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A PANDEMIA COVID-19 E OS IMPACTOS NO SISTEMA PRISIONAL À LUZ

DOS DIREITOS HUMANOS

THE COVID-19 PANDEMIC AND IMPACTS ON THE PRISON SYSTEM IN THE


LIGHT OF HUMAN RIGHTS
Gabriela Eduarda Marques Silva1

Júlia Gaioso Nascimento2

Thiago Eduardo Marques Silva3

Resumo

O presente estudo tem como objetivo a análise do sistema prisional brasileiro e como
este será capaz de lidar com a pandemia que o mundo vem enfrentando. Trata-se de
uma análise crítica acerca de um sistema falido e que não possui infraestrutura
suficiente para combater o coronavírus. O estudo não possui a pretensão de solucionar
a problemática, haja vista sua complexidade, e sim de convidar o leitor a refletir sobre
a pandemia da COVID-19 no sistema prisional brasileiro e como este sistema, que já
estava em colapso, será capaz de evitar a contaminação dos presos pelo novo
coronavírus. A pesquisa tem natureza qualitativa exploratória, utilizando-se de revisão
bibliográfica e dados estatísticos.

Palavras-chave: Sistema Prisional Brasileiro; Pandemia COVID-19; Estado de Coisas


Inconstitucional; Direitos Humanos.

Abstract

This paper aims to analyze the Brazilian prison system and how it will be able to deal
with the pandemic that the world has been facing. It is a critical analysis of a failed
system that does not have enough infrastructure to fight the coronavirus. The study
does not intend to solve the problem, given its complexity, but to invite the reader to
reflect on the pandemic of COVID-19 in the Brazilian prison system and how this

1
Advogada. Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL). Bacharelada em Direito pela mesma instituição. E-mail:
contato@gabrielamarquesadvogada.com.br

2
Bacharela em Direito pela Universidade Estatual de Londrina (UEL), Londrina/PR. Pós-Graduanda em
Direito Civil e Processo Civil pela mesma instituição. E-mail: julia_gn_@hotmail.com

3
Servidor Público TJSP. Especialista em Processo Civil pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Pós-
graduando em Processo Penal pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). E-mail: thiagoems@tjsp.jus.br
system, which was already collapsing, will be able to avoid contamination of prisoners
by the new coronavirus. The research has an exploratory qualitative nature, using
bibliographic review and statistical data.

Key-words: Brazilian Prison System; COVID-19 pandemic; Unconstitutional State of


Things; Human rights.

INTRODUÇÃO

O cenário atual da população carcerária brasileira é estarrecedor, com base no


Levantamento Nacional de Informações Penitenciária (Infopen) temos mais de 773 mil
presos, sem projeções otimistas, diante da curva em ascensão, ano a ano, da taxa de
aprisionamento (BRASIL, 2020).

Compreender a realidade do sistema prisional brasileiro é indispensável para


uma análise digna acerca do que o Brasil vem enfrentando perante a pandemia do
novo coronavírus e quais serão os impactos na população prisional.

Com o grande número de presos e a pouca estrutura carcerária, com mais


presos do que vagas, é um tanto quanto óbvio as condições precárias a que sujeitam
os presos; ainda que para a sociedade essa situação tenha se tornado “normal”, é
certamente desumano e inconstitucional o tratamento dado à comunidade prisional. É
um direito, aliás, garantido expressamente na Constituição Federal, ao disciplinar no
artigo 5º, inciso XLIX, que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e
moral” (BRASIL, 1988), assim, é urgente e básico compreender que esses indivíduos
são titulares não só de deveres, mas também direitos.

Em meio a esse caótico panorama do sistema prisional brasileiro que, por si só,
já é um grande problema a ser enfrentado, acrescenta-se a pandemia do novo
coronavírus, o COVID-19; se antes já se vivia um caos dentro das unidades prisionais,
imagine o que são esses ambientes, que sofrem de superlotação, enfrentando um
novo vírus; destaca-se que essa já é uma realidade catastrófica para a população como
um todo, como, então, o sistema prisional será capaz de lidar com essa pandemia?
1. O ENFRENTAMENTO DO NOVO CORONAVÍRUS (COVID-19) NO SISTEMA
PRISIONAL

Preliminarmente, é primordial inteirar-se acerca da realidade vivenciada nos


ambientes prisionais antes mesmo do surgimento deste novo vírus; o sistema prisional
brasileiro carece de infraestrutura e isso resulta em um ambiente de grande risco à
saúde dos presos.

