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Estudos em Homenagem

ao Conselheiro Presidente
Rui Moura Ramos
VOLUME I
Direito Constitucional
Direito Constitucional Europeu
Direito Europeu

2016

Tribunal Constitucional
ESTUDOS EM HOMENAGEM
AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS
organização:
Maria Lúcia Amaral, com a colaboração de Selma Pedroso Bettencourt
editor
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biblioteca nacional de portugal – catalogação na publicação
PORTUGAL. Tribunal Constitucional
Estudos em homenagem ao Conselheiro
Presidente Rui Moura Ramos
V. 1: p.- ISBN 978-972-40-6578-6
CDU 34
Um tribunal como os outros. Justiça constitucional
e interpretação da constituição

Maria Lúcia Amaral*


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Ravi Afonso Pereira**

Sumário: 1. A origem da justiça constitucional na Europa. 1.1. A estrutura do Es­


tado de legalidade; 1.1.1. O modelo dual de separação entre Estado e sociedade;
1.1.2. O monismo político e a sociedade homogénea; 1.2. O legicentrismo; 1.2.1. A cul­
tura europeia-continental da liberdade; 1.2.2. A fundação da ciência europeia do direi­
to público; 1.3. A Constituição como norma e a justiça constitucional como produto
da cultura europeia-continental do século XX; 1.3.1. A ruptura científica; 1.3.2.
A ruptura histórico-cultural. 2. A evolução da justiça constitucional em Portugal; 2.1.
A experiência portuguesa enquanto fenómeno isolado; 2.2. A prática do século XIX e
as origens do sistema português; 2.2.1. A monarquia constitucional e o seu parlamenta­
rismo débil. Os decretos ditatoriais; 2.2.2. Os debates doutrinários e jurisprudenciais;
2.2.3. A «tese da continuidade» e as primícias do actual sistema de justiça constitu­
cional; 2.2.4. A «tese da continuidade» e o seu preço; 2.3. O actual sistema; 2.3.1. A
versão originária da Constituição; 2.3.2. A criação do Tribunal Constitucional. 3. O
sistema português de fiscalização da constitucionalidade e o problema da interpreta­
ção constitucional; 3.1. O debate na ciência portuguesa de direito constitucional; 3.1.1.

* Vice-Presidente do Tribunal Constitucional; Professora Catedrática da Faculdade de Direito da


Universidade Nova de Lisboa.
** Assessor do Gabinete da Vice-Presidente do Tribunal Constitucional; Doutorando da Faculdade
de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

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ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

O formalismo jurídico e a «tese da continuidade»; 3.1.2. A condição histórica da


Constituição de 1976 e o primeiro debate do constitucionalismo português; 3.1.3. A
impossibilidade de debate científico sobre justiça constitucional; 3.2. Uma percepção
distorcida da função da justiça constitucional; 3.2.1. A amplitude e variedade de com­
petências do Tribunal Constitucional; 3.2.2. A anomalia congénita do processo de
fiscalização concreta da constitucionalidade.

1. A origem da justiça constitucional na Europa

1.1. A estrutura do Estado de legalidade


As constituições democráticas são uma conquista relativamente recente.
Na Europa continental, elas são um produto da segunda metade do século XX.
Tendo-se revelado difícil e problemática em toda a história do constituciona-
lismo moderno1, é no século XX que os conceitos de constituição e democracia se
redefinem numa relação de dependência recíproca. Não só a antiga desconfiança
mútua entre constituição e democracia se dissolve, passando a ser possível inte-
grá-los num conceito unitário de democracia constitucional, como, fundamental-
mente, deixa de ser conceptualmente possível pensar-se em constituição fora
do contexto de uma democracia e, inversamente, admitir-se a possibilidade de
uma democracia sem constituição. A democracia aceita ser disciplinada por
uma constituição, surgindo esta como uma “pauta de viver comum” do plura-
lismo político e social. A constituição surge, assim, como condição da possibili-
dade de autodeterminação e de convivência entre indivíduos livres e iguais que
prosseguem projetos de vida diferentes, e, portanto, como condição da própria
democracia. Por sua vez, a constituição reconhece a sua própria origem polí­tica.
A par da sua legitimidade enquanto Direito, a autoridade de uma constituição
assenta ainda na sua capacidade de recompor o pluralismo político e social,
representando-o de modo unitário através da integração política. É devido ao
lugar central que numa constituição ocupam os procedimentos democráticos
através dos quais se forma a decisão política que a democracia surge como con-
dição da normatividade da constituição.
A preservação dessa relação de dependência recíproca entre constituição e
democracia, que encontramos nas democracias constitucionais dos nossos dias,
é o pressuposto da justiça constitucional. O significado, o escopo e os limites da
justiça constitucional nunca serão verdadeiramente compreendidos se se não
tiver presente que a garantia jurisdicional do direito constitucional, que hoje todos

1
Maurizio Fioravanti, Costituzionalismo. Percorsi della storia e tendenze attuali, Laterza, Bari, 2009,
pp. 47-52.

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UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

damos por adquirida, só se afirma historicamente quando se verificam duas


condições, qualquer delas necessária e nenhuma delas suficiente2. A primeira condi-
ção para que a justiça constitucional possa ser sequer concebida é a de passar
a encarar-se a constituição como verdadeira norma jurídica (condição teórica).
A segunda condição é o pluralismo das forças políticas e sociais (condição prá-
tica). Ora, uma vez que, na Europa continental, tais condições apenas estão reu-
nidas no século XX (e, mais exactamente, após a segunda metade do século)
não é surpreendente que antes disso o tema da justiça constitucional não esti-
vesse na agenda do constitucionalismo.
No entanto, e na sua qualidade de fenómeno específico da cultura jurídica do
século XX, o advento da justiça constitucional não implicou por si só o atin-
gimento de nenhum fim da história. Nem as tensões inerentes ao programa do
constitucionalismo moderno3 ficaram com esse advento prodigiosamente des-
feitas, nem a oposição teórica e histórico-cultural entre constituição e democra-
cia com ele finalmente se desvaneceu4.
Pensar-se, por isso, que a expansão dos tribunais constitucionais na Europa e
no mundo a partir de 1945 significou pura e simplesmente o definitivo «triunfo
histórico» da constituição sobre a democracia – numa espécie de predomínio
final da cultura dos direitos sobre as deliberações maioritárias – é algo que, por
excessivamente simplificador, não serve a correcta compreensão das coisas.
É que muito fica por explicar, quando se reduz a «essência» da justiça consti-
tucional à componente garantística dos direitos fundamentais com o obnubila-
mento da sua componente democrática. Por explicar ficam desde logo as «três
vagas» de expansão dos tribunais constitucionais a partir da década de quaren-
ta5, cada uma delas vivida para garantir que a normatividade da constituição se
impusesse para assegurar a democracia e não para se defender dela6; como por
explicar fica o concreto êxito histórico de algumas das instituições então nas-
centes, que granjearam autoridade precisamente por terem sabido afirmar a

2
Gustavo Zagrebelsky/Valeria Marcenò, Giustizia costituzionale, il Mulino, Bologna, 2012, p. 24.
3
Maria Lúcia Amaral, A Forma da República. Uma introdução ao estudo do direito constitucional, 2005,
reimpr., Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 44-54.
4
Maurizio Fioravanti, Costituzione, il Mulino, Bologna, 1999, pp. 161-162.
5
A imagem das «três vagas» é frequentemente usada na literatura para abranger a instituição, em
1947 e 1949, dos tribunais constitucionais italiano e alemão; dos tribunais espanhol e português
nos finais de 70 e inícios da década de 80; bem como dos tribunais de todas as ordens democráticas
do leste europeu desde a primeira metade da década de 90. V., quanto a este ponto, entre outros,
Tania Groppi, “Introduzione: alla ricerca di un modello europeo di giustizia costituzionale”, in:
Marco Olivetti/id. (ed.), La giustizia costituzionale in Europa, Giuffrè, Milano, 2003, pp. 1-23.
6
Em cada uma destas «três vagas» estava em causa a transição histórica para a democracia. V. John
Ferejohn/Pasquale Pasquino, “Constitutional Adjudication: Lessons from Europe”, 82 Texas Law
Review (2003-2004), pp. 1671-1704.

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ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

normatividade da ordem constitucional não contra a ordem democrática mas


através e com base nessa ordem. Se outro exemplo não houvesse, o do Tribunal
Constitucional Federal alemão é, quanto a este ponto, bem elucidativo. Desde o
momento fundacional até aos dias de hoje foi seu grande mérito o de ter cons-
truído e possibilitado a ordem democrática na Alemanha do pós-guerra7.
Não sendo possível adoptar modelos simplificadores de um quadro compreen­
sivo que permanece inevitavelmente complexo, impõe-se o reconhecimento da
complexidade e a aceitação de todas as suas exigências. E isto tem implicações, que
se fazem sentir tanto na forma prática pela qual se valorizam os fundamentos da
justiça constitucional quanto nas concepções teóricas através das quais se repre-
senta a «essência» e a «história» da instituição.
Se, sob o ponto de vista dos seus fundamentos práticos, a justiça constitu-
cional (e a sua conformação contemporânea) não pode ser simplisticamente
concebida como o triunfo histórico da constituição sobre a democracia, sob o
ponto de vista da sua compreensão teórica o fenómeno não pode deixar de ser
entendido como um produto específico da cultura jurídica do século XX, obtido
através de rupturas com modos de pensar anteriores e não através de um qual-
quer processo de continuidade. Ambas as conclusões são requeridas pela com-
plexidade de que se reveste a instituição e ambas merecem ser demonstradas.
É objectivo do presente artigo procurar demonstrar a segunda afirmação,
relativa à compreensão teórica da justiça constitucional, de modo a compará-la
com a que resulta do processo histórico de constituição da jurisdição constitu-
cional portuguesa. Partimos do princípio segundo o qual é esta a afirmação que
precisa de ser sustentada com maiores desenvolvimentos. A outra, relativa aos
fundamentos da justiça constitucional e à forma prática da sua valorização, pa-
rece-nos já suficientemente esclarecida8. Os fundamentos que justificam a ins-
tituição remetem-nos para o complexo e exigente equilíbrio entre constituição
e democracia, e não para uma irreflectida afirmação da supremacia da primeira
sobre a segunda9. É que este último modo de equacionar o problema, partindo
de uma suposta antinomia, em lugar de analisar um conceito que é unitário,
conduz inevitavelmente à afirmação de um dos lados da equação através da eli-
minação do outro, quando do que justamente se trata é de preservar um justo

7
Anuscheh Farahat, “Das Bundesverfassungsgericht”, in: von Bogdandy/Grabenwarter/Huber
(ed.), Handbuch Ius Publicum Europaeum, vol. VI, C.F. Müller, Heidelberg, 2016, § 97, pp. 81-158,
p. 101; Donald P. Kommers, Judicial Politics in West Germany: A Study of the Federal Constitutional Court,
Sage Publications, Beverly Hills, California, 1976 e Justin Collings, Democracy’s Guardians. A His­
tory of the German Federal Constitutional Court, 1951-2001, Oxford University Press, New York, 2015.
8
Marian Ahumada Ruiz, La jurisdicción constitucional en Europa. Bases teóricas y políticas, Thomson-
-Civitas, Cizur Menor (Navarra), 2005, com outras referências bibliográficas.
9
Ibid., pp. 89 e segs.

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UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

equilíbrio entre ambos: garantir a normatividade da constituição, não contra,


mas através da democracia; por sua vez, defender a democracia, não apesar, mas
com base na constituição10. Fazer de outro modo – ou seja, fomentar uma com-
preensão das coisas que se limite a afirmar a componente garantística da justiça
constitucional, com isso anulando a sua componente de defesa da ordem demo-
crática – não só potencia o mau uso da justiça constitucional como compromete
o funcionamento do processo democrático. Não foi para isso que se pensou a
justiça constitucional. O tribunal que a exerce tem que ser, a um só passo, o
tribunal dos direitos fundamentais e o tribunal da democracia.
Assente este ponto, voltemo-nos então para a compreensão teórica desta
complexa equação. Não é possível atingi-la se se não tiver em linha de conta a
história do constitucionalismo europeu. A compreensão da origem e da razão
de ser da justiça constitucional conduz-nos às características do que foi aquela
história no decurso do século XX. É que, antes disso, não estavam reunidas as
duas condições que tornam possível e necessária a justiça constitucional no conti-
nente europeu. Para sustentar esta afirmação torna-se imprescindível recuar até
ao constitucionalismo da era liberal, que predomina em toda a cul­tura europeia
durante o século XIX.

1.1.1. O modelo dual de separação entre Estado e sociedade


O constitucionalismo da era liberal assenta em um modelo dual de separa-
ção entre Estado e sociedade em que a constituição exprime o pacto celebrado
entre o monarca e a nação. Tratando-se de um pacto, o mesmo está, a todo o
momento, sujeito a ser revisto sempre que tal se revele necessário para garantir
o equilíbrio entre, de um lado, o monarca e, do outro, a burguesia representada
no parlamento.
Tal significa que, para o constitucionalismo da era liberal, a constituição não
é concebida como norma suprema cujo conteúdo, produto da livre vontade dos
indivíduos, seja indisponível por parte dos vários poderes do Estado. A consti-
tuição é antes encarada como realidade histórica, isto é como produto orgânico
do contexto histórico e social concreto, sendo, nessa medida, sempre mutável
em virtude de eventuais novos equilíbrios sociais e institucionais.
Assim se vê que o que verdadeiramente importa ao constitucionalismo li-
beral é preservar a estabilidade política e social resultante da estrutura dual
de separação entre Estado e sociedade, para o efeito elaborando doutrinas que
assegurem que o Estado não invade a esfera da sociedade (a autonomia da so-
ciedade civil é garantida juridicamente através do princípio da reserva de lei),
e que, inversamente, preservem as instituições políticas – a unidade do Es­tado

10
Fioravanti (n. 4), pp. 161-162.

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ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

– do voluntarismo, isto é das vontades particulares, individuais e de grupo, ope-


rantes na sociedade civil (a autonomia e estabilidade dos poderes públicos é
garantida pela recusa de qualquer limite exterior – o que equivale a rejeitar um
poder ilimitado do povo para alterar a constituição e as regras do jogo – à lei do
Estado, uma lei caracterizada pela generalidade e abstracção e, por isso mesmo,
impermeável a vontades particulares). Na tutela de ambas as autonomias – a da
sociedade face ao Estado e a do Estado face à sociedade – é a lei (e não a consti-
tuição) a ocupar um lugar central.
A nós interessa-nos, sobretudo, articular melhor as ideias relacionadas com
o segundo lado do modelo dual de separação entre Estado e sociedade, ou seja
aquele que pretende salvaguardar a autonomia dos poderes públicos da própria
sociedade civil. É a preocupação liberal pela certeza e pela estabilidade que ex-
plica a necessidade de preservação das instituição políticas, as quais, por serem
fruto da história e da experiência de cada nação, não podem ser deixadas na
disponibilidade de qualquer vontade popular erigida em poder constituinte.
Assim, é no contexto desse modelo que se torna compreensível por que razão
não é negada a natureza pré-constitucional do poder monárquico. A constitui-
ção surge, é certo, como um quadro de limitações a posteriori desse poder, mas
nunca como fonte originária de competências ou de Direito11. Ao Estado sobe-
rano, justamente porque é soberano, nada pode ser imposto do exterior; é ele a
autolimitar-se.
Sendo as instituições políticas anteriores à constituição, importa defender
as primeiras face a pretensões de base contratualista e individualista de garan-
tir direitos que, por constarem da constituição, se impusessem aos poderes
públicos. Tal entendimento da constituição, que caracteriza, ainda que apenas
parcialmente, o período revolucionário, é expressamente rejeitado pelo cons-
titucionalismo da era liberal justamente pela experiência de enorme instabi-
lidade política e institucional daquele período. É essa instabilidade intrusiva
da constituição – do poder constituinte e, portanto, da sociedade – que é vista
como uma ameaça permanente para os direitos e liberdades individuais e é por
isso que a sede própria para a garantia desses direitos e liberdades é, não a cons-
tituição vista como contrato social, mas o Estado de direito, a lei geral e abstracta.
É por ser o Estado em si mesmo considerado, e não a constituição, que ocupa
o centro do constitucionalismo liberal que, no sistema de fontes do direito, a
constituição não ocupa lugar. No centro e no vértice aparece a lei do Estado.
Longe de ser encarada como uma ameaça para os direitos e liberdades, a lei do
Estado é, pelas suas características, concebida como a única verdadeiramente

Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, 1981, 4ª ed.,
11

Thomson-Civitas, Cizur Menor (Navarra), 2006, pp. 61-62.

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UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

capaz de gerar certeza e segurança quer no plano das relações dos indivíduos
com o Estado quer no plano das suas relações entre si e, portanto, a única capaz
de tutelar posições jurídicas.
Assim, o grande tema do constitucionalismo liberal é o da relação entre o
poder legislativo e o poder executivo, repousando a garantia dos direitos, não
na constituição em si mesma considerada, mas quase exclusivamente na razoa­
bilidade e moderação dos poderes nela disciplinados. Tal significa que os pode-
res do Estado, embora tivessem que se respeitar reciprocamente numa lógica
de equilíbrio em ordem a preservar a estabilidade política, de modo algum se
encontravam vinculados a uma norma superior, de que derivassem a sua legi-
timidade. Tanto a legitimidade do monarca, titular do poder executivo, como
a legitimidade do parlamento, titular do poder legislativo, eram anteriores à
constituição, não se pondo logicamente o problema da vinculação dos poderes
públicos a esta última.
Foi esta condição do constitucionalismo liberal que, na literatura portu­
guesa e em magnífica síntese, Afonso Rodrigues Queiró descreveu: «[o] Estado
europeu moderno, da Glorious Revolution inglesa de 1688 e mais directamente
da Revolução Francesa de 1789, requereu uma constituição, muito mais para conter
o Executivo, tradicionalmente forte, de faculdades ou competência a bem dizer
ilimitadas, do que para conter o Legislativo, que justamente começava então a
afirmar-se e se considerava o melhor e mais directo representante da soberania
nacional. O perigo da ofensa ou desconhecimento dos direitos naturais estava
do lado do Governo, não do lado do Parlamento. A lei seria sempre igual à razão
e ao direito. Contraditória viria a ser, portanto, qualquer fiscalização da consti-
tucionalidade, isto é, da racionalidade da lei. A lei era, de acordo com o artigo 6º
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791, «l’expression de
la volonté générale». «Le souverain est toujours égal à lui même», ao elaborar a
Constituição ou ao emanar uma simples lei ordinária. O guarda, fiel da Consti-
tuição é o soberano, o Parlamento»12.
Do que vem de dizer-se decorre que o pensamento constitucional liberal
se centra no direito positivo do Estado. Antes do direito posto, nada existe
que vincule os poderes públicos. Nada é pressuposto. Nada é verdadeiramente
fundamental. A Política é totalmente livre de Direito. É, portanto, na base do
princípio da soberania do Estado, enquanto essência da própria estadualidade,
que é construído todo o direito público moderno na Europa continental. Tendo
atingido o seu apogeu com o constitucionalismo da era liberal que predomina

12
Afonso Rodrigues Queiró, “O controlo da constitucionalidade das leis”, Boletim da Faculdade de
Direito 26 (1950), pp. 207-218, pp. 207-208, coligido em id., Estudos de Direito Público, Vol. II, Tomo
II, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2002, pp. 79-90.

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ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

na Europa continental durante praticamente todo o século XIX, o princípio da


soberania do Estado impediu que na ciência europeia-continental do direito
público se verificasse a condição teórica que torna possível a justiça constitucio-
nal – a constituição como norma.

1.1.2. O monismo político e a sociedade homogénea


Além de impedir o desenvolvimento da condição teórica da justiça constitu-
cional na Europa, o princípio da soberania estadual, na medida em que elimina
qualquer concorrência à unidade política do Estado e do ordenamento jurídico,
impediu ainda que se verificasse a condição prática que torna necessária a jus­
tiça constitucional – o pluralismo das forças políticas e sociais.
Por definição, o princípio da soberania do Estado é incompatível com a ideia
de coexistência de várias ordens políticas. Enquanto Estado soberano, o Es­
tado liberal de direito do século XIX não consentia a partilha do poder político.
No paradigma da soberania indivisível não tem lugar a organização de sistemas
políticos complexos (como, por exemplo, de tipo federal), pois tal organização
potenciaria a existência de conflitos, o que comprometeria a ideia de soberania
e, com isso, a própria existência da estadualidade13 14.
Do mesmo modo, mesmo em domínios estranhos à política, a construção
jurí­dica da soberania do Estado impossibilitava o surgimento de centros de pro-
dução normativa alternativos e concorrentes com o Estado. A ordem jurídica do
Estado burguês e liberal apresenta-se como um sistema normativo completo,
capaz de regular eficazmente todos os sectores da vida em sociedade. Manifes-
tação por excelência da autossuficiência do sistema jurídico estadual é o código
civil de cada Estado da Europa continental do século XIX. Todas as situações
da vida são por ele directa ou indirectamente reguladas, cabendo ao intérprete,
nas raras situações em que se verifique uma lacuna, construir a norma que se
extrai do “espírito do sistema”.
Essas duas dimensões do princípio da soberania estadual, ao impedir o
surgimento de qualquer conflito dentro do ordenamento jurídico, tornavam
desnecessária a introdução de um mecanismo de resolução de conflitos. É por
desconhecer o fenómeno do pluralismo político que a Europa oitocentista não
estava carente de uma justiça constitucional.

13
Gustavo Zagrebelsky, Il diritto mite, 2ª ed., Einaudi, Torino, 1992, p. 5.
14
Os movimentos «confederativos» do século XIX são ainda expressão de processos de construção
da unidade do Estado (e, portanto, de confirmação da sua soberania) e não, como no século XX viria
a acontecer, de expressão de processos descentralizadores, ou de afirmação crescente de centros
plurais de poderes. Pense-se (quanto ao século XIX) nos processos de construção da República
Helvética, do Reich alemão ou da construção da unidade do Estado italiano.

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UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

A homogeneidade do direito legislativo do Estado liberal está intimamente


relacionada com o facto de apenas uma parte da sociedade estar politicamente
representada no parlamento. Com efeito, contribui decisivamente para a pos-
sibilidade de edificação de um ordenamento jurídico coerente e plenamente
articulado a circunstância de na decisão política expressa na lei parlamentar se
reflectir a hegemonia da burguesia. Em virtude de várias limitações ao direito
de voto, uma parte significativa das forças sociais não chegava sequer a obter
representação política, ficando à margem do processo legislativo15. A relativa
homogeneidade da classe política com representação parlamentar favorecia a
promoção de consensos quanto a valores e objectivos, os quais eram necessaria-
mente reflectidos na lei do Estado. As classes sociais excluídas da representação
polícia não ameaçam a unidade material do ordenamento jurídico justamente
porque estavam à margem do processo de decisão política, não concorrendo
para a criação do Direito. Os seus valores, diferentes dos da classe representada
e mesmo variados entre si, não se transmutavam em direito posto. A mecâ­nica
incorporação dos valores sociais de uma classe homogénea no ordenamento
jurí­dico através da lei estadual tornava dispensável a instituição de mecanismos
em ordem a assegurar a conformidade do ordenamento jurídico a esses mes-
mos valores. Porque a lei necessariamente reflectia os valores e princípios de
uma classe social homogénea, não se punha sequer a questão de vinculá-la juri­
dicamente. Assegurada que estava a positivação dos princípios políticos e jurí-
dicos da burguesia liberal através da lei parlamentar, o ordenamento jurídico
era necessariamente unitário e coerente. No quadro dessa unidade e coerência
do sistema, não havia sequer lugar a conflitos normativos, para a resolução dos
quais houvesse que recorrer a parâmetros jurídicos superiores à lei. É por des-
conhecer o fenómeno do pluralismo social que a Europa oitocentista não estava
carente de uma justiça constitucional.

