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Contribuições de Cícero para a Política e o Direito Romano

            Influenciado pelas ideias de Platão, Cícero escreveu Da República, onde defende o modo
republicado de governo adotado em Roma. Pouco tempo depois escreveu De Legibus (em forma de diálogo
– outra influência platônica), onde apresenta noções de lei e justificativa para as leis existentes e praticadas
em Roma. Cícero não propõe a criação de uma nova legislação em De Legibus, mas defende as leis já
existentes. É a partir destas duas obras que vamos tratar das contribuições de Cícero para a Política e o
Direito Romano.
            A obra Da República, uma espécie de tratado político filosófico, aborda fatos do séc. I a. C.
concernentes as instituições republicanas em Roma. Cícero faz alusão a vários personagens da História
Romana, como Cipião Emiliano, Tuberão, Fúrio Filo, Quinto Múcio Cévola e vários outros. “Na obra, os
interlocutores dialogam entre si sobre os mais variados assuntos relacionados a questão republicana. O
período de tempo em que se passa o diálogo são as férias, no primeiro dia de festejo do ano 121 a.C., no
jardim duma villa suburbana de Cipião” (PARATORE, 1983, p. 213 apud TOLFO, 2017, p. 149). Dentre os
diferentes personagens se destaca Cipião: modelo da virtus, representado como símbolo do cidadão
romano ideal, político hábil.
O livro Da República está dividido em seis livros, no primeiro deles o autor faz uma defesa do amor pátrio,
afirmando que nada aproxima tanto os homens da divindade como a fundação e a conservação dos Estados. No segundo,
revisa a história romana e define o que entende ser o tipo do verdadeiro homem político. No terceiro, desenvolve o tema do
liTvro anterior e conclui que apenas a justiça torna possível o governo da República. Já no quarto livro aborda questões
acerca dos costumes gregos e romanos; no quinto tece o elogio da família e assegura que a verdadeira felicidade só se dá
através de uma perfeita constituição política, numa República sábia e organizada. Por fim em seu sexto livro (que durante
anos foi o único texto conhecido, sob o nome de O Sonho de Cipião) o autor defende o dogma da existência de Deus e da
imortalidade da alma (TAVARES, 2012, p. 43).

            A obra Da República aborda ainda a corrupção moral do estado romano e, por isso,
está permeada de questões ligadas à ética e à virtude. Ao constatar o corrompimento moral da sociedade
romana Cícero justifica a ideia de que o governante ideal deve ser dotado das capacidades necessárias para
o exercício do poder, que incluem a sabedoria e a autoridade.
            Adotando o pensamento dos filósofos que se debruçaram sobre as formas de governo,
como Platão e Aristóteles, e que tais formas de governo podem se corromper, Cícero analisa as diferentes
tipologias de governabilidade como a Monarquia (governo de um), a Aristocracia (governo de alguns
cidadãos) e a República (governo do povo), que podem se corromper transformando o tipo de governo,
como no caso da Monarquia que, embora possa representar um forma de governo justo quando houver
um rei justo, pode se transformar em uma tirania, quando “a autoridade do rei avança no sentido
antagônico da harmonia social, pois seu poder descomedido e despótico prevaleceria em relação ao bem
comum. Neste caso, para o autor, a monarquia é falha e indesejável, sendo então nomeada tirania”
(TOLFO, 2017, p. 154). Cícero, através do personagem da obra Cipião, elege a monarquia como a melhor
forma de governo, considerando que “é mais fácil a decisão partir de um só homem com valor, prestígio e
sabedoria, que possua as capacidades essenciais para tomar as melhores decisões, contrariamente às
divergências inatas em decisões em conjunto, seja numa aristocracia ou numa democracia” (TOLFO, 2017,
p. 157). “Em sua epístola Ad Familiares IX, II, 5, de 46 a. C., demonstra sua satisfação em ter escrito sua
obra sobre política e poder lê-la é um consolo” (BERNARDO, 2012, p. 54).