1.1 O Sistema Prisional Brasileiro

O Brasil não possui um sistema de saú de capaz de lidar com a pandemia, uma
vez que nã o há estrutura hospitalar suficiente para atender aos infectados,
conforme bem elucida Á tila Iamarino, doutor em microbiologia pela USP (UOL,
2020); ressoa a todo instante a iminência de colapso da saú de pú blica.
No que concerne ao sistema prisional em si, realidade nã o é diferente. A Lei
de Execuçã o Penal (Lei nº 7.210/84), no capítulo II, seçã o III, dispõ e sobre a
assistência à saú de do preso, de modo a garantir a integridade física e mental do
indivíduo; a redaçã o do §2º do art. 14 esclarece que “quando o estabelecimento
penal nã o estiver aparelhado para prover a assistência médica necessá ria, esta
será prestada em outro local, mediante autorizaçã o da direçã o do estabelecimento”
(BRASIL, 1984); contudo, ainda que a LEP seja clara, na prá tica nã o é tã o simples.
A realidade evidencia que os estabelecimentos penais nã o possuem
infraestrutura capaz de prover assistência médica necessá ria, nã o é a toa que
muitos presos morrem por doenças tratá veis, como tuberculose, HIV, diabetes, etc.
Um estudo realizado pela Escola Nacional de Saú de Pú blica mostra que 30% das
mortes da populaçã o carcerá ria foram causadas por doenças infecciosas (FIOCRUZ,
2020).
O defensor Ricardo André de Souza, subcoordenador de Defesa Criminal do
Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em
reportagem dada à UOL, explica que até mesmo problemas simples de pele evoluem e
causam a morte do preso, por falta do tratamento adequado (UOL, 2020).
Nesse contexto, o ministro Marco Aurélio, no julgamento da ADPF 347, teceu
uma importante crítica neste sentido:

No sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos


fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade
psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das
delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem
jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e
indigno a pessoas que se encontram sob custódia. (AURÉLIO, 2020)

Logo, não é necessário sequer pensar em uma doença de alcance mundial para
compreender que o sistema prisional carece muito de estrutura, haja vista que este já
não conseguia resguardar a saúde dos presos antes; acrescenta-se agora mais um
agravante: a pandemia COVID-19.

1.2 Ações para combate à COVID-19 no sistema prisional

Vivencia-se em todo o território brasileiro uma grande mobilização a fim de


conter a propagação do COVID-19, tal como a suspensão do funcionamento do
comércio em muitos municípios, o isolamento social, a manutenção dos serviços
essenciais, etc.

O Ministério da Saúde regulamentou as medidas para a contenção do novo


coronavírus, como o isolamento e a quarentena, através da Portaria nº 356 de 11 de
março de 2020 (BRASIL, 2020). Muitos estados decretaram situação de emergência na
saúde pública, como é o caso de Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás e Santa Catarina
(CERIONI, 2020).

E o problema, como era de se esperar, não poupou o sistema prisional. A


pergunta que fica é: O Brasil está preparado para lidar com unidades prisionais
superlotadas4 e presos contaminados pelo coronavírus? Como seguir recomendações

4
Todos os Estados da Federação possuem déficit de vagas, segundo dados das inspeções nos
estabelecimentos penais cadastrados no CNJ (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).
como a do Ministério da Saúde de evitar aglomerações de pessoas em um ambiente
caracterizado pela aglomeração?

Ao que parece, a percepção é de insegurança jurídica, diante de


regulamentações esparsas, não sendo uníssonas as medidas adotadas pelas unidades
federativas no combate ao COVID-19 nas unidades prisionais; um exemplo que bem
elucida as divergências acerca das medidas tomadas é a situação atual quanto às
visitas, com suspensão total ou mantidas com restrição (DEPEN, 2020).

Aliás, essa insegurança levada a cabo pelo Executivo já chegou ao Judiciário,


como no mais das vezes acontece, merecendo destaque a recente concessão da ordem
nos autos do mandado de segurança nº 1015074-20.2020.8.26.0053, em 28.05.2020,
para determinar a proibição geral de visitas externas aos sentenciados, em todas as
Unidades Prisionais do Estado de São Paulo (BRASIL, 2020).