1.2. O legicentrismo
Tanto no monopólio do poder político por parte do Estado como no monismo
ideológico do sistema jurídico (a ideologia liberal e burguesa retratada no có-
digo civil oitocentista) a lei parlamentar ocupa um lugar central. É ainda o
princípio da soberania estadual que neutraliza qualquer ideia de equilíbrio ou

15
Por isso mesmo, a expressão «Estado monoclasse» viria a ser adoptada pela ciência italiana de
direito público para designar em geral o Estado-de-legalidade do século XIX, por oposição ao
Estado constitucional do século XX, designado como «Estado pluriclasse». Sobre a forma como
esta designação se instala na linguagem própria da ciência de direito público, libertando-se da
filiação filosófica que a expressão «monoclasse» poderá, originariamente, ter tido, veja-se Sabino
Cassese/Giuseppe Guarino (eds.), Dallo Stato monoclasse alla globalizzazione, Giuffrè, Milano, 2000.

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ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

contrapeso entre os vários poderes do Estado. Encarada como ponto unificador


da soberania e, portanto, da própria estadualidade, a lei não admite concorrên-
cia no sistema de fontes de produção do direito.

1.2.1. A cultura europeia-continental da liberdade


A centralidade da lei no sistema de fontes é, acima de tudo, um produto
da história. Ela só se torna inteligível se se atender à dimensão histórico-
-cultural do direito público moderno, mais concretamente ao modo como na
Europa continental foi sendo construída a fundação teórica dos direitos e da
liberdade16.
Na Europa continental, o discurso fundador da liberdade constrói-se com-
batendo as estruturas sociais e políticas do Antigo Regime. A história dessa luta
inicia-se com a filosofia jusnaturalista seiscentista e alcança uma primeira vitó-
ria, em finais do século XVIII, com as declarações revolucionárias dos direitos.
Sendo o objectivo principal o de romper com o passado medieval, ninguém se
preocupou então com o facto de a época que nessa altura se abre – a moderni-
dade – ser também a época em que se constrói a mais formidável concentração
de poder que a história alguma vez conheceu, primeiro sob a forma do Estado
absoluto e, posteriormente, sob a égide do legislador revolucionário, intérprete
da vontade geral17. Esse era o preço a pagar pela destruição da velha sociedade
feudal e senhorial do privilégio e do particularismo, libertando o indivíduo da
sua antiga condição de sujeição. A subtracção do exercício de funções políticas
às classes privilegiadas, em particular à nobreza, concentrando-o no império do
Estado, impediu que a cultura europeia da liberdade fosse construída a partir
da ideia de equilíbrio de poderes e de preservação de esferas de autonomia, ra-
dicadas na tradição e no tempo, em que cada um e cada coisa tem o seu lugar
definido, pois receava-se que qualquer partilha do poder comprometesse os
ideais revolucionários e, com isso, o progresso da história18. Do mesmo modo,
não é possível radicar a cultura europeia-continental da liberdade na própria
expe­riência histórica, na evolução gradual e prudencial da sociedade. Ao con-
trário da experiência britânica, na Europa continental a liberdade é hetero­
determinada. O primeiro e mais elementar direito do indivíduo é o de recusar
sujeitar-se a qualquer autoridade diferente da da lei do Estado19. Com efeito,
as grandes e rápidas mudanças sociais e políticas dos finais do século XVIII e

16
Maurizio Fioravanti, Appunti di storia delle costituzioni moderne. Le libertà fondamentali, 3ª ed.,
Giappichelli, Torino, 2014.
17
Ibid., pp. 31-32.
18
Ibid., pp. 58 e segs..
19
Ibid., p. 32.

390
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

inícios do século XIX só podiam ser institucionalizadas por via legislativa20. Na


tradição europeia da luta pela liberdade, a autoridade do Estado soberano – a
lei geral e abstracta (igual para todos) como primeira condição necessária para
a existência de posições jurídicas subjectivas – é por definição libertadora.
É certo que, num primeiro momento histórico, que coincide com o período
revolucionário, a fundação teórica dos direitos e das liberdades preexiste à auto-
ridade do Estado, fundando-se esta justamente nesses direitos e surgindo como
instrumento da sua tutela21. Mas a componente individualística e contratualista
da cultura europeia da liberdade convive, mesmo já no período revolucionário,
com uma outra representação da fundação teórica dos direitos e liberdades22.
À luz desse outro modelo teórico, os direitos são as posições jurídicas subjec-
tivas criadas pela lei estadual, pois só a força cogente da lei é capaz de criar as
condições de segurança e estabilidade para o exercício da liberdade de cada um.
A ideia de preexistência de direitos e liberdades, ao pretender limitar a autori-
dade política do Estado – a sua soberania –, é ela própria uma ameaça para a li-
berdade, pois geradora de instabilidade e desagregação, como a experiência da
Constituição jacobina de 1793 bem demonstra. Tal instabilidade, favorecendo o
ressurgimento de interesses particulares e com isso ameaçando comprometer
a unidade da nação, era mais receada, porque maior inimiga da liberdade, do
que o arbítrio do soberano23. Numa palavra, a cultura europeia da liberdade não
é feita contra o poder; ela nasce juntamente com o poder, na esperança de um
futuro melhor e mais justo24.
Se mesmo até no período revolucionário ela acaba por conduzir ao legicen-
trismo, a componente individualística e contratualista da cultura europeia da
liberdade não sobrevive à história europeia do século XIX, esboroando-se com
a doutrina do Estado liberal de direito, feita justamente a partir da negação da
preexistência de direitos e liberdades ao direito posto pelo Estado.
À centralidade da lei no sistema de fontes na ciência do direito público oito-
centista já foi feita alusão ao tratar do modelo dual de separação entre Estado e
sociedade25, pois esses dois aspectos do constitucionalismo do século XIX estão
intimamente relacionados.
Como tivemos oportunidade de assinalar, o constitucionalismo liberal pro-
cura autonomizar a fundamentação teórica dos direitos e das liberdades do

20
António Manuel Hespanha, Cultura Jurídica Europeia – síntese de um milénio, Almedina, Coimbra,
2012, p. 406.
21
Fioravanti (n. 16), pp. 44, 48, 53 e 60 e segs..
22
Ibid., pp. 44 e 56 e segs..
23
Ibid., pp. 50-51 e 102-118.
24
Ibid., p. 64.
25
V., supra, ponto 1.1.1..

391
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

individualismo e do contratualismo. Fá-lo através de uma redefinição do con­


ceito de nação26. Diferentemente do período revolucionário, em que ainda
era conotada com o poder constituinte, a nação, com as suas instituições, é
concebida como produto da história27. Com essa construção, o constituciona­
lismo liberal subtrai aos indivíduos – a qualquer poder constituinte – o direito
de determinar livremente a ordenação fundamental das instituições políticas.
Ao fazê-lo, o constitucionalismo liberal anula o fundamento de legitimação das
instituições políticas na base do contrato social. Este aspecto é essencial, pois
retira a fundamentação teórica para vincular a lei do Estado a um ponto de refe­
rência externo. Para o pensamento liberal, a garantia dos direitos jamais pode
radicar na constituição, porquanto a fundamentação teórica dos direitos e das
liber­dades não decorre do individualismo e do contratualismo que alimentavam
o conceito de poder constituinte. Porque eles nela não radicam, jamais pode a
constituição servir para defender os direitos do indivíduo face ao poder do Es­
tado. Porque é no direito positivo do Estado, maxime no código civil, que encon-
tramos a tutela dos direitos e da liberdade – para a doutrina jurídica do Estado de
direito, os direitos do individuo fundam-se em um acto soberano de autolimitação
do Estado28 –, é antes a lei – a certeza do direito – que importa ser defendida da
intrusão desestabilizadora da constituição como fruto da vontade momentânea
e instável dos indivíduos e das forças sociais. Para o constitucionalismo liberal, a
lei sobrepõe-se à constituição.
É claro que isto só é assim porque a representação liberal oitocentista de lei
do Estado pouco tem que ver com a profusão legislativa que iremos encontrar
no século XX. Na Europa de oitocentos, a lei do Estado é o código civil, en­
quanto paradigma refundador do ordenamento jurídico29. A centralidade da lei
no sistema de fontes é, desde logo, uma necessidade teórica do próprio conceito
de Direito, sendo a constituição relegada para o domínio da política. Na deriva-
ção da autonomia do Estado e das instituições políticas a partir de um conceito
de nação modernamente entendido, ou seja na construção do moderno Es­tado
soberano, esgota-se o esforço de fundamentação teórica da centralidade da
lei no sistema de fontes. Para a doutrina europeia do Estado de direito, o lu-
gar central da lei é um verdadeiro axioma que, enquanto tal, jamais será posto
em causa. Ele é o pressuposto teórico de toda a construção da ciência europeia

26
Fioravanti (n. 16), p. 110.
27
Ibid..
28
Ibid., p. 126.
29
Sobre as origens e pressupostos constitucionais do movimento codificador v. a obra fundamental
de Bartolomé Clavero, “Codificación y Constitución: paradigmas de un binomio”, 18 Quaderni
fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno (1989), pp. 79-145 e Fioravanti (n. 16), p. 116.

392
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

de direito público no último quartel do século XIX e nas primeiras décadas do


século XX30.
Face a esse pressuposto, é impensável para a ciência europeia de direito pú-
blico qualquer mecanismo que possibilite desafiar a autoridade da norma do
Estado com fundamento na sua desconformidade com a constituição31. Ao con-
trário da experiência norte-americana, na cultura jurídica da Europa continen-
tal a constituição não é concebida como um acto autónomo de fundação dos
direitos e das liberdades32.

1.2.2. A fundação da ciência europeia do direito público


Sem prejuízo dessa dimensão histórico-cultural, a centralidade da lei ex­
prime-se, ainda, a um outro nível. É a compreensão científica da lei do Estado a
fornecer à ciência europeia do direito público o seu objecto.
Com efeito, a aspiração dos cultores do direito público moderno iria con-
sistir na elaboração de uma teoria jurídica do Estado, isto é na possibilidade de
explicar e delimitar toda a actividade do poder público exclusivamente a partir
de categorias e institutos estritamente jurídicos.
Esse processo de construção do direito público moderno, que se inicia na
segunda metade do século XIX e perdura durante as primeiras décadas do
século XX, tem na sua base uma superação metodológica sem a qual a centrali-
dade da lei – o legicentrismo – não teria sido possível.
Na penetrante análise de Maurizio Fioravanti, «[a possibilidade de pensar
juridicamente o Estado pressupunha que], no terreno tradicional do direito pri-
vado […], os juristas tivessem sabido libertar-se de um duplo condicionamento
intelectual: em primeiro lugar, da tendência de sujeitar o direito positivo exis-
tente, e em particular as normas emanadas do Estado – o código civil, princi-
palmente – a um tratamento metódico puramente exegético, em que a reflexão
jurídica ficasse reduzida à aplicação prática das leis do Estado; em segundo lu-
gar, e em sentido contrário, da atitude – típica de muitos juristas do século XIX
alemão – de evitar a legislação estatal, em permanente mutação, para fundar
em um outro lugar – na pura dedutibilidade lógica dos conceitos jurídicos – as
certezas do trabalho científico»33.

30
V., infra, ponto 1.2.2.
31
Fioravanti (n. 16), pp. 127 e segs.
32
Fioravanti (n. 16), pp. 86 e segs. e 93 e segs..
33
Maurizio Fioravanti, “Savigny e la scienza di diritto pubblico del diciannovesimo secolo”, 9
Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno (1980), pp. 319-338, p. 323, coligido em
id., La scienza del diritto pubblico. Dottrine dello Stato e della Costituzione tra Otto e Novecento, Tomo I,
Giuffrè Editore, Milano, 2001, pp. 3-21, p. 7.

393
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

Explica o insigne historiador do direito público que, «[s]e, neste segundo


caso, havia, da parte da scientia iuris, uma postura absolutamente negativa pe­
rante as desestabilizantes pretensões modernas do poder legislativo, estando-
-se, nessa medida, bem longe de uma teoria jurídica do Estado, por sua vez,
também o referido vício exegético afastava os juristas da perspectiva de uma re-
flexão científica sobre o poder político, levando-os inevitavelmente a considerar
o Estado o necessário e inquestionado pressuposto do seu trabalho interpretativo
e, como tal, necessariamente dele excluído en­quanto objecto de investigação, algo
que, no entanto, era indispensável para o nascimento de uma teoria jurídica
do Estado.
Era justamente a assunção de uma ou de outra dessas posições extremas – ou
de completa rejeição ou de completa subordinação – face à nova centralidade
do poder político como fonte do direito [...] que mantinha os juristas muito fir-
memente ancorados às tradicionais disciplinas privatísticas»34.
Ora, a superação desse duplo condicionamento, para a qual se revelou de-
terminante o pensamento de Savigny e de toda a Escola Histórica do direito35, é
a base na qual se funda a ciência europeia do direito público moderno36. Sendo
certo que esta última só nasce algumas décadas mais tarde, com a construção
do conceito de personalidade jurídica do Estado – empreendida, na Alemanha,
por Carl Friedrich von Gerber37, Paul Laband38 e Georg Jellinek39 e, em Itália,
por Vittorio Emanuele Orlando40 –, a moderna ciência do direito público só é

34
Ibid.
35
Sobre a Escola Histórica do direito v. Franz Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter
besonderer Berücksichtigung der deutschen Entwicklung, 2ª ed., Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen,
1967, tradução para português de António Manuel Hespanha, História do direito privado moderno,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980, pp. 397-491.
36
Fioravanti (n. 33); Paolo Grossi, Scienza giuridica italiana. Un profilo storico 1860-1950, Giuffrè
Editore, Milano, 2000, pp. 8-12.
37
Carl Friedrich von Gerber, Über öffentliche Rechte, Laupp, Tübingen, 1852; id., Grundzüge
eines Systems des deutschen Staatsrechts, Verlag von Bernhard Tauchnitz, Leipzig, 1865 (2ª ed., 1869;
3ª ed., 1880). Sobre a obra de von Gerber, v. Mario Nigro, “Il « segreto » di Gerber”, 2 Quaderni
fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno (1973), pp. 293-333 e, mais recentemente, Carsten
Kremer, Die Willensmacht des Staates. Die gemeindeutsche Staatsrechtslehre des Carl Friedrich von Gerber,
Klostermann, Frankfurt am Main, 2008.
38
Paul Laband, Das Staatsrecht des Deutschen Reiches, obra em 3 volumes, Verlag von J. C. B. Mohr
(Paul Siebeck), Tübingen, 1876-82.
39
Georg Jellinek, System der subjektiven öffentlichen Rechte, 1892, 2ª ed., Verlag von J. C. B. Mohr (Paul
Siebeck), Tübingen, 1905; id., Die Erklärung der Menschen- und Bürgerrecht. Ein Beitrag zur modernen
Verfassungsgeschichte, Duncker & Humblot, Leipzig, 1895; id, Allgemeine Staatslehre, 1900, 3ª ed.,
Verlag von O. Häring, Berlin, 1914.
40
Vittorio Emanuele Orlando, I criteri tecnici per la ricostruzione giuridica del diritto pubblico, 1889,
coligido em id., Diritto pubblico generale. Scritti varii (1881-1940) coordinati in sistema, Giuffrè Editore,

394
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

concebível a partir do momento em que, longe de do poder legislativo se re-


cear o arbítrio e a instabilidade, se tornou possível conceptualizar a produção
normativa do Estado enquanto expressão superior de racionalidade do Direito, enten-
dido, no sentido savignyano, enquanto sistema orgânico de institutos jurídicos
radicado na história e nas tradições culturais de um determinado povo e dotado
de uma autónoma racionalidade e objectividade, preexistente à relação jurídica
a regular.
Ao contrário do que, por vezes, se julga, mais do que caracterizada pela re-
dução de todo o direito à vontade do soberano ou pelo pensamento lógico-for-
mal, a moderna ciência do direito público, no momento inicial da sua formação,
prossegue ainda um ambicioso projecto consistente em, assumindo a existên-
cia de uma ordem jurídica transcendente à decisão política, e por isso capaz de
contê-la e limitá-la, descobrir na lei do Estado a natureza histórico-social do Direito,
reconduzindo toda a produção normativa estatal à unidade do sistema jurídico.
Essa operação de descoberta, de que se deve ocupar o cientista do direito
público, constitui a realização mais acabada do método jurídico. Com efeito, é na
teoria jurídica do Estado que, com a transposição do método jurídico do direito
privado para o direito público, se evolui de uma estratégia de contenção da deci-
são política, de pura e simples defesa da ordem privatística à invasiva vontade
estatal, à construção de um verdadeiro modelo: o Estado perfeitamente jurídi-
co, o Estado como pessoa jurídica na qual se realiza organicamente a totalidade
do povo41.
Tal significa que a teoria jurídica do Estado, não apenas aceita, como pressu-
põe a subordinação da lei do Estado ao direito.
Ora, se é assim, então dir-se-ia que a vinculação da lei a parâmetros jurídicos
superiores seria, afinal, cientificamente possível e justificável.
Nada de mais errado. A descoberta na lei do Estado da racionalidade da
experiência jurídica radicada na história social, longe de pressupor uma anti-

Milano, 1954, pp. 3-23; id., Principii di diritto costituzionale, G. Barbèra, Editore, Firenze, 1989; id.,
Principii di diritto amministrativo, G. Barbèra, Editore, Firenze, 1891; id. (ed.), Primo Trattado completo di
diritto amministrativo italiano, obra em 10 volumes, publicada entre 1897 e 1932 pela Società editrice
libraria di Milano. Para uma visão compreensiva do percurso intelectual do Mestre de Palermo
v., por todos, Maurizio Fioravanti, “Popolo e Stato negli scritti giovanili di Vittorio Emanuele Or-
lando”, coligido em id., La scienza del diritto pubblico. Dottrine dello Stato e della Costituzione tra Otto e
Novecento, Tomo I, Giuffrè Editore, Milano, 2001, pp. 67-180. Um boa síntese do papel de Orlando
enquanto caput scholae em Grossi (n. 36), pp. 28-34 e 67-70 e, com maior desenvolvimento, Aldo
Sandulli, Costruire lo Stato. La scienza del diritto amministrativo in Italia (1800-1945), Giuffrè Editore,
Milano, 2009, pp. 67-96.
41
Maurizio Fioravanti, “Il dibattito sul metodo e la costruzione della teoria giuridica dello Stato”,
in id., La scienza del diritto pubblico. Dottrine dello Stato e della Costituzione tra Otto e Novecento, Tomo
I, Giuffrè Editore, Milano, 2001, pp. 23-63, pp. 57-58.

395
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

nomia normativa, pelo contrário assume a racionalidade intrínseca da lei, iden-


tificando-a com a racionalidade histórico-social, anterior ao Estado, do direito.
De acordo com esse modelo, em que a lei do Estado não é, ou não deve ser,
senão uma forma superior de racionalidade do direito histórico-socialmente
formado, não se pode sequer conceptualizar a sua subordinação a parâmetros
jurídicos superiores.
Se é verdade que, no momento inicial da sua formação, a moderna ciência
do direito público se funda justamente a partir da negação de uma actividade
criadora da lei do Estado, o que é certo é que tal fundamento se revelaria incom-
patível com o objectivo último que a ciência traça a si própria: o de organizar em
sistema a acção do Estado-pessoa em termos de uma coerente manifestação de
soberania. Com a reorientação da ciência para o estudo do complexo de nor-
mas jurídicas respeitantes ao Estado, este adquire uma centralidade absoluta.
A lei autonomiza-se de um fundamento externo – a sua radicação no direito
histórico-socialmente produzido – e é concebida como o único instrumento ca-
paz de exprimir e garantir a unidade do direito. É a lei a servir de parâmetro de
validade dos actos do poder executivo, com isso se garantindo o cumprimento
do direito positivo e, nessa medida, os direitos dos cidadãos sancionados por lei.
Em contraposição à estrutura aberta, flexível e casuística da ordem jurídica plu-
ralista medieval (ius commune e iura propria), constrói-se um modelo fechado, sis­
tematizado e hierárquico do sistema de fontes do direito, ocupando a lei do Estado
o lugar central e cimeiro. Nesse modelo teórico, obviamente que se não põe
o problema de controlar a lei, ela própria. Devendo o método de trabalho do
cientista do direito público restringir-se à técnica de sistematização das diver-
sas formas de manifestação da vontade do Estado, excluindo-se todo o tipo de
considerações valorativas de carácter político e social, jamais o juspublicista po-
deria ocupar-se da sindicância da vontade do legislador. Isto porque, aos olhos
de uma ciência cuja identidade se definia justamente pela utilização do método
jurídico na sua vertente formalista, nunca tal seria passível de ser sequer conce-
bido como um problema jurídico. Sendo a verdade científica demonstrada, não
pela adequação do pensamento a uma realidade externa, mas antes pela coe-
rência interna das categorias do sistema de saber, há que definir, com rigor, um
limite externo entre o que é incluído no sistema – o que é direito – e o que dele
está excluído, e esse limite é justamente a lei do Estado, enquanto acto de livre
criação do direito. Justamente por ser concebida como acto de livre criação do
direito, por definição a lei do Estado não podia encontrar-se a este último vin-
culada. Face à fundamental estrutura dicotómica do sistema, um acto de criação
do direito não podia ser, simultaneamente, um acto de aplicação do direito.
Ainda que assente em um fundamento teórico diverso, senão mesmo oposto,
na medida em que pressupõe a actividade criadora da lei do Estado, a moderna

396
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

ciência do direito público conduz, no entanto, quer pela predominância do mé­


todo jurídico na sua vertente formalista quer pela influência do positivismo no plano
das ideias dominantes sobre o saber, justamente à mesma consequência que
já conhecera no período inicial da sua formação, caracterizado pela influência
da Escola Histórica do direito: a da impossibilidade teórica de subordinação da lei do
Estado ao direito42.

1.3. A Constituição como norma e a justiça constitucional como produto da


cultura europeia-continental do século XX

1.3.1. A ruptura científica


A origem da justiça constitucional na Europa tem como momento funda-
cional um debate científico, ocorrido há cerca de um século atrás, em finais dos
anos vinte do século XX. Tal debate, que tem lugar no âmbito de uma discussão
mais vasta, de índole metodológica, em que toda a ciência do direito público
participa num esforço de rejeição dos métodos herdados do cientismo positi­
vista do século XIX e que ficou conhecida como querela dos métodos43, centra-
-se em torno da possibilidade teórica de vincular a lei a um parâmetro jurídico
supe­rior, ou seja à constituição. Sem a demonstração científica dessa possibili-
dade jamais existiria na Europa justiça constitucional44.

