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Dinis Abrantes Figueiredo

Direito Administrativo I

Ano letivo de 2021/2022


1. Administração Pública e Direito Administrativo
1.1 Noção de administração em geral
A palavra “administrar” significa gerir recursos financeiros escassos através de uma
organização que tem como objetivo a prossecução de um determinado fim pré-definido.
A noção de administração em geral compreende um duplo sentido:
- Sentido subjetivo: refere-se à organização que desenvolve a atividade administrativa
-» Exemplo: decisões e atuações da “Administração”
- Sentido objetivo: refere-se ao conjunto de atividades desenvolvidas pela organização
-» Exemplo: “administração” eficiente e eficaz
1.2 Características típicas da Administração Pública
A noção geral de administração permite compreender a noção estrita de Administração
Pública que apresenta duas características típicas essenciais:
1.2.1 Existência de fins públicos
A Administração Pública visa satisfazer as necessidades coletivas de uma determinada
comunidade política que sejam por ela qualificadas como interesses públicos, podendo-
se distinguir entre:
- Interesse público primário: O interesse público primário consiste nas finalidades
fundadoras e identificadoras de qualquer comunidade organizada em Estado que são
definidas pelo poder constituinte em cada época histórica e que estão consagradas na
Constituição. Hoje em dia, designa-se por interesse público primário a Segurança, a
Justiça e o Bem-estar.
- Interesse(s) público(s) secundário(s): O(s) interesse(s) público(s) secundário(s)
consiste(m) nas finalidades previamente identificadas pelo legislador a partir do
interesse público primário que são posteriormente prosseguidas pela Administração
Pública em exclusividade ou em colaboração com o setor cooperativo e social ou com o
setor privado.
Nota:
Por determinação europeia, entende-se que a prestação de alguns serviços (ex.
energia, transportes, telecomunicações, etc.) deve ser assegurada por empresas
privadas que atuam em concorrência de mercado enquanto que incumbe à
Administração Pública a regulação, a fiscalização, a garantia da universalidade e a
defesa dos consumidores no que toca à prestação desses serviços.

1.2.2 Previsão normativa e subordinação política


A atividade pública administrativa está sujeita a:
- Previsão normativa: A atividade pública administrativa é tipicamente executiva.
- Subordinação política: A atividade pública administrativa é heterónoma.
 A identificação e qualificação dos interesses coletivos como interesses públicos e a
atribuição da respetiva prossecução à Administração Pública são previamente definidas
por via legislativa governamental, tendo a Administração Pública de atuar com base na
lei e em conformidade com a mesma (princípios da precedência e prevalência da lei).
1.3 Os diversos sentidos da noção de Administração Pública
1.3.1 Administração Pública em sentido organizatório
Em sentido organizatório, a Administração Pública consiste numa estrutura unitária
complexa, composta por um conjunto de entes públicos, tendo como órgão superior o

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Governo (182º CRP), que são incumbidos de prosseguir e realizar o interesse público
primário e os interesses públicos secundários.
1.3.2 Administração Pública em sentido material-funcional
Em sentido material-funcional, a Administração Pública consiste na função
administrativa, i.e., nas atividades e tarefas administrativas que são desenvolvidas pelos
sujeitos da Administração Pública pertencentes aos três grupos seguidamente indicados.
1.3.3 Administração Pública em sentido jurídico-formal
Em sentido jurídico-formal, a Administração Pública desenvolve a função
administrativa através de atos administrativos, regulamentos administrativos e de
contratos administrativos, bem como através de atuações jurídicas instrumentais, de
operações materiais e de atuações administrativas informais.
1.4 Os sujeitos da Administração Pública
A Administração Pública é composta por três grupos de sujeitos:
Primeiro grupo
De acordo com o critério da personalidade jurídica, o primeiro grupo da Administração
Pública é composto pelas pessoas coletivas de Direito Público às quais o artigo 2º, n. 4
do CPA alude. São elas:
- Estado-Administração
- Regiões Autónomas
- Autarquias locais (municípios e freguesias)
- Entidades intermunicipais (associações de municípios)
- Institutos públicos
- Associações públicas (associações públicas profissionais)
Segundo grupo
De acordo com o critério da participação dominante de pessoas coletivas de Direito
Público, o segundo grupo da Administração Pública é composto por entidades
administrativas privadas mas que são dotadas de uma substância pública ou que têm
uma “participação com influência dominante” dos sujeitos do primeiro grupo. São elas:
- Associações de Direito Civil
- Sociedades comerciais
As entidades administrativas privadas pertencentes a este grupo podem resultar…:
1) …de processos de privatização orgânica formal de entidades originariamente
pertencentes ao primeiro grupo (ex. o Estado transforma uma pessoa coletiva de Direito
Público integrante do primeiro grupo da Administração Pública numa pessoa coletiva de
Direito Privado, continuando esta a prosseguir as mesmas funções que desempenhava
originariamente e tendo uma “participação com influência dominante” da entidade
transformadora, ou seja, do Estado (Infraestruturas de Portugal, SA)).
2) …da sua constituição originária enquanto entidades com personalidade jurídica de
Direito Privado (ex. empresas locais constituídas no formato de sociedade anónimas).
Terceiro grupo
De acordo com o critério do exercício da função administrativa, o terceiro grupo da
Administração Pública é composto por entidades privadas que desenvolvem funções
administrativas que lhes são delegadas ou concessionadas por sujeitos da Administração
Pública pertencentes ao primeiro e, por vezes, ao segundo grupo. Estes sujeitos não
pertencem à Administração Pública em sentido orgânico, ao contrário dos sujeitos dos
demais grupos, mas antes à Administração Pública em sentido funcional. Sendo assim,
estas entidades não têm uma “participação com influência dominante” dos sujeitos da

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Administração Pública dos dois primeiros grupos, mas colaboram funcionalmente com
eles (ex. entidades privadas de certificação oficial de produtos).
1.5 Relação de correspondência entre a Administração Pública e o Direito
Administrativo
A Administração Pública, em qualquer dos sentidos anteriormente analisados, constitui
o objeto da disciplina do Direito Administrativo que regula a sua criação, o seu
funcionamento, o exercício das funções dos respetivos órgãos, os fins que devem ser
prosseguidos pelas mesmas, os seus modos de atuação e, quando necessário, a sua
extinção.

2. Evolução da Administração Pública e do Direito Administrativo


2.1 Modelos fundamentais de Estado-Administração e períodos da sua
evolução histórica
Iniciar-se-á o estudo dos modelos fundamentais de Estado-Administração (Estado de
Polícia, Estado de Direito liberal, Estado de Serviço Público, Estado Social, Estado
Regulador e Garantidor) e dos períodos da sua evolução histórica (época medieval,
época moderna, época liberal, época pós-liberal).
2.2.1 Época medieval (antes do século XV)
A época medieval caracteriza-se pela ausência de uma comunidade política organizada
e territorialmente delimitada que sirva de referência ao interesse público e pela falta de
um aparelho organizado e centralizado do poder, pelo que não se pode falar de uma
Administração Pública. Por conseguinte, é impossível falar da existência de um Direito
Administrativo. No entanto, encontram-se, já nesta época, algumas características da
Administração Pública, como por exemplo a existência de interesses coletivos e de uma
organização administrativa da Igreja cristã.
2.2.2 Época moderna (entre os séculos XV e XVIII)
A época moderna caracteriza-se pela construção do Estado moderno que apresenta
como características fundamentais a concentração do poder político no Rei (um
governo), a definição das fronteiras geográficas dentro das quais o poder político é
exercido (um território) e a autonomização cultural (um povo).
Na sequência do Racionalismo Iluminista, o Estado moderno evolui para o Estado de
Polícia que se caracteriza pela ideia da celebração de um contrato social entre todos os
indivíduos da sociedade que faz emergir um Estado absoluto, pela concentração de
todos os poderes no príncipe, pelo desenvolvimento da Administração Pública estadual
e pela inexistência de uma subordinação do príncipe e da sua Administração ao Direito.
2.2.3 Época liberal (entre o século XIX e as Guerras Mundiais do século XX)
A época liberal, que se inicia com a eclosão das revoluções ditas liberais americana e
francesa, caracteriza-se pela recusa do Estado de Polícia em nome da liberdade
individual (contra o livre arbítrio do príncipe) e social (contra o intervencionismo
mercantilista) e em nome da democracia (por um governo do, pelo e para o povo), pela
constitucionalização da organização política e da garantia de direitos e liberdades
fundamentais dos cidadãos (Liberdade, Segurança e Propriedade) e pela separação de
poderes. Da época liberal surge, por oposição ao Estado de Polícia, um novo modelo de
Estado-Administração, o Estado de Direito liberal, que, para além das
supramencionadas, apresenta como características fundamentais a subordinação do
poder executivo/administrativo e da Administração Pública à lei parlamentar que se
confunde com o Direito e o surgimento do Direito Administrativo que, por um lado,
delimita e assegura os poderes das autoridades administrativas e, por outro lado, protege
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os cidadãos contra a intromissão e o exercício abusivo do poder por essas autoridades,
garantindo a sua Liberdade, a sua Segurança e a sua Propriedade.
2.2.4 Época pós-liberal (a partir do fim das Guerras Mundiais do século XX)
Devido a transformações socio-económicas e à incapacidade do mercado para resolver,
só por si, os problemas e satisfazer as necessidades decorrentes das crises económicas
(Grande Depressão de 1928-1930) e da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, o Estado
de Direito liberal deu lugar na época pós-liberal ao Estado Social como Estado de
Serviço Público que se caracteriza pela intervenção estadual na vida económica e social
e pelo desenvolvimento de, para além de uma Administração estadual de autoridade,
uma Administração fornecedora de prestações sociais nas áreas da segurança social e
trabalho, da saúde, da educação e da cultura aos cidadãos e uma Administração de
exploração de bens e gestão pública de empresas. Mais recentemente, a transição do
século XX para o século XXI levou a que se verificasse uma alteração profunda no
paradigma, deixando o Estado de ser um Estado de Serviço Público e se transformando
num Estado Regulador e Garantidor que deixa de intervir na vida económica e social
para passar a regular e a garantir que o mercado funcione sem falhas e que as regras da
concorrência e os direitos do consumidor sejam tidos em conta.