Essa determinação de proibição geral de visitas externas visa evidentemente


conter a propagação do novo coronavírus, trata-se da suspensão de um direito
fundamental por força maior; contudo, tal medida extrema pode ocasionar em
problemas ainda maiores, como rebeliões, como já previu o Depen (ÉBOLI, 2020). O
órgão solicitou um repasse da União de R$ 20 milhões de reais para aquisição de
granadas, munições e spray de pimenta.

Numa outra ação (ADPF nº 347/2015) sobre a temática, o Relator Marco


Aurélio conclamou os Juízos da Execução a analisarem algumas situações como
medidas para enfrentar o COVID-19 no tocante à população carcerária, como:
liberdade condicional aos encarcerados com idade igual ou superior a sessenta anos;
regime domiciliar aos presos acometidos por doenças que agravam o quadro daqueles
que contraírem o novo vírus; regime domiciliar às gestantes; substituição da prisão
provisória por medida alternativa em razão de delitos praticados sem violência ou
grave ameaça, etc. (AURÉLIO, 2020). O Ministro remeteu cópia da decisão ao
presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, para pronunciamento e referendo
cabível no Plenário da Corte.
No plenário da Corte, não prevaleceu o entendimento do Ministro Marco
Aurélio; prevaleceu o voto divergente do Ministro Alexandre de Moraes que entendeu
se tratar de uma megaoperação dos juízos da execução, bem como o voto do ministro
Luiz Edson Fachin, que trouxe uma análise interessante, ao dispor que seguir as ações
sugeridas pelo Ministro Marco Aurélio seria induzir uma forma atípica de indulto, ou
seja, se trataria de fixar critérios que se sobrepõem à legislação brasileira (VITAL,
2020).

Nesse contexto, atos administrativos e judiciais estão a todo instante


relacionados a essa nova realidade imposta pela pandemia, o que torna difícil
sistematizar todas as medidas até então adotadas, razão por que abordaremos as
regulamentações mais importantes e de alcance nacional sobre a temática.

1.3 Principais regulamentações

Algumas Portarias visaram restringir o acesso ao sistema prisional, a exemplo


do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), através da Portaria nº 5 de 16 de
março de 20205, suspendeu por 30 dias os atendimentos de advogados nos presídios
do Sistema Penitenciário Federal, exceto se tratando de casos urgentes ou com prazos
processuais não suspensos. Ademais, a portaria suspendeu atividades educacionais, de
trabalho e visitas, com o objetivo de conter o vírus; o Depen criou também o
Procedimento Operacional Padrão de Medidas de Controle e Prevenção do Novo
Coronavírus para ser adotado no Sistema Penitenciário Federal, cujos procedimentos
resumem-se a seguir as orientações do Ministério da Saúde, tal como as medidas de
higiene pessoal, isolamento em caso de suspeita da doença, etc. (BRASIL, 2020).

O Conselho Nacional de Justiça, através da recomendação 62/2020, emitiu


recomendação aos Tribunais e magistrados da adoção de medidas preventivas à
propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos estabelecimentos do
sistema prisional e do sistema educativo, dentre elas diminuir o ingresso de pessoas no
sistema prisional, bem como transferir os presos por dívida de pensão alimentícia para

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Objeto da Reclamação 39756, ao que restou indeferido o pedido de liminar contra a suspensão.
prisão domiciliar; no caso de adolescentes, a aplicação preferencial de medidas
socioeducativas em meio aberto e reavaliação das decisões que determinam
internação provisória; assim como realizar audiências de réu preso por
videoconferência e redesignar audiências de réu solto (BRASIL, 2020).

A recomendação prevê ainda que o Judiciário monitore o uso de recursos


federais, as ações dos comitês locais de combate à Covid-19, valores e finalidades das
penas pecuniárias e dados sobre equipamentos de prevenção e higiene (BRASIL, 2020).
Assim, a recomendação foi fundamental para dar aos Tribunais o respaldo e
uniformidade de tratamento para conduzir com segurança esta situação, tanto que os
organismos internacionais elogiaram a normativa proposta pelo CNJ. É evidente a
importância e relevância das recomendações propostas pelo CNJ; contudo, ainda que
se trate de recomendações válidas, não são suficientes para conter a pandemia no
sistema carcerário.

Diante da inegável dificuldade de ponderar a atual situação: proteção da saúde


e a vida dos presos, sem que a pandemia implique em um “remédio” jurídico de salvo-
conduto, a justiça tem obstado a concessão de pedidos em caráter coletivo, visando à
soltura de todos os presos em determinada situação, pois não é isso que provém da
recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, emanando dela a
necessidade de avaliação de cada preso, o que deve ser feito pelos respectivos juízes
das execuções criminais.

