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G. Castelvecchi (Nenuca)
Apresentação
Prezada Ivete,
Muito obrigado pela có pia dos escritos da Nenuca que você me enviou
através do Casé. Li e gostei. Gostei muito. Neles encontrei o retrato fiel da Nenuca
do jeito que sempre a conheci. Todas as vezes que fui visita-la, sobretudo nos
meses da sua doença, nunca a encontrei só . Sempre havia gente por perto, gente
pobre da rua, acolhida por ela com infinita paciência. Gente que entrava e saia e
que, invariavelmente, se tornava o assunto da nossa conversa. Assim é o retrato de
Nenuca que transparece nestes escritos: ela nunca aparece só ! Do começo ao fim,
desde 1953 até 1984. Nenuca se apresenta misturada no meio dos pobres, dos
operá rios, das crianças abandonadas, do povo marginalizado da rua, das
prostitutas, sempre rodeada pelas irmã s e companheiras da Fraternidade das
Oblatas de Sã o Bento. O que impressiona nisto tudo é que Nenuca, mesmo no auge
da sua doença, pouco antes da sua morte, quando ela punha no papel estas
lembranças da sua vida, nunca pensou em si mesma, mas só pensava em si com a
preocupaçã o de servir melhor a Deus e os pobres.
Deus e os pobres! O trem da vida de Nenuca sempre correu sobre estes dois
trilhos: Deus e os pobres! Estes dois, unidos entre si no coraçã o de Nenuca,
formavam o amor maior da sua vida, a paixã o ú nica que a devorou aos poucos.
Quem ativou nela a semente deste duplo amor e a ajudou a crescer até atingir a
plena maturidade, foi o Pe. Igná cio, monge beneditino olivetano, lembrado por ela
com carinho e veneraçã o. O que eu pude perceber a respeito do pensamento de
Nenuca neste particular é o seguinte. Você Ivete, que viveu com ela durante tantos
anos, poderá confirmar ou nã o a exatidã o do que eu vou dizer.
Nenuca tinha consciência muito clara de que seu testemunho de amor junto
aos pobres nã o era só dela, mas da comunidade, da Igreja. Por isso, ela sustentou a
longa luta para arrumar um lugar na Igreja nã o só para os pobres, mas também
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para o pequeno grupo de irmã s e companheiras que com ela estavam no mesmo
serviço. Conseguiu que o grupo reconhecido e agregado à Ordem de Sã o Bento, e
que os seus estatutos fossem aprovados pelo Arcebispo de Sã o Paulo, dentro das
exigências do Direito Canô nico. Neste trabalho ela gastou muitas horas, dias, meses
e anos. Assim, através da agregaçã o à Ordem de Sã o Bento, conseguiu que a
pequena Fraternidade se inserisse no largo rio da tradiçã o da Igreja Universal,
bebesse da sua á gua e procurasse viver o Evangelho a serviço dos pobres de
acordo com a inspiraçã o que vem da Regra de Sã o Bento. Através da aprovaçã o dos
seus Estatutos pela autoridade eclesiá stica, conseguiu que o grupo se inserisse na
Igreja local e recebesse aí o se lugar, seu direito e sua missã o.
A ú ltima vez que encontrei Nenuca foi ao hospital, poucos dias antes da sua
morte. Ela falava com dificuldade, mas seu olhar era alegre e acolhedor. Ela sabia
que o fim estava perto. Falamos pouco. Agradeci o bem que ela me fez através do
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testemunho da sua vida. Ela me olhava sorrindo, meio incrédula, como se quisesse
dizer: “Eu? Quem sou eu?” Rezamos juntos o Pai Nosso. Um aperto de mã o bem
prolongado. Uma vontade de chorar. Saí. Foi a ú ltima vez!
“Eu? Quem sou eu? Ivete, esta pergunta final, estampada nos olhos da
Nenuca, me fez lembrar a frase de Zé Terta, agricultor do Ceará : “Eu descobri que
nã o sou pessoa. A pessoa é a comunidade!”Nenuca só conseguiu ser pessoa, só
conseguiu ser ela mesma, perdendo-se em Deus e no meio da comunidade dos
pobres! Vivendo assim, ela encarnou um ideal. Que vocês, da Fraternidade, possam
ser vocês mesmas, perdendo-se em Deus e no meio dos pobres.
Introdução
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Vou tentar irar da memó ria coisas acontecidas há muitos anos. 35, 32, 30
anos e tentar trazê-las de volta.
Esta caminhada é, em si, uma pequena histó ria da Igreja. Da Igreja periférica
do centro da cidade, onde um pequeno grupo consagra sua vida junto a este povo e
descobre, a partir da encarnaçã o, que o grito deste povo é o grito de milhõ es de
operá rios, lavradores, índios, negros, marginalizados etc.
Aproveito para isso a doença atual, que me deixa parada, sem atividade, e o
sentimento que, por esta situaçã o, teve oportunidade de se manifestar. É uma
espécie de dívida, em relaçã o ao grupo atual da missã o, de contar sua histó ria,
como foi nascendo, como Deus foi agindo ao longo de todo esse tempo.
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Primeira etapa: Os Sinais de Deus
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Antes de existir a OAF (Organizaçã o de Auxílio Fraterno), ou a atual
Comunidade do povo da Rua, Deus começou um trabalho lento em algumas
pessoas. Eu fui uma delas. Estava em Montevidéu e lá participava de vá rios
movimentos, realidade que já havia começado no interior do Uruguai, onde antes
vivia. Era também a Associaçã o de Estudantes e Profissionais Cató licas, a Açã o
Cató lica, grupo de Economia e Humanismo. Ali chegavam pessoas e notícias do
mundo. Está vamos no final da década de 40 e começo da de 50. Terminada a
guerra, surgia um novo posicionamento dos homens frente ao Evangelho, à
religiã o. Aparecia claramente uma procura de autenticidade em relaçã o ao mundo
operá rio: tomava-se consciência de que a Igreja havia perdido essa classe.
Pe. Igná cio falava pouco de si. Quando o conhecemos, seus pais já eram
falecidos, estando vivos os quatro irmã os: um advogado, dois assistentes sociais e
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Pe. Igná cio. Este era o nome religioso, o nome de família era Carlos Francisco.
Carlos Francisco, terceiro de três irmã os, nasceu no dia dez de outubro de 1918. A
família era de forte vivencia cristã , tendo todos os membros atuaçã o política e
profissional em diversos segmentos sociais. O pai fora fundador, com outros
cató licos de Montevidéu, da Uniã o Cívica (partido conhecido hoje como
Democracia Cristã ).
Pela pró pria providência de Deus, estes homens marcaram sua geraçã o na
Itá lia, mais especialmente na cidade de Turim, no século XIX.
Foram eles: Cottolengo, que fundou, sem nenhum tostã o, casas e mais
casas para pessoas doentes, desamparadas. O santo Cottolengo transmitiu o seu
ideal de fé e serviço a centenas de pessoas, religiosos que hoje sã o milhares pelo
mundo inteiro. Dois princípios os animavam: “A caridade de Cristo nos urge” e “fé,
mas daquelas!”
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O jovem Carlos Francisco foi pedir orientaçã o a Dom Orione e pouco
tempo depois preparava sua bagagem e partia para Buenos Aires, o estava o
noviciado da Divina Providência. Foi o tempo de maior descoberta desse Amor-
Providência e de radicalidade na vida sacrificada que o fundador exigia. Assim foi
até ordenar-se padre.
Mas antes disso, aconteceu este fato, que ele me contou, apenas uma vez.
Um dia, Dom Orione o chamou. Pe. Igná cio tinha seus dezessete anos. Dom Orione,
sem nenhuma explicaçã o, o abençoou, o beijou e lhe disse: “Um dia, você vai ter a
metade da minha capa”.
A histó ria seguiu-se o comentá rio: “Dom Orione nã o usava capa, apensas
um velho capote e eu nunca tive nem um botã o dele, menos ainda a metade. Será
que se referia à vinda e ao trabalho de vocês?” A gente também nã o sabia
responder.
Sempre lembro esta “metade da capa” que, com o correr dos anos, vai se
tornando cada vez maior se é que se referia ao amor aos mais pobres, que o Pe.
Igná cio conseguiu despertar em tantas pessoas, amor este que, provindo do Amor
inesgotá vel do Pai, segue multiplicando-se e fazendo-se concreto através do tempo.
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fato foi tã o importante que se tornou uma espécie de “palavra de ordem”, de
inspiraçã o para sua vida.
Como o conhecemos
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se estivesse no mar provocando tontura. No fim da tarde fomos para Sã o Paulo.
Ficamos hospedadas no Hospital do Brá s, na Avenida Celso Garcia, onde Pe. Igná cio
era capelã o. Ele havia solicitado este favor à s irmã s, uma comunidade italiana, que
morava nesse hospital.
No outro dia começamos as conversas. A impressã o que Pe. Igná cio nos
causava foi muito forte. Falava de Deus, de seu amor e de suas exigências, de modo
calmo, mas forte e decidido. Falava das necessidades do pró ximo, dizendo que nã o
se podia “brincar” com elas.
“Olha-nos, Senhor, estamos em tuas mãos. Eu me encontro vazia e ausente, nesta hora tão
importante! Mas não posso dizer, passe de mim essa Hora, pois para isso chegara”.
E em outra nota:
“Senhor, terá chegado já a hora? Passamos tantas coisas nestes dias. Tua graça tem chovido
em cima de nós, temos reconhecido a mão da Providência – e tudo isso só tem uma resposta:
‘Dar a vida’ – começa a hora de romper e deixar – libertar o coração – começamos a seguir
teus passos pelo Calvário. Dá-me consciência, Senhor”.
Está vamos no mês de maio, no mês da festa de Pentecostes. Pe. Igná cio nos
havia apresentado ao Abade do mosteiro de Sã o Bento, que prometeu rezar por
nó s ao Espírito Santo, no dia da festa. Assistíamos a essa Missa cheias de devoçã o,
de esperança e de medo.
Estava decidido. Logo que possível, viríamos para Sã o Paulo, começar uma
vida operá ria, nas fá bricas, morando na periferia, entre os operá rios.
Começaríamos só s, sem privilégios de espécie alguma. Isso com o espírito
beneditino: nã o na forma tradicional, mas na sua essência: a vida comunitá ria e o
ofício divino. Tinha ficado bem claro que mesmo que disséssemos à s famílias que
era só por um tempo, deveríamos vir só se tivéssemos a ideia de ficar
definitivamente.
Nestes dias de Sã o Paulo, tivemos contato com umas moças operá rias que
haviam conversado com Pe. Igná cio sobre a vida consagrada em meio dos pobres.
Elas nos contaram suas experiências de trabalho, coisas duras, outras divertidas,
que nos empolgaram. Ficamos de juntar-nos e vivermos juntas, quando
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voltá ssemos do Uruguai. Porém, quando chegamos a Sã o Paulo, elas praticamente
haviam desistido, embora tivéssemos conversando sobre a nossa vida vá rias vezes.
Em Montevidéu
Pe. Igná cio nos preparou para a vida nova, com alguns encontros, uma
espécie de retiro. Destaco algumas frases:
“O mais importante de tudo é a caridade fraterna; que não exista nada contra a caridade.
Pobreza, castidade e obediência são como frutos, porém a raiz é a caridade. Nada
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escandaliza tanto como a falta de caridade. Jesus Cristo disse que nos reconheceriam como
seus discípulos, pelo amor”.
Este nome, que foi mantido até agora, significa “oferecidas”, vida em
ofertó rio a Deus, sempre nos causou problemas. É porque entre os beneditinos
significa as pessoas leigas que vivem como espírito da Ordem, e nó s somos
religiosas. Em outras congregaçõ es, o nome oblatas refere-se a pessoas apenas
“agregadas”, enquanto a nossa posiçã o é diferente.
Tudo era novo e, acostumando-se com o ritmo, a gente tomou gosto. Como
ficá vamos bastante tempo em silêncio, aprendemos a “ruminar”, a saborear o que
havíamos rezado e refletido. Neste aspecto, foi um tempo bom.
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pagavam, nã o havia movimentos reivindicató rios. Havia até orgulho de se
trabalhar ali, e, quanto à s mulheres, a situaçã o de operá ria era sempre mais bem
vista que a de empregada doméstica. Pouco depois de conseguirmos trabalho,
deixamos o pensionato e fomos morar em um “cô modo-cozinha”, na Á gua Rasa.
Meses depois mudamo-nos novamente, agora para a Vila Maria Alta, onde
moravam muitas colegas de fá brica. A essa altura, a partir de novembro de 1953, já
morá vamos com outras pessoas. Primeiro com uma mã e solteira com seu filhinho
de dias. A criança faleceu logo, e a mã e seguiu a sua vida. Continuamos
encontrando-nos até muitos anos depois. Em seguida, foi uma senhora abandonada
pelo marido com quatro filhos pequenos. D. Maria arrumou trabalho em outra
fá brica e dividíamos os gastos, os trabalhos e o cuidado das crianças. Com ela,
comecei a entender o valor de Nossa Senhora Aparecida na vida do povo. As
crianças preparavam-se para a Primeira Comunhã o e ela fazia questã o de que fosse
em Aparecida. Os vizinhos todos concordavam com a ideia, embora os que tinham
vindo do Norte trouxessem outras vivências e saudades... De modo que, terminada
a preparaçã o, gastamos todas as economias para ir a Aparecida do Norte. Numa
Missa confusa, no meio de uma multidã o que só anos depois entendi como “cheia
de fé”, as crianças comungaram.
O pessoal do bairro era todo muito amigo. Nã o nos encontrá vamos muito,
mas os quintais abertos facilitavam a convivência. Era uma hora de tirar a á gua do
poço, de lavar e recolher a roupa, nas chegadas e saídas. Sempre era hora para um
comentá rio, para contar algum fato. As crianças faziam o resto, pois estavam
sempre perto de nó s, e as mã es chegavam atrá s delas. Aos domingos vinham umas
moças ao bairro, ensinar catecismo. Quando souberam que está vamos lá , pediram
a nossa casa para reunir-se com as crianças. Fizemos amizade. Elas pertenciam a
um instituto religioso que acabava de ser fundado em Sã o Paulo. Como a criançada
estava sempre conosco, reforçá vamos um pouco as aulas de catecismo e íamos com
elas na Missa na paró quia. Formou-se um lindo grupinho que fez a Primeira
Comunhã o, ainda como tradiçã o, nã o como vida. É muito possível que nenhuma
daquelas crianças tenha continuado qualquer prá tica religiosa. Pois nã o tinham
sustentaçã o familiar nem comunitá ria. As moças do instituto deixaram de vir ao
bairro, que também ficava bastante longe da igreja paroquial.
Nesses momentos difíceis, contá vamos com ela, como pessoa mais velha,
mais experiente. Ela estava junto de nó s e nos acompanhava. Estava presente e
falava com as mã es, com os familiares, para explicar e amenizar. Sua presença, sua
palavra era de uma grande força. “Baluarte seguro, apoio forte”, assim era D. Yayá .
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dinheiro de conduçã o para voltar para a casa. Pe. Igná cio contratava, para pagar
depois, o taxi de um senhor amigo para ir levá -las. Assim as contas foram
crescendo e era preciso pagá -las. Ajudamos no que pudemos com nosso salá rio,
mas ainda nã o dava para saldar as contas. Aí foi que nó s escrevemos para o
Uruguai, pedindo se possível um pouco de dinheiro. Nunca havíamos pedido nada.
Foi a primeira vez e a ú ltima!
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A fidelidade à oraçã o se conservara mesmo nestas circunstâ ncias difíceis.
O ofício divino, a leitura da Bíblia e também a reflexã o para a leitura de outros
livros, sobretudo do começo do cristianismo, nã o faltavam na nossa vida diá ria.
