro, da função social, boa-fé objetiva, e dos usos e
costumes, evidenciando as particularidades de cada pacto contratual, com a
necessidade, interesse dos partícipes, propiciando um progresso econômico, sem
vulnerar drasticamente as regras basilares do Direito agrário. (COELHO, 2006, p.
86)

Como não há regulamentação específica, a doutrina e a jurisprudência buscam


consolidar uma interpretação e aplicação dos contratos agrários atípicos, através dos
princípios, sendo a função social um deles. Sua observância é essencial, pois traça limites a
autonomia da vontade.
Todos os contratos agrários devem observar as normas do Decreto 59.566 e o art.13,
inciso IV, da Lei nº 4.947/66, uma vez que são irrenunciáveis os direitos e vantagens nelas
estabelecidos. No entanto, deve-se aferir que ao se tratar de um contrato atípico, esse se valerá
das normas gerais do Código Civil, ainda mais quando utiliza um tipo contratual lá previsto,
por exemplo, o comodato rural. Há flexibilização na interpretação do rigor das normas
agraristas.
No âmbito dos contratos agrários pode-se conjecturar, direta ou indiretamente,
grande influência da busca de uma efetivação da função social da propriedade, com base no
artigo 186, da Constituição Federal e do Estatuto da Terra.

Longe de ser um direito absoluto e soberano, vale dizer, ao invés de reconhecer no


interesse do proprietário uma incondicional prevalência, de sorte que todos e
quaisquer atos ou omissões de sua parte estariam automaticamente legitimados,
insiste-se em que o direito de propriedade deve desempenhar, mais do que quaisquer
outros direitos, uma função social, no sentido de que a ordem jurídica confere ao
titular um poder em que estão conjugados o interesse do proprietário e o interesse
social. (GOMES, 2000, p. 61)

Os contratos atípicos levam a uma maior amplitude de ação reservada aos


particulares em sua autonomia privada e sua liberdade contratual. No entanto, cabe ressaltar
que essa liberdade contratual não pode ser utilizada como meio para explorar a propriedade
rural sem o devido cumprimento da função social da terra.
Frente a extensão do território brasileiro, é realmente complicado o devido
tratamento do tema. A evolução das relações no campo, tornou evidente o fato de que sua
regulamentação normativa é insuficiente para todos os negócios jurídicos advindos do setor
agrário. Por isso é importante o papel da jurisprudência, que aperfeiçoa a interpretação das
lides agrárias, principalmente na relação contratual.

CONCLUSÃO

O Estatuto da Terra e o Decreto que regulamenta os contratos agrários,


estabeleceram experiências pioneiras na admissão de valores sociais no direito brasileiro,
razão pela qual tais contratos compõem relações jurídicas de natureza privada em que se
verifica uma acentuada tutela aos interesses públicos.
O contrato agrário é meio indireto para que o Estado atinja os objetivos do princípio
geral da função social da propriedade. A função social do contrato agrário se completa com a
função social da propriedade rural.
Os contratos agrários e sua função social garantem, não apenas, a existência de uma
atividade produtiva no imóvel rural, pois não basta tornar a terra produtiva ou distribuí-la
garantindo seu acesso, é preciso tutelar as relações decorrentes dessa atividade.
A função social da propriedade abrange diversos fins, nos termos do art. 186 da
Constituição Federal; trata-se de um conceito complexo que não está vinculado
exclusivamente à produtividade, mas também ao trabalho e à proteção do meio ambiente e do
potencial produtivo da terra. No cumprimento de todos esses objetivos é que se assegura a
efetividade da função social da propriedade.
A aplicação das normas e princípios agraristas aos contratos atípicos visa uma
harmonia entre o interesse individual e o coletivo. Assim, é possível atingir a função social do
imóvel rural, respeitando os requisitos do art. 186, da Constituição Federal.
A liberdade contratual presente nos contratos agrários atípicos, não é instrumento
para explorar a propriedade rural de forma a desconsiderar a função social daquele imóvel
rural. Independente da atipicidade de um contrato, este deve ser limitado pela função social.
Na verdade, exatamente por ser um contrato atípico e ter uma autonomia privada mais ampla,
é que se torna essencial o respeito à função social, pois é esta que vai reger e limitar a
liberdade de contratar.

REFERÊNCIAS

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Advogado: Porto Alegre, 1998, p. 29.

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Revisão. Diário Oficial da União. Brasília, 05 out. 1988.

_____. Decreto n. 59.566, de 14 de novembro de 1966. Regulamenta as Seções I, II e III do


Capítulo IV do Título III da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, Estatuto da Terra, o
Capítulo III da Lei nº 4.947, de 6 de abril de 1966 e dá outras providências. Diário Oficial
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_____. Lei nº 601, de 18 de novembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império.
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