3. A função administrativa no contexto das funções estaduais


Dando uma vista de olhos na Constituição, verifica-se que o Governo tem competência
política (197º CRP), competência legislativa (198º CRP) e competência administrativa
(199º CRP). Todas estas funções, às quais acresce a função jurisdicional, devem ser
distinguidas de forma a que não surja qualquer tipo de confusão.
3.1 Função política
A função política consiste na prática de atos pelos órgãos constitucionais, cuja
competência e cujos limites estejam definidos na Constituição, que exprimem opções
fundamentais sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da coletividade.
Distinção entre a função política e a função administrativa:
Uma vez que tanto a função política como a função administrativa se situam no
âmbito do poder executivo, é por vezes difícil distingui-las uma da outra.
Tradicionalmente, a distinção encontra-se no caráter primário da função política que
se desenvolve em aplicação direta da Constituição, enquanto que a função
administrativa tem um caráter secundário, desenvolvendo-se a partir da lei ordinária.
Em termos práticos, enquanto que as decisões políticas não impugnáveis perante os
tribunais, as decisões administrativas são passíveis de impugnação judicial.
3.2 Função legislativa
Tradicionalmente, a função legislativa consistia na prática de normas jurídicas gerais e
abstratas pelo Parlamento que definiam as opções fundamentais da comunidade política
e que ocupavam um lugar de primazia em relação às normas administrativas.
Distinção entre a função legislativa e a função administrativa:
Em termos do artigo 198º CRP, o Governo aparece ao lado do Parlamento enquanto
um órgão com competência legislativa no ordenamento jurídico português. Daí que
se deva distinguir claramente a função legislativa e a função administrativa.
Enquanto que aquela apresenta tipicamente características de generalidade e
abstração, esta caracteriza-se pelo seu caráter individual e concreto. Além disso, a
função legislativa tem na sua base uma ideia de primariedade, tendo que ser
desenvolvida em aplicação direta da Constituição, enquanto que a função
administrativa é desenvolvida a partir da lei ordinária, o que, por sua vez, permite
distinguir o que pode e o que não pode ser matéria de lei e de regulamento.
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3.3 Função jurisdicional
A função jurisdicional consiste na prática de atos tendentes à resolução de questões de
Direito e à realização do Direito e da Justiça segundo determinados critérios jurídicos.
Distinção entre a função jurisdicional e a função administrativa:
Enquanto que a função jurisdicional tem como objetivo a resolução de questões de
Direito por um órgão imparcial e a realização do Direito e da Justiça, a função
administrativa tem como objetivo a prossecução e a realização do interesse público.
Em termos práticos, as decisões administrativas são impugnáveis perante os tribunais
quando em causa esteja o interesse público ou os direitos dos particulares. Contudo,
se os particulares não impugnarem tais decisões dentro do prazo para o efeito
estipulado, as decisões administrativas estabilizam-se no ordenamento jurídico, tendo
força de caso decidido administrativo. Já as decisões judiciais não são passíveis de
impugnação judicial quando em causa esteja o interesse público ou os direitos dos
particulares. Sendo assim, esgotadas todas as vias de recurso, as decisões judiciais
têm força de caso julgado judicial. Para além disso, enquanto que a função
jurisdicional é jurídico-formalmente exercida através de sentenças e acórdãos, a
função administrativa é jurídico-formalmente exercida através de atos
administrativos, regulamentos administrativos e contratos administrativos.
3.4 Função administrativa
A função administrativa consiste na prática de atos de gestão de recursos financeiros
escassos (Administração em sentido material-funcional) desenvolvidos pela
Administração Pública (Administração Pública em sentido organizatório) através de
atos, regulamentos e contratos administrativos (Administração Pública em sentido
jurídico-formal), tendo como objetivo a prossecução e a realização do interesse público
pré-definido pela função político-legislativa (266º, n. 1 CRP e 269º, n. 1 CRP), sendo
tal realizável através do exercício de poderes públicos de autoridade (poder de emitir
comandos, executáveis pela força contra aqueles a quem se dirigem) que permitem
sobrepor o interesse público ao interesse privado e assegurar, de forma unilateral
(autotutela declarativa), a realização do interesse público, independentemente do
consentimento dos particulares (autotutela executiva). Na prossecução e realização do
interesse público, a Administração Pública tem que proteger e respeitar os direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos (4º CPA).

4. A Administração e o Direito Público


4.1 Função administrativa, Administração Pública e Direito Administrativo
O Direito Administrativo estabelece as condições de legitimidade da atividade
desenvolvida pela Administração Pública no desempenho da função administrativa,
ou seja, da prática de atos de gestão de recursos financeiros escassos através de atos,
regulamentos e contratos administrativos, tendo como objetivo a prossecução e a
realização do interesse público pré-definido pela função político-legislativa, sendo tal
realizável através do exercício de poderes públicos de autoridade.
4.2 A vinculação jurídica da Administração no Estado de Direito liberal
Na época liberal, a Administração estava limitada pelo princípio da legalidade
administrativa que se concretizava nos seguintes subprincípios:
Princípio do primado da lei: De acordo com o princípio do primado da lei, a atividade
administrativa tinha que respeitar estritamente a lei, sob pena de invalidade.

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Princípio da reserva de lei: De acordo com o princípio da reserva de lei, a lei tinha
respeitar as seguintes três reservas:
-» Reserva orgânico-formal: Só o Parlamento podia fazer leis.
-» Reserva funcional: O exercício da função legislativa cabe apenas ao Parlamento.
-» Reserva material: A lei identificava-se com a norma jurídica que era criada pelo
Parlamento através do exercício da função legislativa e que só podia intervir nos
domínios da liberdade e da propriedade dos cidadãos.
Princípio da discricionaridade livre: De acordo com o princípio da discricionaridade
livre, a Administração, por não estar vinculada à lei, podia regular livremente o
conteúdo das decisões incidentes sobre todos os domínios, exceto sobre os domínios da
liberdade e da propriedade dos cidadãos, sujeitos ao princípio da reserva material de lei.
Tal era reforçado por uma cláusula geral de polícia que conferia à Administração o
poder de intervir em todos os domínios da vida económica e social sempre que assim o
exigisse a prossecução do interesse social ou a manutenção da ordem pública.
Princípio da presunção da legalidade: De acordo com o princípio da presunção da
legalidade, a atividade administrativa presumia-se conforme à lei, tendo os particulares
o ónus de afastar essa presunção. Os órgãos da Administração dispunham de:
-» Autotutela declarativa: A Administração tinha o poder de assegurar, de forma
unilateral, a realização do interesse público.
-» Autotutela executiva: A Administração tinha o poder de assegurar a realização
do interesse público, independentemente do consentimento dos particulares.
Princípio do controlo jurisdicional limitado: De acordo com o princípio do controlo
jurisdicional limitado, o controlo da validade dos atos administrativos competia a órgãos
superiores da própria Administração. Quando a justiça administrativa passou a operar
através dos tribunais, estes dispunham apenas de poderes de anulação dos atos
administrativos, mas não de condenação da prática ou da abstenção dos atos referidos.
4.3 A vinculação jurídica da Administração no Estado Social
Como já foi mencionado, devido às transformações socio-económicas e à incapacidade
do mercado para resolver, só por si, os problemas e satisfazer as necessidades
decorrentes das crises económicas e das Guerras Mundiais, o Estado de Direito liberal
deu lugar na época pós-liberal ao Estado Social que se caracterizava por exigir uma
intervenção em todos os domínios da vida económica e social. Com este alargamento da
atuação do Estado, evoluiu-se do princípio da legalidade administrativa para o
princípio da juridicidade que se concretizava nos seguintes subprincípios:
Princípio do primado da lei: De acordo com o princípio do primado da lei, a atividade
administrativa continuou a ter que respeitar estritamente a lei, sob pena de invalidade.
Princípio da precedência da lei: De acordo com o princípio da precedência da lei, a lei
passou a ser fundamento e pressuposto de toda a atividade administrativa, seja no
domínio da administração de autoridade, seja no domínio da prestação de serviços
públicos, seja no domínio da regulação e garantia. Esta lei tem, no mínimo, que
determinar previamente o fim (interesses públicos a prosseguir) e a competência (órgãos
competentes para prosseguir o fim). Sendo assim, a tripla reserva do princípio da
reserva de lei desfez-se:
-» A partir de agora, além do Parlamento, também o Governo pode fazer leis.
-» A partir de agora, além do Parlamento, também ao Governo cabe o exercício da
função legislativa.
-» A partir de agora, a lei deixa de se identificar com a norma jurídica para passar a
ser entendida como ato legislativo, englobando a lei e o decreto-lei.
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Princípio da determinidade de conteúdo: De acordo com o princípio da determinidade
de conteúdo, nas matérias de reserva legislativa parlamentar exige-se uma densidade
legal acrescida e, portanto, uma vinculação mais intensa da atividade administrativa à
lei.
Princípio da discricionaridade condicionada: De acordo com o princípio da
discricionaridade condicionada, a Administração só dispunha de poderes discricionários
para regular o conteúdo das suas decisões se existisse uma concessão por via legislativa,
estando o respetivo exercício subordinado ao Direito. Do princípio da discricionaridade
livre passa-se, então, para o principio da discricionaridade condicionada.
Princípio da imperatividade atenuada: De acordo com o princípio da imperatividade
atenuada, a Administração tem o dever de fundamentar as suas decisões com base na
lei. Para além disso, preservou-se a autotutela declarativa, continuando a
Administração a ter o poder de assegurar, de forma unilateral, a realização do interesse
público, e limitou-se a autotutela executiva, ou seja, o poder da Administração de
assegurar a realização do interesse público, independentemente do consentimento dos
particulares. Do princípio da presunção da legalidade passa-se, então, para o princípio
da imperatividade atenuada.
Princípio da tutela judicial plena e efetiva: De acordo com o princípio da tutela judicial
plena e efetiva, tanto o controlo da legalidade como o controlo da juridicidade dos atos
administrativos passou a competir ao poder judicial, dotado de poderes de plena
jurisdição (apreciação, anulação e condenação). Do princípio do controlo jurisdicional
limitado passou-se, então, para o princípio da tutela judicial plena e efetiva.
Nota:
O princípio da juridicidade concretiza-se nos seguintes princípios jurídicos
fundamentais que regem a atividade administrativa e que estão previstos no artigo
266º, n. 1 e 2 CRP e nos artigos 3º a 19º CPA: Princípio da legalidade, da
prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos,
da boa administração, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da
razoabilidade, da imparcialidade, da boa-fé, da colaboração com os particulares, da
participação, da decisão, da gratuitidade, da responsabilidade, da administração
aberta, da proteção dos dados pessoais, da cooperação leal com a União Europeia.
4.4 A discricionaridade administrativa
Nos quadros do princípio da legalidade administrativa, em todos os atos administrativos
havia momentos vinculados à lei e momentos discricionários, de modo que onde
houvesse vinculações legais, não havia discricionaridade e vice-versa. No entanto, a
realidade é hoje mais complexa, na medida em que, por um lado, a discricionaridade já
não é livre, exigindo-se que, por um lado, os poderes discricionários sejam concedidos à
Administração por via legislativa e, por outro lado, a definição abstrata dos pressupostos
legais se faz muitas vezes através de conceitos imprecisos.
Exemplo de uma decisão administrativa vinculada:
“O órgão administrativo competente, no ano de 2020, concede isenção fiscal de 30%
sobre os rendimentos declarados às empresas que demonstrem ter contratado, no mesmo
ano, pelo menos 5 jovens entre os 20 e os 30 anos, por contrato de trabalho por tempo
indeterminado.”
Exemplo de uma decisão administrativa adotada ao abrigo de poderes
discricionários:
“O órgão administrativo competente poderá conceder a mesma isenção fiscal às