            A obra De Legibus “tem como inspiração Platão em aspectos que concernem às influências
filosóficas, à utilização da estrutura de diálogo [...] Essa obra era constituída por vários livros, mas apenas
três permaneceram conservados” (OLIVEIRA, 2013, p. 80-81).
            Devemos considerar antes de mais nada que o direito romano apresentou origens religiosas.
Um exemplo claro disto é que em determinada época os julgamentos eram feitos em recinto aberto, na
presença da estátua de uma divindade, geralmente a de Júpiter que, em certo sentido, presidia e verificava
o julgamento realizado pelos homens (GRIMAL, 1988, p. 91-95). Além disso, a construção do direito
romano era responsabilidade dos pontífices: uma espécie de sacerdote, cuja tradução do termo pode ser
entendida como construtores de pontes entre o mundo humano e o mundo dos deuses. Paulatinamente,
sobretudo a partir do séc. III a. C., o sacerdote-legislador foi cedendo lugar ao nobre-legislador e a
responsabilidade jurídica tradicional passou a ser de interesse dos nobres e aristocratas. Devido a sua
educação, recebida desde a infância, um nobre era um profundo conhecedor do direito, das leis e dos
costumes. Não que a questão religiosa tenha sido relegada a segundo plano mas nesse período a República
Romana assistiu a elaboração de uma intensa literatura jurídica que fez surgir os chamados  juristas
romanos, isto é, homens que se especializavam no conhecimento e na discussão das leis.
            É nesse contexto que podemos verificar algumas das principais contribuições de Cícero ao
direito romano. Cícero teve acesso a uma boa educação da qual fazia parte o estudo das leis e da
jurisprudência. Durante o seu exílio, Cícero teve de tempo de refletir e escrever sobre as instituições e os
costumes romanos e como figura pública foi um grande defensor das leis tradicionais.
          Em suas análises sobre a lei romana, Cícero se coloca dentro da tradição de uma ratio
naturalis (base do jusnaturalismo) que determina o que deve ser feito e o que deve ser evitado
(evidenciando de certa forma sua filiação ao pensamento dos estóicos). Filósofos e juristas romanos
questionavam se era mais apropriado o direito natural (justo por natureza) ou simplesmente uma justiça
baseada na lei. Na obra De Legibus Cícero discute questões ligadas ao direito natural, a justiça ideal e o
chamado direito positivo.
Não há dúvida quanto à importância de Marco Túlio Cícero para o desenvolvimento da filosofia do direito, ao
transmitir e discutir as doutrinas estóicas e a questão do direito natural. É de Cícero a definição do direito natural, na “De
Republica”: “Existe uma lei verdadeira conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável e eterna”. Para Cícero,
as leis naturais de inspiração divina, observadas em quase todas as nações, permanecem sempre firmes e imutáveis,
enquanto as leis dos homens costumam mudar de cidade para cidade, sob influência dos governantes ou por causa de leis
posteriores (VALÉRY, 2011, p. 99-100).
            Para o eclético filósofo, há uma lei não escrita, acima dos homens, cujo inventor,
sancionador e publicador é Deus e o direito natural é sua expressão, gravada nos corações humanos, que
ensina o bem e nos afasta do mal.
De um lado, tem-se o direito natural, universal em duplo sentido: universal por ser comum a todos os homens e
povos, e universal porque determina o que sempre é bom e justo. Do outro lado, o direito positivo romano (ius civile)  que se
refere ao útil, e por isso é peculiar de cada povo e diferente em cada um deles, já que o útil varia no tempo e no espaço.
Assim sendo, o direito proveniente da naturalis ratio recebeu a denominação de ius naturale (enquanto direito comum a
todos os homens) em complementação ao ius gentium (enquanto direito próprio e especifico dos homens) (VALÉRY, 2011,
p. 101).
            O livro II da obra De Legibus representa a perspectiva do direito romano em relação com a
perspectiva religiosa, em outras palavras, discute as leis religiosas que estão diretamente relacionadas com
a lei natural “na qual o pensamento sobre os deuses e o que estes ordenaram na esfera religiosa é
constituído a partir do ponto de vista da razão humana” (OLIVEIRA, 2013, p. 81).
 
O Dever Moral para com a República
            Ao defender o sistema republicano como a melhor forma de governo, Cícero entende que
essa República deve ser aquela fundamentada nos valores tradicionais romanos, na reta razão e em valores
morais que devem ser seguidos com determinação, a autocontrole e dever. O melhor uso que se pode fazer
da virtude é aplicando-a na República, convertendo a teoria em prática, as palavras em obras. O cidadão
cumpridor de seus deveres é aquele que aplica tais princípios na República. Por isso o dever tem uma
importância fundamental para o filósofo que dedicou um livro ao tema: Dos Deveres.
Escrita numa época de crise política, logo após o assassinato de Júlio César em 44 a.C., Dos Deveres constitui a
última obra filosófica de Cícero, na qual ele formula os valores políticos e éticos da sociedade romana, a partir de seu ponto
de vista de homem de Estado (CONEGLIAN, 2012, p. 70).
            A obra Dos Deveres (De Officiis) foi escrita para o seu filho Marcus, para lhe transmitir os
valores necessários para uma vida pública e fazê-lo consciente dos valores romanos, enfatizando os valores
morais no contexto social e político. “Dos Deveres é considerado um valioso resumo da ética antiga, ou
seja, dos preceitos e deveres que fizeram a grandeza do povo romano, traz, na sua essência, os eternos
princípios que restauram o pensamento e a fé nos destinos da humanidade” (ARANTES, 2002, p.
13 apud CONEGLIAN, 2012, p. 71).
            Nesta obra são claras as influências estóicas no pensamento do filósofo romano, em
particular a ética estóica, como a ideia de que as paixões (pathos) devem ser eliminadas, de uma lei natural
de onde provém a obrigação da consciência humana e pela inspiração do Tratado dos deveres do filósofo
estóico Panécio de Rodes que o levou a escrever a obra. Como afirma Cabañero (1981, p.
331 apud CONEGLIAN, 2012, p. 71), Cícero “sígue sobre todo a Panecio y Posidonio, pero según confesión
propria también ha elaborado su doctrina y la presenta según fórmulas y modulos proprios. En
consecuencia el tratado por ideas, sentimientos y carácter es una obra enternamente nacional”.
            Os deveres para com a vida pública inclui valores como a honestidade, a sabedoria, a justiça,
a firmeza e a moderação. Por outro lado o cidadão virtuoso deve se afastar do luxo, das riquezas, da
ganância, da inveja.
Cícero apresenta-nos os deveres como sendo a face imprescindível das virtudes, e delas decorrentes. Seus
ensinamentos sobre os deveres, apesar de se aplicarem a vida como um todo, destina-se principalmente ao homem, aquele
que ciente de seus deveres para com a sociedade, seria capaz de reverter o caos moral em que os cidadãos romanos se
encontravam (CONEGLIAN, 2012, p. 71).
            Ampliando o leque de discussão em torno da virtude, Coneglian (2012, p. 81) como podemos
dividir as virtudes em quatro grupos no pensamento de Cícero:
1) virtudes centradas na verdade, como a sabedoria, a prudência, a indagação e a invenção da verdade. 2) virtudes
sociais, que visam a justiça. 3) virtudes centradas na grandeza e fortaleza próprias da coragem sublime e invicta. 4) virtudes
do grupo da ordem e da moderação, qual a modéstia e a temperança.
            A virtude do conhecimento e da sabedoria dizem respeito ao aspecto teórico e ajudam o
indivíduo a discernir no que diz respeito a tomada de decisões para se levar uma vida boa e feliz. Neste rol
se inclui também a prudência. Mas apesar de seu aspecto teórico, a sabedoria não pode descurar do
aspecto prático e deve se voltar para a vida em comunidade. É preciso dedicar tempo aos estudos e à
aquisição do conhecimento, pois só assim se alcança a sabedoria e a verdade. Mas a grandeza da alma se
manifesta com maior dignidade na res publica e, aos sábios, deverão ser confiados os cargos das
magistraturas e de governo.
            A virtude da justiça é sumamente importante para a vida em comunidade pois é ela que
determina o comportamento social. A obrigação de ser justo tem implicações civis e sociais pois ser justo
leva à justiça na organização da república.
            Finalmente encontramos na obra, Dos Deveres, exemplos tirados da própria história de
Roma e também entre os povos gregos, a partir dos quais Cícero pretende transmitir ao seu filho e, por
conseguinte, aos leitores de sua obra, os valores pelos quais devem pautar suas ações. “Com o intuito de
ajudar a instruir seu filho, bem como a juventude romana, Cícero esclarece que têm em mente aqueles que
precisam decidir sobre seu próprio modo de vida, e aprender a partir da advertência e exemplo de um
homem mais velho” (CHIAPETA, 1999, p. xviii apud CONEGLIAN, 2012, p. 86).
 