Como conseguíamos? É difícil explicar, nã o fosse a grande força interior que a
gente tinha. Havíamos aprendido as “horas menores” de cor e as rezá vamos
descendo o morro, ou no caminho do ô nibus, de madrugada, mesmo quando a lama
pesada nos arrancava os sapatos dos pés, obrigando-nos a parar na estrada para
prosseguir depois.
Mas havia dias que o sono nos dominava. Penso que demos prejuízo à
fá brica. Um dia dormi em pé, trabalhando, e no cochilo quebrei seis lâ mpadas de
uma vez. Foi um estouro grande. Acordei com as mã os queimadas e o mestre me
xingando! Dormíamos no ô nibus, na volta para a casa. Sorte que os vizinhos nos
conheciam e ao chegar perto já nos acordavam, ou avisavam o cobrador, senã o
iríamos descer cada noite no ponto final.
Nem tudo eram flores... Esta frase de Sã o Bernardo esteve bem presente,
neste começo: “Nã o podemos ser membros coroados de flores quando a Cabeça
está coroada de espinhos”.
Tudo o que contei até aqui corresponde a uma primeira etapa, sem
estruturas. Um tempo de conhecimento da realidade, de experiência de vida, e
também de experiências fortes do amor de Deus. Nã o faltaram saudades,
sofrimentos e perplexidades.
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Segunda Etapa: O Senhor do Impossível (1955 -1960)
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Esta nova etapa compreende a fundaçã o e começos da OAF, e a formaçã o
do grupo das Oblatas: isto pertence ainda à “histó ria antiga”, e estende-se
aproximadamente de 1955 a 1960.
Por suas atividades apostó licas, o Pe. Igná cio foi se tornando conhecido em
Sã o Paulo. Ele nã o hesitava em procurar pessoas, nã o só para solicitar sua ajuda
para as necessidades concretas dos amigos mais carentes, mas também para
discutir os problemas mais gerais dos pobres da cidade. Outros também o
procuravam, no mesmo sentido. Eram os médicos do hospital, assistentes sociais
de diferentes trabalhos, oficiais ou particulares. Surgiu entre eles o desejo de
organizar-se. Fundaram a OAF, o que daria mais alcance aos trabalhos até entã o
individuais. Preencher-se-iam algumas “lacunas” sociais, através de uma ajuda
efetiva a camadas abandonadas, e também facilitaria o recebimento de dinheiro e a
prestaçã o de contas. Mas, sobretudo, criar-se-ia um novo modo de atendimento,
mais humano e mais cristã o. Dos interessados, vá rios trouxeram seus amigos,
comprometendo-se com o serviço aos “mais abandonados na sociedade e no Corpo
Místico de Cristo”. Nesta época, nos relacioná vamos mã es solteiras, mulheres
prostitutas, presos, presas e egresso das prisõ es. Ainda nã o se cogitara da rua. Pe.
Igná cio descobriu o povo da rua um pouco mais tarde.
Dona Yayá (junto com Pe. Igná cio) foi a animadora deste primeiro grupo,
fundador da OAF. As pessoas eram de formaçã o cató lica – exceto uma pessoa
espírita – uma situaçã o diferente, já que nesse tempo, os “judeus nã o se juntavam
com os samaritanos” (Joã o 4,9), ou seja, cató licos e espíritas nã o se misturavam.
Mas esta é uma das características do Pe. Igná cio, a de nunca formar grupos de
“puros”, mas sempre grupos heterogêneos, onde a vida e o amor estivessem acima
de qualquer puritanismo ou catolicidade. O grupo foi se formando com uma
espiritualidade cristã forte. Algumas do futuro grupo de Oblatas participavam dele.
Vou tentar colocar alguns dos princípios que nortearam sua açã o, e como
eram entendidos: amor e respeito, o pecado de omissã o social, o dinheiro, a oraçã o
para a açã o.
Amor e respeito
O que de mais forte o Pe. Igná cio transmitia era o respeito absoluto pelo
pobre: filho de Deus e irmã o nosso, tinha direito à nossa solicitude e caridade. Pe.
Igná cio nã o tinha acanhamento de falar do amor como mola de toda a açã o, nem
medo de parecer sentimentalista. Aliá s, suas exigências de coerência em relaçã o a
esse amor nã o alimentaram qualquer ilusã o: nã o se tratava apenas de sentimento
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de compaixã o. Assim, ficou escrito nos Estatutos da OAF, que se assumia “tratar
como pró prios, individual e socialmente, os problemas dos necessitados”.
E começamos a imaginar e por em prá tica algumas inspiraçõ es. Uma delas
foi a criaçã o do Mea Culpa, boletim que relatando problemas reais de pessoas ou
grupos marginalizados, punha a “culpa” do pecado nã o nos pobres, mas no outro
lado da sociedade. Isto foi uma novidade. A elaboraçã o deste boletim era levada
muito a sério: a equipe responsá vel reunia-se, discutia, escrevia, começando por
incluir-se ela pró pria no “Mea Culpa”. Nã o havia o farisaísmo de responsabilizar
apenas os outros. Mas tentavam nã o se omitir.
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omissã o. Programavam-se frequentemente “mesas redondas” onde com a presença
de algum especialista, se discutiam problemas relativos à situaçã o social,
econô mica, aborto, situaçã o das prisõ es etc.
O dinheiro
Depois do Dr. Jayme, foram alguns jornalistas a sair de suas casas, no meio
da noite, para esclarecer a situaçã o desse mesmo grupo de meninos, a quem se
procurava ajudar. E assim tantos.
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esmola que avilta, mas amor feito trabalho e ajuda fraterna”. Penso que os pobres
entenderam bem esta diferença. Ouvi o testemunho de que, tendo recebido por um
bom tempo casa, comida, orientaçã o para documentos, ajuda para emprego etc.,
quando alguém perguntou o que considerava o mais importante, nã o fez nenhuma
referência a tudo isso. Falou: “amizade e calor humano, isso é mais importante que
recebi”.
Lembro- me das primeiras liturgias que reuniam este grupo, e dos que,
animados pelo seu testemunho, iam a ele se juntando. Eram amigos da mesma
classe social e eram os amigos mais pobres, que encontravam ali espaço para sua
oraçã o.
Lá está vamos todos. A liturgia era uma Missa semanal, participada, na sala
de OAF, com as cadeiras e poltronas em volta da mesa que servia de altar, todos
vendo a todos, num ambiente fraterno e ameno. Eram trazidas para o Ofertó rio as
coisas dadas: comida para as casas, cobertores para a Ronda. Era uma novidade
naquele tempo, rezar a vida na liturgia. Pois outro dos princípios era que a oraçã o
nã o deveria nunca estar desvinculada da açã o. Ao contrá rio, deveria ser fonte de
inspiraçã o para a missã o que se queria viver.
Pe. Igná cio pode ser considerado pioneiro em muitas coisas, sobretudo na
Opçã o Preferencial Pelos Mais Pobres.
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Está vamos frente ao grande desafio: dar possibilidades de vida aos irmã os
que nã o tinham essa possibilidade. Amor, fraternidade total, e um pouco de
organizaçã o, eram os meios ao nosso alcance.
Um fogo que permanece aceso até hoje. Já havia um grupo de garotas uruguaias que tinham
deixado tudo: pátria, família, status e conforto, naturalmente, para viverem em nivelamento
com os operários, com todas as implicações que a insegurança social acarreta. E neste Brasil
de contraste e pobreza, que melhor campo? A vila Maria, bairro proletário, a fábrica Philips.
Conheci Nenuca e Ester com seus braços queimados pelas lâmpadas das linhas de montagem,
morando em habitações coletivas e participando do dia-a-dia do pessoal menos favorecido.
Impossível resistir a tamanha dedicação ao próximo. E Nená, tão bem dotada física e
espiritualmente e que ficou tão pouco tempo conosco, mas deixando uma profunda marca de
sua vida plenamente vivida com Deus e com aqueles mais carentes. Ele a levou para junto de
Si, onde permanece para sempre ao lado daquele que ela escolheu, mas seu exemplo ficou
com aqueles que tiveram a alegria de conhecê-la. A alegria de servir o próximo sempre com a
orientação do Pe. Ignácio era contagiante: e a necessidade de expandir, de crescer... Começa
a Organização de Auxílio Fraterno, em São Paulo, Salvador e Recife. O Pe. Ignácio não
poderia realmente ficar na limitação de capelão de um hospital; tinha necessidade de um
horizonte maior em amplidão; uma grande alma para um grande trabalho do apostolado a
serviço daqueles que estavam no fundo da cisterna, na indiferença dos homens.
Do grupo, umas trabalhavam nas fábricas, outras em hospitais, e procurando viver uma vida
de comunidade, rezava-se o Ofício Divino na humilde e pobre casinha onde viviam em
igualdade em tudo, com os vizinhos, mas procurando ser como um ‘vaso transparente’ que
deixa ver o que está dentro: o Cristo na alma, no coração e no olhar. Não era fácil, não!
Levantar muito cedo, preparar a marmita e enfrentar o ônibus invariavelmente lotado, o
avental do hospital que ia num pacote sempre chegava amarrotado, com a vida de tantos
companheiros de viagem desses ônibus de operários. Acontecia às vezes uma intoxicação
pela marmita que azedava, pois não havia muitos talentos para a cozinha, mas tudo isso
estava no programa; era a identificação para a maior glória de Deus; caso contrário, seria
apenas brincar com o Evangelho, e o que se propunha era viver o Evangelho. Nos fins de
semana livre havia a formação religiosa das crianças do bairro e se dava ‘uma mãozinha’
para as famílias vizinhas.
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Nada parecia tão aconchegante quanto a simplicidade da casinha de fundos na habitação
coletiva, o poço, pois não havia água encanada, não havia conforto material, e fazia frio!
Bem cedinho descia-se o morro para assistir à missa na igreja do bairro ou no hospital do
Brás, antes de começar o trabalho. No fim da tarde, a reunião com o Pe. Ignácio no Hospital
do Brás. O pequeno grupo foi crescendo: uma, outra e Maria Isabel que acabara de perder a
mãe e não se conformava.
Havia muita amizade, ternura e união no grupo, principalmente após uma jornada
cansativa onde o pão, repartido em comunidade de paz, trazia uma riqueza interior que
ilumina, universaliza e nos torna UNO. ‘O amor quando germina cria raízes que não param
de crescer’(St. Exupéry). Alguns frutos desse amor: na vila Diva, a creche e os pequenos
quartos para mães abandonadas. No Ipiranga, a casa das mães solteiras. Mais tarde a
‘amizade’: um cantinho diferente, onde encontrar um pouco de calor humano na zona de
prostituição. Quantas jovens perdidas na solidão do ‘trottoir’; sem esperança de uma mão
amiga, e quanta generosidade escondida nessas pessoas...”. Mercedes
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deste mundo e, ao mesmo tempo, nã o era intolerante ou orgulhoso com as
autoridades. Era um homem sem preconceitos.
Foi neste período que nasceu a Ronda Noturna para, como Bom Pastor, ir
ao encontro dos irmã os sem casa. Como consequência dela, uma oficina para os
que pudessem e quisessem trabalhar, ganhando algum dinheiro que nã o fosse
esmola. Era para homens da rua e adolescentes. Embora os trabalhos específicos
da OAF ocupassem seus dias e noites, nã o faltava um grupo formado na hora para
ir atender acidentes de trem, enchentes etc..., solidarizando-se com o sofrimento de
outros pobres da cidade.
Pe. Igná cio nã o se afligia quando faltava dinheiro, embora trabalhasse para
conseguir o que faltava. Mas tinha como princípio que se devia viver como os
pobres, sentir as suas necessidades na pró pria pele. Este princípio, na prá tica,
correspondia a nã o ter bens imó veis nem rendas que garantissem o trabalho. Era
para confiar na Providência. Isso tanto para a OAF quanto para o grupo religioso
que se formava.
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Menores... a situaçã o se prolongava e o dinheiro nã o aparecia. A moça veio vá rias
vezes, mas nã o tínhamos soluçã o. E nã o veio mais. Depois lemos no jornal que
havia matado os três filhos e se matado. Até hoje lembro-me dela. Nã o conheci as
crianças.
Este caso nos preocupou, marcou, vendo claramente as nossas limitaçõ es.
E a Providência? nos perguntamos. Ficou para nó s a angú stia. E talvez uma
compreensã o mais sofrida da paternidade de Deus, que nã o age só pela sua
Providência milagrosa. A fraternidade responsá vel é que faz concreta no mundo a
paternidade de Deus. Mas um grupo pequeno nã o dá conta de tudo... Eram muitas
as pessoas que nã o conseguíamos atender, por mais que nos desdobrá ssemos.
Fomos entendendo mais “o pecado social”, a responsabilidade dos que pecam ao
assumirem em suas funçõ es de Governo, de instituiçã o, o cuidado dos pobres.
Quando isso acontece, o sofrimento e o mal se alastram, nã o há jeito. E isso Deus
nã o quer!
O Pe. Igná cio esteve atento à formaçã o do pequeno grupo que queria vida
consagrada. Nada era muito planejado em questã o de horá rios. Havia alguns
encontros marcados, mas muito mais informais. Ele tinha sempre o que transmitir;
sempre encontrava tempo para estar conosco, onde juntos refletíamos e
aprofundá vamos as açõ es realizadas, dando-lhes um sentido espiritual.
Convivíamos muito uns com os outros. Trabalho, oraçã o, vida, eram facilmente
postos em comum.
Começamos a estudar a Regra de Sã o Bento, agora com Pe. Igná cio, agora
numa visã o adaptada à missã o e à s condiçõ es necessá rias para realizá -la. Foi uma
compreensã o diferente, que nos tem acompanhado em todos estes anos.
Impossível contar tudo aqui, pois embora interessante, alongaria demais essa
narrativa. Escrevo apenas alguns pontos que se aplicam de modo mais preciso à
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formaçã o e prá tica das comunidades, por serem de tanta importâ ncia na nossa
época.
Este caminho de Deus é difícil, mas nã o se deve fugir dele, pois a prá tica
generosa do amor alarga o caminho e o coraçã o de quem o percorre. E o seguidor
de Jesus é feliz.
O apelo de Deus aos homens adquiria nos ensinamentos do Pe. Igná cio
uma prá tica evangélica atualizada: Quem é chamado por Deus? “Deus procura seu
operá rio na multidã o do povo” e chama “a você quem quer que você seja”. Nã o
elitismo, a nã o ser no desejo sincero de seguir ao Senhor. Os ú ltimos podem chegar
a esta “escola”: sã o sempre bem recebidos.
O Pe. Igná cio nã o cessava de mostrar o valor que Sã o Bento dava aos
pequenos. No tempo em que eram especialmente os filhos de nobres os que
procuravam os mosteiros, Sã o Bento recebia também bá rbaras, incultos e rudes
que invadiam a Europa nascente. Nã o no segundo escalã o, para fazer serviços mais
pesados que os outros nã o gostavam de fazer, mas, muito pelo contrá rio, na
unidade e igualdade de todos, sem fazer distinçã o de pessoas, “ pois escravos ou
livres somos todos um em Cristo”.
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chamada e valorizada! Eles tema sua palavra a dar na comunidade e na sociedade:
é uma palavra profética.
Muito mais nos ensinou Pe. Igná cio a respeito da regra de Sã o Bento para a
nossa missã o; nã o foram simples ideias nas atitudes de vida que nos norteiam até
hoje.
Nã o era apenas à s Oblatas que Pe. Igná cio escrevia, mas também aos
amigos da OAF, que conservam essas cartas como relíquias.
