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SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Uma concepção de vida 3 A violência da ideia de verdade sobre a vida
4 Obstáculos implícitos a um aborto por estupro 5 Relações sociais e estigmatização relaciona-
das ao aborto e à violência 6 A violência estatal 7 Conclusão 8 Referências.
RESUMO: Tão importante quanto compreender o sistema de direitos que uma socie-
dade adota é entender os processos implícitos que funcionam por trás desse sistema.
O artigo concentra-se em desmistificar esses processos ocultos com relação ao ins-
tituto do aborto por estupro, relacionando-o ao Projeto de Lei no 478/2007, mais
conhecido como Estatuto do Nascituro. O artigo procura destrinchar certos discursos
e preconceitos, em especial no âmbito legislativo, procurando suas razões veladas.
Quer-se entender os verdadeiros mecanismos sociais que se relacionam com o di-
reito ao aborto em casos de estupro e com a autonomia feminina em relação ao seu
corpo. O artigo também visa discutir não apenas o papel da violência, mas também
suas fontes. A violência não vem apenas do estuprador, mas de todo discurso social,
religioso e legislativo que permanece na premissa da exclusão da outra.
Sexual violence, abortion and discrimination: Law and the exclusion of the other
within the context of the Bill of the Unborn Child
CONTENTS: 1 Introduction 2 A conception of life 3 The violence of the idea of truth of life
4 Implicit barriers to abortion after sexual assault 5 Social relationships and prejudice about
abortion and violence 6 The state violence 7 Conclusion 8 References
RESUMEN: Comprender el sistema de derechos que una sociedad adopta es tan im-
portante como comprender los procesos implícitos que funcionan por detrás de ese
sistema. Este artículo se enfoca en desmitificar esos procesos ocultos, em relación
al instituto del aborto por violación, y asociándolo al Proyecto de Ley no 478/2007,
conocido como Estatuto del Feto. El artículo pretende analizar ciertos discursos
y prejuicios, en especial en el ámbito legislativo, buscando sus razones ocultas.
Se procura comprender los verdaderos mecanismos sociales relacionados al dere-
cho de aborto por violación y al derecho y autonomia de la mujer con respecto a su
propio cuerpo. El artículo también discute no solamente el papel de la violencia,
sino también sus fuentes. La violencia no viene solamente del violador, sino tam-
bién de todo el discurso social, religioso y legislativo que permanece en la premisa
de la exclusión del otro
1 Introdução
O tema que este artigo se propõe a examinar assusta. Aborto e estupro não são,
normalmente, palavras que geram uma relação tranquila entre emissor e re-
ceptor da fala. Elas chocam porque envolvem discussão sobre valores que reputa-
mos fundamentais, como a vida e a liberdade sexual, e, mais particularmente, por-
que elas representam o ápice da violência em relação a esses dois valores. Porém,
são palavras que precisam ser resgatadas não apenas no dizer, no falar, no escrever,
no dialogar com o Outro, ou seja, naquilo que se faz explícito; é preciso analisá-las
também no que lhes é oculto. Este artigo se interessa pelo não dito, pelo não explí-
cito, por tudo aquilo que se encontra à margem do discurso.
Para tanto, o artigo tem como objeto a análise do aborto sentimental, o aborto
em casos de estupro, como previsto no art. 128, II, do Código Penal. À primeira vista,
qualquer mulher que tenha sofrido uma violência pode facilmente se encaminhar
para o Serviço Único de Saúde – SUS para realizar o aborto legalmente admitido.
Porém, a realidade é outra. A repressão sexual feminina, a estigmatização do aborto,
as tentativas legislativas de mitigar ainda mais esse direito já tão restrito compõem
um quadro que dificilmente pode ser entendido a um mero primeiro olhar. O tema
é complexo, rodeado por preconceitos, tabus e ignorância, opiniões hereditárias e
religiosas que, muitas vezes, dificultam o estudo a respeito.
