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FICHAMENTO DO LIVRO:
MANUAL DE DIREITO
PENAL BRASILEIRO

Eugênio Raúl Zaffaroni &


José Henrique Pierangeli

PARTE GERAL
1º BIMESTRE
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Primeira Parte:
TEORIA DO SABER
DO DIREITO PENAL
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1ª AULA – 18/03/03

TÍTULO I
DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO SABER DO DIREITO PENAL

CAPÍTULO I
CONTROLE SOCIAL, SISTEMA PENAL E DIREITO PENAL

I – CONTROLE SOCIAL E SISTEMA PENAL

1 - O DELITO COMO “CONSTRUÇÃO” E COMO “REALIDADE”


Qual a semelhança entre estes dois fatos sociais: um estupro e a emissão de um
cheque sem fundos? O significado social é completamente distinto.
A única semelhança é que ambos são descritos na lei penal como crimes,
ameaçados com uma pena, submetidos a um processo institucionalizado, e que paira uma
ameaça de prisão sobre ambos.
CONCLUSÃO: o delito não existe sociologicamente. É uma solução de uma
instituição penal.
O que existe na realidade social são CONFLITOS que são resolvidos
institucionalmente. Mas na essência são fatos sociais distintos.
Essas mesmas condutas geram conflitos com soluções diferentes: o estupro vira
manchete, o cheque sem fundos não.
Se fizermos um exame de consciência, veremos que várias vezes na vida
infringimos normas penais: não devolvo um livro emprestado; levo embora a toalha do hotel;
ultrapasso um sinal fechado etc. Os juizes também cometem crimes diários: assinam
documentos como se fossem eles que fizeram e não são; afirmam que testemunhas são
ouvidas na sua presença e não são etc. E o cartorário vai atrás: certifico que é verdade...
Poderíamos argumentar que são infrações levíssimas. No entanto eu denuncio
todos os dias pessoas porque furtaram gilete do Comper, papel higiênico do Carrefour,
chinelo do Extra etc.
CONCLUSÃO: A maioria dos crimes não são praticados por aquelas pessoas que
chamamos de delinqüentes, bandidos, mas pelo próprio Estado. Exemplo:
a) a construção de armas nucleares e biológicas pelo Iraque e Coréia são atos preparatórios de
crimes de guerra (destruição em massa de civis);
b) a notícia veiculada ao mundo pelos EUA de que prenderam um suposto membro do Al
Quaeda e vão torturá-lo para delatar é crime de tortura.
Nestes casos ninguém é criminalizado.
Quem são e onde estão os chamados delinqüentes? Nos setores sociais de menos
recursos. Os presídios estão cheios de pobres.
CONCLUSÃO: Existe um processo de SELEÇÃO de pessoas, a quem chamamos
de delinqüentes e não uma mera seleção de fatos típicos.
Por outro lado, muitas ações imorais não são alcançadas pelo direito penal:
a) Alguém mantém relação sexual com uma prostituta e não lhe paga  não há solução
institucional para isto;
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b) Patrão não paga o salário do empregado  ação trabalhista;


c) Consumidor não paga a conta de luz  o fornecedor unilateralmente corta a luz.
CONCLUSÃO: Em qualquer situação de conflito social a solução penal é só uma
das possíveis. Peguemos o exemplo seguinte: 5 estudantes moram juntos. Em dado momento
um deles golpeia e quebra o televisor. Haverá reações e estilos diferentes para resolver o
conflito:
a) Estudante 1 – furioso  Não quero mais viver com este cara - PUNITIVA;
b) Estudante 2 – reclamará que pague o dano e tudo bem – REPARATÓRIA;
c) Estudante 3 – ele está louco, não sabe o que faz – TERAPÊUTICO;
d) Estudante 4 – para que aconteça uma violência desta aqui em casa, é sinal de que algo está
errado com o grupo, o que exige um exame de consciência nosso – CONCILIATÓRIO.
Vejam que a solução punitiva admite duas variáveis:
a) exclusão do estudante do grupo – ELIMINATÓRIA;
b) atingi-lo diretamente – VINGANÇA – RETRIBUIÇÃO.
A eliminatória as vezes se confunde com a terapêutica. É uma punição com
discurso terapêutico.
Por outro lado, a solução para os conflitos sociais mudam com o tempo:
a) O concubinato hoje é protegido. Já foi crime;
b) A homossexualidade continua sendo um conflito, como demonstram os movimentos gays.
A punição era a morte. Hoje não é formal: se faz com a arbitrariedade policial;
c) As bruxas já foram mortas em fogueiras. Hoje estão na moda.

CONCLUSÃO GERAL:
a) Ações conflitivas de gravidade e significado social diversos se resolvem pela via
institucionalizada do Direito Penal. Mas não são todas as pessoas que sofrem essa solução,
mas uma minoria, depois de um processo de seleção que seleciona principalmente pobres;
b) Muitos conflitos se resolvem por outra via institucionalizada que não o direito penal;
c) A solução punitiva (eliminatória ou retributiva) é somente uma das alternativas, mas que
exclui as outras (reparatória, conciliadora e terapêutica);
d) As ações que abrem a possibilidade de solução penal de maior gravidade são praticadas
pelo próprio Estado, que institucionaliza tais soluções.
Tem-se a impressão que o “delito” é uma construção destinada a cumprir certa
função sobre algumas pessoas a respeito de outras, e não uma realidade social
individualizável.
Nosso estudo visa esclarecer se esta impressão é verdadeira ou não. Mas esta
introdução serve para desmentir aqueles que dizem que o direito penal emburrece, só serve
para prender bandidos etc.

2 - CONCEITOS E FORMAS DE CONTROLE SOCIAL


O homem se organizou para viver em sociedade. Os conflitos no grupo se
resolvem de forma dinâmica, estabiliza as relações no grupo e gera uma estrutura de poder
institucionalizado (Estado) e difuso (mídia, família etc.).
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Na sociedade se distingue uma estrutura de poder com grupos que dominam e


grupos que são dominados. Com setores mais próximos e outros mais afastados dos centros de
decisão.
Esta estrutura precisa de formas de controle da sociedade, tanto dos setores mais
afastados, quanto dos mais próximos do centro de poder. Estes precisam se controlar
reciprocamente para não se debilitarem. Ex.: Castas: só se casam entre si membros da mesma
casta.
CONCLUSÃO:
a) Toda sociedade tem uma estrutura de poder (política e econômica);
b) Tem grupos mais próximos ou mais afastados do centro de poder (marginalizados), nos
quais vemos graus de centralização e marginalização. Países com maior grau de
democratização.
Esta estrutura centralização-marginalização tem múltiplas formas de controle
social. Estudando a estrutura do poder nós podemos ver de onde e quais são as formas de
controle social. Analisando essas formas de controle vemos a natureza da estrutura do poder.
O âmbito do controle social é muito grande e nem sempre evidente. Nos países
centrais esses controles são mais escondidos, dissimulados. Nos periféricos, onde os conflitos
são mais manifestos, aparecem mais, a não ser nas camadas mais elevadas, que imitam a
sociedade dos países centrais.
Existem vários sistemas de controle social:
a) meios de comunicação de massa, que controlam dizendo que é diversão;
b) família;
c) educação;
d) saúde;
e) partidos políticos etc.
O controle social, portanto, é feito através de instituições mais difusas, e também
com meios mais específicos, por exemplo, o direito penal (juizes, policiais, funcionários etc.).
A enorme extensão e complexidade do fenômeno controle social demonstra que
uma sociedade é mais ou menos arbitrária conforme se oriente por formas de controle social
variadas, e não imponha só o controle penal institucionalizado como principal.

CONCLUSÃO GERAL:
Para avaliar o controle social não podemos olhar só o direito penal como fator
inibidor da criminalidade. Temos que ver como funcionam os outros sistemas:
a) escola  métodos pedagógicos, controle ideológico de textos etc.;
b) medicina  como é feita a orientação anestesiante, puramente organicista ou mais
antropológica.
As relações sociais, portanto, são complicadíssimas. Não dá para fazer um modelo
de sociedade sem olhar para tudo isto e querer controlá-lo. É simplismo ilusório.

3 - SABER E CONTROLE SOCIAL (SABER E PODER)


Nós aprendemos que quanto maior o saber, maior o poder. O acompanhamento
histórico demonstra que é justamente o contrário: é o poder que condiciona o saber.
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No mundo inteiro existem ideologias que “encobrem”, que “ocultam”, ou até


“criam” realidades, desde que o “saber” produza aumento de produção. Hoje se teme pela
viabilidade do planeta. Ex.: bombas nucleares, desmatamento, poluição, esgotamento de
recursos naturais – a guerra contra o Iraque.
São 500 bilhões de dólares ao ano, com aumento de 8% ao ano, aplicados em
armamentos, enquanto 40 milhões de crianças por ano morrem de fome, e outros tantos não
alcançam desenvolvimento físico e mental completo por desnutrição.
Some-se a isto que os países centrais realizam experiências biológicas que podem
permitir ao poder central condicionar a evolução do homem, animais e vegetais. Ex.: soja
transgênica, clonagem de animais e agora humana etc.
Essas estruturas de poder criam poder que condicionará, fomentará, dará
explicações ou versões da “realidade”, CRIAM VERDADES, em forma de ideologias, que
abarcam ideologias científicas.
Toda ciência é ideológica. É manipulada pelo poder, conforme convenha a sua
conservação: privilegia o que lhe favorece e descarta o que lhe é perigoso.
Toda ciência é ideológica porque é humana. A ciência positivista, capaz de
estabelecer verdades imutáveis, isentas, é coisa do passado e ninguém mais acredita nelas.
Se nem as ciências naturais são livres de ideologia, muito mais as ciências
humanas. Por isto é que existem inúmeras ideologias no campo do sistema penal.
A América Latina é composta de países periféricos, que sofrem com o modelo
internacional de divisão do trabalho, da economia etc. Nossos países têm características
próprias e o nosso controle social através do direito penal deveria se amoldar a essas
características e não importar ideologias. Por outro lado, não somos capazes de construir
ideologias, de modo que importamos.

4 - CARACTERÍSTICAS DA MANIPULAÇÃO IDEOLÓGICA


O poder instrumentaliza as ideologias na parte em que lhe são úteis e descarta o
resto:
a) O racismo não tomou do evolucionismo as advertências prudentes, mas ostentou uma
ortodoxia evolucionista que não foi sustentada nem pelos seus criadores;
b) As tendências teocráticas – islã – tomam do espiritualismo a resignação em função da
justiça do “além”. Deixam de lado que o espiritualismo tem por pressuposto obrar o justo
“neste mundo”.
Alguns teóricos dão um sentido pejorativo às ideologias. Marx falou que é uma
superestrutura que encobre a realidade. Mas nós entendemos com o sentido que lhe dá
Abbagnano: “é toda crença adotada para controle dos comportamentos coletivos, entendendo
por “crença” uma noção que vincula a conduta e que pode ou não ter validez objetiva”.
Assim, toda criação de idéias, das mais sublimes às mais aberrantes são
ideologias. São um conjunto de idéias que buscam explicar um objeto. Jamais explicarão as
“verdades absolutas”, porque isto está fora do conhecimento humano. Devemos ser humildes
e reconhecer que todo conhecimento é parcial.

5 - OS DIREITOS HUMANOS E O CONTROLE SOCIAL


Por maior que seja a atrocidade sempre houve uma ideologia para explicá-la.
a) O tráfico de milhões de africanos como escravos se explicava pela inferioridade da raça;
b) Hitler, com a ideologia da superioridade da raça ariana, desencadeou o maior conflito
generalizado do mundo entre 1939 e 1945;
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c) O liberalismo do séc. XVIII e começo do século XIX, junto com a teoria da necessidade,
foram a ideologia de justificação do aniquilamento nuclear da população de Hiroshima e
Nagasaki.
Cada atrocidade é cometida em nome da humanidade e da justiça. Cada um dizia
que queria libertar o homem e construir um novo – de acordo com sua cara – acreditando num
direito NATURAL.
Em 1948, no auge da 2ª Guerra, a ONU proclamou a DECLARAÇÃO
UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM, como um ideal comum a ser alcançado por
todos.
Desde então vem se construindo um sistema internacional de garantias de direitos
fundamentais – direitos humanos – que vai configurando um LIMITE positivo nas
Constituições às ideologias que regem o controle social em todas as nações. Vai criando uma
baliza, um paradigma. Cada país tem um escalão de direitos humanos.
Pode-se argumentar que continuam as atrocidades. Concordamos, mas hoje a cara
do poder está aberta. Desmascara o poder.
É inegável que:
a) Há ideologias genocidas  controle de natalidade nos 3º e 4º mundos, sob ameaça de
interromper ajuda de alimentos;
b) Ideologias de equilíbrio pelo terror.
Outras declarações internacionais complementam a da ONU. Entre nós o marco é
a CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS DO HOMEM de 1969, conhecida
como Pacto de S. José. Servem de parâmetro para a interpretação das leis.

6 - A IMPORTÂNCIA DO CONTROLE SOCIAL INSTITUCIONALIZADO OU FORMALIZADO


Claro que o direito penal tem importância como forma de controle social
institucionalizado, mas menos do que lhe conferem.
CONTROLE SOCIAL
1. Difuso  meios de massa, família, preconceitos, fofocas, modas, educação
etc.;
2. Institucionalizado:
 não punitivo = direito privado;
 punitivo:
- formalmente não punitivo, ou com discurso não punitivo (práticas
psiquiátricas, asilos de velhos etc.)
- realmente punitivo, com discurso punitivo = direito penal.
Dentro do sistema penal o direito penal é só um lugar, e limitado. Importante, mas
nem tanto, tanto é que a maioria dos criminosos não são punidos.

II - SISTEMA PENAL E DIREITO PENAL


É o controle social punitivo institucionalizado, que engloba a atividade do
legislador, do público, da polícia, dos juizes, dos funcionários, e da execução penal.
Num sentido mais amplo, o sistema penal abrange ações controladoras e
repressoras aparentemente não penais.
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A punição muitas vezes não sanciona uma conduta, mas ações que denotam
qualidades pessoais. É assim por causa da atividade classificadora do sistema. Por isto,
também fazem parte do sistema penal:
a) procedimentos contravencionais de controle de marginalizados (vadiagem, embriaguez
etc.);
b) faculdades policiais arbitrárias (batidas sempre em bares de periferia etc.);
c) internação por tempo indefinido de drogados – não são produtivos;
d) o asilo de velhos – sanção pela falta de produtividade e docilidade aos padrões de consumo
veiculados pelos meios de massa.

7 - OS DISTINTOS SETORES DO SISTEMA SOCIAL


São segmentos do sistema penal:
a) policial;
b) judicial;
c) executivo.
São três grupos humanos que têm predominância em cada etapa do processo e que
podem seguir atuando um interferindo no outro. Ex.: o judicial controla a execução; o policial
dá segurança à execução etc.
Na América Latina a tendência é neutralizar o Poder Judiciário, para possibilitar a
intervenção do executivo. Ex.: o inquérito policial é interferência do executivo no judicial. O
AI5 permitia exonerar membros do STF etc.
O legislador configura os tipos que selecionam condutas. Mas é o poder
Executivo, através da polícia, que efetivamente seleciona as condutas puníveis. Por isto é que
não existe na América Latina uma polícia judiciária, incumbida de investigar para o
Ministério Público por exemplo.
O grupo humano fornecedor de promotores, juizes, policiais, funcionários da
justiça, não é homogêneo, mas normalmente são de camadas da classe média baixa.

8 - OS DISCURSOS DO SISTEMA PENAL


Criam-se ideologias para dar fundamento ao discurso de sustentação do direito
penal:
a) o discurso jurídico é garantidor. Se transforma em legalista e burocrata;
b) o discurso policial é moralizador (vagabundo) e se burocratiza;
c) o discurso penitenciário é terapêutico, e também se burocratiza.
São todos discursos compartimentados: um ignora o outro. E na hora de apontar
as falhas, um aponta o outro.
Em geral praticam discursos externos: justificação ao político, às autoridades. Não
há discussão interna, da realidade, intrasistemática.
Mas o discurso geral é que o sistema penal tem uma função preventiva especial e
geral. Ressocialização e exemplaridade.
O primeiro discurso raramente corresponde à realidade: as penitenciárias – penas
– não ressocializam, ao contrário. No ambiente penitenciário aumenta a violência de pessoas
normalmente com problemas de personalidade instável. Esquecem-se que o processo de
marginalização já começa na infância, passa pela falta de educação, trabalho etc.
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Isto demonstra que o sistema penal seleciona pessoas, segundo a classe e posição
social. Quanto mais incluídos, menos são pegos. Não somos todos vulneráveis ao sistema
penal.
Além disto a criminalização gera a “rejeição” do etiquetado “marginal”, e também
daqueles que se solidarizam ou entram em contato com eles.
Por fim, soltos são estigmatizados como “suspeitos”.
Deste modo, o sistema penal não previne condutas criminais. A criminalidade
aumenta ou diminui de acordo com as variantes do sistema penal e não da prevenção. Ex.:
Nos EUA se calculou que numa cidade de 500.000 habitantes há 150.000 furtos por ano.
Pouquíssimos são investigados.
Quanto a prevenção especial – ressocialização – os estudos demonstram que a
prisão causa deterioração psíquica no preso – as vezes incurável.
Isto demonstra que o controle social é uma ideologia que serve para sustentar a
necessidade da prisão, mas que não corresponde à realidade. Por isto a comunidade presa cria
mecanismos de auto-proteção: organizações de presos (PCC); corrupção organizada, motins,
líderes religiosos, jurídicos etc.
Hoje se fala em fracasso da prisão, inclusive em países que efetivamente tentaram
fazer dela um modelo de ressocialização.
Suspeita-se que o sistema penal seleciona pessoas humildes para mostrá-las aos
demais do bairro: comportem-se, senão lhe acontecerá o mesmo.
Suspeita-se que esta ideologia também subtrai setores que estão na estrutura do
poder ao sistema penal (são menos vulneráveis). Ex.: quem comanda a casta é reencarnação
de espíritos evoluídos, portanto, fora da marginalização.
O Estado de direito se materializa por degraus, tem graus de realização: quanto
mais se respeitam direitos humanos, mais pessoas estarão incluídos em outros sistemas e se
subtraem ao controle do sistema penal.

9 - CONDICIONAMENTO DO DIREITO PENAL


O sistema penal promove condições para que os selecionados continuem no
crime:
a) reincidência;
b) fossiliza a pessoa  Perde a referência do seu grupo social e fica submetido a obedecer o
novo grupo da cadeia;
c) seleciona promotores, juizes etc. dentre a classe média baixa. Cria expectativas e metas
sociais da classe média alta. Em contrapartida lhe exige que não crie problemas no
trabalho, dando-lhes falsa sensação de poder. Incorporam a profissão, esquecem a origem e
se afastam do problema.

10 - A FUNÇÃO SOCIAL DO SISTEMA PENAL


É difícil dizer qual a função:
a) É selecionar pessoas dos setores mais humildes, criminalizando-as, indicando à sua
comunidade quais são os seus limites e espaço social;
b) É sustentar a hegemonia de um setor social sobre o outro – marxista;
c) Zaffaroni diz que é manter a hegemonia, mas também quando os outros sistemas não
funcionam, o sistema penal criminaliza pessoas do próprio sistema, para que não
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desenvolvam condutas prejudiciais à hegemonia do grupo (contestadores), mas essa


criminalização é rara. Ou então a criminalização não tem função. Só responde ao meio
hegemônico por causa da manipulação dos meios de massa.
CONCLUSÃO: A função é simbólica frente a marginalizados e próprios setores
hegemônicos (contestadores ou conformistas).
É possível que essa função social simbólica se realize por outros meios que não o
direito penal:
a) Socialistas extremados  que se reparta de forma igualitária o poder de forma que os
conflitos diminuam;
b) Verdes, ecológicos  busque-se racionalidade para resolver os conflitos. Se não é
racional, não use.
Ambas são correntes abolucionistas.
A lógica abolucionista é incontestável: o sistema não é racional.
Mas o abolucionismo radical está descartado. É politicamente inviável, porque o
poder não é racional.
Trabalha-se então com direitos humanos. Procura-se uma sociedade mais
igualitária, mais racional para solucionar seus conflitos. Mas isto se realiza por escalões e
demoradamente.
Busca-se uma política criminal alternativa, menos violenta. Os direitos humanos
traçam uma linha de limite da intervenção punitiva e aumenta o nivel de racionalidade –
princípio da intervenção mínima.

11 - O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA NA AMÉRICA LATINA


A intervenção mínima na América Latina tem mais fundamento que nos países
centrais.
Sofremos agressões no nosso direito humano ao DESENVOLVIMENTO – art.
22, da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em casos concretos no Haiti e El Salvdor
a OEA já reconheceu esse direito.
Essa agressão faz parte do sistema planetário de repartição de poder, que
internamente nos corrompe e nos leva a autodestruição – subdesenvolvimento.
Se usamos o sistema penal como única forma de controle só acrescentamos
violência à violência, o que é um SUICÍDIO como país.
CONCLUSÃO: Precisamos de um direito penal mínimo pelas mesmas razões dos
países centrais e também porque sofremos o injusto jushumanista da violência ao direito ao
desenvolvimento.

12 - O SISTEMA PENAL E A LEI PENAL


A lei penal é que define o âmbito de atuação do direito penal.
Mas existem outros “pretextos” que dizem ser “não penais”: contravenções,
averiguação de antecedentes etc.
A lei deveria ser o norte do direito penal, determinar su atuação. Mas na realidade
o sistema opera com orientação própria, de âmbito muito maior.
Existe um direito penal subterrâneo, resultado de uma estrutura de poder. Por isto
ele não se esgota nele mesmo, mas demanda um programa, que se realiza no tempo.
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Zaffaroni diz que é preciso uma crítica permanente na confrontação com a


realidade e a capacidade do direito penal para realizar os direitos humanos.
É uma evolução da interpretação, tendo como pano de fundo os direitos humanos.
O saber do direito penal tem de estar comprometido com os direitos humanos e
ideologicamente vinculado com o aumento do espaço social de todos na sociedade.
Mas para isto não precisamos de direito alternativo, normas supralegais, direito
natural (arbitrário). Precisamos é de uma consciência jurídica universal plasmada em
instrumentos positivos que formam o direito interno, numa reelaboração teórica do saber
penal, orioentada pelos direitos humanos e que abarquem dados da realidade.

2ª AULA – 25/03/03

CAPÍTULO II
O HORIZONTE DE PROJEÇÃO DO SABER DO DIREITO PENAL

I - O DIREITO PENAL

14 - DIVISÃO DA PARTE GERAL DO DIREITO PENAL


A Parte Geral quer responder a 3 perguntas:
a) O que é direito Penal? – Teoria do saber do Direito Penal.
b) Que requisitos jurídicos deve ter o delito? – Teoria do delito.
c) Quais as conseqüências penais do delito? – Teoria da coerção penal.
A resposta à 1ª pergunta será estudada em duas partes:
Teoria do saber penal
a) Delimitaremos o objeto do saber do direito penal = horizonte de projeção
b) Fundamentação filosófica e política deste horizonte

15 - CONCEITO GERAL DE DIREITO PENAL


A expressão direito penal designa:
a) O conjunto de leis penais  a legislação penal
b) O sistema de interpretação desta legislação  o saber do Direito Penal.
Quanto a letra “a” definimos o DP assim:
“É um conjunto de leis, que traduzem normas, que pretendem tutelar bens
jurídicos, e que determinam o alcance de sua tutela. A violação dessas leis chama-se “delito”,
cuja sanção é a pena, que tem por finalidade evitar o cometimento de outros delitos por parte
do autor.”
Quanto a letra “b” definimos o DP assim:
“É o sistema de compreensão da legislação penal. O DP interpreta o próprio DP –
legislação –, o que é comum às outras ciências: a física interpreta a física etc.
A interpretação dá lugar a um sistema de compreensão de seu objeto (daquilo que
se interpreta). No nosso caso, cria um sistema de compreensão do DP.
A legislação penal se diferencia do restante da legislação, por causa da sanção:
pena. Com isto procura obter de forma direta e imediata que o autor não cometa novos delitos.
No restante da legislação, a sanção normalmente é reparatória.
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16 - DENOMINAÇÃO
Chamam de Direito Penal ou Direito Criminal. Hoje predomina DP. Ex.: Còde
Penal, Codice Penale, Código Penal em Portugal, Argentina e Espanha. É o direito da pena.

17 - O HORIZONTE DE PROJEÇÃO DO SABER DO DP


Toda ciência é parcial, porque tem um só objeto, que é o seu horizonte de
projeção.
Antes de construirmos um sistema de compreensão de uma ciência, devemos
primeiro compreender qual o horizonte de projeção dela, qual o seu objeto, embora este se
altere freqüentemente. E se altera porque o desenvolvimento do sistema de compreensão
estoura o limite do horizonte de projeção, do objeto. Ex.: antigamente o objeto do DP era
regular ações de animais e coisas. Hoje se reduz à conduta humana.
O DP não se ocupa do homem pelo que ele é – cor da pele. Ele só regula
condutas. Quando percebemos que o DP seleciona alguém pela cor da pele por exemplo, é
necessário encontrar uma solução que exclua o sujeito da responsabilidade penal.

18 - O DIREITO PENAL E A FILOSOFIA


Todas as ciências se vinculam à filosofia. Cada ciência tem um objeto, um ser,
uma ontologia regional. A filosofia pergunta-se pelos seres em geral, é uma ontologia (estudo
dos seres).
A filosofia não estuda todos os entes, como uma super ciência. Isto não tem
sentido. Como ontologia, estuda o que é comum a todos os seres, aos objetos, aos entes de
todas as ciências, inclusive pelo próprio ente do ser que faz a pergunta  antropologia.

19 - O CARÁTER PÚBLICO DO DP
Como o DP tutela bens jurídicos contra ataques que lesam a segurança jurídica, é
um ramo do direito público, ou seja, um ramo em que o Estado intervém diretamente – não
pode ser privatizado.
Isto não significa que o Estado tenha um direito subjetivo de punir porque o bem
lesado é seu – segurança jurídica, ou paz social. Isto levaria a afirmar que se pune o homicida
não porque tirou a vida de alguém, mas porque afetou a segurança jurídica.
A idéia do direito de punir do Estado existe só para limitá-lo: até onde pode punir.
Esses limites vem de toda ordem jurídica. Existe um espaço livre para cada um de
nós no qual o Estado não pode intervir, porque o direito reconhece que toda pessoa é capaz de
autodeterminar-se de acordo com sua consciência – Art. 1º da DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DOS DIREITOS DO HOMEM.
Isto importa em que a legislação reconhece a dignidade da pessoa humana e disto
advém as seguintes conseqüências:
a) O Estado não pode pretender impor uma ordem moral. Ex.: limitar o número de filhos,
penalizando quem tiver mais de 2. Não pode proibir manifestações artísticas etc.
A moral de uma pessoa, de um povo, surge daquilo que ele livremente escolhe
como moral e não do que o Estado – grupo de poder – acha que é moral. Conclusão: o Estado
totalitário é imoral, porque impede a escolha pessoal – mérito moral.
b) Ao invés de impor uma moral, o Estado pode reconhecer um âmbito de direito moral.
Assim, ele possibilita a “conduta moral” de seus habitantes. O mérito está em poder
escolher o moral e o imoral.
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c) A possibilidade de escolha leva a que a pena não recaia sobre condutas que recaem sobre
escolhas morais. Sobre estas temos autonomia – CF e leis garantem. Recaem sobre
condutas que afetam o exercício desta autonomia ética. Exemplos:
- Não se penaliza a mulher porque se prostitui. É uma escolha moral sua. Mas pune-se o
estuprador, porque ele obriga ou impede a mulher de exercer sua escolha moral-sexual.
- Não se pune quem dilapida seu patrimônio no jogo. Esta é a sua escolha. Mas pune-se o
ladrão, que obriga ou impede a pessoa de dispor de seu patrimônio livremente.
d) Se optamos por um Estado moral – respeito à dignidade da pessoa humana de seus
cidadãos = escolha – são delitos só as condutas que afetem bens jurídicos alheios, ou seja,
aqueles necessários a que não possamos exercer a nossa livre escolha (vida, patrimônio,
honra, saúde, administração pública, o Estado em si). O Estado protege direitos.
e) Um direito penal assim concebido usa da pena para proteger bens jurídicos. Não tem uma
função de castigo, de expiação,
Zaffaroni não leva em consideração a função retributiva da pena como castigo
moral. A pena garante à vítima que goze livremente de seus bens na sociedade. Não se pune
quem subtraiu um bem, garante-se o uso de bens pela sociedade quando se aplica a pena.

II - O OBJETIVO DA LEGISLAÇÃO PENAL

20 - TEM SENTIDO PERGUNTAR-SE PELO OBJETIVO DA LEGISLAÇÃO PENAL?


Vimos na aula passada que o direito penal tem uma função social. Esta função de
controle social é estudada por sociólogos, não por juristas.
Mas tanto políticos quanto juristas devem perguntar-se: qual o objetivo da lei
penal?
O político, levando em conta a realidade, criticará as leis e indicará reformas
legislativas que aproximem as leis de seus objetivos.
O jurista, levando em conta a realidade, interpretará o sentido e os limites das
disposições legais de maneira compatível com o objetivo geral – afastam-se normas
inconstitucionais.
CONCLUSÃO: o DP tem um caráter PROGRAMÁTICO e não a mágica da
solução DEFINITIVA do objeto legal alcançado porque se prendeu um criminoso.

21 - AS RESPOSTAS USUAIS
Se responde sobre o objeto do direito (legislação penal) de modo contrário e
excludente:
a) A meta é a segurança jurídica. A pena deve ter efeito de prevenção geral. A pena se dirige
àqueles que não delinqüíram = RETRIBUIÇÃO.
b) É a proteção da sociedade e a defesa social. A pena deve surtir efeito sobre o delinqüente,
para que não volte a delinqüir = PREVENÇÃO ESPECIAL. A pena se dirige àqueles que
delinqüíram = REEDUCAÇÃO OU RESSOCIALIZAÇÃO.
c) É prevenção geral e especial. São as opiniões mais generalizadas hoje, com base na
doutrina alemã. O fim da pena é a retribuição. Da execução da pena é a ressocialização.
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Posição “A” Posição “B”


O direito penal para uns, a segurança jurídica (entendida por e, para outros a defesa social
deve ter como uns como tutela de bens jurídicos, e, por
objetivo outros, como tutela de valores ético-sociais
A pena deve para uns, aos que não delinqüíram (prevenção e, para outros, aos que
dirigir-se geral) delinqüíram (prevenção
especial)
A pena deve ter para uns mais conteúdo retributivo e, para outros, conteúdo
ressocializador

A resposta parcializada – segurança jurídica ou defesa social – normalmente são


ideologias importadas, baseadas em problemas concretos dos países centrais e de seus
momentos políticos, que são estranhos à nossa realidade.

22 - EXISTE SEGURANÇA JURÍDICA?


A segurança jurídica é meta de todo direito e não só do direito penal.
Mas o que é segurança jurídica?
O direito é um instrumento para viabilizar a existência humana – relação entre
homens. Então, a nossa existência é uma forma de coexistência (viver com os outros, que
também existem). Disso decorre que sequer temos consciência do “eu” quando não há um
“tu” de quem nos distinguimos (os dois lados da forma).
Para assegurar existências simultâneas (coexistências) é preciso uma ordem
coativa que impeça a guerra civil, fazendo mais ou menos previsível a conduta alheia, ou seja,
cada um sabe que o outro se absterá de condutas que afetem seres (entes) necessários para que
o homem se realize em coexistência, que é a única forma de realizarmo-nos.
Estes entes são os bens jurídicos ou direitos.
Segurança jurídica é proteção de bens jurídicos como forma de assegurar a
coexistência. Só se tem segurança jurídica quando se garante que cada um possa dispor – usar
– o que considere necessário para a auto-realização.
Sendo assim, a pena afeta um bem jurídico do autor do delito (liberdade,
patrimônio ou direitos). Isto só tem sentido se garantir os bens jurídicos do resto dos
integrantes do grupo social.
Mas esta privação de bens não pode exceder certos limites, sob pena de causar
insegurança jurídica: o que pensaríamos se cortassem as mãos do ladrão, se matassem quem
falsificou uma CNH.
Estes limites são determinados pelo momento histórico. Já se cortou mãos de
ladrões. Mas isto era tolerável na época, como ingerência do poder nos nossos bens.
A pena deve reforçar o sentimento de segurança jurídica. Quando ultrapassa o
limite de tolerância social traz mais insegurança. Ex.: processos contra opositores do regime
militar.
Poder-se-ia argumentar que a lei penal tutela mais bens de uns que de outros,
causam mais alarme numa sociedade que noutra, e que por isto não se pode dizer o que é
segurança social.
15

Embora isto seja verdade, devemos compreender que o DP tem um objetivo


político. Ele tende a diminuir certas diferenças, a procurar igualar as tutelas. Deve contribuir
para diminuir diferenças, fomentar a integração e criar condições de convivência.
Essa segurança jurídica será maior na medida que a estrutura social seja mais justa
e que cada homem sinta que seu espaço é maior na comunidade na medida em que ele não
aumente antagonismos.
O sentimento de segurança jurídico é comunitário e depende da participação
comunitária, o que é sempre uma questão de grau: sociedades mais ou menos desenvolvidas.
Por isto que, embora o objeto do DP seja a lei, nunca se deve perder de vista o
dado da realidade no momento de interpretar a lei. O jurista não é só um aplicador da lei.
Zaffaroni acha que esta é a função do direito.

23 - O QUE É DEFESA SOCIAL


É um conceito obscuro. Por sociedade pode-se entender:
a) Um ente superior de que dependem os homens que o integram.
- é um organismo, do qual as pessoas são celular;
- é um ente (ser) composto de corpo e alma (antropomórfica);
- é um ente superior ao homem.
A esta sociedade corresponde um direito penal transpersonalista e autoritário, que
será mais autoritário quanto mais se queira identificar a sociedade com o Estado.
Este direito não busca assegurar o gozo de direitos (segurança jurídica), mas a
realização desse super-ente, do qual o homem é quase nada.
O direito brasileiro não tolera essa concepção de Estado. Só tolera a limitação do
homem por razões de convivência.
Se a defesa social for entendida com esses limites, ela se aproxima muito da
segurança jurídica. Não há porque distinguir.

24 - TUTELA DE BENS JURÍDICOS OU DE VALORES ÉTICOS?


A maioria da doutrina entende que deve tutelar bens e valores respectivamente –
PREVENÇÃO E RETRIBUIÇÃO. Discute-se qual é a prioritária e, no fundo, ambas se
combinam.
Qual a diferença entre ética e moral?
A ética se refere a comportamento social. Pautas de conduta indicadas
(constituídas) pelo grupo social (sociedade).
A moral é o contrário. Vem assinalada pela consciência individual. São pautas de
conduta que cada um indica à sua consciência.
Se ética for isto, todo direito tem uma aspiração ética, porque regula condutas em
sociedade. Aspira evitar o cometimento e repetição de ações que afetem de forma intolerável
os bens jurídicos penalmente tutelados.
Se é assim, quanto mais se aproxima de sua aspiração tem uma função formadora
do cidadão. A pena deve ter esta aspiração ética, não como um fim em si mesma, mas no
sentido de que sua finalidade é a preservação de afetação de bens jurídicos.
O fim é prover à segurança, tutelando bens jurídicos. Marca um limite racional à
aspiração ética do DP:
16

a) Não se pune a mulher porque usa uma saia maior ou menor, porque contradiz a moda. Mas
pune-se o casal que pratica ato sexual em via pública, porque isto afeta o sentimento de
recato e reserva sexual daqueles que se vêem constrangidos a presenciar o ato sexual;
b) Não se pune quem se despe em casa, mesmo que alguém o observe de um lugar
privilegiado, porque sua privacidade foi quebrada;
c) Não se pune quem usa barba ou cabelo comprido, porque o direito penal não visa formar
cidadãos barbudos ou cabeludos, mas apenas cidadãos que não afetem bens jurídicos
alheios.
E isto não tem nada a ver com a moral:
a) Carrara já falava: o casamento é muito moral, mas não é lícito o casal colocar a cama na
calçada;
b) Por outro lado, pode ser imoral, mas lícito, convidar os vizinhos para partilhar o quarto
conjugal, porque irão se quiserem.
O direito penal desvalora (diz que é mau) um resultado que se traduz numa
afetação de bem jurídico (por lesão ou por perigo) porque é resultado de uma conduta e não
porque é uma mera mutação física. O direito regula condutas e não mutações físicas.
Também desvalora uma conduta que produz resultado (impossível sem resultado)
porque, embora o resultado seja distinto da conduta, para o DP só tem relevância o resultado
acompanhado da conduta (relação de causalidade).
É arbitrário, portanto, separar o desvalor da conduta do desvalor do resultado, da
objetividade da conduta do da sua subjetividade. Ex.: quando o DP desvalora só conduta sem
resultado, normalmente confunde ética e moral e dissimula isto com o argumento de perigo
abstrato. Manipula essa norma que vai servir de serva dos grupos de poder:
a) vadiagem;
b) mendicância;
c) embriaguez;
d) a lei seca americana foi resultado da luta entre grupos estabelecidos – puritanos – frente a
imigrantes predominantemente católicos. Não tinha por fim proteger bens jurídicos. Os
resultados foram desastrosos. Foi um pretexto ideológico – bebida – para um grupo se
sobrepor ao outro. E o DP não pode ser o símbolo de uma guerra de um grupo contra o
outro, porque ele protege a realização como pessoa de todos.

III - A TAREFA ASSEGURADORA DO DP NO MARCO DA ORDEM JURÍDICA

25 - O CARÁTER DIFERENCIADOR DO DP
O DP como todo direito provê a segurança jurídica, é cultural, normativo etc. O
que o diferencia é a sanção. Ele procura cumprir a função de prover à segurança jurídica com
o uso da pena.
E a pena se diferencia das outras coerções (reparação de danos, por exemplo)
porque tem um fim preventivo ou particularmente reparador (multa e restritiva de direito).

26 - O CARÁTER SANCIONADOR DO DP E SUA AUTONOMIA


O DP é sancionador e não constitutivo. Isto quer dizer que ele não cria a
antijuridicidade. Só agrega condutas que já são antijurídicas à luz de outras normas e as
sanciona com a pena.
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As vezes ele cria antijuridicidade: omissão de socorro, tentativas que não


lesionam etc. Mas isto é exceção. Podemos dizer que o DP é excepcionalmente constitutivo e
predominantemente sancionador.
É autônomo, ou tem autonomia científica, porque tem um objeto próprio, a
proteção de bens jurídicos através da pena, o que permite que ele elabore seus próprios
conceitos, a partir do particular enfoque preventivo especial ou reparador extraordinário.

IV - A COERÇÃO PENAL COMO MEIO DE PROVER A SEGURANÇA JURÍDICA

27 - O CONCEITO DA COERÇÃO PENAL


Nem todas as condutas antijurídicas são delitos, mas todos os delitos são condutas
antijurídicas. A conseqüência penal é a pena. Ex.: art. 157 gera reparação e pena. Esta é a
penal.
Se distingue das outras coerções porque procura evitar novos delitos: prevenção
especial e reparação extraordinária (que vira pena se não for cumprida).
A pena, como conseqüência do DP, deve perseguir a segurança jurídica =
prevenção de outros delitos. Uns afirmam que a prevenção é geral = exemplaridade. Outras
que é especial = reparadora.

28 - CRÍTICA DA TESE DA PREVENÇÃO GERAL


O meio pelo qual se pretende alcançar a prevenção geral é o exemplo. Prendendo
se intimida e se vinga.
O nosso inconsciente funciona assim: se eu cumpro as leis, porque o outro não
cumpre. Se me sacrifico o outro deve se sacrificar também. Se não o faz, inconscientemente
clamo por vingança.
Nesse aspecto a prevenção geral se aproxima da vingança: a pena justa é aquela
que retribui o mal causado – olho por olho, dente por dente. Este é o mecanismo de
funcionamento da prevenção geral.
Para um Estado autoritário tudo bem. É um instrumento de dominação.
Para um Estado de direito, no qual o DP busca formar cidadãos conscientes e
responsáveis, isto não é racional.
Sociologicamente falando, a sociedade é uma estrutura de poder, com pessoas
perto do poder e pessoas marginalizadas. Se o DP for utilizado como vingança, essa
prevenção geral será utilizada por quem detém o poder em detrimento dos marginalizados,
porque são mais fracos. A prevenção geral seria o instrumento de cobertura da ideologia
dominadora.
Que a pena tem um efeito de prevenção geral, é inegável. Mas isto é matéria da
sociologia. O que não pode é eleger como fim principal da pena, sob pena do Estado
autoritário estar sempre aumentando a pena para intimidar marginalizados. É efeito
secundário.
Toda ordem jurídica tem função de segurança jurídica. Toda antijuridicidade gera
sanções não penais, reparadoras, retributivas. Na medida em que a ordem jurídica retribui ela
tem função de prevenção geral expressa pela norma: não devemos prejudicar o próximo.
Não obstante essa prevenção geral às vezes não é suficiente. Daí a existência do
direito penal aplicando uma pena, que é uma prevenção particular. Não porque o fato é mais
grave que reclama uma prevenção geral mais forte, mas sim casos que se exige uma
prevenção geral DIFERENTE (particular) porque a geral não funcionou.
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O DP não tem uma superioridade ética sobre os outros ramos do direito, de modo
que só ele tem uma função de prevenção geral. Esta é função de todo ordenamento, e não só
do direito penal.

29 - PREVENÇÃO GERAL E FUNÇÃO SIMBÓLICA DA PENA


É claro que a pena tem uma função simbólica, embora a prevenção geral não seja
um fim específico.
O que se quer dizer é que a pena deve ter um fim específico – que a distingue de
outras penas – e esta não pode ser a prevenção geral, mas a particular. Ela não pode se limitar
a ser simbólica, sob pena de violar os direitos humanos: se vale de um homem como
instrumento, como um meio – e não um fim. Coisifica o homem.

30 - A PREVENÇÃO PENAL COMO OBJETIVO DA PENA


A prevenção especial é a única finalidade da pena, é o que distingue a sanção
penal. Mas devemos precisar o que é isto.
Utilizam-se vários vocábulos para falar da função da pena: ressocialização,
reeducação, readaptação, enfim, instrumentaliza a pena como um “tratamento penitenciário”.
Zaffaroni usa ressocialização como prevenção penal especial.
Prevenção especial:
a) Não pode ser qualquer constrangimento físico – morte, prisão perpétua etc. Prisão como
afastamento do meio social só, porque isto não motiva a conduta, apenas a impede, o que
fere a autonomia ética do homem (art. 1º, da Declaração Universal dos DH).
b) Não pode ser reeducação, nem tratamento, que visualiza o homem como um ser carente no
sentido “moral” ou “médico”. O criminalizado tem plena capacidade jurídica. No plano da
dignidade humana é igual a nós. Não é um ser inferior.
c) Como cada delito tem significado social diferente, além do que a criminalidade é um
processo de seleção, a pena não pode ser rígida, mas deve traduzir objetivos concretos:
resolver o conflito que surge com a criminalização;
d) A prevenção especial deve permitir uma pluralidade de soluções que permita resolver o
conflito de modo mais adequado.
O art. 5º, § 6º, do Pacto de S. José diz que a pena visa a “reforma” e a readaptação
social do condenado”. Estes objetivos são de toda prevenção especial que se dirija ao
criminalizado (tem outro que se dirige à vítima).
Por reforma entendemos:
Privação de algo que ele tem por valioso e que pode gerar contramotivação. Ex.:
multa, prestação de serviços à comunidade, pagamento de uma quantidade de dinheiro à
vítima etc.
É o gênero de prevenção especial requerido para quem furta em lojas, ao
estudante que furta gasolina para passear com a namorada etc.
Quanto a readaptação podemos dizer que às vezes a criminalização seletiva torna
o homem particularmente vulnerável ao sistema penal: reincidente. Pode acontecer isto
antecipadamente: gerado por outros sistemas de controle social: Ex.: mídia/violência;
desadaptação escolar, residência em ruas, desemprego etc.
Nestes casos gera um condicionamento que o DP pode reforçar se cai na ficção da
vingança, ou pode diminuir, se ele capta a realidade do conflito.
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A função de prevenção especial nestes casos é de diminuir a vulnerabilidade ao


sistema penal, a ensiná-lo a não dar a cara ao controle social institucionalizado.
Não podemos condicionar, treinar, o criminalizado no trabalho, no estudo, na
religião etc., para que ele crie o hábito social. O que se deve fazer é fazê-lo tomar consciência
de que se ele continuar fora dos sistemas, acabará sendo capturado pelo sistema penal. Não é
um aprendizado, um adestramento, mas uma tomada de consciência. Para isto existe
assistência social, a psicologia aconselhadora etc.
Se a finalidade de prevenção especial fosse só fazer com que o criminalizado não
voltasse a delinqüir, a medida da pena deveria ser a da periculosidade, justificando-se até a
pena de morte.
Mas como é prover a segurança jurídica principalmente, é preciso que haja
proporção na pena, cujos limites são os direitos do homem, porque só isto reforça o
sentimento de segurança jurídica. Ex.: se um vizinho bêbado chuta minha lata de lixo toda
noite, concordo que ele passe uns dias na cadeia, mas não compreenderia se lhe cortassem o
pé fora. Imagino que poderia ser no lugar dele e procuraria me afastar de uma sociedade
assim. O sentimento seria de medo, terror, afastamento, não segurança.
Por isto que a prevenção especial deve ser um meio para prover a segurança
jurídica no meio social, e não um meio para impor o terror, com base na periculosidade. A
pena deve guardar proporção com:
a) o grau de afetação do bem jurídico;
b) o grau de culpabilidade, reprovação que cabe ao autor da conduta.

31 - A PREVENÇÃO ESPECIAL EM RELAÇÃO À VÍTIMA


O DP pouco faz pela vítima. Preocupa-se em penalizar o autor de uma lesão ou
perigo, mas nada faz pela reparação do dano pela via penal.
Isto demonstra que o DP está mais preocupado com a imposição de pautas do que
com a proteção de bens jurídicos. Neste aspecto, durante séculos se defrontaram o direito
penal romano e o direito penal germânico. Para o primeiro o fim era a afirmação do Estado.
Para o segundo a paz social mediante a reparação do dano.
É uma pena que a reparação não seja prestigiada pelo nosso DP, pois:
a) previne delitos, pois desestimula a vingança privada;
b) previne delitos, na medida em que sujeita o réu a indenizar a sua própria vítima. Efeito
moral.
No caso penal, a não reparação não seria uma obrigação de fazer, porque seu
descumprimento redundaria numa pena.

V - DIREITO PENAL DE CULPABILIDADE E DE PERICULOSIDADE

32 - DIREITO PENAL DE CULPABILIDADE E DE PERICULOSIDADE


Partidários da segurança jurídica e da teoria retributiva defendem um direito penal
da culpabilidade.
Partidários da defesa social e da teoria reeducativa ou ressocializadora defendem
um direito penal da periculosidade.
a) Direito Penal da culpabilidade:
- Para admitir a possibilidade de censura a um sujeito é necessário supor que o sujeito tem a
liberdade de escolher, isto é, de autodeterminar-se. Ex.: quem escreve uma carta injuriosa a
20

alguém, coagido por uma arma, não é reprovado, não é culpável, pois não lhe era exigível
outra conduta.
- O homem tem uma autonomia ética, é uma pessoa.
- A pena é determinada pelo grau de reprovação da conduta.
b) Direito Penal da periculosidade:
- O homem se move por causas. Não tem liberdade de escolha;
- A escolha é só uma ilusão;
- Não há culpabilidade porque não há autonomia ética, pessoa;
- A pena é determinada pelo grau de determinação do homem para o delito = periculosidade.

Direito penal de culpabilidade Direito penal de periculosidade


O homem pode escolher O homem está determinado
Se pode escolher, pode ser Se está determinado, pode-se
censurado (culpabilidade) constatar em que medida o está
(periculosidade)
A pena retribui a culpabilidade A pena ressocializa neutralizando
a periculosidade
O limite da pena é o grau da O limite da pena é o grau da
culpabilidade periculosidade

CONCLUSÃO: O homem, embora determinado pelo meio, jamais perde a sua


capacidade de escolha. O excluído, marginalizado, a mantém, embora restrita. Ex.: a favela
não é feita só de criminosos.
Daí que o problema deve ser resolvido em cada caso concreto, graduando a
culpabilidade, não tomando o sujeito sem mais sem menos por perigoso, porque
condicionado, que merece uma pena sem limite, um tratamento.

33 - DIREITO PENAL DE AUTOR E DIREITO DO ATO


Direito penal do autor:
a) Revela uma forma de ser do autor – delitiva;
b) O ato criminoso é sintoma da personalidade;
c) Pune-se a personalidade e não o ato. Ex.: não se condena tanto o furto, como o ladrão;
d) É apropriado ao direito penal da periculosidade – personalidade perigosa, que deve ser
consertada como uma máquina.
Há um direito penal de autor, mas também de ato (é o mais difundido):
a) Não nega a autonomia moral do homem, mas entende que isto o leva à destruição;
b) Há personalidade inclinada ao delito, que é gerada pela repetição de condutas, num
momento livremente escolhido;
c) A reprovação é feita ao autor, à sua personalidade, e não em virtude do ato.
O direito penal do ato não se realiza plenamente em nenhum país. O que não se
pode fazer é penalizar o homem por ser como escolheu ser, sem que isto violente sua
autodeterminação.
21

VI - AS “TEORIAS DA PENA”

34 - AS CHAMADAS TEORIAS DA PENA


Devemos saber que uma teoria da pena é uma teoria do DP.
Teorias:
a) Absolutas:
- A pena tem um fim em si mesma, não um fim ulterior. É a retribuição pura e simples (Kant e
Hegel).
- Hoje não possui adeptos.
b) Relativas:
- é o contrário: a pena é um meio para obter determinados fins – utilitarismo;
- Se dividem em:
- prevenção geral  surte efeitos sobre os membros da comunidade que não delinqüíram.
Feuerbach dizia que é uma coação psicológica a possíveis autores de crimes.
- Prevenção especial  A pena age sobre o apenado.
- Positivistas em geral.
c) Mistas:
- Partem das teorias absolutas e se socorrem das relativas para cobrir falhas;
- Hoje são as mais difundidas;
- Alemanha: prevenção geral, mediante retribuição justa;
- Zaffaroni obviamente não concorda com elas.