Referências Bibliográficas
ARANTES, Altino. Introdução. In: CICERO. Dos Deveres. São Paulo: Martin Claret, 2002.
BERNARDO, Isadora Prévide. O De Re Publica, de Cícero: natureza, política e história. Dissertação (Mestrado em
Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
CABAÑERO, José Guillen. Heroe de la libertad – vida politica de M. Tulio Ciceron. Vol. II, Salamanca: KADMOS,
1981.
CHIAPETA, Angélica. Introdução. In: CICERO. Dos Deveres. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
CONEGLIAN, Stella Maris Gesualdo Grenier. Dos Deveres de Marco Túlio Cícero e o processo formativo do cidadão
romano. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de
Maringá, Maringá-PR, 2012.
CRETELLA JUNIOR, José. Curso de Filosofia do Direito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
DONINI, Pierluigi; FERRARI, Franco. O exercício da razão no mundo clássico: perfil de filosofia antiga. Tradução de
Mara da Graça Gomes de Pina. São Paulo: Annablume Clássica, 2012.
GRIMAL, Pierre. A Civilização Romana. Lisboa: Setenta, 1988.
OLIVEIRA, Isadora Buono de. Marco Túlio Cícero: possibilidades de fontes sobre as concepções discursivas religiosas
romanas no século I a. C. Revista História e Cultura, v.2, n.3 (Especial), p.79-93, 2013. Acesso em 15 jan. 2019.
PARATORE, E. História da literatura latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1983.
PEREIRA, M. H. R. Estudos de história da cultura clássica. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. Vol.
II.
TAVARES, Júlia Meyer F. A Filosofia da Justiça na obra de Marco Túlio Cícero. Dissertação (Mestrado em Direito).
Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2012.
TOLFO, Thiago. Considerações sobre a República Romana na obra  De Res Publica de Marco Tulio Cícero. Revista
Expedições: Teorias da História e Historiografia, v. 8, n. 3, p. 146-158, set./dez. 2017. Acesso em 14 jan. 2019.