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empresas que tenham contribuído significativamente para o desenvolvimento
económico e social local ou regional, designadamente através da empregabilidade de
jovens entre os 20 e 30 anos de idade.”
Existência de discricionaridade administrativa
A doutrina sempre foi unânime quanto à existência de discricionaridade administrativa
nos seguintes casos:
- Discricionaridade de decisão: Existe discricionaridade administrativa quando a
norma habilitante da prática de um ato administrativo confere ao órgão competente a
faculdade de determinar o conteúdo das medidas a tomar através do conceito deôntico
permissivo “pode” na sua estatuição.
- Discricionaridade de escolha: Existe discricionaridade administrativa quando a
norma habilitante da prática de um ato administrativo confere ao órgão competente a
possibilidade de escolher entre as medidas alternativas determinadas na lei através do
conceito deôntico permissivo “pode” na sua estatuição.
No entanto, dúvidas existiram quanto à questão de saber se a Administração disporia de
poderes discricionários em situações em que a lei utilizava, na sua hipótese legal,
conceitos indeterminados (discricionaridade de avaliação). Relativamente a este
problema, surgiram duas ordens de teorias extremadas:
- Teorias do controlo total: De acordo com as teorias do controlo total, quando a lei
utilizasse conceitos indeterminados, não pretenderia atribuir poderes discricionários à
Administração. Queria isto dizer que o juiz podia fazer um controlo (reexame) total das
decisões administrativas.
- Teorias da discricionaridade: De acordo com as teorias da discricionaridade, quando a
lei utilizasse conceitos indeterminados, pretenderia atribuir poderes discricionários à
Administração. Queria isto dizer que o juiz, em princípio, não podia fazer um controlo
(reexame) total das decisões administrativas.
 Estas duas teorias extremadas começaram a aproximar-se, edificando-se numa
posição moderada de acordo com a qual se passou a considerar o seguinte: Quando a lei
utilizasse determinados conceitos indeterminados, pretenderia atribuir poderes
discricionários à Administração, cujas decisões administrativas não seriam suscetíveis
de um controlo (reexame) total por parte do juiz.
Classificação de “conceitos indeterminados”
Tendo em conta aquilo que foi supramencionado, torna-se imperativo saber que tipo de
conceitos indeterminados utilizados na lei são capazes de atribuir à Administração
poderes discricionários, sendo de distinguir os seguintes conceitos:
1. Conceitos classificatórios
Os conceitos classificatórios são conceitos aparentemente indeterminados, uma vez que
podem ser determinados por via hermenêutica.
- Conceitos que remetem para juízos de experiência comum
-» Exemplo: “em situação de manifesta urgência”
- Conceitos que remetem juízos de uso de certo tempo e lugar
-» Exemplo: “dia” ou “noite”, “obras de elevado nível tecnológico”
- Conceitos que remetem para institutos e valores jurídicos
-» Exemplo: “propriedade”, “família”
- Conceitos que gozam do consenso na comunidade científica
-» Exemplo: “substância tóxica”
 Os conceitos classificatórios não atribuem poderes discricionários à Administração,
cujas decisões são suscetíveis de um controlo (reexame) total por parte do juiz.

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2. Conceitos subjetivos
Os conceitos subjetivos são conceitos aparentemente indeterminados.
-» Exemplo: “abastecimento adequado dos mercados”, “ordem pública”,
“conveniência de serviço”, “circunstâncias excecionais e urgentes de interesse público”
 Os conceitos subjetivos não atribuem poderes discricionários à Administração, cujas
decisões são suscetíveis de um controlo (reexame) total por parte do juiz.
3. Conceitos imprecisos de “tipo”
Os conceitos imprecisos de “tipo” são verdadeiros conceitos indeterminados.
- Conceitos de valor que remetem para juízos sobre disposições e aptidões pessoais
-» Exemplo: “ jurista de reconhecido mérito”
- Conceitos de valor que remetem para juízos sobre avaliações técnicas especializadas
-» Exemplo: “solo de manifesta aptidão agrícola”
- Decisões que implicam elementos determinantes de prognose
-» Exemplo: “prédios que ameaçam ruína podem ser objeto de demolição”, “risco
para o ambiente”
- Decisões estratégicas ou técnicas que implicam a ponderação de interesses complexos
-» Exemplo: escolha da localização para a construção do aeroporto do Montijo
- Decisões com consequências políticas
-» Exemplo: receção de uma personalidade de relevo internacional polémica
- Decisões estruturais de caráter organizativo
-» Exemplo: encerramento de serviços públicos (escolas, centros de saúde, etc.)
 Os conceitos imprecisos de “tipo” atribuem poderes discricionários à Administração,
cujas decisões não são suscetíveis de um controlo (reexame) total por parte do juiz.
Conceito de “discricionaridade administrativa”
A discricionaridade administrativa é…
1) … um espaço de avaliação (utilização de conceitos imprecisos de “tipo”)
2) … um espaço de decisão (utilização do conceito deôntico permissivo “pode”)
3) … ou um espaço de escolha (escolha entre medidas alternativas)
4) … próprio da responsabilidade da Administração (a Administração é responsável
pela prossecução do interesse público e pelas consequências decorrentes do exercício da
função administrativa)
5) … que resulta de uma indeterminação conceptual ou estrutural da lei (a existência de
uma situação de indeterminação concessora de discricionaridade resulta da interpretação
das leis habilitadoras)
6) … e que é sujeita a um controlo atenuado por parte dos tribunais:
-» O juiz pode e deve fazer um controlo (reexame) total das decisões administrativas
vinculadas à lei.
-» O juiz só pode fazer um controlo atenuado das decisões administrativas adotadas
ao abrigo de poderes discricionários, não podendo substituir o critério da Administração
pelo seu critério, uma vez que existe uma proibição da dupla administração quanto
ao mérito, tendo o juiz que respeitar o espaço de valoração próprio da Administração,
i.e., o mérito das decisões administrativas que são da sua responsabilidade. Contudo, o
juiz pode sim fazer um controlo (reexame) total das decisões administrativas adotadas
ao abrigo de poderes discricionários quando em causa estejam situações-limite pré-
definidas em lei ou situações de urgência (redução da discricionaridade a 0). Quando
tal não seja o caso, o juiz pode proceder à mera fiscalização de tais decisões
administrativas, controlando juridicamente os eventuais vícios do exercício de poderes
discricionários:

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1. Competência do órgão: O órgão administrativo que adota um ato administrativo
com poderes discricionários não é competente para o efeito.
2. Fim de interesse público: O fim que está a ser prosseguido não é um fim
qualificável como de interesse público.
3. Falta de fundamentação das decisões administrativas: Constata-se a ausência de
fundamentação da decisão administrativa adotada pelo órgão administrativo.
4. Desvio de poder: A Administração usou das competências que o legislador lhe
atribuiu para prosseguir um fim diferente daquele para o qual tais poderes lhe foram
atribuídos.
-» Exemplo: Ao Hospital X foram-lhe conferidas verbas para adquirir lotes de
vacinas da Moderna, da Pfizer, da Johnson e da Moderna. Contudo, como os
proprietários da Pfizer prometiam uma recompensa caso o Hospital adquirisse única e
exclusivamente vacinas da Pfizer, o Hospital cede à pressão.
5. Erro de facto: A Administração parte de uma representação da realidade que não
corresponde à realidade de facto.
-» Exemplo: Ao Hospital X foram-lhe conferidas verbas para adquirir lotes de
vacinas da Moderna, da Pfizer, da Johnson e da Moderna, mas decide-se pela
CoronaVac que não foi medicamente nem laboratorialmente testada.
6. Erro manifesto de apreciação: A Administração viola o princípio da racionalidade,
uma vez que aplica uma determinada norma a uma determinada situação mas essa
situação em causa não se enquadra na norma.
-» Exemplo: O legislador decide que devem ser compradas lotes de vacinas em
função das necessidades das populações e da sua aplicação às respetivas fachas etárias.
A facha etária maior é a dos +60 que não podem tomar Johnson. Contudo, a
Administração decide comprar Johnson, excedendo as necessidades da facha etária às
quais podem ser aplicadas.
Nota:
O erro de apreciação tem que ser manifesto, ou seja, não pode deixar quaisquer
dúvidas ao juiz. Sendo assim, o erro de apreciação não pode ser somente evidente!
7. Violação dos princípios gerais da atividade administrativa: A Administração viola
os princípios jurídicos fundamentais que regem a atividade administrativa e que se
encontram consagrados no artigo 266º, n. 1 e 2 CRP e nos artigos 3º a 19º CPA.
- Princípio da igualdade (ex. A Administração adquire lotes de vacinas da Pfizer, da
Moderna e da Johnson, mas as vacinas da AstraZeneca também têm um indício de
eficácia elevado, não se justificando a sua não-aquisição.)
- Princípio da proporcionalidade (ex. Um aluno copia num exame. As medidas
disciplinares podem ser a anulação do exame ou a suspensão do aluno. O professor,
enervado, expulsa-o da sala.)
Nota:
O princípio da proporcionalidade difere do erro manifesto de apreciação na medida
em que a situação enquadra-se na norma mas é desadequada.