35 - SISTEMAS UNITÁRIOS E SISTEMAS PLURALISTAS


a) Unitário:
- Sustentada tanto por adeptos do direito penal da culpabilidade pura  a única conseqüência
penal é a retribuição. E também por adeptos do direito penal da periculosidade  a pena é a
medida neutralizadora da periculosidade.
b) Pluralistas:
- Procuram combinar as partes, conciliá-las;
- Não são racionais, pois aplicam penas junto com medidas de segurança, tentam
compatibilizar idéias incompatíveis;
- Foi adotada pelo CP/40.
- Alguns aplicam o sistema vicariante.

36 - MEDIDAS DE SEGURANÇA
Integram as sanções penais com base na periculosidade e tem categoria distinta da
pena.
Aplicam-se:
a) Antes do delito:
- para prevenir delitos;
- estado perigoso sem sentido;
22

- estados ou condutas que revelam periculosidade, mesmo sem cometer delitos;


- vadiagem, mendicância, embriaguez, prostituição, jogo. No Brasil é pena.
- Violam o princípio da legalidade também no Brasil.
b) Depois do delito, para ressocializar:
- junto ou em lugar da pena;
- algumas se dirigem a reincidentes (CP/40);
- chamadas de “medidas”, na verdade são penas;
- com o pretexto de ressocializar, confinam, penalizam, e isto é pena;
- as vezes se cumprem nas próprias prisões, pois não há local adequado. Chamamos de
embuste de etiquetas.
c) Se destinam a incapazes:
- sem capacidade psíquica suficiente;
- Não tem caráter materialmente penal, só formalmente porque é lei penal;
- Não são sanções, ainda que o sistema as distorça e as aplique algumas vezes como sanção;
- A periculosidade que a justifica não é da personalidade, mas de autolesão, que não é delito;
- São experimentadas como penas, severíssimas, porque não tem prazo e implica em
internação em manicômio comum.

3ª AULA – 31/03/03

INTRODUÇÃO
Falamos na 1ª aula que:
a) A sociedade, ou seja, nós, somos controlados por sistemas de controle social e que o direito
penal é só um destes sistemas – menos racional e mais violento;
b) Vimos que quem exerce o controle social é uma estrutura de poder que, se não for limitada,
extrapolará – política. Estes limites estão nos direitos fundamentais do cidadão, que vêm
sendo construídos e estudados desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem de
1948, passou pelo Pacto de S. José da Costa Rica, está na C.F. do Brasil;
c) Vimos que a A.L. é um continente marginalizado, longe das estruturas universais do poder
e, portanto, mais susceptível à manipulação e violência. Por isto os direitos humanos levam
a um direito penal mínimo, para não acrescentar mais violência à violência social da
marginalização. Precisamos criar uma ideologia própria do direito penal, que só se
desenvolve no contexto do estudo aos direitos humanos, embora a conclusão possa ser por
um DP repressivo ou humanista. É só uma ideologia.
Vimos na 2ª aula que:
a) O DP pode ser conceituado a partir da legislação (conjunto de leis, com finalidade de
reprimir crimes, através da pena, que tem a função de prevenção especial);
b) O DP é um ramo do direito público, que busca a segurança jurídica – como todos os outros
ramos do direito – isso é igual a prevenção geral. E faz isto através da pena, que tem uma
função de prevenção especial, que nada mais é do que formar cidadãos pela: REFORMA
(privação de algo para contramotivar. Pequenas penas, multa, prestação de serviços à
comunidade, reparação direta à vítima etc.), e READAPTAÇÃO, que é uma tomada de
consciência pelo criminalizado para não dar mais a cara ao sistema penal. (Pacto de S.
José, art. 5º, § 6º);
23

c) O delito é uma intromissão proibida no gozo de meus direitos (bens jurídicos) e não a
prática de um mal (moral). Por isto que a conduta e o resultado são desvalorados e não só a
conduta (art. 13, do CP);
d) A pena só tem sentido se trouxer segurança jurídica = sociedade equilibrada pelo gozo de
direitos em igualdade, e não pelo terror;
e) O caráter diferenciador do DP é que ele age com a pena, que tem a função de prover a
segurança jurídica (como todos os outros ramos do direito = prevenção geral), que tem um
fim específico, que é preventivo especial ou particularmente reparador. Por isto o DP não
tem como função principal ser simbólico = prevenção geral;
f) A prevenção específica, respeitada a dignidade da pessoa humana, não pode ser:
- qualquer constrangimento físico;
- tratamento ou condicionamento social, porque não existem seres inferiores no plano da
dignidade humana;
- a pena não pode ser rígida, inflexível. Deve ser maleável (sistema de progressão,
substituição, e penas alternativas). A reparação de dano diretamente à vítima como pena é
uma boa alternativa.

CAPÍTULO III
FONTES, LIMITES E RELAÇÕES DO DIREITO PENAL

I - AS FONTES DO DIREITO PENAL

37 - FONTES DE PRODUÇÃO E DE CONHECIMENTO DA LEGISLAÇÃO PENAL


Fontes de produção da Das quais emerge a legislação penal: a União
legislação penal
Fontes de cognição da Representadas pela própria legislação (leis federais)
legislação penal São elementos legislativos que o saber penal deve interpretar e
explicar
Fontes de conhecimento do São aquelas empregadas pelo saber penal para a elaboração de
saber jurídico-penal seus conceitos (legislação, dados históricos, jurisprudência,
informação fática etc.)
Fontes de informação do De onde obtemos informações do passado ou presente deste
saber jurídico-penal saber penal (tratados, monografias etc.).

38 - FONTE DE PRODUÇÃO DO DP DO BRASIL É A UNIÃO


O art. 22, I, da CF diz que só a União pode legislar sobre o DP.
Estabelece também o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX) e como seu
corolário:
a) o princípio da irretroatividade (inc. XL);
b) o devido processo legal (LIV);
c) o contraditório e a ampla defesa (LV).
Estes princípios tem por origem a Declaração Universal dos Direitos do Homem
(art. XI, n. 1 e 2).
O princípio da legalidade está também no art. 1º, do CP desde 1940 (Costa e
Silva).
24

O princípio da legalidade deve respeitar a democracia – tripartição de poderes –,


mas, através da ideologia da necessidade – injustificável numa democracia –, entram leis
penais para o ordenamento através de decretos. Ex.: a Parte Especial do CP e a L.C.P. são
exemplos. A Lei das Pequenas Causas foi objeto de legislação estadual aqui no Mato Grosso
do Sul. São atos de força que às vezes pegam.

39 - FONTES DO CONHECIMENTO DO SABER JURÍDICO PENAL


O saber – o que é ciência do DP – não se configura só com dados legislativos. É
muito mais que isto. Ex.: são fontes do saber:
a) a filosofia  crítica do saber;
b) dados históricos
c) jurisprudência;
d) dados políticos e econômicos.
Se os sistemas, embora independentes, se comunicam, é óbvio que um interfere
no outro. Mas se comunicam através de um filtro.
Hoje ainda se fala – teorias idealistas e tecnocráticas – que o DP se resume à
interpretação das leis penais dentro de um sistema penal. A crítica é que isto reduz o DP a
uma técnica separada da realidade. Não é uma sociologia, mas também não possui verdades
fechadas.
Zaffaroni: O DP deve se comunicar com a realidade através da filosofia – o centro
onde se formam suas raízes – e onde devem ter raízes todas as ciências.

40 - AS FONTES DE INFORMAÇÃO DA CIÊNCIA DO DP


Nós chamamos de bibliografia penal. São todas as obras que falam sobre direito
penal.
É monstruosa e inabarcável. A biblioteca mais completa do mundo, que é a do
Instituto Max Planck, Friburgo, Alemanha, tem mais de 100.000 volumes.
A nossa literatura é influenciada pela Europa, mas possui desenvolvimento
original. Reconhecemos através dela:
a) diferenças;
b) períodos históricos;
c) correntes ideológicas etc., positivismo, principalmente.
O positivismo penal brasileiro teve representantes de nome na literatura penal e
são oriundos da “Escola do Recife”, cujo principal interlocutor foi Tobias Barreto,
influenciado diretamente pela obra de Darwin. (Obras: Fundamentos do Direito de Punir,
Comentários ao CC do Império etc.).
Escritores do positivismo penal:
a) Filinto Bastos (começo do séc. XX);
b) Viveiros de Castro;
c) Moniz Sodré;
d) Evaristo de Morais etc.
Mais jurídico:
a) Galdino Siqueira (1921);
b) Antônio José da Costa e Silva (1930).
25

Com estes dois encerrou-se a ideologia positivista.


Começa-se uma época influenciada pelo tecnicismo jurídico italiano e o
neokantismo alemão. Estão nessa linha os grandes comentadores do Código de 1940:
a) Nelson Hungria;
b) Roberto Lyra;
c) Aloysio de Carvalho Filho;
d) Magalhães Noronha;
e) Basileu Garcia;
f) Everardo Cunha Luna;
g) Anibal Bruno;
h) Paulo José da Costa Jr. etc.
Uma outra corrente idealista foi a do REALISMO FILOSÓFICO, que viria
desembocar no FINALISMO, até hoje seguido de perto ou de longe pela literatura penal
brasileira:
a) José Frederico Marques;
b) Heleno Cláudio Fragoso;
c) Francisco de Assis Toledo  Ministro do STJ e coordenador da Reforma de 1984;
d) Júlio F. Mirabete;
e) Luís Luisi;
f) René Ariel Dotti
g) Damásio de Jesus;
h) Manoel Pedro Pimentel;
i) Alberto Silva Franco;
j) Juarez Tavares;
k) Miguel Reale Jr.;
l) Luiz Régis Prado;
m)Celso Delmanto;
n) César Roberto Bitencourt etc.
Hoje temos:
a) Revista do IBCCrim;
b) Cadernos de Advocacia Criminal (Porto Alegre);
c) Discursos Sediciosos (revolta, motim, perturbador – RJ);
d) Ciência Penal (nova em SP).

II - LEGISLAÇÃO PENAL, CIÊNCIA DO DP E POLÍTICA CRIMINAL OU


CRIMINOLÓGICA

41 - POLÍTICA CRIMINAL
É a arte ou ciência do governo com respeito ao fenômeno criminal.
26

Sua função é de GUIA e de CRÍTICA às decisões tomadas pelo poder político


quando seleciona bens (ou direitos) que devem ser tutelados e escolhe os caminhos para
efetivar tal tutela (penas). O problema é não ser influenciada pelo discurso de justificação da
política.

42 - POLÍTICA CRIMINAL E LEGISLAÇÃO PENAL


Toda norma surge de uma decisão política, traduz uma decisão política. Mas:

a) Isto não implica que a norma jurídica fique submetida absolutamente à decisão política.
Ex.: controle de constitucionalidade.
b) Quando a decisão política gera (produz) a norma jurídica, esta é adotada pelo princípio da
legalidade. Ex.: não se cria crime por analogia, dizendo que foi a vontade do legislador.
c) A decisão política elege o bem jurídico tutelado e este componente político indica o fim da
norma na interpretação, muito embora a norma tenha vida própria. É um elemento
orientador da proibição e da permissão. Ex.: o Estado não pode fomentar em leis aquelas
atividades que proíbe em outras leis: ou não há proibição ou há permissão, como sucede
com as atividades desportivas perigosas.
A atividade política tem de fazer parte de um todo, do ordenamento. Não pode ser
diferente num caso e noutro sob pena de não existir como sistema.

43 - POLÍTICA CRIMINOLÓGICA E SABER PENAL


A política criminal se relaciona com o saber penal:

a) Proporciona o componente teleológico interpretativo.


b) O saber penal interpreta o seu objeto de conhecimento conforme a ideologia vinculada à
política, aplicando-se no caso concreto.
c) Não existe interpretação/ciência sem o componente ideológico, político. Existe um
compromisso ideológico do penalista e não só a subsunção do caso à norma pura.
Devemos tomar cuidado com as políticas criminológicas que nos são impostas
para criticar a sua ideologia – filosofia – e construir o conhecimento conforme a CF – ciência
–, já que o jurista não cria a ideologia, só interpreta a norma.

III - O DIREITO PENAL E AS OUTRAS DISCIPLINAS JURÍDICAS

a) Princípio Republicano (ou democrático) (art. 1º)  Determina a


interpretação lógica e coerente as leis;
b) Princípio da Legalidade (art. 5º, XXXIX) cujo corolário é o princípio da
Reserva legal (II)  Só é crime aquilo que é proibido por lei.
DIREITO c) Princípio da Retroatividade  A lei mais benéfica retroage para
CONSTITU- beneficiar o réu.
CIONAL (Dita a
política penal e d) Princípio da Personalidade ou da Transcendência da pena (XLV) 
vincula a nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente;
legislação penal) e) Princípio da Racionalidade (XLVII, letra a, b, c, d, e) e da Humanidade
da pena (XLIX)  proibição de penas cruéis, morte, prisão perpétua
etc.;
f) Competência exclusiva da União para legislar sobre direito penal (Art.
22, I)
27

a) Princípio da igualdade de todos perante a lei e da dignidade da pessoa


DIREITOS humana (Arts. I e II da DUDH e 5º, I, VI, VIII);
HUMANOS b) Direito à vida, à segurança pessoal e à liberdade (art. III). Ninguém será
(Fonte de arbitrariamente preso, detido ou exilado – art. IX;
conhecimento
c) Princípio da legalidade (XI, n. 2 e CF 5º, XXXIX e XLI e XL);
do DP –
Declaração DH) d) Princípio da humanidade (art. V e CF 5º, III)  proibição de tortura etc.;
e) Direito à privacidade ou à intimidade (XII e art. 5º, X, XI, XII, CF).
a) O DP impõe uma sanção a um delito e o processo penal põe em
DIREITO funcionamento a ação penal;
PROCESSUAL b) A sanção penal é a pena e a processual a nulidade;
PENAL c) Quando o DP não pode criminalizar uma pessoa ele absolve, quando o
DPP não tem provas ele não permite o início da ação.
a) Faz parte do direito penitenciário, que aspira ser um ramo do
conhecimento do DP – objeto próprio com princípios próprios;
DIREITO DA b) O DP fixa o objetivo da pena, a execução penal a forma como se chegará
EXECUÇÃO a esse objetivo;
PENAL c) O embasamento legal do direito penitenciário está na CF – art. 24, I
(competência da União em concorrência com Estados e DF para legislar
– Lei 7.210/84).
a) É o ramo mais importante do DP especial, porque tem penas graves;
DIREITO
b) Trabalha com princípios próprios, de acordo com sua função particular;
MILITAR
c) Tem um Código Penal Militar, que é de 1969.
a) É uma ordem de menor gravidade do DP;
b) Não existe diferença ontológica entre delito e contravenção, só de pena;
c) É um avanço imperialista do direito administrativo (poder executivo)
DIREITO sobre o DP;
CONTRA-
VENCIONAL d) São reguladas pelo Decreto-Lei 3.688/41;
e) A tentativa não é punível (art. 4º, LCP);
f) Para a existência da contravenção basta a culpa como regra geral (art. 3º,
LCP).
DIREITO DO a) Em muitos países é legislado com o DP. Não tem autonomia;
MENOR b) As medidas que se aplicam a menores não são penas, tendem a tutelar o
menor, protegê-lo, porque é um ser em inferioridade de condições em
relação a um adulto.
c) Aspira à formação do homem e não à prevenção especial;
d) É chamado a intervir diante do fracasso da família. Mas isto não pode
degenerar para paternalismo;
e) Na A.L. a situação do menor é pior do que a do adulto: sob o pretexto de
formar, retiram-se garantias constitucionais de liberdade, segrega-os
influenciando muito mais em sua personalidade do que a um adulto;
f) Sob o manto de um paternalismo exagerado (ECA) o que se tem na
prática é uma discricionariedade quase que absoluta para tratar do
28

menor.
a) Existe uma tendência – autoritária – do direito Administrativo se ampliar
às custas do DP;
b) Quer-se levar ao direito Administrativo o direito militar e o direito
contravencional;
c) Outra tendência é penalizar questões administrativas = ações sem
resultados;
d) O direito Administrativo prevê sanções disciplinares para integrantes de
DIREITO um corpo (advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria
ADMINISTRA- e disponibilidade);
TIVO e) As sanções tem caráter reparador e não de prevenção especial – repara a
imagem da administração;
f) Tanto o DP Administrativo, fiscal, econômico, são ramos do direito
penal e não do direito administrativo, e por isto devem obedecer aos
princípios do direito penal;
g) O direito Administrativo invade o direito Penal. Ex.: detenção para
identificação (contraria o art. 7º, § 3º, do Pacto de S. José). É um sistema
de controle e de conduta de massa, embora ilegal.
a) O DIPúblico regula as relações entre Estados e o DIPrivado a legislação
e a jurisdição nacional que deve ocupar-se de cada caso;
b) O DIPenal (relação do DIPúblico com o DP) estuda a tipificação
internacional de delitos por via de tratados e o estabelecimento da
jurisdição penal internacional (cortes internacionais de justiça penal);
c) O DPInternacional (relação do DIPrivado com o DP) determina o âmbito
de validade da lei penal de cada Estado e a competência de seus tribunais
penais.
d) Ambas as modalidades de DP Internacional são ramos do Direito
DIREITO Internacional e por isto obedecem a seus princípios;
INTERNA-
CIONAL e) O Tribunal de Nuremberg – Tribunal Militar Internacional – foi o 1º
Tribunal Internacional;
f) Não violou o princípio da legalidade porque os crimes já eram definidos
nas leis internas dos países (crimes contra a humanidade) e convenções
internacionais (crimes de guerra);
g) Violou a competência e a anterioridade da pena. Foi um Tribunal de
vencedores contra vencidos – de exceção;
h) Positivistas o criticam. Jusnaturalistas o elogiam. Mas a verdade é que
nem no direito Anglo-saxão se permite mais fixar delitos por
jurisprudência, como quiseram fazer em Nuremberg.
Observações sobre o Direito Penal Internacional, que é ligado ao Direito
Internacional Privado:
Existem 4 princípios reitores do Direito Penal Internacional que procuram
determinar o alcance da validade espacial da lei penal:
1. Territorialidade  A lei vigora no território e nos lugares submetidos à sua
jurisdição;
29

2. Nacionalidade ou personalidade  A lei aplicável é a do país de que é


nacional o autor do fato;
3. Princípio real ou de defesa  A lei penal aplicável é a do Estado que tutela
juridicamente o bem afetado no caso concreto;
4. Princípio universal ou justiça universal  É aplicada a lei do Estado que
efetuou a detenção do autor do fato.
O CP ocupa-se da matéria nos arts. 5º, 6º, e 7º.
ARTIGO 5º  Princípio da Territorialidade como regra geral:
a) O território é definido pelo DIPúblico: espaço aéreo, mar territorial etc.;
b) O § 1º estendeu a noção de território;
c) O § 2º diz que a lei brasileira terá efeito sobre estrangeiros...
ARTIGO 6º  Trata dos crimes à distância (a conduta tem lugar num território e
o resultado noutro), de acordo com a teoria da ubiqüidade. O Brasil não optou nem pela teoria
da ação, nem pela do resultado, pois poderia gerar um conflito negativo de competência.
Agora pode gerar um conflito positivo, que não se explica.
ARTIGO 7º  Exceções ao princípio da territorialidade:
a) Princípio real ou de defesa  os crimes:
- contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;
- contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território,
de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação
instituída pelo Poder Público;
- contra a administração pública, por quem está a seu serviço;
- de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil;
- que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;
- praticados por brasileiro;
- praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada,
quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados;
b) A aplicação da lei nos casos de justiça universal (tratados e convenções) e princípio da
nacionalidade ficam sujeitos a 5 condições:
- entrar o agente no território nacional;
- ser o fato punível também no país em que foi praticado;
- estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição;
- não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena;
- não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a
punibilidade, segundo a lei mais favorável.

46 - O PROBLEMA DOS CRIMES HEDIONDOS E OUTRAS DISCRIMINAÇÕES CONSTITUCIONAIS


A CF, no art. 5º, XLII (racismo), XLIII (crimes hediondos, tortura, tráfico de
entorpecentes e terrorismo), XLIV (ação de grupos armados contra a ordem constitucional e
Estado democrático) impede a liberdade durante o processo de pessoas que praticam esses
crimes. Sem se preocupar se isto é racional ou humano.
30

Estas disposições se consubstanciaram na Lei 8.072/90 e 8.930/94, que


etiquetaram alguns crimes como hediondos e restringiram direitos constitucionais.
O problema é que o direito à liberdade não pode ser limitado por disposições sem
racionalidade:
a) gravidade do fato;
b) ameaça de pena in abstrato e in concreto (se a acusação for fraca);
c) tempo razoável de prisão.
Estas disposições trazem à tona graves distorções constitucionais do Estado
Democrático de Direito, levantam o problema de normas constitucionais inconstitucionais e
se contrapõem a Convenções Internacionais de Direitos Humanos.
São problemas de vários países, que podem ser levados à julgamento por órgãos
internacionais.
O certo seria derrogar as leis que tratam desses crimes e processo, mesmo que
ficassem sem lei e sem regulamentação parte da constituição.

IV - RELAÇÕES E DELIMITAÇÃO DO DIREITO PENAL COM A CRIMINOLOGIA


E OUTRAS DISCIPLINAS

55 - A CRIMINOLOGIA
São chamadas “ciências da conduta” as que estudam a conduta humana do ponto
de vista do SER desta conduta.
O DP só determina que condutas devem ser desvaloradas e como se traduz este
desvalor em conseqüências jurídicas. Não se pergunta acerca do SER desta conduta:
a) o que ela representa na biografia do sujeito;
b) que problemas sociais surgem com condutas criminosas.
Estas são questões de outras ciências: a psicologia e a sociologia, ou seja, das
ciências que estudam a conduta humana.
Não se trata de ciências com OBJETOS distintos, mas disciplinas com um mesmo
objeto (a conduta humana) e 3 níveis diferentes de complexidade.
A relação entre estas três ciências tem sido tormentosa, existindo mais choques do
que aproximação, e a gente fica sem saber muito bem o que é o DP, a psicologia, a sociologia
penal.
Está na moda hoje reduzir o DP à sociologia e de outro lado dizer que ele não tem
nada a ver com ela: é uma técnica.
Nesse contexto surgiu mais uma ciência que tem por objeto a conduta humana,
que é a criminologia:
É a disciplina que estuda a questão criminal do ponto de vista biopsicosocial, ou
seja, integra-se com as ciências da conduta aplicadas à condutas criminais.
Oferece dados de utilidade ao DP e para a política criminal, possibilitando uma
atuação mais racional no aspecto do controle social.

56 - A CRIMINOLOGIA POSITIVISTA
Até pouco tempo atrás afirmou-se que a criminologia era uma ciência causal-
explicativa  explicava as causas e as origens das condutas delituosas.
31

Primeira dificuldade:
a) estabelecer o objeto da sociologia, que vinha dado pela lei penal, ou seja, por um ato do
poder público;
b) esta era a sua primeira contradição: como poderia ser uma ciência asséptica e objetiva
ideologicamente se o seu objeto era dado pela política?
c) Procuraram construir um conceito de delito natural/universal, mas caíram numa
criminologia de valores, ideológica.

57 - A CRIMINOLOGIA DA “REAÇÃO SOCIAL”


As várias explicações que foram dadas pela criminologia positivista acabaram por
romper o seu horizonte de projeção – OBJETO (conduta de criminalizados). Passa a abarcar o
mecanismo mesmo da criminalização e o funcionamento de todo sistema penal como parte do
controle social.
Surge a criminologia da “reação social”, superando a “conduta criminalizada”, a
partir do reconhecimento de que sem criminalização não há crime.
Novamente a criminologia rompe este objeto e procura explicar todas as
“violações aos direitos humanos”. É a briga hoje das chamadas escolas criminológicas: qual é
nosso objeto?
O que importa é que:

a) Há uma criminologia positivista ou tradicional que estuda a conduta dos criminalizados 


Deixa o DP fora de seu objeto e com isto aceita a ideologia veiculada por ele através das
leis. Acaba justificando o sistema penal e de controle social de que faz parte.
b) Há uma série de conhecimentos tecnológicos e psicológicos que demonstram o processo
de seleção estigmatizante, corrupção e compartimentalização que denunciam o conteúdo
ideológico dos discursos jurídicos e criminológicos tradicionais. Não é asséptica.
c) A criminologia positivista deixa fora de seu objeto o poder criminalizante e só estuda os
criminalizados  é incompatível com o direito penal da culpabilidade e de ato, mas se
enquadra com um DP repressor, porque justifica e não critica a ideologia.
d) A conclusão é que é uma ciência nova que faz a crítica do poder criminalizante e quebrou
o isolamento que existia entre criminologia, o DP e a política criminal.

58 - AS CIÊNCIAS PENAIS
A criminologia abarca a biologia criminal, a psicologia criminal e a sociologia
criminal. Estas são aportes feitos à análise e crítica da criminalização a partir de disciplinas
distintas, mas se reúnem numa disciplina chamada criminologia: TENTAM
COMPREENDER A CRIMINALIZAÇÃO A PARTIR DE SEUS ESTUDOS.
Todas estas matérias estão vinculadas à filosofia, à história, e à política, como
pano de fundo de interpretação.

Direito penal (ordinária e penal)


Normativas Direito processual penal Todas Elas
Direito de execução penal
Não normativas - biologia Vinculam-se
Criminologia - psicologia criminal necessariamente à
- sociologia filosofia, à história e à
Medicina legal (incluída a psiquiatria forense) política
32

Psicologia ou sociologia judicial (processo)


Criminalística

4ª AULA – 01/04/03

CAPÍTULO IV
O MÉTODO E OS PRINCÍPIOS INTERPRETATIVOS DO SABER DO DP

I - O PROBLEMA DO MÉTODO NO DIREITO PENAL

59 - A DOGMÁTICA
A metodologia do DP como ciência é a metodologia jurídica em geral.
Método significa caminho e está condicionado pela meta que se pretende atingir.
Exemplo:
a) Quando para Feuerbach a meta era a tutela dos direitos subjetivos, o método era partir de
tais direitos e reconhecer como fonte do saber penal a filosofia, que era a que permitia
acesso aos mesmos.
b) Se invertermos a proposição, o que vai ser tutelado é o direito objetivo em lugar do
subjetivo. O método tende a reduzir-se a uma sujeição à vontade do legislador.
Depois de Feuerbach surgiu:
O método exegético  redução da ciência a uma mera técnica da análise da letra
da lei. Exemplos:
a) O enciclopedismo francês do séc. XVIII pretendeu compilar em certas obras o saber
humano sobre determinados campos do conhecimento. No campo jurídico essa tendência
levou à codificação: reunir numa lei tudo o que se refere a determinada matéria,
ordenando-os de forma sistemática.
b) Ao juiz cabia aplicar a lei. Bastava que entendesse seu sentido literal. Ações extremadas
chegaram a proibir obras que comentassem códigos.
c) A ciência jurídica ficou reduzida à interpretação gramatical do texto legal. O método era a
interpretação gramatical.
Esse realismo ingênuo reduziu o direito a algumas leis. Também quis explicar o
direito como um conjunto de proposições sociológicas. Exemplos:
a) A Escola Histórica  defendia que o direito é produto espontâneo do “gênio” de um povo.
Tendência claramente romântica, porque as normas são influenciadas pelo mundo.
b) Método dogmático  É o mais difundido a tal ponto que se chega a confundir a ciência
penal com a dogmática penal.
Quem expôs o método dogmático foi um alemão chamado Rudolf von Ihering
(1818-1892), surgindo no âmbito do direito privado.
O método dogmático consiste:
a) Numa análise da letra do texto;
b) Sua decomposição analítica em elementos (unidades ou dogmas);
c) E a reconstrução destes elementos de forma coerente, produzindo uma construção, ou
teoria.
Exemplo: excesso na legítima defesa. Lemos o texto do art. 21. Decompomos: o
que é legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal. No que
33

consiste o seu excesso. Qual sua natureza jurídica. Quais as formas de excesso que podem
existir. Como é punido. Reconstruímos tudo isto e temos uma teoria sobre excesso na legítima
defesa.
A conclusão do método dogmático é que se o intérprete parte de dogmas (leis)
como são reveladas pelo legislador, a ciência jurídica não pode alterar o conteúdo dessa lei.
Você não pode “ajeitar” uma lei inconstitucional para virar constitucional. O máximo que
podemos fazer é considerá-la inconstitucional.

60 - O MÉTODO DOGMÁTICO COMO MÉTODO CIENTÍFICO


Ciência é um conjunto de proposições que recebem o qualificativo de verdadeiro
(também poderiam ser falsas).
O “V” ou “F” se estabelece pela verificação, no caso das ciências naturais. Ex.: a
física me diz que as pedras caem. Pego 10 pedras e solto-as. Verifico que elas caem.
Estabeleço então um valor para essa proposição de “V”.
Mas há ciências que não permitem a experimentação, como as ciências humanas.
Então a verificação se dá pela observação. Devo olhar a sociedade e ver se aquilo que construí
como teoria científica, ou seja, a explicação de uma norma, serve para controlar a sociedade e
para os fins que ela se destina: prevenção especial através da pena que gera tomada de
consciência. Exemplos:
a) A astronomia tem um alto grau de precisão, muito embora eu não possa experimentar as
afirmações acerca de buraco negro, constelações, formação de estrelas etc. Posso dizer que
a luz das estrelas são brilhos de uma explosão que aconteceu a milhares de anos e que só
agora está sendo vista da terra. Não estive lá para ver. Mas os cálculos que utilizam dão um
grau de certeza muito grande para essa proposição.
b) A afirmação “furtar é mau” não é uma proposição e sim um juízo subjetivo de valor. Não
posso dizer que “furtar é mau” possui um valor de “V” ou “F”, só concordar ou não com
essa afirmação. E este enunciado de “valor” não tem valor científico.
Agora, a proposição: “O Código Penal diz que furtar é mau” é tão verificável
como a proposição “as pedras caem” e, portanto, capaz de fazer parte de um sistema de
proposições científicas.
CONCLUSÃO: “A ciência do direito não se ocupa de estabelecer juízos
subjetivos de valor, e sim de determinar o alcance dos juízos de valores jurídicos, razão pela
qual é possível falar-se em ‘ciência’ neste sentido.”
Busca-se alcançar o alcance do PROIBIDO e desvalorado em forma lógica (não
contraditória), fornecendo ao juiz um sistema de proposições que, aplicadas por este, faz
previsíveis suas decisões e, por conseguinte, reduz a margem de arbitrariedade. A ciência
jurídica projeta a jurisprudência.

61 - ANECESSIDADE PRÁTICA DA CONSTRUÇÃO QUE PRETENDE SER LOGICAMENTE


COMPLETA

Por mais completa que seja uma legislação, ela nunca vai esgotar o assunto, ou os
casos concretos. De outro lado, a legislação não pode ser muito “casuísta”, sob pena de perder
a cientificidade.
A solução é inferir as respostas aos casos particulares a partir de uma série de
princípios gerais – conceitos – construídos com base no próprio texto legal.
34

Não há como desconsiderar o método dogmático, sob pena de cairmos no campo


das soluções arbitrárias. Ex.: o art. 121 pune o homicida. O art. 25 estabelece que não há
crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa.

62 - O MODUS OPERANDI DO MÉTODO DOGMÁTICO


Frente a um conjunto de disposições legais, o jurista se comporta como o físico:
a) Toma os dados; estabelece as semelhanças e diferenças; e reduz o material a um conceito
único;
b) Com estas unidades elabora uma construção lógica = teoria, em que cada uma dessas
unidades ou dogmas encontra o seu lugar e sua explicação;
c) Feito isto, estabelece uma hipótese para testar a teoria, ou seja, se não há elementos que se
encontram sem explicação – contradição.
CONCLUSÃO: O jurista, como qualquer outro cientista, deve elaborar um
sistema, não contraditório, de proposições, cujo valor de “V” deve ser verdadeiro e que
expliquem os fatos de seu horizonte de projeção científico  o delito.
Exemplos:
a) Temos uma quantidade de disposições legais simultaneamente vigentes. Estas precisam ser
explicadas de acordo com um sistema de proposições universais que, além de ter sentido,
precisam ser verificadas  servir para resolver casos concreto = prevenção específica 
pena  tomada de consciência.
b) Da análise do texto legal surge que toda pena pressupõe a culpabilidade. Se encontrarmos
um caso em que se pode aplicar a pena sem culpabilidade, a proposição: “não há pena sem
culpabilidade”, seria falsa.
Não há certeza absoluta das proposições porque não conhecemos todos os dados
concretos. É desprezível a possibilidade de largarmos uma pedra e ela não cair, mas não é
impossível.
Se acontece o fato físico de largar a pedra e ela subir, ao invés de cair,
provavelmente o físico não dirá que o erro está na natureza, mas na sua teoria.
Com o jurista às vezes acontece o contrário: ao invés de descartar a sua teoria, fala
que a lei está errada. OBSERVEM!
Exemplo:
a) Estabelecemos a proposição: furtar é crime. Embora seja proibido furtar, há uma permissão
para fazê-lo no caso de estado de necessidade.
b) Formulamos hipóteses e vemos que são resolvidas pela proposição, sem nenhuma
contradição com o restante do sistema de leis penais.
c) Atribuímos a essa proposição o valor de “V”.
A construção dogmática deve ser conforme a lei (não contraditória). Não pode
dizer (p . –p) = furtar é crime e furtar não é crime, porque nisto não há estrutura lógica
interna. Esta é a primeira lei da lógica.
Segunda: A construção não deve ser contrária ao texto da lei, porque não resiste à
verificação.
Terceira: Diz respeito à lei da estética jurídica (Ihering)  A construção deve ser
simétrica, natural, não artificial e não afetada.
35

63 - OS FATOS QUE O DOGMÁTICO DEVE LEVAR EM CONTA PARA A CONSTRUÇÃO


Prestemos atenção, que o sistema não é fechado e auto-suficiente, no sentido de
que não se resume à lógica – jurisprudência dos conceitos de Ihering .
Se entendemos que o fim último do DP é realizar os DH, possibilitando nossa
existência (coexistência), quando estabelecemos os limites do proibido, devemos perguntar
também se isto é compatível com o fim geral do DP  segurança jurídica, entendida como
forma de tutela a bens jurídicos (que são os DH). Para isto, devemos incorporar na operação
os fatos sociais. O problema é como fazer isto sem cair na sociologia etc.
Por isto é que o DP tem um caráter programático, discurso de assegurar o livre
uso e gozo de bens jurídicos, realizadores dos direitos humanos.
A existência de um direito penal subterrâneo leva à conclusão que na história os
DH se realizam por graus. Mas isto não pode desanimar o cientista, que vê sua ciência ser
manipulada de acordo com conveniências práticas e imediatas. Deve, ao contrário, animá-lo
para que a meta do discurso – que é científica – fique próxima da realidade. A ciência
denuncia arbitrariedades – não lógica.
Nesse aspecto é que a dogmática deve incorporar dados da realidade para
construir seus conceitos, mas não como a sociologia que estuda a conduta criminalizada.
Os dados da realidade do DP são estudados assim:
a) Os dados sociais servem para constatarmos se na realidade não se inverte ou separa o valor
proclamado com o mero dado legal e que nos seja permitido corrigir o alcance deste dado,
com fundo nos direitos humanos (declaração de inconstitucionalidade ou aplicação precisa
da lei ao caso concreto).
b) Assim supera-se a tecnocracia que afeta a segurança jurídica pelo descrédito no DP como
meio de resolver conflitos, ou seja, que faz dele um instrumento de incremento à violência
social, acrescentando a violência do sistema.
c) Não se resolve o problema da violência ignorando-a (técnica), passando por cima dos
conflitos, utilizando da lei que existe justamente para resolver conflitos, como se a lei fosse
uma coisa e a realidade outra coisa completamente distinta.
A dogmática é um método de conhecimento. Mas não delimita o que deve ser
conhecido (a lei). Recebe pronta a ideologia. Mas permite e necessita da interpretação de
dados concretos, sob pena de converter-se num legalismo formal.
A dogmática estabelece limites e constrói conceitos. Possibilita uma aplicação do
DP segura e previsível e o subtrai da irracionalidade, da arbitrariedade e da improvisação.

64 - DOGMÁTICA E IDEOLOGIA
A lei responde a uma ideologia, é fruto de um conjunto de idéias.
A dogmática não fica vinculada ao conteúdo ideológico de cada lei, porque pode
ser aplicada à interpretação de leis com conteúdos ideológicos diferentes.
No entanto, a dogmática não se concilia com as ideologias que conduzem à
insegurança jurídica na aplicação do direito. Essas ideologias entram para o direito como
conceitos difusos, do tipo de componentes autoritários que fecham o discurso, com a intenção
de emudecer o oponente:
a) Sentimento do povo;
b) Supremo interesse do Estado;
c) Interesses do proletariado;
d) A moral;
e) A ética;
36

f) Defesa da sociedade;
g) Segurança nacional etc.
São expressões nas quais cabe o que quiser colocar.

65 - O MÉTODO COMPARATIVO NO DP
É utilizado para o direito penal comparado. Há institutos que se dedicam a isto:
a) Instituo Max Planck  Alemanha;
b) Centre Français de Droit Comparé;
c) Instituto Penal Comparado da Universidade de Nova York.
Não é um método em sentido estrito. É uma atividade auxiliar do DP. Ajuda:
a) Na elaboração das leis  mostra-nos os graus de tecnização dos textos e a forma de
encarar legislativamente os problemas;
b) Na atividade científica (dogmática)  Enriquece o trabalho construtivo pela comparação
das legislações.

II - PRINCÍPIOS A QUE DEVE AJUSTAR-SE TODA INTERPRETAÇÃO DA LEI


PENAL

66 - PROSCRIÇÃO DA ANALOGIA
Se permite no Direito Civil – art. 4º, da Lei de Introdução ao CC e art. 126, do
CPC, e é vedada no DP.
É vedada porque só a lei do Estado pode dizer onde ele pode ter ingerência
ressocializadora, afetando bens jurídicos com a pena. Daí o princípio da legalidade.
Nem na Inglaterra da common law se permite a analogia para criar delitos. Em
1972 uma decisão da Câmara dos Lordes sacramentou isto.
Só vale in bonam partem.

67 - A INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA OU O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO


Este princípio não é um critério de interpretação, mas um critério de valoração da
prova.
A principal conseqüência é que a chamada interpretação extensiva não pode
extrapolar o limite da resistência semântica para incluir hipóteses não previstas, sob pena de
se tornar analogia.

68 - O PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA OU DA PERSONALIDADE DA PENA


A pena é uma medida de caráter pessoal, em virtude de ser uma ingerência
ressocializadora sobre uma pessoa determinada – art. 5º, XLV e 5º, do Pacto de S. José. Hoje
isto é respeitado, apesar dos efeitos recaírem sobre a família.

69 - O PRINCÍPIO DA HUMANIDADE
Exige uma vinculação entitativa entre o delito e a pena e é corolário do princípio
republicano. Na CF está na proibição de penas cruéis – art. 5º, XLVII – O antônimo de pena
cruel é pena racional  não pode existir pena que desconsidere o homem – capaz de decisões
– autônomo e ético.
Este princípio impede:
37

a) Impedimento físico permanente  castração nos casos de estupro;


b) Morte;
c) Intervenção neurológica. Jack o estripador.
Não existe numa República cidadão de 2ª categoria, considerados assim por toda
vida por causa de uma pena que deve cessar em algum momento.
A criminalidade é subproduto da sociedade de consumo. Para manter o cachorro
da Vera Loiola é preciso mais dinheiro do que para manter um filho na escola. Os impérios
trabalham com a idéia da libertação do homem e igualdade social, eliminando os mais fracos.
Zaffaroni diz que em casos extremos de doença do réu, desamparo da família, o
juiz, para não afirmar o antijurídico, violar o princípio da humanidade, pode deixar de aplicar
a pena, sem autorização na lei ordinária.
LEITURA COMPLEMENTAR  Obras que tratam de metodologia do ensino do
direito (Tércio, Maria Helena Diniz, Luhmann, Herbert Hart, Bobbio etc.).

5ª AULA – 07/04/03

CAPÍTULO V
EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO PENAL

I - O DIREITO PENAL ANTIGO

70 - O OBJETO DO ESTUDO DA EVOLUÇÃO LEGISLATIVA


É indispensável o estudo da evolução legislativa penal para que possamos ter uma
compreensão melhor da política criminal propriamente dita.
O objeto – horizonte de projeção da ciência penal – teve os limites modificados e
precisamos saber porque, para compreendermos a ciência de hoje.
Não há uma continuidade evolutiva na história do DP, mas uma luta árdua, com
avanços e retrocessos, de onde vai surgindo a concepção do homem como pessoa, como
dotado de autonomia moral. A luta hoje continua árdua e encarniçada.
A história do DP nos mostra um dos aspectos mais sangrentos da história da
humanidade. Morreu muito mais gente vítima dos sistemas penais, do que em guerras. Além
disto, o DP é construído não num ambiente de guerra, mas de tremenda frieza, em palácios,
premeditada e racionalmente, o que fere ainda mais a nossa sensibilidade.
Vamos estudar a evolução de acordo com a teoria progressiva (não circular),
apesar de que o caminho não foi, nem é linear: vingança privada, vingança pública, tendências
humanitaristas, são termos que encontramos em todas as épocas. Estudaremos assim:
a) vingança privada;
b) vingança pública  quando o Estado chama para si o encargo de punir;
c) humanização da pena a partir do séc. XVIII;
d) período atual  cada autor dá como triunfante as suas idéias.

71 - O DP DAS CULTURAS DISTANTES

I – CHINA
Nos primórdios históricos conhecia-se a lei das cinco penas:
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a) morte  homicídio;
b) amputação de um ou ambos os pés  furto e lesões;
c) castração  estupro;
d) amputação do nariz  fraude;
e) marca na testa  delitos menores.
Posteriormente vieram penas mais cruéis:
a) abraçar coluna de ferro incandescente;
b) esquartejamento;
c) espancamento;
d) furar o olho com ferro em brasa;
e) diversas formas de morte;
f) extensão das penas aos parentes, inclusive morte.
Séc. VII a.C.:
a) suprimiu-se a extensão da pena de morte aos parentes;
b) reduziram-se a 5 as penas novamente:
- morte;
- deportação (expatriar, exilar, banir);
- desterro (degredo para algum lugar específico);
- espancamento;
- açoitamento.
Séc. X a.C.: Nenhuma província podia executar a pena de morte sem o cumpra-se
do Imperador.
Em 1312 veio o Código da Dinastia Ming: reconhecia 5 categorias de infrações e
5 tipos de penas. Em 1647 veio o Código da Dinastia Ching: voltou o sistema das 5 penas. E,
por fim, em 1912 veio a República e a modificação das leis.

II - ÍNDIA
Código de Manu  Século XIII ou V a.C. (controvertido):
a) A pena tinha função moral, porque purificava aquele que a suportava;
b) Distinguia o dolo, a culpa e o caso fortuito;
c) O deus Brahma delegava a faculdade de punir, numa sociedade altamente estratificada;
d) Dependendo da hierarquia do grupo social algumas pessoas não eram punidas;
e) O homem de casta superior – conhecia de cor as leis – podia cometer impunemente
qualquer fato – mistura com religião.

III - EGITO
Também tinha uma organização teocrática. Penas:
a) morte simples ou qualificada  conduta contra a religião ou Faraó e perjúrio (juramento
falso). A pena se estendia a ascendentes, descendentes e irmãos;
b) amputação de mãos  falsificação;
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c) castração  estupro;
d) amputação da língua  revelação de segredos;
e) mutilação, desterro, confisco, escravidão, trabalho forçado em minas eram outras penas
aplicadas.
Mais tarde a pena de morte foi substituída pela amputação do nariz, e, depois, esta
pelo desterro.

IV - CALDÉIA
DP com matiz ético-religioso:
a) Maldição (pena mais grave)  invocação aos deuses para que descarregassem desgraças
sobre a pessoa;
b) Um dos maiores delitos era a negação do vínculo de sangue;
c) Conheciam a pena de multa.

V - BABILÔNIA
É o DP mais antigo conhecido, através do célebre Código de Hamurabi, do século
XXIII a.C.:
a) admitia a composição para delitos patrimoniais, com a devolução do triplo do que havia
sido tomado;
b) morte  ladrão surpreendido em flagrante;
c) morte nas chamas  ladrão que roubava durante incêndio;
d) morte por afogamento  mulher adúltera;
e) introduziu o talião  lesão por lesão, morte por morte.

VI - HEBREU
O talião era a característica principal da pena: alguns dizem que só queria dizer
que a pena era proporcional, outros dizem que é literal: olho por olho, dente por dente.
Conheciam mais de 20 tipos de penas de morte, dentre elas:
a) cruz (Jesus);
b) serra;
c) apedrejamento (prostitutas);
d) animais ferozes (primeiros cristãos);
e) pisoteamento por animais;
f) flecha (S. Sebastião);
g) excomunhão etc.
Admitiam também a composição: além do pagamento do prejuízo, mais um
sacrifício religioso.
Os crimes foram baseados nos mandamentos:
a) Primeiros mandamentos  idolatria, blasfêmia, feitiçaria, falsa profecia, conjunção carnal
com mulher durante o período menstrual etc.;
b) Guardar o sábado e honrar pai e mãe  morte;
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c) 5ª mandamento (não matarás) talião;


d) 6º (não pecar contra a castidade) e 9º mandamentos (não desejar a mulher do próximo) 
delitos contra os costumes (adultério, incesto e furto = morte, ou devolução no triplo para o
furto se não houvesse flagrante);
e) A partir do 8º (não levantar falso testemunho) e 10º (não cobiçar as coisas alheias)
mandamentos  falso testemunho e perjúrio = talião.

ASTECA – CÓDIGO NETZAHUATCÓYOTL


Conheciam a vingança, o talião, vários tipos de morte, escravidão, desterro e
prisão domiciliar.

INCAS
a) Relações sexuais com mulher de outra tribo  arrasava a tribo;
b) Nobres tinham penas mais leves;
c) O direito era oral, porque não usavam a escrita.

6ª AULA – 15/04/03

CAPÍTULO VI
A LEI PENAL EM RELAÇÃO AO TEMPO E A PESSOAS QUE DESEMPENHAM
DETERMINADAS FUNÇÕES

I - A LEI PENAL NO TEMPO

95 - O PRINCÍPIO GERAL E A EXCEÇÃO


A regra é que a lei penal não retroage e isto em virtude do princípio da legalidade
(art. 5º, II e XXXIX).
Mas existe uma exceção e está na retroatividade da lei mais benigna que está no:
a) art. 9º, da C.A.D.H.;
b) art. 5º, XL, da CF; e
c) art. 2º, parágrafo único, do CP.
O fundamento é que se o Estado entendeu em tratar com menor rigor um fato, não
tem porque a pessoa ser processada ou cumprir pena por este mesmo fato.
Observação:
a) Pode ocorrer que aconteçam várias leis intermediárias entre o fato e o fim da pena. Tem
duas correntes: uma diz que combinam-se as leis; outra que aplica a lei mais benigna. Esta
é que prevalece.
b) Lei mais benigna não é só a abolitio criminis, mas aquela que de qualquer modo beneficiar
o réu.

96 - LEIS TEMPORÁRIAS E LEIS EXCEPCIONAIS


a) Excepcional  Limita sua vigência a um tempo determinado pela presença de uma
circunstância excepcional. Perde a vigência passada a circunstância excepcional.
b) Temporária  Traz em seu próprio texto o tempo de sua vigência. Vige por um tempo
certo e determinado.
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Observação:
a) O art. 3º, do CP, excepciona o princípio da retroatividade da lei mais benigna posterior
nesses casos. O fundamento é que se houver retroatividade essas leis perdem a eficácia.
A sua constitucionalidade é duvidosa por dois motivos:
a) A CF não traz essa exceção, ao contrário, diz que em todos os casos retroage a lei mais
benigna;
b) Se o fim da pena é a prevenção especial, vindo leis mais benigna, passado o tempo
excepcional, qual o fim da pena? É ciência ou não é? A ciência não trabalha com exceção.
A retroatividade da lei mais benigna atinge a medida de segurança, porque esta
praticamente eqüivale à pena.

98 - O MOMENTO DA AÇÃO OU DA OMISSÃO


O art. 4º, do CP, diz que se considera praticado o fato no momento da ação ou da
omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.
O art. 4º não serve para estabelecer competência – matéria processual –, mas para
que saibamos que lei vigora para aquele crime.
Exemplos:
a) Delitos permanentes  o tempo do cometimento do delito é o da atividade voluntária;
b) Mata outro com 10 doses de veneno em dias sucessivos.
Em que momento se consideram praticados esses delitos, para efeito da aplicação
da lei mais benigna? Uma parte da doutrina diz que é com o início da atividade delitiva.
Zaffaroni diz que é no final, no momento em que ela cessa, porque a conduta só se forma
integralmente após o último ato capaz de produzir o resultado.