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POLÍTICO DA IDADE MODERNA
1. O pensamento Político da Idade Moderna
1.1. O Renascimento e as ideias políticas
Entre os meados e fins do século 15 entra-se numa nova fase da história da Europa – a fase do
renascimento que dá inicio a chamada Idade Moderna.
Nesta idade, há uma forte atenuação do espírito religioso global e envolvente que marcou a Idade
Média e uma clara acentuação do humanismo e dos valores profanos, num quadro geral de
restauração da cultura greco-romana e de ruptura com a Idade Média. Tudo que é humano passa a
ser mais importante que o divino. Como escreveu Pico della Mirandola “nada é mais admirável do
que o homem”[1]
Neste período contrariamente a Idade Média vai-se consolidar a supremacia do poder civil sobre o
poder eclesiástico.
Dá-se a centralização do poder real e a afirmação do Estado Soberano. É o fim do feudalismo, dos
poderes senhoriais, corporativismos e eclesiásticos.
É neste período que nascem as grandes monarquias europeias, os Reis Católicos em Espanha, D.
João II em Portugal, os Tudors em Inglaterra e o absolutismo real em França culminando no  l’ Etat
c’ est moi  de Luís XIV. É o primado da política sobre a moral.  O monarca desliga-se, cada vez
mais, de vínculos de carácter religioso, para se guiar por motivações estritamente
políticas (politique d’abord, em vez de morale d’abord).
Nesta época os descobrimentos portugueses foram muito importantes,   com as descobertas vêm o
progresso das técnicas e da mentalidade cientifica, nasce o capitalismo moderno, primeiro o
comercial e só depois o industrial.
É nesta fase também que se inicia a Reforma Protestante, seguida de Contra-Reforma,
acontecimento que dividirão a Europa cristã em dois grupos, o dos cristãos e protestantes, grupos
que se confrontarão em “guerras religiosas”.
O Renascimento foi um período importante, e como escreve Cabral Moncada “depois da Grécia e
depois do Cristianismo, nenhuma outra revolução na história do espirito europeu teve
consequências tão transcendentes como o Renascimento.[2]
O primeiro autor desse período que iremos analisar é Nicolau Maquiavel.

1.2. Secularização, humanismo e Estado em Nicolau Maquiavel.


A importância de Maquiavel na história do pensamento político reside exactamente em ter posto
isso em evidência, desmistificando o fenómeno do poder político. A luta pelo acesso a essa
capacidade suprema, pela sua manutenção e seu uso, define todo o fenómeno central da política[3].

Em Il Príncipe (escrito em 1513 e publicado em 1532) [4], o grande objectivo do autor é, diz
Maquiavel, aconselhar o Príncipe, sobretudo – diz – sobre o modo de adquirir e conservar o
poder[5].

Uma interpretação da natureza humana

A natureza humana caracteriza-se, segundo Maquiavel, por uma contínua busca, pela sua
conquista, conservação e expansão do poder.  Escreve, a este respeito: «O desejo de conquistar é
uma coisa muito natural e comum, e sempre que os homens que o puderem o fizerem (conquistas)
serão louvados por isso, ou (pelo menos) não serão censurados»[6].

De certa forma, é ao nível do Estado – seja na luta pela conquista do Estado, seja na esfera de poder
e nas relações de poder entre os Estados – que este carácter expansivo e agressivo da natureza
humana ganha maior relevo.
Oiçamos ainda Maquiavel: «como é minha intenção escrever coisas proveitosas para aqueles que as
entenderem, parece-me mais conveniente ir direito à  verdade efectiva do assunto do que os
desvarios da sua imaginação (daquela que se projecta sobre os assuntos políticos). Alguns
imaginaram repúblicas e principados que nunca foram vistos nem conhecidos por verdadeiros. É tão
grande a diferença entre a maneira como se vive e a maneira como se deveria viver que quem trocar
o que se faz pelo que se deveria fazer aprende mais a perder-se do que a salvar-se, pois quem quer
viver exclusivamente como homem de bem não pode evitar perder-se entre tantos outros que não
são bons. Portanto, é necessário a um príncipe que queira manter a sua posição aprender a poder
não ser bom, e a servir-se ou não disso de acordo com a necessidade»[7].

A partir daqui, podemos identificar, para o nosso estudo, três aspectos essenciais do pensamento
político de Maquiavel: (a) utilitarismo; (b) a importância da observação no estudo da política, ou,
noutros termos, a natureza empírica do pensamento político  (MRS:50); e (c) o realismo político.
Vejamos cada um deles.
a) utilitarismo

A reflexão política de Maquiavel «é essencialmente pragmática, visa ser útil para a acção,
num mundo «tal como ele é e não como deveria ser» (VSM: 27). Ou como o autor muitas vezes
refere, a «verdade efectiva do assunto» (veritá effectuale della cosa).[8]
«O alvo da acção subordina os métodos». Como diz o autor, a inflexibilidade doutrinária ou de
qualquer outro tipo, deverá ser recusada, na medida em que ela pode restringir os meios a usar para
atingir com êxito o objectivo visado (VSM: 27). O que leva, as mais das vezes, à acusação que lhe é
feita de que para ele todos os fins justificam os meios.[9]

b) A natureza empírica do pensamento político

Maquiavel adopta «um método científico de observação dos fenómenos políticos, em resultado dos
quais vai procurar estabelecer as leis naturais da política» (FLB: 61).

De facto, a partir de Maquiavel «a reflexão política passa a estar situada no plano empírico-técnico,
e não no horizonte da procura de aplicação de um desiderato normativo-ideal»; «a própria noção de
Estado de que serviu para designar a comunidade política ou a república, como algo de particular e
concreto (“stato”), foi ele que a introduziu».

c) o realismo político como princípio de orientação

O texto que acabámos de ler «situa-se claramente na zona dos paradigmas clássicos da  Realpolitik».
O autor parte, como vimos, do postulado de que, «quem trocar o que se faz pelo que se deveria
fazer, aprende mais a perder-se do que a salvar-se», ou seja, aqueles que no universo da luta política
se guiam apenas por normas éticas, por uma ideia de bem, estão inevitavelmente condenados ao
fracasso, a caminho da morte (seja ela física, como muitas vezes era na altura do nosso autor, mas
pelo menos política).