O cenário sobre os impactos da COVID-19 no sistema prisional tem sido


dinâmico, e novas ações foram definidas em uma série de encontros virtuais
promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça, dentre elas, dirigidas à Secretária de
Administração Penitenciária (SAP), solicitações no sentido de liberação do
fornecimento de água em todas as unidades de forma ininterrupta e a ampliação de
material de higiene pessoal; “carta e-mail” para comunicação entre familiares e presos
em razão da suspensão das visitas; higienização dos espaços; disponibilização de
medicamentos e profissionais de saúde para atendimentos nas unidades; EPI’s para as
pessoas que trabalham nos presídios, etc.; a Secretária estadual da saúde solicitou a
destinação de testes rápidos, bem como respiradores e equipamentos médicos para o
tratamento dos infectados, além de vacinar a população contra a gripe H1N1 (BRASIL,
2020).

No que concerne ao Judiciário como um todo, a recomendação é para que os


magistrados reavaliem as situações que implicaram ou impliquem em medidas de
privação da liberdade, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos.

Em maio, foi editada a resolução nº 5, última a dispor acerca das medidas a


serem tomadas para o enfrentamento da pandemia nos estabelecimentos penais. A
resolução é do Ministério da Justiça e Segurança Pública/Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciário e estabelece algumas diretrizes na adoção de medidas para o
enfrentamento da disseminação desse vírus no âmbito dos estabelecimentos penais,
como triagem de ingresso de presos no estabelecimento prisional, estruturas
destinadas ao atendimento à saúde e aos presos definidos como grupo de risco; a
portaria define, ainda, os moldes dessa estrutura de atendimento, sendo vedado,
dentre outros, o uso de contêineres ou outras estruturas similares para separar os
presos no sistema carcerário durante a pandemia. Aliás, foi proposta do Departamento
Penitenciário Nacional (Depen) de utilizar contêineres no sistema carcerário durante a
pandemia, o que foi rechaçado pelo CNJ (BRASIL, 2020).

Em suma, é sensível a questão acerca das medidas a serem adotadas, uma vez
que o sistema penitenciário deveria ter condições mínimas de combater a pandemia
nas suas dependências, mas, infelizmente, o já propagado “estado de coisas
inconstitucional”, agora tem que enfrentar um vírus em plena ascensão.

2. O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A princípio, é relevante contextualizar os direitos humanos, o que são e de


onde surgiu a necessidade de preocupar-se com o indivíduo e com direitos inerentes à
ele, para, assim, compreender o que o cenário prisional brasileiro representa e como
esses espaços ferem a dignidade da pessoa humana.
2.1 Os Direitos Humanos e os Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil

Os Direitos Humanos são aqueles direitos inerentes ao ser humano e não foram
“inventados”; trata-se do reconhecimento de aspectos básicos da vida humana que
precisam ser respeitados (PORFÍRIO, 2020). Esses direitos passam a ser amplamente
considerados e reconhecidos no período pós Segunda Guerra Mundial, uma vez que o
mundo preocupava-se com o resgaste dos valores de humanidade, haja vista que
inúmeras atrocidades foram cometidas durante a Guerra (VERÍSSIMO, 2019).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada em 1948 e foi
essencial para a consolidação dos direitos ali elencados; são 198 países-membros
signatários da Declaração, incluso o Brasil. Trata-se de um documento composto por
30 artigos que abordam direitos do indivíduo, como liberdade de expressão, liberdade
religiosa, direito à vida, etc. (PORFÍRIO, 2020).
A Constituição Federal de 1988 nasce à luz dos direitos humanos, uma vez que
trata da dignidade da pessoa humana já em seu primeiro artigo, no inciso III (BRASIL,
1988); Ingo Wolfgang Sarlet traz uma boa explicação sobre esse princípio:

A dignidade humana constitui-se em qualidade intrínseca e distintiva de


cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideraçã o
por parte do Estado e da comunidade, implicando nesse sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa
tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condiçõ es existenciais mínimas para uma vida
saudá vel, além de propiciar e promover sua participaçã o ativa e co-
responsá vel nos destinos da pró pria existência e da vida em comunhã o
com os demais seres humanos. (SARLET, 2002)