Sempre nos havia parecido o mais razoá vel ficar onde Pe. Igná cio
estivesse, já que todas o reconhecíamos como o inspirador do grupo. Por isso, nos
alegrou saber que ficá vamos dentro da sua Congregaçã o que já nos acolhera, na
pessoa D. Abade Sabatini, do mosteiro de Ribeirã o Preto.
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Redigimos estatutos muito simples para a “Associaçã o Beato Bernardo
Ptolomei”. Assumimos ter uma responsável. (Este nome, responsá vel, foi fruto de
muitas reflexõ es. Nã o nos parecia verdadeiro, para nossa vida e nossa época,
chama-la superiora. Todos os outros nomes que apareciam também nos soavam
bem estranho. Venceu este nome “responsá vel”). O superior era o abade de
Ribeirã o Preto, que delegava os cuidados com o grupo ao Pe. Igná cio. É ramos 10, e
teríamos um ano de noviciado. Depois, a Oblaçã o, deita de uma ú nica vez para
sempre. Completado os passos, as dez fizeram a Oblaçã o, no dia 21 de agosto (festa
do Beato Bernardo) de 1959, na Abadia de Ribeirã o Preto, nas mã os do Abade
Sabatini. Escolhemos a primeira responsá vel, e seguimos a nossa caminhada.
Assim como Jesus, tentamos viver o “Deus conosco”, como uma presença
de vida entre os seres humanos mais desprezados. Antes da palavra, os pobres
devem perceber em nó s, pelo testemunho, a presença de Deus.
Era assim quando, pouco a pouco, fomos morar nas casas da OAF. Nã o
havia diferença exterior com as pessoas com quem vivíamos, a nã o ser no fato de
que assumíamos os trabalhos mais pesados. Comíamos da mesma comida,
compartilhá vamos os mesmos quartos, usá vamos as mesmas roupas doadas.
Também se vivia a fraternidade na Oficina dos homens, onde algumas faziam seu
trabalho.
Em todos estes lugares existia a nossa direçã o, mas tomá vamos tã o a peito
o fato de que era serviço, que internamente nã o diminuía a igualdade.
Como convivência, esse tempo foi muito bom. O peso do trabalho era
levado com alegria. Os dias eram muito movimentados, cada dia chegando gente
nova. Problemas e esperanças se misturavam. Da zona de prostituiçã o chegavam
moças com desejo de vida nova. Mã es solteiras começavam a trabalhar com seus
31
filhos. Mulheres esgotadas encontravam conosco um pouco de descanso. Homens
que anos vagueavam pelas ruas se sentiam à vontade na oficina. A Ronda, as
prisõ es, os problemas individuais, eram sempre fonte para conversas, estudo.
Porque se estudava muito esta realidade que se vivia. A equipe toda se encontrava,
refletia, imaginava soluçõ es, com o Pe. Igná cio coordenando este serviço.
Mas as pessoas sabiam e nos viam como o que de fato vivíamos, como um
grupo. Na reserva que fazíamos do nome religioso, começaram a chamar-nos “as
moças da OAF” denominaçã o que permaneceu por muitos anos, apesar dos nossos
protestos.
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Vale a Pena dar a vida
Esta vida cristã tã o intensa era visível e atraia muita gente que queria
ajudar. Houve neste período engajamentos profundos. Alguns chegaram a ser
vocaçõ es comprometidas. Outros puseram tudo o tinham neste trabalho: tempo,
vida profissional, formaçã o religiosa.
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Tudo, para que os mais pobres pudessem viver. Mesmo assim a maioria
dos colaboradores, depois de um ou dois anos de trabalho, se afastavam para
cuidar de suas vidas, mantendo a amizade e um relacionamento menos
comprometido.
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Terceira Etapa:
(1959 – 1964)
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Recife é o capítulo mais especial da nossa histó ria. Lugar da Missã o que
atrai quem só entende o sentido da vida na doaçã o total. Lugar de beleza
reconhecida: cidade atravessada pelos rios, banha pelo mar, com suas riquezas e
mistérios. Capital do Nordeste, cheia das lembranças histó ricas da dominaçã o
estrangeira e do valor e libertaçã o do povo.
O outro fato:
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“Um dia Pe. Ignácio teve que partir para a Itália, e quis Deus que o navio em que viajava
fizesse escala no Recife. Já no porto, o que viu! Tanta pobreza e abandono. As crianças da rua
e as prostitutas do cais do porto, e pronto: não haveria mais possibilidade de paz enquanto
não se fizesse algo: não dava para ficar indiferente”- Mercedes.
“Da janela do hotel, no centro da cidade, além das paisagens dos rios e das pontes, que o
encanta, as crianças que remexem o lixo em busca de alimentos para saciar a fome.
Impressiona-o o fato da miséria tão ao alcance dos olhos e de todos os sentidos. O fato de
alguém subsistir, sobreviver à custa do lixo marcou fortemente a sua sensibilidade, pois
mesmo tendo vivido o pós-guerra na Itália, visto tão perto a dor, conhecendo bem São Paulo
com seus problemas de metrópole, pólo da industrialização do país, onde a injustiça social e
trabalhista de toda a sociedade capitalista gera problemas, derivando-se revoltas,
desempregos, uma marginalidade ampla de prostituição, mendicância e outras sequelas, e
mesmo conhecendo a miséria extremam dos desabrigados , dormindo ao relento em noites
do Recife disputando com os cachorros, gatos e ratos o direito à sobrevivência.
O Pe. Ignácio parte de Recife com o coração oprimido. Ele prossegue a sua viagem, com uma
decisão já formada: precisa fazer alguma coisa por aquela gente esquecida. Ferve-lhe no
sangue um sentido de amor e justiça daquilo que ele chamou ‘a nossa dívida social’ e daquilo
que o levava a ensinar, como pecado coletivo ou o nosso pecado de ‘omissão social’ em suas
homilias e conversas. E em Pe. Ignácio uma decisão vinha acompanhada do sentido de
urgência Era expressão sua: ‘fazer muito e logo’. E da objetividade, que se manifesta numa
paternidade assumida e real, expressa em atitudes e fatos.
Tão logo lhe foi possível, expõe a um grupo de Oblatas em São Paulo o quadro que o
impressionava e questiona: O que fazer? Decidimos pelo deslocamento de um reduzido
grupo, despertando e impulsionado pelo amor aos mais pequeninos – Ignez.
“E assim ele voltou, lá fomos nós para o Recife para viver e participar daquela pobreza”-
Mercedes.
“Neste clima de ansiedade de se fazer muito e logo, paralelo ao diálogo forte com a equipe,
define-se a forma de como entrar em contato com os meninos, sem assustá-los,
conquistando-os” – Ignez.
“Da porta da casa se observa as jangadas”, dizia-nos o Pe. Igná cio para
estimular... Falá vamos dessas jangadas, do peixe dos pobres, de uma possível
venda de amendoim. Até se ensaiava o tom para vender a mercadoria. O grupo que
havia ido para a Bahia segue para Recife para ajudar no início do trabalho.
Em outubro foi a minha vez de ir para o Nordeste. Por lá fiquei, entre idas
e vindas a Sã o Paulo, por sete anos. Em Recife, como em Sã o Paulo, houve grande
variedade de atividades. A vida lá encantava – era mais simples e mais pobre que a
vida em Sã o Paulo, o que nos deixava mais a vontade para o tipo de vocaçã o a que
nos sentíamos chamadas.
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missã o do Recife, nã o muito livre, pois se criara uma inquietude pela saída de
algumas Oblatas. Como iria continuar o trabalho em Sã o Paulo? Havia tanto a fazer!
Já seria o momento de começar em outra cidade? Repetiam-se os mesmos
argumentos de sempre. Só que nessa hora, “as moças da OAF” e outros já estavam
no Recife... O problema ficou para as que permaneceram em Sã o Paulo, que se
viram na obrigaçã o de tomar esta posiçã o: “ou a OAF ajudava o Recife, ou elas se
retirariam da OAF”. Este “argumento” convenceu e começamos a receber o
dinheiro do aluguel, que era bem pouco.
“Ester e o trabalho de garçonete no restaurante da Rua da Guia, uma das tantas outras ruas
sujas e pobres da zona de prostituição; marinheiros e menores delinquentes, convivendo na
promiscuidade e procurando subsistir cada um na sua miséria e abandono. E negrita, a
camelô, vendendo balas e amendoins nas ruas dos meninos delinquentes; sim, como não
delinquir para poder sobreviver? O que poderiam eles oferecer a não ser o medo estampado
naquelas carinhas sofridas, olhar amedrontado e famintos de afeto? Crianças que nunca
tiveram um afago em suas cabecinhas piolhentas, cheirando a gasolina roubada para se
‘baratinarem’ quando não havia uns trocados para a compra de éter e maconha. A única
possibilidade de conquistar estes ‘capitães de areia’ era misturar-se com eles; a maneira
mais prática que se encontrou foi ser camelô com um tabuleiro pendurado no pescoço, balas
e amendoins, andar pelas ruas à procura desses ‘bacurizinhos’ que dormiam em caixotes de
lixo que esvaziados eram virados de encontro à parede ou que partilhavam de um cantinho
no mísero quarto de um prostíbulo. Eram sempre enxotados pela polícia do centro da cidade
porque destoavam, eram sujos e maltrapilhos”. Mercedes
Discorrer sobre os riscos e agressões que a equipe atravessou, sobre os convites insidiosos
por parte dos homens, e as consequências de sua revolta quando não entendiam a recusa,
abriria novo capítulo desta história. Para falar da violência que atemorizava: uma vez foi
necessário esconder-se sob os balcões do bar para livrar-se de uma garrafa na cabeça, mas
sem consegui-lo inteiramente. Foi preciso ir medicar-se no Pronto Socorro; graças a Deus a
coisa não foi grave!
Este bairro, a Ilha do Recife, apresentava na época uma estatística de cinco mil meretrizes
aproximadamente, residentes nas diversas pensões ali localizadas.
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O grupo de Oblatas e leigos tem definido o seu ideal de vida e trabalho. Inspirando uma nova
forma de espiritualidade fraterna, conta, desde a sua chegada a Recife, com a aprovação do
bispo da Igreja local e também com o apoio de um grupo de pessoas que vão se
comprometendo e engajando na missão. Na Ilha do Recife, bairro portuário da prostituição,
começou-se a missão buscando o testemunho e amizade com as mulheres, a partir do bar da
Rua da Guia. Meses depois este trabalho culmina propriamente na Missão na Praça do
Arsenal da Marinha: três dias de encontro entre elas e os amigos de Recife e São Paulo que
visitam em suas pensões, como pessoas portadoras de uma dignidade, mesmo que escondida.
Levam-lhes a reflexão das parábolas do Filho Pródigo, do bom Samaritano, de Maria
Madalena, reservando-se para o último dia a homilia do Bom Pastor, proferida pelo Pe.
Ignácio. Isso provoca uma profunda emoção religiosa, não só nelas, que depois de concluídas
as palavras do padre, chorando não se retiram dali, quanto na equipe que participa com elas
daqueles dias de vivências tão profundas.
E o que terá passado no coração do Pe. Ignácio que tinha frequentemente os olhos como que
perdidos no espaço, buscando algo sempre – Ignez.
Mas para os que foram ao seu encontro, quantas emoçõ es, quantas
novidades de amor! Nã o imaginavam que achariam tanta receptividade, ao ir cada
dia convidá -las para o encontro da tarde, no meio da rua. Foi um nú mero grande,
maior que esperado. Ali está vamos todos juntos, unidos, escutando as pregaçõ es,
vivendo o momento do Espírito. Estas vivências de fraternidade sem classes
constituíram a novidade da missã o, e base para um serviço posterior, mais
organizado.
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A aventura dos meninos nos leva para as ruas do Recife
O clubinho – porque não poderia haver disciplina, e não se poderia pedir algo parecido para
esses moleques tão livres e do seu pequeno e ao mesmo tempo grande mundo – era um
cantinho onde se podia entrar e sair à vontade. Apenas um galpão e a fome dos meninos;
improvisou-se uma lata, tijolos e algumas lascas de lenha, para fazer o café da manhã; não
havia coador e o jeito foi apelar para uma pedra colocada na fervura; era só esperar baixar
o pó e o café nunca foi tão gostoso.
Manga Rosa me ofereceu um pedaço de pão doce com a ingênua afirmação: ‘pode comer sem
medo que estava em cima da lata de lixo’. No momento fiquei um pouco chocada, mas
consegui engolir sem repugnância. Era contagiante tanta ternura numa criança tão sofrida,
que não sabia o que mais fazer para agradar. Certa vez Pinguim apareceu trazendo um
aquário que havia surrupiado; difícil foi convencê-lo a devolver!
Quando de repente eles se sentiam observados, a primeira reação era de medo; mas como
não chamávamos a polícia, eles começavam a se aproximar meio desconfiados a princípio,
pois os amigos, tão amigos que ofereciam sua proteção. Mais tarde fui convidada a visitar o
‘mocó’ onde viviam em completa promiscuidade. Foi por eles e para eles que se criou o
clubinho. Essas crianças não tinham o direito de andar de ônibus porque eram maltrapilhas
e descalças. Quando arrumamos as alpercatas (sandálias) muito usadas no Nordeste, foi
uma festa! No primeiro passeio de ônibus, fomos ao Aeroporto Guararapes ver os aviões
decolar. Que alegria! Assim começamos o trabalho na cidade do Recife” . – Mercedes.
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comida. Aos poucos fomos melhorando com o macarrã o e os biscoitos quebrados
que uma fá brica dava. E as pessoas que ficavam amigas iam trazendo mantimentos.
Como os Santos da Providência, posso dizer que a gente também viu, com
estes olhos, o amor do Pai, aqui e agora. Aconteceu que mais de uma vez nã o
termos nada para comer com os meninos, e aparecia gente, amiga ou desconhecida,
trazendo alimentos suficientes. Aconteceu de ter macarrã o, mas nã o ter gá s nem
lenha para cozinha-lo, e alguém passar inesperadamente e resolver o problema,
comprando o gá s. Aconteceu de fecharmos à noite o Clubinho, tendo dado à s
crianças o ú ltimo alimento que possuíamos (a gente sem jantar e sem “tostã o
furado”) e uma pessoa na rua nos dar dinheiro que dava para tomar algo nesse dia
e para o dia seguinte. E nã o era só uma vez, mas inú meras vezes, para nã o se
desconfiar da mã o cuidadosa da Providência Divina... Acontecia, entã o, que
tínhamos essas experiências tã o vivas do amor de Deus, que nossa fé e nossa
confiança nele só podiam aumentar.
“Cheguei à OAF por meio dos beneditinos de São Paulo. Estava ‘meio’ convertido e em
processo de Busca. Encontrei num ponto de encontro que era na Rua Riachuelo, a Sede de
Deus... Eu vi Pe. Ignácio, pobres, Oblatas, leigos, eram testemunhos vivos. A descoberta do
pobre e vice – versa. A incompatibilidade de viver com os pobres e a burguesia. Pe. Ignácio foi
questionado da possibilidade de organizar ‘oblatos’. Numa das célebres conversas –
meditação, explicou que para homens não haveria sentido por causa do sacerdócio; a vida
religiosa consagrada era diferente...
Na partida de Mercedes-Negrita para Recife ’brinquei’ e o Dom Bom levou à sério. Na hora
não aceitou, mas depois – ai, ai, ai!”. - Pe. Agostinho
Segunda Guinada
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Impossível deixar de ouvir o grito de Deus, saído pela boca – pela vida miserável – dos
meninos. A pobreza, a fome, o trabalho (café ambulante, cuidado dos meninos), a Paixão, de
pela primeira vez na vida me senti gente do povo pobre, mas nunca antes ou depois me senti
tão gente!