E portanto, na arena da política, «a moral não só é irrelevante como é, geralmente, inimiga do seu
sucesso. A sabedoria política torna-se uma correcta avaliação dos meios e fins».

A razão de Estado

Uma «razão de Estado», sem quaisquer limites para a ética cristã, ocupa um plano central no
pensamento deste nosso autor. «Ao contrário dos seus sucessores jusnaturalistas, Maquiavel – com
a ligeira excepção de algumas reflexões patentes nos Discorsi – não elaborou uma doutrinada
origem e formação do Estado. Toda a sua obra dá como adquirida uma certa forma de realidade
institucional de âmbito estatal, cuja tomada e conservação é considerada o objectivo e a fonte de
onde emana o poder político.

Do conjunto de recomendações e conselhos ao Príncipe, «deriva toda desse manancial comum que
consiste na identificação de uma esfera última de fundamentação que é a do interesse do Estado
como interesse fundamental, i.e., a razão de Estado».
A esse propósito, escreve Maquiavel: «Se um príncipe tiver o propósito de vencer e de manter o
Estado, os meios utilizados serão sempre tidos por honrosos e louvados por todos, pois o vulgo só
julga pelo que vê e pelos resultados. Ora, neste mundo só existe o vulgo[10]…»[11].

Organização do poder político (os regimes políticos)

Maquiavel considera não interessar apurar se um governo é ou não tirânico, mas apenas se é ou não
eficaz (mais tarde, Hobbes, dirá apenas que a tirania é «um nome dado às monarquias impopulares:
“com efeito os que estão descontentes com a monarquia chamam-lhe tirania”»).

Maquiavel classifica os regimes da seguinte forma:


a) Principados (diríamos hoje, Monarquia), em que a soberania reside numa pessoa; e
b) Repúblicas, em que a soberania reside num conjunto de pessoas. Que por sua vez podem ser:
aristocráticas (governadas pelos nobres); ou populares (governadas pelo povo)[12].

Assim, rejeita, não só, a tripartição clássica, como a valoração qualificativa (legitimidade de


exercício), características dos modelos anteriormente descritos, diferentemente daquilo que
estudámos desde Platão a Aristóteles, de S. Agostinho a S. Tomás de Aquino.

 Em Maquiavel, não há formas de governo boas ou más, sãs ou degeneradas, justas ou injustas. Há,
sim, umas mais convenientes do que outras, segundo as circunstâncias. De um ponto de vista
qualitativo, o único critério é o do sucesso político, o da manutenção do poder. Mau príncipe é
aquele que não chega ao poder, ou que o perde a curto prazo. O que significa que o critério decisivo
é o da conveniência política e não o critério moral.[13]

Principais inovações de um ponto de vista do objecto da ciência política e do seu método:

Na lógica presidente de que os fins justificam os meios, pode o príncipe (como vimos) ter de usar
métodos imorais para manter o poder. A partir de Maquiavel forma-se uma tradição filosófica que
entende ser o poder o objecto da política, tal como o definimos na nossa primeira aula.

A importância de Maquiavel na história do pensamento político reside exactamente em ter posto


isso em evidência, desmistificando o fenómeno do poder político. A luta pelo acesso a essa
capacidade suprema, pela sua manutenção e seu uso, define todo o fenómeno central da política[14].

Como corolário disto, a separação da política da moral e da religião : numa atitude percursora do
positivismo, expulsa da política a metafísica, separa radicalmente a cidade de Deus da cidade dos
homens e torna assim o conhecimento desta, dependente apenas da razão humana.
De um ponto de vista metodológico, em duas palavras: rigor analítico, ou seja, a descrição de uma
realidade política, ainda que vergonhosa, como ela é, em vez de uma virtualidade ideal.

1.3. Jean Bodin: a invenção do conceito de soberania.


Vejamos a nossa Constituição no seu artigo 1.º, o legislador constituinte dispõe que: «A República
de Moçambique é um Estado (independente e) soberano…»[15].
A ideia nova que Bodin traz para o pensamento político, a ideia central da sua obra ( Les Six Livres
de la Republique, 1583) e na qual vamos centrar a nossa atenção é, precisamente,  o conceito de
soberania [16].

E aqui é necessário que tenhamos em mente que o modelo de Estado que então predomina na
Europa é o Estado monárquico. E que quando se fala nesse tempo em soberania se está a falar,
obviamente, em soberania do Rei. O conceito de soberania popular vai-nos aparecer bastante
mais tarde. E, portanto, o que está em causa, para o nosso autor, é saber  qual a natureza dos
poderes que pertencem ao monarca, ao «soberano». Em que é que se traduz a soberania? Nas
palavras de Bodin, «a soberania é o poder absoluto e perpétuo».

Comecemos pelo segundo aspecto: um poder perpétuo.

Bodin entende que um poder perpétuo é um poder  irrevogável. Ora esse poder só é irrevogável se
for originário, se não tiver sido transmitido por nenhum outro poder, caso em que seria um
poder delegado, e, como tal, revogável.

