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REFORMA PENAL E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: pela afirmação do direito

fundamental das mulheres à proteção contra a violência de gênero

Soraia da Rosa Mendes1

RESUMO: O objetivo do artigo é discutir a reforma penal focalizando a mitigação ao


direito fundamental das mulheres à proteção contra a violência à vista do projeto de
Novo Código Penal (PLS 236) que elimina/obscurece o conceito de violência contra a
mulher.

PALAVRAS-CHAVE: reforma penal, violência contra a mulher, lei Maria da Penha.

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss penal reform focusing on the
mitigation of the fundamental right to the protection of women against violence to the
design view of New Criminal Code (PLS 236) that eliminates / obscures the concept
of violence against women.

KEY-WORDS: criminal reform, violence against women, Maria da Penha law.

INTRODUÇÃO

Nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal de 1988 compete ao Estado


assegurar a assistência à família mediante mecanismos que coíbam a violência no
âmbito de suas relações. Sendo desde este marco constitucional, bem como de
instrumentos internacionais de proteção às mulheres vítimas de violência,
notadamente a Convenção de Belém do Pará, que surge a Lei 11.340/06, conhecida
como Maria da Penha2.
A Lei 11.340/06, portanto, é o tipo normativo que reconhece a violência doméstica e
familiar contra a mulher como impeditivo ao exercício efetivo, dentre outros, dos
direitos à vida, à segurança, ao acesso à justiça, à cidadania, à liberdade, à dignidade,
1
Doutora em Direito, Universidade de Brasília – UnB. Mestre em Ciência Política,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Professora do PPG Mestrado em
Direito do Instituto de Direito Público - IDP. Professora de Direito Penal e Constitucional,
Universidade Católica de Brasília – UCB. Pesquisadora líder dos Grupos de Pesquisa Política
Criminal e Direitos Fundamentais – UCB/CNPq, e Sistema Penal e Garantias Fundamentais –
IDP/CNPq.
2
Maria da Penha Maia é uma brasileira vítima da violência de seu ex-marido, um professor
universitário que tentou matá-la duas vezes. Na primeira vez atirando contra ela, e na segunda
tentando eletrocutá-la. Por conta das agressões sofridas Penha ficou paraplégica. Seu agressor
foi condenado a oito anos de prisão. Permaneceu preso por dois anos. Foi solto em 2002 e
hoje está liberdade. O caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (OEA) que, em 2001, condenou o Estado Brasileiro ao
pagamento de indenização de 20 mil dólares à Maria da Penha, responsabilizando-o por
negligência e omissão em relação à violência doméstica, e recomendando, ainda, adoção de
várias medidas, dentre elas, a de “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que
possa ser reduzido o tempo processual”. A Lei 11.340/06 é conhecida como Lei Maria da
Penha em homenagem a esta Maria.
ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Daí porque, considerada esta
concepção, devam ser adotadas medidas de assistência e proteção às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar, dentre outras, como criação de Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
É fato que, ao longo de seus quase oito anos de existência a aplicação da lei tem
variado, sendo inúmeras as formas encontradas em sede judicial para a solução dos
conflitos decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher. Contudo, a
práxis judicial relativa à Lei Maria da Penha tomou novos contornos com o
julgamento, em fevereiro de 2012, da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
4424/DF e da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 19/DF.
No julgamento conjunto de referidas ações constitucionais restou evidente a
preocupação do Supremo Tribunal Federal com o direito à proteção da mulher vítima
de violência doméstica e familiar. Como bem observou o Min. Luiz Fux em seu voto
naquela oportunidade:

Uma Constituição que assegura a dignidade humana (art. 1º,


III) e que dispõe que o Estado assegurará a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência no âmbito das suas
relações (art. 226, § 8º), não se compadece com a realidade da
sociedade brasileira, em que salta aos olhos a alarmante
cultura de subjugação da mulher. A impunidade dos
agressores acabava por deixar ao desalento os mais básicos
direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias,
em clara afronta ao princípio da proteção deficiente
(Untermassverbot). Longe de afrontar o princípio da
igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, da
Constituição), a Lei nº 11.340/06 estabelece mecanismos de
equiparação entre os sexos, em legítima discriminação
positiva que busca, em última análise, corrigir um grave
problema social. Por óbvio, todo discrímen positivo deve se
basear em parâmetros razoáveis, que evitem o desvio de
propósitos legítimos para opressões inconstitucionais,
desbordando do estritamente necessário para a promoção da
igualdade de fato. Isso porque somente é possível tratar
desigualmente os desiguais na exata medida dessa
desigualdade.

Ocorre que, em que pese o avanço representado pela Lei Maria da Penha e os passos
largos dados na jurisprudência de nossa Corte Constitucional no sentido de consolidar
a necessidade de compreender-se a violência doméstica contra a mulher como objeto
de especial atenção estatal, encontra-se em tramitação no Senado Federal o PLS
236/2012 (ou Projeto de Reforma do Código Penal - como é conhecido), de cujo texto
a concepção de violência contra a mulher é simplesmente eliminada. Como ver-se-á
logo adiante, se aprovado como está, o Novo Código Penal representará um enorme
retrocesso ao direito à proteção das mulheres.