Hoje posso dizer: foi o “ágape do povo de Deus”. Começo do Reino. Não sei se alguma outra
vez, amei tanto e fui tão amado. Meninos, Pe. Ignácio, Oblatas, povo da rua, amigos,
familiares... Jesus Cristo.
Com os meninos o serviço, por enquanto, não era educa-los, mas sim conquistá-los.
Acabamos conquistados!”- Pe. Agostinho
Um local para dormir é a nova exigência que aponta, coincidindo com a pressão
feita pelo Juizado de Menores para que se dê solução em 24 horas ao abandono noturno dos
menores. O desafio, porém, encontrou resposta dentro do prazo estipulado, na pessoa do Pe..
J. Ayrton Guedes, que cedeu o salão paroquial. Lá os meninos têm seu primeiro dormitório e
são recebidos por aquele padre de batina preta, de ar tão severo mas tão bondoso e
acolhedor, que desprende as cortinas do salão para oferecê-las como cobertas a seus
hóspedes. Era o Advento, e dizia: ‘como poderia pregar o Natal e deixar os meninos
dormindo na rua?’ mas somar-se a cada dia uma, duas e outras novas conquistas já não dá
para continuar atropelando o salão paroquial, mais adequado a outras atividades. Passa-se
aos porões do Colégio Padre Venâncio, no bairro pobre dos Coelhos, onde por muito tempo se
instala a dormida. Esta dormida surge para a equipe como um terceiro expediente: os
problemas se sucedem nestas horas de liberação de energias antes do repouso; há os
agitados, as brigas, as procuras sexuais, os introvertidos que desabrocham para
comunicação e pedem escuta. Enfim, embora preenchidos os três expedientes do dia, forma-
se um plantão de colaboradores, que também pedem compreensão, necessitam formação e
muito diálogo e tempo, para compreender os problemas dos meninos e integrar-se na equipe.
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contato com a natureza e com uma quantidade maior de amigos, que se punham a serviço
para estimular o diálogo, organizar a recreação facilitadora de expressões e canalizadora de
tensões. E não era tudo tão fácil como agora se apresenta ao relato: todas as ações, desde o
mais simples diálogo até os grandes acampamentos eram calcadas em reflexão e oração,
demandavam tempo de preparação, esforço de organização e aquisição de recursos
especiais.
Morto o velho vigá rio, o bispo imagina criar ali uma paró quia missioná ria,
e para isto convida Pe. Igná cio. Já se tinha a presença e o trabalho, embora pouco
organizado, com as mulheres. Tratar-se-ia de ampliar para os homens, estivadores
e pessoal dos navios, e também para as famílias que viviam à margem do rio, numa
pequena favela...
Vamos abrir um parêntese para falar desta favela: parte dela estava
situada ao lado do rio, o terreno era mangue, alagado, constituindo o minguado
espaço livre para fazer os barracos. Outra parte eram barracos apoiados no muro
dos galpõ es que guardavam as mercadorias. Nã o é preciso dizer que todos os
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barracos eram minú sculos, sem á gua e sem luz, no meio do lixo. Mas ali no mangue,
o lixo adquiria outra dimensã o. Quando era possível e algum caminhã o se dispunha
a descarregar ali, era uma grande alegria, pois servia de aterro. Aliá s, isto nã o era
privilégio da “Ilha do Recife”, mas continua sendo-o para tantas favelas: o lixo tem
grande valor: é esperado e disputado!
Antecipava-se nisto ao Vaticano II. Deu muita importâ ncia a ele, embora
pessoalmente já o vivesse e nos transmitisse princípios que depois foram
discutidos e escritos por toda a Igreja. Esperava com ansiedade o começo das
sessõ es do Concílio. Tinha reunido as Oblatas em Sã o Paulo para falar-nos “do
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acontecimento mais importante do nosso tempo”. Foi a Ribeirã o Preto conversar
solenemente com os rapazes que ele havia encaminhado para lá e que se preparava
para o sacerdó cio. E é claro que nã o deixava os leigos para trá s; ele nunca fez estas
diferenças. Com todos insistia na necessidade de rezar e de estar atentos a esse
encontro marcado pelo Espírito de Deus com a Igreja. Alegria, expectativa, muita
responsabilidade Pe. Igná cio tinha em relaçã o ao Concílio, e o acompanharam
durante o tempo em que trabalhou na paró quia missioná ria.
As oblatas nunca fizeram equipes sozinhas, mas sempre com outros, que
aderiram ao ideal e o enriqueciam. Como em todos os grupos, o movimento vai se
alargando ao passo que uns se comprometem em maior ou menor grau. Nunca
fizemos categorias: simpatizantes, engajados, comprometidos, Oblatas... Talvez
tenha faltado a cada um, saber de modo mais claro, qual era seu lugar. Assim,
vivíamos fraternalmente, simplesmente, todos se sentindo responsá veis pelo
trabalho. Especialmente os que lhe dedicavam a vida.
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Um grupo de casais dispõ e-se a visitar as famílias do Brum, à s quais já fiz
referência, e preparar a sua integraçã o com a paró quia. À noite, percorria-se a ilha,
com os outros bairros da cidade, visitando os que dormem na rua. Estas rondas
noturnas continuaram e todos as faziam com gosto.
Pe. Igná cio era o animador de tudo. Tinha uma preocupaçã o grande com a
liturgia. Como conseguir que o povo participasse? Muitas pessoas entram na igreja
para rezar durante o dia, tanto os que trabalham por aí, como também as
mulheres, quando desciam para alguma compra ou para o médico. Mas nã o havia
participaçã o de modo permanente.
Pe. Igná cio começou com modificaçõ es na igreja. Mandou fazer um bonito
altar de madeira, para rezar de frente para o povo. Colocou na entrada uma
imagem de Nossa Senhora e ao lado dela, uma pequena oraçã o que era mudada
semanalmente, para que quem entrasse pudesse rezar. Tratou de reformar a
instalaçã o elétrica, pois a igreja era escura e nã o apareciam bem as figuras de
devoçã o popular, o grande Cristo Crucificado, acima do altar-mor, o Bom Jesus dos
Passos, de antiga devoçã o no Recife, entre outras. Todas as imagens religiosas
eram do século XVI, e acompanhadas de histó rias vindas até nó s através dos
séculos.
Do Bom Jesus dos Passos contava-se que tempo atrá s, muitos anos que se
perdiam no tempo, numa noite de tempestade, relâ mpagos e ventanias, no meio de
uma noite dessas, um pobre maltrapilho, com o corpo coberto de chagas (“o
homem das dores”) bate à porta do convento do Carmo, pedindo hospedagem. É -
lhe negada a guarida: “É muito tarde, nã o é possível, é um desconhecido”.
Prosseguindo sua peregrinaçã o, carregando seu sofrimento, o pobre atravessa a
ponte no meio da tempestade e bate à porta dos Padres Oratorianos, na Igreja
Madre de Deus. Ali é acolhido; dã o-lhe um teto para passar a noite. No dia seguinte,
logo ao amanhecer, desce um dos padres ao encontro do pobre homem, e no lugar
onde o havia hospedado, encontra a imagem do Bom Jesus dos Passos. Comovido,
percebe que haviam recebido o Senhor!
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Da discussã o entre os religiosos, surgiu a procissã o do Bom Jesus dos
Passos, cada ano, numa quinta-feira durante a Quaresma. Nesse dia, a imagem é
levada em procissã o para passar um dia no Convento do Carmo. E isto ocorre até
agora. É a festa tradicional da paró quia.
Há uma irmandade, antiga talvez como a estó ria, que se ocupa dos
misteres da procissã o, mas que nã o estava preparada, quando chegou o Pe. Igná cio,
para fazer da festa tradicional uma festa atual para o povo. Isto criou algumas
dificuldades entre o vigá rio novo e a antiga irmandade. Pe. Igná cio sabia do poder
dessas instituiçõ es. Sua presença de alguns séculos nas igrejas chega a constituir
um empecilho sério para o desenvolvimento pastoral.
A histó ria do Bom Jesus dos Passos nos atrai por tratar-se de um sofredor,
do tipo dos nossos amigos da rua, doente, sujo, andando na chuva. Até assusta! E
quando se vê, é a imagem tã o bonita de Deus!
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impressionava sempre era o Bom Pastor feito vida e a consideraçã o que tínhamos
para com elas, indo convidá -las, recebe-las e oferecer o lanche. Isto as animava!
Posteriormente, refizemos o texto da vigília para que se tornasse mais
generalizado, e servisse a qualquer grupo. Mas foi bem pouco o que foi preciso
mudar.
Na paró quia missioná ria, as coisas começavam a tomar corpo. Pe. Igá cio
estava atento a tudo, e tratava de “conferir” suas ideias com o começo de
realizaçõ es, em muitas conversas com outras pessoas, religiosas ou leigas, mesmo
nã o cató licas. Vinham padres da periferia, com experiências novas. Outros velhos,
com muitos anos de trabalho na cidade. Como o Vigá rio Geral tinha dito no dia da
posse, todos estariam atentos a esta “novidade” na igreja de Olinda e Recife. É
preciso corresponder com fatos à esperança. Mas o tempo na paró quia foi
demasiado curto. Em 1963, Pe. Igná cio já adoeceu.
Pe. Igná cio mantinha-se séria e amorosamente fiel à oraçã o do Breviá rio.
Esta oraçã o, obrigató ria para os padres e religiosos, consta de sete momentos
durante o dia e compreende a leitura de Salmos, da Bíblia, dos Santos Padres da
Igreja etc.
Nunca ele faltava a esses encontros com Deus, nem deixava de ensinar o
seu valor tanto para a vida espiritual pessoal, quanto para a força da missã o. Mas
antes de rezar o Breviá rio, Pe. Igná cio Tinha outra atividade, à qual tamém dava
muita importâ ncia: a leitura dos jornais. Acompanhava, como uma obrigaçã o, os
acontecimentos do Brasil e do mundo. Também os da Igreja. Era homem bem
informado, preocupado em discernir a açã o de Deus nos acontecimentos. Na
leitura de livros também investia muito tempo. Quase nã o dormia, lia em vá rios
idiomas os livros mais avançados. Era seu costume comentar e discutir problemas
gerais com pessoas de outra atividade, a nível profissional, político, artístico etc.
Nesses anos, o Brasil viveu situaçõ es difíceis. O presidente do país renunciou
inesperadamente e vice-presidente, que devia sucedê-lo, estava sendo impedido
pelo Exército. O Brasil inteiro vivia em estado de tensã o. Em Recife o momento
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também era de grande conflito com a opiniã o pú blica dividida, o Exército colocado
ostensivamente nas ruas. Pe. Igná cio reú ne alguns amigos para examinar a
situaçã o. O grupo decide assumir a seguinte açã o: confeccionar volantes e imprimi-
los sigilosamente e, com a ajuda de jovens preparados para agir com muita reserva
iniciar a distribuiçã o: num abrir e fechar de olhos, já está nas ruas que a linha
sucessó ria legal do governo deveria ser mantida. Sã o momentos emocionantes: por
um triz nã o levam preso um dos rapazes.
Para cuidar da doença, Pe. Igná cio veio vá rias vezes à Sã o Paulo.
Acompanhava a vida das Oblatas, continuava a orientá -las. Visitava o Mosteiro de
Ribeirã o Preto, onde, além de Abade e dos monges, estavam os rapazes que
continuava a aconselhar. O mesmo interesse pelos amigos. Também pelo trabalho.
Nã o um interesse geral, mas particularizado, concreto. Continuava atento e
presente a tudo.
Contudo uma sensibilidade geral, pró pria do seu estado levou-o a pensar
nos doentes desamparados, nos que morriam sozinhos sem nenhum conforto.
Como sempre, quis conversar sobre este assunto, com outros, ou com a pessoa que
achava mais identificada com a ideia. Nesta vez foi com Agostinho. Nã o sei o tempo
nem o conteú do todo da conversa. Mas ficou claro que, nas grandes cidades, a
pessoa humana, mesmo perto da hora da morte, nã o era considerada em sua
dimensã o espiritual. No pronto-socorro, corria-se mais para dar conta do serviço
material, do que para as necessidades profundas das pessoas agonizantes.
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Da doença do Pe. Igná cio nasceu o círculo Santa Verô nica, assim chamado
por ter sido Verô nica quem enxugou e aliviou o rosto de Jesus em sua agonia. E
adiantava: “Assim terã o como recompensa o rosto de Jesus, estampado, nã o no
lenço, mas no coraçã o de vocês”.
Sentiu uma profunda alegria por esta inspiraçã o e pela ajuda que recebera!
Comovido nos comunicava estes sentimentos. Foi um grande dia. Pe. Igná cio estava
internado no hospital Santa Catarina, recebendo aplicaçõ es de quimioterapia,
quando isso aconteceu.
Por isso, escreveu nesse dia uma dedicató ria no verso de uma imagem de
Nossa Senhora: “No Natal mais feliz de minha vida”. Escreveu isso no auge da
doença, com mã os que sangravam. Neste Natal também houve movimentaçã o nas
ruas da ilha: representaçõ es teatrais e religiosas no cais, onde todos foram
convidados. Visitas ao pessoal das pensõ es e à s famílias do Brum. A vida da
paró quia continuava, apesar da fraqueza cada vez maior do vigá rio. Mas desta vez
ele nã o conseguiu participar das festas na rua.
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Quando soube que sua doença era câ ncer nos gâ nglios, perguntou ao bispo
se desejava que entregasse a paró quia. Sabia que, apesar do esforço de todos, a
açã o apenas começava e que algumas realizaçõ es ainda nã o tinham saído da fase
da ideia, como o “apostolado do mar” previsto para os estivadores e marítimos. E
sabia que sua açã o ia ficar cada vez mais limitada.
“Um dos benefícios da doença tem sido valorizar mais o Santo Sacrifício da Missa e a reza do
breviário ‘como trabalho paroquial’, a limitação dos outros trabalhos me tem ajudado nisso.
Tenho mais clara a consciência de sacrificar e louvar em nome da Paróquia, representando-
a. Outro benefício tem sido integrar o sacrifício, a doença, como ‘apostolado paroquial’, e por
isso aceita-lo como útil ou necessário”.
Em outra carta:
“Hoje me tenho perguntado várias vezes: Por que sou tão feliz? É pela Santa Missa. Não sei o
que me fará sofrer o mal de Hodking, não sei o que eu poderei sofrer ainda da parte das
criaturas, mas tudo é totalmente indiferente. A realização de minha vida, pelo fato de
oferecido ao pai o Sacrifício de Cristo, é de uma ordem de grandeza tal, que não preciso mais
nada para ser realmente feliz. Se o tempo voltasse atrás, e o caminho ao sacerdócio fosse
mais áspero e mais longo, e eu soubesse que, chegando, poderia celebrar somente uma única
Santa Missa, sem nenhuma espécie de outro ministério, empreenderia o caminho, e me
sentiria felicíssimo e plenamente realizado. Como são verdadeiras as palavras do salmo ao
pé do altar, ‘de Deus que alegra e renova minha juventude’. Cada dia pela graça de Deus é
mais espontâneo e cordial o Cântico do ancião Simeão quando volto do altar à sacristia. Te
escrevo isto para que me ajudes a agradecer. Pede também a Deus que eu viva da Missa,
para a Missa, de tal modo que se a evolução da doença eu ficar impossibilitado de celebrar,
viva a alegria da lembrança e da gratidão do que pela graça de Deus deu um sentido pleno à
minha vida, e me proporcionou a maior alegria que possa ter uma criatura. Amém”.
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E mais um ú ltimo escrito, em outra carta, que talvez torne mais
compreensível o porque do grandíssimo amor do Pe. Igná cio pela Missa:
Era assim que Pe. Igná cio unia seu sacrifício ao de Jesus, neste tempo de
doença. Preparava-se para a celebraçã o da Missa, calculando o tempo dos
remédios, do descanso, para ter condiçõ es de rezar. E com que sacrifício! A febre
deixava-o com tonturas, suava copiosamente, ficava pá lido, molhado, frio...