E, a partir daqui, podemos fixar os primeiros quatro atributos essenciais do conceito de soberania
(já falaremos do 5.º atributo…):
a) a soberania é originária (é própria e não delegada);
b) o que significa que é irrevogável (estabilidade política);
c) o que significa ainda, por isso, que é perpétua (fundamento da hereditariedade como fundamento
do poder político);
d) consequentemente, essa soberania é suprema (um poder que não tem que admitir qualquer outro
acima dele).[17]

Bodin aborda aqui toda a problemática que vimos em aulas anteriores, quando nos referimos às
doutrinas da origem do poder real, pondo assim em causa as doutrinas que o soberano recebia o
poder das mãos do Papa, ou do povo. E assim,  deixa de ser um poder delegado, e como tal
revogável. O fundamento do poder real passa a ser o da hereditariedade.
O que significa, desde logo, uma ruptura com o ordenamento medieval dos poderes . Consiste na
consciência adquirida de que não seria possível manter, de uma forma pacífica e harmoniosa, aquele
tipo de ordenamento, que agora para se salvar e ultrapassar as situações de conflito, necessita de
admitir no seu interior a presença de um poder de natureza distinta (dos restantes), de um poder
originário e por isso, de um poder soberano.

O outro aspecto que a soberania deve revestir é a de ser um poder absoluto.


Isto não significa que não tenha limites. Pelo contrário, neste aspecto, Bodin mantém uma certa
ligação à tradição medieval:
a) A distinção entre Rei e Coroa, determina a impossibilidade de modificar as leis de sucessão ;
e de alienar os bens integrantes do tesouro público;
b) Em segundo lugar, ainda mais importante,  a existência de um direito profundamente radicado
nas coisas e nos bens que regula a sua propriedade: dos indivíduos, das famílias, das comunidades
rurais ou urbanas (Fioravanti:74);
c) Por fim, esse poder soberano exprime-se através do  poder legislativo, ou seja, o poder de fazer
leis e de as revogar (uma alteração importante face à prevalência do costume que caracterizava a
Idade Média).[18]

Deus está acima de tudo e surge, para Jean Bodin, como o fundamento do  comportamento moral
de todo o homem. As leis devem estar de acordo com a natureza. O soberano deve submeter-
se tanto à lei divina, como à lei natural (auto-limite/hetero-limite).

Em que é que consiste, então, esse poder absoluto?


Numa primeira análise implica, sobretudo, «dar ordens sem nunca as receber». Mas significa, acima
de tudo, que numa comunidade política bem ordenada, que realmente aspira a evitar o
conflito e, sobretudo, o perigo da sua dissolução, existem prerrogativas e poderes (v.g., o poder
legislativo; o poder de declarar a guerra e firmar a paz; o poder de decidir em última instância sobre
controvérsias entre os súbditos; o poder de nomeação dos magistrados; ou o poder de lançar
impostos), que não podem ser objecto de convénios, que não podem ser partilhados . Ou seja, o
carácter absoluto do poder soberano consiste, justamente, neste quinto atributo, na sua
indivisibilidade. Em conclusão, «se a primeira marca da soberania consiste em dar lei aos súbditos,
o soberano não pode estar sujeito, em caso algum, a recebê-la da parte daqueles a quem as dá. Caso
contrário, estar-se-ia a minar a própria possibilidade da relação que se estabelece entre soberano e
súbditos».

1.4. Estado e cidadania em Thomas Hobbes.


Em Maquiavel, a preocupação central do autor tinha sido, como vimos, o da « ligação entre o
estudo do poder, das suas estruturas e problemas  (o modo de aquisição e conservação do
poder); com uma (particular) interpretação da natureza humana» (pessimismo antropológico).
Diferentemente, Hobbes, vai confrontar-nos, sobretudo, na sua obra principal –  Leviathan (1651) –
com uma profunda e original «reflexão sobre a génese e a natureza do poder» , mais
concretamente, com a origem e as características do poder do Estado.

No que concerne ao objecto da política, é de realçar os contributos recebidos «do realismo de


Maquiavel, da teoria da soberania absoluta de Jean Bodin e da concepção contratualista do estado
de Hugo Grotius».

«Não obstante adoptar uma análise realista da vida política concreta, seguindo neste aspecto
uma postura metodológica próxima de Maquiavel, Hobbes parte de uma visão muito pessimista
sobre a natureza humana, encontrando no Estado, enquanto expressão de um contrato social
que envolveu a alienação para um soberano do direito de cada homem se governar a si
próprio, a solução para a paz e o bem comum de uma  colectividade que, vivendo no seu “estado
de natureza”, se destruiria. O Estado é, deste modo, a única salvaguarda do indivíduo».
Enquadramento histórico-político das obras:
«a) A persistente resistência do Estado feudal, das ordens, com a sua legislação fragmentária e
particularista.
b) As longas e selváticas guerras religiosas europeias, em particular a Guerra dos Trinta Anos
(Inglaterra e França, 1618-1648), que acompanhou toda a formação do pensamento de Hobbes.
c) A guerra civil inglesa, desde o Longo Parlamento, passando pelo consulado republicano de
Cromwell, e o atribulado início da Restauração.
d) A multiplicação das doutrinas justificativas do poder absoluto dos reis, em particular as que o
defendiam de um ponto de vista teológico (Filmer, Bossuet).
e) A dura luta pelo “equilíbrio do poder” ( balance of power) entre as potências europeias, na qual se
destaca, pelo seu cruel e frio realismo estratégico, a França do cardeal Richelieu».