42
Sobre o processo de construção da moderna ciência do direito público v. Maria Lúcia Ama-
ral, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1998,
pp. 221 e segs.
43
Maria Lúcia Amaral, “O modelo europeu de justiça constitucional. Origens e fundamentos”, in:
Tribunal Constitucional (ed.), Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora,
Coimbra, 2014, pp. 1025-1040, pp. 1032. Sobre a querela dos métodos em direito público v. Rudolf
Smend, “Die Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer und der Richtungsstreit”, in Horst
Ehmke et al. (eds.), Festschrift für Ulrich Scheuner zum 70. Geburtstag, Duncker & Humblot, Berlin,
1973, pp. 575-589 e Manfred Friedrich, “Der Methoden- und Richtungsstreit. Zur Grundlagen-
diskussion der Weimarer Staatsrechtslehre”, 102 Archiv des öffentliches Rechts (1977), pp. 161-209.
V. também Michael Stolleis, Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland, vol. 3, Staats- und Ver-
waltungsrechtswissenschaft in Republik und Diktatur 1914-1945, C.H. Beck, München, 1999,
pp. 153-202. A relevância da querela dos métodos na história do direito público é demonstrada
pelo facto de este último autor, na versão condensada da sua obra de quatro volumes, àquela não
deixar de dar o devido destaque (cfr. id., Öffentliches Recht in Deutschland. Eine Einführung in
seine Geschichte (16.-21. Jahrhundert), C.H. Beck, München, 2014, pp. 90-105). Na literatura recente,
v. Christoph Möllers, “Der Methodenstreit als politischer Generationenkonflikt. Ein Angebot zur
Deutung der Weimarer Staatsrechtslehre”, 43 Der Staat (2004), pp. 399-424.
44
Gustavo Zagrebelsky, La legge e la sua giustizia, il Mulino, Bologna, 2008, p. 328 segs.

397
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

Não cabe aqui revisitar esse debate45, mas apenas assinalar o facto de a jus-
tiça constitucional na Europa ter na sua origem um debate científico. Essa sua
origem tem uma enorme relevância, não apenas no que respeita a aspectos ins-
titucionais do Estado constitucional na Europa – pense-se na existência de tri-
bunais constitucionais – mas na própria ciência do Direito.
A circunstância de a possibilidade de o legislador democraticamente le-
gitimado estar juridicamente vinculado a uma constituição ter sido debatida
cientificamente antes da instituição de tribunais constitucionais permitiu que
a função que a estes últimos cabe no quadro do Estado constitucional esteja,
desde o primeiro momento, teoricamente justificada. Além disso, a realização
desse debate permitiu ainda que o desenho do modelo europeu de justiça cons-
titucional fosse concebido em termos de se ajustar às exigências muito particu-
lares que a interpretação da constituição convoca. Foi por se reconhecer que a
constituição é algo a se, dada, desde logo, a sua posição na hierarquia do sistema
jurídico, mas também considerando a estrutura específica das normas consti-
tucionais, que, ao desenhar o sistema europeu de controlo de constitucionali-
dade, se rejeitou a atribuição de competência para interpretar a constituição
a todo e qualquer tribunal, antes se tendo optado pela instituição de um órgão
jurisdicional próprio46 47. O desenho do sistema pretendeu potenciar o desen-
volvimento de uma hermenêutica própria.

45
Ravi Afonso Pereira, “Interpretação constitucional e Justiça constitucional”, in Tribunal Cons-
titucional (ed.), 35º Aniversário da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2012,
pp. 43-81, pp. 46-61.
46
Id., pp. 60-61.
47
Note-se que, também nos Estados Unidos da América, desde cedo, se teve plena consciência da
especificidade metódica que a interpretação da constituição exige. «We must never forget that
it is a constitution we are expounding» escreveria, logo no início do século XIX, numa das suas
mais célebres opinions, o Chief Justice Marshall (McCulloch v. Maryland, 17 U.S. 316 [1819], p. 407).
As razões por que, nos Estados Unidos da América, o modelo jurisdicional difuso de controlo de
constitucionalidade das leis não impediu o desenvolvimento de uma hermenêutica constitucional
própria foram logo compreendidas pelo inventor do modelo europeu de justiça constitucional
(Hans Kelsen, “Judicial Review of Legislation: A Comparative Study of the Austrian and the Ame-
rican Constitution”, 183 The Journal of Politics 4 [1942]). Os juízes norte-americanos, herdeiros da
tradição de common law e nunca submetidos à formação do método jurídico, tal como o concebeu
e desenvolveu a ciência europeia do direito público, não seriam, como os juízes europeus conti-
nentais, estruturalmente insensíveis às especificidades metódicas exigidas pela interpretação da
constituição. Sendo outra, do lado de lá do Atlântico, a fundação teórica dos direitos e da liber­
dade, outra seria o conceito de constituição e do próprio modo de conceber o direito e outra seria
a autocompreensão do papel do juiz no sistema político e jurídico. É, fundamentalmente, isso
que explica que, nos Estados Unidos da América, tenha sido possível que o momento fundador da
justiça constitucional tenha sido, não um debate científico e académico – como, na Europa, viria
a ser necessário – mas um acto jurisdicional.

398
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

Tal significa, portanto, que, na Europa, a justiça constitucional implicou


uma ruptura científica. Algo que, de acordo com uma concepção formalística do
direito, carecia de justificação teórica, passou, no decurso do século XX, a ser
não apenas uma possibilidade mas uma necessidade. Não é possível conceber
essa mudança, vendo nela elementos de continuidade com o passado. Porque
nem a ciência do Direito nem o próprio modo de conceber o Direito seriam
como dantes, não será excessivo afirmar, com Francisco Rubio Llorente que «[l]
a introducción de la jurisdicción constitucional en Europa no ha sido producto
de una evolución, sino de una revolución»48.

1.3.2. A ruptura histórico-cultural


Além de ter na sua origem um debate científico, a justiça constitucional é
ainda um produto da cultura europeia-continental do século XX.
Recorde-se que, ao contrário do que sucedeu do outro lado do Atlântico, em
que a experiência revolucionária bem como a influência da common law tornou
possível que a constituição fosse concebida como um instrumento de garantia
dos direitos e das liberdades mesmo contra o poder legislativo, a Europa do
século XIX conheceu uma cultura de legalidade em que, em contraste com a ex-
periência norte-americana, a garantia dos direitos e das liberdades tinha como
instrumento privilegiado a lei do Estado e a constituição era encarada como
uma ameaça a esses mesmos direitos e liberdades49. Assim, enquanto durasse
essa cultura – enquanto durasse o longo século XIX50 – não estavam reunidas as
condições teóricas e práticas para que a justiça constitucional fosse sequer pos-
sível, muito menos necessária.
Em primeiro lugar, importa assinalar que, do mesmo modo que no domínio
científico do pensamento jurídico a justiça constitucional implica uma ruptura,
também no plano histórico-cultural a origem da justiça constitucional na Eu­ropa
nasce de uma ruptura. Algo que, na cultura da Europa continental do sé­culo
XIX era inconcebível e desnecessário passou, no decurso do século XX, a ser

48
Francisco Rubio Llorente, “La jurisdicción constitucional como forma de creación de Dere-
cho”, 22 Revista Española de Derecho Constitucional (1988), pp. 9-51, p. 21, coligido em id., La forma
del poder. Estudios sobre la Constitución, 2ª ed., Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997,
pp. 463-504, p. 475.
49
Fioravanti (n. 16), pp. 102-118.
50
O conceito é de Eric Hobsbawm que na sua interpretação da história europeia opõe o “breve
século XX”, delimitado pelo dealbar da primeira Guerra Mundial (1914) até à implosão da União
Soviética (1991), ao “longo século XIX”, delimitado pela Revolução Francesa (1789) até à primeira
Guerra Mundial (1914), que analisou em três monografias (The Age of Revolution, 1789-1848; The
Age of Capital, 1848-1875 e The Age of Empire, 1875-1914).

399
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

não apenas uma possibilidade mas uma necessidade. Não é possível conceber
essa mudança vendo nela elementos de continuidade com o passado51.
A ideia de que a justiça constitucional na Europa é um produto da cul­
tura europeia do século XX deve ser analisada em dois aspectos distintos, inti­
mamente relacionados. Desde logo, a justiça constitucional na Europa é um
produto da cultura europeia. Tal significa que não se trata de um pormenor da
história da Europa, mas de algo que assume uma relevância histórico-cultural,
com tudo o que isso implica. O seu surgimento não se dá por acaso, antes vem
responder a anseios dos povos europeus num momento muito particular da sua
história, em que ocorrem significativas transformações estruturais na sociedade
provocadas pelo impacto da industrialização na chamada “questão social” vi­vida
intensamente no último quartel do século XIX até à primeira grande guerra
e na sequência das quais surgem transformações estruturais na esfera pública
– nada mais nada menos do que o surgimento das primeiras experiências da
democracia parlamentar. Em lugar do modelo dualista de separação entre Es-
tado e sociedade em que a participação no processo de decisão política estava
reservada a uma classe social relativamente homogénea, em que a lei era, por
definição, expressão de um consenso constituído pelos valores de uma classe
social homogénea (e que outros não eram do que os valores da burguesia do
século XIX) e em que, portanto, a unidade da ordem política era pressuposta52,
a esfera pública deixaria de repente de assentar num consenso material de va-
lores; o conflito – e já não a unidade – era agora o pressuposto da nova ordem
política que passaria a ter como protagonistas os partidos políticos represen-
tativos da sociedade plural de massas53. Na construção dessa nova ordem, em
que, rompido o consenso, urge encontrar soluções para garantir o pluralismo
da sociedade sem pôr em causa a unidade política, ao direito – através da cons-
tituição – caberá, ao longo de todo o século XX, um papel fundamental. E aqui
se deixa assinalar o outro aspecto contido na ideia enunciada no início deste
parágrafo. Nesse aspecto, o que merece ser posto em evidência é o adjectivo – a
justiça constitucional na Europa é um produto da cultura europeia. Não se trata
aqui de um fenómeno vivido isoladamente por cada Estado europeu. Trata-se
de um fenómeno – de um idem sentire constitucional54 – vivido intensamente pe-

51
Ahumada Ruiz (n. 8), pp. 35 e segs.
52
Zagrebelsky (n. 13), pp. 33-38.
53
Zagrebelsky (n. 13), pp. 45-47.
54
A expressão é de Gustavo Zagrebelsky, La giustizia costituzionale, 2ª ed., il Mulino, Bologna, 1988,
p. 36, sendo retomada em Zagrebelsky/Marcenò (n. 2), p. 64.

400
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

los povos europeus. Nesse idem sentire reside não apenas a origem mas também a
unidade do modelo europeu de justiça constitucional55.

2. A evolução da justiça constitucional em Portugal

2.1. A experiência portuguesa enquanto fenómeno isolado


Em Portugal, a justiça constitucional não surge como um produto da cultura
europeia do século XX56.
Ao seu nascimento não preexistiu qualquer debate científico que tivesse
como objecto a possibilidade teórica de vincular a lei a um parâmetro jurídico
superior.
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade actualmente vi-
gente não foi concebido para dar resposta aos problemas criados pelas transfor-
mações estruturais na esfera pública no primeiro quartel do século XX.
Na verdade, o sistema português sofre a influência de uma experiência his-
tórica que recua até meados do século XIX, em que, devido à debilidade do
parlamentarismo português sob a vigência da Carta Constitucional de 1826 e à
difícil afirmação da lei no sistema de fontes, se discutia, tanto na doutrina como
na jurisprudência, até que ponto devia o poder judicial obediência aos chama-
dos decretos ditatoriais e se, e em que termos, podia um juiz recusar a aplicação
num caso concreto que tivesse que decidir desses actos do poder executivo.
A pertença histórica desse mecanismo, que procurava dar resposta àquilo
que era um problema típico do século XIX – controlo contra o poder executivo –,
foi, porém, desconsiderada no momento em que, em 1976, se desenhou o siste-
ma português de fiscalização da constitucionalidade, o qual, nos seus elementos
essenciais, mesmo após a criação do Tribunal Constitucional, na sequência da
primeira revisão constitucional, se mantém até hoje inalterado. Com efeito, e
na ausência de qualquer debate científico, combinou-se aquela tradição, que
já no decurso do século XX – com a Constituição de 1911 (artigo 63º) e com a
própria Constituição de 1933 (artigo 122º) – foi ampliada em termos de reco-

55
Tem assim inteira justificação que a doutrina assuma a existência de um modelo europeu de
justiça constitucional. V., a título de exemplo, Groppi (n. 5), Pedro Cruz Villalón, La formación del
sistema europeu de control de constitucionalidad (1918-1939), Centro de Estudios Constitucionales,
Madrid, 1987; Ahumada Ruiz (n. 8), pp. 239 e segs. e Víctor Ferreres Comella, Una defensa del modelo
europeo de control de constitucionalidad, Marcial Pons, Madrid, 2011 [tradução para castelhano de id.,
Constitutional Courts and Democratic Values: A European Perspective, Yale University Press, New Haven,
2009]. Na doutrina nacional, v., por todos, Amaral (n. 43), p. 1026 nota 1.
56
Maria Lúcia Amaral/Ravi Afonso Pereira, “Das portugiesische Verfassungsgericht”, in: von
Bogdandy/Grabenwarter/Huber (n. 7), § 104, pp. 519-571, p. 523.

401
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

nhecer a todos os tribunais a competência para recusar a aplicação de normas


constantes de actos do poder legislativo, com o modelo europeu de um controlo
concentrado com jurisdição própria e especializada.

2.2. A prática do século XIX e as origens do sistema português


A única forma de compreender a singularidade do sistema português de fis-
calização da constitucionalidade actualmente vigente obriga a recuar até mea­
dos do século XIX e analisar a origem história da competência atribuída aos
tribunais para recusar a aplicação de decretos ditatoriais.
Desde logo, importa observar que não se trata aí, de todo em todo, de uma
manifestação precoce da preocupação de controlo de actos do poder legislativo.
O quadro conceptual de que então se parte não concebe a constituição como
norma jurídica e sem esse pressuposto teórico não é, já o sabemos (cfr., supra,
pontos 1.1. e 1.3.), sequer concebível a discussão sobre a vinculação da lei ao
direito. A tese contrária, segundo a qual é possível conceber a prática do século
XIX bem como a discussão doutrinária e jurisprudencial por ela gerada como
antecedentes de uma história futura, ainda que sustentada pela generalidade dos
comentadores que até à data se debruçaram sobre a origem da justiça constitu-
cional em Portugal57, é, porque assente na retro­projecção de uma representação
à época inacessível, de rejeitar.
Em nosso modo de ver, a discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a
competência do poder judicial para recusar a aplicação de decretos ditatoriais
deve antes ser compreendida no contexto histórico da monarquia constitucio-
nal e da debilidade do parlamentarismo.

2.2.1. A monarquia constitucional e o seu parlamentarismo débil. Os decretos


ditatoriais
Pelo menos desde os anos trinta do século XIX que o constitucionalismo
monárquico português se vê confrontado com o problema da competência do
poder judicial para recusar a aplicação de actos inconstitucionais58.

57
Jorge Miranda, Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade, Coimbra Editora, Coimbra,
1996, p. 107; José Manuel Moreira Cardoso da Costa, “O Tribunal Constitucional português: a
sua origem histórica”, in: Mário Baptista Coelho (coord.), Portugal – o sistema político e constitucional
1974-1987, ICS, Lisboa, 1989, pp. 913-923, 914-915 e Miguel Nogueira de Brito/António de Araújo,
“Para a história da fiscalização da constitucionalidade em Portugal”, Revista Brasileira de Direito
Constitucional 2 (2003), pp. 277-286, p. 280.
58
António Manuel Hespanha, “Direitos, constituição e lei no constitucionalismo monárquico
português”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (Themis) 10 (2005),
pp. 7-40, p. 34.

402
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

Como bem se sabe, o problema tem na sua origem a Carta Constitucional


de 1826 e as particularidades práticas de que o «parlamentarismo» por ela pre-
visto se viria a revestir. De acordo com o artigo 13º da Carta, o poder legisla­
tivo competiria ao parlamento (as “Cortes”), com a sanção do Rei. A atribuição
da competência era expressão do princípio da “divisão e harmonia dos Poderes
Políticos”, reconhecido no artigo 10º da Carta como sendo o “princípio con-
servador dos Direitos dos Cidadãos e o mais seguro meio de fazer efectivas as
garan­tias que a Constituição oferece”.
Sucede, porém, que o poder legislativo da monarquia constitucional, deste
modo atribuído exclusivamente à assembleia parlamentar, nunca se veio a reve-
lar como um poder de exercício eficaz. Durante todo o período de vigência da
Carta – de 1826 a 1910, com interrupções – a debilidade do parlamentarismo
foi traço constante do “regime” constitucional59. A câmara baixa das “Cortes”,
designada como Câmara dos Deputados, era, ao contrário da Câmara dos Pares,
electiva e temporária. Devido ao funcionamento instável de um bipartida­rismo
imperfeito era frequente a sua dissolução, o que impedia o enraizamento das
práticas parlamentares e a continuidade dos processos legislativos. Nas altu-
ras em que, por ausência da Câmara dos Deputados, o parlamento não reunia,
era o executivo que sistematicamente assumia funções legislativas, emitindo,
em violação da Constituição, os chamados decretos ditatoriais. Normalmente, a
inconstitucionalidade destes decretos ditatoriais era sanada por acto do próprio
parlamento, assim que a Câmara dos Deputados voltava a ser eleita e a reunir:
através dos bills de indemnidade, as Cortes costumavam ratificar os actos legislati-
vos entretanto emitidos pelo executivo, tornando-os actos seus60. Apesar disso,
porém, a sensibilidade do país face à prática de actos inconstitucionais pratica-
dos pelo Governo tornara-se já viva.
Tanto na doutrina como na jurisprudência é debatido até que ponto deve o
poder judicial obediência aos decretos ditatoriais e se, e em que termos, pode um
juiz recusar a aplicação num caso concreto que tivesse que decidir desses actos
do poder executivo. Tal não significa porém – e este é o ponto essencial que

59
Em As Farpas (1871-1872), Eça de Queirós e Ramalho Ortigão captaram satiricamente essa debi-
lidade. Importa, no entanto, observar que o parlamento oitocentista não deixou de desempenhar
um papel central na monarquia constitucional, como a historiografia mais recente vem assinalando.
V. Maria de Fátima Bonifácio, “O Parlamento português no século XIX”, in id., Estudos de História
Contemporânea de Portugal, Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2007, pp. 151-163 e Paulo Jorge
Fernandes, “O Sistema Político na Monarquia Constitucional (1834-1910)”, in André Freire (org.),
O Sistema Político Português, Séculos XIX-XXI: continuidades e rupturas, Almedina, Coimbra, 2012,
pp. 25-49, pp. 35-39.
60
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Vol. I, Tomo I, 2, 10ª ed., Coimbra Editora, Coim-
bra, 2014, p. 48.

403
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

uma vez mais se pretende sublinhar – que tal discussão, doutrinária e jurispru-
dencial, fosse algo mais do que era próprio da história cultural de oitocentos.
O que estava em causa era ainda o problema que o constitucionalismo mo-
nárquico tinha um pouco por toda a Europa que resolver, e que em Portugal
ostentava dificuldades próprias, decorrentes de um parlamentarismo parti­
cularmente débil: como defender o Legislativo contra as «investidas» do Exe-
cutivo. Coisa bem diversa viria a ser, como já sabemos, o problema europeu da
segunda metade do século XX – como defender a «norma» constitucional con-
tra as «investidas» do Legislativo.

2.2.2. Os debates doutrinários e jurisprudenciais


É neste contexto que, segundo cremos, se deve compreender a História.
Desde a década de 40 do século XIX que os tribunais portugueses se vêem
confrontados com a questão de saber se, e em que medida, devem os juízes obe-
diência aos decretos ditatoriais. Há notícias de uma representação do Supremo
Tribunal de Justiça dirigida à Rainha D. Maria II, datada de 1842, onde, relati-
vamente a um acto do poder executivo, que, uma vez mais durante um período
de ditadura ou de não funcionamento do parlamento, resolvera introduzir novas
regras de processo criminal, se determinara que “(...) é nullo todo e qualquer
acto legislativo que não fôr Decretado e Sancionado com as formalidades e pe-
los meios Constitucionaes. (...) é evidente que um acto seu, pelo qual se alte-
ra a Legislação em vigor, se criam direitos e obrigações novas e se estabelecem
diversas formalidades de processar, não pode ser aplicado no Foro”61. Em uma
segunda representação, datada de 1944, esse órgão jurisdicional inequivoca-
mente reafirmaria a competência do poder judicial para recusar a aplicação no
caso concreto de um decreto ditatorial62. Perante essa posição do mais alto Tribu-
nal, encontram-se algumas decisões judiciais que efectivamente decidem recu-
sar a aplicação de decretos ditatoriais, se bem que, aparentemente – sendo difícil
avaliar a orientação dominante na prática judicial quotidiana63 –, a maioria dos
tribunais não o fizesse64. O Supremo Tribunal de Justiça acabaria, no entanto,
por recuar na posição que havia assumido inicialmente. Num acórdão datado de
1907, o Supremo Tribunal de Justiça, revogando uma sentença proferida por um
tribunal de primeira instância que recusara reconhecer validade a um decreto

61
Representação do Supremo Tribunal de Justiça, sobre o Dec. de 11 de Junho de 1842, in Gazeta
dos Tribunais (1º Ano, N. 124) (1842), p. 495.
62
Representação do Supremo Tribunal de Justiça, sobre o Dec. de 1 de Agosto de 1844, in Gazeta
dos Tribunais (4º Ano, N. 487) (1844), p. 1972.
63
Hespanha (n. 58), p. 35.
64
José Alberto dos Reis, Organização judicial. Lições feitas ao curso do 4º anno juridico de 1908 a 1909,
Imprensa Académica, Coimbra, 1909, p. 47.