99 - AS LEIS DESCRIMINALIZADORAS ANÔMALAS: LEI DA ANISTIA (ESQUECIMENTO)


A anistia é uma lei descriminalizadora anômala, porque é temporária (art. 21,
XVII, da CF).
A anistia deve ligar-se a fatos, ser impessoal. Ex.: anistia-se todos os delitos
patrimoniais durante período determinado, e não as pessoas A, B, C...
Efeitos:
a) Extingue a ação penal, posto que não pode continuar a pretensão punitiva acerca de um
fato que perdeu a tipicidade;
b) Quando existir decisão condenatória, a anistia eliminará a condenação e todos os seus
efeitos, inclusive reincidência;
c) Persiste o direito à indenização, já que a descriminalização não afeta a responsabilidade
civil (antijuridicidade);
d) A anistia não pode ser repudiada pelo beneficiário, porque a lei de anistia opera de pleno
direito e não condicionada a aceitação;
e) A concessão de anistia não impede a concessão do sursis em outro processo;
f) A parte da pena cumprida até a anistia é tida como cumprida efetivamente, de modo que
não pode ser pedida a restituição da multa paga, por exemplo, antes da anistia;
g) A anistia não pode ser revogada.
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II - O DIREITO DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL EM RELAÇÃO A PESSOAS QUE


DESEMPENHAM DETERMINADAS FUNÇÕES

100 - INDENIDADES E IMUNIDADES


O princípio da igualdade determina que a lei se aplica a todos (art. 5º, I, da CF).
As exceções existem para preservar funções, e são de duas classes:
a) Processuais  imunidade relativa. Ex.: a) licença da Câmara para processar Deputados; b)
foro privilegiado.
b) Indenidade  Há exclusão absoluta da responsabilidade penal = imunidade absoluta. Ex.:
Deputados por opinião manifestada na Tribuna da Câmara.

101 - INDENIDADES OU IMUNIDADES ABSOLUTAS PARLAMENTARES.


O art. 53, da CF estabelece que...
Natureza jurídica:
a) Causa pessoal de exclusão da punibilidade  Não é porque protege o cargo e impede que
a conduta seja típica;
b) Exclusão da antijuridicidade  Não é porque permanece a responsabilidade civil e
funcional. E a antijuridicidade não é só penal.
c) A tipicidade da ação  Zaffaroni entende que é assim porque é uma não-incriminação ou
exclusão de total relevância penal.
Se for atípica, os autores e partícipes (secretários e assessores) têm as condutas
excluídas também. Do contrário, não.

102 - IMUNIDADES DIPLOMÁTICAS


O art. 5º, CF, limita a territorialidade pelos tratados, convenções e regras do
direito Internacional.
Vige nesse campo a Convenção de Genebra, firmada em 1961, e ratificada pelo
Brasil em 1965. Os princípios são de Direito Internacional Público:
a) Art. 23, da CG;
b) Art. 32, da CG; e
c) Art. 37, da CG.
A imunidade se estende aos membros do pessoal administrativo e técnico da
missão, e às suas famílias, desde que:
a) A família seja do Estado da missão;
b) Aqui não tenham residência permanente;
c) Sejam atos realizados no desempenho da função.
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7ª AULA – 22/04/03

TÍTULO II
FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICO-POLÍTICA DO HORIZONTE DE PROJEÇÃO
DO SABER DO DIREITO PENAL (AS IDEOLOGIAS PENAIS)

CAPÍTULO VII
O SURGIMENTO DO PENSAMENTO PENAL MODERNO: O INDUSTRIALISMO

I - AS IDEOLOGIAS PENAIS ANTERIORES AO INDUSTRIALISMO

103 - A INELUDÍVEL REFERÊNCIA ÀS IDEOLOGIAS


O direito penal sempre esteve vinculado a correntes gerais do pensamento,
especialmente à filosofia, de modo que a uma determinada explicação sobre o mundo
correspondia determinada concepção do direito penal.
Nos fins do século XX o direito penal tornou-se mais uma técnica, desvinculada
de uma idéia central, o que costuma causar confusão nas soluções encontradas pelos técnicos,
já que tais soluções por vezes se mesclam com ideologias contrastantes.
Como o direito penal esteve vinculado sempre à ideologias relacionadas à
estrutura social e às formas de controle da sociedade, nós temos que levar em conta essas
idéias para poder compreender o direito penal de cada época.
Vamos estudar as ideologias anteriores ao industrialismo, o que este pegou dessas
ideologias e como construiu o conceito de direito penal, até nossos dias.

104 - O PENSAMENTO ORIENTAL E SUA INFLUÊNCIA SOBRE O SABER PENAL


Sabe-se hoje que a civilização ocidental não foi a precursora da filosofia e das
idéias, de modo que o que estava no oriente se confundia com misticismo e com religião.
Separou-se, então, o ocidente que desenvolveu o que se originou na Grécia, e o oriente, que
desenvolveu o que era religião.
Diz Zaffaroni que as primeiras manifestações do pensamento filosófico são
oriundas da Índia. Perguntas fundamentais sobre a existência humana foram lá formuladas
pela primeira vez e depois reformuladas pelos gregos.
No pensamento indiano desenvolveram-se pensamentos idealistas, mas também
correntes realistas e materialistas que influenciaram idéias ocidentais modernas, como o
realismo e o marxismo.
Mas existe uma manifestação idealista do pensamento indiano que preponderou e
que se chamou hinduísmo, que depois foi tomada pela ideologia do controle social
institucionalizado como justificação de uma estrutura de poder altamente estratificada, ou
seja, as castas.
Idealista é aquele que sustenta que a verdade, o real, são as formas ou as idéias. A
realidade não existe. O que existe é a idéia, a forma, que temos da realidade. Por exemplo, o
real não é a cadeira ou a mesa que vemos, mas a idéia que temos do que é uma cadeira ou
uma mesa. O conhecimento do que seja uma cadeira e uma mesa é que cria a cadeira e a
mesa. Se não temos a idéia do que seja uma cadeira ou uma mesa de nada adianta vermos na
nossa frente tais objetos, pois para nós eles não existem.
Isto levou à ideologia penal antidemocrática, que corresponde a uma sociedade
altamente hierarquizada e marginalizante, que no hinduísmo foram as castas.
44

Os que sabem, ou seja, os que tem acesso à idéia são os donos da verdade e
portanto são superiores aos cegos, que nada sabem, que estão nas trevas e que não tem acesso
às idéias.
No hinduísmo construiu-se a teoria da reencarnação, instrumentalizada para
afirmar que quanto maior a evolução espiritual, obtida através de sucessivas reencarnações,
mais a pessoa subia nas castas, até chegar à casta superior que, por tudo saber, não poderia
jamais errar ou cometer crimes.
Quando a religião é instrumentalizada dessa forma perde seu valor religioso e
tende a reduzir-se a um ritualismo, cujo fim é a perda de legitimidade que leva à crise. Na
Índia isto teve lugar com Buda, que se dá conta dessa instrumentalização da religião e vem
afirmando que o homem encontra a liberdade na verdade, e que esta verdade pode ser buscada
por qualquer homem, só pelo fato de ter a dignidade de ser homem. Sendo assim as castas já
não têm nenhum valor.
Na civilização ocidental, o pensamento estóico teve um papel similar ao do
budismo na Índia.

105 - O PENSAMENTO GREGO


Quase todos os pensamentos político-penais suscitados ao longo da história,
foram abordados antes pelo pensamento grego.
106 - OS SOFISTAS
São filósofos gregos contemporâneos de Sócrates que chamavam a si a profissão
de ensinar a sabedoria e a habilidade. Os sofistas desenvolveram especialmente a retórica, a
eloqüência e a gramática. Três sofistas representam respectivamente o direito penal
democrático, autoritário e socialista.
a) Protágoras de Abdera (séc. V a.C.)  A capacidade do homem para participar na vida
pública não emerge do fato de que uns saibam mais que os outros, mas que todos podem
conhecer e fazer o bem e, por isso, podem decidir acerca do bem e do mal. Sugere uma
sociedade democrática entre homens. Antecipa o contrato social, pois define a sociedade
como uma sociedade de homens.
O homem é a medida de todas as coisas. Isto quer dizer que a verdade é relativa,
ou seja, no âmbito do bem e do mal não há valores objetivos que possam ser demonstrados
empiricamente. É o homem que dá a medida desses valores. Antecipa o relativismo
valorativo, que não é nada mais do que um princípio a ser considerado na coexistência: o meu
semelhante é tão capaz de decidir acerca do bem e do mal como eu. É o respeito à consciência
individual. Ex.: dependendo do nosso gosto e entendimento sobre filmes, podemos sustentar
que um filme é bom ou é uma calamidade. Isto não significa que todos os filmes tem um valor
igual. Significa que consideraremos bom o que para nosso entendimento tem valor artístico,
sem condenar aqueles que sustentam que o mesmo filme não tem valor artístico algum.
Protágoras sustentava que a pena tem função preventiva.
b) Cálicles tio de Platão, pertencia à nobreza. Personifica o direito penal autoritário, ao lado
de uma teoria contratualista da sociedade.
A sociedade é o acordo dos fracos para dominarem os fortes, os que devem
governar. Quem tem a força deve governar e por isto pode impor as regras. Esta teoria se
chama pleonexia: o mais forte deve governar o mais fraco; se impõe pela força.
Nietzsche, no séc. XIX, diz a mesma coisa: “aquele que tem a força tem o direito
de fazer o que sua força lhe permite, e se não o faz contraria a natureza”. Mais tarde essa
mesma afirmação serve de suporte a teorias positivistas, evolucionistas e materialistas. Ex.: se
o homem é um macaco complexo, ou um aparato com finos transistores, não passa de uma
coisa que pode ser manejado pela força.
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c) Trasímaco. O direito é a expressão de poder da classe dominante, que impõe seus valores
do bem e do mal às classes dominadas. No séc. XIX estas vão ser as idéias de Marx: o
direito é uma superestrutura ideológica da classe dominante para submeter as classes
exploradas.

107 - SÓCRATES
Embora Sócrates não fale sobre direito penal, ele constrói uma teoria afirmando
que o homem livre não é aquele que faz o que quer, mas aquele que faz triunfar a razão sobre
suas paixões. Quem não faz isto não é livre, é escravo de seus instintos, é ignorante, não
conhece o que é bom e mau. Se soubesse não agiria mal. Isto se chama intelectualismo, que
vai ser aproveitado por teorias idealistas para afirmar que o homem pode ser ensinado,
corrigido, fazendo-o ver a verdade, como por exemplo o correcionalismo de Röder no séc.
XIX.

108 - PLATÃO
Platão criou o idealismo: o real são as idéias e as idéias do bem e do mal são
absolutas, imutáveis. Só alguns iluminados tem acesso às idéias, que depois impõem aos
outros menos iluminados. Esses iluminados são os filósofos. A República de Platão é
estratificada, organizada como um corpo, no qual os que vêem têm a condução do corpo, e os
que não vêem devem obedecer (mãos, pés etc.).
A pena deve ser corretiva e quando não consegue corrigir (fazer com os que não
vêem vejam) deve-se eliminar essas pessoas: corrige-se o corrigível, elimina-se o incorrigível.
Frisar, como Zaffaroni, que o direito penal autoritário circula sobre o objetivismo
valorativo: os valores estão fora de nós e são independentes de nossa valoração as conduta
boas ou más. Isto se faz pela força ou pelo conhecimento maior de seres superiores.

109 - ARISTÓTELES
Para Aristóteles a origem da sociedade não está no contrato, mas é explicada pela
natureza gregária do homem. Este mesmo fundamento será utilizado mais tarde por
Montesquieu, Carmignani e Carrara.
Corolário disto, Aristóteles quis estabelecer o que é comum a todos os seres, ou
seja, a ontologia, e fixou a metafísica. O ser é um ser de entes e não tem sentido sozinho.

110 - O PENSAMENTO PÓS-ARISTOTÉLICO


A escola pós-aristotélica mais importante é a dos estóicos, cuja escola apareceu na
Grécia e se estendeu até o Império Romano. Criam num grande ciclo que já está
predeterminado, que segue um curso que ao final se repete. Isto é influência do pensamento
oriental, depois repetido por Nietsche.
Se existe o destino, de nada adianta lutar contra ele. A sabedoria está em descobrir
como ele funciona e seguir o seu curso. Como viviam numa época de decadência e ditadura, a
atitude normal seria se isolar em busca de uma perfeição espiritual. A ação estóica é quase
egoísta, do que se distinguia da ação cristã. Mas ambas as correntes entendiam que qualquer
homem pode chegar à compreensão, e por isto, ambas têm vocação democrática.
A atitude estóica costuma reaparecer em correntes de pensamento de épocas de
crises como a nossa, como uma espécie de isolamento defensivo.
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111 - O PENSAMENTO MEDIEVAL EM GERAL


Em geral os românticos costumam dizer que o pensamento medieval foi o mais
brilhante da humanidade, e os positivistas o chamam de época das trevas, principalmente
porque para estes a idéia de ciência está fora da idéia de Deus.
Mas a verdade é que na Idade Média, cujo pensamento era teocrático,
desenvolveu-se a idéia de homem como filho de Deus e, portanto, semelhante a ele. Daí que
ele se distingue na natureza de todos os outros seres e tem uma dignidade própria.
Existem várias visões do homem na Idade Média. Veremos através de Santo
Agostinho, Santo Tomás e Duns Escoto e a mística.

112 - SANTO AGOSTINHO


Era um neoplatonista, cujas idéias foram influenciadas por Plotino. Embora
platonista era respeitador da dignidade da pessoa humana. Rejeitava qualquer tipo de coação
em nome da fé. Para ele o Estado e o direito são um mal necessário, que resolvem problemas
práticos e coexistência. Mas em si são corruptos. Carnelutti foi discípulo de Sto. Agostinho e
dizia que o direito só é necessário por falta de amor cristão.
A pessoa humana é livre, é dotada de autonomia. Mas liberdade não quer dizer o
poder de fazer qualquer coisa: isto é arbítrio. A liberdade está no exercício do arbítrio para o
bem. Não é conhecimento do bem, mas a vontade para o bem que direciona a ação.
O problema de Sto. Agostinho é que ele era idealista, como Platão. Portanto, a
idéia do bem era objetiva e o mal era só a ausência do bem, não tem existência própria. Com
isto admitia o castigo dos hereges, como modo de “obrigá-los a entrar” para o bem
(Evangelho de S. Lucas).

113 - A ESCOLÁSTICA MEDIEVAL


Dentro da escolástica (doutrinas teológico-filosóficas dominantes na Idade Média,
dos sécs. IX ao XVII, caracterizadas sobretudo pelo problema da relação entre a fé e a razão,
problema que se resolve pela dependência do pensamento filosófico, representado pela
filosofia greco-romana, da teologia cristã) medieval destacam-se Sto. Tomás de Aquino, que
se propôs compatibilizar o racionalismo aristotélico com as verdades da fé e o monge
franciscano John Duns Escoto, que coloca o acento no intelectualismo, ou seja, a vontade não
depende do conhecimento, é uma realidade autônoma.
Para Santo Tomás a vontade depende do conhecimento para que possa haver
motivação, porque não se pode querer o que não se conhece.
O existencialismo contemporâneo é influenciado pelo pensamento tomista: frente
ao próximo há duas atitudes possíveis. A atitude positivista consiste em procurar pelo outro,
ou seja, fazer algo para que ele se realize como ser humano. A isto se chama de ato de amor
ao próximo, fazer com que o outro encontre sua liberdade. Mas esse ato de amor deve ser
guiado pela razão, porque não se pode levar à procura pelo outro ao extremo de retirar-lhe a
possibilidade de busca própria pela liberdade. Não se pode escolher pelo outro. Não se pode a
propósito de amar, aniquilar a vontade do próximo, escolher por ele. São filósofos
existencialistas: Kierkgard, Heidegger, Sartre etc.

115 - O ENSINAMENTO DO PENSAMENTO MEDIEVAL


A caracterização de uma dignidade humana, diferente de coisas, por via teológica
não nos garante um adequado fundamento antropológico para o direito penal. A teologia ao
ser manejada como um dever-ser (com postulados idealistas ou intelectualistas) levará a uma
verdade moral objetiva, com resultados penais arbitrários.
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O problema deve ser resolvido não no plano teológico, mas no filosófico. O plano
teológico é o plano da fé, cuja verdade não pode ser demonstrada e evidenciada pela razão.
Por isto não pode servir de base ao direito penal.
Mas os valores espirituais não são descartados pelo direito penal. Há verdades de
fé compartilhadas pela maioria da população e o Estado tem direito de defender a forma de
vida e as normas de conduta do setor majoritário, o que na nossa cultura seria a defesa do
culto católico.
Não obstante o Estado não se funda sob verdades de fé, mas sim sobre a razão, daí
que a CF garanta a liberdade de cultos (art. 5º, IV) e por isto é impossível fundar o direito
penal sobre a caracterização teológica do homem, sem prejuízo, no entanto, que por via da fé
criemos pautas individuais de conduta que virão a ser respeitadas pelo Estado.

II - O INDUSTRIALISMO: MUDANÇAS ESTRUTURAIS E CONSEQÜÊNCIAS


PENAIS

116 - REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E CONTROLE SOCIAL


A revolução industrial marca a passagem do sistema feudal de produção para o
sistema capitalista. Demorou três séculos para que isto acontecesse. Também se chama a
revolução industrial o fenômeno que teve lugar na segunda metade do séc. XVIII.
A revolução industrial acarretou uma transformação sócio-econômico que
ocasionou uma transformação cultural importante cujas conseqüências perduram até nossos
dias.
Da forma de produção feudal – relação servo-senhor, sendo o servo ligado à terra
e ao senhor. Este tinha dever de proteção ao servo – passou-se para o produção industrial –
baseada na ficção de igualdade entre todos os homens –, que pressupõe que o mercado é
regido pela oferta e pela demanda. Quem não tem objetos para oferecer, oferece seu próprio
trabalho. A igualdade é só uma ficção, porque em toda sociedade há pessoas que dominam e
outras que são dominadas. Há os dominantes e os marginalizados.
Essa ficção encobre uma mudança estrutural da sociedade muito importante:
a) A produção até então agrícola, passa a ser manufatureira;
b) O setor hegemônico não é mais o senhor feudal, e sim o dono do capital, ou dos bens de
produção;
c) O servo não dispõe da proteção do senhor e é deslocado para a cidade, sem qualquer
treinamento para a produção industrial;
d) Com o fim de racionalizar a produção da terra, obriga-se que os proprietários cerquem seus
terrenos. Quem não tem terra, ou não tem dinheiro para cercá-la é obrigado a vendê-las –
barato – e ir para a cidade.
Esse fenômeno gera:
a) concentração de população nas cidades;
b) oferta de mão-de-obra barata à proprietários de bens de produção;
c) como a oferta de mão-de-obra era muito grande, trabalhavam só pela comida;
d) os proprietários dos bens de produção, gananciosos, precisam da mão-de-obra barata para
equiparem suas fábricas de máquinas, baratear o custo e se manter perante a concorrência;
e) Há uma acumulação de bens nas mãos dos industriais, que é reinvestida em máquinas,
sobrando mão-de-obra;
f) A mão-de-obra que fica é mais bem paga.
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Essa mudança é lenta, e a população concentrada nas cidades torna-se perigosa:


a) Não tem trabalho, tem fome;
b) Não tem mais o controle social do senhor feudal, nada mais tem a perder;
c) Está no mesmo espaço geográfico onde está a riqueza;
d) Os crimes aumentam e é preciso apelar para um sistema de controle social exemplar de
contenção.
O problema era que pessoas que cometiam crimes colocavam em perigo a riqueza.
Quem deveria controlar essa sociedade de famintos e criminosos era o Estado, que estava nas
mãos da nobreza a qual poderia manobrar essas forças contra a burguesia rica – os
capitalistas. Acudiram-se da ideologia do contrato social, que dava poder ao Estado para
controlar a natureza selvagem natural do povo.
O direito penal que nasce nessa época era um direito penal fundado sobre o
contrato: a sociedade era livre para contratar e o direito penal punia aqueles que não se
ajustassem a esse contrato: deu origem ao que chamamos de contratualismo.
É dentro desse contexto que Hobbes (1588-1679) concebe o Estado como um
produto gerado pelo medo do “estado natural” caracterizado pela guerra de todos contra
todos. O Estado absolutista era quem podia controlar esse medo e dar segurança a todos. A
concentração de poder no Estado garantia a perda do poder de anarquia, de guerrear e de
semear a discórdia.
Mas os capitalistas não podiam ficar a mercê daquilo que o rei elegia como crime
na hora que entendesse. Daí criaram a ideologia do nullum crimen sine lege, como meio de
limitar a monarquia.
Para o direito penal importa que esse movimento se sustentava num sistema de
valores em que os direitos individuais passavam para um primeiro plano, em que pese, não
pudesse penetrar nos chamados direitos sociais, exercidos pela nobreza e pela burguesia.
Na Idade Média a origem da sociedade está na natureza social do homem, baseada
em Aristóteles. Rousseau se contrapõe a esse pensamento, como apoio dos contratualistas,
afirmando que a natureza social é contratualista. Criava-se uma sociedade artificial – criação
humana – que tinha por fim tutelar e proteger o homem dele mesmo e por isto seu poder era
limitado pelo seu próprio objeto.
Montesquieu se contrapôs à teoria contratualista e fundava a sociedade na
natureza gregária do homem, tal como Aristóteles. No entanto, não retroagia ao pensamento
medieval, porque separava o Estado da religião e combatia a idéia de delito como pecado.
Hoje prepondera o pensamento de que a sociedade não pode ser separada do
homem, porque o homem só existe coexistindo: é um ser gregário. As teorias contratualistas
serviam para simplificar explicações e limitar o poder estatal a partir de “direitos naturais” do
homem anteriores à sociedade, pertencentes exclusivamente ao indivíduo e que não faziam
parte do contrato social. Daí surgiram as correntes do chamado direito natural baseado na
natureza do homem, hoje não mais utilizadas.

III - O CONTRATUALISMO RETRIBUTIVO: A DEFESA DO CAPITALISMO


INCIPIENTE FRENTE À NOBREZA

117 - O TALIÃO: A INDENIZAÇÃO PELA VIOLAÇÃO DO CONTRATO


Até o contratualismo a limitação do poder estatal se dava pelo dever do Estado em
estabelecer rigidamente o que era proibido (Hobbes) e o reconhecimento e limites ao poder
estatal pela via do objeto da sociedade.
49

Mas a pena precisa de uma explicação contratual. Qual a sanção para quem viola
um contrato? A reparação, uma indenização. Mas os homens criminalizados por esse sistema
de controle social não tinham nada para ser expropriado a título de indenização. Daí a noção
da privação da liberdade como privação da capacidade de trabalho. Até então a privação de
liberdade era só preventiva, pois as penas eram corporais.
A pena privativa era ideal, pois podia ser medida em tempo – linear –, da mesma
forma que as mercadorias e a moeda.
Qual a medida para a pena? O talião, como aquela necessária para reparar o mal
causado com o delito.
Kant desenvolveu isto com perfeição. A pena para Kant não é imoral, ou seja, não
instrumentaliza o homem, ou seja, torna-o um meio de alcançar um fim. A pena tem um fim
em si mesmo, derivado da violação do dever jurídico. E a medida da pena será o talião,
devolução da mesma quantidade de dor injustamente causada.
Existe uma ordem moral que é corrompida pelo homem com a prática de um
delito – contra um imperativo categórico. Esta ordem deve ser recomposta com o castigo, que
deve ter a medida do crime.

118 - AS RESPOSTAS AO KANTISMO, DO LIBERALISMO (FEUERBACH) E DO SOCIALISMO


(MARAT)
Feurbach foi um grande pensador e jurista. Foi ele quem fez o Código da Baviera
de 1813. Era contemporâneo de Kant e seguidor de uma corrente contrária. Era contratualista,
mas não reconhecia no direito uma razão prática moral, mas jurídica. O direito não nos indica
quais são nossos deveres morais, como em Kant, mas nossos direitos subjetivos. O Estado
para Feurbach era só tutor de nossos direitos já preexistentes, enquanto para Kant o Estado
criava direitos.
Foi o fundador da ciência penal alemã e é conhecido pela sua teoria da pena. Para
ele a pena é aplicada em razão de um fato consumado e passado e tem por objeto conter todos
os cidadãos para que não cometam delitos, isto é, almeja coagi-los psicologicamente. Daí que
é necessário não só uma cominação de pena mas sua execução e que a conexão do crime com
a pena seja feita por uma lei.
Jean Paul Marat (1743-1793) admite a tese contratualista tal como Kant, mas não
o talião, que só teria sentido se a sociedade fosse justa. Diz que, no início do contrato social
havia igualdade. Mas com o passar do tempo uma classe de homens preponderou sobre a
outra: detinha riquezas enquanto outra muito maior ficava com a pobreza. Perguntava então se
aqueles indivíduos que nada obtém da sociedade além de desvantagens estão obrigados a
respeitar as leis, e responde que não, porque se a sociedade os abandona retornam ao estado
de natureza e recobram pela força o direito que alienaram no contrato social para obter
vantagens maiores. Toda autoridade que se contraponha a esses homens é tirana e todo juiz
que lhes decrete a morte é um assassino. Denunciava a falácia da pena retributiva dos
iluministas numa sociedade sem justiça retributiva.
Assim o contratualista dava argumentos para três posições políticas bem
diferentes: o despotismo ilustrado defendido por Kant – conservação do controle da situação
por setores hegemônicos; revolução capitalista – acesso dos capitalistas à hegemonia social; e
a revolução total – destituição dos dois setores em briga pela hegemonia e estabelecimento da
igualdade.

IV - OS PENALISTAS DO CONTRATUALISMO
O direito penal contratualista se desenvolveu no século XVIII e XIX e dentre
vários autores influenciados por ele temos:
50

119 - BECCARIA (1738-1794)


Considerado o autor que lançou as bases do direito penal contemporâneo, pois
conseguiu incrustar as idéias iluministas ao direito penal da época.
Entendia que deveria haver o princípio da legalidade do crime da pena. Que a
pena devia ser proporcional ao mal social causado, rejeitando penas cruéis e a tortura como
meio de prova.

120 - MELLO FREIRE (1738-1798)


Professor da Universidade de Coimbra e tem uma obra chamada de instituições de
direito criminal. Sofreu influência de Beccaria e outros liberais.
O fundamento de seu pensamento é contratualista: “o direito de impor uma pena
nasce da renúncia aos direitos que competem aos cidadãos entre si e na sua relação com os
outros, que têm por fundamento o pacto social”. A pena deve ser proporcional ao delito. Tem
por finalidade fazer com que se emende aquele contra quem se aplica, ou para que sua pena
torne melhor os outros, ou para que outros vivam mais tranqüilamente – função preventiva da
pena.
Influenciou mais o Código Criminal do Império do Brasil que a legislação
portuguesa, porque um de seus autores foi seu discípulo em Coimbra.

121 - LARDIZÁBAL (1739-1820)


Nasceu no México, mas desenvolveu sua obra na Espanha. Considerado o
primeiro penalista da América espanhola.
Combina o contratualismo com o pensamento de Aristóteles, pois diz que o
contrato social nasce da inclinação do homem para viver em sociedade.

122 - ROMAGNOSI (1761-1835)


Sua obra mais importante no DP é Gênese do DP.
Inaugura a teoria da defesa social. Segundo ele a medida da pena era necessária
para fazer oposição à tendência ao delito.

123 - A “ESCOLA TOSCANA” (CARMIGNANI – 1768-1847 – E CARRARA – 1805-1888)


Carmignani foi professor em Pisa. A mais importante obra no direito penal foi
Elementos de Direito Criminal.
Ele faz parte de um grupo de pessoas que já expôs um sistema completo de direito
penal. Para isto separa política criminal de jurisprudência criminal, ou seja, a ciência do
direito criminal já constituído.
Fundamenta a necessidade da pena em considerações estritamente práticas, no que
parece se aproximar de Bentham (utilitarista).
Afasta-se do contratualismo e afirma que a estrutura jurídica é artificial e tem uma
finalidade prática. Mas requer que se aceite o homem como pessoa para fundamentar o direito
penal.
Carrara é seu discípulo e o substituiu na cátedra de Pisa. Escreveu Programa do
Curso de Direito Criminal e Opúsculos de Direito Criminal. Costumam chamá-lo de o sumo
mestre de direito penal.
51

Ferri, quando se produziu o enfrentamento do positivismo com as demais


correntes de pensamento, chamou estes autores de Escola Clássica, fundada por Beccaria e
cujo maior expoente foi Carrara, que, na verdade, nunca existiu.
Carrara não foi um filósofo, mas um grande jurista que fez sua obra sempre com
grande respeito à pessoa humana. É difícil qualificá-lo filosoficamente a que escola pertence.
Diz-se que foi um católico liberal.

V – A IDEOLOGIA DO TREINAMENTO PARA A PRODUÇÃO INDUSTRIAL (A


IDEOLOGIA DA DEFESA DO CAPITALISMO INCIPIENTE (que está começando)
FRENTE ÀS MASSAS)

124 - AS PENAS: DO “CORPO” À “ALMA”


É claro que entre os séculos XVIII e XIX opera-se uma transformação na pena,
que passa das penas corporais para as penas privativas de liberdade, e do mero castigo à
correção.
Essa humanização não é gratuita, nem é uma generosa humanização do direito
penal, mas da culminação desse longo processo histórico.
O paradigma contratual permitia uma ideologia justificadora da prisão para
expropriar o apenado em sua capacidade laboral ou mão-de-obra. O problema é que as massas
de despossuídos que vinham do campo não tinham sequer capacidade laboral, pois não eram
treinados para trabalhar nas manufaturas.
O encarceramento deles tinha um sentido simbólico, mas nunca prático.
Era preciso controlar a massa e se fez isto de um lado:
a) diminuindo-a  através da facilitação da imigração para a América;
b) disciplinando-a para o trabalho. Isto se fez de dois caminhos:
b.1  os pobres não culpáveis eram internados em asilos de beneficência e ajustados ao
sistema;
b.2  os pobres culpáveis eram recolhidos em prisões e ajustados. Entre esses dois
sistemas criaram os manicômios para bêbados, vadios, prostitutas etc.
Acreditava-se que a acumulação de capital por parte da burguesia iria assimilar a
massa. Mas esta massa procriava velozmente e não era absorvida pelo sistema capitalista, de
modo que tinha de ser controlada e diminuída.
Essa massa se tornou perigosa no curso do século XIX, ao se incorporar ao
sistema de informação da cidade:
a) Organizaram-se os sindicatos e protestos de trabalhadores em greves, sabotagens. Todas
essas formas foram consideradas criminosas por lesar as “leis do mercado”, interferindo no
jogo “livre” da oferta e da procura, alterando as regras do contrato social.
b) Antes disso já se organizou a polícia em sua forma moderna, para custodiar os ricos, ou
seja, quem detém o capital. Não foi por acaso que a legítima defesa passa para a parte geral
do CP, admitida para a defesa da propriedade, inclusive à custa da vida do infrator, e
consagra-se o homicídio privilegiado para quem mata o ladrão nos limites de seus
domínios ou escalando muros.
A ideologia do contrato social havia proporcionado só um limite à nobreza. Mas
os capitalistas incipientes sofriam pressões das massas também, de quem deviam se proteger.
Era necessário:
a) reduzi-las, o que se fez pela emigração;
52

b) enquanto se desenvolvia o sistema de incorporação da massa pelo sistema de consumo, se


fez necessário controlá-la pelo treinamento e pela moralização.

125 - BENTHAM E A “IDEOLOGIA PANÓPTICA” (1748-1832)


Bentham foi um pensador inglês que influenciou a legislação penal de seu país e
do Código Napoleônico. Criou os melhores argumentos ao controle social das massas
marginalizadas.
Era pragmático, utilitarista, o que no fundo é uma posição precursora do
positivismo.
É curioso: o capitalismo serviu-se do idealismo do contrato social para limitar a
nobreza. Quanto as massas serviu-se de argumentos práticos e positivistas, reagindo à ameaça
das massas despossuídas.
Para Bentham não existe direito subjetivo anterior ao Estado. É este que os fixa
seguindo um critério de utilidade, sancionando-o com uma pena.
A pena é um mal, porque não produz felicidade em quem a sofre, mas do ponto de
vista da utilidade pública (felicidade suprema) é um bem, porque poupa a dor mediante
prevenção geral e especial. Justifica-se pela utilidade pública.
A felicidade é claro é dos setores capitalistas incipientes de sua época, que
prometem incorporar a massa ao capital.
Não existem direitos subjetivos individuais. A pena é uma moralização que
importa num treinamento para a forma de produção.
Constrói a idéia de estabelecimento penitenciário panótico: construção circular
que pode ser controlada por um só guarda. Os presos não têm a mínima intimidade. São
vigiados de dia e de noite com um mínimo de esforço. Esta ideologia de controle é expandida
depois para os sistemas de progressão do regime da pena que no fundo são: vigilância,
arrependimento, aprendizagem, moralização (trabalhar para a felicidade do grupo).
Corresponde à forma de trabalho da época: havia vigilância dos trabalhadores
permanentemente pelo capataz, não disposição de tempo livre etc.
O cárcere foi concebido como um treinamento de desordeiros para a fábrica.
O pensamento de Bentham foi muito aceito na Inglaterra e influenciou todo o
mundo, porque ela já tinha um sistema de acumulação de capital desenvolvido mais que em
outros países.

8ª AULA – 28/04/03

CAPÍTULO VIII
AS IDEOLOGIAS PENAIS DA CONSOLIDAÇÃO DO PODER DO CAPITAL NOS
PAÍSES CENTRAIS E SUA CRISE

I - O GIRO PARA O ORGANICISMO

126 - O DESLOCAMENTO DO CONFLITO


Vimos que o contratualismo foi uma ficção formulada pelos capitalistas em
ascensão para limitar o poder da monarquia.
Acontece que na medida em que os capitalistas iam acumulando capital, ia
dependendo menos da nobreza. Acontecia o contrário, a nobreza tornou-se dependente do
dinheiro e freqüentemente tinha necessidade de transacionar com os donos do dinheiro.
53

A nobreza foi dominada com a ficção do contratualismo. O problema agora estava


nas massas de pobres que ameaçavam o capitalismo incipiente de perto, que estava em fase
inicial de acumulação de riqueza, pois viviam na periferia das cidades. Era esse povo que
precisava ser contido e disciplinado para o trabalho nas fábricas.
A ficção do contratualismo não servia para dominar as massas, pois conforme já
demonstrara Marat, ele não funcionava na realidade e desobrigava a pobreza. Além disso, já
não interessava aos capitalistas uma ideologia que impusesse limites ao poder, porque eram
eles que estavam agora no poder.
Partiram, então, para demonstrar que a sociedade é algo “natural” e que o poder
era exercido por aqueles que “naturalmente” eram os melhores, ou seja, aqueles que detinham
o capital e que estavam mandando. Isto vai causar um giro do racionalismo (a razão é finita e
está em valores, por exemplo, para Kant. A filosofia busca tais limites), para o romantismo o
princípio da razão está no infinito e a filosofia deve compreender e buscar o princípio
infinito).

127 - O ORGANICISMO SOCIAL


Substituíram o paradigma do contrato social pelo paradigma do organicismo. A
sociedade é um todo orgânico. As células cerebrais são menos numerosas, mas são as mais
importantes e as que mandam. O resto do organismo obedece e é até descartável, se for para
manter o corpo. Diminui o conceito de pessoa humana como uma individualidade.
O organicismo é derivado do idealismo e vai gerar o positivismo. Produziu
inúmeros ideólogos que construíram teorias refinadíssimas da sociedade. Hegel, um dos
maiores, constrói a idéia de “espírito da humanidade”. Parece que toda a humanidade é uma
unidade orgânica (conceito antropomórfico da sociedade). No decorrer da história este
“corpo” tende a amadurecer e a se desenvolver, como se fosse um homem.

II - A IDEOLOGIA PENAL HEGELIANA

128 - HEGELIANISMO PENAL


Hegel foi um dos grandes filósofos da humanidade e nós não vamos estudá-lo
aqui. O que vamos fazer é tentar compreender como a ideologia daqueles que detinham o
poder apropriou-se da filosofia de Hegel para construir o sistema penal de controle das
massas.
No contratualismo, nós vimos que a pena devia ter um limite, respeitando-se os
direitos humanos, pois o homem mantinha alguns de seus direitos naturais que deviam ser
respeitados pelo Estado. O princípio da legalidade, do não às penais cruéis e à pena de morte
surge do contratualismo. Beccaria é contratualista.
O problema para os capitalistas é que viram que haviam pessoas que eram
totalmente inúteis como mão-de-obra potencial ao mercado e ainda outras que eram altamente
perigosas para os setores hegemônicos, por suas ações e pensamentos. Era necessário que se
construísse uma ideologia que justificasse a neutralização dessas pessoas, já que a eliminação
estava fora de moda. A pena não podia ser somente retributiva – talional, pois certas pessoas
não se adaptavam para voltar para a sociedade capitalista.
Aí é que surge Hegel. Hegel – romântico – diz que a razão está no infinito.
Desenvolve-se na história, fazendo avançar o espírito da humanidade.
Esse avanço se dá de um modo dialético (processo racional que procede pela
união incessante de contrários – tese e antítese – numa categoria superior, a síntese – conceito
platônico e orientalista). Assim, a razão vai contrapondo a cada tese uma negação (antítese),
sem que ambas se destruam, mas evoluam conservando-se numa síntese.
54

O espírito da humanidade também avançava assim, conservando-se e


desenvolvendo-se em três estágios:
a) Subjetivo  (tese) o homem alcança a liberdade ao tomar consciência de si mesmo
(autoconsciência);
b) Objetivo  (antítese) o homem já livre relaciona-se com outros homens também livres
Ex.: O direito;
c) Estágio do espírito absoluto  o espírito da humanidade eleva-se sobre o mundo. Ex.:
religião, artes etc.
Como o capitalismo utilizou isto:
a) Existem pessoas que não conseguem ultrapassar o estágio subjetivo, ou seja, alcançar a
liberdade, portanto, não poderia atuar com relevância jurídica – o direito está no campo
objetivo;
b) Portanto, existem homens que fazem parte de uma “comunidade espiritual” e outros que
não alcançaram este estágio e que, por isso, devem ser tratados de modo diferente;
c) Quem não alcançou o estágio objetivo não é capaz de cometer crimes, pois não atua no
campo jurídico e, portanto, não pode sofrer pena;
d) Assim, os “loucos” não cometem delitos, nem os reincidentes, nem aqueles que são
inadaptados para viver em sociedade, ou seja, que não compartilham os valores da
“comunidade jurídica”, ou seja, do capitalismo.
A pena para Hegel é uma necessidade moral. Ao mal do delito contrapõe-se o mal
da pena. À negação do direito contrapõe-se a afirmação do direito pela pena. A justificação da
pena é a afirmação do direito.
Mas só homens “livres” podem sofrer penas retributivas. Aqueles não-livres estão
fora do direito (inclusive legítima defesa, por exemplo) e devem sofrer medidas por tão só
estarem à margem – fora – do campo jurídico.
Justificada a neutralização dessas pessoas, bastava agora etiquetar os
assemelhados e loucos – aqueles que não servem ao sistema de produção e consumo
capitalista (racionalismo produtivo) – e criar as “medidas” de neutralização. Permitia uma
classificação de homens: os adaptados, os adaptáveis pela pena ressocializadora, e os
inadaptados, que merecem medidas de segurança. Estes, não importa se cometeram condutas
graves ou não, a medida é a mesma: neutralização.
No Brasil criou-se em 1940 o sistema vicariante: aplicação de penas e medida de
segurança em conjunto. “Art. 77. Aplica-se medida de segurança a perigosos. Art. 78.
Presumem-se perigosos: os que cometeram crimes embriagados, os reincidentes, os que tem
culpabilidade, antecedentes e personalidade que, no entender do juiz, devam assim ser
considerados, além dos presumivelmente por lei perigosos” (Lei de Segurança Nacional).

129 - A PROJEÇÃO DO PENSAMENTO HEGELIANO


O pensamento de Hegel se prestou a inúmeras interpretações. Justificou desde
pensamento de filósofos liberais até revolucionários marxistas. O que interessa para nós é que
ele e seus seguidores são românticos, no sentido de que, embora considerem que o que
prevalece é a razão absoluta, esta razão não é racional, é uma intuição primária no homem,
uma força criadora que a tudo impulsiona e que determina as conseqüências do sistema.
O pensamento de Hegel influenciou Berner e Karl Larez na Alemanha, e Pessina
na Itália, entre outros. Na atualidade influenciou o penalista Helmuth Mayer e o filósofo
Herbert Mancuse.
55

III - AS IDEOLOGIAS PENAIS DAS RESPOSTAS AO HEGELIANISMO

130 - O KRAUSISMO PENAL (CORRECIONALISMO) (1781-1832)


O hegelianismo forneceu elementos úteis para o fortalecimento do Estado, porque
o homem se via dissolvido no Estado, que por sua vez se dissolvia na História. Prosperou na
Alemanha e na Itália, que lutavam pela unificação do Estado.
Como foi um pensamento complexo, elaborado, forte, surgiram logo reações a
ele.
Uma dessas reações foi proporcionada pelo filósofo alemão Krause (1781-1832),
de cunho romântico e que teve seu pensamento ignorado na Alemanha, pois não servia aos
propósitos da unificação nem do capitalismo. Desenvolveu-se na Espanha, onde se buscava
contrapor uma ética política ao Estado forte dos Bourbon.
No sistema idealista de Krause, no “eu” coincide a natureza e o espírito, ambos
abarcados pela humanidade. São três infinitos relativos que demandam um infinito absoluto,
que é Deus. Daí que o homem tende a Deus. Tudo está em Deus. O sistema está em Deus. O
fim da humanidade é a felicidade, que é alcançada pelo amor entre os homens, pois tudo se
inclina para Deus.
O fim do direito penal é facilitar o caminho do homem para Deus, mostrar ao
homem que esta é sua tendência. É um “organicismo cósmico” onde tudo e todos tendem a
Deus.
O expositor da teoria de Krause para o direito penal foi Karl Röder, que
sustentava um direito natural de conteúdo idealista. Esta teoria chamou-se de correcionalismo.
O direito penal e seu instrumento, a pena, tem uma missão moral: mostrar ao homem que o
caminho para sua liberdade se encontra na sua aproximação com Deus. Busca o
melhoramento do homem entendido dentro do idealismo.
Embora pareça estranha hoje, na época, fez críticas às penas de morte e perpétua e
fundamentou a liberdade condicional.
Esta e outras teorias semelhantes não foram difundidas e não estão nos manuais,
porque não ofereciam qualquer atrativo ao esquema de poder. Só utilizaram-na quando
precisaram justificar um direito penal moralizante.

131 - A REAÇÃO ANTI-HEGELIANA DO “DIREITO PENAL POPULAR”


A nobreza do século XIX, refugiada nos latifundiários, não podia deixar passar
em branco a ascensão dos capitalistas, apelando à tradição. Criou-se uma teoria segundo a
qual o direito surgia e devia surgir do povo, de maneira espontânea. O Estado só reconhecia
esse direito, favorecia o seu desenvolvimento e o normatizava.
Ninguém pode pensar que a complexa estrutura jurídica de um Estado pode ser
um produto espontâneo e anônimo. É um romantismo sem o menor fundamento. Ihering
contestou-o, mandando que o juristas que diziam que a sociedade pode passar sem advogados,
vão ser sapateiros ou alfaiates. As botas e os vestidos vão lhes ensinar que até para exercer
uma profissão simples há necessidade de uma técnica, que nada mais é do que o depósito
acumulado do conhecimento humano e que não pode ser exercida senão por aqueles que se
dão ao trabalho de estudá-la.
Este direito popular é utilizado ainda hoje quando se quer um direito repressivo. O
Estado é paternalista. É preferível um bom ditador que uma democracia desordenada. É
preferível deixar como está, pois é a tradição que levará a que tudo se ajeite, do que mudar
com essas idéias desordenadas que aparecem de vez em quando.
56

132 - A REAÇÃO NIETZSCHEANA (1844-1900)


Para Nietzsche o único valor objetivo é a força, é o mais forte que deve mandar:
isto acontece entre animais e vegetais e não tem porque ser diferente entre os homens. A
democracia é uma invenção do cristianismo, para favorecer os fracos. O mais forte é o seu
“super-homem”, que é combatido pela democracia, que quer dominá-lo colocando no poder
os fracos.
É uma corrente romântica que não respeita limite algum. Seu pensamento não
chegou a influenciar o direito penal, a não ser em épocas em que a repressão precisa se
afirmar e se socorre de todo quanto é pensamento repressivo, do tipo: o Estado é o mais bem
dotado, o capital resolve tudo, os delinqüentes são fracos no seu desenvolvimento e querem
dominar a sociedade, que aqui representa o super-homem etc.

133 - A REAÇÃO MARXISTA (1818-1883)


Marx também é considerado romântico, pois lança-se ao infinito, postulando uma
dialética materialista em oposição ao idealismo de Platão e Hegel.
Para Marx o homem nasce condicionado pelas relações de produção, mas pode
agir sobre elas.
Essas relações de produção alienam o homem e o torna distante de si mesmo. Se
coisifica.
Deve-se superar a economia capitalista para que o homem entre em sua própria
história e isto se faz pelo comunismo.
Para se chegar a uma sociedade sem classes, primeiro devemos passar por uma
sociedade organizada sob a ditadura do proletariado, a fim de suprimir as classes sociais, até
restar somente o proletariado. Na medida em que isto fosse acontecendo o Estado e o direito
iam sumindo, pois iam desaparecendo os conflitos de classes.
O direito é uma superestrutura ideológica de domínio da classe opressora. O delito
é resultado das tensões sociais (o que tem um grande conteúdo de verdade). Por isto não se
deve castigar o crime no indivíduo, mas destruir as raízes anti-sociais do crime e dar a cada
qual a margem social necessária para exteriorizar a sua vida de um modo social.
O problema é a utopia de sonhar com uma sociedade sem classes e em tensões, na
qual o delito desaparecerá. E que no final a humanidade será uma unidade.
A pena tem um sentido correcionalista – Röder.
O problema são as correntes marxistas, que nos levam a confundir o pensamento
de Marx, o que serve para o pensamento simplista de desqualifica-la. Devemos atentar:
a) A consideração econômica de qualquer fenômeno social – o delito e a criminalização o são
– não pode ser ocultada, ao lado da dimensão psicológica, física, biológica etc.;
b) A dimensão econômica de um conflito social, como é o delito, pode ser analisada de uma
visão marxista ou não. Mas não se pode ignorá-la, porque se perde um ângulo da análise.

IV - O ORGANICISMO POSITIVISTA

134 - O POSITIVISMO COMO IDEOLOGIA DO CAPITALISMO INCIPIENTE CONSOLIDADO NO


PODER
Consolidado o poder hegemônico do capitalismo urbano, o organicismo social se
radicalizou. Escondeu sua natureza idealista e pretendeu ser evidentemente racionalista.
Conseguiu fazer isto através do positivismo: corrente de pensamento que pretende interpretar
o mundo unicamente com base na experiência. É uma forma romântica de pensamento, pois
pretende atingir o infinito através da experiência, o que é impossível.
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Sua origem está no organicismo de Augusto Comte (1789-1857) o qual, como


Hegel, concebia o desenvolvimento da raça humana como o de uma grande família.
O grupo do poder nega problemas metafísicos. O conhecimento se esgota naquilo
que pode ser experimentado (não existe nada além do conhecido que impulsione o homem). O
homem está subordinado ao saber técnico. É uma célula do organismo social (sem direitos
humanos) e o poder social é produto da evolução orgânica (método natural que seleciona os
melhores e leva-os ao poder).
Com isto:
a) ocultava uma metafísica que impulsionasse à mudança social – é natural;
b) não existem direitos humanos, mas direito do organismo social;
c) na cabeça do organismo estavam eles, que eram os melhores.
Como não precisam mais do idealismo organicista, baseado no contrato social,
porque a nobreza não existia mais, passaram ao que chamaram de “materialismo organicista”,
ao biologismo organicista, onde a superioridade de idéias foi substituída pela superioridade
das células de seus próprios organismos: consideravam-se melhores biologicamente. Surge a
idéia falsa de que em um século a humanidade caminhou mais que em toda a história da
humanidade.
Os melhores, os mais evoluídos, passam a ter um direito natural de domínio não
só em nível nacional, mas em nível internacional. Não se explicou mais através da bíblia a
inferioridade do povo negro, mas cientificamente: são uma cultura subdesenvolvida que por
isto pode ser dominada, pois geneticamente inferiores. A mulher, por não ter certos órgãos e
produzir certos hormônios era inferior ao homem, e por isto não tinha capacidade.
As pessoas que ficaram à margem da sociedade, sem emprego e praticando
crimes, não são assim pela violência gerada pelo próprio sistema de produção, mas porque são
inferiores geneticamente. Os delitos cometidos pelas classes superiores era um acidente, daí
porque merecem “prisão especial”.
A medida da pena é o perigo que o delinqüente representa para o organismo (setor
hegemônico). Daí surgem as medidas de segurança. Apenasse todos os que cometem delitos,
inclusive os da classe hegemônica. Aos etiquetados perigosos vai também a medida de
segurança.
Na Europa a classe humilde era muito perigosa para o poder hegemônico. Criou-
se uma nova forma de controle social impulsionando a emigração para a América Latina.
Aqui estas pessoas também foram marginalizadas no início, lotando nossas prisões. Não é à
toa que se fecharam em colônias.