Resolução de casos práticos:


1. Atribuem as normas poderes discricionários à Administração?
2. Quais os vícios apontados ao exercício dos poderes discricionários?
3. Em que medida o exercício dos poderes discricionários é passível de ser controlado
pelos tribunais?
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5. Casos práticos
Caso prático:
A Lei da Concorrência proíbe determinadas práticas anti-concorrenciais. A Autoridade
da Concorrência, confrontada com denúncias de outros concorrentes, pode fazer uma de
duas coisas:
- Suspender a atividade anti-concorrencial enquanto não se decide/investiga
- Proibir a atividade anti-concorrencial e aplicar sanções
As empresas A e B estabeleceram um acordo quanto a fixação do preço dos
combustíveis. A empresa C denunciou o acordo. Em face disso, a Autoridade da
Concorrência veio suspender o acordo ao abrigo do disposto no artigo 34º da Lei da
Concorrência que diz: “Sempre que as investigações realizadas indiciem que a prática
que é objeto do processo está na iminência de provocar prejuízo grave, irreparável ou de
difícil reparação para a concorrência, pode a Autoridade da Concorrência em qualquer
momento do processo ordenar preventivamente a imediata suspensão da referida prática
restritiva ou quaisquer outras medidas provisórias, necessárias à imediata reposição da
concorrência ou indispensáveis ao efeito útil da decisão a proferir no termo do
processo.” Concluída a investigação, a Autoridade da Concorrência em face do
compromisso assumido pelas empresas A e B de que não subiriam os preços acima de
um determinado limite, a Autoridade da Concorrência arquivou o processo com base no
artigo 23º da Lei da Concorrência que diz: “A Autoridade da Concorrência pode aceitar
compromissos propostos pelos visados que sejam suscetíveis de eliminar os efeitos
sobre a concorrência decorrentes das práticas em causa, arquivando o processo mediante
a imposição de condições destinadas a cumprir os compromissos propostos.” Mais disse
a Autoridade da Concorrência, ao abrigo do artigo 72º da Lei da Concorrência, que caso
as empresas não cumprissem os compromissos que se tinham obrigado a cumprir,
estavam sujeitas à aplicação de uma sanção pecuniária compulsória fixada no valor de
5% do respetivo volume de negócios. Esta medida foi aplicada ao abrigo do artigo
mencionado que diz: “A Autoridade da Concorrência pode decidir quando tal se
justifique aplicar uma sanção pecuniária compulsória no montante não superior a 5%
da média diária do volume de negócios sempre que não haja acatamento das medidas
pela mesma determinadas.” Responda à seguinte questão: Atribuem as normas em causa
poderes discricionários à Autoridade da Concorrência?
Resolução:
Primeira norma (34º da LC):
-» Discricionaridade de decisão: A norma que utiliza o conceito deôntico permissivo
“pode” como elemento de ligação entre a sua previsão e estatuição confere uma
faculdade de ação à Administração.
-» Discricionaridade de decisão e escolha: A norma aponta uma medida (“suspensão”) e
não identifica as outras eventuais medidas em alternativa (“ou outras medidas
provisórias”), o que permite à Administração definir o conteúdo das mesmas, sendo o
leque de escolhas ilimitado.
-» Utilização de conceitos imprecisos “de tipo” com elementos determinantes de
prognose: A Administração tem que formular uma decisão que terá
consequências/impactos no futuro (“se houver a iminência…”)
-» Discricionaridade (quanto ao se) e quanto ao momento adequado (ane): A
Administração pode tomar a decisão administrativa “em qualquer momento” do
processo, quando o considere adequado.
-» Conceitos que remetem para juízos sobre avaliações técnicas especializadas: A
“reposição da concorrência” implica uma avaliação técnica especializada que só a
Administração está em condições para levar a cabo.
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Segunda norma (23º da LC):
Discricionaridade de decisão: A norma que utiliza o conceito deôntico permissivo
“pode” como elemento de ligação entre a sua previsão e estatuição confere uma
faculdade de ação à Administração.
-» Discricionaridade de decisão: A Administração pode definir o conteúdo das
condições que poderão impor (“imposição de condições destinadas…”).
-» Conceitos que remetem para juízos sobre avaliações técnicas especializadas e
utilização de conceitos imprecisos “de tipo” com elementos determinantes de prognose:
A Administração pode avaliar se os “compromissos [são] adequados para eliminar os
efeitos negativos sobre a “concorrência””, tendo capacidades técnicas para levar a cabo
essa tarefa e avaliar que impactos ou consequências a decisão administrativa terá no
futuro.
Terceira norma (72º da LC):
-» Discricionaridade de decisão: A norma que utiliza o conceito deôntico permissivo
“pode” como elemento de ligação entre a sua previsão e estatuição confere uma
faculdade de ação à Administração.
-» Discricionaridade de escolha: A Administração pode fixar o montante que entender
desde que “não [seja] superior a 5%”.
-» O elemento da norma “quando tal se justifique” não confere poderes discricionários
à Administração, uma vez que esta terá de aplicar a sanção quando tal se justifique, não
tenho tal qualquer tipo de implicações no que respeita ao momento da aplicação da
mesma.
Suponha agora que as empresas A e B vêm dizer o seguinte:
1) Não celebraram qualquer acordo em matéria de preços de combustíveis. Esse acordo
foi sim celebrado entre as empresas A e C.
2) O acordo celebrado aponta para a prática de preços que são os preços normais do
mercado e por isso não entendem em que medida tal pode configurar uma prática
restritiva da concorrência.
3) Não se justifica a suspensão do acordo na medida em que daí não resulta qualquer
prejuízo grave e irreparável para a concorrência. Bastaria, por isso, que se diferisse a
sua aplicação pelo prazo de 3 meses.
4) A medida é aplicada às empresas A e B e não a outras empresas com práticas
idênticas no mercado apenas porquanto um dos atuais membros do Conselho da
Administração da Autoridade da Concorrência que era trabalhador da empresa A foi
despedido da mesma.
Partindo do pressuposto que estes argumentos são procedentes, identifique quais são os
vícios apontados ao exercício de poderes discricionários pela Autoridade da
Concorrência.
Resolução:
- Primeiro vício: Erro de facto porque a Autoridade da Concorrência atua no
pressuposto que havia um acordo de fixação de preços que foi celebrado entre as
empresas A e B, quando na realidade foi celebrado entre as empresas A e C.
- Segundo vício: Erro manifesto da apreciação porque o acordo que levou à medida
provisória não se enquadra na previsão normativa, uma vez que não consiste numa
prática que esteja na iminência de provocar prejuízo grave, irreparável ou de difícil
reparação para a concorrência.
- Terceiro vício: Violação do princípio da proporcionalidade porque, ainda que
pertença ao leque de escolhas, não se justificava a suspensão imediata dos efeitos do
acordo. Bastava um simples diferimento.

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- Quarto vício: Desvio de poder porque o trabalhador da Autoridade da Concorrência
exerceu os poderes que lhe foram conferidos pela lei e aplicou sanções à empresa A,
não para prosseguir o interesse público (concorrência no mercado), mas sim porque se
queria vingar da mesma por o ter despedido, ou seja, para prosseguir um interesse
privado. Violação do princípio da igualdade porque o administrador não foi imparcial
ao aplicar uma sanção às empresas com práticas idênticas àquelas a quem foram
aplicadas sanções.
Imagine-se que a empresa D vem dizer que a sanção aplicada não se justifica e que
bastaria uma sanção de 1%.
- Vício: Violação do princípio da proporcionalidade porque se justificava que a sanção
fosse menor do que aquela que a Administração aplicou.
Suponha agora que a empresa D vem dizer que o processo nunca poderia ter sido
arquivado, deveria ter seguido e deveria ter sido aplicado uma coima à entidade. Para
além da coima, deveria ter sido determinado o encerramento definitivo da atividade das
empresas acompanhado por uma sanção pecuniária compulsória. Em face disto, a
empresa D vai pedir ao tribunal que não só aprecie a sua pretensão mas que encerre as
empresas e aplique uma coima e uma sanção pecuniária compulsória.
Resolução:
Neste caso, o juiz só pode fazer um controlo atenuado das decisões administrativas
adotadas ao abrigo de poderes discricionários, não podendo substituir o critério da
Administração pelo seu critério, uma vez que existe uma proibição da dupla
administração quanto ao mérito, tendo o juiz que respeitar o espaço de valoração
próprio da Administração, i.e., o mérito das decisões administrativas que são da sua
responsabilidade. Contudo, o juiz pode sim fazer um controlo (reexame) total das
decisões administrativas adotadas ao abrigo de poderes discricionários quando em causa
estejam situações-limite pré-definidas em lei ou situações de urgência (redução da
discricionaridade a 0). Quando tal não seja o caso, o juiz pode proceder à mera
fiscalização de tais decisões administrativas.

7. A Administração e o Direito Privado


7.1 Capacidade civil dos entes públicos
De acordo com o artigo 160º CC, os entes públicos, enquanto pessoas coletivas de
Direito Público, dispõem, ao lado das pessoas singulares, de capacidade civil. Ao abrigo
desta capacidade, podem, sempre que as leis lhes permitir, instituir entidades com forma
jurídico-privada (ex. empresas/sociedades comerciais, cooperativas ou associações de
Direito Civil) e celebrar contratos regidos pelo Direito Civil (ex. contrato de compra e
venda de bens imóveis, de fornecimento de serviços públicos (água, transporte, etc.)),
estando sujeitos aos princípios gerais de Direito Administrativo e vinculados ao
cumprimento dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
7.2 Dimensões atuais da privatização administrativa
São diversas as dimensões da privatização da Administração Pública:
Privatização substancial:
A privatização substancial verifica-se quando uma tarefa antes atribuída ao setor
público/estadual deixa de ser substancialmente pública e passa a ser substancialmente
privada. Depois da privatização, o Estado assume o papel de regulador, assegurando
através de agências independentes, a concorrência do mercado e a garantia dos direitos
dos cidadãos (ex. telecomunicações, produção e comercialização da energia elétrica).

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Privatização formal:
A privatização formal verifica-se quando a organização ou a gestão administrativas
antes atribuídas ao setor público/estadual deixam de ser públicas e passam a ser
privadas. Quando se privatiza a organização, há lugar à criação de pessoas coletivas
privadas “de mão pública” ou entidades administrativas privadas (ex. sociedades
anónimas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos (EP – Estradas de
Portugal)). Quando se privatiza a gestão, há lugar a uma empresarialização das pessoas
coletivas públicas (ex. entidades públicas empresariais (CP – Comboios de Portugal)).
Privatização funcional:
A privatização funcional verifica-se quando a responsabilidade pelo exercício da
tarefa antes atribuída ao setor público/estadual deixa de ser pública e passa a ser
privada através de uma concessão ou delegação, sob orientação ou fiscalização pública.
No âmbito dos casos de privatização funcional, a doutrina distingue entre:
- Privatização orgânica formal: Existe privatização orgânica formal, quando o ente
privado que vai desempenhar a tarefa pública é uma entidade administrativa privada.
- Privatização orgânica material: Existe privatização orgânica material, quando a tarefa
pública é desempenhada por verdadeiros privados.