Fez isto até dez dias antes de morrer, quando ficou de cama, e nã o se
levantou mais. Nesses dez dias que precederam sua morte, passados boa parte na
inconsciência, sonhava que estava rezando a Missa. Como que adormecido, fazia os
gestos da celebraçã o: a entrada, as leituras, e, mais frequentemente, a consagraçã o,
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o beber do cá lice, a distribuiçã o da Eucaristia. Quando o capelã o do hospital lhe
trazia a comunhã o, dizia: “Já celebrei”. E na ú ltima hora de sua vida, pediu que lhe
trouxéssemos os paramentos e o cá lice. Queria ainda – eram outras palavras suas –
“renovar e aplicar o Calvá rio pela humanidade”. Quando chegaram os paramentos,
novamente ele dormitava. Expirou uma hora depois.
Ao ver o estado em que ia ficando, cada vez mais sem forças, depauperado,
Pe. Igná cio começou a chamar-se a si mesmo “Dom Bagaço”. (“Dom” é o modo se
chamarem os beneditinos).
Pe. Igná cio esteve internado dez dias. No momento em que o tratamento
do hospital se tornou dispensá vel, e ele precisava apenas de oxigênio, oque poderia
ser feito em casa, tomamos uma decisã o. Numa hora que estivesse consciente,
consultá -lo-íamos sobre onde gostaria de morrer, se ali ou na igreja. Já nos tinha
dito que queria morrer na sua paró quia no lugar que Deus lhe havia determinado,
mas nã o sabíamos que achava que era o momento. Tocou-me fazê-lo. A pergunta
saiu meio rude:
- “Quero”.
- “Vamos sim!”.
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chegava, embora já estivesse muito fraco. No domingo pela manhã o médico já nos
avisou que já era o fim. De modo que nã o nos separamos mais; chegaram os mais
pró ximos. Recebemos sua bençã o; ele falava muito pouco, mas sorria para nó s, e
chegou a perguntar por alguém do grupo que no momento nã o estava presente. À s
16:30 h percebemos que se aproximavam os ú ltimos momentos. Cantamos,
rezamos com ele, já submergindo na inconsciência. A ú ltima palavra que dele
ouvimos foi “Credo!”. Pe. Igná cio nasceu em Montevidéu (Uruguai), no dia trinta de
outubro de 1918, e morreu no dia 19 de janeiro de 1964, aos 46 anos de idade.
Vá rias pessoas já nos disseram que receberam do Pe. Igná cio favores
especiais. Nunca tivemos tempo de aprofundar-nos nisso, embora nó s mesmas
também tenhamos recebido, por ele, graças especialíssimas.
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Quarta Etapa: Tempos Confusos (1964 – 1979)
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As Oblatas vão acabar?
Morreu Pe. Igná cio, o inspirador, o homem forte, o que conseguira manter
o espírito da missã o. O que vai acontecer? Para nó s Oblatas, era simples: tratava-se
apenas de continuarmos unidas e prosseguir no trabalho, conservando o que Pe.
Igná cio nos ensinara. O novo que aparecesse iríamos vivendo, a seu tempo.
Ficamos sabendo disso. Foi duro. Mas o compromisso com os pobres era
mais forte do que tudo o que ouvíamos. Ao menos por enquanto.
Nos trabalhos a luta era grande. O tempo curto para o que precisá vamos e
desejá vamos fazer. Era tanta coisa, tantas necessidades! Nó s nos dedicá vamos cada
vez mais. Muita gente nos procurava: de todos os níveis sociais. Uns para suas
necessidades, outros, por sua necessidade de doaçã o. Queríamos atendera a todos.
Neste tempo quem nos ajudou muito foi Pe. Guedes, de Recife. Podíamos
contar com ele para conversarmos e celebrar para nó s. Tinha a palavra justa,
quando se precisava. Estava muito pró ximo de nó s.
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convivência... com o pessoal da rua, adultos e meninos, com as moças na prisã o ou
egressas dela, com as que haviam tentado suicídio, com as famílias de todos...
Tudo continuou e até cresceu. Mas havia coisas demais para fazer.
Tínhamos apenas uma queixa, a falta de tempo. Uma queixa só , mas que era
constante. Essa falta de tempo, o envolvimento dia e noite nos problemas urgentes
de incontá veis pessoas, teve consequências que depois percebemos como
negativas. Sem dú vida foi um tempo heroico. Tudo era dado aos pobres, sem
reserva alguma. Mas ficá vamos afastados dos outros movimentos. Nã o tínhamos
oportunidade para refletirmos acerca dos problemas da Igreja e do mundo.
Falá vamos deles, e inclusive estudamos os documentos do Concílio, mas sempre
em horas de muito cansaço. Decorrido esse minguado espaço de tempo,
voltá vamos rapidamente aos que nos esperavam, com problemas angustiantes a
resolver de imediato.
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Logo o velho casarã o começou a funcionar. O inverno vinha rigoroso,
intensificando-se as rondas, saídas à rua, de noite, levando lanche e agasalho aos
que dormiam ao relento.
Tive a graça de estar quase todo o tempo com Nená , durante a sua doença,
pois permaneci nos hospital. Nesses dias, aprendi com D. Yayá uma coisa
importante, que tem servido vá rias vezes na vida. Eu rezava perto dela: sabia que
ela gostava disso, lia em voz alta alguns salmos, trechos da Escritura. Um dia D.
Yayá me perguntou, como eu falava com Nená , e eu lhe contei. Disse-me: “você
também tem lhe falado do seu estado? De quem tem vindo visitá -la, e do que tem
acontecido cada dia?”. Nã o eu nã o tinha feito. Disse-me entã o que o fizesse e que
seria bom. Nená em coma. Logo que pude falei com ela. Nesse dia Dom. Abade
tinha vindo de Ribeirã o Preto. Falei-lhe disso e das demais visitas, contei da
esperança de melhora que os médicos tinham, da presença nossa, da dos pais que
tinham chegado do Uruguai, de quem estava fazendo seu trabalho junto aos pobres
etc. Depois me animei e pedi: “Nená se você puder, faça algum gesto”. E ela, grande
esforço, tentou abrir os olhos! Nos dias seguintes nos comunicamos vá rias vezes
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assim, com pequenos gestos dela com a cabeça, eu pedia que abrisse a boca, e lhe
dava na língua algumas gotas de á gua. E nã o deixava mais de contar-lhe sobre o
amor que a rodeava.
Esta experiência me tem valido muitas vezes na vida, nos casos em que a
pessoa já parece morta.
A Nená Deus a levou. Depois de ter feito a escolha de viver como pobre,
entre os pobres, morreu de uma doença provavelmente contraída entre eles. O
Senhor favoreceu-a com esta coerência de vida e morte.
“Senhor, Tu estás comigo, ao meu lado. Tu és a minha rocha. A alegria e a paz que tu queres
que eu tenha, deve ser daquelas que desafiam tudo. Assim como diz o salmo: ‘cairão mil a teu
lado e dez mil a tua direita, mas a ti não atingirá mal algum’. Senhor, foi sempre assim a paz
e a alegria que eu desejei, que possam rir, de tudo e de todos, os inimigos. Uma paz e uma
alegria na tua ressureição, na tua espera, na esperança da eternidade. Senhor, dá-me essa
paz e alegria, para que eu possa dá-las. É o único que eu posso dar aos meninos. Se não tenho
isso, que poderei dar-lhes, senão angústias, solidão, desespero? Isso eles já tem.
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Que eu não esqueça o que eu aprendi: Que tu és o amor e sabedoria infinita e que por isso
meu maior encantamento está em adorar a sua vontade com carinho. Que eu adore e faça
tua vontade com carinho e solicitude. Senhor, se todos esperamos pelos outros, nada e nunca
se fará; é preciso amar primeiro como Tu, crer primeiro, alegrar-se primeiro”.
As buscas na incerteza
Mas praticamente íamos para dormir. A vida estava toda na OAF. Nada
sobrava fora da instituiçã o, mas novos problemas aparecem.
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Por um lado, as novas que chegavam agora para integrar o grupo. No
período de formaçã o, iam trabalhar no que chamá vamos de trabalhos “de
participaçã o”: nesse momento, em fá bricas e como serventes em hospital. Era uma
experiência da realidade, boa e intensa. Porém viviam o problema de ficarem
muito só s e sem espaço para aprofundar conosco a nova vivência.
Só sair para morar fora da OAF era pouco. Desejá vamos voltar para uma
convivência mais autêntica e missioná ria entre os pobres, dentro da sua realidade,
sem o peso da instituiçã o. Trazíamos isso em nossa histó ria; reconhecíamo-lo
como carisma da nossa vocaçã o. Para nó s, Oblatas, pensar nesta convivência era
pensar em trabalhar novamente na rua. Voltá vamos as nossas fontes. Procurar os
locais da cidade onde estã o os marginalizados e participar da vida nesse ambiente.
Manter uma presença nos lugares onde ”moram” as pessoas com as quais
escolhemos trabalhar.
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As brigas, muitas vezes de tremenda e mortal violência; o medo da polícia
(quem está no meio é suspeito); o inesperado rapa da prefeitura, que chega de
surpresa e com que agressividade! Levando a mercadoria que, juntamente com
outros, estamos vendendo. A polícia e os fiscais da prefeitura agem na base da
violência, nã o deixam tempo para explicaçõ es. É preciso correr, ou enfrenta-los “na
manha”. No submundo há intrigas, xingos, palavrõ es, ameaças, a morte é coisa
corriqueira. Na rua, ou debaixo dos viadutos, vive-se na sujeira, exposto ao sol, à
chuva, ao frio, ao vento.
Porque a gente percebe que nã o vai dar para “libertar os cativos”; mudar o
ambiente, ainda vai levar muito tempo. Nã o será antes de mudarem as estruturas
sociais. E isso quando acontecerá ? No fundo, todavia, sentimos que Deus quer
mudanças. Qual é o modo de agir para ajudar nessa mudança que Deus quer?
Enquanto buscamos respostas, nos alegramos com um ou com outro que se liberta.
Mas é tã o pouco. Nã o fossem os rostos, os olhos, os sorrisos... Diante das angú stias
que conhecemos, ainda é difícil escutar a resposta de Deus aos apelos para salvar
esse povo escravizado.
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aqui relatos desse tempo: o de Cristina, na pequena comunidade do Brum, e o de
Jú lia, em uma casa da OAF.
A experiência de Cristina
“Era uma casa pequena, de cômodos de dois andares. As divisões dos quartos eram de tábua,
meia parede, quartos pequenos, de 3m x4m ou menos. Eram seis quartos e um pequeno
quintal. Um só banheiro no fundo da casa, comum com os fundos do bar. Todos usávamos
esse único banheiro, os moradores da pensão e os fregueses do bar. O movimento era
contínuo.
A dona da casa era uma velhinha, Dona Nenê. Morava em um dos cômodos embaixo. Aos
poucos fomos ficando amigas, conhecendo a riqueza de sua vida e a força de sua luta. Muito
desconfiada, queria preservar sua casa de ‘bagunça’ como se dizia, e era difícil ela alugar
quartos para gente desconhecida. Sua casa ficava na Ilha do Recife, toda ela dominada pela
vida do cais do porto. Era o vaivém dos marinheiros, dos capitães, dos oficiais, com seus
‘dollars’ que iluminavam o rosto das meninas que moravam por lá, na pobreza, na fome; era
o movimento dos grandes depósitos que guardavam as mercadorias de exportação: Moinho
Recife, usinas etc. Bem como o movimento de muitos homens que desde madrugada
carregavam sacos na cabeça, no calor e na chuva.
Este ambiente da ilha tinha uma vida própria, sustentada por esse movimento. Havia
prostituição mais rica, a mais pobre, os grandes depósitos. Um aglomerado de quarteirões
que se constituíra, a partir da vida da ilha, de uma forma mais estável: ‘O Brum’. Alguns
casais, algumas mulheres que alugavam quarto para assegurar um teto aos filhos. É ali que
Dona Nenê tinha sua casa. Saindo à procura de um quarto para alugar nesta região.
Soubemos que ela tinha um desocupado. Mas não foi fácil convencê-la! Nossa proposta
deixava na maior dúvida. Duas moças, muito novas, dizendo que vendiam café na rua e que
precisavam de um cômodo para morar. Não tínhamos família em Recife e morávamos com
outras colegas... Não havia entendimento, ela não aceitava! E nós não queríamos perder o
quarto. Pois nos parecia o ideal. Fomos várias vezes lá tentar convencê-la. Mas nada. Ester
lembrou-se de uma mulher, que se tornou sua amiga quando trabalhava no bar da Rua da
Guia (nesta mesma ilha), anos atrás, a Madalena. E realmente foi pela palavra de Madalena
que conseguimos nosso quarto. Ela tinha uma barraquinha de bebida lá perto e conhecia o
rapaz, dono do bar, Dona Nenê e todo mundo. Declarou-nos moças de confiança, que não
falharíamos com o aluguel. Madalena explicou que Dona Nenê poderia ficar sossegada, que
não íamos fazer de sua casa um prostíbulo.
Minha expectativa era grande. Tinha vindo do Uruguai havia três anos, no desejo de
partilhar, de viver junto com o povo uma vida de pobreza.
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Outros dias Oblatas também se dispuseram a refazer a caminhada, e assim retornamos à
ideia inicial de convivência partilhada.
A vida foi acontecendo na simplicidade do dia-a-dia. Levamos uns móveis para lá, duas
camas, três colchões, um armário, mesa e fogão: Chegamos ao quarto de manhã cedo e, dez
minutos depois, já havíamos arrumado tudo. O que fazer? Havia que comprar panelas, não
tínhamos comida! Saímos à procura de latas, coamos café e fomos vender. Assim
conseguimos comprar as primeiras panelas. Lembro-me das ‘sardinhas com pão’ daquele
tempo. Era o mais barato que encontrávamos. Era o que mais comíamos com maior
frequência. Quando me lembro, sinto ao mesmo tempo saudades e náuseas.
As duas vendiam café. Dava mais dinheiro, era mais fácil de vender. Perto do dia de pagar o
aluguel vendíamos até nove garrafas por dia cada uma. Eu reservava o período da tarde
para ir às pensões. Às vezes levava sanduíches da vender, em outras vezes bolo. Sempre ia
com alguma coisa. Subia 15 a 20 pensões todas as tardes. Foi neste contato com as pensões,
com as moças, que fui entendendo o mistério da contemplação mais profundamente.
Pela miséria, pela dor, pelo sofrimento que se desprendiam daqueles cubículos, sentia a
urgência de apresentar este povo a Deus, a Ele que foi ungido por Madalena e defendeu a
mulher do apedrejamento, que ofereceu água da vida para a Samaritana. Não havia
ninguém mais interessado do que Ele, mais capaz de entender e olhar, de abrir nossos olhos e
ouvidos para que se concretizasse o caminho da Boa Nova.
O movimento era incessante e dependia muito dos navios que chegavam. Os ‘gringos’ eram
exigentes, sensuais e sem limites. Sentiam-se ‘donos’ por estarem em terra estranha, queriam
ser agradados e servidos continuamente. Os sentimentos que despertavam as moças eram
contraditórios, e iam do servilismo, do amor, da ilusão talvez de um dia enfrentarem o mar e
se casarem com alguns deles e se libertarem daquela vida, à revolta de serem massacradas,
pisadas, usadas...