135 - A ANTROPOLOGIA CRIMINAL DE LOMBROSO


Lombroso foi um médico judeu italiano. Positivista, realizou diversas
experiências em animais e seres humanos, acabando por afirmar que o delinqüente era uma
espécie humana subdesenvolvida. Daí o delinqüente nato, que tem algumas características
próprias: orelha em asa, testa inclinada, baixa sensibilidade à dor (tatuagens) etc.
Criticado pela sociologia positivista de Ferri, acabou admitindo que o criminoso
nato, em ambiente favorável, pode não desenvolver sua periculosidade.
O que pode ser aproveitado de suas observações é que hoje notamos que pessoas
submetidas a carências alimentares e outras privações sociais – em qualquer nível social –
apresentam graves alterações neurológicas que, embora não hereditárias, levam ao crime.
58

136 - O POSITIVISMO PENAL SOCIOLÓGICO: FERRI (1856-1929)


O expositor mais claro da chamada escola positivista.
Fez um projeto de Código Penal em 1921 e, depois, como político, acabou
aprovando o Código Rocco de 1930, que vige até hoje.
Reduziu o DP a uma sociologia (tem uma obra com esse nome). A
responsabilidade penal deriva do mero fato de se viver em sociedade. Daí que existem valores
objetivos que devem ser protegidos pelo DP para que a sociedade possa subsistir.
O fim do DP é a defesa social. Daí que não importa se o delinqüente é doente ou
não é. Importa que ele se voltou contra a sociedade e por isto a sociedade precisa defender-se
dessa pessoa. Não há pena, mas medidas aplicadas a imputáveis e inimputáveis
indistintamente.

137 - A “LUTA DE ESCOLAS”


Ferri era um jurista e político com uma oratória brilhante. Inventou que todos
antes dele formavam o que chamou de Escola Clássica, fundada por Beccaria e capitaneada
por Carrara. Na verdade isto não existiu, porque todos os autores anteriores, como vimos,
foram influenciados pelo pensamento revolucionário francês, mas desenvolveram teorias
próprias, com teorias idealistas, aristotélico-tomista, kantiano etc. Não há uma unidade de
pensamento que caracteriza uma escola. Ficava mais fácil para ele etiquetar uma escola do
que se contrapor contra todos os pensamentos.
Aconteceu que na discussão suscitada por Ferri, surgiram na Itália alguns teóricos
que procuraram harmonizar os pensamentos. Fundaram o que se chamou de Terza Scuola.
O enfrentamento entre as teorias filosóficas e a teoria biológica (positivista) do
homem é no sentido de que:
a) Os primeiros entendem o homem como um ser com dignidade de pessoa em si, enquanto o
positivismo entende o homem como uma máquina, um animal em escala maior de
evolução – uns mais evoluídos, outros não;
b) Para a filosofia o delito é resultado de uma conduta humana. Para o positivismo romântico
é um sintoma de periculosidade de um mecanismo que não funciona bem. Ex.: quando um
carro estraga levo à oficina para consertar e fica lá o tempo necessário. Pode até ser
eliminado;
c) O DP antropológico trabalha com a pena com um fim ressocializador, enquanto o
positivismo trabalha com a pena no sentido da periculosidade – extirpa o que é ruim;
d) O positivismo e a criminologia de Ferri ganharam adeptos no mundo inteiro.

138 - O PLATONISMO RUDIMENTAR DE GAROFALO (1851-1934)


Junto com Ferri e Lombroso, forma a cabeça da escola positiva italiana.
Diferencia-se de Ferri, que é político, de Lombroso que era um judeu médico.
Garofalo era um aristocrata, que pretendeu construir um conceito de delito natural, partindo
de idéias platonistas incorporadas ao conceito organicista da sociedade. Como o organicismo
não é “experimentável”, teve dificuldade para construir sua ciência.
Garofalo percebeu que o relativismo valorativo é uma verdade histórica, enquanto
o organicismo não é. Por isto não podia construir a idéia de um delito natural. Constrói um
sistema baseado no sentimento. A sociedade tem uma pauta valorativa baseada no sentimento
dos homens (irracional – nada a ver com o positivismo). Como existiam sociedades que não
tinham o mesmo sentimento da Europa, chamou-a de tribos degeneradas, povo inferior, assim
59

como os delinqüentes eram humanos inferiores, degenerados, sem sentimento dos valores
sociais. Estes devem ser expulsos da sociedade e a pena de morte é mais piedosa que a prisão
perpétua no caso dos irrecuperáveis.
Essa ideologia foi aproveitada na Alemanha, pelo nacional-socialismo de Hitler,
como justificação para eliminação dos judeus. O DP deve proteger a sociedade de quem quer
corrompê-la, ou seja, dos degenerados.

V - AS VARIANTES DO POSITIVISMO

139 - O EVOLUCIONISMO ESPIRITUALISTA DE VON LISZT


Von Liszt foi professor da Universidade de Berlim. Sustenta que a pena não tem
função retributiva, mas preventiva, principalmente a especial, ou seja, ação terapêutica sobre
o próprio delinqüente.
Diz que o direito não é uma ciência, mas uma prática de juristas, pois defendia
interesses individuais e não sociais, que era objeto da política criminal.
O direito penal era a “Carta Magna do delinqüente”, porque estabelece limites no
direito de punir do Estado. Fundou, com Adolph Prins e von Hamel a Escola Internacional de
Direito Penal, que tratava de buscar soluções práticas para política criminal, prescindindo de
raízes teóricas. Influenciou o código argentino, e o brasileiro de 1940 e vários juristas
brasileiros. Não é à toa que nossos manuais são uma técnica de combate ao crime.

140 - O POSITIVISMO CORRECIONALISTA: DORADO MONTERO


Professor de Salamanca. Positivista coerente, defendia a pena como correção,
educação de delinqüente.

141 - O POSITIVISMO JURÍDICO


O positivismo apegou-se ao organicismo para veicular suas idéias. Essa tensão
entre o que se determinava como ciência experimental e a ficção da sociedade como um órgão
devia explodir logo.
Essa tensão foi percebida pelos positivistas e gerou uma crise, que tentou separar
o que era efetivamente saber jurídico do conhecimento social: separar o que é jurídico do que
é sociologia.
A isto chamou-se positivismo jurídico-penal, contrapondo-se ao positivismo
naturalista (o delito é natural). Delito é o fato descrito na lei como delito. O único direito e
toda a sua base de interpretação está na lei, a letra da lei.
Existem várias correntes do positivismo jurídico, inclusive aqueles que
pretendendo usar a metodologia positivista ocultam uma ideologia diferente.
O problema do positivismo pretensamente asséptico é que ao mesmo tempo em
que não tem uma ideologia, debilita todas elas e facilita a entrada de qualquer uma. As
ideologias estão sempre ocultas.
Um positivista destacado foi Manzini: O direito penal nada tem de filosófico.
Portanto, a interpretação é literal, quando muito permeada de elementos da história.

142 - BINDING
É fácil ser positivista quando o legislador é consciente. O problema é quando
descamba a repressão e temos de permanecer positivistas – respeitar leis. Binding viveu numa
época feliz, antes das guerras.
60

Foi um grande jurista alemão, que combateu a versão de delito natural, criticando-
a por ser seletiva, em base social, e tender para um direito da culpabilidade, repressivo, que
oculta as mazelas sociais da sociedade e despreza a dignidade da pessoa humana para
determinadas pessoas.
Criou a famosa teoria das normas. Quem comete um delito não viola a lei,
cumpre-a. Não está escrito: não matará. Viola a norma que é veiculada através da lei. Norma,
portanto, são proibições ou mandatos de ação.
As normas estão fora da lei, mas as conhecemos através das leis e por isto tem
caráter jurídico. Não há normas penais, mas normas jurídicas, algumas sancionadas com uma
pena. Com isto você pode trabalhar a idéia de norma dentro do ordenamento.

VI - A CRISE DO POSITIVISMO ORGANICISTA

143 - A PRIMEIRA VISÃO MACROSSOCIOLÓGICA MODERNA DO CRIME (DURKHEIM)


A impressão de que o desenvolvimento econômico era linear e regulado
automaticamente pela concorrência, sempre gerando progresso guiado pela ciência, onde
naturalmente se achavam os melhores, entra em crise em 1890-1896, com a crise econômica
da Europa e dos Estados Unidos.
A quebra da casa Baring de Londres (Argentina não pagou) desencadeia a
depressão naquele país, que atinge toda a Europa.
Nos Estados Unidos buscou-se a formação de cartéis como meio de eliminar a
concorrência.
A concorrência se acirrou na Europa e entra países da Europa e Estados Unidos.
As colheitas européias foram ruins. Enfim, veio a crise econômica e a tensão com os
marginalizados.
Viu-se que:
a) A competição livre leva ao desaparecimento da própria classe hegemônica – os mais fracos
devem ser eliminados;
b) Não se pode confiar cegamente nesse sistema de produção que incluiria a massa, porque há
crises.
Este panorama também coloca em crise a idéia de que a sociedade é um
organismo, cujas células sãs expulsam as más, porque agora as células sãs também deixaram
de produzir e são expulsas.
Durkheim (1855-1917) foi um ideólogo que se apercebeu disso e escreveu sobre
isto uma sociologia.
Diz que:
a) O delito não é uma agressão à sociedade, mas um fenômeno que no fim das contas tem um
efeito positivo sobre ela, pois fortalece a consciência coletiva na medida em que gera
reação pública;
b) Como o trabalho é dividido em forma de integração orgânica (por funções) e não mecânica
(individual). Quando ocorrem mudanças sociais abruptas as pessoas ficam perdidas
culturalmente. O delito, neste aspecto, é uma resposta desses perdidos, fora de contexto, e
provoca uma reafirmação social das respostas lícitas;
c) É a primeira visão do delito não como um corpo estranho, nocivo à sociedade, mas com
uma função positiva macrossociológica. Seria um elemento funcional da sociedade. Não é
uma posição anti-organicista, mas uma mudança da abordagem organicista;
61

d) O delinqüente não é o agressor socialmente danoso, e sim o que dá reforço à consciência


coletiva;
e) Fortalece a prevenção geral como função da pena. A pena tem de melhorar o sentimento
coletivo de coesão social.

9ª AULA – 29/04/03

CAPÍTULO IX
A IDEOLOGIA PENAL NO “ESTADO DO BEM-ESTAR” NOS PAÍSES CENTRAIS

I - A IDEOLOGIA CRIMINAL A PARTIR DA CRISE DO POSITIVISMO


ORGANICISTA

144 - A SEPARAÇÃO DAS IDEOLOGIAS


Entre a segunda e terceira metade do séc. XX separam-se as ideologias penais,
gerando um discurso jurídico e um criminológico sem maiores contatos. Isto ocorreu por
fatores sócio-econômicos diferenciais nos países centrais:
a) Sociedade norte-americana
Necessidade: Precisava resolver os conflitos gerais pela acumulação rápida de
capital, por causa da imigração massiva e não integração de toda essa massa.
Resposta: desenvolveu-se a análise sociológica do fenômeno do crime
(criminologia norte-americana)
b) Sociedades européias
Necessidade: Precisava disciplinar a sociedade para o consumo como condição
para formar um Estado do Bem-Estar. Cai no simplismo: neutralizando as causas do crime
através do Estado do bem-estar, o que resta de criminalidade é uma manifestação de patologia
individual.
Resposta: Análise psicopatológica do fenômeno do crime (criminologia européia
– clínica criminológica – que se traduz numa criminologia do tratamento e numa escola da
nova defesa social).
A resposta não satisfaz a necessidade, porque é financeiramente impraticável.
Além disso coloca-se em perigo os direitos humanos e as próprias condições de consumo.
Autores de direito penal na Europa procuram criar um direito penal
compatibilizando a função retributiva e preventiva geral e especial do direito penal, mas um
direito penal técnico, sem embasamento filosófico, compatibilizando tratamento e prevenção.
Por outro lado ficou evidente a contradição entre organicismo e positivismo. O
organicismo ficou claramente identificado com o idealismo ou o chamado materialismo
ingênuo. O positivismo deu lugar ao neopositivismo.

II - AS IDEOLOGIAS DA CRIMINOLOGIA NORTE-AMERICANA

145 - AS TEORIAS SOCIOLÓGICAS DA UNIDADE CULTURAL


Surgem vários grupos de teorias criminólicas nos EUA.
Concebe a sociedade como uma certa unidade cultural, ou seja, todos os seus
integrantes compartilham uma série de pautas básicas de conduta, que se materializam na lei
penal. Divide-se em dois grupos:
62

a) Explicação funcionalista da criminalidade  é o mais difundido e remonta a Durkheim,


mas foi exposta por um grande sociólogo contemporâneo chamado Robert Merton.
Para estes a criminalidade é o resultado da desproporção entre os objetivos
socialmente fomentados e os meios postos ao alcance das pessoas para alcançar tais objetivos.
Quando a pessoa não tem meio lícito para alcançar tais objetivos, posto pela
sociedade como vantajoso, provoca uma série de reações, dentre elas o crime, ou seja, a
tentativa de alcançar objetivos sociais por meios ilícitos.
Pressupõe que há um acordo cultural acerca de quais são esses objetivos
fomentados, o que corresponde a uma visão unitária da sociedade.
O problema é que a realidade mostra que há numa sociedade complexa inúmeros
grupos minoritários que não compartilham dessas pautas sociais.
A vantagem é que põe de manifesto que o fomento de metas não são alcançáveis
para todos, o que dentro da sociedade de consumo adquire grande importância. Ex.: depressão
para a classe média.
b) Existência de subculturas criminais ou violentas  Seus expositores são Cohem e
Cloward-Ohlin, entre outros.
Da mesma forma a sociedade é uma unidade cultural, mas existem subculturas
que se apartam da cultura geral, sobrevalorando exageradamente alguns aspectos negativos,
como a violência e o crime. Ex.: grupos de jovens violentos.
O problema é sustentar a existência de uma unidade cultural, superior em relação
aos grupos que não compartilham dos seus valores.
c) Crítica  Demonstrou-se que a chamada unidade cultural é uma criação da mídia, dos
meios de comunicação de massa, que pretendem controlar a conduta de consumo. Ex.:
todos vestem a mesma roupa, participam de clubes sociais etc.
Isto funciona em sociedades com muito dinheiro, pois uma grande maioria tem
acesso aos mesmos “valores” e a minoria que se desvia pode ser controlada.
O problema está em considerar desviada toda conduta que não corresponde aos
padrões de consumo. São valores objetivos que correspondem a um idealismo mais bem
elaborado, e a um positivismo psicológico que se aproxima do que se chamava ideologia do
tratamento antiga.
A vantagem é que estas escolas prepararam o caminho para um novo
entendimento da criminalidade que tem raízes na conformação da sociedade. Mais tarde a
Escola de Chicago demonstrou que não existe essa unidade cultural e que existe uma
estratificação social e os diversos grupos não compartilham dos mesmos valores.

146 - AS TEORIAS EM CONFLITO


Concebem a sociedade não como uma unidade cultural, mas como uma
pluralidade de grupos com pautas culturais diferentes, com sistemas de normas em colisão. A
conduta criminosa é o resultado de uma aprendizagem, como o respeito à lei é. Dependendo
da forma com que o indivíduo é colocado em contato com o grupo da lei ou da criminalidade
vai preponderar sua conduta. Se dividem em:
a) Teoria da associação diferencial  Um de seus expositores foi Sutherland.
Há uma desorganização social e certos grupos em determinada época assumem a
hegemonia do grupo. Estes escapam à criminalização de massa, embora pratiquem a
criminalidade do poder, que chamaram de “crimes do colarinho branco”, hoje um dos temas
mais importantes da criminologia tendo em vista a criminalidade transnacional.
63

O problema é que essas teorias se limitaram em detectar essa criminalidade, mas


não explicaram como se formam esses grupos e seus interesses.
b) Teoria do interacionismo sociológico criminal  alguns de seus autores são Beker,
Goffman, Lemert, entre outros.
A sociedade é sim formada por grupos sem unidade cultural. O grupo que tem o
poder, através de um processo de interação com os demais grupos, impõe o etiquetamento de
condutas como criminosas, ou a criminalização de certos grupos. Tem o poder de etiquetar
(labelling approach (aproximação, avizinhar-se)).
Pôs em relevo:
a) o condicionamento de carreiras criminosas como parte do processo interativo de
criminalização;
b) criação de um estereótipo criminoso com que se orienta a criminalização.
A crítica que se faz ao interacionismo é sua superficialidade, pois não explica a
estrutura condicionadora desses fenômenos de criminalização. Peca pelo agnosticismo.
O problema é que a questão não é mesmo fácil de ser definida, de ser objeto de
um ramo do conhecimento: se a criminologia é um ramo do conhecimento. Mas ao se tratar de
crime hoje não se prescinde dessa explicação.
Os interacionistas são pragmáticos e, pelo menos nos EUA, não foi alcançado por
teorias idealistas  objetividade moral.

III - A IDEOLOGIA DO TRATAMENTO

147 - A IDEOLOGIA DO TRATAMENTO


Verificou-se que as políticas que pretenderam fazer desaparecer as “causas” do
delito fracassaram:
a) Na Europa o Estado do bem-estar social não fez desaparecer o delito, nem diminuiu muito
o número de criminalizados;
b) O socialismo, com economia centralizada, afirmando que a criminalidade é resultado do
capitalismo, também não resolveu a questão.
Os países centrais buscam explicar o delito em causas individuais, como uma
doença psicológica, baseados numa certa interpretação da psicologia de Freud. Acatam mais
ou menos o que disse Durkheim quanto a utilidade social da punição.
Essa tendência foi se direcionando para uma finalidade terapêutica da pena, mas
os resultados não foram positivos sempre, muito embora tivessem muitos casos positivos.
Problemas:
a) custo financeiro não suportável nem pelos países centrais;
b) a Suécia, que foi mais longe nesta experiência, hoje volta a outros sistemas. Ex.: liberação
da droga para fins de tratamento.
c) Insiste-se em estabelecimentos terapêuticos para habituais, mas este é um número muito
pequeno – casos de pessoas contra a vida;
d) Também para os delinqüentes sexuais;
e) Também para os crimes contra a propriedade.
Os resultados não são alentadores.
64

Mas esta não pode ser uma solução simplista, afastando todos os demais
problemas até aqui vistos.

148 - A NOVA DEFESA SOCIAL


São teorias defendidas por Marc Ancel e de outro lado por Filippo Gramática.
Confusas e reclamam um estado perigoso para certas pessoas que cometem crimes e por isto
penas e medidas de segurança devem se confundir. Pedem tipificação das condutas perigosas.

IV - A IDEOLOGIA DO DIREITO PENAL RETRIBUTIVO EUROPEU

149 - O NEOCRITICISMO PENAL


Na Europa desenvolveu-se um movimento chamado de neokantismo, afirmando
que o conhecimento das coisas em si não existia. As coisas só existem no tempo e no espaço
que conhecemos. É uma posição idealista que divide-se em várias escolas:
a) Escola de Marburgo  Kelsen
Como o conhecimento não existe, é o método que cria o objeto. O conhecimento é
uma lógica do método. Não teve repercussão no direito penal.
b) Escola de Baden  Max Ernest Mayer (1875-1924) e Gustav Radbruch (1875-1924)
São os valores que criam e ordenam as coisas. A realidade é um caos. Penetramos
nela valorando coisas: a propriedade etc., recriando uma realidade agora organizada.
O valor não respeita a realidade. Só conhece a realidade que criou: uma realidade
de valores.
Mayer dizia que a cultura é uma mistura de realidade e valores. Realidade
valorada. Daí que as normas são normas de cultura. O delito é uma contradição com as
normas de cultura reconhecidas pelo Estado. Criou o conceito de antijuridicidade material:
não em choque com a lei mas com a norma de cultura reconhecida pela lei. Liszt já falava que
a antijuridicidade era o dano social.
Radbruch dizia que era ao direito que criava a conduta. Era positivista
neokantiano.
Mezger cria um novo conceito de causalidade no que chamou de neoclassismo
penal.

150 - O NEOPOSITIVISMO (OU POSITIVISMO LÓGICO OU “CÍRCULO DE VIENA”)


Por volta de 1923 surgiu em Viena um grupo formado por teóricos de várias
ciências, tentando descobrir o que era comum a todas as ciências. Na verdade era um círculo
filosófico chamado de Círculo de Viena, liderado por Moritz Schilick e integrado por Carnap,
Wittgenstein, Neurath, e outros.
Propunham uma ciência unificada, chamada de fisicalismo: tudo que não é
verificável não é um problema, mas um pseudoproblema, uma metafísica. Perguntas sobre o
ser, a liberdade etc., são problemas vazios, metafísicos, que não interessam às ciências. São
perguntas sem conteúdo.
A ciência jurídica é uma sociologia empírica, dando lugar a realismos jurídicos.
Termos éticos tem só valor emotivo. A metafísica é uma atitude emotiva frente à
vida. Ex.: arte, música etc.
Tem para o direito penal os mesmos efeitos de qualquer positivismo.
Sua contribuição está em que:
65

a) afastou-se do irracionalismo organicista;


b) aperfeiçoou o estudo do método;
c) depurou a linguagem até chegar à linguagem lógica;
d) aperfeiçoou a lógica simbólica.
São problemas:
a) o homem não é só ciência experimental;
b) as ciências não explicam tudo, até porque hoje são revistas quotidianamente;
c) as teorias veiculam ideologias políticas que o homem do direito não pode deixar passar
simplesmente sob pena de servir de joguete de ideologias sejam quais forem;
d) a depuração da linguagem não é suficiente para resolver os problemas do cotidiano;
e) relega ao direito penal o papel de selecionar condutas sob o ponto de vista idealista e
retribuir a infração com uma pena que é retributiva e preventiva, reformadora.

151 - O NEO-ESCOLASTICISMO
O neotomismo foi uma reação ao neokantismo. Foi Vicktor Cathrein no início do
século quem iniciou o movimento.
Parte da afirmação de uma natureza humana que outorga a todos os homens igual
dignidade e por isto não é possível uma ideologia do tratamento. Depois Jacques Maritain
quem desenvolveu estas idéias. A culpabilidade está na base do direito penal, tanto a do autor
como a do fato.

152 - A ÉTICA MATERIAL (SCHELER- HARTMAN)


A ética material foi uma reação também ao objetivismo valorativo. Seus
representantes são Max Scheler (1874) e Nicolai Hartmann (1882-1950).
Sheler diz que os bens são portadores de valor que, portanto, precedem os atos.
Portanto, os valores são objetivos porque podem ser captados pelo sentimento.
Esta teoria desemboca num direito natural ideal.
Hartmann também chega a um objetivismo valorativo. No plano ideal se chega a
uma idéia do homem como um ser naturalmente bom (irracional). Afirma-se que essa idéia é
natural, fundada na natureza da imagem. Da bondade do homem são deduzidos racionalmente
tudo o que para essa imagem é bom e mau.
Um homem que pratique o bem será mais homem que o que pratique o mal.
O ser é na medida em que vale para aquele que valora. No direito penal quem
valora é o detentor do poder político. Por aqui transitam direitos penais autoritários
66

10ª AULA – 06/05/03

CAPÍTULO X
A IDEOLOGIA PENAL EM PAÍSES CENTRAIS COM DIFICULDADE DE
ACUMULAÇÃO DE CAPITAL PRODUTIVO

I - A ATITUDE GERAL DO DIREITO PENAL “DE ACUMULAÇÃO RÁPIDA”

153 - A CRÍTICA AO “DIREITO PENAL LIBERAL”


O processo de acumulação de capital produtivo não se deu da mesma forma em
todos os países. Alguns não conseguiram (Rússia), outros se atrasaram (Itália).
A solução foi formar um governo autoritário para gerar acumulação rápida de
capital, seguindo uma planificação que não poderia ser discutida: não dava tempo.
O direito penal desempenhou uma função importante, punindo autoritariamente
quem se contrapunha a essa política. O resultado foi que o direito penal humanitário passou a
ser criticado como direito penal liberal.

154 - O CONCEITO DE DIREITO PENAL LIBERAL


Devemos esclarecer o que é direito penal liberal, para não confundirmos com a
crítica simplista que é o direito penal que deixa fazer, deixa passar.
Direito penal liberal é aquele que está vinculado ao Estado de Direito, ou Direito
Penal dos Direitos Humanos no sentido técnico, ou seja, cujas características são:
a) respeito à autonomia ética da pessoa humana;
b) delimitação precisa do poder público;
c) seleção racional dos bens jurídicos penalmente tuteláveis;
d) previsibilidade das soluções;
e) a racionalidade, humanidade e legalidade das penas etc.
A este direito penal contrapõe-se um direito penal autoritário, que não é defendido
por ninguém – não há uma teoria de direito penal não-liberal –, mas que é utilizado
politicamente como meio de repressão de esconder a incapacidade política de realizar um
Estado de direitos humanos.

II - AS POLÍTICAS PENAIS DOS AUTORITARISMOS DE PRÉ-GUERRA

155 - AS POLÍTICAS PENAIS FASCISTA E NACIONAL-SOCIALISTA


Existiram outras políticas autoritárias, mas estas são as mais importantes.
1) Política fascista
O direito penal fascista tinha por finalidade proteger o Estado, e fazia isto:
a) estabelecendo penas gravíssimas para os delitos políticos, que eram definidos
subjetivamente;
b) protegendo o partido oficial;
c) predomínio da prevenção geral pela intimidação com penas graves.
O exemplo na Itália é o Código Rocco, de 1930:
a) trata de delitos políticos baseado na motivação e o penaliza gravemente;
67

b) confunde delitos contra o Estado com delitos contra o sistema político e o partido
governante (partido único). Ex.: Art. 282  Injuriar a honra ou o prestígio do chefe do
governo;
c) esses delitos eram julgados por um tribunal de exceção – político.
Quando tipifica delitos que estão previstos em qualquer código, o faz com um
sentido autoritário:
a) estupro não é um delito contra a liberdade sexual da mulher, mas contra a moral pública e
os bons costumes (elemento de nacionalidade);
b) aborto não é crime contra a pessoa, mas contra a saúde e contra a integridade da estirpe
(bem jurídico da nação);
c) sanciona-se a blasfêmia como delito contra a religião do Estado (não se protege o
sentimento religioso, mas a religião do Estado);
De outro lado:
a) não distingue entre atos preparatórios e executórios. Ex.: pune os que conspiram contra o
Estado;
b) agrava a pena dos delinqüentes habituais ou com tendência para delinqüir, com medidas de
segurança;
c) estabelece a pena de morte para delitos contra o Estado.
Este era o direito penal que assegurava um Estado que pretendia atingir um
desenvolvimento acelerado para superar o subdesenvolvimento (milagre econômico
brasileiro) e para garantir a própria unidade do Estado na Itália, desfalcado por emigrações e
pelo subdesenvolvimento de determinadas regiões. Isto degenerou para a guerra.
O positivismo e o idealismo neo-hegeliano foram utilizados como ideologia desse
Estado.
2) Política nacional-socialista
O nazismo, partindo do Estado como “comunidade do povo”, fundada sobre a
comunidade de “sangue e solo”, e sustentada pelo mito da raça ariana, embora não construísse
um Código Penal, gerou leis de alta repressão. A pena não tinha conteúdo vingativo, nem de
prevenção. Sua finalidade era segregar quem atacava a integridade do povo alemão.
Algumas leis:
a) 1933  sancionado o mero planejamento de delitos (nem era ato preparatório);
b) 1935  planejar homicídio de dirigentes do partido, recebia a pena de morte;
c) 1936  sancionada a relação sexual entre arianos e judeus;
d) 1936  criaram-se graus de pena de morte: fuzilamento para militares; decapitação com
machado para delinqüentes comuns, forca para crimes políticos;
e) 1936  delitos políticos eram julgados por tribunal de exceção;
f) 1933  introduzida a esterilização como medida de segurança e a castração para certos
delitos sexuais;
g) 1935  foi eliminado o princípio da legalidade, de modo que passou a ser crime qualquer
ato contra a idéia fundamental de uma lei penal e ao sentimento do povo, que eram punidos
por analogia com uma lei parecida.
68

156 - A POLÍTICA PENAL SOVIÉTICA DE PRÉ-GUERRA


No início da revolução marxista na União Soviética (1929), o direito penal seguia
uma interpretação positivista do marxismo, que depois foi utilizado por cada governante com
sua concepção particular de marxismo (Lênin e Stalin principalmente).
O direito penal do Código de 1922 não respeitava o princípio da legalidade e sua
função é de defender o Estado de camponeses e trabalhadores na transição para o comunismo.
Os julgadores (também de exceção) eram livres para estabelecer o que era delito e qual era a
pena, com base no perigo social conforme a consciência socialista.
O direito penal ajudou o Estado a desarmar uma estrutura econômica de produção,
instalando um comunismo de guerra, que demandava arbitrariedade judicial e polícia forte
para fortalecer o estado e conter a população faminta.

III - A POLÍTICA PENAL SOVIÉTICA

157 - O DIREITO PENAL SOVIÉTICO DA ÚLTIMA ETAPA


Em 1958, com o argumento de que a URSS estava madura para partir para a
instalação do comunismo, sancionou-se pelo Soviete Supremo os “Princípios de legislação
penal”. Surgiu o Código Penal da Rússia de 1960, cujas características são:
a) desapareceram os tribunais especiais;
b) restabeleceu-se o princípio da legalidade;
c) as penas tornaram-se mais leves – menos pena de morte.
No entanto, alguns meses depois a pena de morte voltou para vários delitos.
A pena tem um fim retributivo e de persuasão (Platão), podendo-se inclusive
abdicar da pena, trocando-a por medida de influência social. Se o réu demonstra rebeldia
(reincidência em furto por exemplo) justificava-se a eliminação, porque a pena de prisão não
pode ser prolongada quando não tem um fim reeducador.
Era um direito penal apegado ao positivismo, preenchido com conceitos políticos.
Estava fundamentado na periculosidade social de Ferri: o inimputável vive fora das relações,
não participa da luta de classes (Hegel). Daí que merece ser eliminado.

IV - OS PRINCÍPIOS POLÍTICO-PENAIS DA IGREJA CATÓLICA

158 - A CONSIDERAÇÃO DOS PROBLEMAS PENAIS PELOS ÚLTIMOS PONTÍFICES


A reação política aberta contra um direito penal humanitário não se limitou ao
totalitarismo entre as guerras. Avança hoje em dia com ideologias de segurança urbana etc.
Contra este atentado contra a dignidade da pessoa humana houve sempre denúncia da Igreja
Católica, que tem chamado a atenção para este fator em nível mundial. Além dos documentos
oficiais da Igreja, chamados Encíclica, a posição dos papas sempre foi bastante forte em favor
do respeito à dignidade da pessoa humana:
1) Pio XII  Em mensagem aos participantes do VI Congresso Internacional de Direito Penal
(outubro de 1953), entre outros conceitos importantes:
a) reafirmou a distinção entre pecado e crime: o direito penal não pode ter por objeto todos os
atos contrários à moral, mas somente aqueles que ameacem seriamente a ordem da vida
comunitária;
b) rejeitou o direito penal da periculosidade: a pena pressupõe sempre a culpa;
69

c) disse que o princípio da causalidade puro e simples não é suficiente como princípio
jurídico. É necessário que se prove a intenção perversa;
d) é preciso que se reconheça que o homem se autodetermina, embora possa sofrer influências
externas ou internas, mas tem capacidade de superá-las. Daí a pena ressocializadora;
e) critica o positivismo que dizia que não pode ser justificado perante a razão, bem como o
autoritarismo do pós-guerra como um cinismo utilizado para alcançar a neutralização do
adversário.
2) João XXIII  Gostava de visitar prisões e institutos de menores. Por ocasião de uma
dessas visitas salientou:
a) A importância da antropologia criminal: o delinqüente precisa ser compreendido, para o
que precisa ser estudado;
b) Somente compreendidas é que as pessoas delinqüentes podem ser julgadas e reeducadas
para uma serena inserção na vida social.
3) Papa Paulo VI  Dirigindo-se aos assistentes do X Congresso Internacional de Direito
Penal de 1969, disse que:
a) Há na obra do penalista um ponto capital que é a salvaguarda dos direitos do homem;
b) A responsabilidade é de assegurar os direitos do culpado como também do inocente;
c) O delinqüente conserva sempre uma dignidade e direitos que é necessário garantir de
forma absoluta contra a arbitrariedade;
d) A pena deve tender à reeducação do delinqüente e à reintegração do culpável à sociedade,
com sua inteira dignidade de pessoa humana.
4) João Paulo II  Afirmou em suas inúmeras preleções:
a) todas as formas de injustiça que se manifestam em nossa época sejam sujeitas a
consideração e sejam realmente remediadas, e que todos possam ter uma vida digna de
homem.

11ª AULA – 12/05/03

CAPÍTULO XI
PANORAMA ATUAL DO PENSAMENTO PENAL E A PROBLEMÁTICA
PERIFÉRICA

I - BASES FILOSÓFICAS REALISTAS PROVENIENTES DOS PAÍSES CENTRAIS

159 - EXISTENCIALISMO
Também hoje temos o confronto de teorias idealistas e realistas, com tendência ao
idealismo, tendo em vista a crise do Estado do bem-estar social.
Os Estados estão impedidos de investir no social e precisam preservar suas pautas
de produção e controlar o desemprego.
O sistema de produção mundial se estruturou em cima do petróleo, combustível
natural não-renovável, e a guerra do Iraque é um exemplo do que se pode fazer para garantir
energia por mais alguns anos. De outro lado, a oscilação de seu preço faz com que mude todo
o rumo de uma economia, com sofrimento evidente de países pobres.
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O aumento do consumo por parte de 1/3 da população não pode se sustentar


indefinidamente para aumentar a produção num mundo de recursos limitados. De outro, outro
terço sequer tem acesso a consumir o necessário para viver.
Diante desse quadro parece inevitável que o controle social através do direito
penal se oriente pelo idealismo. Há muito mais teoria do que propostas empíricas para
melhorar o sistema penal de controle social.
Uma corrente realista que se desenvolveu na Europa e que hoje está em crise,
justamente por causa da crise econômica, foi o realismo, cujo pensador original foi
Kierkegaard, para quem, de um modo simplista, o homem em relação com sua existência é o
centro do seu problema filosófico.
Martins Heidegger (1889-1976) foi um filósofo alemão que elaborou uma
corrente de pensamento dentro do existencialismo. Alguns conceitos dele são importantes
para o direito penal:
a) A pergunta das perguntas: Ele pergunta pela ontologia, ou o que é o “ser”. Diz que o
homem é o único que a si elege o que quer ser e o chama de “ser-aí”;
b) A existência é para o homem sempre uma possibilidade: o homem escolhe e na escolha
elege ser ou não-ser. Mediante a escolha, o homem se projeta no mundo, porque é um ser-
no-mundo das significações, que é a soma dos “para que” de cada uma das coisas;
c) O mundo: Heidegger diz que o mundo é formado por entes que têm a forma de coisas que
são “para” algo e de outros entes que não têm essa forma, porque nunca se pode considerá-
los como “ser para”. Os primeiros são as coisas e os segundos são os homens. As coisas
são para o homem. Os “para” das coisas são o que elas “significam”. As coisas já existem
materialmente antes que os homens lhes atribua uma significação. Mas as significações
não estão nas coisas, é o homem que dita este significado. Daí a diferença do idealismo: o
conhecimento não cria o objeto, mas apenas dá significação ao objeto.
d) A coexistência: O homem usa as coisas. Mas frente a outros homens pode ter uma atitude
negativa (ignorar o tu) ou uma atitude positiva (procurar o outro). Ao procurar o outro
pode fazê-lo facilitando-lhe a escolha, ou privando-lhe da escolha. No primeiro caso há
uma existência autêntica, no segundo, uma existência inautêntica. Um pai proporciona ao
filho instrumentos para que ele siga a carreira que escolheu, mesmo sabendo que será
difícil. Outro pai escolhe uma carreira para o filho e proporciona os meios para que a siga.
e) A autenticidade e a inautenticidade: O homem é lançado no mundo, de tal forma que não
existe sem o mundo. No entanto, pode mudar as significações do que encontra no mundo
no qual está lançado. Tem a possibilidade de transcender, de projetar-se no mundo. Mas a
existência pode ser de dois modos: forma de existir inautêntico: o homem se deixa arrastar
pelo mundo, não se projeta, renuncia à eleição. Isto não tem conteúdo pejorativo, mas é o
pressuposto necessário para o existir autêntico.
f) A angústia e a morte: Angústia é a força que leva do existir inautêntico ao autêntico. O
homem se deixa arrastar pelo mundo e através da angústia chega a eleger o ser autêntico. A
angústia é gerada diante de um acontecimento certo, que é a morte, a própria morte. Não é
medo da morte, mas angústia ante o limite terreno. Ninguém pode experimentar a morte de
outro, mas só a própria morte e esta experiência é irrepetível, é assumir plenamente a
própria existência na forma autêntica.
Daí que o homem é “um ser para a morte” e isto o leva a assumir o limite radical
da própria existência, e não ser uma pessoa mórbida. O homem “vai sendo” enquanto existe.
Nunca é um ser completo, vai se completando até a morte, quando deixa de ser. Tem de ser
capaz de antecipar a própria morte para compreender sua existência, porque na morte o
homem não pode ser substituído por ninguém.
71

Heidegger eleva o homem além da concepção biológica, mas não se eleva até a
teologia: cria uma antropologia existencial.
g) Os valores: Heidegger critica o objetivismo valorativo e as posições idealistas. O homem
se constrói. E isto é sua maior contribuição para o direito penal. Não existe uma imagem
perfeita e acabada do que o homem é. Ele se constrói no mundo em que é jogado, numa
existência que pode ser autêntica ou inautêntica.

160 - A TEORIA DAS ESTRUTURAS LÓGICO-OBJETIVAS OU LÓGICO-REAIS


É um movimento que tende a buscar uma limitação ao legislador, baseando-se na
“natureza das coisas”, como reação ao positivismo anterior à Segunda Guerra. Foi difundida
nos anos 60 na Alemanha e não é mais defendida.
Em resumo diz que:
a) o objeto desvalorado não é criado pela desvaloração. Existe independente dela. O direito
quando desvalora uma conduta não a cria: a conduta existe independente do desvalor
jurídico;
b) A valoração deve respeitar a estrutura do ser que valora. Se não conhecer o ser, a valoração
pode recair sobre um ser diferente: Ex.: descrevo como é belo um cisne, dando as
características de um porco;
c) O legislador se liga ao ser que ele desvalora através de “estruturas lógico-objetivas”. Não
pode alterar o ser da conduta que desvalora;
d) Quando o legislador não conhece o que desvalora, faz leis imperfeitas, fragmentárias, mas
que são leis válidas embora a desvaloração recaia sobre um objeto diferente;
e) Quando o legislador ignora o homem como pessoa na norma, esta norma é inválida.
Deste modo, esta teoria traz uma certa limitação ao direito penal, indica o que não
é direito, mas não diz o que é direito. Modestamente nos dá uma base para estabelecermos
algumas coisas que podem ser direito. Antes de mais nada, partindo de uma posição realista,
nos esclarece que o direito não é a única ordem do universo. Há outras ordens a que o
legislador está vinculado.
Por isto, são inválidas regras que:
a) Alterem a ordem física;
b) Exijam o fisicamente impossível;
c) Desconheçam o homem como pessoa;
d) Estabeleçam valorações contraditórias.
Welzel foi um defensor desta teoria. Ele diz que todos os jusnaturalismos são
idealistas e, por isto, veiculam ideologias. Só com base num direito penal realista,
conseguiremos para ele uma fundamentação antropológica. Uma fundamentação idealista
sempre tenderá para defesa do grupo dominante e do sistema de produção vigente.
A partir desta concepção das estruturas lógico-objetivas podemos saber o que é e
o que não é direito. Ex.: uma faca sem fio continua sendo uma faca. Quando está afiada ou
não será determinado pelo grau de fundamentação antropológica do direito. Mas se a faca
perder muitas de suas características, não será mais faca, mas sim um monte de aço. É a teoria
das estruturas lógico-objetivas que pode esclarecer isto de modo razoável.
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161 - A TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE


É uma teoria que está sendo difundida pela chamada Escola de Frankfurt, cujos
expoentes são Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Mancuse. Pretende fazer a crítica
da nossa sociedade e chegar a uma sociedade “sem opressão”. Para isto dizem que nós que
estamos dentro da sociedade, não podemos compreendê-la, porque estamos sujeitos e
condicionados pelo sistema de produção – contato com marxismo.
O homem não tem natureza e está historicamente condicionado. Mas não fala o
que seria essa sociedade sem opressão de homens condicionados. Acaba num jusnaturalismo
nebuloso, sem explicar em que consiste a sociedade ideal.
Zaffaroni diz que filosoficamente a teoria crítica é bastante confusa e inacabada.
De um lado se contrapõe ao positivismo, ao dizer que a técnica não é tudo. Mas isto todos os
não positivistas dizem. Misturam Marx, Freud, Hegel e Heidegger.
Quanto ao direito penal:
a) consideram que o delinqüente é um doente, cuja debilidade está na resistência à destruição
do “eu” socialmente imposta;
b) uma vantagem desta teoria foi mostrar que existe uma conexão entre o científico e o
político no direito penal, destruindo todas as pretensões positivistas, embora isto não seja
original;
c) criou um “clima” acerca da própria teoria que ajudou a difundi-la;
d) Roxin, influenciado por esta teoria, pretende construir um sistema dogmático do delito a
partir da política criminal: na antijuridicidade se resolvem conflitos sociais com critério
político-criminal e na culpabilidade (associalidade) é uma questão de oportunidade e
conveniência política para a aplicação da pena.
Isto nos leva de novo ao positivismo jurídico, porque se todos são critérios
políticos, o problema está em reconhecê-lo (através de normas?) e qual o limite para a razão
política.
O problema é suprimir a culpabilidade normativa, ensaia-se um positivismo
evolucionista e para a periculosidade. Andam juntos nesta teoria o positivismo jurídico e o
evolucionismo penal.

II - LINHAS POLÍTICO-CRIMINAIS ENUNCIADAS NOS PAÍSES CENTRAIS

162 - TENDÊNCIAS PENAIS UTÓPICAS


Na década de 60 o movimento anarquista foi revitalizado na Europa através de
movimentos universitários principalmente na França e na Alemanha, através de um teórico
chamado Fourier especialmente.
O anarquismo não é a negação do direito, mas o extremo otimista de um qualquer
jusnaturalismo idealista: se há uma lei superior à humana e reconhecível (por observação,
revelação etc.) nada mais justo que pensar que um dia essa lei vai nos reger. Se os
jusnaturalismos todos não radicalizaram neste sentido foi porque pararam no desenvolvimento
da sua teoria antes de chegar lá.
Os anarquismos todos partem da suposição de que suprimido o Estado, sua
ideologia jusnaturalista reinará. Todos têm imensa fé na condição moral do homem, que
chegam a unificar direito e moral. Não suspeitam que esse controle mútuo numa sociedade
ideal pode degenerar para uma ditadura moralista. Não acreditam nisto porque crêem numa
mudança moral do homem. No entanto, dizem que não podem afirmar como seria essa
sociedade, porque vivem na atual, altamente condicionados e com limitação do conhecimento
– teoria crítica. Por isto não há como sistematizar como seria essa sociedade.
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Carnelutti, um penalista católico, enunciou idéias anarquistas no campo penal.


Dizia que não haveria necessidade do Estado se as relações humanas se baseassem no amor.
O direito só intervém quando acaba o amor. É assim que se dá na família, por exemplo.
Fourier (1772-1837) acreditava que se as paixões não fossem inibidas, se produzia
uma concórdia passional geral. Onde a libido governasse não haveria monstros sádicos. O
crime é produto da supressão das paixões e não das paixões em si, que quando liberadas
levam à harmonia.
Esse pensamento pesou e pesa sobre as considerações de um direito penal mínimo
que se procura hoje.

163 - A NOVA DIREITA PENAL


A crise fiscal dos anos 70 levou a necessidade de diminuir o gasto público. O
nível de consumo das sociedades centrais diminuiu e este foi o momento oportuno para a
eclosão de uma ideologia de ultradireita, que imputou a responsabilidade da crise aos
governos de centro e à própria democracia.
Surgiu uma corrente inorgânica irracionalista (idealista), conhecida como “nova
direita”, cujos autores foram saudados demasiadamente e isto não correspondeu a seu peso
filosófico, especialmente na França.
No direito penal, a tendência foi ressurgir a pena de morte na Europa. Nos EUA
chamou-se essa corrente de “novo realismo criminológico”, cuja bíblia é o livro de Ernest van
der Haag.
Ele identifica a “ordem” como uma “utilidade” e afirma que ao fazer a lei penal é
o valor que deve prevalecer. A caridade e a justiça estão subordinadas a esse valor, que atuam
na medida tolerada pela “utilidade”.
A pena tem uma função vinculada à ordem utilitária.
Estatísticas são manejadas como indicadores de criminalidade, sem qualquer
crítica, observando que alguns casos são sensíveis ao aumento de pena, outros ao aumento de
prisão, outros ao número de condenações etc. A partir daí aconselham a adoção de uma
política adequada a cada caso, sem importar-se com as conseqüências dessas arbitrariedades.
Ex.: os negros representam só 12% da população mundial, mas é entre eles que registram-se
60% das detenções (dados de 1970) e isto nada tem a ver com as condições de vida, nem com
a seletividade do direito penal. Cria-se uma política então para controlá-los.
A seletividade é normal no sistema penal. É necessário que se golpeie mais
duramente os setores da sociedade que, por estarem em inferioridade de condições sociais e
individuais, estão mais tentados a cometerem crimes e, portanto, violam a lei com mais
freqüência. As objeções à seletividade são objeções a Deus, que no fundo é o autor dessa
justiça distributiva.
Não é à toa que baseados na “teoria da necessidade” os americanos soltaram as
bombas atômicas. São razões práticas e de ordem (utilidade) que levam à necessidade –
necessidade de defesa do poder. Assim constrói-se um mundo melhor.
Na Europa criou-se a teoria do novo retribucionismo penal: a pena é uma
retribuição que tem um fim em si mesma. Penalistas com base em Luhmann trabalham com
um direito cuja única finalidade da pena é reforçar a confiança nos organismos e instituições
do Estado, com o que considera o valor “ordem” como único bem jurídico.
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164 - A “POLÍTICA CRIMINAL VERDE”


Nos países centrais nos últimos anos tem surgido partidos políticos minoritários
que vêm aumentando sua participação na política e, portanto, sendo ouvidos. Partem da
inegável catástrofe ecológica em andamento pela civilização industrial e pelo armamentismo.
Propõem planos de redução de consumo alternativos etc.
Filosoficamente é um movimento que revaloriza a mensagem de todas as grandes
religiões e procura coincidências entre todas as correntes filosóficas, com particular
inclinação ao espiritualismo
É uma interessante proposta ideológica que se desenvolve nos países centrais, mas
de duvidosa aplicabilidade nos países periféricos por causa das dificuldades sociais.
A versão ideológica penal é sustentada por Louk Hulsmann, que defende a
abolição do direito penal – abolucionismo. Ele parte de que a resposta penal é só uma forma
de resolver conflitos sociais, que é compartimentalizado, corrupto, seleciona pessoas etc., e
diz que a justiça penal, na sua forma atual, poderia ser suprimida com vantagem por outros
meios, como a reparação, a conciliação etc.
Tem razão quando prega a redução da repressividade do sistema, mas não tem
fundamento a abolição total do sistema penal. Este é só uma forma de controle social e se ele
acabar, dará lugar a outros sistemas que nem sempre serão os melhores com relação ao
respeito à dignidade da pessoa humana.
Temos sociedades concretas, com estruturas de poder concretas que não
permitirão que cesse o controle social na medida em que não vejam seu poder ameaçado. Se
abolir o direito penal utilizarão de outros sistemas – administrativo, psiquiátrico, assistencial
etc. – que podem ser piores do que o direito penal.

165 - DESCRIMINALIZAÇÃO, DESPENALIZAÇÃO, DIVERSIFICAÇÃO E INTERVENÇÃO MÍNIMA


Estuda-se reformas nos sistemas penais dos países centrais e a ONU nos seus
congressos se encarrega também de debater no mundo inteiro. Algumas tendências são:
a) A descriminalização  Renúncia formal em agir num conflito social através do direito
penal.
Isto se propõe com relação a vários delitos:
- cheques sem fundos;
- furtos em grandes lojas;
- furtos em fábricas por empregados etc.
A descriminalização pode ser de fato – como no caso do adultério – como formal,
nas reformas penais. Utiliza-se então de formas não punitivas: sanções administrativas, civis,
educação, acordo etc.
b) A despenalização  São as alternativas à pena de prisão, que surgem como as penas
restritivas de direito, a multa, prestação de serviços à comunidade, prisões de final de
semana etc. É preciso se investir nisto. No Brasil não se investe. Não se descriminaliza, só
se dá a chance de não aplicar a pena. No Brasil a Lei 9.099/95 retrata essa tendência.
c) Diversificação  É a possibilidade do processo penal não ser instaurado, ou se instaurado,
seja suspenso mediante condições. A Lei 9.099/95 no Brasil representa esta tendência.
d) Intervenção mínima  Postula uma redução ao mínimo da intervenção penal em atenção
ao efeito contraproducente da ingerência penal do Estado.
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Recolhe argumentos abolucionistas e uma reação realista frente à confiança


ilimitada no tratamento e na solução punitiva dos conflitos.
Todas estas correntes são criticadas pela criminologia atual que diz que são
tendências que só existem por causa da crise fiscal do Estado, que está trocando o controle
institucional pelo controle difuso da sociedade, o que levaria a uma “extensão” da prisão a
toda a sociedade.

III - O PENSAMENTO ATUAL NA AMÉRICA LATINA

166 - O RETRIBUCIONISMO NA AMÉRICA LATINA


O retribucionismo – concepção da pena como uma retribuição, conforme o
princípio da culpabilidade – latino-americano tem se desenvolvido com amparo no
neokantismo alemão, que é falha pelo perda do dado da realidade, tão importante numa região
onde 40% da população está à margem do sistema de produção industrial e a maior parte da
renda está concentrada numa minoria. Marat já dizia: a retribuição não pode ser justa em
sociedades altamente injustas quanto a seu sistema de produção e concentração de renda.
De um lado esse retribucionismo se afasta do positivismo biológico, mas de outro,
é utilizado por setores tecnocratas do segmento judicial que se fecha a qualquer dado da
realidade que provenha da sociologia ou da economia, afastando-as da interpretação jurídica.
Tem servido aos setores da segurança nacional ou segurança urbana em nossos países.