404
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

ditatorial que vinha estabelecer o processo sumário para as acções relativas a


pequenas dívidas, decide que a validade de um decreto ditatorial não pode ser
posta em causa, e isto mesmo antes de ser ratificado pelas Cortes65.
Também na doutrina o debate estava lançado. As primeiras referências ao
reconhecimento da competência do poder judicial para recusar a aplicação de
actos inconstitucionais remontam em Portugal, ao que parece, a 1852. Data
dessa altura uma obra, assinada por Francisco Silva Ferrão, e intitulada Trac­
tado sobre direitos e encargos da Sereníssima Casa de Bragança, onde, em comentário a
uma sentença da época, em que o juiz se reconhecera incompetente para julgar
da invalidade de um acto legislativo, o autor afirma que «[…] os Juizes prestaram
juramento de observar, e fazer observar, a Carta Constitucional da Monarchia,
e as Leis do reino, e não podem abstrahir estas d’aquella, no cumprimento dos
seus deveres, estando obrigados, por isso, a considerar, não só, se as Partes, se
os processos, se as acções, tem a qualidade de legitimas, mas, outrosim, se os
diplomas, ou determinações, cujas theses devem applicar ás hypotheses dos autos,
tem, ou não, o cunho de Lei»66.
Aqueles que, em Portugal, têm estudado a origem da justiça constitucio-
nal no nosso país consideram que essa obra contém a primeira reflexão sobre
o tema67. Contudo, os argumentos que o autor utiliza para justificar o reconhe-
cimento da competência do poder judicial para recusar a aplicação de actos
inconstitucionais – o juramento de fidelidade à Constituição feito pelos juízes
– permitem pôr em dúvida que o mesmo se deva reconduzir ao debate teórico
sobre a justiça constitucional68. Na verdade, o quadro conceptual de que parte
Silva Ferrão é ainda o que é próprio do universo cultural de oitocentos, em que
o conceito de constituição se confina ao «quadro político de organização dos po-
deres do Estado»69, totalmente construído à margem do sistema de fontes do

65
Nogueira de Brito/Araújo (n. 57).
66
Francisco António Fernandes da Silva Ferrão, Tractado sobre direitos e encargos da Sereníssima Casa
de Bragança, Imprensa de J. J. Andrade e Silva, Lisboa, 1852, p. 253.
67
João Maria Tello de Magalhães Collaço, Ensaio sobre a inconstitucionalidade das leis no direito portu­
guês, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1915, pp. 54 e segs.. Segundo André Salgado de Matos,
“Silva Ferrão e o nascimento do princípio da constitucionalidade em Portugal”, in: Marcelo Rebelo
de Sousa et al. (coord.), Estudos de homenagem ao prof. doutor Jorge Miranda, Vol. I, Coimbra Editora,
Coimbra, 2012, pp. 293-322, p. 315, o reconhecimento da competência dos tribunais para recusar
a aplicação de uma lei teria surgido já em obra anterior do mesmo autor, datada de 1850, intitulada
Analyse critica e juridica, demonstrativa da improcedencia dos argumentos, com que, na Camara dos Senhores
Deputados da Nação Portuguesa, foi sustentada a proposta de Lei Regulamentar do § 3º do artigo 145º da
Carta Constitucional da Monarchia, offerecida á Camara dos Dignos Pares do Reino.
68
Hespanha (n. 58), p. 26.
69
Amaral (n. 3), pp. 63-66.

405
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

direito70, em que, portanto, o valor jurídico, logo paramétrico, da constituição e,


logicamente, o desvalor jurídico de um acto a ela desconforme, é teoricamente
inconcebível71. Como inconcebível é a ideia segundo a qual a lei do Estado pode
constituir uma ameaça aos direitos dos cidadãos, em vez de ser ela própria a
sua garantia. Por isso mesmo, e em consonância com este modo de pensar, a
competência que é atribuída ao poder judicial – de recusar a aplicação dos decre­
tos ditatoriais – está longe de ser vista como o resultado de uma transformação
paradigmática do sistema de fontes, por implicar um juízo novo, de invalidade,
do acto do poder legislativo, sendo disso mesmo bem elucidativo que o autor
coloque tal competência no mesmo plano em que analisa a verificação judicial
do preenchimento de pressupostos de admissibilidade do processo.
Ora não era evidentemente num tal plano que já à altura se colocava o ins-
tituto da judicial review of laws. Quanto aos fundamentos do poder judicial de
recusar a aplicação a casos concretos de normas contrárias à constituição, a
concepção norte-americana – nunca será demais lembrá-lo – era já desde 1803
muito clara: um tal poder (di-lo o US Supreme Court no famoso caso Marbury v.
Madison72) radica no valor superior que é de reconhecer à constituição enquan-
to paramount law, e no princípio geral de direito segundo o qual, em caso de
antinomia entre duas normas que sejam aplicáveis ao mesmo caso, deve preva-

70
Id., 67-73.
71
É certo que Silva Ferrão afirma que «[não reconhecer a competência do poder judicial para
recusar a aplicação de actos inconstitucionais] importaria o mesmo que subordinar a acção da
justiça ao arbítrio [dos outros Poderes do Estado]; reduzir os Juizes a instrumentos cegos e doceis,
para homologar somente determinações exorbitantes e inconstitucionaes ; tornar em fim o Poder
Judiciario uma cousa muito diversa do que deve ser na realidade, pela firme, constitucional, e justa
manutenção dos direitos dos cidadãos» (Silva Ferrão [n. 66], p. 253 [itálico nosso]). Simplesmente, a
interpretação desse texto e do pensamento do autor não pode ser dissociado daquilo que, na Eu-
ropa, é a fundação teórica dos direitos e da liberdade. Como se explicou, ao analisar o modelo dual
de separação entre Estado e sociedade (supra, ponto 1.1.1.) bem como ao tratar da cultura europeia-
-continental da liberdade (supra, ponto 1.2.1.), na Europa, a constituição não é concebida como
um acto autónomo de fundação dos direitos e das liberdades, podendo, desse modo, a lei estadual
ser encarada como podendo constituir uma ameaça a esses mesmos direitos. Pelo contrário, é no
direito positivo do Estado, maxime no código civil, que encontramos a sede própria para a tutela
dos direitos e da liberdade, sendo antes a constituição a configurar uma ameaça aos direitos e à
liberdade criados e garantidos pelo Estado de direito, pela lei geral e abstracta. É por este motivo
que o Estado burguês e liberal oitocentista é um Gesetzgebungsstaat, e não um Verfassungsstaat, como
viria a ser o Estado da segunda metade do século XX. Contra, defendendo que o pensamento de
Silva Ferrão se sustenta em uma teoria da inconstitucionalidade em termos que corresponderiam
à formulação actual do princípio da constitucionalidade, Salgado de Matos (n. 67), p. 316.
72
Marbury v. Madison, 5 U.S. (1 Cranch) 137, 177 (1803).

406
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

lecer a norma superior sobre a norma inferior73. De acordo com esta doutrina,
desaplicar uma norma a um caso concreto com fundamento na sua inconsti-
tucionalidade nunca seria o mesmo que aferir se estariam ou não preenchidos
os pressupostos de admissibilidade do processo ou a legitimidade das partes.
Seria sempre outra coisa, de natureza diversa e de implicações bem mais fun-
das, que se inscreveria no próprio âmago da função judicial («This is of the very
essence of judicial duty»74), uma vez que decorreria da concepção da constitui-
ção como norma superior no sistema de fontes. Muito longe deste modo de ver
estava a tese que confinava o conceito de constituição ao «quadro político dos
poderes do Estado»; mas era essa, precisamente, aquela que Silva Ferrão subs-
crevia – a única que lhe era possível subscrever –, uma vez que era ainda essa
a tese que correspondia aos quadros dominantes na cultura jurídica europeia
de oitocentos.
Tudo leva a crer, portanto, que o autor do Tractado sobre direitos e encargos da
Sereníssima Casa de Bragança desconhecia, ou que pelo menos não compreendia,
as razões profundas que justificavam a existência, nos Estados Unidos da Amé-
rica, da judicial review of laws. Deve no entanto notar-se que, meio século mais
tarde, no início do século XX, a discussão sobre o tema da justiça constitucional
não era desconhecida da doutrina nacional, uma vez que outros autores desde
cedo manifestaram abertura para atribuir ao poder judicial a competência para
controlar a conformidade de uma lei face à constituição75. O tema era, todavia,
abordado completamente à margem do tratamento da questão relativa ao re-
conhecimento da competência do poder judicial para recusar a aplicação de

73
«It is emphatically the province and duty of the Judicial Department to say what the law is. Those
who apply the rule to particular cases must, of necessity, expound and interpret that rule. If two
laws conflict with each other, the Courts must decide on the operation of each. So, if a law be in
opposition to the Constitution, if both the law and the Constitution apply to a particular case, so
that the Court must either decide that case conformably to the law, disregarding the Constitu-
tion, or conformably to the Constitution, disregarding the law, the Court must determine which
of these conflicting rules governs the case. This is of the very essence of judicial duty. If, then,
the Courts are to regard the Constitution, and the Constitution is superior to any ordinary act of
the Legislature, the Constitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they
both apply» (ibid., p. 178).
74
Ibid., p. 178.
75
José Ferreira Marnoco e Souza, Direito político. Poderes do estado. Sua organização segundo a sciencia
politica e o direito constitucional português, 1910, p. 781 ff. e Reis (n. 64), p. 26. Uma interessante análise
em Marcelo Rebelo de Sousa, O valor jurídico do acto inconstitucional, vol. I., Editora Gráfica Portu-
guesa, Lda., Lisboa, 1988, pp. 39 e segs., defendendo que, se na fase inicial do constitucionalismo
liberal monárquico português se verifica a inexistência de uma teoria da inconstitucionalidade, tal
teorização teria surgido, ainda que de forma incipiente, numa segunda fase, ao longo da segunda
metade do século XIX e sobretudo no final do século e no começo do século XX.

407
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

decretos ditatoriais76. Tal significa que a doutrina de então estava perfeitamente


ciente que o reconhecimento dessa competência apenas se compreenderia no
contexto da debilidade do parlamentarismo português e que o mesmo era con-
cebido como um instrumento de controlo do poder executivo e não do poder
legislativo.
Mas para além deste ponto, um outro – ainda atinente às particularidades da
condição histórica de Portugal – há que merece ser sublinhado.
Se a linha de interpretação que acabámos de desenvolver poderá ser cor­
recta à luz daquele ângulo de análise mais vasto que é próprio do estado coetâ-
neo da cultura jurídica europeia – empenhada no século XIX em afirmar formas
de controlo contra o poder executivo –, quando visto à luz das particularidades
da cultura jurídica portuguesa o fenómeno que vimos descrevendo assumirá
ainda outros contornos. Em Portugal, e em claro contraste com a experiência
europeia do século XIX, vale a relativa incapacidade de a lei parlamentar lograr
a sua plena afirmação como fonte de legitimação do poder público e como parâ-
metro de controlo da actividade do Estado.
Com efeito, ao contrário do que se verificou no século XIX europeu, em
que a lei parlamentar foi absorvendo a estrutura casuística da ordem jurídica
do Antigo Regime, monopolizando o poder de dizer o direito, em Portugal
esse processo não ocorreu do mesmo modo, tendo a lei do Estado que convi-
ver, durante um longo período, com outros modos de produção do saber jurí-
dico, porque justamente – por comparação com a lei estadual – mais eruditos (e,
por isso, mais legítimos) tais como a doutrina (a autoridade do professor de Direito)
e a jurisprudência (a autoridade do juiz). Em Portugal, não obstante a força de
um movi­mento de crítica à incerteza e hermetismo do direito doutrinal e juris­
prudencial que reclamava leis claras e reformas judiciárias que amarrassem os
juízes ao cumprimento estrito da lei77, no século XIX, o direito era ainda defi­

76
Marnoco e Souza (n. 75) trata do tema da fiscalização da constitucionalidade nas pp. 781 e segs.
e da aplicabilidade dos decretos ditatoriais nas págs. 784 e segs.. Ainda mais nítida é a separação
temática em Reis (n. 64), que aborda o tema da fiscalização da constitucionalidade no § 2 (pp.
22 e segs.), dedicado à relação entre o poder judicial e o poder legislativo, ao passo que a aplicabilidade
dos decretos ditatoriais vem tratada no § 3 (pp. 36 e segs.), dedicado à relação entre o poder judicial e
o poder executivo.
77
Hespanha (n. 20), pp. 374-375. É o caso da Lei da Boa Razão, de 18 de Agosto de 1769, que reviu
todo o sistema de fontes do direito no sentido de tornar o direito mais certo, proscrevendo o
direito doutrinal e jurisprudencial (cfr. § 13, em que se bane a autoridade da Glosa de Acúrsio,
da opinião de Bártolo e da communis opinio doctorum) e instituindo uma espécie de référé législatif
(cfr. § 11), bem como dos Estatutos da Universidade, de 1772, que reformou o ensino do direito na
Universidade de Coimbra.

408
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

nido, não voluntaristicamente pela lei do Estado, mas pela ratio iuris, desven­
dada pelo jurista, e pela racionalidade prudencial do juiz78.
Tal significa que questionar a autoridade da lei sempre fez parte da cultura jurí­
dica do Portugal oitocentista. Nele, a redução do saber jurídico a técnica de apli­
cação da lei é tardio, antes prevalecendo o entendimento de que o direito é um
saber prático. É contra esse pano de fundo histórico-cultural que deve ser com-
preendido quer o fenómeno da aprovação pelo executivo de decretos ditatoriais
quer a própria tematização, na doutrina nacional, da «justiça constitucional».
Pode, assim, afirmar-se que os debates doutrinários e jurisprudenciais em
que se discutia a admissibilidade do controlo judicial difuso da constituciona-
lidade, entendido nos termos referidos, «[…] não representava nenhuma inova-
ção em relação aos sistemas de controlo da legitimidade das leis e dos actos de
poder em vigor no Antigo Regime»79. Ao contrário do que sucederia na Eu­ropa,
o controlo jurisdicional da constitucionalidade da lei nunca seria, em Portugal,
percebido como uma novidade, muito menos como uma ruptura, seja no plano
histórico-cultural seja no plano juscientífico.

2.2.3. A «tese da continuidade» e as primícias do actual sistema de justiça cons-


titucional
Todavia, e não obstante todos estes dados, as primícias do actual sistema da
justiça constitucional portuguesa encontrar-se-ão nestas origens oitocentistas
que acabámos de descrever, nunca valoradas ou revisitadas de acordo com o
particular significado que a perspectiva histórica lhes deveria ter conferido.
O processo de definição positiva do nosso sistema actual de «fiscalização da
constitucionalidade das normas» começa, na realidade, ainda em finais do sé­
culo XIX, e protrair-se-á ao longo de todo o século XX numa «linha de conti-
nuidade» nunca interrogada.
A 3 de Julho de 1899 é apresentada às Cortes um projecto de lei que visava
alterar o artigo 119º da Carta Constitucional, em termos de nela se passar a pre-
ver expressamente a competência jurisdicional para recusar a aplicação no caso

78
Hespanha (n. 20), pp. 426-435. Sobre a influência do jusnaturalismo holando-alemão, o qual por
sua vez sofre a influência da Segunda Escolástica difundida justamente a partir das universida-
des ibéricas, no ensino universitário e na interpretação da Lei da Boa Razão v. Hespanha (n. 58),
pp. 7-16. Confirmando, com base em uma análise de conteúdo, a prevalência no pensamento dos
juristas quer de características doutrinais (mais do que legais) quer de uma crença forte num direito
supralegal de cunho racionalista v. António Manuel Hespanha, “Razões de decidir na doutrina
portuguesa e brasileira do século XIX. Um ensaio de análise de conteúdo”, 39 Quaderni fiorentini
per la storia del pensiero giuridico moderno (2010), pp. 109-151.
79
Hespanha (n. 58), p. 34.

409
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

concreto de um decreto ditatorial80. Menos de um ano mais tarde, na proposta de


14 de Março de 1900, previa-se a atribuição aos tribunais da competência para
recusar a aplicação no caso concreto, agora já não apenas de decretos ditatoriais,
mas também da própria lei parlamentar81. Apresentada já em plena fase termi-
nal da monarquia, a proposta de revisão constitucional gorar-se-ia. Mas estavam
lançadas as bases para que, com a implantação da República, se vertesse em texto
o reconhecimento da competência do poder judicial para recusar a aplicação
de actos inconstitucionais, competência essa que, agora, se não limitaria apenas
aos decretos ditatoriais mas passaria a abranger também a própria lei parlamentar.
Na verdade, e como bem se sabe, determinava a Constituição de 1911 no seu
famoso artigo 63º que «[o] Poder Judicial, desde que, nos feitos submetidos a
julgamento, qualquer das partes impugnar a validade da lei ou dos diplomas
emanados do Poder Executivo ou das corporações com autoridade pública, que
tiverem sido invocados, apreciará a conformidade constitucional ou conformi-
dade com a Constituição e princípios nella consagrados». Pouco se sabe – ou
se se sabe, os dados são irrelevantes – sobre a efectiva aplicação, nos tribunais,
deste «poder dever» conferido precocemente aos juízes portugueses pela Consti-
tuição de 191182. Em contrapartida, é bem conhecido, e não deixa de ser elucida-
tivo, o debate doutrinário nessa altura travado sobre todo o instituto.
Discutia-se então se este poder de apreciação dos juízes abrangeria de igual
modo a inconstitucionalidade material e a inconstitucionalidade formal de uma
lei83, havendo autores que sustentavam que ao poder judicial competia apenas
a apreciação da inconstitucionalidade material84. Além disso, entendia-se que
o uso dessa competência por parte dos juízes estava dependente de as partes
terem previamente invocado o vício de inconstitucionalidade85. Uma das in­
fluências quer nos trabalhos da Constituição de 1911 quer na discussão sobre a
sua interpretação foi a Constituição brasileira de 1891 que, por sua vez, sofreu a
influência da Constituição dos Estados Unidos da América86. Essa circunstância

80
Magalhães Collaço (n. 67), pp. 59 e segs e Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, Tomo
I, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 315.
81
Collaço (n. 67), pp. 60-62.
82
Uma análise dos casos em que o poder judicial fez uso dessa sua competência em Domingos
Fezas Vital, “Jurisprudência Crítica”, Boletim da Faculdade de Direito 6 (1920-1921), pp. 552-603.
83
Miranda (n. 57), pp. 113 e segs.
84
Fezas Vital (n. 82), pp. 587 e segs.
85
Crítico quanto a essa interpretação Magalhães Collaço (n. 67), pp. 97 e segs.
86
Essa influência explica-se em parte pela recepção da obra do jurista e político brasileiro Rui
Barbosa, Os Actos Inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal, Companhia
Impressora, Capital Federal – Rio de Janeiro, 1893. V. Margarida Camargo/Wanda Viana Direito/
Cristina V. M. Alexandre, “Rui Barbosa e a Constituição republicana portuguesa de 1911”, Anuário
Português de Direito Constitucional 2 (2002), pp. 141-208.

410
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

leva alguns autores a sustentar que a Constituição de 1911 acolheu, por essa via,
a experiência americana da judicial review of laws87. A controvérsia doutrinária
sobre o âmbito do poder de apreciação dos juízes – se abrangia ou não a incons-
titucionalidade formal – bem como sobre se tal poder estaria ou não depen-
dente de as partes invocarem a inconstitucionalidade da lei permitem pôr em
dúvida que tenha sido essa a origem do artigo 63º da Constituição republicana.
Em todo o caso, e mesmo que o tenha sido, a discussão doutrinária posterior
mostra bem que Portugal não compreendeu, muito menos, assimilou os fun-
damentos teóricos que estão na base da tradição norte-americana da judi­cial
review88.
Dúvidas não havia que o artigo 63º atribuía ao poder judicial uma compe-
tência para recusar a aplicação de uma lei com efeitos circunscritos ao caso
concreto, valendo a decisão apenas inter partes. Ninguém problematizava sequer
– justamente por tal ser então inconcebível – que uma decisão judicial pudesse

87
Cardoso da Costa (n. 57), p. 914.
88
Além de revelar ignorância relativamente aos seus fundamentos teóricos, a importação do modelo
da judicial review of laws – a ter sido essa, efectivamente, no início do século XX, a inspiração dos
nossos constituintes – seria ainda reveladora de um manifesto desconhecimento da experiência
prática desse modelo. Com efeito, aos olhos da cultura jurídica e política de um europeu, radicada
na tradição revolucionária de transformação, através do poder político estadual, da sociedade na
busca de um futuro melhor, livre e mais justo, dificilmente seria de adoptar como modelo uma
prática institucional que, nessa fase da sua história e até à transformação determinada sob a ameaça
do “court packing plan” do Presidente Franklin D. Roosevelt (1937), tinha servido para invalidar
iniciativas legislativas progressistas e de intervenção social do Estado justamente com o argumento
de que as mesmas estavam em contradição com a constituição (pense-se na decisão Dred Scott [Dred
Scott v. Sandford, 60 U.S. (19 How.) 393 (1857)], em que o Supreme Court norte-americano, na prática,
considerou tolerável a escravatura ou na decisão Lochner [Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905)],
em que uma lei que visava regular as condições de trabalho, estabelecendo um limite máximo
de 10 horas diárias e de 60 horas semanais de trabalho nas padarias do Estado de Nova Iorque,
foi julgada inconstitucional por violação da liberdade contratual extraída da due process clause da
Fourteenth Amendment). Além de razões de fundo, de ordem científica e histórico-cultural (v., supra,
ponto 1.3.), possivelmente terá sido ainda uma apreciação muito negativa dessa prática, descrita na
obra célebre e muito influente de Lambert como «le gouvernement des juges» (Édouard Lambert,
Le gouvernement des juges et la lutte contre la législation sociale aux États-Unis. L’expérience américaine du
contrôle judiciaire de la constitutionnalité des lois, Giard, Paris, 1921), que, quando, mais tarde, a discus-
são sobre a instauração da justiça constitucional veio a surgir na Europa, levou consensualmente
à rejeição do modelo norte-americano de controlo jurisdicional difuso. Esta última hipótese tem
sido admitida por vários autores (Louis Favoreu, “Modèle américain et modèle européen de justice
constitutionnelle”, Annuaire international de justice constitutionnelle, Vol. IV (1988), pp. 51-66, p. 56;
Alec Stone Sweet, “Why Europe Rejected American Judicial Review: And Why It May Not Matter”,
101 Michigan Law Review (2003), pp. 2744-2780, pp. 2758-2760 e Peter E. Quint, “Der Einfluss
des Supreme Court der Vereinigten Staaten von Amerika auf die Verfassungsgerichtsbarkeit in
Europa”, in: von Bogdandy/Grabenwarter/Huber (n. 7), § 109, pp. 853-908, pp. 863-870).

411
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

determinar a invalidade de uma lei com força obrigatória geral89. No entanto,


seria assim mesmo que o sistema de fiscalização da constitucionalidade das leis,
inaugurado «precocemente» em Portugal em 1911, transitaria para a Constitui-
ção do Estado Novo.
Na verdade, e não obstante, em aspectos essenciais, a Constituição de 1933
estar em clara oposição com a Constituição de 1911 – o que se compreende
atendendo a que com aquela se pretendia ordenar a vida em sociedade atra-
vés de um regime autoritário e corporativo – é revelador que, no que respeita
à «justiça constitucional», o artigo 122º [depois, artigo 123º90] da Constituição
de 1933 tenha consagrado, no essencial, a solução do artigo 63º da Constitui-
ção republicana91. Na Constituição de 1933, as duas principais questões que a
doutrina vinha até então discutindo ficariam esclarecidas. Não só o poder de
apreciação judicial não estaria dependente da invocação pelas partes da incons-
titucionalidade da lei como de tal poder excluir-se-ia o controlo da constitucio-
nalidade formal da lei.
O facto de num regime como o do Estado Novo se não recear que o poder
judicial pudesse controlar oficiosamente a constitucionalidade material da lei,
vendo nesse poder uma menor interferência nas competências dos outros pode­
res do Estado – um minus – por comparação com a que resultaria do reconhe-
cimento da competência para o controlo da constitucionalidade formal da lei,
mostra como aquele poder dos juízes não era, propriamente, levado a sério92.
Apesar disso, seria ainda a partir daqui que se viria a construir, desde o iní-
cio do período de transição democrática da segunda metade do século XX, o
sistema actual da justiça constitucional portuguesa, visto sempre em «linha de
continuidade» com a tradição do século XIX.