Muitas das meninas eram adolescentes de quatorze, quinze anos. Outras mais velhas, de
vinte e cinco a trinta anos, quando amigadas com algum ‘cafetão’ passavam a ser ‘donas’ da
pensão. Embora muitas tivessem consciência do mal do poder, a ambição, o dinheiro e o fato
de se verem livres do ‘uso’ dos fregueses tornavam-nas prepotentes. As pensões eram sempre
no primeiro e segundo nadar, nunca no térreo. Havia um salão central, tipo bar, onde se
bebia à noite, e para onde davam os quartos de cada uma, onde mal cabia uma cama de
casal. Em cada pensão viviam de 15 a 20 moças, conforme o tamanho. Algumas tinham um
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quarto fora dali, mas eram poucas as pensões que permitiam isso. A maioria tinha de ficar
morando na pensão.
Vendendo bolo e sanduíche, fui conhecendo esta vida. Fiz muitas amizades, aos poucos ia
conversando coma turma. Batia-se um papo, brincava-se um pouco. Ouvia muitas histórias
da família e dos filhos, das saudades, das tristezas. ‘O Bom Pastor vai a onde não vai
ninguém...”
Encontrava um horário mais calmo, em que podia andar nas pensões mais livremente, mas
também dependia dos dias e dos navios. Vivi situações mais difíceis: cheguei a sentir medo.
Nestas horas, a amizade se concretizava na proteção, na amizade e cuidado que as moças
tinham para comigo. A coragem de voltar vinha da força de Deus, o Senhor do Impossível, o
que veio trazer a Boa Nova a todos, especialmente aos mais sofridos e desprezados, como
estas meninas”.
A experiência de Júlia.
“Quando morávamos em Caxangá, algumas moças das Oblatas vendiam bolo nas pensões
para fazer amizade com as meninas que se prostituíam. As que desejam uma vida mais
humana tinham a oportunidade de ir para essa casa no bairro de Caxangá. Lá moravam com
a gente e com os filhos, se os tinham. Sentiam o gosto de serem tratadas como gente.
Num desses dias, chegou Cristina muito preocupada com a Dona Joana, um senhora de meia
idade que morava num corredor da pensão. Estava desenganada pelos médicos. Tinha um
câncer incurável. Como não podia mais ‘trabalhar’ tinham permitido que ela ficasse ali.
Sofria muito, mas ainda pensava que poderia voltar à vida de antes. Conversamos e
resolvemos convidá-la para que viesse morar conosco. Desocupamos um quarto para que ela
ficasse mais tranquila. Veio e ficamos cuidado dela. Sabíamos que sofria muito, tentávamos
amenizar sua dor, com os nossos cuidados e carinhos. Nós também sofríamos vendo-a sofrer.
Ela havia tido vários filhos, mas estavam espalhados pelo mundo não sabia onde. O médico
vinha três vezes por semana e a enfermeira todos os dias. A enfermeira fazia curativo pela
manhã e eu à tarde, mas mesmo assim, cheirava mal. Sua roupa cheirava muito mal, um
cheiro forte. Uma das moças, também da zona, hospedada na casa, resolveu ajudar-nos e o
fazia com muita dedicação. Ajudava a dar banho, lavar a roupa etc. Mesmo assim da porta
do quarto já sentíamos o cheiro. No começo ela falava muito e tinha delírios. Tudo
relacionado com a vida horrível que tivera. Era polícia, fugas, cobrança, orgias etc... Uma
mistura de medo, fuga, desejos. Depois foi ficando magra, cega, não podia andar e não ouvia
bem, tinha dores horríveis. Apesar dos cuidados com que tirávamos os bichos, com a piça, no
outro dia, era como se não tivéssemos tirado nada. Tomava várias injeções. Sempre à noite, à
beira de sua cama, eu contava as histórias de que ela gostava muito e pedia para ouvir sobre
os santos, os seus sofrimentos etc. Quando o sofrimento se tornava mais intenso, nunca
reclamava. Quis confessar-se e várias vezes comungou. Morreu rezando. Pediu para gente
rezar com ela. Acompanhamo-la até a morte.
Antes de morrer, pediu-me que pagasse muitas promessas, como mandar fazer toalha de
altar, mandar celebrar missas, acender velas, rezar terços, acompanhar procissões. Fiquei
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preocupada com tantas obrigações e resolvi conversar com o padre a respeito, pois tinha me
comprometido com ela. O padre deixou-me livre dessas obrigações. Fomos ao seu enterro,
com as moças da casa e os meninos que estavam no Colégio, e também a visitavam.
Dona Joana nos deixou saudades. Seu exemplo de fé e a maneira com que aceitou sua doença
e sofreu até o fim, não os esqueço mais”.
A experiência de fortunata.
“Desde muito cedo, senti que Deus me chamava para a vida religiosa. Conhecendo o grupo
pela simplicidade e toda a dedicação aos pobres, vim de Recife para São Paulo.
Não dava mesmo para entender, pois não dizíamos que se tratava de um ideal religioso.
Acordávamos muito cedo para rezar, mas eles não sabiam. Procurávamos dar todo
testemunho, mas não se falava em vida religiosa. Partimos então à procura de trabalho; foi
difícil.
Eu desejava trabalhar em hospital. E, por mais indicações que tivesse, quando chegava não
dava certo. Era por minha idade, pois já tinha mais de 35 anos, que era a idade limite. Então
passei a procurar em fábricas. Procurava pelos anúncios de jornais, saía à procura, e nada.
Já estava desanimada, quando a pedido de um senhor amigo, consegui um trabalho numa
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fábrica de tecelagem. Tinha vaga na seção de limpeza de peças de tecidos. Fiquei um ano e
três meses. Foi uma experiência muito dura. Éramos seis, a trabalhar nesta seção, a nossa
chefe e um rapazinho novo que ajudava ‘a nossa chefe’ a pesar as peças da fazenda.
A ‘nossa chefe’ era uma moça muito revoltada, que gostava de massacrar e humilhar a gente.
Uma colega e eu éramos as mais novas no trabalho. Sofríamos mais, pois éramos designadas
para o trabalho mais pesado.
Ela chegava na bancada do trabalho e dizia que eu não fizesse hora, que eu tinha que
trabalhar mais rápido, que ele queria era produção. Queria que deixasse a sujeira no tecido,
que passasse por cima, achava que não precisava fazer bem feito; a produção para
apresentar para o chefe dela era o mais importante. Xingava a gente! A minha colega não
aguentava, respondia à altura, e dizia que eu tinha de deixar de ser tola. ‘Não dê ouvido’.
Realmente, se eu não tivesse bem dentro de mim, que eu estava ali por um bom testemunho,
para sentir como é a vida de operária, a vida dos pobres, teria me revoltado. Assim estaria no
papel da pessoa que em vez de se consagrar a Deus ‘ não levava recados para casa’, como diz
o ditado popular. Mas por outra parte, as operárias compensavam, a seu modo, as injustiças.
Vi estragarem tecidos, fazer horas no banheiro, chegar atrasadas, dizer palavrões nas ‘costas
da chefe’, dirigidos a ela.
Tudo isso eu levava com jeito para não me colocar muito diferente das colegas. Também
contavam muitas piadas pesadas... Depois de algum tempo diziam: ‘não vamos contar perto
dela, a gente sente que ela não gosta, que dá sempre uma risadinha sem graça.
Sempre me perguntavam por que eu era calma, brincalhona, alegre e não respondia mal a
ninguém. Mas ficava sempre uma interrogação. Passei ali pouco mais de um ano, e quando
tive que pedir a conta, ninguém entendia por que eu deixava o trabalho. Quando faltavam
poucos dias para a minha saída, contei-lhes da minha vida, o tempo entre elas como
preparação para a vida religiosa.
Mas, mesmo assim, ainda não conseguiam entender: como por causa de uma vida ‘de freira’,
uma pessoa se sujeitava a tantas humilhações. Quanto a elas, não tinham consciência de
classe operária, não questionavam a exploração, ao menos na nossa pequena seção, que
pertencia à última categoria dentro da fábrica. O grupo forte era das tecelãs urdideiras etc.
As minhas colegas trabalhavam pelo salário. E este salário ia inteiro nas prestações de
roupas, bijuterias, perfumes e calçados. Era uma aflição fazer os vales para pagar, quando a
vendedora passava para cobrar! Esta preocupação passava à frente de outras necessidades
mais vitais. O tempo em que trabalhei naquela fábrica foi bom, mas lamento não tê-lo
aproveitado melhor”
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convenciam do valor do tratamento grupal, e da evangelizaçã o do ambiente. A
maneira como nos situamos frente a estes problemas, constitui um pequeno
capítulo, que será aposto ao relato de outros problemas graves que enfrentamos
nestes “tempos confusos”.
Até agora uma coisa estava clara: o grupo das Oblatas existia para os
pobres. Estava escrito nos Estatutos da Associaçã o Beato Bernardo e se havia
constituído toda uma prá tica desde a sua fundaçã o.
Por outro lado, também estava escrito, e bem claro, qual era a finalidade
da “Associaçã o Beato Bernardo”. Queríamos estar atentas à voz de Deus, ou seja,
nã o fechar o “ouvido do coraçã o”, ser fiéis. A opçã o assumida pelas Oblatas passava
por momentos difíceis!
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definiçã o pelos pobres. Assim conheciam o grupo, assim o admiravam. Era deste
modo que Pe. Igná cio o havia imaginado e criado. E mais, correspondia ainda hoje
à s necessidades da Igreja. Nã o viam motivo para mudar. Estas pessoas eram as
portadoras da palavra da comunidade maior, da Igreja local.
Na prá tica nã o seria mais fá cil. Com quem deixar o que se fazia? Se já era
hora de os leigos assumirem, o que todos achavam bom, faltava ter criado a
dinâ mica para que o processo se fizesse naturalmente. Conversamos muito, muito.
Todas as opiniõ es foram consideradas. Entretanto, era claro: o grupo das Oblatas
precisava encontrar-se, por um tempo razoá vel, para discernir sobre o seu pró prio
destino. Nã o tinha condiçõ es de continuar sem uma séria reflexã o sobre si mesmo.
Parecia-nos que seis meses seriam um bom prazo e assim propusemos a diretoria
e amigos da OAF de Recife. Aceitaram, mas um pouco pressionados pelas
circunstâ ncias. Isto foi nos anos de 1974 e 1975.
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Um tempo de discernimento
Porém com a casa mais aberta, mais gente da rua vinha à nossa procura, e
isto amedrontava os vizinhos. Este medo dos marginalizados nã o se limita à vila do
Brá s, mas é um problema que sempre temos que enfrentar. Conosco, tudo bem;
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com os pobres sujos, ou bêbados, distâ ncia... Converter o coraçã o dos pobres, faz
parte do nosso trabalho.
Quanto ao problema principal que nos havia reunido, víamos cada vez
mais claro. De modo que, em julho de 1975, apresentamos à Abadia de Ribeirã o
Preto nosso pedido de desligamento, o que foi concedido.
Este tempo do Brá s foi dedicado à revisã o do ideal e a deixar algum escrito
que definisse o grupo, o modo de vida que se desejava e novos estatutos, enfim.
Havia certas exigências jurídicas que devíamos cumprir.
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Ao escrito onde falamos de nossa vida chamamos “Caderno”. Na primeira
parte, levantamos as ideias fundamentais da espiritualidade do Pe. Igná cio e na
segunda parte fizemos uma reflexã o sobre o ideal e a vida das Oblatas, em seus
aspectos concretos. Tem servido para apresentar o grupo para quem chega,
querendo conhece-lo. Quanto à releitura da Regra, nã o deixamos um trabalho
elaborado. Serviu-nos para revermos conceitos dialéticos que na prá tica
apresentariam dificuldades: a antiguidade da Regra e as transformaçõ es de hoje,
em todos os campos; social, psicoló gico, político, econô mico; vida em comum e
tempo para a missã o; vida moná stica reservada e profetismo comprometido;
contemplaçã o na oraçã o e contemplaçã o da realidade; oraçã o e política; amor e
justiça social. Foi um estudo bem interessante. Nesse período foram festejados
mundialmente 1500 anos do nascimento de Sã o Bento. Respondendo a perguntas
enviadas pela Comissã o Geral, escrevemos brevemente o que a Regra significava
para o trabalho com os que estã o fora do convívio social. Para estas respostas,
recorremos ao estudo que havíamos realizado, resultando um pequeno escrito
para o uso da comunidade.
Foi uma palavra de ordem, clara como um facho de luz. Por ela fomos
dirigindo os nossos passos. Passos que nã o eram fá ceis. Na grande cidade, a igreja
do centro é a menos viva, é a que mantém a tradiçã o. Os pobres aí nã o têm lugar,
nã o tem chã o para construir seus barracos. Em Sã o Paulo, dois milhõ es de pessoas
vivem nos cortiços e debaixo dos viadutos. Ninguém os vê, estã o escondidos por
detrá s das portas das antigas mansõ es do tempo do café, ou perambulando pelas
ruas. Dispersos, sem nada que os uma, lutando apenas pela sobrevivência, ou por
um subemprego. Para nó s a opçã o nã o era problema. A dificuldade era começar um
novo modo de organizaçã o que ajudasse a se tornar ”Povo de Deus” em caminhada
de libertaçã o. Nã o mais cada um por si, mas grupos unindo-se a outros grupos,
sendo e construindo a Igreja.
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E a OAF?
Esta era uma face ideal e verdadeira. Mas nã o é a ú nica. Tinha outras faces.
No bom desejo de proporcionar ao pessoal da rua um tratamento adequado,
contrataram-se muitos técnicos e funcioná rios. Houve a divisã o em setores
independentes: Rua, Albergue, Casa dos Meninos, Oficina Abrigada etc. A casa ficou
grande, mas sem dono. Criamos estruturas que fizeram perder muito de espírito. E
surgia esta pergunta: “Quem é a OAF?” Eram todos e ninguém. A confusã o era
grande.
Mas o que me parece fundamental é que a OAF havia sido criada no tempo
em que se trabalhava “para” os pobres, e isto permanecia. Coisas boas se faziam
neste sentido. Nã o se conseguia chegar a atender e assumir o trabalho a partir de
“com” os pobres. Foram meses e anos de conscientizaçã o com o grupo que
trabalhava na OAF.
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coragem para assumir esta mudança. E nem quero falar aqui dos
desentendimentos, das acusaçõ es, das dú vidas, do desgaste...
Das sete Oblatas que éramos, uma se afastou nesse período. Ficamos seis.
Meia dú zia de Oblatas, duas delas seriamente doentes, algumas jovens
participando de nossa vida e de nossa luta.
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Quinta etapa: O Povo da Rua Abre Espaço Na Igreja de São Paulo
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Para Vinho Novo, Odres Novos (Mc 2, 22)
Depoimentos
“O sofrimento, a cruz, o martírio do povo foi me envolvendo, durante todos os anos em que
vivo próximo dele. Convivi muito: vendendo como ambulante, trabalhando como faxineira
em delegacias e diversas firmas, onde experimentei e assisti tantas injustiças. Tralhei na
zona de prostituição em Recife, onde a corrupção e o dinheiro compram tudo; na cadeia de
mulheres onde o poder oprime, mata, chama ’de doida’. Por fim, o conhecimento de vários
grupos de adolescentes chamados de ‘trombadinhas’ em São Paulo, e o sacrifício de suas
vidas jovens: Flávio, de 16 anos, morto a tiros, frente a estação do Brás, por um policial para
ganhar uma aposta feita enquanto bebia, para mostrar sua coragem de atirar naquele
menino indefeso que lavava carros ali fora, debaixo do viaduto. Os adolescentes que iam
preso e a grande dificuldade de encontra-los nas delegacias, nos encaminhamentos da
FEBEM (Fundação do Menor) para as cadeia de Mogi, Sorocaba; na celas fortes que era o
castigo a que os meninos era submetidos. A morte de seis pequenos amigos nossos, três
rapazes, entre 13 e 18 anos. Seus corpos encontrados pelos familiares, crivados de balas, com
dentes quebrados, cortes pelo corpo; uma menina com o couro cabeludo arrancado, o rosto
cheio de hematomas. Não sou capaz de dizer o que senti ao ver Gilson, no caixão, todo
machucado, e a dor da sofrida mãe de Ramiro e de Edneia. Sei que estes meninos
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percorreram o caminho da cruz, enquanto corriam pelas matas derramando seu sangue
inocente. Lembro a importância que senti diante desses excessos de maldade: são injustiças
que ainda clamam pela justiça de Deus; pois na dos homens não é possível confiar. O desejo
de viver, de passear, de ‘curtir’ a vida é legítimo em todo o ser humano, mais ainda se
tratando de adolescentes. Por outro lado, a desigualdade sócia, a impossibilidade de ter
alguma coisa, o cansaço de ver os irmão e pequenos passando fome, sem nunca nada a ter a
oferecer, os deixa em conflito. E a gente fica sem resposta.