167 - O PERIGOSISMO NA AMÉRICA LATINA


É filho do positivismo. É a ideologia preferida das elites latino-americanas.
Embora ninguém o defenda publicamente, o perigosismo jamais desapareceu da
América Latina. Sentenças, artigos, discursos jurídicos, fazem uma abordagem do direito
penal neokantiana, ou positivista jurídica, escondendo um positivismo perigosista biológico.
Enxertaram aqui idéias provenientes do Estado do bem-estar social europeu que
também culminou numa ideologia de tratamento híbrido: argumentos positivistas esgotados
em países centrais, aqui se fortalecem com a idéia de tratamento que é impossível aqui por
razões financeiras.

168 - O DIREITO PENAL DE SEGURANÇA NACIONAL


Foi uma ideologia que, ao invés de destacar a tensão que existe entre países
desenvolvidos e subdesenvolvidos (norte-sul), ressaltava a tensão leste-oeste, como a única
existente e que estava em curso uma guerra entre o mundo não comunista e o comunismo.
A conseqüência é a “militarização” de toda a sociedade. O homem e seus direitos
estão em segundo plano. O direito penal tem como maior bem jurídico a ser protegido a
segurança nacional. Aí surgiram:
a) estatutos de emergência;
b) tribunais especiais;
c) penas aplicadas por autoridades administrativas;
d) leis que violam a legalidade, a culpabilidade, a humanidade etc.
Não é um pensamento teórico, mas uma ideologia que justifica a arbitrariedade da
tirania.
Utilizam-se de argumentos que ninguém sabe bem de onde surgiram:
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a) a guerra exige que se sacrifiquem liberdades para a “ordem” (utilidade), porque se vive
uma situação extraordinária de necessidade;
b) No entanto, não se deve aplicar o direito de guerra, mas o direito nacional com argumentos
de guerra. Superam-se todos os direitos humanos;
c) O delito comum deve ser castigado severamente para reforçar o sentimento social
(Durkheim);
d) O delinqüente comum é o inimigo interno (Garofalo);
e) Em qualquer caso o delito deve ser punido, retribuindo o mal do crime com o mal da pena
(Kant) haja ou não necessidade.
Embora sem unidade teórica, foi um suporte ideológico de um momento histórico
da América Latina.
Embora superado, a sua realidade autoritária não desapareceu. Adotou-se nova
roupagem: a ideologia da segurança urbana, utilizando-se dos mesmos instrumentos:
a) atores políticos procuram clientela eleitoral com leis repressivas, sem nenhum contexto
ideológico coerente;
b) mesclam-se argumentos moralistas, perigosistas e de segurança nacional;
c) organizam-se cruzadas nacionais e internacionais contra o crime;
d) o medo e a redução de espaço político – esquerda – para tentar uma solução mais racional
para os conflitos sociais, favorecem uma transferência do poder à hegemonia das forças
armadas na época da segurança nacional, hoje, em época de segurança urbana, transferida
às polícias. E o Ministério Público atrás.

169 - A CRÍTICA PENAL LATINO-AMERICANA


Nós não temos na América Latina uma verdadeira crítica sobre nossos sistemas
penais. O próprio poder político impede que se possa construir teorias críticas elaboradas
como nos países centrais, pois o conhecimento de nossa realidade é limitado e o poder, na
área do direito penal, não tem a menor intenção de aumentá-lo.
Isto faz com que as críticas não tenham coerência e sejamos forçados a importar
ideologias. Importamos a crítica avançada e a aplicamos em nossa realidade periférica, com
resultados que podem não ser desejáveis.

CAPÍTULO XII
OS CAMINHOS ABERTOS PARA UMA FUNDAMENTAÇÃO ANTROPOLÓGICA
DO DIREITO PENAL

I - A NECESSIDADE DA FUNDAMENTAÇÃO ANTROPOLÓGICA

170 - A INEVITABILIDADE DAS PERGUNTAS FUNDAMENTAIS


Perguntaremos para que (qual o sentido) e até onde (qual o limite) do direito
penal?
As respostas não estão na lei, porque a lei não cria o homem, e sim reconhece-o
como ele é, em maior ou menor medida. Se a lei penal quer regular ações do homem não pode
inventá-lo. Por isto que o DP (a lei) precisa de sentido antropológico para explicitar aquilo
que deve ser aplicado (dogmática).
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O DP deve servir ao homem para alguma coisa (ter significação). Se não


descobrirmos para que ele serve tiraremos dele a sua característica de fato humano.
Nem tudo que é lei é direito, portanto, nem toda lei penal é direito penal.

II - DIREITO PENAL EFETIVO, DIREITO PENAL NÃO EFETIVO E PURO


EXERCÍCIO DE PODER

171 - A DISTINÇÃO
Por efetivo se entende um direito penal que é capaz de desempenhar a função que
lhe incumbe no atual estágio de nossa cultura. A função é de auto-realização humana, ou seja,
garantia de que eu possa dispor de meus bens jurídicos para me realizar na coexistência. É
efetivo o DP que garante a minha existência.
Um direito penal que não garanta isto não é efetivo e gerará tensões sociais e
conflitos que acabarão destruindo a sua vigência ou eficácia. Mesmo assim será direito penal
e estará vigente enquanto for sustentado.
Se a carência de efetividade for tão grande que afete o horizonte de projeção da
ciência jurídico-penal, este será só um exercício de poder e não será um direito penal. E só
será efetivo se respeitar a condição humana, sirva ao homem a partir que reconheça a
condição humana – antropologicamente fundado.

172 - QUANDO HÁ DIREITO PENAL E QUANDO HÁ MERO EXERCÍCIO DE PODER?


O DP pressupõe as seguintes condições mínimas:
a) Regula conduta humana. As coisas, animais e fatos físicos estão fora de sua esfera;
b) Tem de respeitar o princípio da não contradição – uma conduta não pode ao mesmo tempo
ser proibida e não proibida;
c) Não pode contradizer as leis físicas. Exigir o impossível;
d) Tem de reconhecer que o homem se autodetermina. Fora disso há um DP que compele
mecanicamente, mas não motiva ninguém.
Um direito penal sem estas características mínimas não é direito penal. Inobstante
isto, podem existir leis arbitrárias que não são uma teoria jurídica.
Esses requisitos delimitam o horizonte de projeção do DP. Sua presença basta
para que haja matéria jurídica.

III - O DIREITO PENAL EFETIVO E O DIREITO PENAL NÃO EFETIVO

173 - CONDIÇÕES DE EFETIVIDADE DO DP


Um direito penal que não esteja antropologicamente fundado não é efetivo, mas
continua sendo DP.
O direito penal não efetivo é repressivo. E o DP não pode ser repressivo, mas
garantidor de direitos.
O DP não dá liberdade, que é interior em cada homem. Mas pode possibilitá-la
exteriormente, possibilitar a escolha. Será mais liberador na medida em que estiver mais
antropologicamente fundado, mais escolhas facilite. Será mais repressivo quanto mais o
homem se fecha para o outro atrás de um ídolo: o Estado, os valores fundamentais, a pátria, os
sentimentos, o condutor, a cultura, o destino luminoso, ou seja, quando tende para um
idealismo.
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Um direito penal efetivo baseia num homem não só racional, mas também
emotivo, e tem certas características:
a) Não pode basear-se em um ser derivado do valor:
O DP quer facilitar a vocação da consciência individual, não pretende extrair da
consciência uma ética material que seja aplicada a todos.
É um utilitarismo, mas um utilitarismo humano. O DP tem de ser útil ao homem,
tem de servir para alguma coisa. E sua utilidade está na possibilitação de existências
simultâneas (a coexistência é a única forma de existência).
O máximo que podemos aspirar é a um direito penal que seja útil para facilitar a
coexistência.
O objetivismo valorativo é mais fácil de trabalhar: construo um modelo de homem
e modelo todos segundo este exemplo. Aparentemente dá mais segurança, mas na prática
destrói o homem.
A crítica que se faz ao existencialismo no DP é que traz constantes dúvidas. Mas
esta é justamente a sua força. Existencialmente falando a dúvida é um aspecto da angústia,
que leva ao homem a uma existência autêntica.
b) Não terá por base um racionalismo nem um voluntarismo puros:
O homem não é pura razão, nem puro voluntarismo. É uma mescla. A razão, o
conhecimento, não obriga o homem, não obriga a vontade. Só orienta, guia, de modo que sem
conhecimento ela se perde.
Não se deve pensar que o racional é humano e o irracional é animal. O homem é
os dois. A vontade não nasce da razão.
c) Deve ter base realista:
Todo idealismo penal aliena, pois encobre o ser do homem. O conhecimento não
cria o “ente”, ele só o torna compreensível (Heidegger).
O caminho do conhecimento não pode ser arbitrário. O mundo não se esgota
numa transcendência subjetiva, mas todo questionamento é uma busca, e toda busca tem uma
direção, que é indicada por aquilo que se busca (Heidegger).
d) Não pode ser fundado num conhecimento adquirido pela fé:
O conhecimento pela fé é distinto do conhecimento racional. O sujeito da fé é o eu
individual, enquanto o sujeito da ciência é o eu formal, genérico, que coexiste. Se o eu e o tu
se encontram em algo descoberto pela fé, é porque ambos descobriram o mesmo, mas não
porque um o tenha demonstrado ao outro. Fundar o DP na fé é impor ao outro o que eu
conheço, é um exercício de poder sobre o tu.
e) Não pode basear-se num puro saber científico:
A consciência é algo original no homem, algo que não tem a forma de um ente
qualquer, e sim de homem.
Alguns procuram buscar essa consciência no alto, buscando a Deus. Constróem
um DP da fé, misturando direito e moral, e em afirmações que não são demonstráveis.
Outros procuram buscar essa consciência para baixo, na biologia. Constroi-se um
conceito naturalista do homem, que não distingue o homem das coisas. O homem torna-se
impessoal, cujo ser normal tem características próprias de homem, mas não compreende nada.
f) Deve possibilitar a liberdade mediante a segurança jurídica (condição externa):
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Liberdade consiste em ser o que se é, na escolha a partir da angústia, na decisão


da própria existência. Ocorre na consciência e se manifesta no mundo. Daí que o DP só pode
aspirar a proporcionar os pressupostos externos da liberdade, mas jamais a própria liberdade
(agora está livre para escolher).
Isto quer dizer que o DP deve proporcionar ao homem ser o que ele escolher ser,
dar segurança à sua escolha, claro que limitadas pelo mundo de significações, que tem leis. O
DP deve escolher certos entes cuja disponibilidade ele garante (vida, saúde etc.) e aqui está a
segurança jurídica. O acerto ou erro nas escolhas, depende de circunstâncias histórico-
culturais.
g) Deve distinguir-se da moral:
Quando a consciência chama com a angústia e o chamado não é ouvido,
permanece-se no inautêntico, no impessoal, arrastado pelo mundo, no “se”: se diz, se fala etc.
A permanência no inautêntico, embora o chamado da angústia, é imoral, é fuga da
liberdade, é vício. Mas isto pode não afetar bem jurídico protegido pelo DP. Daí que não
coincide o campo do ilícito com o campo da moral.
h) Deve evidenciar um atitude positiva e liberadora da convivência:
No procurar o outro, o DP deve proporcionar um atitude positiva (não negativa,
de substituir o outro na escolha). Deve facilitar-lhe a escolha. A atitude liberadora deve ser
guiada pela razão.
i) Deve distinguir-se claramente da ética social:
Ética é o padrão de conduta socialmente estabelecido no seio do grupo social. É
quase um costume. Pertence ao impessoal, ao “se” do inautêntico.
Em muitos casos o DP apela ao costume, à ética, mas tomando o cuidado de não
aplicar a ética em bloco, apenas garantindo um mínimo ético, de modo que os outros grupos
sociais também possam se manifestar na sociedade. Ex.: não pode permitir sair nu pela rua,
mas não impede topless na Bahia.
A pior é a ditadura da ética, numa sociedade com grande variedade de grupos. O
fortalecimento da ética em geral é um mito, pois se traduz na “consciência pública” que não
existe, porque a consciência é individual.
j) Deve ter uma especial aspiração ética, não bastando a mera ameaça de pena como meio:
O DP não pode se comportar como um dono frente a seu cão, com uma coleira
que é a pena, mas a pena deve perseguir uma certa formação do cidadão, um certo propósito
educador ou reeducador, já que a educação por si só não é um atentado contra a autonomia
ética do homem, porque há uma educação para a liberdade e educação para a escravidão. É
uma formação cidadã.
k) Deve ser dinâmico:
Não existe uma ética que foi fixada de uma vez para sempre. O homem e seu
passado se constróem no futuro. Todo questionamento do homem caracteriza-se por sua
historicidade.
O DP autoritário é “apaziguador”, porque todo aquele que impõe algo tem a
característica de ser apaziguador. O DP antropologicamente fundado não foge da discussão, é
dinâmico, não tem medo de dúvidas, só se angustia com elas e se torna autêntico.
Um DP que, em certa medida, não possibilite a mudança de significações, ou seja,
a mudança do mundo, é um DP que pretende converter a existência/coexistência a uma
organização estática, condenado ao fracasso, porque perde a eficácia.
80

O ponto de equilíbrio dinâmico do DP antropológico é difícil. Sua condição de


eficácia será maior na medida em que possibilite sua própria mudança de conteúdo, o que
nem sempre acontece, pois corre o risco de um grupo de poder tentar sempre frear o seu
dinamismo.
l) Deve rejeitar como falsa a antinomia indivíduo-sociedade:
O interesse do grupo é o interesse dos homens que compõem o grupo, e neste
sentido não há antinomia entre indivíduo e sociedade. Sem sociedade não há existência
humana e coexistência: quando decido de mim, também decido da dignidade dos outros
homens.
m)Não existe um limite até onde possa estender o mínimo ético exigível pelo legislador
penal:
E isto porque está além da razão, dependendo do “encontrar-se”, como qualquer
procura pelo outro que seja liberador.
Mas existe um guia racional, a regra de ouro: “Não faça aos outros aquilo que não
quer que os outros lhe façam” e o imperativo categórico de Kant: “Conduz-se pela máxima
que, ao mesmo tempo, possa querer que seja a lei geral”.
Um DP dinâmico que se baseie por estas regras será um DP voltado para a
autenticidade do homem, muito embora jamais afirme critérios inquestionáveis. Esta será sua
virtude, porque aqueles que pretendem ter critérios inquestionáveis só se afastam do homem e
do direito.

174 - EFEITOS DA AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO ANTROPOLÓGICA


O pensamento penal que encobre o homem, deixa de ser útil ao homem,
procurando “ser para” as coisas. Quando isto acontece o DP dá um giro ao primitivismo e
confunde tudo. É assim que se procuram resolver problemas sociais em casos particulares,
proibir o que não se pode obter, aumentar irracionalmente as penas para compensar a
impunidade etc.
Quando um DP impede a escolha e a realização pessoal se torna frustrante e acaba
se destruindo, porque não é capaz de deter a natureza humana, apenas submetê-la
temporariamente.
O DP não pode impedir o homem de ser homem. O homem e sua angústia quer
ser autêntico, ditar as significações do mundo. Um DP repressivo do “sendo” humano gera
conflitos, e a vigência desse direito penal depende apenas de sua força repressiva. Quanto
menos efetividade tem, mais o DP usa da força para conservar a sua vigência. Se nada
interrompe o processo de repressão, este termina por aniquilar o próprio DP, que deixa de ser
direito e passa a ser uso da força.
81

FICHAMENTO DO LIVRO:
MANUAL DE DIREITO
PENAL BRASILEIRO

Eugênio Raúl Zaffaroni &


José Henrique Pierangeli

PARTE GERAL
2º BIMESTRE
82

Segunda Parte:
TEORIA DO DELITO
83

12ª AULA – 19/05/03

TÍTULO I
ESTRUTURAÇÃO DA TEORIA DO DELITO

CAPÍTULO XIII
NECESSIDADE DA TEORIA DO DELITO

I - UTILIDADE DA TEORIA DO DELITO

175 - INCUMBÊNCIA DA TEORIA


A teoria do delito é a parte da ciência penal que se ocupa em explicar o que é
delito em geral. É uma construção dogmática que nos proporciona o caminho lógico para
averiguar se há delito em cada caso concreto. Mas o que quer dizer isto?
Quando um promotor ou um juiz analisam a conduta de quem se apoderou de uma
jóia numa loja, tem de averiguar se essa conduta é crime ou não. É delito, porque se ajusta à
figura típica do art. 155. Mas pode ocorrer que ela se apoderou daquela jóia pensando ser a
sua, ou por engano, ou porque precisava de dinheiro para pagar uma cirurgia de um filho etc.
O sujeito continuou cometendo um delito nesses casos ou não? É a teoria do delito que vai
responder. Vamos decompor o delito em certas perguntas. Essas perguntas e respostas devem
ocorrer em certa ordem. É a teoria do delito que vai nos proporcionar fazer essas perguntas e
nos dar a ordem.

II - NECESSIDADE DE ESTRATIFICAR A TEORIA DO DELITO

176 - CONCEITO DE ESTRATIFICAÇÃO


Há várias perguntas para responder se quisermos resolver se uma conduta é delito
ou não. Quando queremos averiguar se o que temos diante de nós é uma zebra, antes devemos
saber quais as características desse animal, compararmos com o animal que temos diante de
nós para afirmarmos: zebra. Se afirmarmos: pato, não está certo, porque essas características
não correspondem a de um pato.
As perguntas surgem em certa ordem, a partir de um conceito estratificado, ou
seja, o conceito de zebra tem estratos, um corresponde ao caráter genérico (animal) e outros a
características específicas (cavalo listrado etc.). A primeira pergunta portanto é geral: é
animal? Se for animal partimos para outras mais complexas: parece com um cavalo? Tem
listras?
Diz-se de conceito estratificado em analogia com a geologia, em que os estratos
são as capas minerais de densidade uniforme que constituem os terrenos sedimentários
(substância depositada, pela ação da gravidade, na água ou ao ar).
O contrário de conceito estratificado é o conceito unitário. Ao invés de definirmos
zebra de modo estratificado, poderíamos simplesmente dizer: zebra é aquilo que a zoologia
define como zebra. Aqui não se admite estratos. O primeiro conceito nos permite averiguar se
o que estamos vendo é uma zebra, enquanto o segundo não. É um conceito formal. Só
saberemos se é uma zebra quando penetrarmos no conteúdo da zoologia.
O conceito unitário é formal, o conceito estratificado é analítico (quais são as
características que apresentam os animais que a zoologia chama de zebra e em que ordem
devemos tomá-los em consideração).
84

177 - TEORIA ESTRATIFICADA E TEORIA UNITÁRIA DO DELITO


Houve quem quisesse dar um conceito unitário de delito: delito é uma infração
punível (zebra é aquilo que a zoologia define como tal). Este conceito não deixa de estar
correto, mas para o jurista isto não basta: deve-se perguntar quais as características de uma
infração punível, sob pena de cair num conceito formal, que não define nada e, em última
análise, com conseqüências práticas funestas. Nazismo, ditaduras. Delito é quilo que eu falo o
que é.
Hoje se trabalha com conceito analítico, estratificado do crime.

178 - ESTRATIFICADO É O CONCEITO OBTIDO PELA ANÁLISE, NÃO O DELITO


Quando dizemos que zebra é um cavalo listrado, afirmamos no plano geral que é
um animal, depois, que é um cavalo, depois que é listrado. Portanto, só o conceito que é
estratificado e não a zebra. A zebra é uma unidade, os planos não estão na zebra, mas na sua
análise, da qual obteremos o conceito.
Com o delito é a mesma coisa. Ele é um só. Para darmos o seu conceitos é que
procedemos às suas características analiticamente obtidas.

CAPÍTULO XIV
ESBOÇO ESTRUTURAL

I - OS NÍVEIS ANALÍTICOS DA TEORIA DO DELITO

179 - COLOCAÇÃO GERAL


Quando perguntamos o que é delito, fatalmente teremos de abrir o Código Penal,
que vai nos dar a característica geral e as específicas de um delito.
A primeira afirmação é que delito é um conduta humana. Mas não são todas as
condutas humanas que constituem delito. Para distinguirmos as condutas recorremos à Parte
Especial do CP  só são delitos aquelas condutas ali descritas como crime, às quais se
associa uma pena como conseqüência, por isto penal. Provisoriamente, afirmamos que delito é
uma conduta humana sancionada com uma pena.
Chamamos esses elementos da parte especial que servem para especificar a
conduta de “tipo”. A conduta humana que tenha os seguintes elementos: “matar alguém”
constitui o “tipo” do art. 121, que se chama homicídio. Subtrair, para si ou para outrem, coisa
alheia móvel é o tipo de furto do art. 155.
Quando uma conduta se ajusta a um tipo penal chamamos de “conduta típica”, ou
seja, tem as características do tipo penal.
Já temos, portanto, duas características do delito:
n) conduta humana (geral)
o) típica (específica – é uma espécie do gênero conduta).
Mas só a tipicidade não é suficiente para caracterizar uma conduta humana como
delito. E isto porque na Parte Geral do CP – art. 13 a 28 –, vemos que a lei diz que não a
crime porque não há conduta, outras vezes há conduta, mas não é típica. Por vezes, mesmo
havendo conduta típica, não há delito.
Se pararmos no art. 23 (devemos memorizar), veremos que existem permissões
para a realização de ações típicas: estado de necessidade, legítima defesa, e estrito
cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito. Tecnicamente dizemos que nesses
casos há uma causa de justificação que exclui o caráter de delito da conduta.
85

Quando a conduta típica não está permitida, diremos que, além de típica ela
contraria a ordem jurídica como um todo, porque não existe nenhum preceito em nenhuma lei
justificando essa conduta. A isto se chama de ANTIJURIDICIDADE. Dizemos que delito,
então, é um conduta típica e antijurídica.
Se continuarmos a ler os arts. 13 a 28, veremos que há hipóteses em que se deduz
que mesmo uma conduta típica e antijurídica não é delito, porque se referem a condutas que
são claramente típicas, para as quais não existe nenhuma permissão no ordenamento, e mesmo
assim não são delito. Ex.: loucos. O louco realiza uma conduta típica e antijurídica, mas que
não é delito.
A doutrina chama uma conduta típica e antijurídica de INJUSTO PENAL
(conduta + tipicidade + antijuridicidade), reconhecendo que esse injusto não é ainda um
delito. Para ser um delito é necessário que seja reprovável, ou seja, que o autor de uma
conduta típica e antijurídica tenha tido a possibilidade exigível de se comportar de outra
maneira.
A esta característica chamamos de culpabilidade.
Assim:

a) caráter genérico: conduta


injusto
a) tipicidade
Delito penal
b) características específicas b) antijuridicidade
c) culpabilidade
É nesta ordem que devemos formular as perguntas para saber se houve delito ou
não. Se não houve conduta humana, não tem sentido perguntar se ela é típica. Ex.: cavalo que
mata alguém. Se ela é atípica, não faz sentido perguntar se é antijurídica. Ex.: acidente sem
vítima. Se ela não é um injusto penal, não faz sentido perguntar se é culpável. Ex.: legítima
defesa.

181 - O CRITÉRIO SISTEMÁTICO QUE SURGE DA ESTRUTURA ANALÍTICA


Toda análise orienta-se por um critério analítico, de análise. Para analisar uma
laranja podemos partir da casca para as sementes, das sementes para a casca, ou parti-la em
duas metades. Esses critérios analíticos são critérios sistemáticos quando nos toca construir
um conceito de laranja a partir da análise: a laranja pode ser descrita como: um fruto com
sementes de tal forma... e casca de outra; um fruto com casca de tal forma... e sementes de
outra; ou como uma metade direita x e com uma esquerda y.
O conceito de delito como conduta típica, antijurídica e culpável elabora-se
conforme um critério sistemático que corresponde a um critério analítico que primeiro analisa
a conduta e depois o seu autor: delito é uma conduta humana individualizada mediante um
dispositivo legal (tipo) que revela a sua proibição (típica), que por não estar permitida em
nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária à ordem jurídica (antijurídica) e
que, por ser exigível do autor que agisse de maneira diversa diante das circunstâncias, é
reprovável (culpável).
O injusto (conduta típica e antijurídica) revela o desvalor que o direito faz recair
sobre a conduta. A culpabilidade é uma característica que a conduta desvalorada adquire por
uma especial condição do autor (pela reprovabilidade que do injusto se faz ao autor).

III - EVOLUÇÃO DA TEORIA DO DELITO

184 - INJUSTO OBJETIVO – CULPABILIDADE PSICOLÓGICA (VON LISZT)


A dogmática do início do século XX tinha uma marca: entendia o injusto como
objetivo e a culpabilidade como subjetiva.
86

O injusto era a causação física do resultado e a culpabilidade era a causação


psíquica do mesmo resultado, que podia ser dolosa (quis causar o resultado antijurídico) ou
culposa (imprudência, imperícia ou negligência). Devia-se investigar dois nexos causais para
saber se houve delito:
p) um físico  a conduta causou o resultado?
q) Um psicológico  há uma conduta psicológica entre a conduta e o resultado?
Como dentro do injusto não se distinguia a tipicidade da antijuridicidade, havia
muitas condutas antijurídicas e culpáveis que não eram delitos. Havia necessidade de se criar
outro requisito para evitar essa caracterização insuficiente do delito. Agregou-se a
imputabilidade à antijuridicidade e à culpabilidade. O delito era uma conduta antijurídica,
culpável e punível.
r) conduta  vontade exteriorizada que colocava em marcha a causalidade;
s) antijuridicidade  causação de um resultado socialmente danoso;
t) culpabilidade  relação psicológica entre a conduta e o resultado em forma de dolo ou
culpa;
u) punibilidade  submissão a uma pena das hipóteses de uma conduta injusta e culpável.

185 - DISTINÇÃO DENTRO DO INJUSTO ENTENDIDO OBJETIVAMENTE: A TIPICIDADE


(BELING)
Era estranho verificar a antijuridicidade e a culpabilidade de uma conduta e
averiguar que a lei não a comina com uma pena. Por isto, em 1.906, Beling anunciou a sua
concepção do tipo penal, sem alterar o esquema analítico objetivo-subjetivo, onde distinguia
dentro do injusto o tipo da antijuridicidade:
v) a proibição era de causar o resultado típico;
w) a antijuridicidade era o choque desse resultado com a ordem jurídica, que se comprovava
com a falta de permissão para causar o resultado.
O delito passou a ser definido como uma conduta típica, antijurídica e culpável.
Alguns consideravam ainda a punibilidade:
x) conduta  vontade de por em marcha a causalidade;
y) tipicididade  proibição de causar um resultado;
z) antijuridicidade  contradição entre a causação do resultado e a ordem jurídica;
aa) culpabilidade  relação psicológica entre a conduta e o resultado em forma de dolo ou
culpa.

186 - A RUPTURA DO SISTEMA OBJETIVO-SUBJETIVO


Ainda no início do século XX viu-se que o conceito de conduta que o DP
manejava não correspondia à realidade, porque o conteúdo da vontade da conduta ia parar na
culpabilidade, e uma vontade sem conteúdo é inimaginável. Verificaram-se algumas
contradições que fizeram esse esquema acabar:
bb) Viu-se que em alguns delitos não havia relação psicológica entre a conduta e o resultado.
Isto acontecia nos casos que chamavam de culpa inconsciente. Ex.: um vizinho vai ao
teatro e deixa o gás da calefação aberto. A casa explode e atinge um vizinho que se
machuca. Não há relação psicológica entre a conduta “ir ao teatro” e o resultado “vizinho
ferido”. Se isto é verdade há delito sem culpabilidade, o que é impossível.
87

Pretendeu-se criar um novo conceito de culpabilidade. Frank, em 1.907, e depois


Mezger, passaram a explicar que a culpabilidade contém a relação psicológica nos casos em
que esta existe, mas não é uma relação psicológica, mas sim a reprovabilidade da conduta
típica e antijurídica. E essa reprovabilidade era feita normativamente. Não foram além disso.
cc) Por outro lado, até 1.910, observou-se que a conduta típica de certos crimes continha
elementos subjetivos, chamados de elementos subjetivos do injusto. Ex.: com o fim
libidinoso no rapto. (art. 219, do CP). Isto mostrava que o injusto não é só objetivo.
Rompeu-se então o esquema objetivo-subjetivo e o substituíram por outro:
dd) conduta  vontade exteriorizada que coloca em marcha a causalidade;
ee) tipicidade  proibição de causação de um resultado que, eventualmente, também leva em
conta elementos subjetivos;
ff) antijuridicidade  contradição entre a causação do resultado e a ordem jurídica;
gg) culpabilidade  entendida como reprovabilidade, mas contendo também o dolo e a culpa.

187 - O TIPO COMPLEXO E O FINALISMO


Nos últimos anos da década de 20 se observou que a culpabilidade, como juízo de
reprovabilidade do autor, não podia conter a relação psicológica, ou seja, o conteúdo da
vontade. Percebeu-se que era incoerente julgar um ato como contrário ao direito sem levar em
conta o conteúdo da vontade com que este ato se realizava.
Hellmuth von Weber e Alexander Graf zu Dohna incorporaram o conteúdo da
vontade ao tipo, tornando a culpabilidade só reprovabilidade e incorporando o dolo e a culpa
ao tipo.
A partir da década de 30 Hans Welzel começa a trabalhar essas estruturas e parte
de que a vontade não pode ser separada de seu conteúdo, de sua finalidade, posto que toda
conduta humana é voluntária e toda vontade tem um fim. Esta é chamada teoria finalista da
ação, que se contrapõe à teoria causalista:
hh) conduta  ação voluntária (final);
ii) tipicidade  proibição de conduta em forma dolosa ou culposa;
jj) antijuridicidade  contradição entre a conduta proibida com a ordem jurídica;
kk) culpabilidade  é a reprovabilidade.

188 - A TEORIA DO DELITO NO BRASIL


A doutrina brasileira sustentou a teoria causalista (tipo objetivo e dolo e culpa na
culpabilidade) em quase todas as obras publicadas durante a vigência do CP/40. Nelson
Hungria, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Magalhães Noronha, Paulo José da Costa Jr., e
outros).
Já no caso do fim do CP/40 surge a estrutura finalista como melhor metodologia
analítica. Embora não adotem um único ponto de partida, a maioria dos autores hoje são
finalistas: Heleno Fragoso, Mirabete, Assis Toledo, Damásio de Jesus, Luiz Regis Prado,
Cezar Bittencourt etc.).

189 - A DISCUSSÃO DOS ÚLTIMOS ANOS


ll) Volta para o neokantismo
Muitos autores na Alemanha, dentre eles, Jeschek, Wessels, Chönck-Scröder,
entre outros, que formam a doutrina dominante nas obras gerais, não aceita o conceito final da
ação e também a teoria das estruturas lógico-reais. Aceitam, porém, na maioria, que dolo e
culpa fazem parte do tipo, aceitando a maior inovação finalista.
88

Roxin chama essa corrente de neoclássica-finalista.


Zaffaroni diz que são sistemas ecléticos (formado de elementos colhidos em
diferentes gêneros ou opiniões), orientados para um funcionalismo limitado (orientam-se por
uma função facilitadora das soluções de casos. Não tem maiores preocupações quanto aos
marcos mais amplos do DP).
mm) Pós-finalismo
O debate acerca da natureza do injusto e a polêmica entre o desvalor do ato e do
resultado constituem conseqüência da estrutura do tipo na sistemática finalista.
Abriram-se dois caminhos:
1) O funcionalismo criou a teoria da imputação objetiva;
2) Outra teoria – do desvalor puro do ato – tira o resultado do tipo e reduz este resultado a
uma condição de maior punibilidade. Assim, o conceito geral de delito é o mesmo para o
crime consumado e tentado.
Por caminhos diferentes tentaram chegar a um conceito de delito de perigo
concreto, mesmo nos casos de crime de resultado.
No geral, estas teorias tem sido rejeitadas. Não encontraram correspondência na
legislação e tendem à descriminalização de muitas condutas tentadas.
nn) Sistemática funcional-sistêmica
A partir dos anos 70 iniciou-se um ensaio de sistematização funcional, que admite
que não são conceitos científicos e que dependem de sua finalidades penais, político-
criminais, ou políticos em geral. Não são impostos por dados ônticos ou pela natureza, mas
são construídos a partir de conceitos penais pré-estabelecidos.
Tem por base o funcionalismo sistêmico sociológico que tem por maiores
expoentes Roxin e Jakobs com obras gerais e outros com obras sobre assuntos específicos.
Roxin constrói um sistema baseado no neokantismo, mas substitui as normas de
cultura pela orientação político-criminal de conformidade com os fins da pena. Chama este
sistema de funcional, ou racional segundo objetivos. Sustenta duas características para o seu
sistema:
1) A imputação a tipo objetivo  Diz que nas sistematizações anteriores o tipo fica reduzido
à causalidade, propondo a sua substituição pela produção de um risco não permitido no
âmbito protetor da norma. Com isto, a categoria lógica da causalidade fica substituída por
uma regra de trabalho, orientada por valores jurídicos. Seus antecedentes estão nas pesquisas
do neokantismo de Honig e do neo-hegeliano Larenz.
2) A culpabilidade é ampliada. Além de responsabilizar o agente com uma pena, ela só faz
isto quando há necessidade preventiva geral e especial da pena, ou seja, a culpabilidade fica
limitada pela prevenção geral e especial e a prevenção fica limitada pela culpabilidade.
Jakobs radicaliza mais a construção funcional. Constrói um conceito de
culpabilidade que está fixado na dependência exclusiva da necessidade de prevenção positiva
(reforço na confiança no direito), deixando de lado a inexigibilidade de conduta diversa.
Também são conceitos neokantianos.
Estas construções que sistematizam o crime a partir das funções determinadas à
pena (prevenção-integração em Roxin, e prevenção positiva, em Jakobs) são um retorno ao
neokantismo idealista, mas com um grau mais profundo de estudo e adoção de perspectiva
sociológicas mais modernas (Persons e Merton, em Roxin, e Luhmann, em Jakobs).
oo) Valoração geral dos últimos desenvolvimentos
São teorias novas que estão sendo desenvolvidas e merecem um estudo mais
aprofundado, partindo do conhecimento principalmente das teorias do delito por nós já
mencionadas.
89

13ª AULA – 27/05/03

TÍTULO II
A CONDUTA

CAPÍTULO XV
CONCEITO E FUNÇÃO DA CONDUTA

I - O DIREITO PENAL NÃO ALTERA O CONCEITO DE CONDUTA

190 - ATO DE VONTADE E ATO DE CONHECIMENTO


O ato de vontade se dirige ao objeto, alterando-o. Ex.: escrevo uma carta, pinto
um quadro, dou um presente. Em todos esses casos o objeto é alterado.
No ato de conhecimento não cria-se nada. Limita-se a fornecer dados ao
observador sem alterar o objeto enquanto “matéria do mundo”. Ex.: o estudante gradualmente
vai conhecendo o DP, mas não o altera.
Esta distinção é importante para o realismo, que entende que os objetos existem
fora de nós e antes do nosso conhecimento.
Não é importante para o idealismo, porque o primário, aquilo que é real, é a idéia
que eu tenho do objeto. Como enquanto não tenho o conhecimento, não tenho a idéia, o
conhecimento é que cria o objeto.

191 - O DIREITO E A CONDUTA HUMANA


Quando o direito penal desvalora uma conduta ele só realiza a seu respeito um ato
de conhecimento. O legislador não cria a conduta, só a desvalora, a qualifica de má. Do ponto
de vista realista, a conduta já existia, e o fato do legislador chamá-la de má não agrega nada
ao ser da conduta. Ex.: se vemos um quadro de Renoir podemos chamá-lo de feio ou bonito.
Ele vai continuar pendurado na parede sem nenhuma modificação do seu ser por causa disto.
Quando o legislador decide que conduta de matar é má, ele não agrega nada a esta conduta, só
a valora.
O desvalor não altera o objeto, porque se o altera estará desvalorando algo distinto
do objeto. Ex.: se queremos nos precaver dos lobos e ao mesmo tempo queremos que o
desvalor ignore a caracterização zoológica do lobo, querendo que por lobo se entenda um
animal lanudo, com chifres, e que solta balidos, vamos acabar nos precavendo das ovelhas.
O direito só é uma ordem reguladora de condutas. Para isto tem de respeitar o
“ser” da conduta, ou o que chamamos de “estrutura ôntica”. Por isto o conceito desse ser é
ontológico. Se quisermos expressar que o conceito ontológico corresponde a um ser entendido
realisticamente dizemos que o conceito é ôntico-ontológico, ou seja, o conceito ôntico-
ontológico de conduta é o conceito cotidiano e corrente que temos da conduta humana.
O DP limita-se a agregar um desvalor jurídico a esse conceito realista, mas em
nada muda o ôntico da conduta.

192 - NÃO HÁ DELITO SEM CONDUTA


O direito pretende regular conduta humana, não podendo o delito ser outra coisa
senão uma conduta humana. Se admitirmos que o delito é algo diferente de uma conduta, o
DP pretenderia regular algo diferente de uma conduta e, portanto, não seria direito, pois
romperia o atual horizonte de projeção de nossa ciência.
90

Se fosse eliminado o princípio nullum crimen sine conducta, o delito poderia ser
qualquer coisa, abarcando a possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as
características pessoais etc. Se quisermos um direito penal que defenda um mínimo de
respeito à dignidade da pessoa humana, não podemos deixar de afirmar que a conduta, no
conceito ôntico-ontológico é a base do direito penal.

193 - TENTATIVAS DE DESCONHECIMENTO DO NULLUM CRIMEN SINE CONDUCTA


Algumas tentativas em se desconsiderar a conduta:
Pretensão de punir as pessoas jurídicas:
Pretende-se punir pessoas jurídicas, principalmente sociedades mercantis, sob o
argumento político-criminal que estamos no auge da delinqüência econômica. Buscam
fundamento em Kelsen – formalismo – que diz que as pessoas físicas e jurídicas não são mais
do que “feixes de direitos e obrigações”, “pontos de imputação”.
Este não é um ponto de vista realista. Uma sociedade comercial é diferente de um
homem, são entes distintos em sua estrutura. A conduta de um homem não é equivalente a
uma conduta de uma empresa. Revisando o CP, veremos que ele só trata de condutas
humanas.
Não há vontade, no sentido psicológico, num ato de pessoa jurídica, o que exclui a
possibilidade de conduta humana. A pessoa jurídica não pode ser autora de delito, porque não
tem capacidade de conduta humana no seu sentido ôntico-ontológico.
Os argumentos para se sustentar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas,
são argumentos de efeito:
pp) seus diretores e administradores ficariam impunes  É mentira. É só apurar a
responsabilidade deles pelo fato. Alguns serão responsabilizados, outros não;
qq) a pena poderia ser uma sanção administrativa  para isto não precisa do direito penal,
basta a ação civil pública. Essas sanções poderiam ser aplicadas pelo próprio juiz penal
num processo penal contra seus diretores.
A CF repudiou a teoria da ficção jurídica da personalidade das pessoas jurídicas,
aceitou a teoria organicista e admitiu a responsabilidade desses entes no que diz respeito a
ordem econômica e financeira (art. 173, § 5º) e ao meio ambiente (225, § 3º).
Os arts. 3º e 4 º da Lei 9.605/98 regularam essa disposição:
Art. 3º  As pessoas jurídicas serão responsabilizadas
administrativa, civil e penalmente conforme disposto nesta Lei, nos
casos em que a infração seja cometida por decisão de seu
representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no
interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui
a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo
fato.
Art. 4º  Poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica sempre
que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados à qualidade do meio ambiente.
É um absurdo legislativo sob o ponto de vista realista, pois o legislador atribui
capacidade de vontade psicológica a uma pessoa jurídica, que só se encontra no ser humano.
O direito penal de autor  considera a conduta como um simples sintoma de
uma personalidade inimiga ou hostil ao direito. O delinqüente é um ser perigoso.
91

A única conduta penalmente relevante é a conduta típica  A conduta está no


centro da teoria do tipo e não num plano anterior ao da tipicidade.
Se quisermos nos referir à conduta só no tipo, deixamos para traz um importante
passo analítico: primeiro vem a conduta, depois a desvaloração típica. Ex.: 1) um fato de um
animal não é conduta. Portanto, ela nem chega a ser analisada no plano da tipicidade. 2) Há
certos delitos que requerem uma conduta do sujeito passivo, como o rapto consensual. E a
ação da raptada não é típica. É uma conduta relevante que não é típica.

II - A QUESTÃO TERMINOLÓGICA

194 - CONDUTA, AÇÃO, ATO, FATO


Há autores que dividem assim: ato  ação e omissão. No plano analítico da
conduta – antes da tipicidade – não há ação e omissão. Todas as condutas são ações. Daí que
Zaffaroni não faz a distinção entre ato e ação.
Vamos utilizar a distinção do Código Civil:
Fatos:

da natureza
involuntários
do homem
voluntários (condutas)

III - CONDUTA IMPLICA VONTADE

195 - VONTADE E DESEJO


Toda conduta deve ser voluntária. O problema é esclarecer esse conteúdo.
Separam-se:
rr) vontade é diferente de desejo;
ss)querer é diferente de desejar.
Conduta está ligada ao querer (voluntário), que muda algo, e não ao desejar, que é
passivo e não põe em movimento nada e não muda nada.
Aquele que quer – tem vontade – movimenta-se em direção ao resultado. Aquele
que deseja, apenas espera o resultado e ficará alegre se ele sobrevier. Podemos ter vontade
sem desejo e desejo sem vontade. Exemplo:
tt) “A” quer obter uma soma de dinheiro mediante uma ação violenta contra “B”, mas pode
não ter desejado esta ação, pois foi coagido;
uu) “A” quer a morte de um tio rico para receber a sua herança, mas nada faz para matá-lo:
não há vontade, conduta.

196 - VONTADE E FINALIDADE


Quem tem vontade, tem vontade de alguma coisa. Não existe vontade de nada ou
para nada. Por isto, o conteúdo da vontade é a finalidade. Com isto todos concordam. O
problema é que:
vv) Os finalistas dizem que esse fenômeno é inegável em qualquer conceito de conduta
humana;
ww) Os causalistas dizem que DP pode elaborar conceito de conduta humana diferente da
realidade e dizer que a conduta é voluntária sem investigar o conteúdo da vontade.
92

Uma vontade sem conteúdo não é vontade. É filha de uma visão idealista, porque
sob o aspecto realista é absurda. Fica claro que: para uma análise do delito que toma como
base o realismo, a vontade implica finalidade, de tal forma que a expressão “vontade final”
resulta tautológica. Como não existe conduta sem vontade e a vontade sem finalidade, a
conduta requer sempre uma finalidade.

197 - VONTADE E VONTADE “LIVRE”


Ação voluntária não implica em vontade “livre”. O “querido” nem sempre é
livremente querido. Ex.: o louco tem capacidade para praticar uma conduta. Portanto, tem
vontade e tem finalidade. Mas sua conduta não é livre, por causa de sua incapacidade
psíquica. E isto é um problema da culpabilidade, e não da conduta, ou seja, do quarto escalão
do delito.

IV - ESTRUTURA DA CONDUTA

198 - A ANTECIPAÇÃO BIOCIBERNÉTICA


Não existe elementos da conduta, porque ela não é composta de elementos. Mas
existe aspectos da conduta que podemos distinguir:
xx) Aspectos internos 
1) à proposição de um fim  Nos propomos a ir a Paris.
2) a seleção dos meios para obtenção desse fim  selecionados os meios para chegar lá:
navio, avião etc.
Sempre que nos propomos para um fim, retrocedemos mentalmente, desde a
representação do fim, para selecionar os meios com os quais pôr em marcha a causalidade
para a produção do resultado querido. Nessa seleção também representamos os resultados
concomitantes (por navio demorará mais tempo do que por avião);
yy) Aspectos externos:
3) passamos à exteriorização da conduta, consistente no desencadeamento da causalidade em
direção à produção do resultado  colocamos em marcha a causalidade para chegarmos a
Paris. Tomamos o meio escolhido: avião ou navio.
No campo da causalidade só há um processo cego que vai ao infinito.
No campo da ciência e nexo da causalidade não tem uma direção. A finalidade é
sempre vidente, tem um sentido e assenta sobre a previsão da causalidade. O nexo de
finalidade toma as rédeas da causalidade e a dirige.
A biocibernética se propõe a fazer a ponte entre a ciência física com a biologia e
revela que em toda conduta há uma programação, a partir de uma antecipação do resultado.
Daí que Welzel também chama a ação final de antecipação biocibernética do resultado.
O que interessa é que a estrutura ôntica da conduta deve ser respeitada pelo DP.

199 - AESTRUTURA DA CONDUTA SEGUNDO O CONCEITO ÔNTICO-ONTOLÓGICO E SUA


TRADIÇÃO

O que temos explicado é que não há um conceito jurídico-penal de conduta, mas


uma completa identidade entre o conceito ôntico-ontológico da conduta e a conduta penal. A
sua origem é aristotélica. Depois S. Tomás de Aquino toma essa idéia para dizer que não há
causalidade, mas sim finalidade, distinguindo entre a natureza como fato e a natureza como
razão: posto que o humano tende a seu fim de forma causal, o homem deve procurar o seu fim
e alcançá-lo.
93

Hoje todas as correntes filosóficas sustentam a correspondência entre vontade e


finalidade, de modo que esse pensamento não corresponde hoje a determinada corrente
filosófico, mas a todas. Até o idealismo, dizendo que a ação é criada pelo DP com
características muito semelhantes ao conceito ôntico-ontológicos, não se afasta dessa idéia,
muito embora seja cômoda desvirtuá-la para fazer essa afirmação (veremos adiante).

200 - LOCALIZAÇÃO DO RESULTADO E DO NEXO CAUSAL


O problema é estabelecer a posição que devem ocupar o resultado da conduta e o
nexo da causalidade que a une ao resultado. Ex.: um sujeito dispara um tiro no outro para
matá-lo (conduta homicida), e este morre 3 dias depois, em conseqüência dos disparos, há
uma relação de causa e efeito entre a conduta homicida e o resultado morte. Esta é a relação
ou o nexo de causalidade.
Segundo Zaffaroni devemos fazer aqui algumas distinções:
zz) Devemos distinguir a previsão da causalidade do nexo de causalidade. A previsão
pertence à conduta e dela não pode ser separada porque sobre ela é armada a finalidade. A
previsão aqui se refere a uma causalidade futura, imaginada pelo autor. Já o nexo de
causalidade é algo passado, histórico, que o juiz comprova depois do fato, no momento de
julgar.
aaa) Por isto, a previsão do resultado pertence a conduta e o nexo de causalidade e o
resultado estão fora da conduta. Ex.: a ação de lançar uma bomba sobre “Hiroshima” e
“Hiroshima arrasada” são coisas diferentes. “Hiroshima arrasada” não pertence à ação de
lançar a bomba, mas é apenas o seu resultado.
Alguns teóricos se aperceberam desse fenômeno, ou seja, de que o nexo causal e o
resultado não formam parte da conduta. Buscaram um vocábulo para englobar a ação, nexo de
causalidade e resultado.
1) Chamaram de fato, o que é inadequado (ver n. 194);
2) Os italianos chamaram de evento, palavra que em português desvirtua o que eles quiseram
falar, porque empregada com um conteúdo de contingência;
3) Zaffaroni chama de pragma, que na filosofia quer dizer a ação, incluindo o que por ela foi
alcançado, “o procurado no procurar”.
O certo é que o resultado e o nexo causal não fazem parte da conduta, mas a
acompanham inseparavelmente. Esses três conceitos podem ser substituídos pela palavra
pragma. Mas o certo mesmo é que no nível pré-típico a causalidade e o resultado não são um
problema do DP.
O DP não ignora que toda conduta tem resultado. Mas o problema penal não é
este, mas sim na forma que o DP releva o resultado e a causalidade para o efeito da proibição
legal da conduta. E isto é tarefa da teoria do tipo. Ex.: no homicídio o que interessa ao DP
investigar é que o tipo, para considerar proibida uma conduta como típica de homicídio,
requer que se tenha produzido o resultado morte da vítima, como termo de uma relação causal
iniciada pela exteriorização da conduta homicida do autor. A causalidade e o resultado, em
seu ser – como integrantes do pragma –, não são um problema jurídico e sim físico.
94

V - A CONDUTA COMO CARÁTER GENÉRICO COMUM A TODAS AS FORMAS


TÍPICAS

201 - CARÁTER COMUM PARA AS FORMAS TÍPICAS DOLOSAS E CULPOSAS


Para testarmos o conceito de conduta temos de comprovar que a ação serve de
base para todas as formas que os tipos adotam para individualizar suas proibições, ou seja, os
tipos sempre proíbem condutas respeitando esta estrutura do ser da conduta:
bbb) dolo  proíbem condutas, tendo como objeto da proibição o procurar pelo fim da
conduta, isto é, o proibido é o desencadeamento da causalidade em direção ao fim típico
(morte de um homem, dano na propriedade). A proibição atende aos movimentos 1 e 3 (ver
n. 198);
ccc) culpa  proíbem condutas atendendo à forma de selecionar os meios para obter o fim, e
não em razão do próprio fim. A proibição atende aos movimentos 2 e 3 (ver n. 198). A
seleção dos meios para obter qualquer fim deve ser feita de acordo com certo dever de
cuidado, que resulta violado quando podendo prever-se que a causalidade posta em
movimento pode afetar outro, não se faz esta previsão, ou quando, tendo sido feita, confia-
se que a lesão não sobrevirá.
Aqui (culpa) o tipo também proíbe uma conduta final, só que, em lugar de proibi-
la em razão do fim, o faz em virtude da forma defeituosa com que este fim é procurado.