89
Nunca será demais recordar que, para o «modelo difuso» de controlo de constitucionalidade das
leis, oriundo dos Estados Unidos, o problema da eficácia inter partes dos juízos de inconstitucio-
nalidade em casos concretos nunca viria a assumir as mesmas proporções que a referida eficácia
teria em qualquer sistema jurídico da Europa continental. A tanto sempre obstariam a força do
princípio do precedente (stare decisis) inerente à tradição da common law.
90
A Lei nº 1963, de 18 de Dezembro de 1937, no seu artigo 3º, substituiu os § 1º e 2º do artigo
já renumerado de 123º por um parágrafo único, nos termos do qual «[a] inconstitucionalidade
orgânica ou formal da regra de direito constante de diplomas promulgados pelo Presidente da
República só poderá ser apreciada pela Assembleia Nacional e por sua iniciativa ou do Governo,
determinando a mesma Assembleia os efeitos da inconstitucionalidade, sem ofensa porém das
situações criadas pelos casos julgados».
91
Para uma análise detalhada Miranda (n. 57), pp. 107, 111 e segs.
92
V., no entanto, a posição defendida por Afonso Rodrigues Queiró/António Barbosa de Melo, “A
liberdade de empresa e a Constituição”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XIV – N.os 3-4
(1967), pp. 216-258, pp. 222 e segs..

412
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

2.2.4. A «tese da continuidade» e o seu preço


Por essa aparente linha de continuidade histórica entre o sistema de fiscali-
zação da constitucionalidade actualmente vigente e a prática “herdada” do sé-
culo XIX viria a pagar-se um preço tremendo.
Como, em Portugal, a evolução do reconhecimento da competência dos tri-
bunais para recusar a aplicação de uma lei foi progressiva, pacífica e consen-
sual – e não, como na Europa continental, tendo na sua origem uma ruptura
epistémica e cultural – nunca chegou verdadeiramente a haver quanto a ela
[quanto a essa competência] um debate científico fundador. Nunca chegaram
a ser problematizadas as consequências que teria, no plano das fontes do di-
reito positivo, a instituição de uma garantia jurisdicional da constituição, como
nunca chegou sequer a equacionar-se o problema – central tanto na cultura
jurídica americana quanto na cultura jurídica europeia – do necessário afei­
çoamento dos instrumentos de «justiça constitucional» às exigências específicas da
interpretação da constituição93. A questão de saber se, e em que medida, estariam
os juízes portugueses, herdeiros periféricos de uma cultura de civil law, habili-
tados a interpretar normas constitucionais nunca chegou a ser posta. Em geral,
nenhuma inquietação transparecia quanto à possível incompatibilidade entre a
tradição do direito europeu continental, marcada por um modelo estadualísico
e legalístico de garantia das liberdades94, e aquilo que mais tarde se viria a cha-
mar o “controlo jurisdicional difuso” da constitucionalidade das leis95. Se bem

93
Recorde-se que era justamente esse o problema que se debatia, tanto no momento fundador da
judicial review of laws norte-americana (n. 47) quanto no momento fundador do modelo europeu
de justiça constitucional (Afonso Pereira [n. 45], pp. 60-61).
94
Fioravanti (n. 16), pp. 43-51.
95
Sobre essa incompatibilidade Fioravanti (n. 16), pp. 50, 96-98 e 128 e segs. Segundo o autor,
tal incompatibilidade deve-se à circunstância de os juízes serem vistos ou como funcionários do
Estado ou, dada a sua proveniência aristocrática, como inimigos dos valores fundamentais da
unidade política da nação e da certeza do direito tal como representados positivamente pelo legis-
lador, devendo, nessa medida, limitar-se a aplicar a lei do Estado e jamais podendo desempenhar
o papel de árbitros independentes nas lutas pelo monopólio do poder. Até que ponto essas duas
percepções, relacionadas tanto com a própria construção da estadualidade como com as origens
sociais dos juízes, são transponíveis para a realidade do Portugal oitocentista é uma questão de cuja
resposta poderá resultar uma melhor compreensão da não-resistência à implantação do modelo do
controlo jurisdicional difuso em Portugal. Seja como for, o que parece seguro é que, na Europa do
Pós-Guerra, quando se desenha o modelo europeu de justiça constitucional, a confiança nos juízes
era limitada, justamente em virtude da cultura estadualista e legalista em que se haviam formado,
caracterizada por uma estrita obediência à lei. Como, num escrito clássico, observa um prestigia-
do estudioso da justiça constitucional «[…] the bulk of Europe’s judiciary seems psychologically
incapable of the value-oriented, quasi-political functions involved in judicial review. Continental
judges are usually “career judges” who enter the judiciary at a very early age and are promoted to
the higher courts largely on the basis of seniority. Their professional training develops skills in

413
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

que os detractores (minoritários) da assunção, pelos juízes, da competência de


controlo, se fundassem nos riscos que de tal controlo adviriam para a certeza
e a segurança do direito, não era sequer equacionada a necessidade de se vir
a instituir uma jurisdição de competência especializada, destinada a realizar,
em regime de monopólio, uma qualquer forma de controlo “concentrado”96.
Do mesmo modo, nenhuma relação se estabelecia entre a instituição de uma
juris­dição constitucional e a garantia das “liberdades públicas”, ou da plurali­
dade de centros de produção normativa, relação essa que, no entanto, é da essên­
cia da justiça constitucional97.
Não obstante, é dominante na doutrina nacional a “tese da continuidade”,
segundo a qual Portugal teria sido pioneiro na introdução da justiça constitucio-
nal na Europa98. E será sobre os alicerces dessa tese, conjugada com particulari-
dades próprias de novas circunstâncias históricas irrepetíveis, que se construirá
a partir de 1976 o actual sistema de justiça constitucional em Portugal.

2.3. O actual sistema

2.3.1. A versão originária da Constituição


O actual sistema de justiça constitucional em Portugal é definido, nos seus
elementos essenciais, logo na primeira versão da Constituição da República,
vigente durante o período anterior à primeira revisão constitucional (1976-
-1982). São sobejamente conhecidas as peculiares circunstâncias históricas em
que tal sucede.

technical application of statutes rather than in making policy judgments. The exercise of judicial
review, however, is rather different from the usual judicial function of applying the law. Modern
constitutions do not limit themselves to a fixed definition of what the law is, but contain broad
programs for future action. Therefore the task of fulfilling a constitution often demands a higher
sense of discretion than the task of interpreting ordinary statutes; that is certainly one reason
why Kelsen, Calamandrei and others have considered it to be a legislative rather than a purely
judicial activity» (Mauro Cappelletti, “Judical Review in Comparative Perspective”, 58 California
Law Review (1970), pp. 1017-1053, p. 1047).
96
Se bem que fosse pontualmente proposta a concentração de competências nesta matéria, e por
via de recurso, no Supremo Tribunal de Justiça. Veja-se, quanto a esta ideia, e já no início da década
de 70 do século XX, Miguel Galvão Teles, “A concentração da competência para o conhecimento
jurisdicional da inconstitucionalidade das leis”, 103 O Direito, 1971, pp. 173-210.
97
Mauro Cappelletti, La giurisdizione costituzionale delle libertà: primo studio sul ricorso costituzionale
(con particolare riguardo agli ordinamenti tedesco, svizzero e austriaco), Giuffrè, Milano, 1955.
98
Miranda (n. 57), p. 107; Cardoso da Costa (n. 57), pp. 914-915; Nogueira de Brito/Araújo (n. 57),
p. 280 e Maria da Glória Garcia, Da justiça administrativa em Portugal. Sua origem e evolução, Univer-
sidade Católica Editora, Lisboa, 1994, pp. 354 e segs..

414
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

A Constituição, aprovada e decretada, em 2 de Abril de 1976 pela Assem-


bleia Constituinte reflecte na sua versão originária as tensões vividas durante
o período que se seguiu à Revolução de 1974. Desde logo, os deputados elei-
tos à Assembleia Constituinte não eram livres na elaboração da Constituição,
uma vez que os princípios a que a mesma deveria obedecer tinham sido já nego­
ciados, mesmo antes do início dos trabalhos, entre o Movimento das Forças
Armadas e os partidos políticos99. Além disso, a interacção entre a Assembleia
Constituinte, enquanto órgão democraticamente legitimado, e as forças revolu-
cionárias, próximas do Partido Comunista Português e da extrema-esquerda100,
levava a uma instabilidade política que chegou ao ponto de comprometer a
transição para a democracia enquanto objectivo essencial da Revolução101. Se já

99
Nos termos do disposto em B. 2 da Primeira Plataforma de Acordo Constitucional, assinada em 13 de
Abril de 1975 pelo Presidente da República, em nome do Conselho da Revolução, e representantes
dos partidos políticos , «[o]s termos da presente plataforma deverão integrar a futura Constituição
Política a elaborar e aprovar pela Assembleia Constituinte». Aliás, mesmo antes da celebração do
Pacto ou Plataforma de Acordo Constitucional, «[…] quer ao nível dos diplomas de natureza para-
-constitucional, quer no plano das próprias instituições e realidades a que esses diplomas se repor-
tavam, diversas forças em presença tentaram consumar factos e criar situações irreversíveis, que os
constituintes tivessem de consagrar» (Manuel de Lucena, O Estado da Revolução. A Constituição de
1976, SOJORNAL – Sociedade Jornalística e Editorial, S.A.R.L., Lisboa, 1978, p. 241). O texto da
Plataforma encontra-se publicado em Jorge Miranda, Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição,
vol. I, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1978, pp. 195-203, estando também disponível
em http://app.parlamento.pt/LivrosOnLine/Vozes_Constituinte/med01100000j.html#conteudo
[última consulta: 2015.11.13].
100
Após os acontecimentos do 28 de Setembro de 1974, o MFA havia-se desdobrado em facções,
com ligações preferenciais a partidos políticos: os «spinolistas», fora do poder e próximos do PPD;
os chamados «moderados», que viriam, no verão de 1975, a exprimir-se através do «grupo dos
nove», com proximidade relativamente ao PS; a «esquerda militar», ligada ao PCP; e os chamados
«militares do Copcon», vinculados a certa extrema esquerda.
101
É certo que, como recorda um dos deputados eleitos à Assembleia Constituinte, esta «foi [...]
um centro primordial de resistência às tentativas de implantação de regimes vanguardistas ou
basistas e de afirmação dos princípios do constitucionalismo democrático de tipo ocidental»,
mas já nos parece dificilmente sustentável o entendimento segundo o qual, a ter havido cons-
trangimentos sobre a Assembleia Constituinte, os mesmos «nunca se projectaram em nada de
fundamental que ela tivesse de decidir e verter em disposição constitucional» (Jorge Miranda,
Da Revolução à Constituição – Memórias da Assembleia Constituinte, Princípia, Cascais, 2015, pp. 119
e 219, respectivamente). Note-se, aliás, que o mesmo autor, em obra anterior, correspondente à
sua dissertação de doutoramento, referindo-se ao Pacto MFA-Partidos, ainda que relativizando o
elemento doutrinário, não deixou de observar, a respeito do elemento organizatório, relativo aos
órgãos de soberania durante o período de transição, «[…] as [graves] limitações estabelecidas quer
no respeitante à Assembleia Constituinte quer no respeitante aos futuros órgãos de soberania. As
primeiras como que poderiam, na prática, colocar sob tutela a Assembleia, as segundas corres-
pondiam a uma pré-Constituição» (Jorge Miranda, A Constituição de 1976 – Formação, Estrutura,
Princípios fundamentais, Livraria Petrony, Lisboa, 1978, p. 21).

415
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

era difícil, dada a sua diversidade ideológica, que os partidos políticos represen-
tados na Assembleia Constituinte chegassem a acordo quanto à ordem funda-
mental da República, o facto de terem que aceitar compromissos com as forças
revolucionárias só tornava tudo ainda mais árduo. É certo que estas forças não
estavam enquanto tal representadas na Assembleia Constituinte; no entanto,
à sua só­lida organização acrescia o sustento justificativo que advinha de uma
conside­rável «legitimidade revolucionária»102.
Tal significa que, longe de resultar de um debate científico aprofundado
sobre a razão de ser da justiça constitucional e de qual o seu papel em demo-
cracia, o desenho do sistema português de fiscalização da constitucionalidade
ficou marcado, nos seus elementos essenciais, por contingências históricas do
período de transição para a democracia. Todos estavam de acordo quanto à ne-
cessidade de rever o sistema de fiscalização da constitucionalidade, que tanto
na Primeira República como sob a vigência da Constituição de 1933, com cujo
regime se tratava de romper, teria mostrado todas as suas debilidades. Simples-
mente, e é esse o ponto que merece ser salientado, a indefinição e a instabili­
dade política que caracterizam esse período impediu que então tivesse tido
lugar um debate público alargado sobre qual o modelo de fiscalização da consti-
tucionalidade a adoptar na Terceira República portuguesa.
Assim, o desenho do sistema foi acordado em função dos interesses estraté-
gicos das partes envolvidas na negociação – de um lado os militares, organiza-
dos através do Movimento das Forças Armadas, e, do outro, os partidos políticos
representados na Assembleia Constituinte – na Segunda Plataforma de Acordo
Constitucional103. O desenho do sistema português de fiscalização da consti-
tucionalidade reflecte, portanto, a correlação de forças de que gozava então o

102
Sobre esse conceito Miranda (n. 60), 101 e segs.; Miguel Galvão Teles, “O problema da conti-
nuidade da ordem jurídica e a revolução portuguesa”, Boletim do Ministério da Justiça, nº 345, 1985,
pp. 11-43 e id., “A revolução portuguesa e a teoria das fontes de direito”, in Baptista Coelho (n. 57),
pp. 561-606. À contraposição entre «legitimidade revolucionária» e «legitimidade democrática»
referir-se-iam, por várias vezes, em intervenções em sessões plenárias da Assembleia Constituinte,
os deputados eleitos.
103
Cfr. pontos 3.7 a 3.12 da Segunda Plataforma de Acordo Constitucional, assinada em 26 de Fevereiro
de 1976 pelo Presidente da República, em nome do Conselho da Revolução, e representantes dos
partidos políticos representados na Assembleia Constituinte subscritores da Primeira Plataforma.
O texto final da Plataforma pode ser consultado em Jorge Miranda, Fontes e Trabalhos Preparatórios
da Constituição, vol. I, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1978, pp. 204-212, estando tam-
bém disponível em http://app.parlamento.pt/LivrosOnLine/Vozes_Constituinte/med01120000j.
html#conteudo [última consulta: 2015.11.13]. Para uma contextuação v. Miguel Galvão Teles, “A
segunda plataforma de acordo constitucional entre o movimento das forças armadas e os partidos
políticos”, in Jorge Miranda (org.), Perspectivas Constitucionais: Nos 20 anos da Constituição de 1976,
Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 681-702.

416
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

MFA enquanto “feitor” da Revolução e a legitimidade democrática de que go-


zavam os partidos eleitos para a Constituinte. É nesse contexto que se explica
por que razão não foi possível atribuir sem mais ao poder judicial o poder para
controlar a constitucionalidade das leis. É que as forças revolucionárias recea-
vam que com isso pudessem ficar comprometidos os objectivos e as conquistas
da Revolução (muitos juízes dos tribunais superiores eram vistos como sendo
ideologicamente próximos do regime do Estado Novo e receava-se que os mes-
mos pudessem invalidar, com fundamento em inconstitucionalidade, a legisla-
ção emitida na sequência da Revolução). Por outro lado, os partidos políticos
não estavam dispostos a aceitar uma solução que passasse por pôr nas mãos
dos militares o controlo da constitucionalidade das leis já que, ao permitir que
estes últimos vetassem a legislação aprovada pelo parlamento, tal comprome-
teria seriamente a afirmação do poder democrático104. É esse contexto histórico
que explica que em Portugal não tenha sido possível fazer uma clara opção por
um dos dois modelos de fiscalização da constitucionalidade – o modelo norte-
-americano de controlo difuso ou de judicial review e o modelo austríaco ou con-
centrado (por vezes, também designado de “kelseniano”) que, entretanto, já se
assumia como predominante na Europa continental. O que se fez foi aproveitar
elementos de cada um desses dois modelos que foram depois combinados, de
modo a ir ao encontro dos interesses quer das forças revolucionárias quer dos
partidos políticos. Assim, e inspirado no modelo de controlo difuso, e com o
argumento segundo o qual este último estaria em conformidade com uma certa
tradição portuguesa, o sistema português viria a atribuir a todos os tribunais o
poder de controlo da constitucionalidade. Por sua vez, e inspirado no modelo
de controlo concentrado, o sistema português viria a prever a instituição de um
órgão especializado com competência na área da fiscalização da constitucio­
nalidade.
A versão originária da Constituição de 1976 viria a acolher a solução acor-
dada na Segunda Plataforma de Acordo Constitucional. Por sua vez, esta teve

104
No projecto de Constituição apresentado pelo PPD, publicado em Diário da Assembleia Cons­
tituinte, suplemento ao nº 14, de 9 de Julho de 1975, pp. 296-(1) e segs., e, com correcções de
inexactidões, de novo, Diário, suplemento ao nº 16, de 24 de Julho de 1975, pp. 358-(69) e segs.,
pretendia-se extrair do sistema de fiscalização pelos tribunais judiciais o máximo de compressão
dos poderes do Conselho da Revolução (art. I das «Disposições finais e transitórias»). No projecto
do CDS, publicado em Diário da Assembleia Constituinte, suplemento ao nº 13, de 7 de Julho de 1975,
pp. 280-(1) e segs., e, com correcções de inexactidões, de novo, Diário, suplemento ao nº 16, de 24
de Julho de 1975, pp. 358-(1) e segs., chegava-se a prever a criação de um Tribunal Constitucional
(artigos 133º e segs.). Para uma análise mais desenvolvida v. António de Araújo, “A construção da
justiça constitucional portuguesa: o nascimento do Tribunal Constitucional”, Análise Social, Vol.
XXX (5º), 1995 (nº 134), pp. 881-946, pp. 897-911.

417
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

na base um documento que ficou conhecido como Contraproposta do Conselho da


Revolução105, elaborado na sequência de propostas de alteração da Primeira Pla-
taforma de Acordo Constitucional apresentadas pelos partidos políticos subs-
critores com representação na Assembleia Constituinte106. Só o estudo desses
documentos permite compreender plenamente como foi que nasceu o sistema
português de fiscalização da constitucionalidade.
Na Contraproposta do Conselho da Revolução previam-se três espécies de fisca-
lização da constitucionalidade, que, uma vez mais, devem ser compreendidas
atendendo aos interesses estratégicos dos militares por contraposição com os
dos partidos políticos (entenda-se: dos partidos políticos democráticos). Ao
propor um processo de fiscalização preventiva o Conselho queria poder contro-
lar a produção legislativa, intervindo no decurso do processo legislativo mesmo
antes de uma lei entrar em vigor. Adicionalmente, o Conselho propunha um
processo de fiscalização concreta inspirado no modelo europeu de controlo con-
centrado: caso, num litígio, um tribunal se visse confrontado, oficiosamente ou
a requerimento das partes, com uma questão de constitucionalidade de uma
lei, o mesmo deveria suspender a instância e reenviar a questão a uma comis-
são constitucional. Esta última funcionaria junto do Conselho da Revolução,
e deci­diria (em regime de monopólio) a questão de constitucionalidade. Ao
juiz da causa, ao qual nenhum poder decisório seria atribuído, restaria depois
decidir em conformidade. Note-se que este mecanismo – suspensão da instân-
cia se­guida de reenvio – aproximava-se do modelo europeu de controlo con-
centrado e afastava-se definitivamente da tradição portuguesa de reconhecer
ao poder judicial a competência para controlar a constitucionalidade da lei107.

105
O texto do documento, intitulado «Contraproposta inicial do Conselho da Revolução para a
negociação da 2ª Plataforma de Acordo Constitucional», pode ser consultado em Jorge Miranda,
Fontes e Trabalhos Preparatórios da Constituição, vol. II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa,
1978, pp. 1210-1217, estando também disponível em http://app.parlamento.pt/LivrosOnLine/
Vozes_Constituinte/med01130352j.html#conteudo [última consulta: 2015.11.13].
106
As propostas dos partidos políticos de revisão da Plataforma de Acordo Constitucional encon-
tram-se disponíveis em Galvão Teles (n. 103), p. 703-746 e ainda em http://app.parlamento.pt/
LivrosOnLine/Vozes_Constituinte/media/docs/20010604a1.pdf [última consulta: 2015.11.13].
O PPD, além de um comentário geral, apresentou, mais tarde, um documento, subscrito por Antó-
nio Barbosa de Melo, que versava principalmente a matéria da fiscalização da inconstitucionalidade.
Esse documento, intitulado «Documento do PPD sobre fiscalização da inconstitucionalidade e
direito de veto» pode ser consultado em Galvão Teles (n. 103), pp. 747-754 e ainda em http://app.
parlamento.pt/LivrosOnLine/Vozes_Constituinte/media/docs/20010604a2.pdf [última consulta:
2015.11.13].
107
A primeira sugestão de, afastando-se dessa tradição, instituir um mecanismo de incidente, por
via de excepção, suscitado em qualquer tribunal e que subisse, através do mecanismo de reenvio,
a um tribunal constitucional – e, portanto, preconizando a existência, entre nós, de um tribunal
constitucional – deve-se a Jorge Miranda, na qualidade de Deputado à Assembleia Constituinte, em

418
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

É interessante observar que o documento não previa um processo de fiscaliza-


ção abstracta sucessiva da constitucionalidade. Previa-se, isso sim, um processo
de fiscalização da constitucionalidade por omissão, nos termos do qual o Conselho
da Revolução teria, não apenas o poder de impor ao legislador que decretasse
determinadas normas bem como o conteúdo das mesmas, como, além disso, e
para a eventualidade de o legislador não cumprir as determinações do Conse-
lho, o poder de se substituir ao legislador e produzir ele próprio a legislação.
O texto final da Segunda Plataforma de Acordo Constitucional não seguiu
integralmente a Contraproposta do Conselho da Revolução108. No que respeita ao
processo de fiscalização da constitucionalidade por omissão, foi abandonado o
poder de substituição do Conselho da Revolução, sendo-lhe reconhecido ape-
nas um poder para fazer recomendações aos órgãos legislativos109. No que res-
peita ao processo de fiscalização preventiva, além de ter sido restringido o seu
objecto110, o mesmo viria a sofrer uma alteração significativa: se o Conselho da
Revolução se pronunciasse pela inconstitucionalidade de qualquer diploma,
antes de o mesmo ser promulgado, e após o veto por parte do Presidentes da
República, esse veto poderia ser ultrapassado por uma nova deliberação parla-
mentar, exigindo-se, porém, uma maioria qualificada de dois terços do número
de deputados presentes para que o mesmo pudesse ser promulgado111. Foi as-
sim que nasceu, entre nós, o processo de fiscalização preventiva da constitu-

intervenção sobre o parecer da 6ª Comissão (sobre tribunais) e ainda em momento anterior ao da


negociação da revisão da Plataforma de Acordo Constitucional, embora num contexto em que tal
revisão já se anunciava (Diário da Assembleia Constituinte, suplemento ao nº 96, de 17 de Dezembro
de 1975, pp. 3099-3100 e 3105-3106). Porém, à ideia de limitar o acesso dos juízes aos princípios e
aos preceitos constitucionais e de subtrair-lhes a competência para recusar a aplicação de leis que
os violassem opuseram-se, então, os Deputados (e, por sinal, presidentes dos respectivos grupos
parlamentares) José Luís Nunes (PS) (ibid., p. 3104 e 3106-3107) e António Barbosa de Melo (PPD)
(ibid., p. 3106). V., infra, nota 115.
108
Na sequência das negociações, foi ainda elaborado e entregue aos partidos um texto intermédio,
já bastante próximo da versão final. O documento, intitulado «Texto intermédio do Conselho da
Revolução», pode ser consultado em Galvão Teles (n. 103), pp. 755-765 e em http://app.parlamento.
pt/LivrosOnLine/Vozes_Constituinte/media/docs/20010604a3.pdf [última consulta: 2015.11.13].
109
Cfr. pontos 3.7 alínea b) e 3.9 da Segunda Plataforma de Acordo Constitucional e Jorge Miranda,
“Inconstitucionalidade por omissão”, in id. (coord.), Estudos sobre a Constituição, 1º vol., Livraria
Petrony, Lisboa, 1977, pp. 333-352.
110
Acolhendo-se, assim, quanto a esse ponto, as objecções do PPD formuladas em «Documento do
PPD sobre fiscalização da inconstitucionalidade e direito de veto» (cfr., supra, n. 106, ponto I – 1).
111
Cfr. pontos 3.7 alínea a) e 3.8.4 da Segunda Plataforma de Acordo Constitucional. Essa solução estava
preconizada no projecto de Constituição apresentado pelo CDS (artigo 89º, nº 3), publicado em
Diário da Assembleia Constituinte, suplemento ao nº 13, de 7 de Julho de 1975, pp. 280-(1) e segs.,
e, com correcções de inexactidões, de novo, Diário, suplemento ao nº 16, de 24 de Julho de 1975,
pp. 358-(1) e segs..