8. Organização da Administração Pública Portuguesa


Em termos organizatórios, a Administração Pública é constituída por pessoas coletivas
públicas que se manifestam através de órgãos administrativos que atuam através dos
respetivos titulares.
8.1 Sistemas de organização da Administração Pública
8.1.1. Desconcentração
A desconcentração consiste numa técnica de organização administrativa através da qual
se transferem competências (conjunto dos poderes legalmente atribuídos a um órgão
administrativo) de um órgão para um outro órgão da mesma pessoa coletiva de Direito
Público.
-» Exemplo: Na Universidade, o Reitor pode proceder à desconcentração das suas
competências no Administrador da mesma Universidade.
8.1.2 Classificações de desconcentração
Existem várias classificações de desconcentração:
Desconcentração vertical e horizontal
- A desconcentração vertical consiste numa técnica de organização administrativa
através da qual se transferem competências de um órgão hierarquicamente superior para
um outro órgão que ocupa uma posição hierarquicamente inferior na mesma pessoa
coletiva.
-» Exemplo: Desconcentração de competências do Ministro para o Diretor-Geral
- A desconcentração horizontal consiste numa técnica de organização administrativa
através da qual se transferem competências de um órgão para um outro órgão que ocupa
uma posição de paridade na mesma pessoa coletiva.
-» Exemplo: Desconcentração de competências da Assembleia Municipal para a
Câmara Municipal
Desconcentração originária e derivada
- A desconcentração originária consiste numa técnica de organização administrativa
através da qual se transferem competências de um órgão para um outro órgão da mesma
pessoa coletiva, efetuada diretamente pelas leis de organização administrativa.
- A desconcentração derivada consiste numa técnica de organização administrativa

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através da qual se transferem competências de um órgão para um outro órgão da mesma
pessoa coletiva, efetuada através de um ato de delegação de poderes com fundamento na
lei (ex. 44º, n. 1 CPA).
Desconcentração territorial e funcional
- A desconcentração territorial consiste numa técnica de organização administrativa
através da qual se transferem competências de um órgão para um outro órgão periférico
da mesma pessoa coletiva.
-» Exemplo: Desconcentração de competências de um órgão central do Governo para
um Diretor-Regional da zona centro do País
- A desconcentração funcional consiste numa técnica de organização administrativa
através da qual se transferem competências de um órgão para um outro órgão da mesma
pessoa coletiva que não implica qualquer desconcentração territorial de competências.
-» Exemplo: Desconcentração de competências de um Ministro para um Diretor-
Geral
Desconcentração personalizada
- A desconcentração personalizada consiste numa técnica de organização
administrativa através da qual o Estado-Administração transfere atribuições (conjunto
de interesses públicos postos por lei a cargo de uma determinada pessoa coletiva
pública) suas para outras pessoas coletivas por si instituídas.
-» Exemplo: O Governo, através do Ministério da Segurança Social, pode transferir
atribuições suas para o Instituto da Segurança Social, I.P.
8.1.3 Descentralização
A descentralização consiste numa técnica de organização administrativa através da qual
se transferem atribuições (conjunto de interesses públicos postos por lei a cargo de uma
determinada pessoa coletiva pública) de uma entidade administrativa para outra
entidade administrativa, de uma pessoa coletiva pública para outra pessoa coletiva
pública.
-» Exemplo: Descentralização de atribuições do Estado para as Autarquias Locais
8.1.4 Classificações de descentralização
Existe uma classificação de descentralização:
Desconcentração territorial e funcional
- A descentralização territorial consiste numa técnica de organização administrativa
através da qual se transferem atribuições de uma entidade administrativa ou de uma
pessoa coletiva pública para as Autarquias Locais (municípios e freguesias).
- A descentralização funcional consiste numa técnica de organização administrativa
através da qual se transferem atribuições de uma entidade administrativa ou de uma
pessoa coletiva pública para associações públicas.
8.1.5 Princípio da unidade de ação administrativa e centralidade do Governo no
sistema administrativo português
O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da
Administração Pública (182º CRP), competindo-lhe, no exercício de funções
administrativas, dirigir os serviços e a atividade da administração direta do Estado, civil
e militar, superintender na administração indireta e exercer a tutela sobre esta e sobre a
administração autónoma (199º, al. d) CRP). Isto significa que o Governo exerce:
- Poder de direção sobre a Administração Estadual Direta
- Poder de tutela e de superintendência sobre a Administração Estadual Indireta
- Poder de tutela sobre a Administração autónoma (territorial e funcional)

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8.2 Setores da Administração Pública
A Constituição reconhece a existência de vários setores da Administração Pública:
8.2.1 Administrações Estaduais
As Administrações Estaduais visam a satisfação direta de interesses nacionais.
8.2.1.1 Administração Direta
A Administração Direta corresponde à pessoa coletiva pública Estado-Administração
e é constituída pelos órgãos e serviços organizados em Ministérios hierarquicamente
subordinados ao Governo que é o órgão superior da Administração Pública (182º CRP).
O Governo é um órgão formado pelo Primeiro-Ministro, pelos Ministros e pelos
Secretários e Subsecretários de Estado (183º, n. 1 CRP) que, de acordo com o artigo
182º CRP, tem como principal objetivo conduzir a política geral do país. O Governo
decide em formações diversas: Conselho de Ministros, Primeiro-Ministro ou cada um
dos Ministros, isolada ou conjuntamente.
O setor da Administração Direta divide-se em:
- Administração central: A Administração central é constituída pelo Governo
enquanto órgão administrativo e pelos órgãos e serviços centrais que exercem uma
competência extensiva a todo o território nacional.
- Administração periférica: A Administração periférica é constituída pelos órgãos e
serviços periféricos que exercem poderes limitados a uma área territorial restrita ou a
uma circunscrição administrativa delimitada dentro do território nacional (ex. direções-
regionais, centros distritais de segurança social, etc.) e pelos serviços periféricos
externos que exercem poderes fora do território nacional (ex. embaixadas, postos
consulares, etc.).
8.2.1.2 Administração Indireta
O setor da Administração Indireta divide-se em:
- Administração Indireta Dependente do Governo: A Administração Indireta
Dependente do Governo é constituído pelos institutos públicos e pelas entidades
públicas empresariais.
-» Institutos públicos: Os institutos públicos são pessoas coletivas de Direito Público,
de substrato institucional, criadas pelo Governo para a realização de fins do Estado e
que os prosseguem, em nome próprio, mas sob a superintendência e tutela do Governo.
-» Entidades públicas empresariais: As entidades públicas empresariais são pessoas
coletivas de Direito Público e de regime privado que dispõem, em regra, de poderes
públicos de autoridade e estão submetidas a superintendência e tutela mais ou menos
intensa do Governo.
- Administração Indireta Independente do Governo: A Administração Indireta
Independente do Governo é constituído pelas entidades reguladoras independentes,
previstas no artigo 267º, n. 3 CRP.
-» Entidades reguladoras independentes: As entidades reguladoras independentes são
entidades encarregadas de supervisionar e regular a atividade económica dos
prestadores de serviços de interesse geral, ou seja, dos setores privado, público,
cooperativo e social, não estando submetidas a superintendência e a tutela do Governo.
8.2.1.3 Autoridades administrativas independentes
As autoridades administrativas independentes são autoridades ligadas ao Parlamento,
com poderes predominantes de fiscalização da legalidade administrativa e de garantia
dos direitos dos cidadãos (ex. Provedor de Justiça, Comissão Nacional de Eleições,
etc.).

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8.2.2 Administrações autónomas
A Administração autónoma divide-se em:
- Administração autónoma territorial: A Administração autónoma territorial é
constituída pelas pessoas coletivas públicas que prosseguem interesses próprios das
respetivas populações.
-» Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores: Em termos do artigo 236º, n. 2
CRP, as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira compreendem freguesias e
municípios.
-» Autarquias Locais (235º a 254º CRP): As Autarquias Locais são pessoas coletivas
territoriais dotadas de órgãos representativos que visam a prossecução de interesses
próprios das populações respetivas (235º, n. 2 CRP). As atribuições e a organização das
Autarquias Locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei
(Lei n. 75/2013, de 12 de Setembro), de harmonia com o princípio da descentralização
administrativa, tendo por base o artigo 237º, n. 1 CRP. Em termos do artigo 236º, n. 1
CRP, no Continente, as Autarquias Locais são as freguesias, os municípios e as
regiões administrativas, sendo que a existência destas últimas depende de criação legal e
de referendo nacional e regional.
Os municípios (249º a 254º CRP)
Os municípios têm como órgãos a Assembleia Municipal, a Câmara Municipal e o
Presidente da Câmara Municipal.
- Atribuições do município: De acordo com o artigo 23º da Lei n. 75/2013, constituem
atribuições dos municípios a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das
respetivas populações, em articulação com as freguesias, designadamente nos seguintes
domínios: equipamento rural e urbano, energia, transportes e comunicações, educação,
ensino e formação profissional; património, cultura e ciência, tempos livres e desporto,
saúde, ação social, habitação, proteção civil, ambiente e saneamento básico, defesa do
consumidor, promoção do desenvolvimento, ordenamento do território e urbanismo,
polícia municipal, cooperação externa.
- Órgãos do município:
-» Assembleia Municipal: A Assembleia Municipal é o órgão deliberativo do
município e é constituída por membros eleitos diretamente em número superior ao dos
Presidentes de Junta de Freguesia, que a integram (250 e 251º CRP). A Assembleia é
eleita por sufrágio universal, direto e secreto dos cidadãos recenseados na área da
respetiva autarquia, segundo o sistema da representação proporcional (239º, n. 2 CRP).
-» Câmara Municipal: A Câmara Municipal é o órgão executivo colegial do
município constituído por um número adequado de membros, sendo designado
Presidente o primeiro candidato da lista mais votada para a Assembleia ou para o
executivo, de acordo com a solução adotada na lei, a qual regulará também o processo
eleitoral, os requisitos da sua constituição e destituição e o seu funcionamento (239º, n.
3, 250º e 251º CRP.
-» Presidente da Câmara Municipal: O Presidente da Câmara Municipal é o órgão
executivo do município por dispor de competências próprias que lhe são conferidas pela
Lei n. 75/2013.
- Entidades constituídas ou participadas pelos municípios:
-» Empresas públicas locais: Designam-se empresas públicas locais as sociedades
comerciais sob influência dominante dos municípios.
-» Associações públicas: De acordo com o artigo 253º CRP, os municípios podem
constituir associações e federações para a administração de interesses comuns, às quais
a lei pode conferir atribuições e competências próprias.
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-» Áreas metropolitanas: Existem hoje em dia duas áreas metropolitanas, a de
Lisboa, constituída por 18 municípios, e a do Porto, constituída por 17 municípios.
-» Comunidades intermunicipais: As comunidades intermunicipais são instituídas
por iniciativa dos municípios.
-» Associações de fins específicos: As associações de fins específicos são
constituídas por vontade dos municípios.
As freguesias (244º a 248º CRP)
As freguesias têm como a Assembleia de Freguesia e a Junta de Freguesia.
- Atribuições das freguesias: De acordo com o artigo 7º da Lei n. 75/2013, as
freguesias dispõem de atribuições, designadamente nos seguintes domínios:
equipamento rural e urbano, abastecimento público, educação, cultura, tempos livres e
desporto, cuidados primários de saúde, ação social, proteção civil, ambiente e
salubridade, desenvolvimento, ordenamento urbano e rural, proteção da comunidade.
- Órgãos das freguesias:
-» Assembleia de Freguesia: A Assembleia de Freguesia é o órgão deliberativo das
freguesias (245º CRP). No entanto, de acordo com o artigo 245º, n. 2 CRP, a lei pode
determinar que nas freguesias de população diminuta a assembleia de freguesia seja
substituída pelo plenário dos cidadãos eleitores.
-» Junta de Freguesia: A Junta de Freguesia é o órgão executivo colegial das
freguesias (246º CRP).
- Administração autónoma corporativa: A Administração autónoma funcional é
constituída por associações públicas profissionais.
-» Associações públicas profissionais: As associações públicas profissionais são
pessoas coletivas de Direito Público constituídas por grupos de pessoas que exercem a
mesma profissão ou atividade económica.
- Atribuições das associações públicas profissionais: Nos termos da Lei n. 2/2013, de
10 de Janeiro, as associações públicas profissionais têm, entre outras, as seguintes
atribuições: a representação e a defesa dos interesses gerais da profissão, a regulação do
acesso e do exercício da profissão, a concessão, em exclusivo, dos títulos profissionais
das profissões que representem, a concessão, quando existam, dos títulos de
especialidade profissional, o exercício do poder disciplinar sobre os seus membros, a
participação nos processos oficiais de acreditação e na avaliação dos cursos que dão
acesso à profissão, o reconhecimento de qualificações profissionais obtidas fora do
território nacional, nos termos da lei, do Direito da União Europeia ou de convenção
internacional, etc.
- Órgãos das associações públicas profissionais: As associações públicas profissionais
dispõem obrigatoriamente dos seguintes órgãos: uma assembleia representativa, com
poderes deliberativos, um órgão executivo colegial, um órgão de supervisão e um órgão
de fiscalização da gestão patrimonial e financeira que inclui um revisor oficial de
contas.
8.3 A organização interna das pessoas coletivas de Direito Público
8.3.1 Distinção entre pessoa coletiva pública e órgãos administrativos
- Pessoa coletiva pública: A pessoa coletiva pública é um sujeito de Direito (titular de
personalidade e capacidade jurídica) que prossegue um conjunto de atribuições
(conjunto de interesses públicos postos por lei a cargo de uma determinada pessoa
coletiva pública).
- Órgãos administrativos: Os órgãos administrativos são estruturas subjetivas através