202 - CARÁTER COMUM PARA AS FORMAS TÍPICAS ATIVA E OMISSIVA


ddd) Tipos ativos  são aqueles que descrevem a conduta proibida.
eee) Tipos omissivos  são os que descrevem a conduta devida. Ex.: art. 135.
É final tanto a conduta que o tipo ativo proíbe, como a que o tipo omissivo proíbe.
A circunstância de que um selecione o proibido, descrevendo-o, e outro o faça por
comparação com uma descrição do devido em nada altera a estrutura ôntica-ontológica das
condutas proibidas.

CAPÍTULO XVI
OUTROS CONCEITOS DE CONDUTA E SUA CRÍTICA

I - A TEORIA CAUSAL DA AÇÃO

203 - CONCEITO GERAL DE CONDUTA PARA O CAUSALISMO


O causalismo tem duas bases filosóficas em que se apóia em dois momentos
distintos:
fff) Apoiou-se no positivismo mecanicista  Física de Newton. Tudo são causas e feitos,
dentro de um grande mecanismo que é o universo. A conduta, como parte do universo,
também é uma sucessão de causas e efeitos. Esta é a base do sistema construído por von
Liszt e Beling.
A ação é uma “enervação muscular”, isto é, um movimento voluntário, não
reflexo, mas no qual é irrelevante o fim a que esta vontade se dirige. Ex.: havia uma ação
homicida se um sujeito disparava sobre o outro com a vontade de pressionar o gatilho, sem
que fosse necessário levar em conta a finalidade a que se propunha ao apertar o gatilho,
porque esta finalidade não pertencia à conduta.
A ação era um movimento feito com a vontade de mover-se, que causava um
resultado, querido ou não. A omissão era um não fazer caracterizado exteriormente pela
“distensão muscular” e, interiormente, pela vontade de distender os músculos. Beling
95

conceituava conduta assim: Deve-se entender por ação um comportamento corporal (fase
externa, objetiva da ação) produzido pelo domínio sobre o corpo (liberdade de enervação
muscular, voluntariedade) (fase interna, subjetiva da ação); isto é, um comportamento
corporal voluntário, consistente em um fazer (ação positiva, movimento corporal) ou em um
não fazer (omissão), ou seja, distensão dos músculos.
Hoje está claro que conduta não é só um comportamento corporal ou a distensão
dos músculos, porque não existe conduta sem vontade e esta sem finalidade. Ex.: quando
movo um dedo não o faço só por um movimento corporal, mas com a finalidade de brincar,
tocar, coçar etc. A vontade sem conteúdo não é vontade.
Este conceito ficou abalado quando o positivismo mecanicista começou a revelar-
se como falso. O mundo não era só um conjunto de causas e efeitos. O conceito naturalista
(mecanicista) de ação já não era tão natural. Era uma invenção que nada tinha a ver com a
realidade da ação, especialmente com relação à omissão como exteriorização de uma
distensão muscular. Ex.: a mãe que deixa de alimentar o filho, para que morra de fome e sede,
não distende qualquer músculo, se na hora que deixa de dar comida ao filho passa a fazer
ginástica.
Era fácil fazer teoria do delito “natural”. Num esquema em que o conceito
naturalístico de conduta escondia unicamente um processo causal, resultava fácil conceber o
injusto como a causação objetiva de um resultado danoso e a culpabilidade como a sua
causação subjetiva. Mas se a conduta deixava de ser um processo causal – como no caso da
omissão – porque se reconhecia um conteúdo à vontade, o processo desmoronava. (v. n. 183).
Quando este conceito começou a fazer água, porque não correspondia à realidade,
os autores descartaram a realidade (o conceito de conduta não é realístico), mantiveram o
mesmo esquema, criaram um conceito de conduta que diziam não ser “natural”, mas
elaborado para uso doméstico do direito penal. Esta corrente foi a do neokantismo.
ggg) Apoiou-se, depois, no neokanismo de Baden (ver n. 149). A primeira foi chamada de
estrutura clássica do delito. Esta de neoclássica, desenvolvida por Mezger.
A conduta como conceito final não era uma conduta humana em sua realidade, era
um conceito voluntário, como no mecanicista, desprovido de conteúdo.
Como fizeram isto? Afastando-se da realidade, indo para o idealismo, caminho
bem conhecido do pensamento humano. O conceito causal de ação passou a ser sustentado
pelo idealismo. O neokantismo, que é tributário das teorias do conhecimento em que este cria
o objeto que conhece, veio em socorro do conceito causal da ação. Se o universo é um caos e
a ordem jurídica nele põe ordem, isto implica o desconhecimento de outras ordens – realidade
– e nada obsta a que, ao “pôr ordem”, a vontade fique sem conteúdo. Há um profundo
desprezo pela realidade em prol de uma visão idealista.

204 - CRÍTICA DO CONCEITO


A teoria do delito é um edifício, em que o alicerce é constituído pelo conceito de
conduta. Qualquer alteração no alicerce implica numa alteração do edifício. Desde que o
alicerce é lançado sabemos o que ele pode suportar e a distribuição da carga que se fará.
A teoria causalista pretende que haja um conceito de conduta que é próprio do
direito penal, um conceito jurídico-penal de conduta humana.
A finalidade da conduta humana realista só é tomada em conta na culpabilidade e
que nada muda se assim procedemos. Este argumento é falso e só pode ser sustentado dentro
de uma teoria idealista. Se não levamos em conta a finalidade da conduta no tipo e na
antijuridicidade, é claro que concebemos essas estruturas como causais, o que é um absurdo.
O núcleo do injusto é causal e isto contradiz a essência do direito. O direito não é uma ordem
reguladora de condutas, mas de processos causais. E o direito não proíbe nem permite outra
96

coisa além de condutas humanas, pois do contrário deixa de ser direito, ao menos como o
conhecemos hoje.

II - AS TEORIAS “SOCIAIS’ DA CONDUTA

205 - OS SEUS DIVERSOS SENTIDOS


A chamada “teoria social da ação” pretendeu ser uma ponta entre o causalismo e o
finalismo. Afirma que não é qualquer ação que pode ser proibida pelo direito penal, mas só
aquelas que têm sentido social, isto é, atingem terceiros, fazendo parte do interacionar
humano. Aquelas que ficam no âmbito individual não interessam ao DP (escovar os dentes
etc.).
Mais tarde afirmaram que só tem relevância penal as ações que perturbam a
ordem social e que faz parte do interagir humano.
A intenção é liberal, é limitar o legislador. Ação é só aquilo que é socialmente
perturbador. Esqueceram-se de que o suicídio, a destruição de coisa própria etc., também são
ações. Ações que não transcendem o sujeito, não são delitos; não porque não são ações, mas
porque não afetam bens jurídicos. É um problema de tipicidade e não de conduta.
Esta teoria coloca problemas de tipicidade no nível pré-tipicidade, raciocínio que
leva à conclusão que o conceito de conduta é elaborado de acordo com os requisitos típicos.
Existem vários conceitos “sociais” de conduta. Wessels criou a relevância social típica etc. A
partir desse início, todos esses autores partem para separar o injusto objetivo ou complexo e
da culpabilidade subjetiva ou normativa, num conceito nebuloso que conceitua a conduta a
partir das exigências sistemáticas dos tipos.

207 - ESTERILIDADE DO CONCEITO SOCIAL


Não é possível extrair qualquer conseqüência desta teoria que – por nebulosa – se
tem pretendido que sirva de base a todas as estruturas do delito. Uma conduta é uma conduta
muito embora não seja socialmente lesiva. De outro lado, a lesividade social da ação no plano
pré-típico não pode ser outra coisa além de um juízo ético, o que em uma sociedade pluralista
é extremamente difícil e perigoso.

III - AS TENTATIVAS DE ESTRUTURAR O CONCEITO DE CONDUTA A PARTIR


DE EXIGÊNCIAS SISTEMÁTICAS

208 - OIDEALISMO GNOSIOLÓGICO NÃO POSSIBILITA APENAS O CONCEITO CAUSAL DE


CONDUTA

A teoria do conhecimento segundo a qual é o conhecimento que cria o objeto


(idealismo gnosiológico) alimenta a teoria causal da ação, mas também alimenta outras teorias
da ação que, deste modo, multiplicam-se quase ao infinito.
Se o conhecimento cria o objeto, é o tipo (proibição) que cria a conduta. A
conduta será segundo a forma típica (forma de proibir). Ex.: se o tipo requer um resultado, a
conduta será integrada com este resultado; se o tipo requer uma finalidade, a conduta será
integrada com a finalidade etc.
A partir daí se pode sustentar que a conduta é causal ou que se aproxima do
conceito ôntico-ontológico, embora sem incorporar todos seus caracteres.
Assim, apercebendo-se de que por razões sistemáticas era necessário descartar a
teoria do injusto objetivo e, por conseguinte, colocar o dolo na tipicidade, vários autores
fizeram esta mudança, embora sem ligar-se ao conceito ôntico-ontológico da conduta, mas
incorporando à conduta os caracteres que, segundo eles, exige o tipo em cada uma de suas
97

formas. Seguem, assim, uma sistemática finalista do delito, ainda que não aceitem em sua
totalidade o conceito finalista de ação. Por este caminho, ação é ação realizadora do tipo, com
o que a tipicidade passa para o primeiro plano e o conceito de conduta com caráter genérico e
pedra angular de todo o sistema se torna secundário.
São critérios que não podem ser admitidos do ponto de vista realista. A conduta
não nos pode dizer coisa alguma acerca da proibição da conduta (como pretendem os
partidários da teoria social), mas tão-pouco a proibição nos pode dizer algo sobre o ser da
conduta (como pretende o conceito sistemático), e sim apenas a respeito dos caracteres de
certas condutas que são proibidas.
As condutas não se tornam condutas por estarem proibidas, mas, por estarem
proibidas – entre outras coisas – por serem condutas.

REALISMO IDEALISMO GNOSIOLÓGICO


GNOSIOLÓGICO
O conhecimento não altera o O conhecimento cria – ou quase cria – o objeto.
objeto
O desvalor (a proibição – O desvalor (a proibição – tipicidade) cria – ou quase cria – a
tipicidade) não altera a conduta
conduta
Não há conceito jurídico Há um conceito jurídico penal de conduta, distinto do ôntico-
penal de conduta distinto do ontológico
ôntico-ontológico
Conceito finalista de Conceito causalista de conduta: Conceitos “sistemáticos”
conduta: conduta é um fazer voluntário; a de conduta:
Conduta é um fazer vontade pode separar-se da Os caracteres da conduta
voluntário, vontade implica finalidade; conduta é um fazer final, são dados pela tipicidade.
finalidade, conduta é um mas nela não se considera a Crítica: para averiguar
fazer final finalidade. que caracteres da conduta
Crítica: a antijuridicidade recai sobre pertencem ao injusto,
um processo causal, porque um fazer necessita-se perguntar ao
privado de finalidade fica privado de injusto o que é a conduta
vontade e não é uma conduta
Conceito social de conduta: É conduta somente a que tem “relevância social”; por tal se
entende a que transcende a outro (alguns requerem que seja em forma socialmente lesiva).
Crítica: carece de unidade; a “relevância social” é um requisito da tipicidade e não da conduta

14ª AULA – 02/06/03

CAPÍTULO XVII
AUSÊNCIA DE CONDUTA

I - PANORAMA

209 - ENUMERAÇÃO DAS HIPÓTESES


Resumindo o que foi dito até agora acerca da conduta, temos que a conduta
cumpre a função de alicerce da estrutura teórica do delito, tem uma função de seleção prévia.
Assim, alguns fatos sequer chegam a ser considerados condutas e por isto não teria sentido
perguntar-se pela tipicidade da conduta.
O tipo traz uma proibição e só se pode proibir condutas.
98

Vamos ver agora os casos em que não há conduta, como:


hhh) os fatos da natureza, porque o homem não participa deles;
iii)os fatos de pessoas jurídicas, que não têm vontade final.
Nosso exame vai ficar nos acontecimentos em que o homem toma parte – fatos
humanos. Mas nem todos eles constituem condutas. Já dissemos que para o DP só interessa
fatos humanos voluntários. O estudo então será sobre fatos humanos involuntários e fatos
humanos voluntários, para o fim de descartarmos os primeiros. São fatos humanos em que
não há ação por faltar vontade:
1) Casos de força física irresistível
jjj)fatos humanos em que age uma força que provoca movimentos sem o controle da vontade;
kkk) fatos humanos provocados por uma força que impede a realização de movimentos de
conformidade com a vontade.
2) Casos de involuntariedade:
lll)fatos em que a pessoa se encontra em estado de incapacidade psíquica, que são os casos de
inconsciência.
O CP não traz os casos de força física irresistível e de involuntariedade,
justamente porque ele respeita o plano ôntico da conduta. Isto quer dizer que o DP reclama a
existência de uma conduta humana voluntária e isto independe de qualquer demonstração
jurídica, porque a conduta não é jurídica, mas sim humana. É um pressuposto ôntico do delito,
e não jurídico.
Parte da doutrina brasileira considera o caso fortuito como ausência de conduta.
Mas na verdade o caso fortuito é pressuposto do resultado e não da conduta. E já vimos que o
nexo causal e o resultado estão fora da conduta, estão no tipo. No caso fortuito há conduta
voluntária e final, que não é punida por atipicidade: falta de dolo ou culpa. Ex.: vou plantar
uma árvore e detono uma bomba que estava enterrada. Bebo água e nela tem uma substância
que não conheço e que perturba minha consciência.

II - FORÇA FÍSICA IRRESISTÍVEL

210 - DELIMITAÇÃO
A doutrina chama a força física irresistível de vis absoluta: são hipóteses que
opera sobre o homem uma força de tal proporção que o faz intervir como uma mera massa
mecânica. Exemplos:
mmm) Não há delito de dano (art. 163), quando um sujeito que está diante de um armário
cheio de cristais é empurrado contra ele, quebrando o que ali estava guardado;
nnn) Não há homicídio (art. 121) quando o sujeito é empurrado contra uma anciã, por um
grupo de 50 pessoas, de tal forma que ela fica pressionada entre a parede e ele, morrendo
asfixiada;
ooo) Não há lesões leves quando um sujeito que está sentado à borda de uma piscina recebe
um empurrão, que o faz cair dentro d’água, com isto causando lesões a uma banhista;
ppp) Não há homicídio culposo por parte de um condutor de um veículo a quem a
acompanhante agarra as mãos, fazendo desviar o volante, com isto provocando a morte de
um pedestre;
qqq) Não há lesões se o sujeito tem o braço agarrado e arremessada contra uma pessoa,
causando-lhe lesões;
99

rrr) Não há difamação daquele que tem o braço forçado a escrever uma carta difamatória.
Mas não devemos confundir a força física irresistível com a coação do art. 22, que
sempre constitui uma limitação da vontade. Há vontade, mas limitada. Exemplos:
sss) ameaça-se incendiar o automóvel de um indivíduo se ele se recusar a quebrar uma
vidraça;
ttt)o indivíduo aperta a anciã contra a parede, pois, do contrário, seriam ambos derrubados e
pisoteados pelas 50 pessoas;
uuu) o indivíduo joga-se na piscina porque um cachorro enraivecido investe contra ele;
vvv) o indivíduo joga o seu veículo contra outro para evitar bater de frente com um
caminhão.
Nestes casos o indivíduo dirige a vontade, que é motivada por uma ameaça. A
conduta não está livremente eleita, mas constrangida pela ameaça. Há vontade e, portanto,
conduta. Trata-se nestas hipóteses de causas de justificação ou de exclusão da culpabilidade, e
não de ausência de conduta.

211 - HIPÓTESES DE FORÇA FÍSICA IRRESISTÍVEL


A força física irresistível pode vir da natureza e de um terceiro:
www) da natureza:
a.1) O indivíduo é arrastado pelo vento, por uma correnteza, empurrado por uma árvore que
cai etc.
xxx) ação de um terceiro:
b.1) Exemplos já mencionados.
Quando provém de um terceiro, há ausência de conduta só para aquele que sofre a
força física irresistível. O terceiro exerce uma conduta, pois opera com vontade. É autor de
uma conduta, cuja tipicidade, antijuridicidade ou culpabilidade tem de ser averiguadas para
saber se há delito. Exemplos:
yyy) Há ausência de conduta daquele que é empurrado contra o armário, mas há conduta de
quem empurrou;
zzz) Há ausência de conduta de quem é pressionado contra a anciã, mas há conduta de quem
o empurrou;
aaaa) Há ausência de conduta daquele que teve seu braço puxado e causou o acidente, mas há
conduta de quem puxou-lhe o braço.
Devemos também distinguir o seguinte: a ausência de conduta limita-se à
causação do resultado, mas colocar-se sob o efeito de uma força física irresistível é uma
conduta e, portanto, deve ser averiguada sua tipicidade, antijuridicidade ou culpabilidade.
Exemplos:
bbbb)O sujeito que causou a morte da anciã por asfixia era um fotógrafo que postou-se diante
da multidão enfurecida para tirar fotos. Realizou uma conduta: colocou-se diante da
multidão que avança. É típica na forma culposa (veremos ainda);
cccc) O sujeito que conduz o veículo e tem como acompanhante um bêbado agressivo,
sabendo dessa circunstância, realiza uma conduta que se revelará como culposa na
tipicidade;
dddd)O sujeito que está na borda da piscina está participando de um jogo de empurra com
outras pessoas e por isto veio a cair na piscina, lesionando o banhista;
100

eeee) O sujeito se coloca em frente a uma cristaleira para que outro o empurre e quebre assim
os cristais. Haverá conduta de dano.

212 - FORÇA FÍSICA IRRESISTÍVEL INTERNA


Na maioria das vezes a força física irresistível é exterior. Mas também há casos de
força física que tem uma causa interior, ou seja, tem por origem o próprio corpo do indivíduo,
como é o caso dos movimentos reflexos e respiratórios, por exemplo.
ffff) Não realiza uma conduta o sujeito que se esconde num armário com outra pessoa para
se esconder do homicida que quer matar o outro e lá espirra, denunciando a presença do
companheiro, que vem a ser morto;
gggg)Não realiza uma conduta a pessoa que num movimento reflexo à dor, levanta o braço e
vem a empurrar uma pessoa num rio e este vem a morrer.

III - INVOLUNTARIEDADE

213 - CONCEITO E DELIMITAÇÃO


A involuntariedade é a incapacidade psíquica de conduta, ou seja, o estado em que
se encontra quem não é psiquicamente capaz de vontade.
Esta incapacidade psíquica de conduta não deve ser confundida com outros casos
de incapacidade psíquica, que fazem desaparecer a característica do delito, como é o caso da
inimputabilidade (art. 26).
Como a análise do delito é estratificada, em vários estratos encontramos requisitos
subjetivos e a cada um desses estratos corresponderá uma determinada capacidade psíquica
que, não ocorrendo, faz desaparecer aquele estrato (conduta, tipicidade, antijuridicidade ou
culpabilidade). À soma das três chamamos capacidade psíquica do delito. Por ora nos
ocuparemos da capacidade psíquica da vontade e sua ausência: Exemplo:
hhhh)Um sujeito a quem o ladrão derruba no chão, golpeando-lhe a cabeça, permanece
estendido no pavimento, sem sentidos. Os movimentos que realiza neste estado não são
movimentos voluntários, porque sua consciência está anulada. Encontra-se num estado de
incapacidade psíquica de vontade.
iiii)Ao contrário, um sujeito que mata seu vizinho acreditando que ele era um bandido de
filme de faroeste, acreditando ser ele próprio o mocinho, realiza uma conduta, porque atua
com decidida vontade de matar. Mas aqui sua vontade não é livre, porque se trata de um
alienado mental. Mas esta incapacidade psíquica vai ser analisada na culpabilidade
(inimputabilidade). Haverá uma conduta voluntária final, mas apenas sua vontade não é
livre por causa da doença mental.

214 - ESTADO DE INCONSCIÊNCIA


Existe várias definições de consciência. O sentido que se usará aqui é o clínico.
Neste aspecto pode-se dizer que a consciência é o resultado da atividade das funções mentais,
é o resultado do funcionamento das funções mentais.
A consciência pode esta perturbada: perguntamos a um sujeito que dia é hoje e ele
nos responde que é 20 de janeiro de 1.940. Neste caso não há ausência de conduta, porque não
desaparece a vontade final do sujeito = responder que dia é hoje.
Quando a consciência não existe, não se pode falar em vontade e aí desaparece a
conduta. Exemplo:
101

jjjj)Um sujeito que se encontra desmaiado em virtude de um acidente vascular-cerebral,


encarregado de controlar o cruzamento de linhas férreas, deixa de fechar o caminho por
uma linha a um trem e sobrevêm um acidente;
kkkk)Um sujeito em crise epiléptica que, com movimentos descoordenados, causa dano;
llll)Um sujeito que delirando por causa de febre muito alta profere palavras injuriosas.
Em todos esses casos não há consciência e portanto não há vontade e portanto
conduta.

215 - CASOS PARTICULARES DE INCONSCIÊNCIA


Existem outras incapacidades psíquicas de delito não tão profundas como a
inconsciência. Só há inconsciência quando no fato não intervém os centros superiores do
cérebro ou quando o fazem de forma altamente descontínua e incoerente.
Há certos estados do sujeito – nem todos patológicos – cuja natureza no campo da
neurologia é muito discutível, estando ainda sob investigação. Exemplos:
mmmm) sonho fisiológico;
nnnn)Transe hipnótico;
oooo)Sonambulismo.
Ante a dúvida médica, que beneficia o réu, devemos concluir que nestes casos há
ausência de conduta.
Quanto aos narcóticos, produzirão uma incapacidade que deverá ser analisada
caso a caso:
pppp)Se há privação de consciência, não há conduta;
qqqq)Se há só perturbação da consciência haverá conduta e se trata de incapacidade psíquica
de tipicidade da conduta ou de culpabilidade.

216 - A INVOLUNTARIEDADE PROCURADA


O indivíduo que deliberadamente procura um estado de incapacidade psíquica de
conduta realiza uma conduta (a de procurar este estado), que pode ser típica, dependendo das
circunstâncias. Exemplos:
rrrr) O sinalizador da estrada de ferro que toma um narcótico para dormir e causar um
acidente, vale-se de si próprio em estado de inconsciência;
ssss) O motorista que conhece os sintomas de epilepsia e aos senti-los continua dirigindo e
provoca um acidente.
Nestes casos a conduta de procurar a incapacidade é causa direta do resultado
lesivo, pois o indivíduo vale-se do seu corpo como se fosse uma máquina, já que, neste
estado, só existe causalidade.
As soluções são idênticas para os casos de indivíduos que se colocam sob efeito
de uma força física irresistível.

217 - AUSÊNCIA DE CONDUTA NA OMISSÃO


Às vezes, na omissão, a pessoa não pratica a ação devida, por causa de uma
incapacidade de conduta:
tttt)Sujeito fica paralisado em razão de um choque emocional num acidente e não pode prestar
socorro às pessoas.
102

IV - IMPORTÂNCIA DA DISTINÇÃO COM OUTROS ASPECTOS NEGATIVOS DO


DELITO

218 - EFEITOS DA AUSÊNCIA DE CONDUTA


É sumamente importante distinguir os casos em que ocorre ausência de conduta
daqueles em que tampouco há delito, devido à falta de algum dos caracteres restantes.
A ausência de conduta tem alguns efeitos práticos imediatos:
uuuu)Aquele que, para cometer um delito, se vale de um sujeito que não realiza conduta, é,
em geral, autor direto do delito. O que não realiza conduta jamais é autor;
vvvv)É possível atuar em estado de necessidade contra os movimentos de quem não se
conduz, mas não cabe opor legítima defesa;
wwww) Não se pode ser partícipe dos movimentos de quem não realiza conduta;
xxxx)Nos tipos em que se faz necessária a intervenção de uma pluralidade de pessoas, não se
computa a pessoa que não pratica conduta.

15ª AULA – 03/06/03

TÍTULO III
A TIPICIDADE

CAPÍTULO XVIII
ESTRUTURA DOS TIPOS PENAIS E SUAS RELAÇÕES COM A
ANTIJURIDICIDADE

I - CONCEITO DE TIPO E TIPICIDADE

219 - DEFINIÇÃO DE TIPO PENAL


O tipo penal é um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza
predominantemente descritiva, que tem por força a individualização de condutas humanas
penalmente relevantes (por estarem penalmente proibidas).
yyyy)O tipo pertence à lei
É a lei – parte especial do CP e leis especiais – que individualiza as condutas,
através de tipos, que a lei penal proíbe. Ex.: arts. 155, 121.
zzzz) O tipo é logicamente necessário
Porque sem o tipo nos poríamos a averiguar a antijuridicidade e a culpabilidade de
uma conduta que, na maioria dos casos, resultaria sem relevância penal alguma. Ex.: vamos
analisar a conduta de quem deixa de pagar uma parcela da prestação da compra de sua
máquina de lavar louça. Se não houvesse o tipo, veríamos que há conduta humana, que ela é
antijurídica, que ela é culpável (é exigível que quem deve pague) e só por último resultaria
que essa conduta antijurídica e culpável não é delito porque não é sancionada com uma pena
pelo direito penal. Nisto é que o tipo é logicamente necessário para a averiguação racional da
delituosidade da conduta.
aaaaa) O tipo é predominantemente descritivo
São descritivos porque os elementos descritivos são os mais importantes para
individualizar uma conduta. Dentre eles o verbo é o principal, porque conota uma ação.
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Mas, às vezes o legislador agrega ao tipo conceitos que são sustentados por um
juízo valorativo jurídico ou ético.
1) Quando o art. 213 refere-se à “mulher”. Precisar “o que é mulher” não requer valoração
alguma. Mas quando o art. 215 (posse sexual mediante fraude) refere-se à “mulher honesta”, é
um conceito que obrigatoriamente tem de se estabelecer de acordo com a ética social;
2) Quando o art. 155 fala em “subtrair coisa alheia móvel”, obrigatoriamente temos de
conceituar o valor de “móvel” e veremos que ele será dado pelo Código Civil. Esses
elementos valorativos que às vezes aparecem nos tipos se chamam de elementos normativos
do tipo penal.
bbbbb) A função dos tipos é a individualização das condutas humanas que são
penalmente proibidas
A necessidade lógica do tipo é ditada por esta função.

220 - TIPO E TIPICIDADE


O tipo é a fórmula legal que pertence à lei. A tipicidade pertence à conduta. É a
característica que tem a conduta em razão de estar adequada a um tipo penal:
ccccc) Típica é a conduta que apresenta a característica específica de tipicidade (atípica é
a que não apresenta);
ddddd) Tipicidade é a adequação da conduta a um tipo;
eeeee) Tipo é a fórmula legal que permite averiguar a tipicidade da conduta.

221 - OUTROS USOS DA PALAVRA TIPO


Na prática vemos em vários autores várias expressões usando tipo. Zaffaroni
critica esse abuso dizendo que a palavra vai perdendo o sentido. O modo que ele usa o tipo se
chama de fundamentador ou sistemático.
Outras expressões com a palavra tipo:
fffff) Tipo-garantia  quer dizer o princípio da legalidade;
ggggg) Tipo de injusto  conota a tipicidade de uma conduta antijurídica;
hhhhh) Tipo de delito  quer-se abarcar todos os caracteres do delito;
iiiii) Tipo de culpabilidade  diz-se para designar que a culpabilidade deve obedecer à
tipicidade da conduta;
jjjjj) Tipo permissivo  Este o Zaffaroni usa  é o que surge do preceito permissivo (causa
de justificação).

II - MODALIDADES TÉCNICO-LEGISLATIVAS DOS TIPOS

222 - TIPOS LEGAIS E TIPOS JUDICIAIS


Hoje praticamente não se utiliza mais deixar ao juiz a tarefa de especificar tipos
judiciais. Existem leis prevendo que condutas são típicas.
O que temos de ter presente é que, em virtude de ser infinita o número de
situações que se podem apresentar, o legislador não consegue prever todos os casos típicos, de
forma que se utiliza muitas vezes de tipos abertos (particularmente os culposos e omissivos
impróprios) e mesmo assim permanece muitas vezes a dificuldade de separar atos
preparatórios de atos executivos (tentativa).
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223 - TIPOS ABERTOS E FECHADOS


Seria inconstitucional – fere o princípio da legalidade – um tipo que dissesse
assim: “são proibidas todas as condutas que ferem o interesse comum”. Seria o juiz quem
teria a tarefa de individualizar cada conduta proibida.
Mesmo assim, há casos em que o legislador não individualiza totalmente a
conduta proibida, de forma que cabe ao juiz “fechar” o tipo, recorrendo a pautas éticas ou
sociais ou regulamentares que estão fora do tipo. Exemplo:
kkkkk) quando a lei reprime o homicídio culposo, exige do juiz que frente ao caso
concreto determine qual era o dever de cuidado que necessitou trazer ao tipo, vinda de
outro contexto (outras partes do mesmo ordenamento, pautas éticas, atividade
regulamentada como cortar árvores etc.).
Esses tipos são chamados de tipos abertos (121, § 3º), por oposição aos tipos
fechados, como o do art. 121, por exemplo em que a conduta está perfeitamente
individualizada.
Porque é inconstitucional o exemplo do “interesse comum”? Porque tratando-se
de sistema de tipo legal, é obrigação do legislador extremar os cuidados para chegar perto do
tipo legal, embora muitas vezes tenha de trabalhar com tipos abertos.
Ao falar do “interesse comum” o legislador não tomou o menor cuidado em
precisar condutas proibidas. Inversamente, no art. 121, § 3º existem infinitas variáveis
impossíveis de serem previstas pelo legislador, obrigando-o a fazer um tipo aberto.

224 - OUTRA FORMA DE ABERTURA TÍPICA


Às vezes é impossível ao legislador precisar no tipo a gravidade ou a entidade de
determinado conceito, que depende de cada caso concreto. Por isto é obrigado a deixar ao juiz
a tarefa de fechar o tipo. Exemplo: o art. 171 diz que “é crime obter para si ou para outrem
vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante
artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. A lei poderia dizer “em erro mediante
qualquer meio fraudulento”. Mas a lei não pode ampliar a punição através de qualquer meio
fraudulento, mas só nos meios fraudulentos dotados de gravidade semelhantes ao artifício ou
ardil.

226 - A LEI PENAL EM BRANCO


São leis penais em branco as que estabelecem uma pena para uma conduta que se
encontra individualizada em outra lei. Exemplo:
lllll) Art. 268 diz: “infringir determinação do poder público destinada a impedir a introdução
ou propagação de doença contagiosa”.
A norma não pode ser deduzida do tipo da lei penal, havendo necessidade de se
recorrer a outras disposições legais. Regulamentos, decretos etc. A lei ou regulamento que
completa a lei penal em branco, integra o tipo penal, de modo que se a lei penal em branco
remete a uma lei que não existe, não terá vigência até que a lei que a completa seja
sancionada. Ex.: lança perfume como droga.

III - CONCEPÇÕES COMPLEXA E OBJETIVA

227 - A CONCEPÇÃO OBJETIVA DO TIPO PENAL


Até 1.906 não havia uma teoria do tipo penal, que neste ano foi enunciada por
Ernest von Beling, respeitando a sistemática do delito fundada na cisão entre injusto objetivo
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e culpabilidade subjetiva. Ele introduziu a distinção entre antijuridicidade e tipicidade,


categorias que continuavam objetivas.

O tipo era objetivo, abarcava só a exterioridade da conduta, prescindindo de todo


externo.
Em alemão chamou-se tatbestand, que significa hipótese do fato que vinha do
latim medieval facti species, e que se traduziu para o italiano como fattispecie e para o
português como “tipo”.
Vamos recordar que essa construção do tipo, que se traduz na proibição da
causação de um resultado, tem o inconveniente de não limitar a causalidade de forma
convincente (não há dolo nem culpa no tipo). Além disto suporta o peso de uma concepção
“naturalista” da conduta, entendida também como um processo causal cego (sem finalidade)
posto em movimento pela vontade de mover um músculo.

228 - A CONCEPÇÃO COMPLEXA DE TIPO PENAL


O descobrimento de elementos subjetivos no tipo por volta de 1.910 e da
culpabilidade normativa em 1.907, bem como da dificuldade que se deparava a teoria objetiva
do tipo, fizeram com que se pensasse que o dolo – vontade do resultado – deveria ser
localizado no tipo. Assim fez von Weber em 1.929 e Grafh zu Dohna em 1.936.
Weber não fazia distinção entre a tipicidade e justificação, de modo que
participava de uma concepção bipartida do delito:

Dohna mantinha a divisão tripartida, mas acreditava que a antijuridicidade recaía


sobre o aspecto objetivo do tipo e a culpabilidade sobre o subjetivo.
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Welzel, na década de 30 aperfeiçoa o conceito de tipo complexo, ou seja, com um


aspecto objetivo e outro subjetivo, dentro do marco de uma teoria do delito tripartida:
tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. (É a posição de Zaffaroni). A localização do dolo
no tipo resolve uma série de problemas:
mmmmm) O problema da causalidade, que fica limitada pela vontade.
nnnnn) A tentativa é claramente distinguida, porque o querer do resultado (dolo) passa a
ser problema típico. O tipo proíbe uma conduta e não uma causação.
ooooo) O querer do resultado – dolo – que no esquema causalista estava em A, passa a B.

IV - TIPICIDADE E ANTIJURIDICIDADE

229 - PANORAMA DAS DISTINTAS POSIÇÕES


Não é pacífica a relação entre tipicidade e antijuridicidade. Há 3 posições
fundamentais, uma das quais é subdividida.
ppppp) Teoria do tipo avalorado  Quase não é mais defendida.
A tipicidade não indica coisa alguma acerca da antijuridicidade. O tipo é “neutro”,
“acromático”.
A crítica é que desconhece que uma norma está sempre anteposta ao tipo. Quando
se afirma que o tipo é matar alguém, existe uma norma de que matar é uma conduta má. Então
o tipo é valorado.
qqqqq) Teoria do tipo indiciário (teoria da ratio cognoscendi)  Defendida por Max
Ernest Mayer
A tipicidade é um indício, uma prova juris tantum da antijuridicidade. A
tipicidade se comporta em relação à antijuridicidade como a fumaça em relação ao fogo.
É a preferida de Zaffaroni.
rrrrr) Teoria do tipo como ratio essendi da antijuridicidade  Se divide em duas.
Sustentam que o tipo é a razão de ser da antijuridicidade. O tipo implica a
antijuridicidade:
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c.1  Teoria dos elementos negativos do tipo  Sustentada por Helmuth von
Weber
Afirmada a tipicidade, resultará também afirmada a antijuridicidade. As causas de
justificação eliminam a tipicidade, comportando-se como elementos negativos do tipo.
A crítica é que retroage a teoria do delito ao tempo em que ela era bipartida:
injusto e culpabilidade
c.2  Teoria do tipo de injusto  Sustentada por Paul Bockelmann
Diz também que o tipo implica a antijuridicidade, mas esta pode ser excluída por
uma causa de justificação em uma análise posterior ao tipo.
A crítica é que ela não procede racionalmente, porque não é coerente que um
estrato afirme aquilo que no seguinte pode ser negado, que num estrato se ponha o que no
seguinte se tira.

230 - INTERESSE, BEM E NORMA


Quando o legislador se encontra diante de um ente e tem interesse em tutelá-lo, é
porque o valora. Essa valoração do ente se traduz em uma norma que eleva o ente à categoria
de bem jurídico. Quando o legislador quer dar uma tutela penal a esse bem jurídico, com base
na norma, elabora um tipo penal e o bem jurídico passa a ser penalmente tutelado. Exemplo:
a) O legislador se encontra diante do ente “vida humana”;
b) Tem interesse em tutelá-la porque considera que esse ente é bom, necessário, digno de
respeito etc.;
c) Esse interesse é traduzido em uma norma: quando se pergunta como tutelar o ente vida
humana se responde: “proibindo matar”. Esta é a norma proibitiva: “Não matarás”;
d) Essa norma deve ser expressa em leis, e com isto a vida humana se revelará num bem
jurídico. Assim, a vida é um bem jurídico para a CF, para o Direito Civil etc.;
e) Pode ser que o legislador não se contente com esta manifestação da norma e requeira
também uma tutela penal, ao menos para certas formas de lesão ao bem jurídico vida.
Elabora, então, um tipo penal e o bem jurídico vida humana passa a ser penalmente
tutelado.

LEGISLADOR

JUIZ
O tipo pertence à lei, mas a norma e o bem jurídico não pertencem à lei. Estes são
conhecidos através do tipo e limitam o seu alcance.

231 - A ANTINORMATIVIDADE
O tipo nasce de um interesse do legislador no ente que valora. Eleva-o a categoria
de bem jurídico, enuncia uma norma para tutelá-lo, a qual se manifesta em um tipo legal.
Conclusão: a conduta que se adequa a um tipo será necessariamente contrária à norma que
está anteposta ao tipo e afetará o bem jurídico tutelado. Exemplo:
sssss)A conduta adequada ao tipo penal do art. 121 será contrária à norma não matarás e
afetará o bem jurídico vida humana;
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ttttt) A conduta adequada ao tipo penal do art. 155 será contrária à norma não furtarás e
afetará o bem jurídico patrimônio.
Isto significa que a conduta, pelo fato de ser típica, necessariamente é
antinormativa.
Mas não se pense que a conduta que se adequa formalmente a uma descrição
típica só por isto é típica. Que uma conduta seja típica, não significa que é antinormativa, ou
seja, que esteja proibida pela norma (não matarás etc.).
O tipo é criado pelo legislador para tutelar o bem contra condutas proibidas pela
norma. Desse modo, o juiz não pode considerar típica uma conduta formalmente típica, mas
que realmente não é contrária à norma e nem lesa o bem jurídico tutelado.
A antinormatividade requer um estudo sobre:
uuuuu) o alcance da norma que está anteposta e que deu origem ao tipo legal;
vvvvv) a afetação do bem jurídico.
Esta investigação é uma etapa posterior ao juízo de tipicidade. Uma vez
comprovada a tipicidade legal, indaga-se sobre a antinormatividade. Comprovada esta é que
se pode afirmar a tipicidade penal da conduta.
A tipicidade penal pressupõe a legal, mas não a esgota. A tipicidade penal requer
que a conduta, além de enquadrar-se no tipo legal, viole a norma e afete o bem jurídico – a
isto se chama antinormatividade.

232 - TIPICIDADE PENAL: TIPICIDADE LEGAL MAIS TIPICIDADE CONGLOBANTE


Tomemos um exemplo: um oficial de justiça cumpre um mandado legal de
penhora e seqüestro de um bem. Por força legal pede ajuda da polícia e com todas as
formalidades legais seqüestra o bem do devedor, colocando-o à disposição do juízo. O mais
elementar bom senso nos diz que isto não é crime.
Mas por quê? Receberemos como resposta que o oficial agiu de conformidade
com o art. 23, III, do CP, em estrito cumprimento do dever legal. Boa parte da doutrina diz
que o oficial agiu amparado por uma causa de antijuridicidade. No entanto, para a teoria do
tipo indiciário isto é impossível.
A tipicidade implica antinormatividade (contrariedade à norma) e não podemos
admitir que num ordenamento uma norma ordene o que a outra proíbe. Tem de existir um
mínimo de ordem num sistema, num ordenamento, que proíba uma norma de permitir o que a
outra proíbe. As normas não vivem isoladas, mas num entrelaçamento sistemático em que
umas limitam as outras e não podem ignorar-se. O sistema não é um caos, um amontoado de
normas, mas uma ordem de proibições, um conjunto de normas que guardam entre si uma
certa ordem, que lhe vem dada por seu objetivo geral ou final, qual seja, evitar a guerra civil.
Esta ordem mínima proíbe que uma norma proíba o que a outra ordena, como
proíbe que uma norma proíba o que a outra fomenta. A lógica nos diz que o tipo não pode
proibir o que o direito ordena e nem o que ele fomenta.
No caso do oficial de justiça, se penetrarmos um pouco mais no alcance da norma
que está anteposta ao tipo, a conduta do oficial que se adequa ao tipo legal não pode estar
proibida, porque a própria ordem normativa a ordena e incentiva.
O juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um
outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, que consiste na averiguação da
proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente,
e sim conglobada com a ordem normativa.
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A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, que permite excluir


do âmbito da tipicidade aquelas condutas que aparentemente estão proibidas, como a do
oficial de justiça, cuja conduta aparentemente se adequa ao tipo do art. 157, do CP, mas que
não é alcançada pela proibição “não roubarás”.
A função da tipicidade conglobante é reduzir a tipicidade legal à dimensão
daquilo que a norma proíbe, deixando fora da tipicidade penal aquelas condutas que somente
são alcançadas pela tipicidade legal, mas que a ordem normativa não quer proibir,
precisamente porque as ordena ou as fomenta.
A tipicidade penal da conduta surge da conjunção da adequação penal e a
antinormatividade. Tipicidade penal = tipicidade legal + tipicidade conglobada.

233 - ANTINORMATIVIDADE E ANTIJURIDICIDADE


A ordem jurídica não se compõe só de normas proibitivas. Existem também
normas permissivas. E isto não é uma contradição entre normas, mas pressupõem, num jogo
harmônico, a existência de normas permissivas.
O preceito permissivo dá lugar a uma causa de justificação. A antijuridicidade
surge:
wwwww) da antinormatividade (tipicidade penal);
xxxxx) da falta de adequação a um tipo permissivo = a conduta antinormativa não está
amparada por uma causa de justificação.
A tipicidade penal implica a contrariedade com a norma, mas não implica a
antijuridicidade, porque pode haver uma causa de justificação que ampare a conduta.
A antijuridicidade pressupõe a antinormatividade, mas não é suficiente a
antinormatividade, pois pode incidir sobre a conduta típica um tipo permissivo, uma causa de
justificação.
Neste sentido a tipicidade penal opera como um indício da antijuridicidade, como
um desvalor provisório. Por isto Max Ernest Mayer expressava a relação entre a tipicidade e a
antijuridicidade como a fumaça e o fogo.

234 - ATIPICIDADE CONGLOBANTE E JUSTIFICAÇÃO


Pode-se afirmar que os casos identificados como atípicos (oficial de justiça)
também poderiam ser resolvidos pela falta de antijuridicidade. Há quem afirme que uma
conduta atípica é o mesmo que uma conduta justificada. Na verdade, Welzel diz, não se pode
afirmar, com base no realismo, que dê no mesmo a morte de uma mosca e a morte de um
homem, ainda que em legítima defesa.
A legítima defesa é uma permissão outorgada pela ordem jurídica para a
realização de uma conduta antinormativa. Se um indivíduo nos agride injustamente, mesmo
que tenhamos oportunidade de fugir, não somos obrigados a fugir, porque não somos
obrigados a suportar o injusto. O direito nos dá uma permissão, sem dar relevância à
possibilidade de fuga.
Esta permissão não quer dizer que o direito fomente, e muito menos nos ordene
semelhante conduta. Simplesmente, num caso dessa magnitude limita-se a permitir a conduta.
Não quer incentivar o homem a matar.
Esta é a principal diferença entre a tipicidade conglobante e a justificação. A
atipicidade conglobante não surge em virtude de permissões da ordem jurídica, e sim em
razão de mandatos e fomentos normativos, ou de indiferença (por insignificância) da lei penal.
110

Ex.: a lei resigna-se que um vizinho subtraia uma jóia valiosa de seu vizinho para pagar a
internação do filho gravemente enfermo, mas não fomenta, muito menos ordena, essas ações.

IV - OS BENS JURÍDICOS PENALMENTE TUTELADOS

235 - A IMPORTÂNCIA DO BEM JURÍDICO


O bem jurídico desempenha um papel central na teoria do tipo, porque dá o
verdadeiro fim da lei penal. Sem um bem jurídico não há um “para que” do tipo, e portanto
não há possibilidade de interpretação teleológica da lei penal.
Não se concebe uma conduta típica que não afete um bem jurídico, porque os
tipos são feitos para tutelar juridicamente esses bens.

236 - CONCEITO DE BEM JURÍDICO


Mas o que é bem jurídico? Bem jurídico é o direito que temos de dispor de certos
objetos. Não é o objeto em si mesmo, mas a relação de disponibilidade do titular da coisa:
yyyyy) quando alguém subtrai uma coisa móvel de nossa propriedade, ele está impedindo
nossa relação de disposição daquela coisa como bem entender. Não é crime doar meus
bens a quem bem entender;
zzzzz) quando alguém calunia outra pessoa, está impedindo que esta disponha de sua
honra da maneira que bem entender. Não é crime eu confessar meus pecados
publicamente.

238 - A MORAL COMO BEM JURÍDICO


A moral em sentido estrito não pode ser considerada bem jurídico. Se um casal
convida os vizinhos para assistirem suas relações sexuais em casa, isto não afeta bem jurídico
algum. Mas se se mantém relação com a janela aberta, isto afeta a “moral pública”, ou seja, o
sentimento de pudor que a sociedade tem o direito de ter. Só neste sentido é que se pode falar
de moral como bem jurídico. Outro exemplo: o sujeito resolve defecar em via pública. Não é
ato sexual, mas também ofende ao sentimento de pudor público.
Além disso, a moral é individual. O sujeito pode ter o direito de tê-la, mas não de
impô-la.

239 - PODE-SE PRESCINDIR DO BEM JURÍDICO?


O tipo implica no dever de abster-se da conduta que a norma proíbe.
Quando não se pergunta porque a norma proíbe determinada conduta, só nos resta
afirmar que o dever se impõe por si mesmo, como um ato de autoridade, por capricho, por
preconceito. Assim, resultará violado o princípio republicano de governo (art. 1º, CF) que
impõe a racionalidade de seus atos.
O bem jurídico tem duas funções:
aaaaaa) uma função garantidora, que emerge do princípio republicano;
bbbbbb) uma função teleológico-sistemática, que dá sentido à proibição manifestada no
tipo e a limita.

240 - CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS PENAIS EM RAZÃO DOS BENS JURÍDICOS AFETADOS
A doutrina e os Códigos classificam os tipos de acordo com os bens jurídicos
afetados:
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cccccc) O primeiro critério de classificação foi o religioso, dado pelo Decálogo. Depois
foi substituído pelos delitos contra o Estado. Hoje, a partir do CP da Baviera de 1.813,
voltou-se a uma classificação personalista. Primeiro protegem-se os delitos contra as
pessoas, a honra, o estado civil...;
dddddd) Outro critério de classificação dos tipos é quanto a intensidade de afetação dos
bens jurídicos. Nesse sentido, podem ser qualificados ou privilegiados, sempre em relação
a um tipo fundamental ou básico. Ex.: art. 121 (básico), § 1º (privilegiado) e § 2º
(qualificado).
eeeeee) Outro critério é da agravação ou atenuação do delito em razão de uma maior ou
menor culpabilidade. Isto ocorre quando a lei adota como critério os motivos do crime ou o
estado psíquico do sujeito, questões que pertencem à culpabilidade. Ex.: homicídio por
relevante valor social – art. 121, § 1º.
ffffff)Por fim, outro critério é pelo número de bens jurídicos que o tipo tutela. Fala-se em
tipos com bem jurídico simples e complexo. O art. 121 é simples. Tutela a vida. O art. 158
(extorsão) é complexo, porque tutela a liberdade de determinação e o patrimônio.

16ª AULA – 10/06/03

CAPÍTULO XIX
TIPOS ATIVOS DOLOSOS: ASPECTO OBJETIVO

I - PANORAMA DA ESTRUTURA DO TIPO DOLOSO

241 - ASPECTO OBJETIVO E SUBJETIVO DO TIPO DOLOSO ATIVO


Há quatro espécies de tipos penais: dolosos, culposos, ativos e omissivos.
Estudaremos primeiro os dolosos ativos, porque configuram a maior parte dos tipos penais, ou
seja, a técnica legislativa a que mais se recorre para proibir condutas relevantes.
O tipo doloso ativo tem dois aspectos, um objetivo e outro subjetivo, o que quer
dizer que a lei, mediante o tipo, individualiza condutas atendendo a circunstâncias que
ocorrem no mundo exterior e também no mundo interior do indivíduo, pertencente ao
psiquismo do autor.
Quando se diz que o tipo é predominantemente descritivo, não se deve entender
que os elementos descritivos se limitam à exterioridade. O aspecto psíquico não pode ser
ignorado. Exemplo:
gggggg) matar alguém não é só causar a morte de outra pessoa;
hhhhhh) subtrair não é o simples tirar.
O tipo doloso implica na causação de um resultado (aspecto externo) e na vontade
de causá-lo (aspecto interno) = dolo.
O tipo objetivo é o aspecto externo do tipo doloso. O tipo subjetivo corresponde à
vontade.

II - A ALTERAÇÃO FÍSICA

242 - O RESULTADO MATERIAL


Toda conduta tem uma manifestação no mundo físico; esta manifestação é uma
alteração que se manifesta nele. Antes da conduta as coisas estavam num estado diferente
daquele que se encontravam depois da conduta:
iiiiii) antes de ascender um cigarro o fósforo não estava queimado;
112

jjjjjj) antes de falar as ondas não transmitiam meus sons, nem irritavam o tecido nervoso do
ouvinte;
kkkkkk) antes de sentar não havia deslocado uma massa de ar que agora ocupa um outro
lugar.
Por isto, não é importante saber se um crime é material ou formal, como por
exemplo:
llllll) Art. 121 – crime material ou de resultado – porque ocorreu o resultado morte;
mmmmmm) Art. 213 – crime formal ou pura atividade – a ação é inseparável do
resultado (da alteração física) conjunção carnal está implícita no resultado haver penetrado.
nnnnnn) Art. 147 – crime formal – só descreve a conduta, admitindo qualquer resultado
que afete o bem jurídico.
Esta distinção não tem sentido, porque toda conduta implica num resultado. Ex.: o
resultado de passar uma ponte é que antes eu estava de um lado e agora de outro.
Todos os tipos requerem um resultado:
oooooo) alguns mencionam expressamente qual resultado querem;
pppppp) outros vinculam o resultado expressamente à conduta. Penetrar a vagina é estupro;
qqqqqq) outros limitam-se ao puro resultado da conduta, desinteressando de outro que
porventura venha a acontecer. Ameaça.