Propõe-se aqui analisar criticamente o direito feminino de abortar após a vivên-
cia de uma das violências mais extremas, a violência sexual. Mais particularmente,
propõe-se entender esse direito no contexto dos olhares que influenciam a decisão
da mulher - olhares religiosos, médicos, familiares, que nem sempre veem o aborto
de maneira simpática e que, muitas vezes, são incapazes de reconhecer a violência
que cometem ao culpabilizarem a vítima. Propõe-se também perceber e delinear os
contornos de um direito ainda não completamente reconhecido, o direito da mulher
de autonomia do próprio corpo e o direito de não ser excluída de decisões que a
envolvam de maneira direta.
Busca-se fazer uma análise quase arqueológica, delicada e que, aos poucos,
descobre aspectos relevantes da questão, camadas que se sobrepõem e se confun-
dem, aspectos que estão encobertos por um olhar viciado, pouco treinado, recostado
em premissas e convenções sociais. Nesse sentido, intenta-se perceber, de maneira
gradativa, as sutilezas do discurso social e, especialmente, do discurso legislativo,
que procura impor visões que muitas vezes não se encaixam na mentalidade dos
cidadãos a quem se destinam. Como exemplo atual e muito debatido do discurso
1 O
projeto hoje encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania – CCJC – da Câmara
dos Deputados para apreciação. Em 21/11/2014, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados apensou
ao Projeto de Lei no 478/2007 o Projeto de Lei no 8116/2014, que também trata da proteção ao nas-
cituro. Em sessão altamente polêmica, o projeto foi aprovado, em 5 de junho de 2013, pela Comissão
de Finanças e Tributação – CFT, também da Câmara dos Deputados.
2 S
egundo o art. 2o do Projeto de Lei no 478/2007, “nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não
nascido”. Além disso, segundo o projeto, “o conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos
‘in vitro’ os produzidos através de clonagem ou por outro meio cientifica e eticamente aceito”.
jeto de lei vai além no exercício dessa violência. Ele prevê a criação de um suposto
direito de paternidade do criminoso, no caso de a gravidez ter sido resultado de um
estupro, além de conferir uma pensão pelo Estado, em caso de não identificação ou
insolvência do pai5. O Estado tenta, nesse caso, praticamente dar um incentivo à
mãe que tenha tido a opção de continuar com a gravidez, fortalecendo um discurso
que desencoraja e culpabiliza a vítima.
O projeto de lei confunde não apenas o conceito de vida, mas também o de pa-
ternidade, pecando em relação aos conceitos envolvidos. Ele leva em consideração
tão somente o aspecto biológico de pai, de doador da célula gamética que posterior-
mente formará o zigoto. Não são levadas em consideração as condições específicas
dessa concepção. A condição de pai é praticamente reduzida a uma qualidade bio-
lógica, esvaziada dos diversos outros aspectos que dão significado a essa condição.
Ademais, é ignorada a violência cabal sofrida pela mulher. Os esforços do Esta-
do para denominar a doação de célula gamética como uma relação de paternidade
são, no mínimo, inconvenientes para a mãe, que terá que se relacionar, pelo resto
da vida, com seu agressor, agora no papel de pai. O sentido da paternidade não foi
devidamente refletido, pois os parlamentares acreditam que é melhor para a criança
ter um pai que chegou a essa condição por meio de uma violência abusiva do que
não possuir pai algum.
O estupro é muito mais uma experiência abusiva, traumática, do que um ato
que possa ser explicado por meio de conceitos objetivos. Hannah Arendt (2009, p.
22-23) tipifica a violência como a dominação de um indivíduo causando a anulação
de um outro, gerando diversos efeitos. A anulação do indivíduo não é apenas mo-
mentânea e restrita ao momento da violência em si, mas se prolonga no tempo, re-
percutindo na essência da vítima. As consequências da violência sexual, a vergonha,
a estigmatização e o silêncio da vítima, em grande parte, decorrem dessa anulação
interna e transformam o abuso em uma violência continuada, que gera efeitos para
além do lugar e momento da consumação do ato violento.
Existe jogo duplo de dominação e anulação, uma relação complexa entre ofen-
sor e vítima que só pode ser completamente entendida através de uma imersão no
próprio contexto e, pois, não pode ser objetificada, sob pena de não ser compreendi-
da. Segundo Arendt (2009, p. 57-59), a efetividade, o poder da violência deriva, em
grande parte, do silêncio a seu redor, da não conscientização da própria violência.