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das quais as pessoas coletivas públicas manifestam a sua vontade e desenvolvem a sua
ação.

8.3.2 Noção de órgão administrativo no CPA e confronto com outras figuras


De acordo com o artigo 20º, n. 1 CPA, são órgãos da Administração Pública os centros
institucionalizados titulares de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos
imputáveis à pessoa coletiva.
1) Distinção entre órgão administrativo e titular do órgão administrativo:
- Órgão administrativo: O órgão administrativo é uma estrutura subjetiva através da
qual a pessoa coletiva pública manifesta a sua vontade e desenvolve a sua ação.
- Titular do órgão administrativo: O titular do órgão administrativo é a pessoa ou, nos
órgãos colegiais, o conjunto de pessoas físicas que se encontra investido na titularidade
de um órgão administrativo.
2) Distinção entre órgão administrativo e órgão público:
- Órgão administrativo: O órgão administrativo é um órgão público integrado na
Administração Pública.
- Órgão público: O órgão público é um órgão não-integrado na Administração Pública.
3) Distinção entre órgão administrativo, serviço administrativo e unidade orgânica:
- Órgão administrativo: O órgão administrativo é uma estrutura subjetiva através da
qual a pessoa coletiva pública manifesta a sua vontade e desenvolve a sua ação.
- Serviço administrativo: O serviço administrativo é o conjunto organizado de meios
humanos que tem como objetivo a execução de tarefas de preparação e de concretização
e desenvolvimento das políticas definidas e das decisões tomadas pelos órgãos
administrativos.
- Unidade orgânica: Por vezes, os serviços administrativos podem ser designados por
departamentos ou unidades orgânicas.
8.3.3 Tipos de órgãos administrativos
De acordo com o artigo 20º, n. 2 CPA, os órgãos são, nos termos das normas que os
instituem ou preveem a sua instituição, singulares ou colegiais e permanentes ou
temporários.
Órgãos singulares e colegiais:
- Órgãos singulares: Os órgãos singulares têm apenas um titular.
-» Exemplo: Reitor da Universidade
- Órgãos colegiais: Os órgãos colegiais são compostos por dois ou mais titulares.
-» Exemplo: Câmara Municipal que integra o Presidente da Câmara e vereadores

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Distinção entre colegialidade perfeita e colegialidade imperfeita:
A colegialidade imperfeita corresponde à regra geral no Direito Administrativo.
Nos termos do artigo 29º CPA, os órgãos colegiais só podem, em regra, deliberar
quando a maioria do número legal dos seus membros com direito a voto esteja
fisicamente presente ou a participar através de meios telemáticos (quórum de
funcionamento). Relativamente ao quórum de deliberação, estabelece o artigo 32º
CPA que as deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos membros
presentes à reunião, salvo nos casos em que, por disposição legal ou estatutária, se
exija maioria qualificada ou seja suficiente maioria relativa.
A colegialidade perfeita corresponde à exceção à regra. No âmbito do procedimento
de formação de contratos públicos, exige-se que o número de membros presentes na
reunião corresponda ao número de membros efetivos para que os órgãos colegiais
possam funcionar e a maioria para que possam deliberar.

Órgãos representativos e não-representativos:


- Órgãos representativos: Os órgãos representativos são órgãos cujos titulares são
eleitos.
- Órgãos não-representativos: Os órgãos não-representativos são órgãos cujos titulares
não são eleitos.
Órgãos primários e secundários:
- Órgãos primários: Os órgãos primários são órgãos que dispõem de competência
própria, conferida diretamente por lei ou por um regulamento emitido com base numa
lei.
- Órgãos secundários: Os órgãos secundários são órgãos que dispõem de competência
delegada, conferida por um ato de delegação.
Órgãos vicários e auxiliares:
- Órgãos vicários: Os órgãos vicários são órgãos que exercem uma competência apenas
em substituição de outros órgãos.
- Órgãos auxiliares: Os órgãos auxiliares são órgãos que auxiliam ou coadjuvam outros
órgãos no exercício das suas competências e funções.
Órgãos deliberativos e executivos:
- Órgãos deliberativos: Os órgãos deliberativos são órgãos que fazem leis.
- Órgão executivos: Os órgãos executivos são órgãos que executam as leis feitas pelos
órgãos deliberativos.
Órgãos simples e complexos:
- Órgãos simples: Os órgãos simples são órgãos singulares e colegiais em que os
respetivos membros só podem exercer funções dentro dos próprios órgãos colegiais.
- Órgãos complexos: Os órgãos complexos são órgãos constituídos por membros que,
simultaneamente, também são titulares de órgãos singulares.
Órgãos ativos, consultivos e de controlo:
- Órgãos ativos: Os órgãos ativos são órgãos que tomam e executam decisões.
- Órgãos consultivos: Os órgãos consultivos são órgãos que emitem pareceres,
elaboram relatórios e estudos e se pronunciam sobre matérias que lhes são submetidas
pelos órgãos ativos.
- Órgãos de controlo: Os órgãos de controlo são órgãos que dirigem os serviços de
controlo, auditoria e fiscalização.
Órgãos permanentes e temporários:
- Órgãos permanentes: Os órgãos permanentes são órgãos criados para funcionarem
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por tempo indeterminado.
- Órgãos temporários: Os órgãos temporários são órgãos criados para funcionarem por
tempo determinado.
Órgãos de funcionamento contínuo e de funcionamento descontínuo:
- Órgãos de funcionamento contínuo: Os órgãos de funcionamento contínuo são
órgãos que estão em sessão contínua e permanente, podendo reunir em qualquer
momento desde que cumpridas as formalidades relativas à convocação de reuniões.
- Órgãos de funcionamento descontínuo: Os órgãos de funcionamento descontínuos
são órgãos que funcionam apenas em determinados períodos de tempo, designados por
sessões, dentro das quais se realizam as respetivas reuniões.
8.3.4 Aspetos principais do regime do funcionamento dos órgãos colegiais
Nos artigos 21º a 35º CPA poder-se-ão encontrar os aspetos principais do regime do
funcionamento dos órgãos colegiais:
- Número variável de membros do órgão colegial (mais de dois)
- Exigência de um presidente e de um secretário (21º CPA)
- Reunião enquanto momento essencial do funcionamento do órgão colegial:
-» Reuniões ordinárias (23º CPA) e reuniões extraordinárias (24º CPA)
-» Antecedentes da reunião: ordem do dia (25º CPA) e objeto das deliberações (26º
CPA)
-» Inobservância das disposições sobre a convocação de reuniões (28º CPA)
-» Quórum de funcionamento (29º CPA)
-» Nulidade das deliberações de órgãos colegiais tomadas tumultuosamente ou com
inobservância do quórum ou da maioria legalmente exigidos (161º, n. 2, al. h) CPA)
-» Reuniões públicas (exceção) e não públicas (regra) (27º CPA)
-» Discussão e votação (31º a 33º CPA)
-» Ata da reunião (34º e 35º CPA)
8.3.5 Competência
A competência traduz-se no conjunto dos poderes legalmente atribuídos a um órgão
administrativo.
Competência em razão da matéria
De acordo com o artigo 36º CPA, a competência é irrenunciável e inalienável, sob pena
de nulidade. Contudo, a transferência do exercício da competência em razão da matéria
pode ser efetuada em regime de delegação de poderes, suplência ou substituição.
A competência em razão da matéria de um órgão administrativo pode ser:
- Competência própria: A competência é própria quando é conferida diretamente por
lei. A competência própria pode ser:
-» Competência exclusiva: A competência é exclusiva quando um órgão
administrativo é o único competente numa determina matéria.
-» Competência concorrente: A competência é concorrente quando a mesma
competência encontra-se atribuída a vários órgãos administrativos.
- Competência delegada: A competência é delegada quando o órgão administrativo
titular da competência permite o exercício dessa mesma competência a outro órgão
administrativo, o órgão delegado.
- Competência de exercício singular: A competência é de exercício singular quando o
seu exercício cabe a um único órgão.
- Competência de exercício conjunto: A competência é de exercício conjunto quando
o seu exercício cabe a dois ou mais órgãos.

