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CURSO DE FORMAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Realização: Conectas Direitos Humanos e Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos


Apoio: PNUD-Brasil, SEDH e UNESCO
Período: 23 de agosto a 22 de novembro de 2006

2º Encontro: 06/09/06

2. Fábio Konder Comparato: Direitos Humanos no Brasil – prioridades e


perspectivas

O que significa uma formação em DH?


Toda parte da vida ética tem duas dimensões:
- Objetiva: leis, normas, organizações.
- Subjetiva: aperfeiçoamento da própria personalidade (virtude).
Para tratar de DH precisamos olhar para dentro de nós. Até que ponto somos
capazes de viver simbolicamente a vida dos outros? É preciso indignação e ternura,
termos noção das nossas deficiências, nossa incapacidade ética relativa. É um exame de
consciência social.
O respeito generalizado de DH depende de um ambiente social, que é formado por
costumes e organizações de poder.
Costumes: Não dependem de nós. São práticas de vidas, modos de vida, que
vêm de gerações e forma uma mentalidade social, a visão de mundo. Toda nossa
tradição, em matéria de costumes, é contrária ao respeito pelos DH. São quatro séculos
de escravidão, dividindo a espécie humana entre seres humanos superiores e inferiores.
Temos uma tradição individualista que vem de nossos ancestrais ibéricos.
Outro aspecto é o fato de não considerarmos desprimoroso vivermos de renda ou
favores. Os ibéricos achavam que o ócio com dignidade era a melhor posição social.
Enquanto em outras culturas receber um favor é algo que causa vergonha, para nós é
normal, costumeiro, e chegamos a reivindicar isso, em especial as populações mais
pobres. Em outras sociedades, o Bolsa Família seria considerado um desastre: as pessoas
querem trabalhar em lugar de receber dinheiro do governo. Isso tudo foi reforçado pela
civilização capitalista: obter o máximo de vantagens (não se trata de lesar o próximo, mas
de ganhar mais; concorrência; competição – para que trabalhar em comunidade).
Antigamente, as organizações de poder eram organizadas (tendiam ao rei, ao
sacerdote). Hoje, são anônimas, cederam a capitalismo (não sabemos quem manda).
No século XVII, Locke defendeu que o principal direito natural era o de resistência
à opressão, aos governos violentos, aos sistemas de coerção. Hoje, o sistema de poder
tem um aspecto brando, flexível, ele não se rompe. Como vamos mudar o Brasil? É
possível mudar só pelo sistema eleitoral? Temos um sistema que não muda: é uma
opressão branda (Ensaio sobre a Lucidez, de Saramago). No sistema econômico, a
redução do consumismo também é branda: jovens roubam porque são seduzidos pelo
capitalismo, pelo consumo.

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CURSO DE FORMAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Realização: Conectas Direitos Humanos e Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos
Apoio: PNUD-Brasil, SEDH e UNESCO
Período: 23 de agosto a 22 de novembro de 2006

Organizações de Poder: Também não são favoráveis à dignidade humana. Há


uma tradição inabalável: o privatismo. Poder respeitável é o poder privado. O poder
público só é respeitável quando sabemos quem está comandando.
Em 1627, Lisboa, foi publicado o primeiro livro de História do Brasil, de Frei Vicente
Salvador, que diz: "nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem
comum, senão cada um do particular".
Outra qualidade negativa das organizações de poder é o corporativismo: temos
lealdade para com a corporação a qual pertencemos. Todos são iguais perante a lei, mas
os magistrados são mais iguais do que os outros.
Até o regime militar, os DH só entravam na ordem política por pressão do
estrangeiro: escravidão só preocupava o governo e o imperador por pressão externa.
No regime militar, o governo só se preocupava com as torturas, os estupros
praticados no sistema penitenciário, quando isso repercutia no exterior. Com Paulo
Evaristo Arns, quando sabia dessas ocorrências, pedia que se divulgasse no exterior. Isso
só acabou com a Lei da Anistia. A grande massa da população incorporou esses
acontecimento como sendo naturais.
Após esse período, somente, a questão dos DH passou a fazer parte da agenda
política, mas de forma “ornamental” – vide a verba orçamentária dedicada ao Plano
Nacional de DH, em 2005: são R$ 150 Bi a serviço da dívida pública – a política de DH
equivale a 1 minuto desse montante.
Outro aspecto: a formação/capacitação do pessoal que trabalha na área de DH. Os
servidores do Estado são estatutários ou contratados. A política de contratação é anti-
estado e pró-governo. Há 25 mil cargos de livre contratação que deveriam servir ao
Estado, mas são servidores de governo, quando não, servidores de partido. O que
podemos fazer? Um curso de DH serve para isso, para esclarecer o que cada um pode
fazer.
A palavra “método” vem de ODOS (grego), que significa caminho. “Método”
significa qual é o caminho. Um método de reflexão que leva à ação é o método da ação
católica: ver, julgar e agir.
Ver: Como podemos enxergar a realidade brasileira sob o aspecto de violação dos
DH? Não podemos desconsiderar os dados estatísticos, porque se trata de ver uma
realidade muito ampla e complexa, que é o âmbito nacional. Mas é preciso ter uma
preparação para fazer a análise de dados estatísticos: raramente o servidor brasileiro tem
essa preparação.
Por mais exata que seja, a análise estatística tende a se desajustar da realidade,
visto que é como uma abstração, um conceito. A estatística é uma abstração, e a pessoa
que trabalha com DH deve ter empatia com o assunto, visto que deve ser dotado de
indignação e ternura. Aquele que não tem isso, não pode trabalhar com DH.
A escravidão brasileira persiste. É preciso fazer um trabalho de levantamento de
tudo o que não chega à polícia.