Enquanto as vítimas de estupro se mantiverem caladas, enquanto tais vítimas forem
culpabilizadas pela situação, enquanto houver o desfoque do ato cometido ou a
tentativa de acobertar e esquecer o que ocorreu, e enquanto a violência for naturali-
zada e considerada corriqueira, ela não pode ser compreendida em seus verdadeiros
contornos, e sua destrutividade pode agir de maneira mais eficiente e aterradora.
sões, que tomar uma pausa para juntar os cacos da própria identidade é um processo
caótico e doloroso. Toda a construção de uma identidade, que se deu necessaria-
mente através do tempo, das interações de grupo, das pressões sociais, da heran-
ça cultural, é estraçalhada na presença da grave violência. Freud (s.d., p. 7-105)
acreditava que a identidade humana está fortemente ligada a noções de relações
sociais com grupos restritos (pais, familiares, amigos), que moldam e participam
ativamente da construção de uma identidade. Ele admitiu a complexidade da noção
de identidade, muito mais profunda que uma simples ideia de eu, que se expressa
como a própria posição, incorporação do indivíduo dentro de um sistema huma-
no. A construção das relações humanas vem da noção de identidade. Quando essa
identidade é fragilizada, todos os sistemas em volta necessariamente se fragilizam,
pois ela é a base, o sustentáculo. A violência é uma maneira cruel e eficiente de fra-
gilizar a noção de identidade. Mulheres vítimas de violência sexual experimentam
um processo de fragilização sem precedentes, atingidas pela mutilação, pela culpa,
pela estigmatização social, pela vergonha, pelo preconceito, pelo julgamento das
pessoas próximas, pelo silêncio imposto socialmente a esse tipo de vítima. A violên-
cia anula, subjuga, mutila, não apenas o corpo, mas a própria noção de identidade
feminina. A liberdade, portanto, tem um sentido muito mais profundo do que uma
mera possibilidade de escolha.
6
Em seu livro, Bauman (2009) parte do pressuposto interessante de que nós estamos inseridos em
um mundo demasiado líquido, de interações frágeis, e nossos relacionamentos estão condicionados
a essa dinâmica instável e, por isso, são efêmeros e pouco significativos.
tura (que são realmente intoleráveis), por exemplo, é apenas mais uma maneira de
reafirmar uma moral dominante e de manter à margem as mulheres que o praticam.
6 A violência estatal
Em uma discussão sobre justiça, podemos, obviamente, utilizar várias compre-
ensões para explicar ações justas. Porém, aqui se atém ao que nos diz Jacques Derrida,
para quem a justiça, aparece como o outro do direito, que com ela precisa conviver
ciente de sua urgência e de sua impossibilidade. “A justiça permanece porvir, ela tem
porvir, ela é por-vir” (DERRIDA, 2010, p. 54, grifos no original). A justiça traduz-se na
experiência que não pode ser verdadeira e presentemente experimentada, mas que
urge como “a vinda do outro como singularidade sempre outra” (DERRIDA, 2010, p.
49), portanto irredutível e infinita. A negociação entre o direito e a justiça leva a
loucura do ato decidir, que quer ser justo, mas nunca é plenamente justo, porque a
vinda do outro como singularidade sempre outra não se realiza em sua integralidade.
Sempre há exclusão, violência na decisão, mas nem por isso deixamos de ter essa
ânsia por justiça, por essa vinda do outro.
Nesse contexto do debate sobre a justiça, Derrida explica que o Estado, ao invés
de atribuir força àquilo que é justo, fez o contrário: chamou de justo tudo aquilo que
produz com força estatal. Aquilo que é mais forte acaba sendo consequentemente
caracterizado como justo, a força estatal acaba sendo identificada, confundida com
o conceito de justiça (DERRIDA, 2010, p. 54). Porém, como diferenciar a força estatal
da violência que ela se propõe a reprimir? Qual critério deve ser utilizado para di-
ferenciar uma da outra e qual a maneira de se certificar que a primeira não está se
transformando na segunda?