419
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

cionalidade e que, nos seus aspectos essenciais, ainda hoje está em vigor112. Mas
essa concessão por parte dos militares aos partidos implicou, por sua vez, a acei-
tação por parte destes de um processo de fiscalização abstracta sucessiva que per-
mitiria ao Conselho da Revolução controlar a constitucionalidade da lei após a
sua entrada em vigor113. Foi assim que nasceu, entre nós, o processo de fiscali-
zação abstracta sucessiva da constitucionalidade114. Por último, no que respeita
ao processo de fiscalização concreta, a solução de tudo concentrar na comissão
constitucional – o modelo europeu de suspensão da instância seguida de reen-
vio – foi abandonada a favor de uma solução de compromisso que dispersasse
o poder de controlo da constitucionalidade por todos os tribunais, sendo que à
comissão seria reservada a decisão final, com efeitos circunscritos ao caso con-
creto, sempre que um tribunal fizesse uso do seu poder de recusar a aplicação
de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade115.
Como já se disse, a versão originária da Constituição de 1976 viria a acolher
a solução acordada na Segunda Plataforma de Acordo Constitucional, tendo
havido, aliás, um amplo consenso entre os deputados quanto à matéria da fisca-
lização da constitucionalidade116. O Capítulo I do Título I da Parte IV do texto
originário previa, justamente nos termos acordado nesse documento, a fiscali­
zação preventiva da constitucionalidade (artigos 277º-278º.), a inconstitucionalidade
por omissão (artigo 279º), a inconstitucionalidade por acção (artigos 280º e 281º) e,
por último, a fiscalização judicial da constitucionalidade (artigo 282º). O controlo

112
Cfr. artigo 279º, nº 2 da CRP.
113
Cfr. ponto 3.7 alínea c) da Segunda Plataforma de Acordo Constitucional.
114
No «Texto intermédio do Conselho da Revolução» (cfr., supra, n. 108), a previsão de um processo
de fiscalização abstracta sucessiva coexistia ainda com a previsão do veto absoluto em sede de
fiscalização preventiva (cfr. pontos 3.7. alínea c) e 3.8.4. desse documento).
115
Cfr. pontos 3.10.1 e 3.10.2 da Segunda Plataforma de Acordo Constitucional. O principal opositor à
solução inicialmente consagrada na Contraproposta fora o PPD, que, no «Documento do PPD sobre
fiscalização da inconstitucionalidade e direito de veto» (cfr., supra, n. 106, ponto III), justificava
a sua posição em três ordens de razões: «[…] o sistema proposto, ao concentrar nas mãos do C.R.
todas e quaisquer decisões de inconstitucionalidade, forçará esse órgão a imiscuir-se em assuntos
de relevo muito secundário na vida político-jurídica da comunidade […]. Por outro lado, quando se
reserva ao C.R. o poder de julgar os casos concretos em que seja suscitada a inconstitucionalidade,
está-se a roubar aos tribunais atribuições que numa democracia lhes devem ser escrupulosamente
reservadas. Finalmente, o sistema proposto é inaceitável porque estabelece, em favor do C.R. o
monopólio da interpretação da Constituição. Para nós, a garantia da Constituição só pode ser eficaz
se todos os tribunais tiverem, no cumprimento da sua missão específica, o dever de a conhecer e
aplicar diariamente». O PPD não seguiria, assim, quanto à matéria da fiscalização da constitucio-
nalidade, a proposta do Deputado Jorge Miranda (v., supra, nota 107).
116
Diário da Assembleia Constituinte, nº 116, de 10 de Março de 1976, pp. 3827-3840. À excepção do
preceito relativo à Comissão Constitucional, em que houve uma abstenção e um voto contra (ibid.,
p. 3838), todos os preceitos, submetidos a votação, foram aprovados por unanimidade.

420
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

de constitucionalidade era assim repartido por três diferentes instituições.


O Conselho da Revolução detinha o monopólio no que respeita às três primei-
ras modalidades de controlo da constitucionalidade, cabendo à comissão cons-
titucional dar obrigatoriamente parecer (artigo 284º, alíneas a) e b)). Já no que
respeita à fiscalização judicial da constitucionalidade, esta exigia a cooperação
entre os tribunais e a comissão constitucional que aqui intervinha como instân-
cia de recurso com poderes de decisão (artigo 284º, alínea c))117.
O contexto histórico em que é desenhado o sistema português de fiscaliza-
ção da constitucionalidade tornava impossível que, a par do controlo de cons-
titucionalidade de normas, o sistema viesse a integrar procedimentos próprios
destinados à composição de conflitos de competências entre órgãos de sobe­
rania ou entre órgãos do Estado e órgãos autonómicos bem como a inclusão de
meios processuais de tutela dos direitos fundamentais. Se a instabilidade polí-
tica e a desconfiança recíproca entre todos os protagonistas impedia que tais
conflitos de competências pudessem ser sequer concebidos como questões de
natureza jurídica cuja resolução pudesse ser realizada através do direito, por sua
vez a natureza compromissória da Constituição de 1976 entre duas visões opos-
tas e inconciliáveis do que deveria ser a Terceira República portuguesa no que
respeita à relação entre Estado e sociedade tornava secundária, senão mesmo
instrumental, a protecção da liberdade individual118.
O desenho do sistema de controlo da constitucionalidade é feito no con­
texto de um período de acentuada instabilidade política, em que a transição
para a democracia estava longe de estar consolidada e em que, justamente por
isso, as instituições do Estado de direito se não tinham ainda normali­zado.
Nesse período, pura e simplesmente não havia condições nem tempo para uma
reflexão aprofundada sobre o sistema de justiça constitucional em Portugal.
A verdade é que, globalmente considerado, esse sistema, na medida em que a
repartição institucional de competências pressupunha e exigia a colaboração
entre o poder político (militar e democrático) e o poder judicial se revelaria

117
José Durão Barroso, “O recurso para a Comissão Constitucional – Conceito e estrutura”, in Jorge
Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, 3º vol., Livraria Petrony, Lisboa, 1979, pp. 707-722.
118
Além desse aspecto, que é o fundamental, importa ainda observar que a concepção de uma
justiça constitucional cuja função fosse ainda a de tutela de direitos fundamentais, através da
introdução de um meio processual específico, pressupunha o reconhecimento de um regime de
tutela privilegiado em relação aos direitos de liberdade. Embora esse regime privilegiado de tutela
se acabasse por impor, estando estabelecido, entre outros lugares, no artigo 18º da Constituição,
a garantia de direitos de liberdade – e entre estes, de apenas de alguns deles – através de um pro-
cedimento específico à imagem da queixa constitucional alemã (artigo 93º, I, nº 4 da Grundgesetz)
ou do recurso de amparo espanhol (artigos 53º, nº 2 e 161º, nº 1 alínea b) da Constituição espanhola
de 1978) implicava uma opção de ordem valorativa que acentuaria inevitavelmente a componente
liberal-democrática da Constituição.

421
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

extremamente eficiente para o efeito de uma transição para o normal funcio-


namento do Estado de direito democrático. Isso mesmo é demonstrado, desde
logo, pelo facto de o Conselho da Revolução ter seguido os pareceres emitidos
pela comissão constitucional119. Além disso, e fundamentalmente, a evolução
dos acontecimentos demonstra como aquele desenho institucional não só não
comprometeu a transição para a democracia, enquanto principal objectivo da
Revolução, como, pelo contrário, contribuiu positivamente para a sua consoli-
dação em Portugal.
Uma vez atingido esse objectivo, viria finalmente a instituir-se o Tribunal
Constitucional, após a conclusão do processo da primeira revisão constitu­
cional.

2.3.2. A criação do Tribunal Constitucional


Em Outubro de 1980, a Assembleia da República assumiu poderes de re-
visão constitucional. Iniciou-se então um longo processo, que só se viria a
concluir em Setembro de 1982, com a aprovação da primeira alteração à Consti-
tuição da República operada pela Lei Constitucional nº 1/82.
Foi em ambiente de normalização das instituições que decorreu o processo
desta primeira revisão constitucional. Entretanto, em 1977, Portugal formaliza-
ra o seu pedido de adesão à então chamada Comunidade Económica Europeia.
A transição para a democracia tinha-se consolidado, com a consequente obso-
lescência de todos os discursos constitucionais que ainda clamavam por legitimi­
dades revolucionárias. A extinção do Conselho da Revolução, e a sua substituição
por órgãos fundados, ainda que indirectamente, na legitimidade democrática,
era consensual em todo o espectro de forças com representação parlamentar.
Só o Partido Comunista Português a tal se opunha120.
O Conselho da Revolução detinha três tipos diferentes de competências.
Era órgão legislativo em matérias militares, órgão consultivo do Presidente da
República e, nos termos já explicados, órgão de controlo concentrado da cons-
titucionalidade das normas. De acordo com a maioria das propostas de revisão
apresentadas pelas diferentes forças políticas à Assembleia, as competências

119
Tendo, ao longo da sua actividade, a comissão constitucional emitido 213 pareceres, apenas em 13
casos o Conselho da Revolução decidiu em sentido diferente. Para uma análise deta­lhada v. Miguel
Lobo Antunes, “A fiscalização da constitucionalidade das leis no primeiro período constitucio-
nal: a Comissão Constitucional”, Análise Social, Vol. XX (2º-3º), 1984 (nº 81-82), pp. 309-336, pp.
322 e segs. e Armindo Ribeiro Mendes, “O Conselho da Revolução e a Comissão Constitucional
na fiscalização da constitucionalidade das leis (1976-1983)”, in: Baptista Coelho (n. 57), págs.
925-940, p. 934.
120
Quanto aos projectos de revisão constitucional, apresentados pelos partidos políticos com
representação parlamentar, vejam-se as referências em Miranda (n. 60), p. 371.

422
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

legislativas deveriam ser atribuídas ao parlamento; as competências de consulta


do Presidente da República a um Conselho de Estado; e as competências de
controlo concentrado da constitucionalidade das normas a um Tribunal Cons-
titucional.
Foi assim largamente consensual a decisão, tomada em 1982, de instituir em
Portugal um Tribunal Constitucional. Mais uma vez, a ela se opôs apenas o Par-
tido Comunista Português121.
Embora perfilhada por quase todas as forças políticas presentes no parla-
mento em 1982, a instituição do Tribunal Constitucional português foi sobre-
tudo determinada pelos dois maiores blocos partidários existentes à altura: a
“Aliança Democrática” (AD) e a “Frente Republicana e Socialista” (FRS), que
conduziram o essencial do processo de revisão constitucional neste domínio.
Entre estes dois blocos não havia, à partida, grande dissenso quanto ao dese-
nho da instituição. Como se estabelecera que o Tribunal deveria ser criado para
substituir o Conselho da Revolução, havia acordo quanto à manutenção, no
essen­cial, do sistema de controlo da constitucionalidade de normas que já exis-
tia, e que fora praticado, com a coadjuvação da Comissão Constitucional, desde
1976 até então.
Aos tribunais, e a todos os tribunais, seria assim atribuída a competência para,
“nos feitos submetidos a julgamento”, não aplicar normas que fossem contrárias à
Constituição. Durante o período anterior, e como já se viu, destas decisões dos
tribunais cabia recurso para a Comissão Constitucional. Doravante, o recurso
seria interposto para o Tribunal Constitucional, em processos de “fiscalização
concreta” da constitucionalidade das normas. A longa tradição de reconhecer
ao poder judicial a competência para controlar a constitucionalidade das leis,
conhecida e praticada, nos termos atrás descritos, desde o século XIX portu-
guês, mantinha-se assim intacta, apesar da decisão de instituir o Tribunal Cons-
titucional122. Ao mesmo tempo, mantinham-se igualmente todos os outros
meios de controlo, já instituídos e aplicados desde 1976: o controlo preventivo
da constitucionalidade; o controlo abstracto sucessivo; o controlo da constitu-
cionalidade por omissão. Tal como acontecera com o Conselho da Revolução,
teria aqui o Tribunal Constitucional o monopólio da função de fiscalização.

121
Araújo (n. 104), p. 882. A final, os preceitos que determinavam a instituição (artigo 212º, nº 1) e
estabeleciam as competências do Tribunal Constitucional no domínio da fiscalização da consti-
tucionalidade (artigo 213º, nº 1) viriam a ser aprovados por unanimidade (Diário da Assembleia da
República, I Série – Número 124, de 22 de Julho de 1982, pp. 5209 e 5213).
122
O projecto da FRS propunha a substituição dos recursos pelo modelo europeu de controlo con-
creto (questão prejudicial). A proposta, no entanto, foi rapidamente afastada, dada a autoridade
tradicional do controlo difuso, já praticado (Diário da Assembleia da República, II Série – Suplemento
ao número 72, de 27 de Março de 1982, pp. 1330 – (1) e segs.). V. Miranda (n. 60), p. 372.

423
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

Que nenhuma novidade trouxe a criação do Tribunal Constitucional no sis-


tema de fiscalização de constitucionalidade demonstra-o o facto de se não ter
aproveitado a ocasião para integrar na jurisdição constitucional procedimentos
próprios destinados à composição de conflitos de competências entre órgãos de
soberania ou entre órgãos do Estado e órgãos autonómicos bem como a inclu-
são de meios processuais de tutela dos direitos fundamentais. O que noutros
ordenamentos constitucionais se fazia já através de instrumentos processuais
especificamente ajustados a cada finalidade far-se-ia em Portugal através dos
meios processuais comuns, ou seja, através das diferentes espécies de fiscaliza-
ção da constitucionalidade de normas123.
Seja como for, uma vez resolvidas as maiores dissensões existentes, e que
respeitaram ao processo de designação dos juízes do futuro Tribunal Constitu-
cional124, o Governo apresentou à Assembleia a proposta de lei nº 130/II, relativa
à organização, funcionamento e processo no Tribunal Constitucional. A proposta, que
fora preparada por uma comissão ad hoc constituída por dois publicistas da Uni-
versidade de Coimbra125, veio a ser aprovada a 15 de Novembro de 1982. Pronta
a Lei sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitu-
cional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), que deveria completar os preceitos
da Constituição quanto ao estatuto dos juízes, as formas de processo, e o modo
de funcionamento e organização do Tribunal, pronto estava, também, o sistema
actual de jurisdição constitucional em Portugal.
Concebido no contexto de uma condição histórica particularíssima, o sis-
tema instalou-se e implantou-se sem que alguma vez tivesse havido tempo para
reflectir sobre a sua adequação às exigências da administração da justiça em maté­
rias jurídico-constitucionais em Estado de direito democrático. Sobretudo, sem
que alguma vez tivesse havido a disponibilidade colectiva para, com a necessá-
ria distância face a constrangimentos históricos prementes, o confrontar com o
modelo próprio da cultura jurídica europeia da segunda metade do século XX.

123
Note-se, no entanto, que relativamente aos meios de acesso directo dos cidadãos à jurisdição
constitucional – meios esses que normalmente se traduzem na previsão de processos específicos de
tutela de direitos fundamentais («recurso de amparo») – a revisão constitucional de 1982 acres-
centou um novo dado face ao sistema já existente, e fixado em 1976: o recurso para o Tribunal
Constitucional de decisões de tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
arguida durante o processo (actual artigo 280º, nº 1, alínea b) da Constituição).
124
Foi vencida a corrente que propugnava que os juízes tivessem uma tripla proveniência: designados
em parte pelo Presidente da República, noutra parte pela Assembleia da República e noutra ainda
pelo Conselho Superior da Magistratura. V. Araújo (n. 104), pp. 918 e segs.
125
António Barbosa de Melo e José Manuel Cardoso da Costa. José Manuel Cardoso da Costa,
“A elaboração da Lei do Tribunal Constitucional”, in: Jorge Miranda/Marcelo Rebelo de Sousa
(coord.), A Feitura das Leis, Vol. I, Instituto Nacional de Administração, Oeiras, 1986, pp. 85-95.

424
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

3. O sistema português de justiça constitucional e o problema da inter­


pretação constitucional
Ao analisar a formação da justiça constitucional na Europa, assinalámos o
facto de esta ter na sua origem um debate científico de ruptura num contexto
histórico-cultural de profunda transformação política e social126. É esse debate
que explica o desenho do modelo europeu de justiça constitucional. Sobretudo,
é o reconhecimento da especificidade da interpretação constitucional que jus-
tifica a opção pela instituiçãoo de uma jurisdição autónoma e especializada, a
cargo de um órgão jurisdicional com características próprias e, portanto, a rejei-
ção da atribuição de competência para decidir em matérias jurídico-constitucionais
a todo e qualquer tribunal. O desenho do sistema, assim pensado, pretendeu
potenciar o desenvolvimento de uma hermenêutica constitucional, com todas
as suas exigências metódicas próprias127. Por sua vez, enquanto produto da cul-
tura europeia, a justiça constitucional procura dar resposta a anseios dos povos
europeus num momento muito particular da sua história.
Já em Portugal, como acabamos de ver, a evolução da justiça constitucional
é um fenómeno isolado no contexto europeu. À formação da justiça constitu-
cional bem como ao desenho do sistema português de fiscalização da consti-
tucionalidade é alheio o debate científico sobre a possibilidade e necessidade
de vincular a lei à Constituição ou sobre a querela dos métodos em direito
público. O desenho do sistema é antes marcado por contingências históricas
da transição portuguesa para a democracia e é concebido tendo como ponto
de partida doutrinário a tese da continuidade face à prática “herdada” do sé­culo
XIX128. A ideia de ruptura histórico-cultural, sem a qual não seria pensável a jus-
tiça constitucional europeia dos nossos dias, é-lhe profundamente estranha.
Por isso, estranha também lhe é a outra ideia (indissociável dessa ruptura his-
tórico-cultural), segundo a qual a razão de ser última de qualquer jurisdição
constitucional – seja ela de génese norte-americana, seja ela de génese europeia
– é a de ser capaz de responder às exigências metódicas que decorrem da espe-
cificidade da interpretação constitucional.
«We must never forget that it is a constitution we are expounding» escreve-
ria, logo no início do século XIX, numa das suas mais célebres opinions, o Chief
Justice Marshall129. Na Europa, diversamente, o direito constitucional viveu até

126
V., supra, ponto 1.
127
Afonso Pereira (n. 45), pp. 60-61.
128
V., supra, ponto 2.2.3.
129
McCulloch v. Maryland, 17 U.S. 316 (1819). «A constitution, to contain an accurate detail of all the
subdivisions of which its great powers will admit, and of all the means by which they may be car-
ried into execution, would partake of the prolixity of a legal code, and could scarcely be embraced

425
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

à segunda metade do século XX sem que dos seus elementos essenciais fizesse
parte uma «teoria» da interpretação constitucional. Mas a partir dessa altura – e
graças à novidade que representou então o surgimento das primeiras jurisdições
constitucionais – da condição de inexistência passou-se na Europa à condição da
distinção. Se durante século e meio não houve interpretação no direito consti-
tucional «europeu», quando começa a havê-la (quando os tribunais são chama-
dos a julgar em questões jurídico-constitucionais) compreende-se de imediato
que ela terá que ser distinta da interpretação dos outros ramos do direito, dada
a particular estrutura das normas constitucionais. De teoria nenhuma passou-
-se assim à consciência de uma teoria distinta130; e esta viria a ser efectivamente
obtida, graças às transformações entretanto ocorridas na ciência europeia do
direito público com a «querela dos métodos», do princípio do século XX, e gra-
ças ao labor das jurisdições constitucionais. Mas para que tanto sucedesse não
foi apenas necessário que o pensamento jurídico se renovasse, questionando os
métodos herdados do cientismo positivista próprio do século XIX. Necessário
foi também que as jurisdições constitucionais, entretanto instituídas, fossem
dotadas de um desenho institucional que potenciasse, ou pelo menos não inibisse,
quer a consciência da necessidade de uma hermenêutica própria, quer a cons-
trução dos cânones que a serviriam. Preparar devidamente um tal desenho foi
o intuito de todo o debate europeu do início do século XX do qual resultou a
instituição do «tribunal constitucional».
Uma vez que o nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade das
normas se desenhou à margem de todo este debate, a resolução do problema da
interpretação constitucional não se incluiu naturalmente nas suas finalidades.
O sistema foi modelado como se tal problema não existisse. Esse foi, como já
vimos, o «preço» a pagar por uma justiça constitucional alicerçada, no seu dese­
nho institucional, na tese segundo a qual haveria uma continuidade natural
entre práticas herdadas do século XIX e as exigências próprias do Estado cons-
titucional da segunda metade do século XX.

by the human mind. It would probably never be understood by the public. Its nature, therefore,
requires, that only its great outlines should be marked, its important objects designated, and
the minor ingredients which compose those objects be deduced from the nature of the objects
themselves. That this idea was entertained by the framers of the American constitution, is not only
to be inferred from the nature of the instrument, but from the language. Why else were some of
the limitations, found in the ninth section of the 1st article, introduced? It is also, in some degree,
warranted by their having omitted to use any restrictive term which might prevent its receiving
a fair and just interpretation. In considering this question, then, we must never forget that it is a
constitution we are expounding» (ibid., p. 407).
130
Javier Pérez Royo, Curso de Derecho Constitucional, 14ª ed., Marcial Pons, Madrid, 2014, p. 96.