243 - A RELAÇÃO DE CAUSALIDADE


Para quem concebe o tipo como tipo objetivo, ou seja, como causação de um
resultado, não há alternativa senão buscar um limite para a causalidade. Do contrário, todos o
delitos iriam começar em Adão e Eva, que afinal foram responsáveis pelo pecado original.
A causalidade como categoria do ser é um processo cego, uma cadeia de causas e
efeitos.
O art. 13, do CP adotou essa teoria: considera-se causa a ação ou omissão sem a
qual o resultado não teria ocorrido. É a chamada teoria da conditio sine qua non e é a única
que corresponde à realidade, ao ser da causalidade como processo físico.
Para quem respeita a estrutura ôntica da conduta, partindo de um ponto de vista
realista, esta é a única concepção de causalidade que pode ser admitida na teoria do tipo. E
isto não acarreta qualquer problema, porque ela está limitada pelo tipo subjetivo, ou seja, pelo
querer do resultado.
Dentro de uma teoria do tipo concebida com um aspecto objetivo e outro
subjetivo, a causalidade pode ser admitida de acordo com sua realidade, porque por si só não
fecha o juízo da tipicidade. O dolo restringe sua importância típica. Somente é relevante a
causalidade material dirigida pela vontade de acordo com um fim. (Bacigalupo).
Para a teoria causalista – que diz que o tipo é só objetivo – não se pode aplicar a
teoria da conditio. Apelaram para um sem número de teorias, hoje todas em desuso.
Para o art. 13, do CP está adotada a teoria da conditio sine qua non.

244 - A NATUREZA DA RELAÇÃO DE CAUSALIDADE


A causalidade é algo real, é uma categoria do ser e não do pensamento. Não pode
ser criada pelo tipo, nem pelo direito. A única coisa que o tipo pode fazer é dar-lhe relevância.
113

Para perguntar se uma conduta é típica, o mais elementar é perguntar se ela


causou o resultado. Se mentalmente imaginamos que a conduta não existiu e mesmo assim o
resultado ocorreu, então essa conduta não é causal. Formulamos esse juízo de acordo com a
experiência humana e dados experimentais fornecidos pelas ciências naturais.
Isto pertence ao conhecimento humano, não é a própria causalidade. O
conhecimento está na cabeça do juiz e permite a ele julgar a respeito da causalidade.

III - OS SUJEITOS, AS REFERÊNCIAS E OS ELEMENTOS NORMATIVOS

245 - OS SUJEITOS
Os sujeitos de delito podem ser ativos e passivos.
rrrrrr)Sujeito ativo  É o autor da conduta típica.
Normalmente é qualquer pessoa. Neste caso, se chamam delitos comuns. Outros
requerem características especiais no sujeito passivo, e dão lugar aos delitos chamados de
próprios, que obedecem a características naturais. Ex.: art. 124; ou a requisitos jurídicos (ser
funcionário público no art. 312).
Segundo o número de sujeitos ativos, alguns crimes podem ser cometidos só por
um ou por vários sujeitos. Se podem ser cometidos por um ou vários sujeitos, chamamos de
unisubsistentes. Às vezes o tipo exige um número maior de pessoas. Aí se chama de delito
plurisubsistente, como é o caso do art. 288, o furto em concurso de pessoas etc.
ssssss) Sujeito passivo  é o titular do bem jurídico tutelado.
Às vezes num crime há dois sujeitos passivos. Roubo de um banco em que o
ameaçado é o gerente. Crime contra a liberdade e contra o patrimônio.

246 - AS REFERÊNCIAS
tttttt) Tipos de formulação livre  podem ser cometidos por qualquer meio. Ex.: matar
alguém;
uuuuuu) Tipos de formulação casuística  Exigem determinados meios. Ex.: 121, § 2º, III;
vvvvvv) Tipos circunstanciados  quando há exigência de circunstância de;
wwwwww)tempo 123 – durante ou logo após o parto;
xxxxxx) lugar 164 – em propriedade alheia;
yyyyyy) modo 121, § 2º, IV – a traição;
zzzzzz) ocasião 157, § 2º, III – vítima em serviço de transporte de valores.

247 - OS ELEMENTOS NORMATIVOS


Já vimos que há tipos que além de elementos descritivos, tem elementos
normativos, ou seja, para cuja determinação é necessário recorrer a uma valoração ética ou
jurídica. Ex.: indevida vantagem no art. 158, 333. Aqui o “indevida” faz parte do “tipo
objetivo”, como seu elemento normativo.
Há casos em que expressões genéricas não dão lugar a um elemento normativo do
tipo objetivo, mas são uma exigência expressa da “tipicidade conglobante da conduta”.
aaaaaaa) Prevaricação – art. 319 – pune-se o funcionário por retardar ou deixar de praticar,
indevidamente, ato de ofício (...). Reclama-se outra norma que estabeleça a obrigação de
omitir os atos de ofício.
bbbbbbb) Abandono de função – art. 323 – utiliza “fora dos casos previstos em lei”.
114

Essas expressões tem por finalidade sublinhar a necessidade da antinormatividade


para a tipicidade penal do ato ou da antijuridicidade para a criminalidade, ficando, assim, fora
do tipo objetivo.

IV - CLASSIFICAÇÕES SECUNDÁRIAS

248 - SUA IMPORTÂNCIA E QUADRO GERAL


Essas classificações são importantes (relativa) porque são úteis para a análise do
delito, como forma de ordenar as perguntas a formular-se na análise de cada tipo em
particular.
Existem outras classificações, mas esta é uma delas, que será complementada
mais tarde (por ora estudamos os tipos dolosos ativos).

17ª AULA – 16/06/03

CAPÍTULO XX
TIPOS ATIVOS DOLOSOS: ASPECTO SUBJETIVO

I - ESTRUTURA DO TIPO DOLOSO SUBJETIVO

249 - TIPOS SUBJETIVOS QUE SE ESGOTAM NO DOLO E TIPOS SUBJETIVOS QUE


RECONHECEM OUTROS ELEMENTOS

ccccccc) Todos os tipos dolosos exigem uma congruência (coerência, harmonia de uma
coisa com o fim a que se destina) entre seus aspectos objetivo e subjetivo;
ddddddd) Há tipos em que basta a congruência simétrica (correspondência em grandeza de
partes situadas em lados opostos de uma mesma linha), ou seja, o tipo subjetivo contém o
querer da realização do tipo objetivo (dolo);
eeeeeee) Há tipos dolosos em que a congruência é assimétrica, ou seja, o tipo exige algo
mais que a realização do tipo objetivo. Esse algo mais é chamado de “elemento subjetivo
do tipo distinto do dolo”.

II - CONCEITO DE DOLO

250 - DEFINIÇÃO E ASPECTOS


É o querer do resultado típico, a vontade realizadora do tipo objetivo. O art. 18, I,
do CP fala: “quando o agente quis o resultado”.
Para querer algo o sujeito deve conhecer esse algo. Querer pintar uma igreja
implica primeiro em conhecer a igreja. Todo querer pressupõe um conhecer.
O dolo de homicídio é querer matar um homem que pressupõe:
fffffff) se saiba que o objeto da conduta é um homem;
ggggggg) que a arma causará o resultado (previsão da causalidade).
115

Dolo, portanto, é a vontade realizadora do tipo objetivo, guiada pelo


conhecimento dos elementos deste no caso concreto. Não é só representação do resultado,
nem só vontade do resultado. É representação e vontade. Tem dois aspectos:
hhhhhhh) o aspecto de conhecimento do dolo;
iiiiiii)o aspecto do querer – volitivo – do dolo.

III - O ASPECTO COGNOSCITIVO DO DOLO

251 – AS FORMAS DE CONHECIMENTO


Conhecer é diferente da possibilidade de conhecer. Conheço efetivamente Campo
Grande. Tenho a possibilidade de conhecer Roma. Este último não é um conhecimento. É um
conhecimento potencial.
O dolo requer sempre um conhecimento efetivo e não potencial. Ex.: querer matar
um homem requer vontade do tipo de homicídio, possibilidade de se conhecer que se mata um
homem.
Esse conhecimento efetivo pode ser:
jjjjjjj)atual  o que temos acerca de um objeto, quando sobre ele focalizamos nossa atividade
consciente. Ex.: o conhecimento que tenho de vocês agora que estou dando aula é efetivo.
Vejo quantos tem, onde estão sentados, qual o grau de atenção etc.
kkkkkkk) atualizável  o que posso recordar, mas não está focalizado na minha atividade
consciente. Ex.: meu conhecimento sobre os versos do hino nacional são atualizáveis.
Quando focalizo minha atividade consciente sobre eles (penso neles) os atualizo.
O dolo requer um certo grau de atualização do conhecimento.

252 - O GRAU DE ATUALIZAÇÃO EXIGIDO PELO DOLO


O grau de atualização requerido pelo dolo pode ser integrado com alguns
conhecimentos atualizáveis. Ex.: o sujeito que está seduzindo uma mulher, não precisa pensar
individualizadamente na idade da mulher, sua honestidade etc., porque é evidente que “se dá
conta disto”. São conteúdos de consciência que acontecem todos ao mesmo tempo em que se
pensa e todos são queridos, senão não há conduta.

253 - DOLO E CONHECIMENTO DA ANTIJURIDICIDADE


O art. 18, I, do CP estabelece ser o crime doloso “quando o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Pela nossa lei não há necessidade da consciência
ou do conhecimento da antijuridicidade. Para o dolo basta o conhecimento dos elementos que
compõem o tipo objetivo. Ex.: é dolosa a conduta de quem quer contrair novo casamento
sendo casado (art. 235) sem sequer questionar-se e sem importar-se se sua conduta é proibida
ou não (não comporta o conhecimento da antijuridicidade).

254 - DOLO VALORADO E DOLO DESVALORADO


O dolo, para a teoria finalista, está livre de toda reprovação. A reprovação é a
culpabilidade, é um passo posterior à averiguação do injusto (conduta típica e antijurídica).
Integra o injusto.
O dolo é valorado quanto a reprovação e esta se faz num momento posterior, na
culpabilidade.
116

255 - OS CONHECIMENTOS REQUERIDOS PELO DOLO


O aspecto cognoscitivo do dolo abrange o conhecimento dos elementos requeridos
no tipo objetivo. Isto é simples.
Mais complexo é o conhecimento dos elementos normativos do tipo. Ex.: coisa
alheia no furto; funcionário público na corrupção do art. 333). Aqui não se exige que o sujeito
tenha um conhecimento técnico da lei, basta o conhecimento na esfera do leigo.
O dolo também abarca o conhecimento dos caracteres negativos do tipo objetivo.
Ex.: falta de consentimento no estupro (exemplo da débil mental). Inexistência do nascimento
no art. 241.

256 - PREVISÃO DA CAUSALIDADE E DO RESULTADO


O dolo pressupõe que o autor tenha previsto o curso causal e a produção do
resultado típico. Sem esta previsão não há dolo.
Há desvios relevantes do curso causal com relação ao planejado e desvios
irrelevantes. Exemplos:
lllllll)Um sujeito empurra outro de cima de uma ponte para ele morrer afogado. Antes de
chegar no rio bate a cabeça numa pedra e morre. É irrelevante.
mmmmmmm) Um sujeito quer envenenar o outro com arsênico. Pega o pote errado e lhe
dá um antibiótico e a vítima morre porque o remédio nela causa uma reação alérgica. Há
um desvio relevante do curso causal que eliminará o dolo.
Existem casos em que a coisa não é tão clara assim.

257 - ALGUNS ERROS SOBRE A CAUSALIDADE


1) Aberratio ictus
Uma conduta se dirige contra um objeto, mas atinge a outro, com relação ao qual
não se queria nem se aceitava a possibilidade de afetar.
nnnnnnn) Um sujeito quer acertar o dono, atira e acerta o cão. Haverá tentativa de homicídio
contra o dono. Contra o cão não há crime, porque não existe dano culposo.
ooooooo) Um sujeito quer acertar o cão, atira e fere o dono. Haverá uma tentativa de dano
doloso e uma lesão corporal culposa em concurso formal.
Acontece a mesma coisa se os objetos forem equivalentes (posição de Zaffaroni).
ppppppp) Se alguém dispara contra outro e acaba matando um terceiro, teremos tentativa de
homicídio doloso em concurso formal com homicídio culposo. Boa parte da doutrina
afirma que neste caso há homicídio doloso consumado, porque o autor queria matar um
homem e matou um homem.
Em relação aos crimes contra a pessoa parece ser esta a solução do legislador no
art. 73. Mas o art. 74 torna a questão mais obscura.
O art. 73 refere-se a crimes contra a pessoa.
O exemplo é o seguinte: um sujeito atira em outro querendo matá-lo. Erra o alvo e
atinge um terceiro, matando-o. A doutrina diz que há homicídio consumado. Mas a solução
lógica, de acordo com a regra do art. 20, § 3º, é uma tentativa de homicídio doloso em
concurso formal com homicídio culposo.
A confusão do art. 74 é maior ainda.
qqqqqqq) Se se interpretar literalmente, nenhuma tentativa será punida, o que é absurdo.
117

rrrrrrr) Como as regras do art. 73 e 74 são de aplicação da pena, sem criar qualquer
alteração quanto à natureza das tipicidades, não existe razão político-criminal que
justifique o entendimento da não punição da tentativa. De modo que se pune a tentativa.
2) Erro no objeto
O erro no objeto ocorre quando se crê dirigir a conduta contra um objeto, mas na
realidade ela se dirige e atinge outro. Quando os objetos não são equivalentes, não há
problema, pois desaparece o dolo:
sssssss) Alguém quer bater no vizinho e por causa da escuridão confunde-o com o
macaco;
ttttttt)Não há dolo de furto se alguém se apodera de coisa própria acreditando ser alheia;
uuuuuuu) Não há dolo de adultério se o sujeito pratica sexo com a própria mulher
acreditando ser outra.
Desaparece o dolo porque dolo é o querer; a realização do tipo objetivo com o
conhecimento de seus elementos. Na realidade esses elementos não existiram, existindo só na
imaginação do autor, o que não é punível.
O problema surge quando os objetos são equivalentes. Aqui o desvio resulta
irrelevante para o dolo.
vvvvvvv) Quem confunde seu vizinho com um inimigo e mata seu vizinho comete
homicídio.
A diferença com a aberratio ictus é que nesta a ação é dirigida contra uma pessoa
e atinge outra. No erro quanto a pessoa a conduta é dirigida contra uma pessoa e consumada
contra esta pessoa.
O erro quanto ao objeto, quando os objetos são equivalentes para o tipo, é um erro
de motivação, que pode ser um problema de culpabilidade, mas não para a tipicidade, porque
os motivos não alteram a tipicidade.
O art. 20, § 3º estabelece que “o erro quanto a pessoa contra quem o crime é
praticado não isenta de pena”.
Muito embora não se estabeleça expressamente a irrelevância de pessoa, isto
resulta da conseqüência lógica dos princípios do CP.
Na 2ª parte, o § 3º diz “não se consideram, neste caso, as condições ou qualidade
da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime”.
Isto deve ser examinado com cuidado.
wwwwwww) A lei fala em crime. Portanto, pressupõe ter sido praticado um crime. Se a
ação é dirigida contra uma pessoa que não possui as qualidades típicas necessárias para que
a conduta possa ser considerada crime, muito embora o agente, por erro, considere que
essa pessoa tivesse essas qualidades, não existe crime tentado ou consumado.
xxxxxxx) Aquele que pretendendo oferecer vantagem indevida a funcionário público,
oferece-a a um vizinho deste por erro quanto a pessoa, pratica uma conduta atípica do art.
333. Nem há tentativa porque nada ofereceu a um funcionário público.
yyyyyyy) Outra coisa é quando a ação praticada contra outra pessoa também é típica
(especialmente nos tipos simples e qualificados).
Temos duas hipóteses:
zzzzzzz) A ação é praticada contra intraneus (o autor quer injuriar um homem determinado
e acaba injuriando o Presidente da República por erro), quando a fórmula legal tem plena
aplicação como decorrência do dolo, mas que não é o dolo do crime mais grave (existe
118

dolo de injúria, mas não dolo de injúria contra o Presidente da República. É art. 140 e não
141, I);
aaaaaaaa) No caso contrário a regra do art. 20, § 3º, é inaplicável. O autor quer injuriar o
Presidente da República e por erro injuria o vizinho. Em tal situação não existe o tipo
objetivo, ou seja, o Presidente da República não foi injuriado, e por isto não é possível
subjetivar um requisito do tipo objetivo.
O princípio da legalidade exige, para aplicação de uma pena, que uma ação típica
seja praticada, e neste caso, não se injuriou o Presidente da República A imaginação do autor
não pode criar a tipicidade objetiva porque o princípio da legalidade impede a criação de
tipos, neste caso, agravantes típicas.
3) Dolus generalis
É um erro sobre a causalidade, em que o autor crê que alcançou o resultado, mas
na realidade este sobreveio de um curso causal posterior. Exemplo: um sujeito crê ter matado
a vítima a pancadas, mas na realidade esta está desmaiada. Para simular suicídio pendura-a
numa árvore e ela morre por enforcamento.
Há dois entendimentos:
bbbbbbbb) Há conduta única. O erro é irrelevante. É homicídio doloso consumado.
cccccccc) Há duas condutas e um desvio causal relevante. Há tentativa de homicídio em
concurso formal com homicídio culposo.
Zaffaroni diz que há de prestar atenção em duas hipóteses:
dddddddd) Se na realidade há uma só conduta, é irrelevante se a morte se deu por pancadas
ou por enforcamento. Aqui é necessário um plano unitário, uma unidade de decisão. Matar
e suspender numa árvore para simular suicídio.
eeeeeeee) Se há dois planejamentos sucessivos da causalidade, há duas condutas. O sujeito
quer matar a pancadas, e quando pensa já ter causado a morte pendura-a numa árvore,
matando-a por enforcamento para simular suicídio. Há tentativa de homicídio e homicídio
culposo em concurso formal.

IV - AUSÊNCIA DE DOLO POR ERRO DE TIPO

258 - O ERRO DE TIPO: SUA NATUREZA


O erro de tipo é o fenômeno que determina a ausência de dolo quando, havendo
uma tipicidade objetiva, falta ou é falso o conhecimento dos elementos requeridos pelo tipo
objetivo.
O erro sobre o elemento constitutivo do tipo penal exclui o dolo (art. 20, do CP).
Exemplo:
ffffffff) quem crê atirar num urso e na verdade atira no seu amigo de caçada;
gggggggg) quem se apodera de um casaco que está no guarda roupa de uma festa pensando
ser o seu;
hhhhhhhh) quem crê aplicar uma pomada cicatrizante e na verdade aplica um ácido corrosivo
e causa lesão.
Em todos esses casos o erro recaiu sobre um dos elementos do tipo objetivo:
iiiiiiii) no primeiro ignora que mata um homem;
jjjjjjjj) no segundo que a coisa é alheia;
kkkkkkkk) no terceiro que emprega um meio que causará ferida.
119

A conduta é final:
llllllll) no primeiro caso de caçar urso;
mmmmmmmm) no segundo de levar seu próprio casado;
nnnnnnnn) no terceiro uma conduta de curar.
Em todos esses casos desaparece a finalidade típica, a vontade de realizar o tipo
objetivo. Se não há querer não há dolo.
Dolo é querer a realização do tipo objetivo. Quando não se sabe que se está
realizando o tipo objetivo este querer não pode existir e, portanto, não há dolo, este é o erro de
tipo.
Mas existe outro tipo de erro:
oooooooo) quem dispara sobre um homem crendo que este estava prestes a matá-lo e,
portanto, está em legítima defesa, também age com erro. Só que este erro não exclui a
vontade de matar (o dolo). É o chamado erro de proibição, que é problema da
culpabilidade.
O erro de proibição elimina a exigibilidade de conduta diversa, ou seja, de
compreender a antijuridicidade, e por isto sua conduta não é reprovável. Só tem sentido esta
diferenciação erro de tipo e proibição no marco de uma teoria finalista do delito. Se fosse
causalista seria erro de fato e de direito, ambos na culpabilidade.
Diferenças:
pppppppp) O erro de tipo afeta o dolo; o de proibição, a compreensão da antijuridicidade;
qqqqqqqq) O erro de tipo acontece quando o homem não sabe o que faz. No erro de proibição
ele sabe o que faz, mas crê que sua conduta não é contrária à ordem jurídica;
rrrrrrrr) O erro de tipo elimina a tipicidade dolosa, o de proibição pode eliminar a
culpabilidade.
Exemplos:

“A” aciona uma arma crendo que ela estava “A” crê que vai ser morto por um ladrão e
descarregada, mas ela estava carregada e nele dispara para defender-se. Na realidade
causa a morte de “B” era seu filho “B”
Uma mulher grávida ingere um tranqüilizante Uma mulher grávida, proveniente de um país
que tem propriedades abortivas e acaba em que o aborto não é crime, ingere um
provocando nela um aborto. abortivo, crendo que não é proibido fazê-lo.
Um estudante dá um analgésico a um Uma mulher gorda dá um barbitúrico a sua
companheiro, e na realidade trata-se de um amiga, para emagrecimento, ignorando que é
barbitúrico. proibido.
Um cliente de uma loja toca um jarro sem Um indígena quebra um brinquedo em uma
saber que serve de apoio a uma prateleira, que loja porque crê – de acordo com sua crença –
despenca e quebra um brinquedo. que tem poderes maléficos e que lhe causará a
morte.
Um sujeito leva o casaco de uma outra pessoa Um sujeito leva um casaco alheio, pensando
pensando ser o seu. usá-lo e devolvê-lo no dia seguinte, crendo
que isto não é delito.
O erro de proibição será estudado depois, na culpabilidade.
120

259 - OS EFEITOS DE ERRO DE TIPO


Para o direito penal erro e ignorância se valem. O erro é o conhecimento falso
acerca de algo. A ignorância é a falta de conhecimento sobre algo. Sempre elimina o dolo.
Mas distingue-se o erro evitável ou vencível, do erro inevitável, ou invencível.
É evitável o erro em que se não teria incorrido se a diligência devida tivesse sido
empregada.
ssssssss) Se o caçador tivesse usado a diligência exigível para ver se o urso não era seu
amigo.
É inevitável o erro de quem, embora empregando toda diligência exigível, não
teria dele escapado.
tttttttt) Mulher grávida que ingere tranqüilizante receitado por médico e em cujo rótulo
não tivesse a advertência.
Assim:
pode dar lugar a
Vencível ou evitável
Erro de tipo Elimina sempre o dolo tipicidade culposa
Invencível ou inevitável elimina dolo e culpa

260 - AS CONCEPÇÕES TRADICIONAIS DE ERRO E SUA CRÍTICA


Erro de proibição não é um erro quanto a lei, ou quanto a existência da lei.
Desconhecimento da lei não escusa. Conhecimento da lei e consciência da antijuridicidade
são conceitos diversos. Ex.: um chinês que chega ao Brasil sabe que matar é crime, muito
embora nada fale de português. Mulher de país que permite o aborto e faz aborto no Brasil,
acha que aqui há norma permissiva e não desconhece a lei.

263 - O ERRO DE TIPO PSIQUICAMENTE CONDICIONADO


Existem casos em que o sujeito é capaz de conduta e, no entanto, carece de
capacidade psíquica para conhecer os elementos exigidos pelo tipo objetivo, ou seja, não tem
capacidade objetiva de dolo. Neste caso também atua em erro de tipo.
São os casos de alucinações (percepção sensorial sem objeto exterior) ou ilusões
(percepção sensorial que distorce o objeto exterior). Nestes casos estaremos diante de uma
incapacidade de conhecer os elementos requeridos pelo tipo objetivo, proveniente de uma
causa psicopatológica, que não deve ser confundida com incapacidade de culpabilidade
(inimputabilidade) (veremos no Cap. XXX).

V - O ASPECTO VOLITIVO DO DOLO

264 - AS DISTINTAS CLASSES DE DOLO SEGUNDO SEU ASPECTO VOLITIVO: O DOLO DIRETO
1) Dolo direto  O autor quer diretamente a produção do resultado típico, seja
como o fim diretamente proposto (dolo direto de 1º grau) ou como um meio para obter o fim
(dolo direto de 2º grau). Exemplo:
uuuuuuuu) Um sujeito quer matar outro e desfere contra ele 5 tiros na cabeça = dolo direto de
1º grau.
vvvvvvvv) Um sujeito quer matar outro. Sabe que ele vai pegar um avião. Coloca um
explosivo em sua bagagem e acaba matando todo mundo (dolo direto de 2º grau).
As duas categorias estão abrangidas pelo art. 18, I, do CP.
121

2) Dolo eventual  o autor aceita o resultado como possibilidade = art. 18, I =


assumiu o risco de produzir o resultado.
Quando alguém planeja a causalidade para obter uma finalidade, faz uma
representação dos possíveis resultados concomitantes de sua conduta (ir de avião, trem etc.).
Se confia que o resultado não ocorrerá, estaremos diante da culpa com representação
(veremos depois), mas se admite a possibilidade de que o resultado possa acontecer, haverá
dolo eventual.
No dolo eventual temos: “que se ferre”, “que se incomode”, “se acontecer, azar”,
“não me importo”. Não há uma verdadeira aceitação do resultado, mas uma aceitação como
possibilidade, como probabilidade.
wwwwwwww) Um sujeito que percebe em si sinais de doença venérea e tem dúvidas acerca
de sua infecção e possível contágio e, no entanto, tem relações sexuais sem tomar nenhuma
precaução, age com dolo eventual. Aceita a possibilidade ou a probabilidade do resultado
infectar outro.
xxxxxxxx) Quem incendeia um campo para receber seguro e sabe que há uma casa no meio,
cuja família correrá perigo e mesmo assim ateia fogo ao campo, aceita a morte deles como
provável ou possível.
yyyyyyyy) Um condutor de um caminhão que o deixa estacionado com parte sobre a pista,
numa noite escura e sem sinalização, aceita como possível um acidente.
zzzzzzzz) Quem se lança numa competição automobilística de velocidade, numa cidade
populosa, à custa da possibilidade da produção de um resultado lesivo, age com dolo
eventual de homicídio, ou lesões, ou danos, porque aceita esta possibilidade ou
probabilidade, que não é difícil de acontecer.
O difícil é estabelecer o limite entre dolo eventual e a culpa com representação.
Mas isto é questão de prova. O limite é dado pela aceitação ou rejeição do resultado. A dúvida
sempre favorece o réu e desclassifica para culpa.
Alguns tipos penais só se concretizam com o dolo direto. É o caso da exigência
“deliberadamente”, “intencionalmente”, “maliciosamente” etc.

VI - OS ELEMENTOS SUBJETIVOS DO TIPO DISTINTOS DO DOLO

266 - CONCEITO E LOCALIZAÇÃO


Vimos que na estrutura dos tipos dolosos há tipos simétricos e assimétricos,
conforme os requisitos do dolo excedam o tipo objetivo ou não.
Esses requisitos são de duas ordens:
aaaaaaaaa) Ultraintencionais  particulares direcionamento da vontade que vão além do
querer realizar o tipo objetivo. Portador de uma intenção que vai mais além da finalidade
de obter o resultado típico. Exemplo:
Ocultar a desonra que deve acompanhar o dolo no tipo do art. 134;
bbbbbbbbb)Particulares disposições internas (do ânimo) do sujeito ativo 
A traição do art. 121, § 2º, IV (morte com o conhecimento da situação de indefesa
da vítima).
Max Ernest Mayer desenvolveu esse dolo separado da culpabilidade, o que foi
uma revolução para a teoria causalista: descobriram-se elementos subjetivos no tipo. Esses
elementos se chamam de “elementos subjetivos do tipo distintos do dolo” ou “elementos do
tipo subjetivo distintos do dolo”.
122

267 - DIFICULDADES QUE ACARRETAM PARA A TEORIA OBJETIVA DO TIPO


Não deu mais para sustentar que o dolo está localizado na culpabilidade. Mezger
tentou localizar o dolo tanto na culpabilidade, quanto no tipo, mas isto já foi abandonado.

268 - CLASSES DE TIPOS COM ELEMENTOS SUBJETIVOS DISTINTOS DO DOLO


Com base na observação de que existem delitos em que existem elementos
subjetivos distintos do dolo, ultraintencionais ou por disposição interna do sujeito ativo, fez-se
uma classificação dos tipos na seguinte ordem:
ccccccccc) Tipos com tendência interna excessiva ou transcendente  requerem que a
conduta seja dirigida à obtenção de um objetivo que se encontra “mais além” do puro
resultado ou produção da objetividade típica.
Se dividem em dois:
1) Delitos de resultado separado  o sujeito realiza a conduta para que se produza
um resultado posterior, já sem sua intervenção.
Homicídio qualificado do art. 121, V  cortado de resultado. O autor mata para
assegurar a vantagem de outro crime e esse resultado ocorrerá posteriormente, sem que nada
mais ocorra.
A corrupção ativa (art. 333) em que se pune quem promete ou oferece vantagem
indevida a funcionário público. Consuma-se com a dação ou promessa e o fato do funcionário
fazer, deixar de fazer ou retardar o ato é um resultado posterior que sobrevêm sem a
participação do autor.
2) Delitos incompletos de dois atos  O agente realiza uma conduta como passo
prévio para outra.
Quadrilha ou bando (art. 288) em que mais de 3 pessoas se associam para praticar
crimes.
ddddddddd) Tipos de tendência peculiar  aos que se configuram com a exigência de
uma tendência interna do agente, que não se exterioriza de forma completa (chamado de
momentos especiais de ânimo).
Sua multiplicação tem dado lugar ao chamado direito penal de ânimo ou de
disposição interna, colaborando para a insegurança jurídica.
Homicídio de surpresa  a surpresa tem de ser aproveitada pelo autor para
facilitar a ação;
Facilitação da prostituição  requer a disposição interna de habitualidade ou
profissionalismo. A pluralidade de pessoas pegas se prostituindo num prostíbulo não
caracteriza o tipo. O que o caracteriza é o profissionalismo ou a habitualidade.
O curandeirismo do art. 284 idem.

269 - ELEMENTOS SUBJETIVOS DO TIPO DISTINTOS DO DOLO E COMPONENTES DA


CULPABILIDADE

São diferentes dos componentes da culpabilidade.


Os motivos sempre são uma questão de culpabilidade e a diferença entre motivo e
tendências internas transcendentes é estabelecida tendo presente que os primeiros respondem
ao “de onde?” e as segundas “para onde”. Exemplos:
eeeeeeeee) homicídio mediante paga ou promessa de recompensa ou por motivo fútil são
referências à culpabilidade.
123

fffffffff) Matar para assegurar a execução, a ocultação ou a impunidade de outro crime são
tendências internas transcendentes.

18ª AULA – 23/06/03

CAPÍTULO XXI
TIPOS CULPOSOS

I - PANORAMA DA PROBLEMÁTICA DA CULPA

270 - CULPA E FINALIDADE


Continuamos com a mesma base: os tipos penais individualizam condutas e não é
possível que individualizem outra coisa que não a conduta humana, que é final.
Começamos dizendo, então, que o tipo culposo também individualiza condutas
humanas. E também que a conduta tem um querer, uma vontade, que é sempre final.
Conclusão: o tipo culposo é preenchido com uma conduta final, da mesma forma que o tipo
doloso.
A conclusão é que tanto o tipo doloso quanto o culposo proíbem condutas. O que
diferencia é a forma de proibir.
O tipo culposo não individualiza pela finalidade, e sim porque pela forma com
que a pessoa atinge sua finalidade ele infringiu um dever de cuidado, ou como diz o art. 18, II,
a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
O fato do tipo não individualizar a conduta culposa pela finalidade em si mesma,
não significa que a conduta não tenha finalidade. Quem dirige um carro em alta velocidade
dentro do perímetro urbano quer dirigir um carro em alta velocidade por diversão, por pressa
etc. A conduta é tão final quanto a dolosa.
O sistema do nosso código é o seguinte: só são típicos os resultados culposos que
assim são considerados na parte especial, na forma do art. 18, parágrafo único, do CP.
As formas são:
ggggggggg) imprudência  falta de cuidado no atuar;
hhhhhhhhh) negligência  uma omissão do dever de cuidado, uma falta no atuar;
iiiiiiiii) imperícia  desempenho insuficiente de uma profissão.
O que interessa não é a diferença entre as formas, mas que se infringiu “um dever
de cuidado”.

271 - OS TIPOS CULPOSOS COMO TIPOS ABERTOS


Vimos que os tipos abertos são aqueles que devem ser fechados pelo juiz, com
uma norma de caráter geral que se encontra fora do tipo. Ele é insuficiente para individualizar
a conduta proibida, como o crime culposo.
O juiz precisa recorrer a outra norma que nos indique qual o “cuidado objetivo”
que tinha o sujeito ativo na sua conduta em particular.

272 - A FUNÇÃO DO FIM NO TIPO CULPOSO


Para se determinar o aspecto objetivo do tipo culposo é necessário um dado prévio
que nos vem ofertado por um momento subjetivo: o fim da conduta. Se não soubermos a
finalidade da conduta, não saberemos de que conduta se trata e, portanto, não poderemos
124

determinar qual era o dever de cuidado exigido do agente e, consequentemente se a conduta é


típica ou não.
Não há um dever de cuidado geral, mas a cada conduta corresponde um dever de
cuidado: dirigir um veículo, demolir uma construção, acender um fogão, serrar uma madeira.
Para saber se a conduta é de dirigir, demolir, acender ou serrar, devemos saber sua
finalidade, porque há condutas que são exteriormente idênticas, que podem causar os mesmos
resultados, cuja diferença está só na finalidade e, portanto, exigem deveres de cuidado
diferentes: São condutas diferentes porque com fins diferentes, e com deveres de cuidado
diferentes:
jjjjjjjjj) Uma pessoa, ao sair da garagem, dirigindo um veículo, lesiona um transeunte que
circula por aquela calçada. Pode ser:
a.1) o motorista que não tomou cuidado ao tirar o carro  o dever de cuidado é observar se
não há transeuntes;
a.2) o lavador de carros que sem o dever de cuidado acionou o mecanismo de arranque  o
dever de cuidado é não mexer em mecanismo perigoso.
kkkkkkkkk) um sujeito perfura um cano de gás no apartamento provocando uma
explosão e lesões em pessoas.
b.1) pode ser um técnico habilitado que agiu com imperícia;
b.2) pode ser a mulher que furou a parede para colocar um vaso sem tomar cuidado.
No tipo culposo a ação proibida não se individualiza pelo fim em si mesmo (aí
seria dolo) mas sim pela forma de selecionar mentalmente os meios e de dirigir a causalidade
para a obtenção desse fim. Por isto é que o fim deve ser levado em consideração para
conhecer a conduta de que se trata, para o efeito de saber se essa conduta foi programada
obedecendo o dever de cuidado ou de forma violadora deste.
No dolo, o típico é a conduta em razão da finalidade.
Na culpa, o típico é a conduta em razão do planejamento da causalidade para a
obtenção da finalidade proposta.

II - O ASPECTO OBJETIVO DO TIPO CULPOSO

273 - A FUNÇÃO DO RESULTADO NOS TIPOS CULPOSOS


A função do resultado é só delimitar o alcance da proibição. O resultado é
delimitador da tipicidade objetiva culposa, que Exner chama de componente de azar.
lllllllll) Dirijo daqui a Corumbá a 100 km/h sem me importar com a estrada, que permite
menos. Chego em Corumbá sem qualquer acidente. Não há conduta culposa típica.
mmmmmmmmm) Com a mesma conduta venho a capotar e lesionar meu acompanhante.
Aqui há um componente de azar, que responde a função garantidora do tipo no sistema de
tipos legais.
O resultado não pode ser considerado fora do tipo, nem é uma condição objetiva
de punibilidade como querem alguns. Ele limita o tipo objetivo e está dentro do tipo. Lesionar
outrem faltando ao dever de cuidado por imprudência, ao dirigir em velocidade incompatível
na rodovia esburacada de Miranda a Corumbá.
125

274 - A CAUSALIDADE NO TIPO CULPOSO


A relevância da causalidade para o tipo culposo não reside na sua utilidade para a
determinação da tipicidade objetiva, mas apenas para a sua delimitação, porque a conduta que
viola o dever de cuidado é tão causal como daquele que age com sua observância.
nnnnnnnnn) Dois veículos se chocam num cruzamento, porque o primeiro não respeitou
a preferencial. Dizemos que a conduta culposa foi daquele que não respeitou o dever de
cuidado de parar e dar passagem a quem ia pela preferencial.
Dizemos isto porque ele “violou o dever de cuidado” e não porque causou o
acidente. Ambos causaram o acidente, se o outro veículo não estivesse lá não haveria o
acidente. Nós vimos que o dolo e a culpa no tipo tem a função de limitar a causalidade e é isto
que acontece no tipo culposo. A causalidade é desencadeada a partir da falta do dever de
cuidado.

275 - A VIOLAÇÃO DO DEVER DE CUIDADO


O dever de cuidado é um componente normativo do tipo culposo, que deve ser
violado por uma conduta humana.
Os deveres de cuidado são descritos pela lei e também estão nas pautas éticas e
sociais.
ooooooooo) Direção de veículo tem uma série de normas administrativas que devem ser
seguidas. Mas não é porque não se segue uma norma administrativa que objetivamente ele
é culpado. Isto é um “indício” da culpa. Ex.: dirigir embriagado e causar um
atropelamento.
O fato da lei remeter a pautas sociais de cuidado, de modo algum quer dizer que
se criou a figura do homem médio, do homem razoável, do bom pai de família. O dever de
cuidado deve ser determinado de acordo com a situação jurídica e social de cada homem.
ppppppppp) Não são semelhantes o dever de cuidado de quem dirige seu veículo e de
quem dirige um coletivo.
qqqqqqqqq) Não são semelhantes o dever de cuidado do condutor de veículo e do
pedestre, embora todos participem da mesma conduta social: trânsito.
Problemas:
rrrrrrrrr) O autor causou o resultado atropelamento porque outro (o pedestre) faltou ao
dever de cuidado. Se o condutor não violou nenhum dever de cuidado, não há o elemento
normativo do tipo culposo e, portanto, a conduta é atípica.
sssssssss) Se no mesmo caso ambos se houveram com culpa: como não existe dano culposo
o pedestre não responderá pelo amassado no carro, mas o motorista responderá.
Veja as seguintes situações:
ttttttttt) Se o pedestre atravessa fora da faixa de pedestres, não se pode descartar a
tipicidade culposa do motorista que o atropela;
uuuuuuuuu) Se uma enfermeira entregou um instrumental sem esterilização, não se pode
descartar a tipicidade culposa do médico que o utiliza;
vvvvvvvvv) Porque um construtor usou material de qualidade inferior, não se pode
descartar a tipicidade culposa do engenheiro que projetou a obra.
Qual o critério para se averiguar a culpa? É o chamado princípio da confiança =
desenvolve-se de acordo com o dever de cuidado a conduta daquele que, em qualquer
atividade compartilhada, mantém a confiança em que o outro se comportará conforme o dever
126

de cuidado, enquanto não tenha razão suficiente para acreditar no contrário, ou duvidar.
Exemplo:
wwwwwwwww) Se o condutor vê a ação culposa do pedestre e mesmo assim segue em alta
velocidade, também é culpado;
xxxxxxxxx) Se o médico duvidou ou tinha razões para duvidar da conduta da
enfermeira;
yyyyyyyyy) Se o engenheiro não fiscalizou a colocação dos materiais, descumprindo sua
função, ou tinha porque duvidar do construtor.

276 - RELAÇÃO DE DETERMINAÇÃO ENTRE A VIOLAÇÃO DO DEVER DE CUIDADO E A


PRODUÇÃO DO RESULTADO (CONEXÃO DE ANTIJURIDICIDADE)

É a mesma coisa que dizer que a violação do dever de cuidado deve ser
determinante do resultado.
zzzzzzzzz) Quem dirige um carro em alta velocidade por um estrada viola um dever de
cuidado, mas não haverá homicídio culposo se atropela um suicida escondido que se joga
na frente a alguns metros, porque ainda que tivesse em velocidade permitida não haveria
como evitar o acidente.
aaaaaaaaaa) Aquele que dirige um veículo sem CNH e atropela alguém que
descuidadamente desce de um ônibus e passa pela sua frente, tão só por violar o dever de
cuidado de dirigir sem CNH não responderá por culpa se se comprovar que mesmo assim o
acidente teria ocorrido.
Essa relação de determinação não é a mesma coisa de relação de causalidade. Há
causalidade no fato de dirigir em alta velocidade e atropelar alguém, como em dirigir sem
CNH e atropelar.
A causalidade se afere a partir da falta do dever de cuidado.
A relação de determinação é feita por uma operação mental: se ele tivesse
habilitação o acidente teria ocorrido? Se tivesse em baixa velocidade o acidente teria ocorrido.
E isto é exigido pelo art. 18, II, do CP, que requer para a comprovação do dever de cuidado a
imprudência, a negligência, ou a imperícia.

III - O ASPECTO SUBJETIVO DO TIPO CULPOSO

277 - SUA NATUREZA


No tipo culposo também há aspectos objetivos e subjetivos como no doloso. Mas
a estruturação do tipo é diferente. O tipo não se divide em duas partes, objetivo e subjetivo
como no doloso, e então analisado primeiro o objetivo e depois o subjetivo.
Se fala em tipo objetivo e subjetivo do tipo culposo por razões de conveniência do
ordenamento jurídico. Para se falar em aspectos que tornam o tipo objetivo – a violação do
dever de cuidado – é inevitável a referência a aspectos subjetivos, como a finalidade e a
possibilidade de previsão do resultado (previsibilidade).
bbbbbbbbbb) Art. 302  Matar alguém pela violação do dever de cuidado (tipo objetivo),
consistente na imprudência de dirigir em velocidade superior à permitida em frente a uma
escola, onde era previsível o resultado de causar dano à integridade física de outros.
No aspecto cognoscitivo do tipo culposo há um conhecimento potencial, ou seja,
uma possibilidade de conhecimento, não sendo requerido um conhecimento efetivo, como
ocorre no dolo. Isto é importante: exige-se tão só um conhecimento potencial do cuidado
devido.
127

278 - COMPONENTES SUBJETIVOS


O tipo culposo tem dois aspectos:
cccccccccc) Volitivo  vontade de realizar a conduta final.
dddddddddd) Intelectual ou cognoscitivo  a possibilidade de conhecer o perigo que a
conduta cria para os bens jurídicos alheios e de prever a possibilidade do resultado em
conformidade com esse conhecimento = previsibilidade.
Há tipo culposo  quando o resultado não era previsível para o autor, seja porque
se encontrava além de sua capacidade de previsão (ignorância invencível) ou porque o sujeito
encontrava-se em um estado de erro invencível de tipo.
eeeeeeeeee) É imprevisível ao pedreiro o resultado que vá cair um tijolo na cabeça de
um transeunte dali a vinte anos de sua construção.
ffffffffff) Há um erro invencível de tipo – que também elimina a previsibilidade –, quando
alguém dirige por uma estrada sinuosa, respeitando todas as sinalizações, mas causa um
acidente porque transita na contramão, porque alguém trocou as sinalizações indicativas
das placas.
gggggggggg) Há erro invencível de tipo na conduta de quem descarrega fardos de um
caminhão, na crença que é farinha de trigo, e na verdade é cocaína.
Caso fortuito é a ignorância invencível que elimina a previsibilidade do resultado
típico.
A previsibilidade:
hhhhhhhhhh) condiciona o dever de cuidado  quem não pode prever não pode tomar
cuidado.
a.1) quem vai acender um interruptor de luz não pode prever que alguém ali tenha instalado
um detonador de uma bomba.
iiiiiiiiii) deve ser estabelecida de acordo com a capacidade de previsão de cada indivíduo
 não há homem médio ou critério de normalidade.
b.1) um técnico da Enersul pode prever com maior precisão o perigo que causa um fio solto.

280 - CULPA COM REPRESENTAÇÃO E CULPA INCONSCIENTE


O problema aqui é não confundir culpa consciente com dolo eventual.
No dolo eventual eu represento o resultado e digo: “que se dane”.
Na culpa com representação ou consciente, da mesma forma há representação da
possibilidade de ocorrência do resultado, mas o sujeito crê que pode evitá-lo ou esse resultado
não ocorrerá.
No dolo eventual o que conta é o aspecto volitivo. Na culpa o aspecto
cognoscitivo. Na culpa consciente o que se conhece efetivamente é o perigo.
Na culpa inconsciente ou sem representação não há problema. Não há um
conhecimento efetivo do perigo. A ação ocorre por imprudência, imperícia ou negligência e
um conhecimento potencial do perigo.
Um menino pega a caminhonete e vem esperar a saída das aulas da universidade.
Sai em desabalada carreira com o carro para se mostrar para as meninas e atropela alguém:
jjjjjjjjjj) Dolo eventual  viu que a rua estava cheia de gente, representou o resultado e
disse: “que se lixe”, se acontecer, aconteceu.
128

kkkkkkkkkk) Culpa consciente  eu dirijo bem e vou acelerar bastante. As pessoas sairão
da frente.
llllllllll) Culpa normal (inconsciente)  as pessoas estavam na calçada conversando.
Tinha certa possibilidade de não acontecer acidente algum. Mas é de se exigir que se
preveja que nessa situação alguém pode entrar na rua.

IV - OUTRAS POSIÇÕES A RESPEITO DA CULPA E SUA CRÍTICA

281 - A TENTATIVA DE FUNDAMENTAR A CULPA NA CAUSALIDADE E A PREVISIBILIDADE


Zaffaroni faz uma crítica à teoria do risco. Ele diz que a causação do resultado e a
previsibilidade podem ocorrer em numerosíssimas condutas que nada têm de culposas:
mmmmmmmmmm) Todo sujeito que conduz um veículo sabe que introduz um certo
perigo a bens jurídicos alheios, tanto que faz seguro por dano a terceiros. Mas não há culpa
nisso. Afirma que o entendimento correto da culpa como violação do dever de cuidado é
recente na ciência penal.

282 - LOCALIZAÇÃO DA CULPA NA CULPABILIDADE


Quando o delito era entendido com um aspecto objetivo e outro subjetivo, o dolo
e a culpa eram as formas ou componentes da culpabilidade. Esta era a relação psicológica
entre a conduta e o resultado.
O problema é que na culpa não há relação psicológica entre a conduta do agente e
o resultado. A relação psicológica entre ambos se dá na cabeça do juiz quando averigua a
violação do dever de cuidado. O agente é responsabilizado justamente porque não fez a
relação psicológica que podia e devia fazer.
nnnnnnnnnn) Não há qualquer relação psicológica entre a conduta de quem dirige com um
celular e portanto com desatenção e o resultado atropelamento de pedestre por desatenção.
Ele jamais quis o resultado. O problema é que ele não fez a relação psicológica conduzir ao
celular e possibilidade de causar acidente.
A relação psicológica está em nossa cabeça, quando a posteriori observamos o
fato e dizemos “esse irresponsável é um perigo público, porque qualquer um pouco menos
cretino devia ter imaginado que poderia causar um desastre”.

283 - CRÍTICA AO CONCEITO FINALISTA DE TIPO CULPOSO


Quando Welzel começou a desenvolver o conceito finalista sofreu várias críticas
quanto a formulação do tipo culposo. A mais importante e que até é feita pelos causalistas é
que “como no tipo culposo a conduta proibida não se individualiza pelo fim em si mesmo, o
tipo culposo não individualiza condutas finais”.
Isto foi depois rebatido por Welzel e por Maurach, que dizem que a conduta típica
culposa é tão final como qualquer outra. No tipo doloso se exige que a finalidade dirija a
causalidade para um resultado determinado. No tipo culposo se exige que a causalidade não
foi planejada pela finalidade com observância ao dever de cuidado que corresponderia ao caso
particular. Isto é mesmo sem importância para a única coisa que é essencial na teoria da ação:
“tanto no fato doloso como no culposo, a vontade governante dirige a manifestação da
vontade em determinada direção”.
129

19ª AULA – 30/06/03

CAPÍTULO XXII
O PROBLEMA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA

I - O CHAMADO PRINCÍPIO DE CULPABILIDADE

284 - CONTEÚDO DO CHAMADO “PRINCÍPIO DE CULPABILIDADE”


Quando o delito era dividido em duas partes – objetiva e subjetiva – e o dolo e a
culpa estavam na culpabilidade, significava que não havia delito sem no mínimo culpa.
Agora, com o dolo e a culpa no tipo, quer dizer duas coisas:
oooooooooo) A conduta para ser típica, precisa ser no mínimo culposa;
pppppppppp) A conduta para ser culpável deve ser reprovável ao autor.
Vamos estudar a tipicidade. A outra fica para a cupabilidade.

285 - VIOLAÇÃO DO NULLUM CRIMEN SINE CULPA: A RESPONSABILIDADE OBJETIVA


Responsabilidade objetiva é a imputação da produção de um resultado fundada só
na causação dele (como era antigamente), sem se importar se no mínimo é culposo.
É uma forma de violar o princípio nullum crimen sine culpa. É uma terceira forma
de tipicidade, que se configuraria com a proibição de uma conduta pela mera causação do
resultado, sem exigir dolo nem culpa.
Pode ocorrer em dois casos:
qqqqqqqqqq) se pune a conduta somente porque causou o resultado (tipo – art. 18).
rrrrrrrrrr) a pena é agravada somente pela causalidade, sem conduta culposa (art. 19).
Desse modo, o nosso CP proíbe a responsabilidade objetiva.