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Aí estaremos na metade do caminho. A partir daí é preciso mergulhar no inferno.


No sistema prisional, são raros os funcionários que já colocaram os pés dentro das
prisões. O inferno prisional é um mundo diferente, uma realidade diferente, onde as
pessoas expressam seus sentimentos reprimidos. Quanto mais presos houver, mais
criminosos estarão sendo fabricados. Com o tempo, os presos se curvam aos que
dominam a prisão, se adaptam, entram no jogo para se preservarem, não sofrerem
estupro e também porque têm esperança de um dia sair dali. Mas o mundo exterior não
oferece nada para quem sai da prisão. Então o ex-presidiário passa a ser um agente e um
dependente do sistema criminoso que está dentro da prisão. Em 3,5 anos, a população
carcerária passou de 109 mil para 143 mil. Isso é mostrado para a sociedade como um
sistema judiciário e prisional eficiente, que protege a sociedade, quando na realidade
estamos aumentando o número de criminosos.
Mas como reconhecer a realidade? Precisamos fazer caminhos laterais, para não
toparmos com obstáculos. Esses caminhos são as organizações comunitárias e os
movimentos populares, porque os caminhos diretos nos levam a sistemas fechados,
herméticos (autoridades). A relação desses movimentos com os governos é sempre
marcada pela sua subserviência ou pela busca de favores e posições privilegiadas. Todos
nós, no fundo, queremos uma posição privilegiada. Os movimentos populares, em geral,
cedem à essa tentação de estabelecer relações privilegiadas com o chefe do executivo, o
que faz com que eles percam, de certa forma, sua legitimação. Devemos tratá-los de igual
para igual: não somos superiores a eles; antes, eles são superiores a nós, já que estão
com os pés no barro e dormindo embaixo de lonas, quando nós estamos em nossos lares
confortáveis. Isso não significa tolerar violência. Precisamos caminhar lado a lado, pedir a
eles que nos ensinem como é o outro lado da realidade.
Julgar: Precisamos entender os mecanismos de perversão social, que é uma
invenção humana, foi criada, montada e organizada. Precisamos saber qual a estrutura e
as causas de perversão social. As causas são múltiplas e complexas, de variada natureza.
É preciso tomar cuidado com as simplificações. As pessoas de 14 a 24 anos são os que
demandam o mercado de trabalho: são 2 milhões e 300 mil que anualmente demandam o
mercado de trabalho. Desses, 65% não estudam nem trabalham. É óbvio que eles
precisam sobreviver, e sobreviver no lugar onde vivem. De que maneira eles irão
sobreviver? É um ato quase heróico que resistam as seduções do narcotráfico, para não
morrerem de fome, para sobreviverem.
Cerca de 54% dos nossos alunos de 4ª série não sabem ler nem escrever. Mais de
70% dos adultos são considerados analfabetos funcionais.
O policiamento ausente é outro fator de criminalidade. Mas a ausência está,
sobretudo, nos bairros mais pobres.
Outro fator é a violência e a corrupção dos agentes policiais, quebrando a
confiança que a população tem neles. Há um mau funcionamento do poder judiciário.
Precisávamos ter uma relação mínima necessária entre o número de juízes e o número da
população. Nenhum candidato às eleições faz referências ao poder judiciário.