Levando-se em consideração o discurso legislativo (como, por exemplo, o respon-
sável pela edição do Estatuto do Nascituro), depreende-se, então, que todas as leis
editadas são espelho da justiça, algo atribuído de uma força vital e vinculante, que
deve ser respeitado e entendido per se? Não se pode acreditar que os conceitos de
autoridade e justiça coincidam, ou mesmo imaginar que a segunda emane da primeira
de maneira natural e absoluta. As decisões judiciais, as leis, sempre emanam da auto-
ridade, mas isso não significa que sejam justas. Nós obedecemos a elas, exatamente
porque elas têm fundamento na autoridade, não porque as consideramos ou não jus-
tas. Montaigne (2001) define isso como uma ficção legítima, ou seja, como não existe
a justiça, criou-se a ficção legítima do direito, para suprir tal deficiência, para fundar a
própria verdade da justiça, que no fundo é uma ilusão, uma mentira bem contada.
As leis necessariamente criam algum tipo de limitação sobre o exercício das liber-
dades individuais e coletivas, e é por isso que devem ser analisadas com cautela. Deve-
mos abrir mão de certas prerrogativas no intuito de conviver em sociedade de maneira
pacífica. Porém, as leis devem ter como intuito assegurar essa convivência benéfica, e
não coibir direitos de maneira injustificada. O projeto de lei no 478/2007 retira da mu-
lher a possibilidade de decidir acerca do próprio corpo, exclui a mulher dos processos
decisórios que lhe pertencem. Em que medida essa imposição seria justa? Se aprovado,
o estatuto seria justo, apenas porque foi aprovado por um corpo legislativo legitimado
para editar leis? É justo que as leis possuam clara influência religiosa, que possuam
uma carga axiológica tão pesada, que transcrevam tão claramente a moralidade domi-
nante, mesmo que contrariem os princípios do pluralismo democrático?
Uma crença que se instaurou com o surgimento do constitucionalismo moderno
foi a de que o próprio desenvolvimento institucional influenciaria uma atividade
entre os poderes e resultaria em processos decisórios mais justos, mais sintonizados
com os interesses difusos que compõem a nação, de uma maneira cada vez mais
igualitária. Isso porque haveria uma canalização da competição política em filtros
institucionais que resultariam em uma diluição do poder. Assim, por meio da ênfase
nos checks and balances, haveria uma canalização da competição política em um
sistema mais organizado, controlável e seguro de difusão de poderes7. Essa crença,
contudo, se revelou incorreta, pois se percebe que o próprio discurso legislativo,
como aquele dos demais poderes, se rende, continuamente, a interesses estratégicos
diversos, raramente traduz a vontade do povo e – aqui é o elemento central da in-
correção, tem filtros institucionais que não conseguem satisfatoriamente diluir tais
interesses nas tomadas de decisão. Tolstói (2004, p. 2), por exemplo, faz uma crítica
amargurada ao processo legislativo, em que as leis se traduzem em mandamentos
autoritários, espelhos de uma violência institucional profunda. Ele percebe a lei não
como um instrumento da justiça social, mas muito mais como a expressão quase
literal da vontade dominante.
Nesse sentido, é fácil perceber como é complexo diferenciar o momento em
que a legítima força estatal se traduz em violência pura e simples. Foucault (1989,
p. 244) acreditava em um Estado corporificado, onde o poder é exercido por meio
desse corpo, que é mais complexo do que uma simples ideia de instituição. O poder
7
Segundo James Madison, na obra The Federalist, mais particularmente no Federalist 51, “ambition must
be made to counteract ambition” (HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 138), em tradução livre, “ambi-
ção deve ser feita para contrabalançar a ambição”, o que se aplicou diretamente em sua engenhosa
distribuição institucional dos poderes.
8
Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003). Nesse caso, uma opinião interessante foi a do Justice Scalia (um
dos grandes nomes da teoria constitucional originalista), que votou contra a inconstitucionalidade da
lei de sodomia texana sob o argumento de que isso seria um passo decisivo na implementação do
casamento homossexual.
9
Roe x Wade, 410 U.S. 113 (1973). Posner, em seu livro Not a Suicide Pact (2006), destrincha essa de-
cisão judicial, criticando-a no sentido que o suposto direito à privacidade aludido pelos juízes nesse
caso foi uma invenção e não corresponde a um direito constitucional propriamente dito.