A Constituição Federal traz direitos e garantias em seu texto constitucional,


contudo, através do §2º, art. 5º, dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja
parte” (BRASIL, 1988), isso significa que tratados internacionais de proteção aos
direitos humanos têm aplicabilidade e possui status material constitucional.
O Brasil ratificou diversos tratados internacionais; no entanto, para o presente
trabalho, é importante destacar a Convenção da ONU para prevenção e repressão do
crime de genocídio (1952); o Pacto de San José da Costa Rica (1969) e a Convenção da
ONU contra a tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanas ou
degradantes (1984).
Ademais, no que concerne aos presos no Brasil, a Constituição Federal, em seu
art. 5º, inciso XLIX, assegura ao preso sua integridade física e moral e no art. 5º, inciso
III, assegura que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou
degradante” (BRASIL, 1988).
A Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/1984), no capítulo II, traz um rol de
assistências garantidas ao preso, tal como direito à alimentação, instalações higiênicas,
vestuário, atendimento de saúde, etc. (BRASIL, 1984).
Assim, o que se tem é que a realidade do sistema carcerário brasileiro por si só,
vivencia uma constante violação dos direitos humanos, uma vez que, como já
demonstrado, trata-se de um ambiente extremamente degradante, superlotado e com
grande propensão à contaminação. A pandemia é um grande desafio para a
humanidade, razão pela qual o mundo se mobilizou para combatê-la; contudo, o
sistema carcerário não tem a menor chance de lidar com ela, já que este não possui
nenhuma ferramenta capaz de contê-la.

2.2 A Violação de Direitos Fundamentais no Sistema Prisional

A superlotação carcerária viola documentos internacionais e o texto


constitucional. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), ratificada pelo
Brasil em 1992, no artigo 11, assegura proteção e dignidade a toda e qualquer pessoa,
ao dispor que “toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento
de sua dignidade” (ONU, 1969); nota-se que o documento não faz qualquer distinção
entre pessoas livres e presas.
Assim elucida Anna Judith Rangel (2014):

A superlotação carcerária tem sido uma das maiores violações aos direitos
humanos dos presos no Brasil, sobretudo pelas péssimas condições dos
compartimentos de clausura. Celas em que se amontoam dezenas de
presidiários, sem o mínimo de conforto e higiene, conforme determinam
tanto as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos quanto a  Lei de
Execução Penal Brasileira.

Em recente decisão do STF, no julgamento da ADPF 347, foi reconhecido o


estado de coisas inconstitucional nos presídios brasileiros; tal instituto tem origem nas
decisões da Corte Constitucional Colombiana e significa que se trata de uma situação
grave, permanente e de generalizada violação de direitos fundamentais, que afeta um
número amplo e indeterminado de pessoas; há uma omissão das instâncias políticas e
administrativas e há a necessidade de a solução ser construída de forma conjunta por
todos os órgãos envolvidos e responsáveis (DA CUNHA, 2015).
Por fim, a situação que se encontra o sistema prisional brasileiro resulta em um
aparato genocida (VERÍSSIMO, 2019), especialmente ao compreender o conceito de
genocídio da Convenção para prevenção e repressão do crime de genocídio da ONU:
“b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c)
submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe
a destruição física total ou parcial” (1951).
Nota-se que, sem considerar a pandemia do novo coronavírus, os ambientes
prisionais já eram caracterizados por constantes violações dos direitos humanos,
previstos tanto no texto constitucional vigente, como nos tratados ratificados pelo
Brasil.

3. PERCEPÇÕES ACERCA DA EFETIVIDADE (OU NÃO) DAS AÇÕES ADOTADAS


PARA COMBATE À COVID-19 NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

De uma forma geral, é muito difícil enfrentar um vírus sem estrutura,


principalmente em ambientes definidos pela superlotação, diante de uma pandemia
que impõe a necessidade de se evitar aglomeração de pessoas, como uma das
medidas de controle da propagação.

Ao que parece, sem ignorar o empenho de certas autoridades, as medidas não


têm se mostrado suficientes para evitar a propagação do vírus; a superlotação do
sistema prisional há muito inibe a correta individualização dos presos, e agora que a
triagem é uma das medidas mais importantes, o sistema é cobrado, especialmente por
a população carcerária ser composta por idosos, portadores de HIV, diabéticos,
portadores de tuberculose, pois se trata de indivíduos que pertencem ao grupo de
risco, ou seja, pessoas que se forem contaminadas enfrentarão um quadro mais
agravado da doença.