A caminhada que temos feito nestes últimos anos com as pessoas que moram nas ruas vem
trazendo algumas respostas, e abrindo a possibilidade de dar voz a este povo. Vejo que este é
o caminho para que o clamor que existe misturado no lixo, escondido nos viadutos, possa
emergir. Existe em cada um o desejo forte de falar, de defender-se quando se sente ameaçado
e agredido pela sociedade, só que nunca é possível manifestá-lo. Fica escondido por trás da
pinga, fica misturado ao sentimento de culpa.
Teria tanta coisa para contar das coisas que já ouvi, do sofrimento que é nunca ter nada,
nem cama e nem sossego; da violência que se sofre de todo lado, das idas e vindas às
delegacias, nas experiências nas construções, das mortes, do cansaço de enfrentar riscos de
vida, desemprego, instabilidade: é impossível relatar aqui.
Posso apenas afirmar que quando abrimos a possibilidade deste diálogo ao povo da rua, do
direito à vida, a ser reconhecido com gente, a ser considerado filhos de Deus iguais a todos os
homens, parece que se quebra o muro da divisão, que abrem brechas por onde jorra o que
ficou contido tanto tempo! Numa missão se escolheu o tema: ‘Somos um povo que quer viver!’
Respondeu tanto ao desejo íntimo e presente de cada um, que tem ficado como lema do povo
de rua. Direito este primário de todo o ser humano, mas tão tremendamente desrespeitado
entre nós.
Aos poucos, vamos caminhando nesse sentido, defendendo e conquistando junto com o povo
a cobertura das primeiras necessidades. Assumimos este caminho da cruz e ressurreição, na
esperança de ver o Reino Novo, a Páscoa Final! Assim meu compromisso foi se alargando:
fazer-me um com o povo é solidarizar-se com ele, acompanhá-lo pra onde ele vai; é defendê-
lo em qualquer situação de opressão em que se encontre. É também encontrar Cristo
perseguido, injustiçado, caluniado e vencedor da morte!”. (Cristina)
“Reunimo-nos em torno do apelo que Deus nos fez, ou seja, apelo para servir o povo mais
oprimido e rejeitado. Uma das motivações é o Evangelho do Bom Pastor: estar com o povo, ir
ao seu encontro, reunir transmitir a Boa Nova, ir buscar o mais abandonado.
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Outra das motivações é a Regra de São bento, de ouvir a Deus na multidão, ingressar na
Escola do Senhor para converter-se e aprender a andar e correr no caminho das boas obras.
Descobrir sempre, no meio do povo, possibilidades novas de anúncio e evangelização, de
transformar a realidade, de apressar o Reino de Deus, enfrentando as dificuldades, contando
sempre com a graça de Deus – ‘o monge está sempre pronto’ – consciente de que o caminho é
árduo, mas que a perseverança e a fidelidade alargam o caminho.
Também é buscando com a comunidade que se entrega à missão, sem contar com glória,
nem com status, mas sempre atenta aos apelos.
Devemos estar nos lugares em situação de opressão e dispersão. Nas praças, nas estações,
nas ruas da cidade, nos baixos dos viadutos. Estes são os lugares que devem ser o nosso
ambiente de Missão, por estar ai a grande exigência do anúncio Libertador. Durante anos
vivemos isto seriamente, correndo até riscos de morte. No entanto, o vivíamos com uma visão
individual, tentando a recuperação e reintegração social e familiar.
Após Puebla soa forte uma nova voz: esta presença toda não podia transformar a situação
de injustiça que o povo sofre, sem aumentar a sua consciência, sem possibilitar-lhe sua
organização sem ser o porta-voz de sua situação, sempre se comunicando e aprendendo com
as comunidades de base. Ai vem o grande desafio: não basta viver juntos e estar perto desta
situação. Também é preciso facilitar ao povo espaços e experiências positivas para que ele
tenha esperança e seja agente de sua salvação e libertação.
É preciso lutar contra o provérbio tradicional: ‘cada um por si e Deus por todos’: abrir
espaço de vivência para que se possa pôr à prova, com fatos e situações, o provérbio
evangélico: ‘eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no
menor’.
Para facilitar a realização desta organização, moramos no centro da cidade, em casas que
possam ser frequentadas pelos que perambulam pela cidade sem destino. Logo que possível,
procuramos um local para o centro comunitário, para servir de lugar de reunião, celebração
e formação do pequeno grupo que começa a caminhar. Lugar também para elaborar
projetos comuns como: moradia e subsistência, ser a voz que clama na rua denunciando a
situação, e também sendo anúncio de que é possível viver o projeto comum mesmo na
situação gritante da rua, anúncio do povo evangélico, que nasce da união do pobre com a fé
num mundo novo.
Entendo que a vida religiosa não pode se realizar, a não ser misturando-se com o povo,
criando com o povo novas possibilidades”. (Ivete)
Revivendo
“Foi um longo tempo de busca, até que decidi conhecer a OAF. Participava de grupo de
jovens, de um grupo de opção de vida, de encontros e retiros. Ouvi falar da OAF, um trabalho,
uma pastoral com os homens que viviam nas ruas, ou seja, os mendigos. Inicialmente, um
choque, depois uma protelação.
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As pessoas que viviam nas ruas sempre me incomodavam. Não conseguia aproximar-me
delas, medo, rejeição, mas ao mesmo tempo questionamento: ‘também é o povo de Deus’.
Como dizer que sou cristã, que faço parte do povo de Deus, com toda a sua história de
salvação, se este povo está dividido... Muito fácil chamar meus amigos do grupo de ‘meu
irmão’. E esta palavra ficava feito um nó, toda vez que encontrava um mendigo caído na rua,
ou mesmo cambaleante, como se fosse cair diante de mim no momento exato que passasse
por ele.
Meu Deus! Como dizer que sou seu povo, se o povo está dividido por preconceitos raciais,
sociais e até mesmo culturais. Sou de família japonesa, com todas suas tradições culturais e
religiosas.
Decidi apenas pôr à prova o meu desejo de pertencer ao Povo de Deus, sem medo e coerência.
O difícil era chamar este homem sujo, rasgado e meio doido de ‘Meu Irmão’. Se isto não fosse
possível, o jeito seria tomar outras decisões.
Vim até a OAF, conheci os trabalhos e não entendi muito bem. Albergues, oficinas. Percebi
que se planejava algo como uma Pastoral de Rua. Para participar deste plano, era preciso
aguardar um pouco. Resolvi aguardar em casa. Estava ansiosa e receosa, não sabia bem o
que fazer, voltava ou não voltava? O grupo de jovens não me satisfazia, queria romper estas
barreiras, queria encontrar o meu lugar, onde pudesse louvar a Deus na vida, acontecendo, e
assim conhecer a linguagem de Deus, com os homens da história passada, de hoje e de
sempre.
A educação que recebi em casa era muito distante da educação cristã familiar. Praticamente
não possuía, nem conhecia a religiosidade do povo. No grupo de jovens da Pastoral Nipo-
Brasileira, eram levantados problemas que o nissei encontra na sociedade brasileira, por ser
oriundo de família japonesa. Isto eu vivia, analisava com os companheiros, mas não era o
forte, não era meu lugar.
Um dia Nenuna telefonou para a casa e convidou-me para vir a uma reunião, em que iam
conversar sobre evangelização do povo de rua. Tive receio, insegurança, mas não duvidei. Lá
estava eu, com um grupo de pessoas que não conhecia, num velho casarão, à Rua Florêncio
de Abreu, 111. Da reunião, entendi que íamos começar aos domingos a receber neste casarão
as pessoas que vivem nas ruas para rezar, cantar e ir-se reunindo em comunidade. Formou-
se um grupo e eu dei o meu nome, pois queria conhecê-los, queria ver de perto, sentar ao lado
para rezar com aquele homem sujo, rasgado e meio doido; saber o que ia passar na minha
cabeça, no meu coração e enfim em todo o meu corpo.
Domingo, o povo ia chegando, simples, humilde, manso, sorrindo, com a sacola nas costas e o
chapéu na mão. O pé inchado, o rosto também, a calça suja; da camisa não se sabia qual
teria sido a sua cor. Cumprimentava as pessoas conhecidas, como Fortunata, e sentavam ao
serem convidados. Meu coração suspirou: Meu Deus! Meu Irmão!
O tempo passava, a vida acontecia e revelava outro mundo, outra gente, outra cultura, outra
garra e outras lutas. Ouvia os cantos populares e dava evasão ao gosto suspenso dentro de
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mim. E também as celebrações onde Genaro levantava-se e com os olhos brilhantes dizia:
‘Louvado seja o Novo Senhor! Só de ouvir o nome de Jesus já fico contente’; ou aquela do
primeiro domingo depois da Páscoa, quando Corisco chega e encontra seu irmão no meio a
celebração, no momento em que cantávamos ‘A paz esteja convosco’; ou a hora em que um
homem se levanta e pergunta se para ele há perdão, pois havia matado um homem na rua;
ou ainda o Geraldão, um maltrapilho sujo, sempre de roupas rasgadas, parecendo até meio
doido, com a boca desdentada, comentando a leitura do evangelho de Emaús: ‘É! Jesus gosta
de fazer surpresas!’ Nisso tudo estava encontrando o meu lugar e conhecendo novos irmãos
na caminhada do ‘povo de Deus’.
Neste meio tempo começou a mudança da OAF: da assistência para um movimento com o
povo, surgindo dentro de mim a exigência para uma ação. Uma ação que se comprometesse
com Deus e seu povo para a libertação. O seu povo vive oprimido, numa pobreza miserável.
‘Mas Deus não quer isso, não!’ O Espírito age e tudo fica claro. Vinho novo em odres novos.
Não dá mais para olhar para trás. Minha família, meu ideal, minha vocação: tudo precisa ser
claro. Meu ideal não estava nos valores, nos ideais de minha família e sim nesta família à
qual pertenço desde pequena ao ser batizada, ou seja, a Igreja. Veio a separação, árdua,
difícil.
Impossível meus pais entenderem: sabiam apenas que eu sempre gostei de pobres e da Igreja.
Mas daí aceitarem que eu precisava sair de casa... Usei de estratégias para amenizar a saída.
Fui morar em Cuiabá com uma amiga da Casa de Oração, como desculpa de por lá, quem
sabe, arrumar melhor emprego. Lá conheci outras lutas, como a do posseiro pela terra, pela
água, pela luz, por saúde. A luta do desempregado, cercado pelos políticos...
E minha vocação? Que caminho seguir? De que forma viver este meu compromisso? A
família, um sinal muito forte dentro de mim, era como uma resposta, nesta minha
caminhada.
Neste tempo, uma novidade. A simpatia, a amizade, o cainho de amigo que tinha por Aloísio,
cultivado há anos, aliás, desde o começo da minha caminhada com este povo, transformou-se
no Amor.
Aluísio, que encerrou o seu ‘trecho’ no início da Casa de Oração, também cultivou dentro a
amizade, o carinho, durante estes anos, juntamente com as alegrias e tensões de rever os
familiares que há muito não via, ou com as dores de uma saúde abalada e as esperanças de
pôr fim à bebida e recomeçar uma vida estável. Em São Paulo, interrompeu o seu ‘trecho’,
vivendo a revelação do Amor.
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Comprometi-me a dedicar-me à comunidade do povo de rua, durante dois anos. À medida
que a vida acontecia fui percebendo que a gente não limita o tempo do compromisso com
Deus e com o seu povo. A vida é mais forte do que o tempo. O amor e o compromisso
envolvem-nos em vista de uma realização. Isto se torna mais claro, agora, que me vejo
assumindo a vida em sua totalidade, ao lado de Aloísio, cujo caminho é dos pobres, que luta
pelo seu dia-a-dia e põe toda a sua segurança e proteção apenas em Jesus Cristo, Nosso
Senhor! ” (Amélia)
Nã o passa pela cabeça do povo da rua que possa haver um lugar para ele
participar da comunidade de fé e vida!
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com o povo, a cerimô nia da morte e vida do Senhor e nossa. Está vamos no ano de
1978.
Durante quarenta dias todo o tempo livre de que dispú nhamos, fora do
trabalho habitual, saímos uma com as outras ou sozinhas, ao encontro dos irmã os.
O tempo, a hora, nã o importava; o essencial era procurar Jesus-pobre, estar com
ele.
Este foi o recomeçar de nosso encontro livre com o povo. Livre porque o
assistencial deixava-nos sempre com escrú pulos: parecia que trocá vamos Deus por
pã o; e deste modo nã o está vamos à vontade.
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Senhora do Rosá rio, sete de outubro de 1978, recebemos a chave dos monges. Uma
chave antiga de ferro, com mais de 15 cm de comprimento, bonita, simbó lica.
Já tínhamos lugar para reunir a Igreja dos Pobres. Ocupamo-la tal com
estava, sem pintura, sem qualquer melhoria.
“Ao ver a opressão de meu povo numa cidade onde as pessoas chegam ao aniquilamento sob
viadutos e calçadas, desejei muito que o ‘mundo de Deus” acontecesse. Que eu pudesse ver
que era possível nesta situação a libertação anunciada por Jesus, onde o pequeno acreditasse
no pequeno e as injustiças fossem denunciadas. Mas como acontecer isso a partir do próprio
povo esmagado? Vejo nisto um grande desafio de fé. Sei que Deus reserva coisas novas para
seu povo. Uma destas coisas novas foi ver o povo sair à rua com consciência de comunidade.
Comunidade de sofredores em busca de libertação, onde avida é posta em comum, onde se
buscam direitos, a vida se faz oração e a Boa Notícia é anunciada aos pobres através da
comunidade dos pobres. Muita gente não acredita ou não sabe da organização do povo da
rua. Este povo tem direito à sua comunidade. É o próprio Deus que o exige, pois Ele está ao
lado dos ‘últimos’, dos oprimidos. Gostaria que essas comunidades se multiplicassem pela
cidade. Grupos onde o pobre recebe o pobre, onde aquele que é tido como ‘crônico’,
experimente sinais de libertação na caminhada de comunidade, onde o modo de viver
denuncie nossa sociedade que marginaliza.
A comunidade do povo da rua não se limita ao local onde se reúne. Faz-se presente na rua,
levando a outros companheiros a sua proposta, como também na cidade, denunciando a
situação de pobreza em que foram deixados, seu estado de extrema miséria. Vejo que é vital
para a própria comunidade estar em sintonia com a realidade, viver a solidariedade como
anúncio do mundo igualitário, ver a Bíblia como o livro do oprimido, onde se encontra um fio
condutor que revela o rosto de Deus libertador e salvador. Para isto o agente deve usar uma
pedagogia que desperte a consciência do povo e possibilite um espaço de criatividade.