7 Conclusão
O processo de empoderamento do corpo feminino já se iniciou faz muito tempo
e se estenderá ainda por muito tempo, pois ainda há muitas conquistas a serem
alcançadas. Na Idade Média, era comum que as punições recaíssem sobre o próprio
corpo do ofensor, que dele apenas dispunha enquanto fosse considerado inocente,
10 S
egundo Débora Diniz e Marcelo Medeiros (2010, p. 962), “em 2010, no Brasil urbano, 15% das
mulheres entrevistadas relataram ter realizado aborto alguma vez na vida (...) Essa proporção varia
de 6% para mulheres com idades entre 18 e 19 anos a 22% entre mulheres de 35 a 39 anos. Isso
mostra o quanto o aborto é um fenômeno comum na vida reprodutiva das mulheres. Em termos
simples, isso significa que, ao final de sua vida reprodutiva, mais de um quinto das mulheres no
Brasil urbano fez aborto.
11 S
egundo Cecatti et al. (2010), “no Brasil persiste uma importante subnotificação das mortes por abor-
to, já que muitos óbitos devido à septicemia e hemorragia decorrentes de complicações de abortamen-
tos não são devidamente computados. Apesar da subnotificação dos abortamentos nas declarações de
óbitos, em 2002, um estudo nas capitais brasileiras, com utilização de um fator de correção, permitiu
identificar que o abortamento correspondia à terceira causa de morte materna (11,4%)”.
da mesma maneira que ocorria a escravidão por dívidas. Muito tempo depois, a noção
de corpo como objeto da punição estatal foi mitigada ante a um reconhecimento de
autonomia corporal, que não pode ser violada (FOUCAULT, 2011, p. 9-30). A visão
do corpo, da própria identidade feminina, no entanto, era tida como de propriedade
de algum outro sujeito, seja ele o pai, o marido, o irmão, o padre, pois não havia o
reconhecimento da autonomia do feminino. A mulher não tinha liberdade sobre o
próprio corpo, sobre a própria liberdade, pois os processos decisórios acerca de seu
próprio corpo não a envolviam.
Parece absurdo que há pouco mais de uma década era vigente um código12 de
leis que dava ao marido o poder de anular o casamento (devolver a mulher do mari-
do para o pai), caso ele descobrisse que sua esposa já tivesse sido deflorada, ou seja,
não fosse mais virgem. No mesmo código havia uma lei que possibilitava a deserção,
pelo pai, da filha desonesta, uma expressão com graves problemas semânticos e
axiológicos. Gabriel García Márquez escreveu um romance bastante crítico e caricato
(2009)13, em que um rapaz é assassinado por ter cometido o crime de deflorar uma
noiva, que teve a audácia de comparecer a seu casamento de branco, apenas para ser
devolvida à família no dia seguinte, precariamente envolvida em um lençol. A moça
logo se torna motivo de chacota e vergonha na cidade e fonte de profundo desgos-
to para seus pais. Muito embora histórias como essa possam parecer demasiado
fantasiosas, elas aconteciam de verdade, há poucas décadas em nosso país, quando
uma mulher era considerada indigna para a instituição do casamento, se não fosse
mais virgem, pura, casta. Havia imposição de condições que uma mulher pudesse ser
considerada apta a uma vida honrada com seu marido.
Não é difícil perceber que existe a naturalização da ideia de inferioridade e
de propriedade da mulher em relação ao homem, o que dificulta análises em rela-
ção ao corpo feminino. Essas crenças preconceituosas são entraves claros para uma
discussão do aborto, pois, para superá-las, é preciso, antes de qualquer coisa, uma
adequada compreensão da autonomia feminina sobre seu próprio corpo. As leis ci-
tadas apenas justificam uma visão recorrente, que não está, ainda, completamente
ultrapassada, como prova a iniciativa do Estatuto do Nascituro.
12
Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916, o Código Civil de 1916, vigente até 2002, quando foi
substituído pelo atual código civil, lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
13 O
livro conta a história do assassinato de Santiago Nasar, que foi acusado de tirar a virgindade de
uma moça que se casou com um noivo rico e influente da cidade, e então foi devolvida na manhã
seguinte, acusada de ser impura. É exposição da velha máxima, a honra só se lava com sangue.
8 Referências
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