426
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

Por isso mesmo, o sistema português de justiça constitucional não é um sis-


tema amigo da interpretação constitucional. Não potencia, nem a radicação da cons-
ciência da especificidade desta interpretação, nem o desenvolvimento estável
e previsível dos cânones que lhe sejam próprios. A afirmação, explicável pelo
passado (pela história portuguesa que até agora procurámos relatar), deve ser
demonstrada no presente.

3.1.1. O formalismo jurídico e a «tese da continuidade»


Sendo certo que, em pleno período revolucionário, pura e simplesmente
não havia condições nem tempo para uma reflexão aprofundada sobre o sistema
de justiça constitucional em Portugal131, já não é tão óbvia assim a razão por que,
por ocasião da primeira revisão constitucional, em 1982, ultrapassado o período
de instabilidade política e assegurado o normal funcionamento das instituições
do Estado de direito, a ciência portuguesa de direito constitucional não pro­
curou reflectir sobre a razão de ser da justiça constitucional ou sobre a implica-
ção da instituição do Tribunal Constitucional no sistema de fontes.
A ausência de debate é tanto ou mais surpreendente quanto, no início dessa
mesma década de oitenta, na vizinha Espanha, e na sequência da divulgação da
obra de García de Enterría132, se travava justamente esse debate, de resto, um
dos mais acesos e importantes na ciência do direito constitucional espanhola.
Com efeito, a publicação dessa obra, em que o Autor problematizava a possibi-
lidade e limites de interpretação jurídica da Constituição bem como a necessi-
dade de a ciência do direito público reflectir sobre aquilo que a instituição de
um tribunal constitucional em Espanha alteraria no sistema de fontes do direito
e implicaria em termos de (re)construção dogmática, desencadeou um debate
na Revista de Derecho Político que, de algum modo, pode ser considerado como
a versão espanhola da querela dos métodos em direito público. Em reacção a
essa obra, o caput scholae de um direito constitucional ainda diluído na ciência
política Pablo Lucas Verdú, num artigo em que logo o título revelava o seu tom
provocatório («El derecho constitucional como derecho administrativo»), ex-
primiu o maior cepticismo relativamente à força normativa da Constituição e
relativamente ao papel e função da justiça constitucional133. Em resposta, e com
um título não menos cáustico («El derecho constitucional como derecho»),
García de Enterría veio demonstrar por que é que as normas constitucionais

131
V., supra, ponto 2.3.3.
132
Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, Cívitas,
Madrid, 1981.
133
Pablo Lucas Verdú, “El derecho constitucional como derecho administrativo – (La «ideología
constitucional» del profesor García de Enterría)”, Revista de Derecho Político, nº 13, 1982, pp. 7-52.

427
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

podem ser objecto de interpretação jurídica, justificando o papel da justiça


constitucional134. Esse debate, cujo objecto outro não era do que a autonomia
normativa da Constituição, se, por um lado, assegurou a independência do di­
reito constitucional perante a ciência política, por outro, serviu para esclarecer
a sua especificidade no domínio da ciência do Direito. Dito de outro modo, esse
debate resolveu definitivamente todas as reservas que pudessem existir sobre
a possibilidade de desenvolver um método jurídico próprio em direito consti-
tucional sem que tal implique ideologia, nisso mesmo residindo, aliás, a justifica-
ção teórica para a existência de um órgão especializado com competência para
inter­pretar a Constituição.
Nenhum eco teve, porém, esse debate na ciência portuguesa de di­reito cons-
titucional. A recepção da obra de García de Enterría em Portugal seria sempre
dificultada por não responder a nenhuma inquietação existencial que, à altura,
comovesse o pensamento jurídico português. Pelas razões que procurámos
explicar sobre o modo como em Portugal foi evoluindo a justiça constitucio-
nal, a possibilidade teórica de vincular a lei a um parâmetro jurídico superior
– a condição teórica da justiça constitucional – nunca se inscreveu no âmbito
da discussão metodológica que, na Europa, a ciência do direito público não
poderia deixar de enfrentar. As preocupações de García de Enterría, em jus-
tificar a cientificidade e a juridicidade do direito constitucional («El derecho
constitucional como derecho»), e que eram justamente as mesmas que as dos
protagonistas da Methodenstreit (Hans Kelsen, Erich Kaufmann, Rudolf Smend
ou Hermann Heller, entre muitos outros135), num esforço de rejeição dos méto-
dos herdados do cientismo positivista do século XIX, nunca seriam passíveis de
ser sequer compreendidas como matéria que justificasse um debate científico
numa cultura jurídica em que imperava o método jurídico na sua vertente for-
malista. Em Portugal, a pergunta sobre a razão de ser da justiça constitucional
não tinha razão de ser. Faltava o pressuposto para a auto-consciencialização do
problema: a ruptura científica136. É certo que, em finais da década de sessenta do
século passado, numa obra que tinha potencial para provocar uma ruptura na
ciência portuguesa do direito constitucional, Francisco Lucas Pires já se havia
ocupado especificamente da questão do método em direito constitucional e

134
Eduardo García de Enterría, “El derecho constitucional como derecho”, Revista de Derecho
Político, nº 15, 1982, pp. 7-20.
135
Stolleis (n. 43), pp. 153 e segs.
136
V., supra, ponto 1.3.1.

428
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

da sua relação com o conceito de Constituição137 138. Simplesmente, essa obra


teve a infelicidade de surgir nas vésperas de uma revolução cujo impacto jamais
poderia superar. Porque a sobrevivência da “legalidade revolucionária” depen-
dia da manutenção e desenvolvimento de uma cultura formalista e legalista139,
a querela dos métodos não iria ter nos anos vindouros qualquer hipótese de
se inscrever.
Se a essa cultura jurídica juntarmos a «tese da continuidade», segundo
a qual as raízes da justiça constitucional remontam até ao século XIX, sendo
Portugal pioneiro na introdução da justiça constitucional na Europa, é fácil
compreender que se impusesse então o entendimento segundo o qual pouco
ou nada teria Portugal a aprender com a experiência europeia. Com efeito, de
acordo com a referida tese, sobre o tema, já em 1915, Magalhães Collaço, no seu
«Ensaio sobre a inconstitucionalidade das leis no direito português»140, pratica-
mente tudo teria dito, não logrando ter, assim, impacto uma discussão travada na
Alemanha em finais da década de vinte, muito menos uma obra publicada sobre
o tema, em 1981, na vizinha Espanha. Aos olhos de uma ciência do direito cons-
titucional formalista e em que prevalecia – e ainda hoje prevalece – a «tese da
continuidade»141 sempre seria imperceptível a novidade do fenómeno da justiça
constitucional.
Numa palavra, porque, em Portugal, o problema da interpretação constitu-
cional nunca foi visto como um problema, o debate sobre justiça constitucional
ficaria, quanto aos seus fundamentos teóricos, irremediavelmente comprome-
tido. Se se aceitar a premissa segundo a qual é, antes de mais, um problema
metodológico sobre a natureza da actividade interpretativa da Constituição

137
Francisco Lucas Pires, “O Problema da Constituição”, Boletim da Faculdade de Direito, Suplemento
ao Vol. XVII (1970), pp. 329-419. O pensamento do autor, além de deixar transparecer uma cul-
tura jurídica ímpar e de cuidar da recepção, em Portugal, da moderna ciência do direito público,
agora já na fase da sua crise, desenvolve-se sob a influência da crítica antiformalista e antilegalista
empreendida, entre nós, poucos anos antes, no domínio da teoria do direito e do pensamento
jurídico, por António Castanheira Neves em id., Questão-de-facto – Questão-de-direito ou o problema
metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica), Vol. I – A crise, Almedina, Coimbra, 1967.
A monumental obra de Castanheira Neves não logrou, no entanto, gerar uma renovação metódica
na ciência portuguesa do direito público, permanecendo, ainda hoje, largamente confinada ao
domínio da teoria do direito.
138
Para a especificidade da interpretação constitucional já haviam alertado, num relevantíssimo
estudo, Rodrigues Queiró/Barbosa de Melo (n. 92), pp. 223-228.
139
António M. Hespanha, “Discours juridique et changement politique: l’exemple de la révolution
portugaise de 1974”, in Erk Volkmar Heyen (ed.), Historische Soziologie der Rechtswissenschaft, Ius
Commune Sonderheft 26, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1986, pp. 107-131.
140
Collaço (n. 67).
141
V., supra, ponto 2.2.3.

429
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

requerida pela estrutura própria das normas constitucionais – que por sua vez,
está ancorado no debate teórico sobre o conceito de Constituição – que molda
a discussão sobre a necessidade ou não de uma justiça constitucional e também
sobre qual o modelo a adoptar, isto é sobre a opção pela criação de um órgão
juris­dicional próprio142, temos de concluir que a ausência do primeiro debate
em Portugal inviabiliza a possibilidade de enquadrar uma discussão científica
sobre justiça constitucional.
Ora, o estado actual da ciência portuguesa de direito constitucional não é
muito diferente, não sendo de antever uma possibilidade séria de realizar, num
futuro próximo, qualquer discussão científica sobre justiça constitucional.
Em Portugal, se chegou a ter algum eco o impacto causado pela querela dos
métodos143, o seu impacto na ciência portuguesa do direito constitucional não
terá sido profundo144. Se é verdade que, em 1967, dois eminentes juspublicistas
já escreviam que «[a] melhor doutrina e a mais autorizada jurisprudência es-
trangeira afirmam a necessidade de interpretar a Constituição a partir da ideia
de que ela exprime uma decisão global da comunidade jurídica, polarizando
um sistema de valores de que as disposições singulares, de um modo claro ou
difuso, constituem um simples precipitado»145, essa assunção básica está, no en-
tanto, bem longe de poder ser considerada um acquis da ciência portuguesa de
direito constitucional. Antes pelo contrário, nela impera, ainda hoje, em pleno
século XXI, o método jurídico na sua vertente formalista. Tanto assim que um
reputado constitucionalista português afirma, numa obra publicada em 2014,

142
Afonso Pereira (n. 45), pp. 59-61.
143
Sobre as várias orientações metodológicas no ensino do direito no século XX em Portugal
v. António Manuel Hespanha, “L’histoire juridique et les aspects politico-juridiques du droit
(Portugal, 1900-1950)”, 10 Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno (1981), pp.
423-447, também disponível em versão portuguesa em id., “Historiografia jurídica e política do
direito (Portugal, 1900-1950)”, Análise Social, Vol. XVIII (3º-4º-5º), 1982 (nº 72-73-74), pp. 795-812.
144
V., ainda assim, ainda na primeira metade do século XX, Afonso Rodrigues Queiró, “Ciência do
direito e filosofia do direito”, Boletim da Faculdade de Direito 18 (1942), pp. 366-384, coligido em id.
(n. 12), pp. 5-23; num momento posterior, Lucas Pires (n. 137) e José Carlos Vieira de Andrade,
Direito Constitucional, policop., Coimbra, 1977, pp. 117-141 e id., Os Direitos Fundamentais na Consti­
tuição Portuguesa de 1976, 1ª ed., Almedina, Coimbra, 1983, pp. 115-141; mais recentemente, Maria
Lúcia Amaral, “Carl Schmitt e Portugal – O problema dos métodos em direito constitucional por-
tuguês”, in Jorge Miranda (org.), Perspectivas Constitucionais: Nos 20 anos da Constituição de 1976, Vol. I,
Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 167-194. Existe, entre nós, uma dissertação de doutoramento
dedicada ao tema da interpretação constitucional: Cristina Queiroz, Interpretação Constitucional
e Poder Judicial. Sobre a epistemologia da construção constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2000.
V. também id., “Justiça Constitucional e Interpretação da Constituição”, in AA.VV., Nos 25 Anos da
Constituição da República Portuguesa de 1976. Evolução Constitucional e Perspectivas Futuras, AAFDL,
Lisboa, 2001, pp. 561-628.
145
Rodrigues Queiró/Barbosa de Melo (n. 92), p. 225. V., ainda, Lucas Pires (n. 137), p. 388 nota 1.

430
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

o seguinte: «[o] método interpretativo da dogmática jurídica, oriundo do posi­


tivismo savigniano, não foi ainda ultrapassado e vale para todos os ramos de di-
reito, incluindo o Direito Constitucional»146.

3.1.2. A condição histórica da Constituição de 1976 e o primeiro debate do


constitucionalismo português
Além dessa causa culturalmente profunda, a ausência de debate científico
tem, no entanto, uma outra explicação e que tem que ver com a condição histórica
da Constituição de 1976147.
A revisão constitucional de 1982, que determinou a criação do Tribunal
Constitucional, pôs termo a um período constitucional transitório (1976-1982) que
fora marcado pela conflitualidade latente entre dois princípios opostos de legi-
timidade: a legitimidade político-militar, que justificava as pretensões de poder
próprias dos agentes da “revolução”, e a legitimidade democrática, que justifi-
cava as pretensões de poder próprias dos titulares dos órgãos (a nível nacional:
Presidente da República e Parlamento) que, entretanto, haviam sido eleitos por
sufrágio universal.
Todavia, o que deve notar-se é que a conflitualidade latente que marca este
período transitório, que termina em 1982, se não resumia à concorrência entre
diferentes candidaturas ao poder. Para além dessa concorrência estabelecera-
-se na Assembleia Constituinte um acentuadíssimo dissenso quanto ao modelo
de Estado e de sociedade que a nova ordem constitucional deveria inaugurar.
O texto, longo e de natureza quase “regulamentar”, que resultou dos trabalhos
da Constituinte exprimiu o compromisso possível entre duas visões opostas
e inconciliáveis do que deveria ser a Terceira República portuguesa. De um
lado, estava a visão fundacional de uma República que, sob a estrita direcção
do Estado, se deveria antes do mais empenhar numa transformação profunda
das estruturas económico-sociais. Do outro, estava a visão fundacional de uma
República que, na base de um modelo dinâmico de sociedade, deveria antes do
mais normalizar as suas instituições de acordo com os modelos “ocidentais” da
economia de mercado e da democracia liberal, desenhados na base da autono-
mia individual e da sociedade face ao Estado148.

146
Carlos Blanco de Morais, Curso de Direito Constitucional, Tomo II, Teoria da Constituição em Tempo
de Crise do Estado Social, Vol. 2, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 436.
147
Amaral (n. 3), pp. 85-87.
148
Cada um dos seis partidos com deputados eleitos apresentou o seu projecto de Constituição, os
quais abriam com um preâmbulo e compreendiam 148 artigos (CDS); 130 artigos (MDP-CDE); 120
artigos (PCP); 153 artigos, mais quatro de disposições finais e transitórias (PPD); 130 artigos (PS);
44 artigos (UDP). O texto final que viria a ser aprovado a 2 de Abril de 1975 seria bem mais longo,

431
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

É certo que esta “indecisão constituinte”, que se vive ao rubro durante parte
do tempo em que duram os trabalhos da Assembleia, acaba, na prática, cedo.
Em 1977 Portugal apresenta o seu pedido de adesão à Comunidade Econó­mica
Europeia. A partir desse momento está praticamente selada a dissensão cons-
titucional. Mas como o “facto” não pôde anular tudo o que se passara antes,
nos trabalhos da Constituinte, permaneceu apesar dele o texto que desses traba-
lhos resultara.
É este texto, assim nascido, que corporiza a CRP, que vigora hoje após ter
sido objecto de sete revisões constitucionais, ocorridas em 1982, 1989, 1992,
1997, 2001, 2004 e 2005. Todas estas revisões foram eliminando os vestígios se-
mânticos do impasse constituinte. Mas a verdade é que não eliminaram a sua
memória, e os ecos que desse impasse ainda perduram na consciência da comu-
nidade social e jurídica.
Neste contexto, é natural que a ciência portuguesa de direito constitucional
não tivesse, logo a seguir à entrada em vigor da Constituição, congraçado esfor-
ços em torno da necessária construção dogmática que o novo direito constitu-
cional viria a exigir.
Como tudo parecia, ainda, precário e indeciso, o primeiro debate do cons-
titucionalismo português diz respeito, precisamente, à possibilidade da existência
(ou à “durabilidade”) de uma constituição como esta, nascida de um tão difícil
compromisso histórico. Durante a década de oitenta formaram-se basicamente,
a este respeito, três orientações: a que vaticinava a possibilidade e a durabili­
dade da parte “programática” e “transformativa” da constituição que prevale-
ceria, aliás, sobre a componente liberal-democrática (Gomes Canotilho)149; a
que defendia a possibilidade de convivência harmónica, sem rupturas, das duas
partes do compromisso constituinte (Jorge Miranda)150 e a que, exprimindo a au­

contendo 312 artigos. Para uma informação completa quanto ao modus faciendi desse compromisso
constituinte, Miranda (n. 101).
149
José Joaquim Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas, 1ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1982.
150
Miranda (n. 101). O autor justifica essa sua posição com base em um argumento de natureza
metódica que se inscreve no pensamento jurídico formalista e legalista (supra, ponto, 3.1.1.). «Ora,
se no plano político pode sempre questionar-se da conciliabilidade ou da durabilidade de princí-
pios derivados de matrizes discrepantes ou opostas, em contrapartida, no plano jurídico, nada a
piori impede que se lhes apliquem os cânones gerais de hermenêutica. […] Certo, os pressupostos
e os fins políticos são irredutíveis e inelimináveis; só que, sem os escamotear e sem ignorar os
elementos específicos da interpretação constitucional, não pode o intérprete da Constituição de
1976 – como o intérprete de qualquer outra Lei Fundamental – estar autorizado senão a procurar
as recíprocas implicações dos preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem, a situá-los e
defini-los na sua interpenetração e na sua interrelacionação e a tentar, assim, chegar a uma idónea
síntese globalizante» (ibid., pp. 276-277). Para a plena compreensão do pensamento do autor, v.

432
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

tonomia normativa da Constituição, sustentava a impossibilidade teórica de manu­


tenção do compromisso entre o princípio democrático e o princípio socialista
da Constituição, defendendo por isso a natureza necessariamente transi­tória do
texto aprovado em 1976 (Lucas Pires)151.
É, pois, neste ambiente científico que o Tribunal Constitucional português
inicia, em 1983, a sua actividade, enquanto sucessor do malogrado Conselho
da Revolução152.
Estando os debates, compreensivelmente, comprometidos com outras dis-
cussões, e excepção feita à obra de José Carlos Vieira de Andrade153, a instituição
da jurisdição constitucional não foi coetaneamente acompanhada de um es­
forço conjunto de construção dogmática, que sublinhasse as mudanças paradig-
máticas (no domínio das fontes do Direito, da “positivização” da constituição,
e da consequente necessidade de instrumentos interpretativos próprios) que
a criação de um tribunal constitucional naturalmente comporta. Com efeito,
levaria algum tempo até que a ciência portuguesa de direito constitucional se
dedicasse ao tema154.

3.1.3. A impossibilidade de debate científico sobre justiça constitucional


Apesar de, por ocasião das comemorações do décimo aniversário do Tri-
bunal Constitucional, se ter promovido uma então promissora reflexão
teórica sobre a legitimidade da justiça constitucional155, a verdade é que tal ini-
ciativa – e decorridas mais de duas décadas – não logrou gerar discurso científico.
Com efeito, o estado actual da discussão sobre justiça constitucional na ciência
portuguesa de direito constitucional não é muito diferente daquele que retratá-
mos anteriormente.
Desde logo, em virtude da assunção acrítica da «tese da continuidade» con-
tinua a prevalecer o entendimento de que Portugal foi pioneiro em introduzir a

ainda o ponto conclusivo da obra, intitulado «O enlace entre socialismo e democracia e o primado
do princípio democrático» (ibid., pp. 538-544).
151
Francisco Lucas Pires, Teoria da Constituição de 1976. A Transição Dualista, Coimbra, 1988.
152
V., supra, ponto 2.4.2.
153
Vieira de Andrade (n. 144).
154
Por ocasião da comemoração do décimo aniversário da Constituição de 1976, em Abril de 1986,
a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa promoveu umas Jornadas de Direito Constitucional,
em que Gomes Canotilho apresentou uma comunicação dedicada ao tema da diferença funcional
e metódica dos procedimentos de concretização das normas constitucionais desenvolvidos pelo
legislador e pelo Tribunal Constitucional (José Joaquim Gomes Canotilho, “A concretização da
Constituição pelo legislador e pelo Tribunal Constitucional”, in: Jorge Miranda (org.) Nos dez anos
da Constituição, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1987, pp. 345-372).
155
Tribunal Constitucional (org.), Legitimidade e legitimação da justiça constitucional, Coimbra Editora,
Coimbra, 1995.

433
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

justiça constitucional na Europa. Esse mito, que casa bem com o modo de pen-
sar formalista que perdura na ciência portuguesa de direito constitucional, leva
a que a originalidade do sistema português de fiscalização da constituciona­
lidade seja a tal ponto valorizada que as obras que se ocupam do seu trata­mento
sistemático sejam predominantemente descritivas, ocupando a justificação
teórica do sistema, onde ela existe, um lugar secundário156. Com efeito, não é
sequer concebível que caiba à ciência portuguesa do direito constitucional ofe-
recer uma justificação teórica para as virtualidades do sistema português face
ao modelo europeu. Em que medida as características do sistema português são
justificadas por prestarem, por comparação com o modelo europeu, um melhor
desempenho em matéria de tutela dos direitos fundamentais ou por poten­
ciarem a construção de uma hermenêutica constitucional apta a melhorar a
capa­cidade integradora da constituição, é uma interrogação que não faz sequer
sentido. E não o faz, porque, numa cultura jurídica incapaz de superar o for-
malismo no modo de pensar juridicamente, tal matéria não é concebida como
algo que deva ser objecto de tratamento por parte da ciência do direito, a qual
deve apenas ocupar-se do direito positivo e da sua sistematização. Uma avalia-
ção do desempenho do sistema, a ser feita, deve caber a outras ciências sociais
e, naturalmente, a impulsos no âmbito do sistema político, dela não se devendo
ocupar os cultores do direito público157. É isso que explica que as posições dou-
trinárias, minoritárias, que têm reservas ou criticam o sistema português de fis-
calização da constitucionalidade158 não logram desencadear um debate científico.

156
Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, Tomo II, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra,
2011, pp. 981-1069; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Vol. III, Tomo VI, 4ª ed., 2014,
pp. 281-295.
157
Blanco de Morais, embora reconheça que o debate faz sentido, devendo «[…] numa primeira
fase, [continuar] a processar-se em circuito fechado, na comunidade dos constitucionalistas e dos
operadores judiciários» (ibid., p. 984), é, no entanto, incapaz de oferecer uma justificação teórica
para o sistema português de fiscalização da constitucionalidade, a não ser que – e o argumento
vale o que vale – o mesmo «[…] assenta num paradigma que vigora há mais de um século e que foi
interiorizado na prática judiciária» (ibid., p. 994).
158
Maria Lúcia Amaral, “Justiça constitucional, protecção dos direitos fundamentais e segu­rança
jurídica: que modelo de justiça constitucional melhor protege os direitos fundamentais”, in Anuário
Português de Direito Constitucional 2 (2002), pp. 11-22; id., “Problemas da judicial review em Portugal”,
in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (Themis), nº 10, 2005, pp. 67-90; Jorge
Reis Novais, “Em defesa do recurso de amparo constitucional (ou uma avaliação crítica do sistema
português de fiscalização concreta da constitucionalidade)”, Revista da Faculdade de Direito da Univer­
sidade Nova de Lisboa (Themis), nº 10 (2005), pp. 91-117; id., Direitos fundamentais e justiça constitucional
em Estado de direito democrático, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 237-353 e Paulo Mota Pinto,
“Reflexões sobre jurisdição constitucional e direitos fundamentais nos 30 anos da Constituição da
República Portuguesa”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (Themis), Edição
Especial (2006), pp. 201-206. V. ainda Amaral/Afonso Pereira (n. 56), pp. 548; 557-560 e 565-567.