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Competência em razão do território
A competência em razão do território traduz-se no conjunto dos poderes legalmente
atribuídos a um órgão administrativo cujo exercício se encontra definido e delimitado
numa circunscrição territorial ou geográfica.
Definição da competência de um órgão
De acordo com o artigo 37º, n. 1 CPA, a competência fixa-se no momento em que se
inicia o procedimento. Antes de qualquer decisão, o órgão da Administração Pública
deve certificar-se de que é competente para conhecer da questão (40º, n. 1 CPA).
Incompetência absoluta e incompetência relativa
Quando um órgão administrativo pratica um ato fora da sua esfera de competências,
verifica-se um vício de incompetência. Importa distinguir:
- Incompetência relativa: Um órgão administrativo pratica um ato sobre uma matéria
que é da competência de outro órgão da pessoa coletiva pública onde ambos se
integram.
- Incompetência absoluta: Um órgão administrativo pratica um ato sobre uma matéria
que não pertence à esfera de competências de nenhum outro órgão administrativo da
pessoa coletiva pública onde ambos se integram.
Distinção entre competência e legitimação do órgão
Enquanto que a competência traduz-se no conjunto dos poderes legalmente atribuídos a
um órgão administrativo, a legitimação traduz-se na qualificação para exercer uma
competência numa situação concreta. Muitas vezes o órgão administrativo dispõe de
competência, que lhe é atribuída em abstrato pela lei, mas não está em condições de a
exercer em concreto. É o caso:
- Quando um órgão administrativo necessita de uma autorização constitutiva de
legitimação de outro órgão para a prática de um ato.
- Quando o prazo para a anulação administrativa de um ato já passou.
- Quando o titular do órgão administrativo se encontre impedido de intervir no
procedimento por força da sua falta da investidura do órgão.
- Quando falta o quórum de reunião nos órgãos colegiais.

9. Relações jurídicas no interior da Administração Pública


9.1 Relações jurídicas entre sujeitos da Administração
9.1.1 Superintendência
De acordo com o artigo 199º, al. d) CRP, compete ao Governo, no exercício de funções
administrativas, superintender na Administração Indireta.
9.1.2 Tutela
De acordo com o artigo 199º, al. d) CRP, compete ao Governo, no exercício de funções
administrativas, exercer a tutela sobre a Administração Indireta e sobre a Administração
autónoma territorial e corporativa.
Espécies de tutela administrativa
São várias as espécies de tutela administrativa:
- Quanto aos fins:
-» Tutela de legalidade: Verificação do cumprimento da lei.
-» Tutela de mérito: Controlo do mérito.
- Quanto ao âmbito:
-» Tutela global: Incidência sobre todas as matérias e atividades desenvolvidas pela
entidade tutelada.
-» Tutela parcial: Incidência sobre alguma ou algumas matérias e atividades

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desenvolvidas pela entidade tutelada.
- Quanto à natureza dos poderes tutelares exercidos:
-» Poderes de controlo e fiscalização
-» Poderes de intervenção na gestão
-» Poderes sancionatórios
Modalidades de tutela administrativa
A natureza dos poderes de tutela administrativa exercidos permite distinguir as
seguintes modalidades de tutela administrativa:
- Quanto aos poderes de fiscalização:
-» Tutela inspetiva: Realização de ações de fiscalização e inspeção pela entidade
tutelar aos órgãos e serviços da entidade tutelada.
-» Tutela integrativa: Realização de um controlo, prévio ou sucessivo, pela entidade
tutelar sobre a legalidade ou o mérito dos atos da entidade tutelada através da emissão
de pareceres vinculantes, de autorizações, de aprovações ou homologações.
-» Tutela anulatória: Anulação pela entidade tutelar de atos praticados pelos órgãos
da entidade tutelada
- Quanto aos poderes de intervenção na gestão:
-» Tutela substitutiva: Substituição da entidade tutelada pela entidade tutelar, tendo
como fundamento a inação/inércia daquela, passando esta a praticar atos pertencentes à
esfera de competências daquela.
-» Tutela revogatória: Revogação pela entidade tutelar de atos praticados pela
entidade tutelada, tendo como fundamento razões de mérito, ou seja, de inconveniência
para o interesse público.
- Quanto aos poderes sancionatórios:
-» Tutela sancionatória: Aplicação de sanções pela entidade tutelar às entidades
tuteladas ou aos seus dirigentes.
Tutela administrativa de legalidade entre o Estado e as Autarquias Locais:
- Regime constitucional da tutela administrativa: De acordo com o artigo 242º, n. 2 e
4 CRP, a tutela administrativa sobre as Autarquias Locais consiste na verificação do
cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo
as formas previstas na lei. A dissolução de órgãos autárquicos só pode ter por causa
ações ou omissões ilegais graves destes ou dos membros titulares dos mesmos.
- Regime legal da tutela administrativa: De acordo com a Lei n. 27/96, de 1 de
Agosto, a tutela administrativa consiste na verificação do cumprimento das leis e
regulamentos por parte dos órgãos e dos serviços das Autarquias Locais. Trata-se de
uma tutela de legalidade realizada através de ações de inspeção ou de fiscalização. A
prática, por ação ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das Autarquias Locais
pode determinar a perda de mandato, se tiverem sido praticadas individualmente por
membros de órgãos, ou a dissolução do órgão, se forem o resultado da ação ou omissão
deste.
9.1.3 Orientação e controlo
O Estado, através do Governo, exerce poderes de orientação e de controlo sobre as
empresas públicas, enquanto que os municípios os exercem sobre as empresas locais,
definindo os seus objetivos a atingir.
9.1.4 Cooperação e colaboração
As entidades públicas podem coordenar certas atividades ou colaborar entre si tendo
como objetivo prosseguir interesses comuns.

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9.2 Relações interorgânicas
9.2.1 Relações de hierarquia
A Administração Direta encontra-se internamente estruturada com base numa típica
relação de hierarquia em que um órgão, o superior hierárquico, se encontra numa
posição hierarquicamente superior relativamente a outros órgãos, os órgãos subalternos,
da mesma pessoa coletiva pública. No âmbito desta relação, o órgão superior
hierárquico exerce:
- Poder de direção: O poder de direção consiste na competência para emitir ordens
concretas, precisas e individuais aos órgãos subalternos.
- Poder disciplinar: O poder disciplinar consiste na competência para instaurar
procedimentos disciplinares por prática de infrações por parte dos órgãos subalternos e
para aplicar sanções.
- Poder de revisão: O poder de revisão consiste na competência para anular e revogar
os atos praticados pelos órgãos subalternos.
- Poder de substituição: O poder de substituição consiste na competência para praticar
atos em matérias da competência dos órgãos subalternos, podendo tal suceder em
matérias da exclusiva competência dos órgãos subalternos quando estes, em situação de
inércia/omissão ilegal, não as exerça.
- Poder de decisão de conflitos de competências: O poder de decisão de conflitos de
competências consiste na competência para resolver conflitos de competência.
9.2.2 Delegação de poderes administrativos
Noção legal de delegação de poderes administrativos
Nos termos do artigo 44º, n. 1 CPA, a delegação de poderes administrativos consiste no
ato administrativo através do qual os órgãos administrativos normalmente competentes
para decidir em determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados
por lei, permitir, através de um ato de delegação de poderes, que outro órgão ou agente
da mesma pessoa coletiva ou outro órgão de diferente pessoa coletiva pratique atos
administrativos sobre a mesma matéria.
Noção ampla de delegação de poderes administrativos
A delegação de poderes administrativos é, contudo, mais ampla do que a noção legal
que o CPA oferece:
1.1) Para além de outro órgão administrativo ou de agente da mesma pessoa coletiva ou
de órgão administrativo de diferente pessoa coletiva, o órgão administrativo delegante
pode permitir que entidades particulares pratiquem atos administrativos sobre a mesma
matéria para a qual são competentes.
1.2) A delegação de poderes administrativos pode, para além da prática de atos
administrativos, ter por objeto outras competências administrativas.
2) A delegação de poderes administrativos só é permitida se o órgão administrativo
delegante tiver habilitação legal para o efeito, sob pena de o ato de delegação de poderes
ser considerado nulo. Os atos praticados pelo órgão administrativo delegado ao abrigo
de um ato delegação de poderes nulo são anuláveis por vício de incompetência.
3) A delegação de poderes administrativos pode ser conferida ou através de um ato
administrativo de delegação de poderes ou através de um contrato administrativo.
Enquanto que a delegação de poderes através de um ato administrativo consiste numa
delegação unilateral e imposta ao órgão delegado, a delegação de poderes através de um
contrato administrativo consiste numa delegação que pressupõe a aceitação do órgão
delegado.