Escreve: «Eu demonstro, em primeiro lugar, que o estado dos homens sem sociedade civil , estado
esse a que podemos chamar com propriedade de estado natureza, nada mais é que um estado de
guerra de todos contra todos; e nessa guerra todos os homens têm igual direito a todas as
coisas. De seguida, que todos os homens, logo que chegam à compreensão desta odiosa condição,
desejam, e a própria natureza os compele (nesse sentido), ser libertados desta miséria. Porém,  isso
não poder ser realizado a não ser por contrato . Todos eles renunciaram a esse direito que têm
sobre todas as coisas para além disso, eu declaro e confirmo qual é a natureza do contrato ; como
e através de que meios o direito de um pode ser transferido para outro, para tornar válidos os seus
contratos; também que direitos e a quem devem ser necessariamente concedidos  para o
estabelecimento da paz» (De Cive, XVII-XVIII).

«O “estado natural” de Hobbes é, portanto, um contexto de guerra de todos contra todos». Isto não
deve ser entendido de forma literal. O que Hobbes queria sugerir é simplesmente que, perante a
ausência de uma (entidade) que estabeleça e garanta a ordem, todos terão que contemplar como
último recurso para a defesa dos seus interesses, a possibilidade de utilizarem a força.

«A única saída que Hobbes consegue imaginar é através da transferência da responsabilidade pela
segurança de cada um para uma autoridade superior, a que se dá o direito exclusivo de utilizar a
força para impor a ordem. A essa autoridade superior Hobbes chamou Leviatã», «o animal
monstruoso retirado de uma muito privada leitura da Bíblia». «Tratava-se do Estado moderno, cujos
contornos se desenhavam no período em que Hobbes viveu».

Resumindo:
a) Antes da existência do estado civil, garantido pelo Estado, reina o estado de natureza (que é um
conceito-chave na filosofia de Hobbes e da justificação do contratualismo).
b) O estado de natureza é definido como uma situação de guerra generalizada, um «conflito de
todos contra todos», directamente proporcional ao direito de todos a tudo.
c) Todos os homens acabam por tomar consciência do carácter insustentável desse “estado de
natureza”, e procuram sair dele.
d) Para esse efeito, contraem um contrato de mútua transferência de poder, cujas características
constituem a coluna vertebral da obra hobbesiana».

1.4.2. Uma teoria democrática de cidadania?

A partir daqui uma questão se coloca: Hobbes parte de uma concepção filosófica individualista,
«em que o indivíduo tem todos os direitos»; mas acaba por nos conduzir a uma posição contrária,
num totalitarismo, «em que o indivíduo não tem quaisquer direitos» (tese do Doutor Freitas do
Amaral, DFA: II, 154)? Ou, pelo contrário, «o pensamento hobbesiano contém, na sua estrutura
interna, os fundamentos necessários para o desenvolvimento de uma teoria democrática de
cidadania».

A tese que iremos tentar demonstra assenta nos seguintes princípios fundamentais, recolhidos de De
Cive, são os seguintes: (a) o princípio da igualdade natural; (b) a prioridade do direito à vida; (c)
a origem popular da soberania; (d) o carácter construtivo do Estado (por oposição às teses
«naturalistas»); (e) a racionalidade estratégica e reciprocidade dos interesses na ordem política.

a) O princípio da igualdade natural

Diferentemente de Aristóteles, «que aceitava existirem na natureza sementes para a


escravatura» (Política, 1254-1255; Metafísica, 1075), um dos postulados de Hobbes é o de que
existe uma profunda igualdade natural dos homens, que radica na própria condição humana.
Escreve: «São iguais, aqueles que conseguem fazer coisas iguais um contra o outro; só aqueles que
conseguem fazer as maiores coisas, nomeadamente matar, podem fazer coisas iguais. Todos os
homens, portanto, são, entre si, iguais por natureza; a desigualdade que nós discernimos agora tem a
sua origem na lei civil» (De Cive, I, p. 7)[19].

A consideração de uma igualdade natural entre os homens, conduz-nos, imediatamente a uma


antropologia de conflito. O que não significa acolher a tradicional acusação de que Hobbes
considerasse uma certa malignidade natural, como inerente à condição humana.

Escreve: «Mas isto, de que os homens são maus por natureza, não se deduz deste princípio – que as
disposições dos homens são naturalmente tais que, a não ser que sejam contidos pelo medo de
algum poder coercivo, cada homem desconfiará e temerá o seu semelhante (XIV-XV). Porque
mesmo que os perversos fossem em menor número do que os justos, como, contudo, não os
podemos distinguir, existe a necessidade de suspeitar (…). Ainda menos se pode deduzir – desse
princípio – que aqueles que são perversos o são por natureza» (De Cive, XVI).

Escreve ainda, contrariando a redução do seu postulado à ideia de que «o homem é o lobo do
homem»: «Para falar com imparcialidade, ambas as afirmações são absolutamente verdadeiras: que
o homem é para o homem uma espécie de Deus; e que o homem é para o homem um lobo errante»
(De Cive, II).

b) A prioridade do direito à vida

«A defesa da vida, o princípio da auto preservação é um postulado permanente e essencial do


pensamento político de Hobbes».