434
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

En­quanto não houver, em Portugal, uma reflexão de âmbito mais vasto, e tam-
bém mais profunda, de índole metodológica, que rompa como o pensamento
jurídico formalista e legalista dominante na ciência portuguesa de direito
constitucional, jamais será possível travar uma discussão científica sobre justiça
constitucional. Até lá faltará, pura e simplesmente, o pressuposto teórico para
reconduzir posições doutrinárias críticas do défice hermenêutico da jurispru-
dência constitucional ao domínio da ciência do direito.
Dada a sua raiz culturalmente profunda, não é, no entanto, provável que tal
condição – e que outra não é do que a de reconhecer a especificidade da inter-
pretação constitucional sem que tal implique deixar de conceber o direito consti­
tucional como direito159– venha a verificar-se e que, portanto, tal debate científico
alguma vez venha a ocorrer em Portugal.

3.2. Uma percepção distorcida da função da justiça constitucional


Ora, dada a circunstância de em Portugal nunca se ter realizado um debate
científico sobre a razão de ser da justiça constitucional não causará surpresa
o facto de, globalmente, haver uma percepção distorcida da função da justiça
constitucional ou de qual seja o lugar de um tribunal constitucional em demo-
cracia. Já vimos que assim é, desde logo, a começar na própria ciência portu­
guesa do direito constitucional. Mas também o é no espaço público alargado,
que engloba tanto o sistema político como a sociedade em geral.
Na verdade, tudo indica que, para a percepção pública portuguesa, admi­
nistrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional significa, antes do
mais, garantir a regularidade dos procedimentos democráticos, quaisquer que
eles sejam.
A ideia segundo a qual tal regularidade deve ser sobretudo assegurada pelo
meio do controlo da constitucionalidade das normas e pelo meio da tutela dos direitos
fundamentais, por ser através deles que se garante a submissão de maiorias con-
junturais à disposição moral comum que a constituição corporiza, não é uma
ideia forte. Por outro lado, a ideia segundo a qual tal regularidade deve consistir
em, justamente através do controlo da constitucionalidade das normas e pelo meio
da tutela dos direitos fundamentais, preservar o pluralismo das forças político-
-sociais bem como em desobstruir o processo democrático também não é uma
ideia forte.
Forte é, sim, a convicção segundo a qual ao Tribunal cabe vigiar os partidos
e as suas contas; vigiar os processos eleitorais e a sua sanidade; aplicar instru-
mentos em geral profiláticos de fenómenos de corrupção pública; assegurar em

159
García de Enterría (n. 134).

435
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

suma que todos os procedimentos democráticos, na sua variedade e diversidade,


se mantenham regulares.
A raiz desta percepção distorcida é, desde logo, facilmente reconduzível ao
período transitório (1976-1982) e à função então desempenhada pelo Conse-
lho da Revolução, de garante do cumprimento da Constituição e de garante do
regu­lar funcionamento das instituições democráticas160, mas ela é, sabemo-lo
já, culturalmente mais profunda e tem que ver com a falta do pressuposto teó-
rico que permite compreender a razão de ser da existência de um órgão como
um tribunal constitucional – a especificidade metódica que a interpretação da
Constituição exige.

3.2.1. A amplitude e variedade de competências do Tribunal Constitucional


Essa percepção distorcida da função da justiça constitucional explica que
o legislador, de revisão e ordinário, se tenha mostrado em todos estes anos
favo­rável a uma crescente atribuição de competências não-nucleares ao Tribunal
Constitucional, isto é de competências que só remotamente têm que ver com o
controlo da constitucionalidade e com a tutela dos direitos fundamentais. Aliás, a atri-
buição de tão amplas e variadas competências ao Tribunal Constitucional, tem,
pelo contrário, um efeito nocivo nas condições que este tem para desempenhar
as suas competências nucleares, se considerarmos não só o aumento do volume
de processos e, portanto, de carga de trabalho, como também, e sobretudo, a
dispersão de matérias e de instrumentos metódicos, o que impede o desenvol-
vimento de uma hermenêutica constitucional própria. Note-se que, ao exercer
todas essas competências complementares que lhe são atribuídas, o Tribunal
Constitucional utiliza como parâmetro de decisão, não a Constituição, mas a
lei ordinária.
Tal não impede, é certo, que, os membros do Tribunal Constitucional por-
tuguês tenham consciência dessa separação estrutural de tarefas e sejam capa-
zes de distinguir perfeitamente a natureza do juízo a formular no âmbito de
processos de fiscalização da constitucionalidade, em que o que está em causa
é a resolução de questões relativas à interpretação da Constituição, e aquele a
fazer no âmbito dos demais processos, em que o que está em causa é uma tarefa
judicial estruturalmente diversa, qual seja a interpretação e aplicação do direito
infraconstitucional161. Aliás, o modelo americano de judicial review mostra bem
como nos Estados Unidos o princípio da unidade assume uma natureza estrita-
mente adjectiva, sem prejuízo da clara separação estrutural entre questões de

160
Cfr. artigos 142º, 145º e 146º da versão originária da CRP.
161
V., no entanto, o que dizemos, infra, ponto 3.2.2., a propósito do processo de fiscalização concreta.

436
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

direito constitucional e questões de direito ordinário162. Com efeito, o próprio


US Supreme Court distingue muito claramente os dois planos, sendo os cânones
hermenêuticos utilizados em judicial review cases diferentes daqueles utilizados
em statutory interpretation cases. Mas se num modelo de controlo difuso, é ine-
vitável a heterogeneidade de competências por parte de todos os tribunais, tal
não significa que, inversamente, tal heterogeneidade faça sentido num sistema
que, a par dos tribunais, institui um órgão ao qual compete especificamente admi-
nistrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional163.
Ora, a atribuição de tão amplas e variadas competências ao Tribunal Consti-
tucional só se justifica, uma vez mais, por em Portugal não se ter compreendido
– e ainda hoje não se compreender – que aquilo que fundamenta a existência de
um tribunal constitucional é a especificidade metódica que a interpretação da
Constituição exige. Qualquer que seja o domínio material que estiver em causa,
sempre que se trate de interpretar e aplicar a lei ordinária, isso deve ser tarefa
dos tribunais comuns, carecendo de qualquer justificação a sua atribuição a um
órgão de justiça constitucional.
É certo que, no espaço jurídico europeu, encontramos outros casos em que
as competências dos tribunais constitucionais vão além da fiscalização da cons-
titucionalidade de normas e da tutela dos direitos fundamentais, assistindo-se,
aliás, a uma crescente expansão das mesmas164. Simplesmente, as competências
que aos tribunais constitucionais são atribuídas nunca deixam de estar relacio-
nadas com a actividade de interpretação da Constituição, com a legitimidade
constitucional de actos ou factos jurídicos ou com a ordem fundamental da
comu­nidade política (a forma de Estado ou o sistema de governo)165. Além disso,
a expansão crescente a que temos vindo a assistir explica-se pelo próprio fenó-
meno de expansão material do direito público. Tal significa que a mesma nada tem
de arbitrária. Longe de resultar, como entre nós, de uma percepção distorcida
sobre a razão de ser da justiça constitucional, tal expansão é uma consequência
óbvia de uma percepção clara, já devidamente assimilada, da sua razão de ser.
Dadas as raízes profundas desta incompreensão das coisas não se põe sequer
o problema de racionalizar o sistema de justiça constitucional. Pelo contrário,
é provável que, no futuro próximo, se venha inclusive a propor a atribuição de
novas competências complementares ao Tribunal Constitucional. As posições

162
Amaral (n. 158), p. 72.
163
Cfr. artigo 221º da CRP.
164
Serena Baldin, Le “altre” funzioni delle corti costituzionale. Modelli europei e recezioni con particolare
riferimento all’Est europeo, Edizioni Università di Trieste, Trieste, 2000.
165
Ibid., pp. 121 e segs, a quem a amplitude e variedade de competências do Tribunal Constitucional
português não deixa de causar perplexidade.

437
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

doutrinárias que, entre nós, têm sido críticas da amplitude e variedade das com-
petências to Tribunal Constitucional166 não logram gerar qualquer discussão.

3.2.2. A anomalia congénita do processo de fiscalização concreta da constitu-


cionalidade
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade restringe-se à
fiscalização da constitucionalidade de normas. É por via das diferentes espécies de
fiscalização da constitucionalidade de normas, e não através de procedimentos
processuais específicos e funcionalmente adequados, que, no sistema portu-
guês, se procura compor conflitos de competências entre órgãos de soberania
ou entre órgãos do Estado e órgãos autonómicos ou assegurar a tutela dos direi-
tos fundamentais.
Das várias espécies de fiscalização da constitucionalidade de normas, aquela
que, no sistema português, é sistemicamente mais importante é o processo de fis-
calização concreta da constitucionalidade.
É-o por três ordens de razões. Em primeiro lugar, porque é nessa espécie de
fiscalização da constitucionalidade que melhor se exprime a originalidade e sin-
gularidade do sistema português de fiscalização da constitucionalidade, desig-
nadamente a impossibilidade de o mesmo se reconduzir a um dos dois modelos
clássicos – difuso ou concentrado – de fiscalização da constitucionalidade167.
Depois, porque só através do recurso de constitucionalidade interposto de uma
decisão proferida por um tribunal ordinário num caso concreto é que o parti-
cular tem acesso ao Tribunal Constitucional168. Por último, e em consequência
da razão oferecida anteriormente, porque a esmagadora maioria das decisões
proferidas, anualmente, pelo Tribunal Constitucional são decisões proferi-

166
Fernando Alves Correia, Direito Constitucional – A Justiça Constitucional, Almedina, Coimbra,
2002, p. 66 e Maria Lúcia Amaral, “Competências complementares do Tribunal Constitucional
português”, in: Fernando Alves Correia/Jónatas E.M. Machado/João Carlos Loureiro (org.), Estu­
dos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra,
2012, pp. 43-55.
167
Vital Moreira, “A “Fiscalização Concreta” no Quadro do Sistema Misto de Justiça Constitucio-
nal”, Volume Comemorativo do 75º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito (BFD) (2000), pp. 815-848,
p. 815. A circunstância de hoje quase todos os ordenamentos jurídicos combinarem caracterís-
ticas de ambos os modelos (nesse sentido, v. Lucio Pegoraro, Giustizia costituzionale comparata.
Dai modelli ai sistemi, Giappichelli, Torino, 2015, p. 83) de modo algum atenua a excentricidade da
«fiscalização concreta».
168
Maria Lúcia Amaral, “Acesso de particulares à jurisdição constitucional”, in: Marcelo Rebelo
de Sousa et al. (coord.), Estudos de homenagem ao prof. doutor Jorge Miranda, Vol. II, Coimbra Editora,
Coimbra, 2012, pp. 699-723, pp. 718-723.

438
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

das em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade (em média, mais


de 96%)169.
Ora, é ainda o facto de, em Portugal, não se ter compreendido que é a espe­
cificidade da interpretação constitucional que justifica a existência de um tri-
bunal constitucional que explica a aceitação acrítica do processo de fiscalização
concreta da constitucionalidade, em que, em vez de se reservar ao Tribunal
Constitucional, em regime de monopólio, a interpretação da Constituição, essa
tarefa é partilhada com os tribunais comuns aos quais se reconhece a competên-
cia para recusar a aplicação da lei com fundamento em inconstitucionalidade.
Se são pertinentes as críticas dirigidas ao modelo processual da fiscaliza-
ção concreta, segundo as quais o mesmo não seria suficiente, dada a estrutura
dos recursos de constitucionalidade, para uma tutela efectiva dos direitos fun­
damentais170, é, antes do mais, a sua anomalia congénita, a qual se analisa num as-
pecto funcional, num aspecto sistémico e num aspecto histórico-cultural, que
merece ser diagnosticada. Padecendo de uma anomalia congénita, o processo de
fiscalização concreta é insusceptível de ser objecto de calibragem ou afinação,
devendo antes sofrer uma reformulação global171.
Desde logo, não pode deixar de considerar-se uma anomalia funcional um
dese­nho institucional que reparte a tarefa de interpretação da Constituição por
um órgão de competência especializada e por todo o poder judicial, anomalia
essa que tem na sua origem justamente a referida incompreensão sobre a razão
de ser de um tribunal constitucional – a especificidade da interpretação cons-
titucional. É certo que, mesmo no modelo europeu de controlo concentrado,
existem mecanismos que, com maior ou menor intensidade, permitem o envol-
vimento dos tribunais comuns no controlo da constitucionalidade172. Do que aí
se trata e aquilo que com tais mecanismos se pretende é justamente a expansão
ou a irradiação do direito constitucional por toda a ordem jurídica, forçando
todos os juízes a serem juízes comuns de direito constitucional. Poderia sustentar-se

169
Em 2015, o Tribunal Constitucional proferiu 1510 acórdãos e decisões, 1459 dos quais em sede
de fiscalização da constitucionalidade de normas. A fiscalização concreta representou a actividade
processual com maior expressão quantitativa, tendo dado origem a 635 acórdãos e 810 decisões
sumárias. Tal significa que, em 2015, e considerando apenas a actividade do Tribunal Constitu-
cional em sede de fiscalização da constitucionalidade de normas, mais de 99% são decisões de
fiscalização concreta. Mesmo que consideremos apenas as decisões de mérito (137 acórdãos e
238 decisões sumárias), a percentagem continua a ser elevada (aproximadamente 96%) (fonte:
Tribunal Constitucional, Relatório de Actividades 2015, pp. 9 e segs., disponível em http://www.
tribunalconstitucional.pt/tc/content/files/tc_ebook_relactiv2015/#ebookrelactividades [última
consulta: 2016.03.15]).
170
Reis Novais (n. 158), p. 91; Mota Pinto (n. 158), pp. 210-214.
171
Reis Novais (n. 158), pp. 115 e segs.
172
Amaral (n. 158), p. 72.

439
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

que o desenho do processo de fiscalização concreta, ao armar todos os juízes


comuns com o poder de interpretar a Constituição, prosseguiria esse mesmo
objectivo. Se foi essa a intenção – e temos dúvidas de que alguma vez o tenha
sido tendo em conta o modo como o processo de fiscalização concreta foi con-
cebido e que, já o sabemos, teve sobretudo que ver com contingências históri-
cas do período de transição para a democracia173 – a verdade é que, após mais
de três décadas de jurisprudência constitucional, não só não se logrou esse
objectivo174 como, pior do que isso, produziu-se justamente o efeito inverso.
Foi antes o recurso de constitucionalidade – desde aspectos relacionados com
a sua tramitação até à própria metódica utilizada na fundamentação das deci-
sões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta – que se dei-
xou colonizar pela racionalidade do litígio entre partes própria da jurisdição
comum e que em nada contribuiu para o desenvolvimento de uma hermenêu-
tica constitucional sólida e com força expansiva. Em lugar de, como sucedeu
noutros sistemas jurídicos que instituíram um tribunal constitucional, ter sido
a jurisprudência constitucional, através do desenvolvimento de uma herme-
nêutica constitucional própria, a alterar a ordem jurídica (a interpretação da lei
segundo a Constituição), o desenho do sistema de fiscalização concreta poten-
ciou, inversamente, que a jurisprudência constitucional fosse domesticada pelo
resto do ordenamento jurídico (a interpretação da Constituição segundo o di-
reito infraconstitucional). Que assim é demonstra-o o facto de, no decurso de
mais de três décadas, e, uma vez mais, ao contrário do que sucedeu noutros Es-
tados que instituíram tribunais constitucionais, não se ter verificado qualquer
conflitualidade entre jurisdição constitucional e jurisdição comum175. É que
longe de, aos olhos da jurisdição comum, a jurisprudência do Tribunal Cons-
titucional surgir como um corpo estranho e, por isso mesmo, causador de uma
reacção de rejeição, pelo contrário o estilo argumentativo é-lhe completamente
familiar e, por isso mesmo, perfeitamente assimilável. Aliás, em virtude da in­
versão metódica (a interpretação da Constituição segundo o direito infraconsti-

173
V., supra, ponto 2.3.3.
174
A assunção contrária dá-se cedo, tendo já sido verificada no primeiro decénio do Tribunal.
V. Antero Alves Monteiro Dinis, “A fiscalização concreta da constitucionalidade como forma privi-
legiada de dinamização do direito constitucional”, in Tribunal Constitucional (n. 155), pp. 199-209.
175
Existe um único episódio de conflito que ocorreu pouco tempo depois da criação do Tribunal
Constitucional e opôs este último ao Supremo Tribunal de Justiça. Simplesmente, não se tratou aí,
de qualquer conflitualidade no plano jurisprudencial. Alguma crispação terá sido motivada por
questões de hierarquia entre as duas entidades no que respeita à ordem de precedência protocolar.
José António Barreiros, “Representação judiciária ou hierárquica dos tribunais – Contributos para
a polémica entre o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional”, Revista do Ministério
Público, nº 19 (1984), pp. 9-40.

440
UM TRIBUNAL COMO OS OUTROS. JUSTIÇA CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

tucional) que domina a jurisprudência constitucional em sede de fiscalização


concreta, o plano em que tais conflitos, a existir, teriam lugar seria sempre o do
direito infraconstitucional – divergências quanto à interpretação da lei – e não o de
diferentes modos de argumentar juridicamente e de conceber o Direito.
A essa anomalia funcional junta-se aquilo a que, noutro lugar, chamámos
de anomalia sistémica176: a circunstância de o processo de fiscalização con­creta
ser, simultaneamente, quanto ao objecto, um processo de natureza objectiva (o
objecto do processo é uma norma ou uma interpretação normativa), e, quanto
à estrutura do processo, um processo de natureza subjectiva (o acesso ao Tri-
bunal Constitucional faz-se por via da interposição de um recurso de uma
decisão judicial proferida por um tribunal comum e os efeitos da decisão cir-
cunscrevem-se ao caso concreto). Também essa contradição sistémica dificulta
o desenvolvimento de uma hermenêutica constitucional própria. A dimensão
subjectiva do processo (recurso de uma decisão judicial) leva a que o Tribunal
Constitucional, que decide em Secção, não obstante ter que julgar uma norma,
em lugar de elevar a questão que tem para decidir à esfera deliberativa própria
que exige a justiça constitucional, acabe por descer ao caso concreto. Desde logo,
nesta espécie processual a extensão da apreciação que é feita pelo Tribunal está
processualmente limitada pela utilidade que a mesma produza sobre o caso con-
creto, o que, como reconhece o próprio Tribunal «[…] condiciona a realização
de uma interpretação integrada da Constituição como sistema normativo»177.
Além disso, ou justamente por isso, a proximidade ao caso bem como os efei-
tos da decisão exigem um admirável esforço por parte dos membros do Tribu-
nal Constitucional para, com clareza, em cada momento conseguirem ter bem
presente a natureza do juízo a efectuar, designadamente que o que lhes é pe­
dido é, não apenas a resolução de um caso concreto – não está em causa a justiça
do caso (a resolução de um litígio entre duas partes processuais) –, mas antes
que deliberem sobre uma questão de interpretação da Constituição – está em
causa a justiça constitucional (saber o que, em democracia, deve ou não caber ao
legislador)178. Conseguirem ter bem presente, isto é, que a sua intervenção, longe
de ser despolitizável, é justificada justamente porque a questão a decidir não é
uma questão puramente técnica ou científica, distanciada dos conflitos sociais
subjacentes179, porquanto «[...] cada caso em Direito Constitucional é um caso

176
Amaral/Afonso Pereira (n. 56), pp. 548 e 559.
177
Acórdão do TC nº 201/2014, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 89º vol., 2014, pp. 549-571,
p. 556.
178
Amaral (n. 168), pp. 722-723.
179
É justamente da ideia de que é preferível assumir a dimensão política da justiça constitucional –
em lugar de pretender camuflá-la – que decorre o modo de composição e designação dos membros
que integram um Tribunal Constitucional. V. Afonso Pereira (n. 45), p. 49.

441
ESTUDOS EM HOMENAGEM AO CONSELHEIRO PRESIDENTE RUI MOURA RAMOS

do todo que é a esfera do público e implica, pois, uma abertura da consciên-


cia problemática que se move nessa esfera pública»180. O reconhecimento de tal
espe­cificidade da interpretação constitucional de modo algum implica deixar
de conceber o direito constitucional como direito181. Tal reconhecimento pressu-
põe apenas, como já atrás se assinalou182, que é na possibilidade de desenvolver
um método jurídico próprio em direito constitucional que reside a justifica-
ção teó­rica para a existência de um órgão especializado com competência para
inter­pretar a Constituição.
Por último, o processo de fiscalização concreta é ainda, ou, porventura, pre-
dominantemente, uma anomalia histórico-cultural, dada a incompatibili­dade
entre a tradição do direito europeu continental, marcada por um modelo esta­
dualísico e legalístico de garantia das liberdades183 – a que é pura e simples-
mente estranha a cultura norte-americana de checks and balances –, e o “con­trolo
jurisdicional difuso” da constitucionalidade das leis184. Ao contrário do que se
verificou na Europa continental, em que os tribunais constitucionais pura e sim-
plesmente não tinham tradição185, em Portugal o Tribunal Constitucional, desde
o início, foi e quis ser um tribunal como os outros. Por tudo o que se disse, não po-
deria ser de outro modo.

180
Lucas Pires (n. 151), p. 54.
181
García de Enterría (n. 134).
182
V., supra, ponto 3.1.1.
183
Fioravanti (n. 16), pp. 43-51.
184
Sobre essa incompatibilidade v., supra, n. 95.
185
Num belíssimo ensaio sobre o Tribunal Constitucional Federal alemão, um autor inicia-o do
seguinte modo: «Era novo. Não tinha tradição As vestes escarlates dos seus Juízes evocavam a
Florença renascentista. Em Karlsruhe, junto ao Palácio, integrava cinco cubos achatados de betão,
aço e sobretudo vidro. Era um tribunal que não era nem queria ser como, habitualmente, são os
outros tribunais alemães» (Christoph Schönberger, “Anmerkungen zu Karlsruhe”, in Matthias
Jestaedt/Oliver Lepsius/Christoph Möllers/Christoph Schönberger (eds.), Das entgrenzte Gericht: eine
kritische Bilanz nach sechzig Jahren Bundesverfassungsgericht, Suhrkamp Verlag, Berlin, 2011, pp. 9-76,
p. 11 [tradução dos autores; no original: «Es war neu. Es hatte keine Tradition. Die scharlachroten
Roben seiner Richter borgte es beim Florenz der Renaissance aus. Im Karlsruher Schlosspark
bezog es fünf flache Würfel aus Beton, Stahl und vor allem Glas. Es war ein Gericht, das nicht so
war und nicht so sein wollte, wie deutsche Gerichte üblicherweise sind»].

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