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

O reconhecimento dos direitos fundamentais é uma exigência da dignidade da pessoa


humana que impõe ao Estado o dever de zelar, inclusive preventivamente, pela

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proteção dos indivíduos, não somente contra ingerências indevidas de parte dos
poderes públicos, assim como também contra agressões provenientes de particulares.
Essa esfera protetiva toma especial relevo quando se trata de definir o que se deve
exigir do Estado para que proteja a mulher vítima de violência de gênero.
É dever estatal proteger todo/a aquele/a que está sob sua guarda. E tal dever de
proteção também se concretiza com a edição de normas penais e/ou processuais
penais, como se deu com a Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006.
Como ensina Heleieth Saffioti (1995), as mulheres recebem desde o nascimento um
treinamento específico para conviver com a impotência. Ou seja, a mulher aprende a
suportar a violência específica que lhe é dirigida, principalmente no lar. As mulheres
são educadas para ter um papel fundamental na manutenção da vida familiar. Em
suma, como ressalta Glaucia Starling Diniz (2006, p. 238), as mulheres são:

ensinadas a se sacrificar e a negligenciar suas necessidades


para apoiar as necessidades dos outros e para potencializar os
projetos de vida do marido e dos filhos. O esquecimento de si
e o cuidado com o outro passam a ser marcas registradas do
comportamento das mulheres. Seu trabalho cotidiano é
invisível, e com isso, aos poucos sua história e sua identidade
vão se tornando também invisíveis, diluídas na vida dos
outros membros da família. Esse é o modelo prevalente de
funcionamento, traçado para a mulher no contexto do
patriarcado.

Impotência, nos termos de Saffioti, ou dependência, nos termos de Diniz, entretanto,


não são características intrínsecas da mulher. Elas são decorrências de uma construção
de gênero apoiada por uma estrutura social, econômica e legal da qual resulta uma
forma de relação entre homens e mulheres marcada pela dominação de um sobre o
outro (DINIZ, 2006).
Ou seja, a dinâmica da violência contra a mulher é extremamente complexa. Tanto
que, por exemplo, segundo o Comitê responsável pelo monitoramento da Convenção
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, na
Recomendação Geral n. 19, sobre violência contra a mulher, a discriminação inclui a
violência de gênero entendida como a violência dirigida especificamente contra a
mulher por ser mulher ou que a afeta de maneira desproporcional. Essa violência
inclui atos que causem ou possam causar dano ou sofrimento físico, sexual, ou
psicológico às mulheres, incluindo ameaças, coerção e outras formas de liberdade.
A violência torna-se ainda mais complexa quando os agressores são homens com os
quais as mulheres se relacionam afetiva e sexualmente. Os autores, nestes casos,
conhecem bem as vitimas e seus pontos mais vulneráveis. Dominam a situação e
sabem como e onde ameaçá-las, como espancá-las, humilhá-las e cometer outras
praticas de agressão e lesão. Sob esta ótica específica tem-se a violência doméstica e
familiar que, entre nós, nos termos da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, ocorre
tanto quando há violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral.
A violência contra a mulher constitui em um elemento fundamental para entender as
desigualdades que caracterizam homens e mulheres em nossa sociedade (BANDEIRA
e THURLER, 2009, p.162). Ademais, é preciso compreender que, no caso da
violência doméstica, o objetivo fundamental não é nem tanto, prioritariamente, o de
ferir, mas o demarcar poder e autoridade, pois segundo BANDEIRA e THURLER
(2009, p.163):

3
Fica evidente que o objetivo de tal conduta é a de introduzir o
controle, o medo e, até mesmo, o terror na companheira, caso
ela não siga as regras de conduta e dos mandatos que lhe são
impostos pelo marido/companheiro. Em tais situações o fiel
da balança centra-se nas ameaças constantes para manter o
equilíbrio da situação de controle na conjugalidade. As
consequências são imediatas e visíveis, com sofrimentos
físicos e psíquicos (...)

Prosseguem BANDEIRA e THURLER ( 2009, p.164) dizendo que:

a especificidade das práticas de violência contra a mulher é


lhes deixar bem explicitado quem é o detentor da autoridade
no espaço doméstico-familiar e que a “sua” mulher deve estar
submetida a tais normas, sabendo, inclusive, que a qualquer
momento poderá prestar contas a seu marido/companheiro,
caso ele assim o desejar.

Contudo, em que pese todo o acima demonstrado, é de notar-se que a compreensão do


que é violência contra a mulher, decorrente de tratados internacionais dos quais o
Brasil é signatário, é simplesmente desconsiderada pelo Projeto de Lei 236, ora em
debate. O que invisibiliza novamente as agressões sofridas pelas mulheres no
ambiente doméstico.