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O racismo contra negros é conseqüência de 4 séculos de escravidão, de


miserabilidade. Os negros correspondem a 70% da população mais miserável.
Coincidência?
A degradação do meio ambiente vem da mentalidade do colonizador português: o
trópico é prejudicial ao homem, precisamos derrubar as árvores, o que vem em sentido
contrário à mentalidade indígena – as árvores são companheiras e indispensáveis, o meio
ambiente é condição de vida.
Portanto, não é fácil fazer um diagnóstico de violação constante de DH. O que
fazer diante disso? Encontrar um meio termo entre o iluminismo e a burocracia retórica.
Como encontrar esse justo termo? É preciso agir.
Agir: Se fizermos um levantamento estatístico justo e perfeito, uma análise correta
dos problemas sociais e não agirmos, não teremos feito nada. Para agir, toda a ação
pública deve ser planificada. É preciso um roteiro que defina setores prioritários de
atuação. Não é possível tratar de tudo ao mesmo tempo (quem muito abraça, pouco
aperta). Isso é uma decisão política e é preciso contar com o amplo respaldo da
população. É preciso definir os resultados a serem alcançados em determinado tempo. No
Brasil, tudo recomeça a cada quatro anos, mesmo em caso de reeleição, o que é um
defeito do nosso sistema político, da estrutura do Estado brasileiro. Não temos nenhum
órgão autônomo de planejamento, que cuide do longo prazo. Para chegarmos na posição
do Chile em sistema fundamental de educação, precisaríamos aumentar, em 10 anos,
mais 45 mil professores e 50 mil vagas na rede de educação.
Questionamento: Não seria uma visão globalista pensarmos o Brasil “apenas” como
um país mais justo, sem precisarmos compará-lo com outras realidades?
Precisamos de um plano que institua mecanismos de avaliação e controle.
Os próprios cidadãos precisam aprender a se defender. O brasileiro, em geral não
sabe o que é direito. Achamos que direito são vantagens, quando na realidade são
exigências. Portanto, se não são os próprios titulares dos DH que exigem, qualquer
política/plano não terá êxito. Temos que educar e formar as pessoas no sentido de que
um cidadão que não exige os seus direitos é não só inútil, mas também subversor.
Podemos formar a opinião pública, mostrando que a caridade deve ser o último recurso, já
que a caridade não dispensa a justiça. Se tivermos a justiça em primeiro lugar, tudo o
mais será dado por acréscimo. É infinitamente mais difícil criar empregos que distribuir R$
60/mês, porque criar empregos significa enfrentar as classes dominantes (o que seria um
suicídio para os políticos); criar empregos significa crescimento; sem crescimento não há
expansão de atividades empresariais; sem expansão das atividades empresariais, não
haverá expansão de empregos. Calcula-se que hoje haja 8 milhões de desempregados no
Brasil.
Um caso de sucesso: Jardim Ângela. Houve o estabelecimento da confiança com a
polícia. A polícia aprendeu que não pode começar batendo. Os próprios moradores
formam a sua segurança e a polícia dá apoio. Houve redução da maternidade precoce:
quase 20% das gestantes eram adolescentes, aumentando o risco de morte materna.

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Luta contra a Aids: o Brasil é considerado como o melhor exemplo de política e


combate à Aids, pela OMS.
Questionamento: As propostas de formação do cidadão em questões de DH
parecem estar mais voltadas para as classes mais pobres. Hoje, 1/3 da população
carcerária é formada por jovens das classes média e alta.
Falta garantia judicial mais específica para a questão dos DH.
Segurança Pública X DH: O Hábeas corpus diminuiu 90% dos casos de tortura no
Governo Geisel, porque era preciso apresentar o preso (corpo) ao juiz.
Nos campos da educação, previdência, saúde, educação seria preciso haver um
mandado de injunção que obrigasse os governos a atender os DH.
Porque os exemplo são sempre da “sociedade que deu certo”, o “Brasil Bonito” do
Jornal Nacional, e nunca do “Estado que deu certo”? A sociedade é mocinho e o Estado é
o vilão?
O “vilão” são os governantes que reforçaram os aspectos de omissão e ineficiência
do Estado Brasileiro. O “vilão” não é o funcionário público.
Outros dados:
- 70% dos tributos, no Brasil, são lineares. O faxineiro que compra um
refrigerante paga o mesmo percentual de impostos que paga uma pessoa da
classe A ou B: são os pobres que nos mantém.
- Precisamos saber quais são as causas da paralisia estatal, ao invés de
adotarmos o discurso neoliberal de que “sem Estado é melhor”.]A Argentina
perdeu 19% do PIB em 3 ou 4 anos. Hoje, cresce à taxa de 9% ao ano. A
Argentina decidiu parar de “sangrar” a população em prol dos credores
internacionais.

Brasília, 6 de setembro de 2006


Fábio Konder Comparato

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