Escreve:
«As paixões que inclinam o homem para a paz são o medo da morte; o desejo das coisas que são
necessárias para uma vida confortável; e a esperança de as obter por meio da indústria» ( Leviathan,
XIII, 116).

«A melhor garantia da paz que consegue salvaguardar a vida é conferida pela introdução contratual
do Estado. Este, antes de ser uma realidade institucional, é um imperativo racional contido na lei
natural (natural law)»[20].

Não é hoje, na generalidade das Constituições actuais, o direito à vida…? Não é hoje, na
generalidade dos códigos penais… o direito à vida…?
Mesmo hoje, quando se debatem direitos humanos de terceira geração, ou os direitos das gerações
futuras, por exemplo o direito ao ambiente, à qualidade de vida, o Direito à Paz, ao
Desenvolvimento, o problema dos bens finitos como a água…; o que está em causa, como bem
jurídico protegido… a vida humana?

                                                                                                                                                                            c) A origem popular da
soberania

Um elemento central em Hobbes, «capaz de libertar o enorme potencial democrático» do


seu pensamento, deriva da «compreensão da sua concepção do contrato social como derivando da
aplicação do princípio da origem popular da soberania».

«Para Hobbes, a soberania depende inteiramente do poder dos membros de uma


comunidade dada. Não é o poder considerado de forma atomizada, fragmentada e amorfa, mas o
poder organizado e constituído pelo contrato social . O poder das sociedades não vem de Deus
nem de qualquer desígnio natural indeterminável. Ele deriva inteiramente dos membros
constituintes de cada comunidade dada, desse momento racional em que uma multidão de
indivíduos decide agir em uníssono na busca de um interesse comum . Nesse momento, e apenas
nele, em que, por acordo e consentimento, irrompe o contrato que institui o termo do “estado
natural” e o início do “estado civil”, nesse momento podemos falar propriamente de povo.  É do
povo, da vontade popular que deriva toda a soberania e todo o poder do Estado, do Leviatã».

Em que termos?

«Eu cedo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta
assembleia, soba  condição de tu transferires para ele o teu direito, autorizando de um modo
semelhante as suas acções» (Leviathan, XVII, 158).
«Esta submissão das vontades de todos esses homens à vontade de um só homem ou de um
conselho é então realizada, quando cada um deles se obriga a si mesmo, por contrato com cada um
dos restantes, a não resistir à vontade desse homem ou desse conselho a quem ele se submeteu» (De
Cive, V §7, 68).
«E embora se possam imaginar muitas más consequências (derivadas) de um poder tão ilimitado,
contudo, as consequências da falta dele, isto é, a guerra perpétua de todos os homens com o seu
vizinho, são muito piores» (Leviathan, XX, 195).

d) o carácter construtivo do Estado

«Hobbes, não se limita a superar as teorias teológicas da fundamentação do poder. Ele coloca em
causa, igualmente, e tradição aristotélica do impulso natural para a organização das sociedades
políticas».
Escreve: «as sociedades não são meros encontros, mas laços para o estabelecimento, dos quais são
necessários a fé e contratos (…) Portanto, o homem é tornado apto para a sociedade, não pela
natureza, mas pela educação» (De Cive, I, 2).

Conclusões:

Influência de Hobbes no totalitarismo:


 O Estado hobbesiano, tal como o Estado totalitário, não se funda numa ordem axiológica ou
teleológica decorrente das ideias de justiça e liberdade. São razões de segurança que justificam o
Estado (o terror e o temor alicerçam uma obediência ilimitada por parte dos súbditos);
 O Estado hobbesiano é ilimitado no seu poder (não prevê ainda um mecanismo de separação
de poderes; é um Estado interventor na vida dos súbditos e da sociedade);
 O Estado hobbesiano confere ao Estado o monopólio do exercício do poder legislativo e faz
da vontade do soberano legislador o único critério de justiça das leis civis. Na medida em que o
poder não estaria sujeito ao direito positivo, o chefe soberano está acima do direito.
 A ideia de Estado em Hobbes é uma ideia de «tudo ou nada», o que exige uma total rendição
do indivíduo ao Estado…

No entanto, o Estado hobbesiano encontrava três espécies de limites:


 O reconhecimento de Hobbes de que existiam certos direitos inalienáveis: «cada súbdito tem
liberdade em todas as coisas cujo direito não pode ser transferido mediante pacto» (Leviathan, XXI,
177);
 «O fim da obediência é a protecção» (Leviathan, XXI, 180-181). Significa que a obrigação
de obediência dos súbditos estava dependente da capacidade do Estado para os defender. Caso tal
não acontecesse, estavam estes isentos de lhe obedecer. Daí que se possa entender que «a obrigação
dos súbditos relativamente ao soberano não pode durar nem mais nem menos do que dure o poder
mediante o qual este tem capacidade para os proteger» (Leviathan, XXI, 180);
 Por fim, o próprio poder do soberano, apesar de se afirmar ilimitado, estava em si limitado:
partindo do entendimento de que «toda a iniquidade está proibida por lei da natureza (Leviathan,
XXI, 174)», o soberano é responsável perante Deus pelas iniquidades a que dê origem.
-cicero/

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