II - AS FIGURAS COMPLEXAS

286 - A PRETERINTENÇÃO E OUTRAS HIPÓTESES


Há casos em que a lei tipifica de maneira complexa uma conduta. É uma solução
que o legislador encontrou para tipificar um conduta típica de dois tipos penais. É o caso do:
ssssssssss) concurso formal (art. 70);
tttttttttt) e quando tipifica uma conduta como culposa somente quando é resultado da
dolosa. Assim também temos um concurso formal na figura complexa, mas tipificado num
tipo só, sem alusão ao art. 70.
Exemplos de figuras complexas, que se não fossem solucionadas pelo legislador,
seriam concurso formal:
uuuuuuuuuu) aborto (arts. 125 e 126) qualificado pelo art. 127, pelas lesões ou morte. Se
não houvesse essa regra, deveríamos combinar o aborto com o art. 129, § 6º, ou art. 121, §
3º.
Podem ocorrer outras situações:
Delitos preterdolosos
130

Uma ação, a um só tempo, é típica de um tipo doloso, em razão de sua finalidade


típica, e de um tipo culposo, em face da violação do dever de cuidado na escolha dos meios.
Ex.: art. 129, § 3º, 125 e 126 combinado com o 127; 137, parágrafo único etc.

287 - DELITOS QUALIFICADOS PELO RESULTADO


Parte da doutrina admite na nossa legislação os chamados delitos qualificados
pelo resultado. Mas isto é impossível. Não pode existir qualificadora ou agravação da pena
pela mera causação do resultado sem dolo, nem culpa.
O art. 5º, II, CF (ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude da lei) e o art. 19, do CP proíbem que um delito seja agravado pelo simples
acontecimento causal.

III - O VERSARI IN RE ILLICITA E SUAS MANIFESTAÇÕES

288 - O PRINCÍPIO DO NULLUM CRIMEN SINE CULPA E SEU DESCONHECIMENTO


Sempre que se pretende violar o princípio do nullum crimen sine culpa se apela
para o malfadado versari in re illicita: “é autor aquele que, fazendo algo não permitido, por
puro acidente causa um resultado antijurídico”.
Funcionaria assim:
vvvvvvvvvv) O autor de um furto é responsável pela morte da vítima de infarto por raiva
por causa do furto;
wwwwwwwwww) O marido que abandona o lar é responsável pelo suicídio da mulher;
xxxxxxxxxx) O que furta um extintor é responsável pelo incêndio que causa dano um ano
depois.
De modo geral (e específico pelo art. 19) o princípio do versari in re illicita é
rejeitado pelo CP. Mas setores da jurisprudência e uma minoria da doutrina parecem aceitá-lo
por causa da obscuridade do CP. Exemplo:
yyyyyyyyyy) aquele que comete um delito em estado de embriaguez completa
(inimputabilidade) é responsabilizado pelo injusto, sempre que a embriaguez for voluntária
e não acidental.
É certo que houve uma vontade final de embriagar-se e depois de ferir ou matar,
mas neste último o injusto não é culpável, em razão da inimputabilidade do agente.

289 - A TEORIA DA ACTIO LIBERA IN CAUSA


O problema da embriaguez deveria ser tratado como um caso geral do CP, como
todo caso em que acontece a inculpabilidade.
Mas a doutrina européia e latino-americana procura resolver este caso no estrato
da tipicidade. Afirma-se que embora o injusto não seja livre no ato (matou por estar bêbado),
é livre na causa (embriagou-se porque quis e cometeu um crime sabendo que poderia cometê-
lo ou não tomou cuidado objetivo para não se embriagar).
Surgiu para explicar essa situação de tipicidade a teoria da actio libera in causa: o
dolo ou a culpa do injusto devem ser deslocados para a vontade do sujeito, presente no
momento em que ele se colocou em estado de incapacidade de culpabilidade.
É convincente porque resolve situações:
zzzzzzzzzz) Um sujeito bebe para embriagar-se completamente e matar seu inimigo, e o
faz, responde por crime doloso.
131

aaaaaaaaaaa) Se ele bebe para embriagar-se (vontade final) e sabe que fica violento e
comete um homicídio, comete homicídio culposo.
bbbbbbbbbbb) Se a embriaguez foi acidental, não há dolo nem culpa.
Com esta solução, abandonou-se o versari in re illicita e adotou-se a actio libera
in causa, que críticas posteriores dizem que viola o princípio da reserva legal.

290 - CRÍTICA À TEORIA DA ACTIO LIBERA IN CAUSA


Pela teoria do crime culposo, aquele que se coloca num estado de inculpabilidade
violou um dever de cuidado. Não há necessidade da teoria da actio para dizer que se pune o
resultado a título de responsabilidade objetiva, ou que quem é livre para a causa, responde
pelo resultado.
ccccccccccc) Aquele que bebe até embriagar-se, sem saber que efeitos o álcool provocará
em seu organismo, viola um dever de cuidado. Se causa lesão a alguém, teremos um crime
culposo. No momento em que se embriagava – escolhia o meio de se divertir – o agente era
culpável. Escolheu o meio errado e causou dano. Por isto responde por ele.
No que diz respeito ao dolo, a questão muda. A situação de colocar-se em estado
de inimputabilidade não é típica, não tem tipicidade objetiva no CP. É um ato preparatório
atípico, porque não há começo de execução.
ddddddddddd) Quem está num bar bebendo com 15 pessoas e quer tomar coragem para
matar o inimigo que chegará no bar, não entrou em atos de execução de homicídio. Sua
conduta em nada se distingue da conduta dos outros 14 companheiros. Se porventura um
amigo dele soubesse que ele queria matar o inimigo e convencesse a ir embora, depois de
embriagado e enquanto o inimigo não chegou, ninguém iria condená-lo por tentativa de
homicídio, porque há ausência de tipicidade objetiva.
eeeeeeeeeee) Concluindo esse ato preparatório o sujeito se torna inculpável. Pode ser que
bêbado, decida matar. Há dolo, mas sua conduta será inculpável se a embriaguez for
completa.
fffffffffff) O desejo de embriagar-se para furtar não é dolo de furto. Há só desejo que pode se
tornar realidade ou não. Ninguém sabe o que você, mesmo bêbado, irá fazer. Na
embriaguez não há domínio do fato. Exemplo:
Queria matar o inimigo. Embriaga-se, fica alegre, o inimigo chega, e ele ao invés
de matar oferece a namorada que era o pivô da briga.
Na verdade, para a teoria da actio há culpabilidade sem tipicidade (embriagar-se
não é típica), o que é absurdo.
O que pode acontecer é que uma pessoa se coloque em estado de inimputabilidade
para cometer um crime. Aí é diferente. Estamos aqui diante da teoria do instrumento.
O cuidador de trocar os trilhos do trem se embriaga propositadamente para dormir
e não mudar os trilhos. A conduta é dolosa.
Estudaremos isto melhor na culpabilidade.

291 - O PROBLEMA DA EMBRIAGUEZ NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA


A embriaguez e o uso de tóxicos sempre existiu na humanidade e sua causa está
ligada a problemas individuais e procura de fuga da realidade, que para aquele pessoa deve
ser difícil.
No Brasil:
132

ggggggggggg) CP 1.890  estava em sintonia com o critério liberal clássico – livre arbítrio
e por isto responde. Adotou a actio libera in causa.
hhhhhhhhhhh) CP 1.940  O modelo foi o CP italiano, com tendência repressiva para
forçar a acumulação de capital. O bêbado era um perigo e deveria ser punido de maneira
exemplar. Adotou-se a teoria do versari in re illicita e estipulou-se inclusive medida de
segurança para o bêbado habitual.
E a Reforma da República Nova do CP, de 1.984?
iiiiiiiiiii) aboliu a embriaguez habitual e a medida de segurança;
jjjjjjjjjjj) manteve no art. 28 a mesma fórmula do art. 24 de 1.940, inclusive a agravação da
pena por embriaguez preordenada (art. 61, II, “l”).
A doutrina e a jurisprudência, na maior parte, entendem que é um caso de
responsabilidade objetiva fixada pelo CP e que deve ser obedecida como exceção legal, o que
é possível.
Numa visão realista e dogmática, a norma não pode ser interpretada isoladamente.
O art. 28, embora com a mesma redação do art. 24 do CP antigo, não faz parte do CP de
1.940, mas do CP de 1.984. Assim:
kkkkkkkkkkk) A responsabilidade objetiva viola o princípio da reserva legal – art. 5º, II;
lllllllllll) O CP de 1.984 contém expressamente o princípio da culpabilidade no art. 19.
mmmmmmmmmmm) Portanto, o art. 28 deve ser interpretado de acordo com o art. 5º e 19, o
que torna impossível a exceção.

Completa, fortuita
ou por força maior Exclui a imputabilidade
Embriaguez Exime de pena (dispõe a lei)
(infere-se da própria lei)
por álcool ou Incompleta
substância de
Voluntária Como se deve apenar? Em
efeitos Não exclui a
completa todos os casos se deve apenar?
análogos imputabilidade
Culposa São crimes dolosos ou
(dispõe a própria lei)
incompleta culposos? (a lei não esclarece)
Como não existem respostas às perguntas pela lei, elas devem ser dadas de acordo
com os arts. 18 e 19:
nnnnnnnnnnn) Embriaguez completa, voluntária ou culposa:
Quer o agente beba com vontade de ficar bêbado ou fique bêbado culposamente,
nos dois modos é “imprudente”, tanto pela finalidade, como pela maneira como procede.
Desse modo, por sua culpa, não pode mais controlar, conscientemente, seus atos posteriores.
Trata-se de crime culposo os danos que causar nesse estado. Se não causar dano a ninguém, a
conduta é atípica. Se causar dano, mas sem culpa, não há culpa.
ooooooooooo) Embriaguez completa voluntária para a prática de crime:
Não se aplica a teoria da actio, porque pune a título de responsabilidade objetiva.
A punição a título de dolo, de qualquer agente que embriague para cometer um
delito, violaria o princípio da legalidade.
O art. 61, II, “l”, do CP diz que é circunstância agravante “ter o agente cometido o
crime em estado de embriaguez preordenada”.
133

Não é a mesma coisa que embriagar-se para cometer um crime. Embriagar-se não
é tentativa de homicídio. Só será delito o embriagar-se quando for instrumento: a pessoa
responsável da estrada de ferro é um exemplo. Aí há a premeditação.

CAPÍTULO XXIII
OS TIPOS OMISSIVOS

I - NATUREZA DA OMISSÃO

292 - A OMISSÃO É UMA ESTRUTURA TÍPICA


ppppppppppp) Tipos ativos
 individualizam uma conduta proibida através de descrições, que podem ter
alguns elementos normativos. Ex.: art. 237.
 expressa-se por uma norma enunciada proibitivamente (não contrairás...)
qqqqqqqqqqq) Tipos omissivos
 individualizam uma conduta descrevendo a conduta devida. É proibida
qualquer outra conduta senão aquela. Ex.: art. 135.
 expressa-se por uma norma enunciada preceptivamente (preceito)
(auxiliarás...).
Ação e omissão são só duas técnicas diferentes para proibir condutas humanas:
uma proíbe fazer ou manda fazer.

293 - NÃO HÁ OMISSÕES PRÉ-TÍPICAS


Antes do tipo não há omissões, só ações. Isto é assim porque omissão não é um
puro não fazer, mas não fazer o que se deve fazer e este dever só poderá ser conhecido
enquanto não se chega à tipicidade.
Existem várias teorias que procuraram explicar a omissão, mas falharam no ver de
Zaffaroni.
A teoria adotada aqui é que há somente ações como única forma de conduta
anterior ao tipo. “Teoria do aliud agere”, “outro agir”, “do agir diverso” (daquilo que a norma
manda).
Quando se chega ao tipo, vemos que eles, obedecendo à norma, criam condutas
ativas, proibitivas, e outras omissivas, preceptivas.

II - A ESTRUTURA DO TIPO OMISSIVO OBJETIVO

294 - SITUAÇÃO, EXTERIORIZAÇÃO E POSSIBILIDADE


O tipo objetivo omissivo é um tipo circunstanciado, ou seja, há sempre a
descrição de uma situação. Ex.: art. 135. O agente encontra-se frente a uma pessoa que precisa
de auxílio. E o auxílio deve ser fisicamente possível. A lei não pode determinar nada
impossível.

295 - EQUIVALENTE TÍPICO DA CAUSAÇÃO


No tipo objetivo omissivo a conduta não causa o resultado típico.
134

rrrrrrrrrrr) A mãe que tricota meias ao invés de alimentar o filho, não causa a morte do filho
no sentido físico. A conduta tricotar causa meias e não morte. A morte é causada pela
inanição – processo causal independente.
No tipo omissivo não se requer um nexo de causação entre a conduta proibida
(distinta da devida) e o resultado, mas sim um nexo de evitação do processo causal. Existe
uma probabilidade muito grande de que a conduta devida teria interrompido o nexo causal.

296 - O AUTOR
O autor tem uma grande importância nesses tipos, e dá causa a duas
classificações:
sssssssssss) omissões impróprias  o autor pode ser qualquer pessoa que se encontre na
situação típica. Ex.: art. 135. São raros no CP.
ttttttttttt) omissões próprias  o autor é próprio. São crimes próprios. O autor tem de ser
determinada pessoa, que assuma a posição de garantidor. Ex.: art. 319.

297 - A OMISSÃO IMPRÓPRIA E SUA PROBLEMÁTICA


Os tipos de omissão imprópria são gerados por uma conversão do enunciado de
uma norma proibitiva (não matarás) em uma norma preceptiva (respeitarás a vida de teu
próximo).
Mas nesse caso a norma preceptiva tem um alcance muito largo. Ex.: quem nega
esmola a um faminto pode violar a norma respeitarás a vida de teu próximo.
Por isto buscou-se um modo de limitar esse alcance e a doutrina chegou à
conclusão que a limitação deveria vir de um círculo de autores.
Só são autores de condutas típicas de omissão imprópria aqueles que se encontram
na posição de garante, ou seja, que estejam obrigados a garantir especialmente a conservação,
a reparação e a recuperação do bem jurídico penalmente tutelado. Ex.: art. 314, 342 etc.
O problema é que, como os crimes culposos, nem todos os tipos de omissão
imprópria estão descritos na lei. Exemplo:
uuuuuuuuuuu) A mãe deixa o filho morrer de inanição. Não há tipo especial prevendo esta
conduta para homicídio. Poderia ser uma omissão de socorro.
São tipos abertos que o juiz tem de fechar, e aí se vai quase toda segurança
jurídica. A doutrina ainda pesquisa uma forma melhor de limitar esses tipos.

298 - AS FONTES DA POSIÇÃO DE GARANTIDOR


Como se coloca um sujeito na posição de garantidor? Quais são as fontes de que
pode surgir essa posição?
O art. 13, § 2º, do CP dá a resposta. O dever de agir...
Mas isto é só um indicador geral de que essas pessoas encontram-se em posição
de garantidores. É um critério relativo, que ainda necessita de muita depuração. Os tipos são
extremamente abertos.
vvvvvvvvvvv) Os pais são garantidores com respeito aos filhos – É mais simples.
wwwwwwwwwww) A enfermeira que se obriga a cuidar do enfermo – Também.
xxxxxxxxxxx) O guia que se obriga a conduzir com segurança os turistas – Idem.
135

Um problema maior surge na terceira modalidade: quem com seu comportamento


anterior, criou o risco de ocorrência de um resultado, que a doutrina chama de conduta
precedente do sujeito.
yyyyyyyyyyy) Quem induz a outro a um empreendimento perigoso, ficaria responsável por
sua segurança?
zzzzzzzzzzz) Quem causa culposamente um acidente de trânsito e abandona dolosamente
a vítima ferida na pista, fugindo, tendo outro assistido a vítima, salvando-a, pratica
tentativa de homicídio doloso por dolo eventual?
Esses problemas da tipicidade objetiva omissiva não estão resolvidos e são
assuntos para teses de doutorado. Resolve-se pelo bom senso e por tipos penais específicos no
caso do abandono da vítima de acidente.

III - O TIPO OMISSIVO SUBJETIVO: O DOLO NA OMISSÃO

299 - O DOLO OMISSIVO


No aspecto cognoscitivo o dolo requer “efetivo” conhecimento da situação típica e
a “previsão” da causalidade.
No caso da omissão imprópria requer também:
aaaaaaaaaaaa) que o sujeito conheça a qualidade ou condição que o coloca na posição de
garante (pai, enfermeira, guia etc.), mas não o conhecimento dos deveres que lhe
incumbem nessa posição;
bbbbbbbbbbbb) deve conhecer que lhe é possível impedir o resultado, isto é, do “poder de
fato” que tem para interromper a causalidade que desembocará no resultado.
Exemplo:
cccccccccccc) Salva vidas vê seu inimigo se afogando. Decide deixá-lo morrer afogado.
Há dolo de homicídio se:
a.1) há conhecimento de que a vítima está em perigo;
a.2) previsão de que a água lhe causará a morte;
a.3) conhecimento de sua condição de salva vidas;
a.4) conhecimento de que tem o poder de impedir que a água cause a morte. Não é exigível
heroísmo.
No entanto, há autores que dizem que na omissão não há dolo, e sim um
equivalente de dolo, pois não existe a causação do resultado na omissão. Ex.: tricotar meias
não causa a morte da criança. Por isto a finalidade não dirige a causalidade (crítica à teoria
finalista).
Zaffaroni diz que há finalidade nos tipos omissivos e nada muda com relação aos
demais tipos dolosos, porque, por exemplo, o resultado criança morta:
dddddddddddd) não se produz por acaso, mas sobrevêm de um processo causal;
eeeeeeeeeeee) o esquema da conduta já adotado explica essa situação:
b.1) a mãe se propõe a um resultado como finalidade;
b.2) representa o resultado (criança morta) e seleciona mentalmente os meios de alcançá-lo
(tricotar para deixar de alimentar);
136

b.3) para que se produza o resultado morte não precisa desencadear um processo causal
específico, basta deixar que continue avançando o curso causal que já está em funcionamento
(o bebê está com fome e sede).
A mãe tem o domínio causal e efetiva previsão da causalidade. O que é
fundamental para o dolo é a previsão da causalidade.

IV - AS OMISSÕES CULPOSAS

300 - A CULPA OMISSIVA


Basicamente a estrutura dos crimes culposos se aplica à omissão, normalmente,
com o componente violação do dever de cuidado. Exemplos:
ffffffffffff) Na apreciação da situação típica  alguém escuta gritos de socorro e não socorre,
acreditando se tratar de brincadeira.
gggggggggggg) Na execução da conduta devida  se atrapalha e joga gasolina e não água
para apagar o incêndio.
hhhhhhhhhhhh) Na apreciação da possibilidade física de execução  acha que não pode
salvar quem está se afogando, porque é muito fundo, mas não comprova o fato.

20ª AULA – 01/07/03

CAPÍTULO XXIV
A TIPICIDADE CONGLOBANTE COMO CORRETIVO DA TIPICIDADE LEGAL

I - A FUNÇÃO DA TIPICIDADE CONGLOBANTE

303 - REMISSÃO
Vamos rever os conceitos básicos da tipicidade conglobante:
iiiiiiiiiiii) o tipo legal é a manifestação de uma norma que é gerada para tutelar uma relação
de um sujeito com um ente, chamado de bem jurídico;
jjjjjjjjjjjj) a norma proibitiva dá lugar a um tipo (e permanece anteposta a ele);
kkkkkkkkkkkk) a norma não está isolada, mas permanece, junto com outras normas, também
proibitivas, formando uma ordem normativa. Por isto não se permite que uma norma
proíba o que outra ordena, ou fomenta. Aí seria só um amontoado caprichoso de normas
arbitrariamente reunidas;
llllllllllll) por isto a tipicidade penal não se resume à tipicidade legal. A tipicidade
conglobante corrige a tipicidade legal, no sentido de que pode reduzir o âmbito de
proibição aparente que surge se considerarmos isoladamente a tipicidade legal.
Veremos agora casos em que, apesar da tipicidade legal, configura-se uma
tipicidade conglobante.

II - O CUMPRIMENTO DE UM DEVER JURÍDICO

304 - NATUREZA
De acordo com o art. 23, III, do CP não há crime se a pessoa age em “estrito
cumprimento do dever legal”. Alguns autores consideram isto uma causa de justificação, mas
vimos que não é assim, porque:
137

mmmmmmmmmmmm) as causas de justificação são geradas a partir de um preceito


permissivo, enquanto no cumprimento de um dever jurídico há somente uma norma
preceptiva (uma ordem);
nnnnnnnnnnnn) quem não quer agir justificadamente pode não fazê-lo, porque o direito não
lhe ordena que assim o faça, mas simplesmente lhe dá uma permissão;
oooooooooooo) por outro lado, quem deixa de cumprir um dever jurídico, é punido porque o
direito lhe ordena que haja desta forma;
pppppppppppp) enquanto no cumprimento de um dever jurídico há uma ordem, na causa de
justificação não há sequer um favorecimento da conduta justificada, que só está justificada
como um gesto de impotência diante de uma situação conflitiva.

305 - COLISÃO DE DEVERES


A doutrina alemã traz casos difíceis em que afirma que colidem deveres de igual
hierarquia. Esses casos se resolveriam na culpabilidade, pela inexigibilidade de conduta
diversa, pois qualquer um dos deveres que escolha implicará que aja antijuridicamente contra
outro.
Zaffaroni diz que isto não pode acontecer, ou seja, não há colisão de deveres,
porque na ordem jurídica nunca há deveres de igual hierarquia. Se fosse assim o ordenamento
teria normas contraditórias.
Exemplos:
qqqqqqqqqqqq) Guardar segredo médico ou evitar uma epidemia;
rrrrrrrrrrrr) Atender o doente contaminado com doença contagiosa, ou avisar a autoridade
mais próxima para que tome medidas profiláticas;
ssssssssssss) Dirigir o trânsito ou guiar o idoso.
Se as vezes é difícil para a doutrina dizer qual o dever preponderante, imagine
para a pessoa no caso concreto. Se a pessoa escolhe o dever cujo cumprimento não é
preponderante, ocorrerá o chamado erro de proibição.
A doutrina afirma que há colisão de deveres e apresenta esse exemplo:
tttttttttttt) Um pai que, tendo dois filhos correndo igual perigo num incêndio, somente pode
salvar a vida de um deles. Nesse caso somente poderá agir inculpavelmente, pois qualquer
que seja sua atitude, omitirá salvar o outro e o dever jurídico em relação aos filhos é igual.
Zaffaroni fala que este é um caso de atipicidade, porque o pai só pode salvar um
dos filhos. Não pode haver omissão com relação ao outro, pois a tipicidade omissiva requer
uma possibilidade física, que nesse caso não existe. O dever do pai é salvar um dos filhos,
qualquer um deles e nada mais, porque mais lhe é impossível.
uuuuuuuuuuuu) Um comandante que para desviar o perigo de sua cidade, despista o
atacante, fazendo desviar o alvo para um pequeno povoado vizinho, que até aquele
momento não corria perigo algum. Também é caso de atipicidade.
Se o comandante não tivesse defendido a cidade agiria antijuridicamente e seria
punido. Portanto, está diante de um dever jurídico.
Aí alguém quer matar o comandante para salvar o povoado, achando que age em
legítima defesa de terceiros. Não age em legítima defesa porque não há permissão do
ordenamento para atacar quem age cumprindo com seu dever. Se, como quer a doutrina
alemã, a ação do comandante fosse só inculpável, a pessoa poderia agir em legítima defesa de
terceiros contra ele.
138

E se alguém da cidade, sem ter o dever jurídico de cooperar com o comandante


para desviar o fogo, coopera. Se a ação do comandante fosse só inculpável, o terceiro
cometeria um crime. Como é atípica, pois cumpre um dever jurídico, esse terceiro não pratica
crime.
E as pessoas do povoado que estão prestes a perder a vida, por causa da ação do
comandante em cumprimento de seu dever. Estas pessoas cometeriam um fato típico e
antijurídico, mas inculpável, pois não é exigido de ninguém que se deixe imolar. Se houve
concurso de pessoas com as pessoas da cidade, quem ajudou comete crime, pois a
inculpabilidade ampara só quem se encontra pessoalmente naquela situação.
São casos dificílimos, nos quais temos de esgrimir nossos conhecimento de teoria
geral.

306 - CONSEQÜÊNCIAS DE SUA NATUREZA


A afirmação de que o cumprimento de um dever jurídico afasta a tipicidade, por
efeito da correção da atipicidade conglobada, impede que cheguemos ao absurdo de afirmar
que um policial que detém um suspeito, comete uma privação ilegal da liberdade do
criminoso, justificada.

III - CASOS PARTICULARES DE ATIPICIDADE CONGLOBANTE DISTINTOS DO


CUMPRIMENTO DE DEVER

307 - ACORDO
Acordo é uma forma de aquiescência que configura uma causa de atipicidade. É
diferente do consentimento. É o exercício da disponibilidade que o bem jurídico implica. Se
posso dispor de meus bens jurídicos, posso fazer um acordo para dispor deles, sem que a
conduta do terceiro que ofende este meu bem seja típica.
Há formas de acordo que não são admissíveis, levando a doutrina a falar em bens
disponíveis e indisponíveis, o que é errado, pois isto é uma contradição. O que existe é uma
proibição de certas formas de acordo, particularmente porque não são racionalmente
compreendidas.
vvvvvvvvvvvv) Não é possível fazer um acordo para que alguém nos tire a vida.
wwwwwwwwwwww) É possível fazer um acordo para realização de atividades de alto risco,
como a participação em corridas automobilísticas. Portanto a vida não é um bem
indisponível.
Consentimento é também uma forma de aquiescência, mas se dá quando um
preceito permissivo faz surgir uma causa de justificação que ampara a conduta de um terceiro,
quando age com o consentimento do titular do bem jurídico.
xxxxxxxxxxxx) a pessoa que invade a casa de um vizinho para estancar um vazamento de
água que está causando infiltração e pode vir a derrubar o prédio = estado de necessidade.
Mas só pode fazer com o consentimento do dono da casa, que pode ser presumido.
Existem problemas não resolvidos com relação ao acordo, porque parece impedir
que pessoas gozem de seus bens jurídicos. Isto acontece principalmente nos delitos sexuais:
yyyyyyyyyyyy) manter relação sexual com uma pessoa etiquetada como alienada ou débil
mental é estupro. Isto quer dizer que a pessoa etiquetada não pode manter relação sexual
com ninguém, sob pretexto de tutela?
139

308 - AS INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS


Nas intervenções cirúrgicas o tipo legal é completo. O cirurgião tem o fim de
lesionar. Diz-se que o médico age acobertado por uma causa de justificação, mas isto não é
coerente, pois cirurgias com finalidade terapêutica são fomentadas pela ordem jurídica.
Como não pode existir uma norma que proíba o que outra fomenta, o problema
deve ser resolvido dentro da tipicidade. A atipicidade surge da consideração conglobada da
norma anteposta ao tipo de lesões, para isto bastando que se busque o “fim terapêutico”. Se
houver erro médico é caso de culpa.
Intervenções com fins terapêuticos são aquelas que perseguem:
zzzzzzzzzzzz) a conservação ou o restabelecimento da saúde;
aaaaaaaaaaaaa) a prevenção de um dano maior;
bbbbbbbbbbbbb) a simples atenuação ou desaparecimento da dor.
Quando se trata de intervenção mutilante, é necessária a autorização do paciente,
sob pena de punição administrativa e eventualmente penal, mas de delito contra a liberdade
(art. 146, § 3º, I), e não de lesões. Esta exigência é doutrinariamente discutida.
Mas existem intervenções cirúrgicas não terapêuticas:
ccccccccccccc) plásticas;
ddddddddddddd) extração de órgãos para fins de transplante (rins etc).
Aqui as lesões são típicas, mas estão justificadas dentro de certos limites –
legítimo exercício de uma profissão lícita –, ou seja, justificada sempre que o médico exerça
sua profissão dentro dos deveres regulamentares dele. Neste caso, há necessidade do
“consentimento” do paciente, sob pena de crime de lesão.

309 - AS LESÕES DESPORTIVAS


A atividade esportiva é fomentada pela ordem jurídica. Portanto, eventuais lesões
produzidas numa atividade esportiva, desde que o desportista respeite os limites
regulamentares, é penalmente atípica.
Normalmente a ação típica seria a título de culpa, e se não há respeito ao
regulamento, há lesão culposa. Só no boxe é que as lesões são dolosas, busca-se atingir certas
partes do corpo do adversário para deixá-lo fora de combate por no mínimo 10 ss. Se o golpe
for em região não permitida, teremos lesões dolosas e se causar a morte, crime preterdoloso.

310 - AS ATIVIDADES PERIGOSAS FOMENTADAS


Há muito tempo se observou que há um âmbito de risco permitido que não pode
dar lugar a delito. Alguns juristas querem que sua prática esteja dentro das causas de
justificação.
Zaffaroni faz a seguinte distinção:
eeeeeeeeeeeee) Práticas fomentadas  são atípicas, porque ficam foram da norma
proibitiva. Ex.: dirigir veículos pela via pública.
fffffffffffff)Práticas permitidas  são típicas. Não são fomentadas, mas permitidas por causa
de um desenvolvimento econômico necessário. Ex.: instalação de fábrica de explosivos. Se
causa acidente a conduta é típica. Pode ser justificada.
140

IV - A AFETAÇÃO DO BEM JURÍDICO COMO REQUISITO INDISPENSÁVEL DA


TIPICIDADE CONGLOBANTE

311 - DANO E PERIGO


A afetação de um bem jurídico é um requisito da tipicidade penal. Limita a
tipicidade legal.
Para que uma conduta seja típica é necessário que tenha afetado o bem jurídico.
A afetação do bem jurídico pode ocorrer de duas formas:
ggggggggggggg) por dano ou lesão  a relação de disponibilidade entre o sujeito e o ente
(bem) foi afetada, ou seja, impediu-se a disposição, seja de forma permanente (homicídio)
ou transitória (furto).
hhhhhhhhhhhhh) por perigo de dano ou lesão  a tipicidade requer que a relação entre o bem
jurídico e seu titular tenha sido colocada em perigo.
Os crimes de perigo tem acarretado problemas de interpretação:
iiiiiiiiiiiii) o perigo só pode ser valorado ex-ante, isto é, de um ponto de vista de um
observador situado no momento da realização da conduta, e não ex-post, na hora de julgar.
O perigo surge de uma incerteza. Depois da conduta não há incerteza.
jjjjjjjjjjjjj) perigo concreto e abstrato  Na realidade não há tipo de perigo concreto e
abstrato, mas crimes em que se exige a prova efetiva do perigo ao bem jurídico, enquanto
no abstrato há uma inversão do ônus da prova, pois o perigo é presumido com a realização
da conduta, até que o contrário não seja provado. Tem mais importância no processo.
Exemplo  porte ilegal de arma. Se presume o perigo. Cabe ao acusado provar
que a arma não funcionava, que não estava carregada etc.

312 - O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA


Há pouco tempo notou-se que não são todas as afetações de bens jurídicos que
atingem a ordem social de modo relevante. É preciso que essa afetação tenha uma certa
gravidade:
kkkkkkkkkkkkk) quem estaciona seu veículo grudado no meu, não comete um crime de
privação de liberdade;
lllllllllllll) quem dá presentes no final do ano a funcionários públicos não comete crime de
corrupção;
mmmmmmmmmmmmm) quem arranca um fio de cabelo não comete crime de lesão, não
afeta a minha disponibilidade com meu bem integridade física de modo relevante;
nnnnnnnnnnnnn) quem subtrai um palito de fósforo de uma caixa não comete furto.
A insignificância exclui a tipicidade, porque:
ooooooooooooo) toda ordem normativa persegue uma finalidade, tem um sentido, que é a
garantia jurídica para possibilitar uma coexistência que evite a guerra civil;
ppppppppppppp) a insignificância só pode surgir à luz da finalidade geral que dá sentido à
ordem normativa e, portanto, à norma particular infringida, e que nos indica que essas
hipóteses estão excluídas de seu âmbito de proibição, o que não pode ser estabelecido à
simples luz de sua consideração isolada.
Exemplo:
qqqqqqqqqqqqq) está se pegando o costume de não considerar furto pegar um chinelo do
Comper. Mas aqui há significância, pois se se permitir isto, vai virar uma guerra.
141

rrrrrrrrrrrrr)O furto de pequenos objetos de uma casa com o morador dentro é uma coisa, sem
o morador pode configurar insignificância.

V - EXCURSUS ESCLARECEDOR

313 - A TEORIA DA ADEQUAÇÃO SOCIAL DA CONDUTA


O DP só tipifica condutas que tem certa relevância social. Por isto, há condutas
que, por sua relevância social, não podem ser considerados delitos (Welzel).
Esta é a tendência da chamada teoria da adequação social: condutas que se
consideram socialmente adequadas, estão excluídas do âmbito da tipicidade. É uma teoria
também que pretende corrigir o tipo, mas diferente da conglobante, porque remete
diretamente à ética social, o que é perigoso – direito moralista.
Problemas:
sssssssssssss) é muito ampla pois não pode ser objetivada, gerando insegurança jurídica;
ttttttttttttt) remetem a ordem jurídica à ética social, o que é possível, pois os crimes culposos
assim também o fazem, bem como os arts. 216 e 234 etc. O problema é que só “adequação
social” é muito amplo, torna tipos muito abertos, amplia margem de discricionariedade,
diminui segurança jurídica.
A adequação social pretende corrigir o tipo a partir da ética social material,
enquanto a tipicidade conglobante procura corrigir o tipo a partir de uma concepção
normativa.

21ª AULA – 08/07/03

TÍTULO IV
A ANTIJURIDICIDADE

CAPÍTULO XXV
ANTIJURIDICIDADE E JUSTIFICAÇÃO

I - ANTINORMATIVIDADE E ANTIJURIDICIDADE

314 - ORDEM NORMATIVA E ORDEM JURÍDICA


A ordem jurídica é composta de uma ordem normativa, de normas. Esta ordem
normativa é composta de:
uuuuuuuuuuuuu) normas proibitivas;
vvvvvvvvvvvvv) preceitos permissivos.
O bem jurídico tutelado pelo tipo penal é só tutelado provisoriamente. Pode haver
casos em que, embora o tipo o tutele, a ordem jurídica o deixe de tutelar, através de um
preceito permissivo. Ex.: a vida da pessoa é um bem jurídico tutelado pela norma do art. 121.
Mas deixa de ser tutelado se existir uma norma permissiva.

315 - O CONCEITO GERAL DE ANTIJURIDICIDADE


A antijuridicidade não surge do direito penal, mas de toda ordem jurídica. Ex.: o
hoteleiro que vende a bagagem de um freguês pratica o tipo do art. 168, mas que não é
antijurídico porque o CC permite essa venda em determinados casos.
142

A antijuridicidade é o choque da conduta com a ordem jurídica como um todo, de


normas proibitivas e permissivas. Sua essência é a ofensa a um bem jurídico protegido pela
norma que se infringe com a realização da ação. Se não se ofende o bem jurídico, mesmo que
aparentemente o fato seja típico e contrário à norma, ele não é antijurídico.
Como fazemos para saber se uma conduta é antijurídica? Procurando em toda a
ordem jurídica se não existe um preceito permissivo. É um juízo bifásico: vemos se a conduta
é típica. Com relação ao bem jurídico vemos se não existe uma norma permissiva para lesar
aquele bem jurídico.

316 - ANTIJURIDICIDADE FORMAL E MATERIAL


A antijuridicidade só pode ter fundamento na lei, muito embora, nos casos
concretos, eventualmente se deva recorrer a valorações sociais. Neste aspecto é que se pode
falar em antijuridicidade material, e neste sentido, toda antijuridicidade é material, ou seja, o
fundamento é legal, mas a interpretação deve levar em conta valorações sociais do bem
jurídico ofendido. Um fato é antijurídico não só porque está em antagonismo com a norma
(formal), mas também porque lesiona ou põe em perigo o bem jurídico cuja relação a norma
dá proteção (material).

II - ANTIJURIDICIDADE OBJETIVA E SUBJETIVA

320 - ANTIJURIDICIDADE E INJUSTO


Vejamos primeiro a diferença entre antijuridicidade e injusto:
Antijuridicidade  é a característica que tem uma conduta de ser contrária à
ordem jurídica;
Injusto  é a característica de uma conduta de ser penalmente típica e
antijurídica. É a conduta típica já caracterizada como antijurídica.
Se é assim, o injusto não é só objetivo. Ele tem elementos objetivos e subjetivos.
Mas e a antijuridicidade?
wwwwwwwwwwwww) É objetiva no sentido de que se exige do juiz num caso concreto
objetive como chegou à conclusão de que aquela conduta estudada é antijurídica, ou
antinormativa, ou seja, houve a violação de uma norma jurídica e atingiu-se um bem
jurídico;
xxxxxxxxxxxxx) Toda causa de justificação implica num elemento subjetivo, a saber, a
finalidade de atuar amparado por ela, ou seja, de conduzir-se de acordo com o direito. Ex.:
a pessoa que atira no inimigo sem saber que naquele momento este iria matá-lo não age em
legítima defesa. Não basta a análise objetiva da legítima defesa. Se ele, no entanto, vê que
vai ser agredido pelo inimigo e atira primeiro para se defender, há dolo de legítima defesa,
muito embora possa ter ficado muito contente de matar o inimigo.
yyyyyyyyyyyyy) O elemento subjetivo é a vontade de se defender, na legítima defesa e nas
outras causas também tem. É assim porque o CP adota a teoria do injusto pessoal, ou seja,
o injusto tem de ser examinado de acordo com cada pessoa que o cometeu.

III - OS TIPOS PERMISSIVOS EM GERAL

323 - ESTRUTURA DO TIPO PERMISSIVO


A natureza última de todas as causas de justificação é o exercício de um direito.
Mas quais direitos? Aqueles referidos pelo art. 23. Esses exercícios de direitos dos tipos
143

permissivos não são fomentados pelo Estado, mas apenas concedidos ante a impossibilidade
de resolver a situação conflitiva de outra maneira.
E qual o fundamento comum a todas as causas de justificação? É a teoria do fim,
ou seja, a finalidade é que a conduta constitui o meio adequado para alcançar o fim de
convivência que o Estado regula.

326 - CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS PERMISSIVOS


Existem tipos permissivos ou causas de justificação que estão:
zzzzzzzzzzzzz) Na Parte Geral  arts. 23, 24 e 25;
aaaaaaaaaaaaaa) Na Parte Especial  justificação especial;
bbbbbbbbbbbbbb) Em toda ordem jurídica  são abarcadas pelo exercício regular de
direito do art. 23, III.

CAPÍTULO XXVI
LEGÍTIMA DEFESA

I - NATUREZA E FUNDAMENTO

327 - O FUNDAMENTO INDIVIDUAL E O FUNDAMENTO SOCIAL


A natureza jurídica hoje é inconteste: é uma causa de justificação, uma afirmação
do direito, uma excludente da antijuridicidade.
O problema é o seu fundamento.
cccccccccccccc) Fundamento de conservar a ordem jurídica  tem um conteúdo social.
dddddddddddddd) Fundamento de garantir o exercício de direitos  tem um conteúdo
individual.
Zaffaroni diz que o conteúdo é único e está no princípio de que ninguém é
obrigado a suportar o injusto. Por isto, a legítima defesa tem uma natureza subsidiária, na
medida em que há outro meio de prover a defesa de bens jurídicos não é aplicável o tipo
permissivo.

328 - NECESSIDADE E DEFESA


A legítima defesa surge de uma situação de necessidade, mas não se confunde
com o estado de necessidade.
eeeeeeeeeeeeee) No estado de necessidade se faz necessário um meio lesivo para evitar um
maior;
ffffffffffffff) No estado de necessidade deve ser feita uma ponderação dos males, o que se
causa e o que se evita;
gggggggggggggg) Na legítima defesa se faz necessário um meio lesivo para afastar uma
agressão antijurídica.
hhhhhhhhhhhhhh) Na legítima defesa não há ponderação de bens, porque uma das
agressões já é antijurídica.
A ponderação de bens na legítima defesa funciona só como corretivo, como
limite. Na Alemanha se fala em restrições ético-sociais à legítima defesa, no caso de agressão
de ínfima significância, ou proveniente de menores ou incapazes. Pode ser exercida a legítima
defesa, mas só na medida da necessidade. Fora daí sequer se fala em legítima defesa.
144

No nosso direito se trabalha com o excesso. A defesa deixa de ser legítima e passa
a ser ilegítima, excessiva:
iiiiiiiiiiiiii) Paralítico que vê uma criança entrar em seu quintal para furtar maças. Pega a
espingarda, único meio a seu alcance, e mata. É restrição ético-social ou excesso de
legítima defesa, por falta de moderação no uso dos meios.

II - CARACTERÍSTICAS DA LEGÍTIMA DEFESA

329 - BENS DEFENSÁVEIS


De acordo com o art. 25, a legítima defesa cabe para defender bens próprios e de
terceiros.
E defender qualquer bem, contanto que não exceda os limites da necessidade e da
moderação.
jjjjjjjjjjjjjj) De um bêbado barulhento de madrugada se defende com um balde d’água;
kkkkkkkkkkkkkk) No estacionamento colocando nosso carro na frente.

330 - A AGRESSÃO INJUSTA


llllllllllllll) Tanto a agressão, quanto a defesa, devem ser condutas. Desse modo, não há
legítima defesa contra o ataque a um animal. Contra esse ataque cabe estado de
necessidade.
mmmmmmmmmmmmmm) A agressão deve ser injusta. Não precisa ser típica.
nnnnnnnnnnnnnn) Deve ser intencional. Na culpa não há conduta final de agressão.
oooooooooooooo) Quem na legítima defesa atinge um terceiro, com relação a este age
em estado de necessidade ou simplesmente de forma não culpável. Ex.: joga uma granada
para se defender do inimigo e mata um terceiro, pratica um fato típico, antijurídico, ainda
que não culpável com relação ao terceiro. Isto quer dizer que o terceiro podia agir em
legítima defesa contra ele.
pppppppppppppp) Não existe legítima defesa contra legítima defesa.
qqqqqqqqqqqqqq) A agressão pode ser atual ou iminente. A atual está acontecendo. A
iminente quer dizer que o agressor pode levá-la a cabo quando quiser. Não é só requisito
temporal. Ex.: estou seqüestrado, ameaçado com uma pistola. Alguém gravou fitas para
depois me extorquir dinheiro. Posso destruir as fitas, muito embora não haja ainda crime de
extorsão.

331 - A QUESTÃO DA PROVOCAÇÃO


A provocação não é pressuposto da legítima defesa, portanto, só a provocação não
autoriza a reação em legítima defesa.
Ex.: o marido surpreende a mulher com o amante. É morto pelo amante em defesa
de sua vida.
rrrrrrrrrrrrrr) A agressão do marido não é injusta. Estava defendendo, mesmo que
imoderadamente, sua honra subjetiva.
ssssssssssssss) Acho que o amante pode defender-se legitimamente do excesso, mas neste
caso, com restrições éticas do direito de defesa: deu causa à agressão e por isto deve ser
muito mais cuidadoso. Não justifica matar. Há excesso.
tttttttttttttt) Zaffaroni diz que o amante pratica um homicídio culposo. Não tomou o devido
cuidado objetivo para ter relação sexual com a mulher.
145

332 - NECESSIDADE DE DEFESA


Para ser necessária, é preciso que aquele que se defende não estivesse obrigado a
realizar outra conduta menos lesiva ou inócua ao invés da conduta típica.
uuuuuuuuuuuuuu) De uma agressão a socos defende-se com uma metralhadora;
vvvvvvvvvvvvvv) Dos socos incertos de um bêbado, defende-se com um soco certeiro no
queixo que o fere gravemente.
Não há necessidade de uma defesa tão contundente. É caso de excesso ou de
restrição ética do direito de defesa.
Zaffaroni diz que é excluída a legítima defesa porque a ação não era necessária
para neutralizar a agressão. Mas havia agressão injusta, atual, e daí?

333 - MODERAÇÃO DA DEFESA


Não pode haver uma desproporção muito grande entre a conduta defensiva e a do
agressor, de modo que a primeira cause um mal imensamente superior ao que teria produzido
a agressão. Há um limite, um corretivo, que exclui a legitimidade da defesa no caso do
paralítico por exemplo e faz nascer o excesso.
wwwwwwwwwwwwww) Legítima defesa como defesa da propriedade é produto do
industrialismo. Antes era só para vida, integridade física, honra etc. Hoje, com a
valorização da vida da pessoa, é duvidoso que há moderação quando se mata um ladrão,
por causa da desproporção entre os bens.

336 - A DEFESA DO ESTADO


Pode se defender o Estado quanto a sua existência ou a existência de seus bens,
mas nunca o sistema político do Estado. Este é feito pelas instituições, no exercício regular de
direito.
Defende-se o Estado:
xxxxxxxxxxxxxx) defendendo os bens de uma praça pública, dentro da moderação;
yyyyyyyyyyyyyy) no caso de invasão, quando mesmo não sendo soldado, venho a matar
o invasor.

CAPÍTULO XXVII
OUTROS TIPOS PERMISSIVOS EM PARTICULAR

I - A REGULAÇÃO LEGAL DO ESTADO DE NECESSIDADE; JUSTIFICAÇÃO E


EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE

337 - A FÓRMULA LEGAL


Existem dois tipos de estado de necessidade:
zzzzzzzzzzzzzz) O justificante  quando a afetação do bem jurídico que se causa é menor do
que a que quer evitar, ou seja, quando o mal que se causa é menor do que aquele que se
evita.
aaaaaaaaaaaaaaa) O exculpante  o mal é igual ou superior ao que se evita.
146

II - O ESTADO DE NECESSIDADE JUSTIFICANTE

341 - CONCEITO
A ponderação dos males tem importância capital. Aquele que sofre mal menor,
embora não tenha cometido qualquer ato contra o direito, é obrigado a suportar o mal, porque
quem o infere está numa situação de necessidade.
bbbbbbbbbbbbbbb) A denuncia B, ao policial C, como sendo o suspeito que o policial
procurava, mas a denúncia é falsa. O policial vai prendê-lo. B só pode agir em estado de
necessidade na medida do estado de necessidade, ou seja, causando um mal ao policial
menor do que o que ia sofrer: empurra-o, foge etc. Não pode matar.
ccccccccccccccc) Dois náufragos disputam uma tábua de salvação. É estado de necessidade
exculpante, porque os bens são de igual valor. Nenhum terceiro pode socorrer um dos
náufragos, sob pena de cometer um delito.
ddddddddddddddd) Age em estado de necessidade justificante aquele que arranca uma
ripa da cerca do vizinho para defender-se de agressão.
O fundamento geral do estado de necessidade justificante é a necessidade de
salvar o interesse maior, sacrificando o menor, em uma situação não provocada de conflito.

342 - REQUISITOS DO ESTADO DE NECESSIDADE JUSTIFICANTE


eeeeeeeeeeeeeee) Perigo atual  O perigo deve estar ocorrendo e além disso não há outro
meio para evitá-lo. Ex.: é atual o perigo de morte de quem está enterrado pelo efeito de um
terremoto e derruba os muros para sair, porque havia menos possibilidade de que o socorro
chegasse a tempo, mesmo que a morte só viesse ocorrer vários dias depois. Não há nexo
temporal.
fffffffffffffff) Bem jurídico próprio ou alheio  Em bem alheio só se pode atuar com o
consentimento expresso ou presumido do titular. Ex.: ninguém pode entrar na casa do
vizinho para fechar a janela quando está chovendo para que a chuva não estrague seu
móveis.
ggggggggggggggg) O perigo não pode ser evitado de outro modo  É indispensável. Se
puder ser evitado de outro modo não há necessidade, nem estado de necessidade.
hhhhhhhhhhhhhhh) O perigo atual deve ser um mal maior do que aquele que se quer evitar
 Toma-se em conta a hierarquia dos bens em abstrato, tal como estão na Parte Especial
do Código. Ex.: pessoa, honra etc., na hierarquia constitucional etc. Obviamente que, se se
precisa salvar mil, matando um, não é estado de necessidade, porque a vida não tem preço,
nem como valorar.
iiiiiiiiiiiiiii) Não ampara a quem tem o dever de arrostar o perigo  Quem tem o dever legal
de enfrentar o perigo não pode alegar estado de necessidade, porque é dele o dever de ficar
e expor seu bem jurídico para ser consumido.
jjjjjjjjjjjjjjj) O reconhecimento da situação de necessidade e a finalidade de evitar o mal maior
 É o aspecto subjetivo desta justificadora.
kkkkkkkkkkkkkkk) O perigo atual não pode ter sido provocado pelo agente  É claro que
quem provocou um resultado típico. Senão não poderíamos socorrer quem houvesse
deixado o trabalho e passasse necessidade.
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III - O EXCESSO NAS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO

343 - O CONCEITO DE EXCESSO


Excesso significa passar dos limites. Para isto se requer que em determinado
momento você estivesse estado dentro de uma situação justificante.
lllllllllllllll) Na legítima defesa pode ocorrer na escolha de meios desnecessários ou no uso
imoderado desses meios = a reação se prolonga mesmo depois que cessou a agressão.
Quem age em legítima defesa quer o resultado, age dolosamente, o mesmo
ocorrendo no estado de necessidade. Se o sujeito, cessada a situação de legítima defesa ou
estado de necessidade, continua atuando, continua atuando dolosamente, ou seja, sabe que não
há mais uma situação de defesa, e mesmo assim segue agredindo, com dolo de agressão.
O problema está no excesso culposo. Neste, o agente acredita persistirem as
circunstâncias justificantes. Tratando-se de erro vencível – apreciação imprudente dos
requisitos da justificação – está presente o excesso culposo. A única explicação plausível para
o excesso culposo é que se trata de uma ação dolosa, mas que, aplicando-se a regra da 2ª parte
do art. 20, § 1º, a lei lhe impõe a pena de crime culposo.

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