O renomado médico Dráuzio Varella, em entrevista dada para O Globo (LEÃO,


2020) explica os percalços para o acesso à saúde dentro do sistema prisional:

Quando temos um caso agudo, de alguém passando muito mal ou correndo


risco de morte, precisamos levar para um pronto-atendimento fora da
cadeia. Como leva? Precisa de procedimento de escolta, pois por lei não
pode levar um preso para fora da cadeia sem escolta. A gente leva muitas
horas até conseguir uma escolta. É sempre precária.

Pesquisas demonstram que doenças tratáveis matam mais presos do que a


violência nas prisões brasileiras. No Rio de Janeiro, entre o período de 1º de janeiro de
2015 e 1º de janeiro de 2017, morreram 517 presos por doença, contrastando com 37
detentos que morreram vítimas de violência dentro das celas. Segundo dados do
Ministério da Saúde, "pessoas privadas de liberdade têm, em média, chance 28 vezes
maior do que a população em geral de contrair tuberculose. A taxa de prevalência de
HIV/AIDS entre a população prisional era de 1,3% em 2014, enquanto entre a
população em geral era de 0,4” (BIANCHI; COSTA, 2020).

Ou seja, são medidas que tentam “apagar incêndio” de um sistema


penitenciário falido e, contrastando-se com os levantamentos realizados
recentemente, indicam pouca eficácia; tabelas atualizadas pelo painel de
monitoramento do Depen (BRASIL, 2020) revelam um avanço agressivo dos números,
no dia 04.05.2020 eram 154 presos infectados, 15 suspeitos e 27 mortos, sendo que no
dia 19.05.2020 já eram 755, 471 e 29, respectivamente; e mais, essa contaminação não
atinge apenas os presos, sendo que a SAP também já confirmou que 130 trabalhadores
do sistema penitenciário tiveram coronavírus (BRASIL, 2020).

CONCLUSÃO

O direito ao acesso à saúde é garantido pela Constituição Federal e pela LEP,


contudo, na prática, sabe-se que esse acesso não é efetivo e, em tempos como este,
de enfrentamento de uma pandemia, certamente se agravará a situação nas unidades
prisionais; a superlotação e a falta de estrutura do sistema carcerário comprometem a
dignidade da pessoa humana e o direito não possui aparato para solucionar a
problemática, trata-se do estado de coisas inconstitucional e de um ambiente em que
direitos humanos são constantemente violados.

Resta clara a necessidade de se tomar medidas extraordinárias para conter a


propagação do novo vírus; contudo, trata-se de uma realidade em que há muito tempo
vivencia supressão de direitos fundamentais, dessa forma, medidas como suspensão
de visitas podem gerar situações de difícil contenção, como é o caso de rebeliões.

A pandemia chegou ao Brasil no final de fevereiro, até março não havia notícia
de casos de contaminados na população carcerária, o que havia era somente uma
projeção do que o sistema prisional viria a enfrentar.

Em virtude dessa realidade imposta há alguns meses, os impactos do


coronavírus passaram de projeções para fatos; ainda que não se constate testes em
grande escala, sobretudo no sistema prisional, os dados colhidos já indicam um
colapso, sendo 755 presos infectados, 471 suspeitos e 29 mortos, segundo dados do
Depen, do dia 19 de maio de 2020.
Ao que se viu, o grande dilema que se impõe é compatibilizar um sistema
penitenciário falido com um vírus em plena elevação da contaminação. Como o
Executivo e o Judiciário serão capazes de garantir a integridade física dos presos em
tempos de pandemia? Serão necessárias medidas antipopulares?

Percebe-se que, aos olhos da população, o Judiciário é o grande “vilão”, já que


aplica o sistema vigente, decretando a prisão e inspecionando seu cumprimento, mas
ao Poder Executivo cabe receber, manter e cuidar do preso, sendo que ao não fazê-lo,
leva o Judiciário a tomar decisões que, na maioria das vezes, não são bem
compreendidas pela população, transpassando a falsa sensação de impunidade.

Diante desse conjunto de fatores, o já famigerado “estado de coisas


inconstitucional” do sistema carcerário no país agora precisa lidar com um vírus sem
precedentes. Os tempos são difíceis e o ordenamento jurídico brasileiro não alberga a
realidade que estamos vivenciando.

REFERÊNCIAS

ASSEMBLÉIA GERAL DA ONU (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Paris: 1948.

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