O PROJETO DE LEI 236

Segundo os consideranda do anteprojeto (hoje, PL 236/2012) não se há de falar em


violência CONTRA A MULHER, posto que o foco de proteção há de ser a família.
De maneira que a expressão “violência contra a mulher” foi retirada de todo o
Código. Tão só, aparentemente por um descuido de sistematização, a menção à
violência contra a mulher, tal como previsto na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha), somente permaneceu no artigo 77, III, f (atual art. 61, II, f), referente às
agravantes genéricas.
Ora, seguindo a linha do acima exposto a partir dos ensinamentos de Saffioti e
Bandeira, dentre outras, é de se entender que os papéis impostos às mulheres e aos
homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua
ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indicam que a prática desse
tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das
pessoas (TELES e MELO, 2002, p. 18). Um processo no qual o Direito encontra-se
em posição fundamental.
Importante que se diga que não se está aqui desconsiderando o fato de que a violência
doméstica atinge todo o grupo familiar. Por outro lado, o que se está a afirmar é que
todo o esforço para a construção no âmbito das Nações Unidas, do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, e da legislação constitucional e
infraconstitucional de um conjunto de normas que definem a violência contra a
mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico, tanto na esfera pública como na esfera
privada”, foram desconsiderados no PLS 236. E esse é um retrocesso flagrante.

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Não se garante direitos à família, desconsiderando os direitos das mulheres. A
proteção há de ser ampla, plena, mas também específica em respeito à desigualdade
que ainda impera nas relações entre homens e mulheres.
Uma outra questão é que, em decorrência desta “desorientação político criminal”
sobre o significado da violência contra a mulher, aprovado como está o Projeto de
Reforma do Código Penal, eliminar-se-á também a redação dada pela Lei Maria da
Penha ao parágrafo 9o do art. 129 do atual Código Penal, que trata as lesões corporais
ocorridas no seio das relações domésticas.
Segundo este dispositivo a pena atualmente prevista para o crime de lesões corporais
varia de três meses a três anos de detenção. Entretanto, segundo a proposta mesmo
com a causa de aumento, prevista no art. 129, parágrafo 7 o, II, a pena será inferior ao
que previa a Lei Maria da Penha, chegando a um máximo de 1 ano e 8 meses de pena
privativa de liberdade.
Por fim, note-se que, ainda conforme o projeto de lei, o homicídio cometido em
contexto violência doméstica ou familiar tomará a forma qualificada, com pena de
prisão de 12 a 30 anos. Neste caso, contudo, condicionado à “situação de especial
reprovabilidade ou perversidade do agente”. Uma condicionante que (além de
imprópria, visto que reprovabilidade e/ou perversidade são elementos a serem tratados
na esfera da culpabilidade) poderá provocar no Tribunal do Júri a discussão sobre “o
que é “reprovável” ou “perverso” quando um marido, companheiro, namorado (ou
qualquer um “ex”, inconformado com o término da relação) cometer um feminicídio 3.
Isto é, mais um retrocesso em um país que ainda carrega em sua cultura a ideia de que
o “amor” pode justificar um crime.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, a maior justificativa para a reforma penal consiste na consigna de que é


preciso modernizar a legislação penal. Entretanto, “modernizar”, é, como já tive
oportunidade de dizer em outro lugar, um termo vazio de significado. Em verdade, no
caso específico dos direitos fundamentais das mulheres, o mais importante é
compreender o caráter histórico, social, cultural e familiar perverso da violência de
gênero. E é sob esse ponto de vista que devem circunscrever-se os limites de atuação
da lei penal em relação às mulheres.
Por outro lado, certo é que, dentro dos limites constitucionais, a resposta punitiva não
pode ser mais do que um elemento excepcional. Mas é possível. Desta forma, o
direito penal MÍNIMO – que é o único direito penal possível em acordo com os
princípios constitucionais (BARATTA, 2006, p. 149) – não retira do Estado e da
sociedade a obrigação de empenharem-se na busca de soluções relativas a situações
de violência e de violações de direitos, ou de resolver conflitos e problemas sociais
que necessitam de respostas justas e adequadas (BARATTA, 2006, p. 149).
Nesse contexto, considerando que o direito penal (como de resto todo o Direito)
reflete relações de poder hegemônicas, não é possível desconsiderar que os direitos
tenham de ser tomados como uma proteção dos mais fracos contra os mais fortes

3
O crime de feminicídio não foi incluído no PLS 236 embora, como já registrou a Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, entre 2000 e 2010, tenha
ocorrido o assassinato de 43,7 mil mulheres no país, 41% delas mortas em suas próprias casas, muitas
por companheiros ou ex-companheiros. O aumento de 2,3 para 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres
entre 1980 e 2010 colocou o Brasil na sétima posição mundial de assassinatos de mulheres.

5
dentre os quais está o Estado, mas não somente este. Perder direitos é perder poder e,
consequentemente, proteção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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violência doméstica: aspectos históricos e sociológicos. In: LIMA, Fausto Rodrigues.
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