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4) Em regra, o ato de delegação de poderes administrativos é um ato facultativo ou livre
do órgão delegante. Excecionalmente, existem casos de delegação obrigatória (55º, n. 2
CPA). Além disso, existem poderes indelegáveis, ou seja, que não podem ser objeto de
delegação. De acordo com o artigo 45º CPA, são eles:
- A globalidade dos poderes do delegante.
- Os poderes suscetíveis de serem exercidos sobre o próprio delegado.
- Os poderes a exercer pelo delegado fora do âmbito da respetiva competência
territorial.
5) Nos termos do artigo 46º, n. 1 e 2 CPA, salvo disposição legal em contrário, o
delegante pode autorizar o delegado a subdelegar. O subdelegado pode subdelegar as
competências que lhe tenham sido subdelegadas, salvo disposição legal em contrário ou
reserva expressa do delegante ou subdelegante.
6) A delegação de poderes administrativos processa-se no âmbito das relações
hierárquicas entre órgãos administrativos de uma mesma pessoa coletiva, entre um
órgão administrativo e um agente da mesma pessoa coletiva, entre órgãos
administrativos de diferentes pessoas coletivas e entre órgãos administrativos e
entidades particulares.
Distinção entre delegação de poderes administrativos e coadjuvação
- Na relação da delegação de poderes administrativos, ocorre uma transferência do
exercício de poderes do órgão delegante para o órgão ou agente delegado. Estes
exercem, em nome próprio, os poderes daquele
- Na relação da coadjuvação, não ocorre uma transferência do exercício de poderes do
órgão coadjuvado para o órgão ou agente coadjutor. Estes não exercem, em nome
próprio, os poderes daquele. O órgão ou agente coadjutor são apenas um órgão ou um
agente que auxiliam o órgão coadjuvado no exercício das respetivas competências.
Distinção entre delegação de poderes administrativos e delegação de assinatura ou
de firma
- Na delegação de poderes administrativos, verifica-se a transferência do exercício de
poderes do órgão delegante para o órgão ou agente delegado.
- Na delegação de assinatura ou de firma, não se verifica a transferência do exercício
de poderes do órgão delegante para o órgão ou agente delegado. O órgão delegante
limita-se a autorizar que outro órgão ou agente ou o seu coadjutor possa assinar, em seu
nome e em sua representação, atos que lhe são exclusivamente imputáveis.
9.2.3 Regime da delegação de poderes administrativos no CPA
Requisitos do ato de delegação de poderes:
De acordo com o artigo 47º, n. 1 CPA, no ato de delegação ou subdelegação, deve o
órgão delegante ou subdelegante especificar os poderes que são delegados ou
subdelegados ou os atos que o delegado ou subdelegado pode praticar, bem como
mencionar a norma atributiva do poder delegado (norma de competência) e aquela que
habilita o órgão a delegar (norma de habilitação).
 A inobservância deste requisito provoca a anulabilidade do ato de delegação de
poderes.
De acordo com o artigo 47º, n. 2 CPA, o ato de delegação ou subdelegação de poderes
estão sujeitos a publicação, nos termos do artigo 159º CPA.
 O ato de delegação ou de subdelegação caduca caso não seja publicitado no prazo de
30 dias a contar da respetiva prática.
Poderes do órgão delegante:
- Poder de orientação do delegante: O órgão delegante pode emitir diretivas ou
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instruções vinculativas para o delegado sobre o modo como devem ser exercidos os
poderes delegados (49º, n. 1 CPA).
 O facto de o delegado não considerar as diretivas e/ou as instruções do delegante ou
até mesmo de as violar não provoca a invalidade dos atos praticados por ele.
- Poder de avocação: O órgão delegante tem o poder de avocar (retornar a si o
exercício de algum ou de alguns poderes delegados, mantendo-se intocada a delegação
relativamente aos demais poderes que não sejam objeto de avocação) o ato praticado
pelo delegado ao abrigo da delegação (49º, n. 2 CPA).
 Se o delegado praticar atos no âmbito dos poderes que tenham sido avocados pelo
delegante, tais atos são inválidos, na medida em que, nessa parte, se produziu a extinção
da delegação.
- Poder geral de revisão dos atos praticados pelo delegado: O órgão delegante tem o
poder de anular, revogar ou substituir o ato praticado pelo delegado ao abrigo da
delegação (49º, n. 2 CPA). Tendo em conta o artigo 169º, n. 4 CPA, enquanto vigorar a
delegação, os atos administrativos praticados por delegação de poderes podem ser
objeto de revogação ou de anulação administrativa pelo órgão delegante, bem como
pelo delegado.
Responsabilidade do delegado pelas consequências dos atos que pratique no
âmbito da delegação
De acordo com o artigo 44º, n. 5 CPA, os atos praticados ao abrigo de delegação ou
subdelegação de poderes valem como se tivessem sido praticados pelo delegante ou
subdelegante. Por isso, o CPA impõe a observância de algumas exigências formais
relativas aos atos praticados pelo delegado: Nos termos do artigo 48º, n. 1 CPA, o órgão
delegado ou subdelegado deve mencionar essa qualidade no uso da delegação ou
subdelegação.
 A falta de menção da delegação ou subdelegação no ato praticado ao seu abrigo, ou a
menção incorreta da sua existência e do seu conteúdo, não afeta a validade do ato, mas
os interessados não podem ser prejudicados no exercício dos seus direitos pelo
desconhecimento da existência da delegação ou subdelegação (48º, n. 2 CPA).
Impugnação dos atos do delegado
Os atos praticados pelo delegado podem ser objeto de reclamação para o próprio
delegado (191º, n. 1 CPA) e de recurso administrativo para o delegante (199º, n. 2
CPA).
Extinção da delegação
Para além da anulação e revogação da delegação, esta também se extingue por
caducidade (50º, al. b) CPA):
- Por anulação ou revogação do ato de delegação ou subdelegação.
- Por caducidade, resultante de se terem esgotado os seus efeitos ou da mudança dos
titulares dos órgãos delegante ou delegado, subdelegante ou subdelegado.

10. Casos práticos


Caso prático:
A Câmara Municipal de Lisboa delegou no seu Presidente o poder para praticar atos em
todas as matérias que lhe cabem, nos termos da lei que estabelece as competências dos
órgãos das autarquias locais, a qual apenas permite que algumas das competências da
Câmara possam ser delegadas. Algum tempo depois, a Câmara Municipal, por
deliberação, viria a anular o ato da delegação, bem como todos os atos praticados pelo
Presidente ao seu abrigo, invocando, para este efeito, o facto de o Presidente ter

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praticado esses atos em situações reveladoras de conflitos de interesses. O Presidente,
discordando da atuação da Câmara Municipal, solicitou ao Governo que procedesse à
anulação daquela deliberação, alegando que a Câmara Municipal havia deliberado sem
que estivessem reunidas as condições mínimas de funcionamento e de votação.
1) Tendo em consideração o que conhece sobre a figura da delegação de
competências, analise o ato da delegação concretamente em causa.
2) Diga se a Câmara Municipal poderia anular o ato da delegação, bem como todos
os atos praticados pelo Presidente no âmbito desta.
3) Na sequência da referida solicitação formulada pelo Presidente, o Governo, com
base num relatório de uma inspeção-geral e invocando o poder de superintendência e de
tutela administrativa, considerou que todos os atos praticados pela Câmara Municipal e
pelo seu Presidente eram ilegais, procedendo de imediato à sua anulação administrativa.
Para além disso, procedeu de imediato à dissolução da Câmara Municipal. Diga se
concorda ou discorda da posição do Governo.
4) Suponha agora que a mesma situação ocorreu no Conselho Diretivo do Instituto
da Segurança Social, I.P. (Instituto Público). Poderia o Governo adotar a atuação
referida na questão 3?
Resolução:
1) Neste presente caso, a Câmara Municipal, órgão executivo colegial do município,
permitiu que o Presidente da Câmara Municipal, órgão executivo singular do município,
praticasse atos sobre todas as matérias da sua esfera de competências através de um ato
de delegação de poderes administrativos, permissão essa que se encontra devidamente
consagrada no artigo 44º, n. 1 CPA. No entanto, todos os atos de delegação de poderes
administrativos têm necessariamente que obedecer a certos requisitos que o regime da
delegação de poderes estabelece no CPA:
-» Por um lado, a Câmara Municipal só pode delegar poderes administrativos se tiver
habilitação legal para o efeito. No entanto, a lei com base na qual a Câmara Municipal
delegou os seus poderes apenas permite que algumas das suas competências possam ser
delegadas. Sendo assim, o ato de delegação de competências é passível de ser
considerado nulo e todos os atos praticados pelo Presidente da Câmara são anuláveis
com fundamento em incompetência.
-» Por outro lado, a Câmara Municipal delegou no Presidente da Câmara a prática de
atos sobre todas as matérias que lhe cabem a ela. Contudo, o artigo 45º CPA prevê que
a globalidade dos poderes do delegante não pode ser objeto de delegação.
-» No caso em concreto, a Câmara Municipal devia ter especificado os poderes
administrativos que foram delegados ou os atos que o Presidente podia praticar e
mencionar a norma atributiva do poder delegado (norma de competência) e aquela que
habilita o órgão a delegar (norma de habilitação), em termos do artigo 47º, n. 1 CPA.
-» Por fim, o ato de delegação de poderes administrativos está sujeito a publicação
(47º, n. 2 conjugado com o artigo 159º CPA).
2) A Câmara Municipal, enquanto órgão delegante, detém a titularidade da
competência, podendo por isso exercer um conjunto de poderes sobre o exercício da
competência por parte do Presidente enquanto órgão delegado:
- Poder de orientação do delegante: O órgão delegante pode emitir diretivas ou
instruções vinculativas para o delegado sobre o modo como devem ser exercidos os
poderes delegados (49º, n. 1 CPA).
- Poder de avocação: O órgão delegante tem o poder de avocar (retornar a si o
exercício de algum ou de alguns poderes delegados, mantendo-se intocada a delegação
relativamente aos demais poderes que não sejam objeto de avocação) o ato praticado

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pelo delegado ao abrigo da delegação (49º, n. 2 CPA).
- Poder geral de revisão dos atos praticados pelo delegado: O órgão delegante tem o
poder de anular, revogar ou substituir o ato praticado pelo delegado ao abrigo da
delegação (49º, n. 2 CPA). Tendo em conta o artigo 169º, n. 4 CPA, enquanto vigorar a
delegação, os atos administrativos praticados por delegação de poderes podem ser
objeto de revogação ou de anulação administrativa pelo órgão delegante, bem como
pelo delegado.
No caso concreto, a Câmara Municipal pode exercer o poder geral de revisão dos atos
praticados pelo delegado para anular, revogar ou substituir os atos praticados pelo
Presidente da Câmara ao abrigo do ato de delegação de poderes.
3) Tendo em conta o artigo 29º, n. 1 CPA, a Câmara Municipal só pode deliberar
quando a maioria do número legal dos seus membros com direito a voto esteja
fisicamente presente ou a participar através de meios telemáticos, sendo as deliberações
tomadas por maioria absoluta de votos dos membros presentes à reunião, salvo nos
casos em que, por disposição legal ou estatutária, se exija maioria qualificada ou seja
suficiente maioria relativa (32º, n. 1 CPA). Neste presente caso, o Presidente da Câmara
solicita ao Governo que anule a deliberação da Câmara Municipal, alegando que esta
deliberou sem estarem reunidas as condições mínimas de funcionamento e de
deliberação. Por conseguinte, e de acordo com o artigo 161º, n. 2, al. h) CPA, a
deliberação da Câmara Municipal seria considerada nula.
De acordo com o artigo 199º, al. d) CRP, compete ao Estado, através do Governo, no
exercício de funções administrativas, exercer a tutela sobre a Administração autónoma
territorial na qual a Câmara Municipal e o Presidente da Câmara se integram. Sendo
assim, não existe entre o Estado e os órgãos municipais qualquer relação de
superintendência. Vigora, sim, uma relação de tutela administrativa de legalidade que,
de acordo com a Lei n. 27/96, de 1 de Agosto, consiste na verificação do cumprimento
das leis e regulamentos por parte dos órgãos e dos serviços das Autarquias Locais.
Trata-se de uma tutela de legalidade realizada através de ações de inspeção ou de
fiscalização, que não abrange a tutela sancionatória. A prática, por ação ou omissão, de
ilegalidades no âmbito da gestão das Autarquias Locais pode determinar a perda de
mandato, se tiverem sido praticadas individualmente por membros de órgãos, ou a
dissolução do órgão, se forem o resultado da ação ou omissão deste. Por conseguinte, o
Estado, através do Governo, deveria ter enviado o relatório da Inspeção-Geral aos
tribunais administrativos, sendo estes competentes para tomar decisões acerca da
dissolução da Câmara Municipal e da anulação das deliberações, concretizando o
regime legal da tutela administrativa.
4) Sim. De acordo com o artigo 199º, al. d) CRP, compete ao Governo, no exercício de
funções administrativas, superintender na Administração Indireta e exercer a tutela
sobre a mesma, a qual inclui a tutela sancionatória.

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