Dentre as formas organizadas de estar presente na rua, podemos citar algumas: teatros,
celebrações, passeatas e Missão. O teatro – Aqui dá para se ver o crescimento do pessoal. As
discussões, os ensaios, o próprio conteúdo do teatro falam de um mundo vivido e
experimentado. O grupo vai percebendo como é importante estar junto e ler a realidade de
forma crítica. Vendo-se como comunidade, toma consciência de sua identidade. A partir disto
tem sentido levar uma peça à rua, pois sabe e acredita no que transmite, a ponto de
despertar em outros companheiros o desejo de conhecer que grupo é este que fala de seu
mundo, do lugar do pobre. No geral as peças evocam situações vividas na rua e suas
consequências principais, a saber: desemprego , falta de moradia, baixos salários, violências,
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bebida e a fome de cada dia. E afirmam também que o povo não se deixa vencer, e começa a
resistir.
Outra função do teatro é de manter contatos com outras comunidades. O grupo percebe que
não está só, que outros estão na mesma luta e do nosso lado.
As celebrações. Elas têm sido um ponto forte da comunidade. Aos domingos o povo se reúne
na Casa de Oração e ai tem um momento de oração comunitária. Os grupinhos apresentam
nesse momento as reflexões, lê-se o Evangelho, e depois fazemos orações espontâneas.
Admira-se ver com que fé o povo faz sua oração, com que sensibilidade se refere ao
sofrimento alheio por ter vivido a dor na própria carne. Reza-se o Pai Nosso com profundo
respeito. A celebração, cujo esquema não é fixo, pode-se dar também na rua: é o momento
onde toda a comunidade mostra sua força no anúncio e denúncia. Os grupos da rua
celebram seus mortos, acreditando que Deus não quer a morte prematura de seus filhos, que
a vida tem que ser defendida.
Rezar com o povo que sofre tem sido para mim um chamado à conversão, uma graça de
Deus.
A Missão. O momento forte de cada ano congrega todas as forças do movimento do povo de
rua. Durante quatro anos a Missão aconteceu no velho casarão da Florêncio de Abreu, até
que em 1983 foi na rua, no local da antiga rodoviária do Glicério. A partir da rua, a Missão
vai ganhando importância em sua dimensão pública e política. Suas repercussões ainda são
imprevisíveis. Mas o povo vai revivendo a sua cultura guardada em sua memória histórica.
Durante a Missão a gente nota esta sintonia histórica. O povo falando como está sua vida.
Por um lado não é fácil tomar consciência da própria opressão. Mais fácil é alienar-se ou
dar-se por vencido. Por outro lado esta consciência é básica para a busca de mudança.
Eu e meu grupo catamos papelão, sobra de feira e móveis usados com vistas a arrecadar
fundos para a Missão. Estudamos as denúncias e reivindicações a serem feitas na cidade.
Junto do povo vou percebendo que existe um clamor que deve acontecer, quer ecoar pela
cidade e incomodar. Ultimamente, a presença dos pobres nas ruas tem incomodado muita
gente, que procura até eliminá-los.
Apesar do sofrimento, o povo vive a Missão também como festa. A própria união dos
sofredores é motivo de grande alegria para todos, pois a libertação começa por aí. Unidos
para sentir-se povo, para adquirir força.
Passeata. Em cada passeata que fazemos vejo a pobreza desafiando os ídolos da opressão.
No dia Sete de Setembro de 1983 éramos 500 pessoas cantando, levando cartazes e gritando
frases como ‘Somos Um Povo Que Quer Viver’ e ‘Queremos Ser Tratados Como Gente’. No ano
seguinte, na Sexta-feira Santa, houve uma caminhada que teve seu ponto de partida no local
onde o menor Joílson foi morto. Cada passeata significa também uma vitória sobre a censura
interna que o pobre costuma exercer, na qual se via como iletrado e incapaz de se organizar.
Sinto gosto de estar com o povo nas ruas, carregando seus cartazes e cantando os cânticos
de todas as comunidades. Ganhamos confiança e passamos a acreditar na esperança que
resta.
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Mas acreditar em tudo isto exige de mim um ato de fé a cada dia. Com este povo tenho
apreendido a renovar a minha fé. Uma vez, um rapaz da rua me dizia que sofrer mais do que
já havia sofrido era impossível. Para ele, viver era um ato de fé e teimosia. Fé e teimosia de
que Deus é Pai e vai libertar. Então, vi que o oprimido ensina a arte de resistência.
Resistência frente à opressão e insistência da partilha do pão. Assim tenho conhecido a face
de Jesus”. (Roberval)
“Na vida há muitos momentos em que a gente sente a presença de Deus. Nestes anos
em que estou na comunidade das Oblatas, desde 1968 até a presente data, sempre
ouvi o povo comentar acerca da nossa alegria. Tem sido um testemunho constante
saído da boca de muitas pessoas da rua. E o que é a alegria? É um sinal de paz, e a
paz é verdadeiramente presença de Deus. Ouvi muitas vezes dizerem que todas nós
temos um dom da alegria, e que por isso se vê que a gente tem Deus e dentro de si.
Nas ruas da cidade há muita tensão. Por isso muitas vezes saímos à procura de
alguns, que sabíamos estarem tristes e abatidos pelo peso do sofrimento. Chegamos
com saudação simples: ‘oi como está você? Vamos bater um papo? Para logo
começar uma conversa que desanuvia as tensões. Inúmeras vezes, ao chegar debaixo
de alguma marquise para festejar um aniversário, a gente cumprimenta e festeja, vê
que aquela alegria contagia. ‘dá força na gente’, comentam.
Vivemos bons momentos nas noites da Praça da Sé! Um ponto referencial para a
cidade, e também para o renascimento do povo de rua.
Ser alegre é um dom de Deus. A alegria dá para amolecer muitos corações. Às vezes
pessoas amarguradas, revoltadas, mudam diante de um sorriso, por um canto, por
serem recebidas com cordialidade. Nunca me esqueço daquele moço com o coração
cheio de vingança, querendo descobrir quem tinha feito um mal na sua família para
retribuir o fato. Estancou-se aquela revolta que trazia. Ficou ali, cantando conosco.
A gente procura servir, atendendo aos pedidos, seja com música popular, seja com os
nossos cantos da Casa de Oração. Na Casa de Oração nunca faltam momentos de
alegria, faz parte da vida! E sempre os cantos, tanto na brincadeira como na oração.
Cantamos nas passeatas, para manifestar que povo quer viver, que Deus está
presente e quer a vida para todos. É bem certo o provérbio: ‘quem canta seus males
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espanta’. O mal não é presença de Deus. O mal, na rua, é o desânimo de viver, é o
desejo de vingança, de sangue, é desacreditar dos irmãos de sofrimento, de luta. O
canto nos ajuda a transmitir a força e o amor. E na hora em que levamos alegria,
recebemos também.
Tudo se iniciou com o desejo de aprender, ir até onde está o povo, usar os meios que
são do alcance e do costume de quem não tem onde morar, e por isto não tem lugar
para preparar sua comida.
“Assumi como trabalho catar papelão junto com outros que participam da
comunidade, à fim de incentivar a realização de um trabalho organizado
comunitariamente. Juntos, saímos pelas ruas do centro da cidade, enfrentando toda a
dureza que este tipo de serviço traz.
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Para ganhar tão pouco, sacrifica-se muito. Puxando a carroça a gente desce,
enfrenta a loucura do trânsito e a impaciência dos motoristas com a nossa presença
entre os carros, colocando em perigo a vida. É a chuva, o frio, a fome, o peso da
carroça, a sujeira: para separar algum papel temos que colocar a mão em tudo o que
é lixo, nos sacos de papel higiênico, restos de comida, cacos de vidros... A humilhação
a que nos submetem as pessoas, que pensam ser incômoda a nossa presença nas
portas das lojas e dos prédios. Olhares de desprezo de alguns, piadinhas maldosas de
outros. É assim que muita gente vai tentando sobreviver: são também mulheres,
jovens, crianças e até velhos os que hoje enfrentam esta realidade.
A cada dia vou vendo com mais clareza que o povo vive uma vida que Deus não quer.
Juntando-me a eles, que não tiveram outra escolha de vida, vou encontrando a forma
de ser coerente com a opção que fiz: viver ao lado dos mais desfavorecidos; viver o
Evangelho de Cristo, bebendo na fonte onde bebe o povo, alimentando a própria fé,
vendo que, apesar de tanto sofrimento, o povo ainda tem esperança e quer viver.
Ao mesmo tempo que se mergulha nessa convivência, gente vai cultivando o senso de
justiça, igualdade e fraternidade, seja na hora de dividir o serviço, separar, guardar,
telefonar para o depósito onde fazemos a venda.
Mas fazer-se pequeno ao lado dos pequenos é uma opção. Embora custe, dá um
sentido de liberdade diferente: a gente não fica mais presa às normas sociais,
aprende a andar livremente na cidade, o que próprio dos que estão na rua: vivem
uma liberdade muito grande, andam pelo Brasil inteiro, parando mais tempo onde as
coisas lhes resultam melhores. Carregando o mínimo de bagagem, aprendem a viver
andando. Nesta contradição de liberdade-opressão, livram-se do peso da censura
social e cultivam a sabedoria que a experiência da vida lhes ensina. Também eu vou
fazendo este aprendizado dessa liberdade, tornando-me capaz de viver nos mais
diversos ambientes da sociedade, sem me importar tanto com as críticas que possam
ocorrer.
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Que Nossas Casas Sejam Casas Do Povo
Uma casa deste tipo já havia sido começada. As que está vamos no Brá s se
dividiram: um grupo ficou ali mesmo, as outras em duas novas casas, sempre
rodeando o centro da cidade.
Cada casa que encontrá vamos era uma festa; como que um
reconhecimento de que Deus nos abençoava. Se há uma coisa que nã o posso deixar
de agradecer é aquele princípio que Pe. Igná cio nos deixou de nã o possuir bens
imó veis. Isto nos tem dado grande disponibilidade em relaçã o à missã o. Agradeço a
Deus esta pobreza, que nos permite liberdade no coraçã o e também na prá tica.
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“Preciso viver desafiando minhas fraquezas, viver desafiando o que os homens
pensam. Viver desafiando a miséria e fragilidade do povo sofredor da rua, para nisso
tudo, sentir Deus.
Colocar as minhas forças ao lado do povo que vive na rua, percebo que, diante do seu
sofrimento, de nada sou capaz. Apenas consigo descobrir que sou medroso, fraco e
necessitado. Feita sempre esta constatação, só me resta clamar por Deus, e no vazio
da ansiedade, descubro a sua presença.
Devo ser solidário com o povo que sofre. Acredito num Reino de Deus onde a Justiça, o
Amor e a Dignidade Humana são partes da lei. O compromisso com os sofredores e a
fé no Reino, a ansiedade pela libertação, exigem que eu acredite e busque uma vida
comunitária com o povo que vive na rua. Sim, no meio deste povo maloqueiro,
violento, explorado, amigo e sugado por todos nós (sociedade), parece impossível, no
entender dos homens, nascer uma comunidade fraterna. Aí está o desafio que só será
possível enfrentar com a participação de Deus.
Nas vezes em que fui dormir na rua juntamente com o povo permitiram-me viver,
transmitir e receber solidariedade. Na rus sou o ‘forte que se torna fraco’ e recebe
proteção daqueles que ali procuram acomodar-me, enfrentando dificuldades e riscos.
Apesar de toda convivência nas atividades (sopa, catação de papelão, reuniões), o
povo tem recebido com bastante alegria e surpresa a minha chegada para dormir
com eles, pois se apresenta uma nova ordem de valores. Logo vão dizendo que posso
ficar tranquilo, pois não vai haver briga, nem confusões: querem ceder o melhor
canto para eu dormir, papelão para forrar, coberta para cobrir e sempre vêm com a
preocupação se não estou com fome. Como é costume entre eles, nestes dias em que
durmo, também ficou uma pessoa acordada para dar proteção necessária ao grupo
que dormia.
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”Eu caminho junto com esse povo sem moradia, sem família, sem identidade, com
marcas tão fortes estampadas no rosto, de tantos anos de duro sofrimento vividos
nas ruas. ‘O Filho do Homem não teve onde repousar a cabeça’. Bêbado, sujo,
maltrapilho, dormindo na calçada. Alguns nos olham, outros passam longe, com
medo, ou talvez com nojo. Mas eles são nossos irmãos. ‘Os filhos prediletos do Pai’.
Quando os vejo catando papelão, catando restos de feira, vendendo caixotes,
reconheço aí uma luta pela vida, um sinal de esperança. Ultimamente, o que sinto
mais forte neles é o desejo de moradia, de um lugar onde guardar suas mochilas,
onde tomar banho, fazer sua comida. Pelo centro da grande cidade existem muitos
casarões e casas abandonadas. Em geral trata-se de espólio com problemas jurídicos
ou de imóvel de proprietário desconhecido, ou pertencente à Prefeitura Municipal;
sempre é muito difícil o entendimento com os donos.
‘A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram suas
as coisas que possuía: com grande coragem... Não havia entre eles nenhum
necessitado, porque todos que possuíam terras e casas... Repartia-se então a cada um
deles, conforme a sua necessidade’ (Atos 4, 32 -35). Apoiando o desejo deles e seu
legítimo direito de ter um teto, por mais simples ou pobre que seja, partimos com eles
e lhes damos a nossa força para a ocupação dessas casas e casarões, correndo
sempre o risco de um não, de expulsão, de intervenção da polícia.
‘Não fostes vós que me escolhestes, mas fui Eu que vos escolhi’.
Nestes anos de vida religiosa vivida entre os irmãos mais abandonados, muito se fez e
muito ficou por fazer, talvez por falta de correspondência da minha parte, também
por falta de gente. Por se tratar de uma vocação especial, poucos se apresentam;
outros começam, mas depois as dificuldades pessoais levam-nos a outra opção de
vida. Os pobres, porém, esperam que os ame. ‘Se não maus, é porque ninguém ainda
os amou’ (Pio XII).
Na vila onde moramos residem outras pessoas que também fizeram opção pelos
pobres, mesmo casados ou pertencendo a outras congregações religiosas. Quando
nossos visitantes não os encontram, bate em qualquer uma dessas portas, pois sabem
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que aí são recebidos da mesma forma. Ultimamente houve uma nítida mudança na
atitude dos vizinhos: os pobres, que antes assustavam e os levavam a fechar as
portas, agora são cumprimentados e muitas vezes atendidos”. (Isabel)
O convívio com o sofrimento junto ao povo que vive nas ruas tem sido uma
constante em nossas vidas. A falta de recursos se faz sentir mais forte quando a pessoa, já
sem nada na rua, adoece. Nã o há condiçõ es de internaçã o, de ambulató rios, de
tratamentos. É humilhado nos pronto-socorro, sã o lhes negado internaçõ es por considerar
a doença do homem que nã o tem casa um problema social. Recusam, assim, um
atendimento mínimo que o livraria de ter que morrer sozinho na rua. Diante da doença de
duas Oblatas, membros da Equipe, esta realidade foi um questionamento para nó s: como
viver a opçã o de convivência e partilha nesta nova situaçã o de limitaçã o física?
Confessamos que a distâ ncia acontece. Temos uma casa, temos INSS. Foi necessá rio
descobrir novas formas para manter o ideal de participaçã o e convivência.
“Faz oito anos que fiquei com muitas limitações físicas devido a doença. Não pude mais
acompanhar o ritmo da nossa Fraternidade. Permaneço no grupo, porque acredito que Deus
é misericórdia. Faz da nossa fraqueza, força. Da nossa pobreza, fonte de riqueza. Se Deus me
deu limitações e quis que permanecesse assim, é porque isso é útil ou necessário. Talvez até
mais importante do que se eu pudesse estar na ação. Recebo e converso com o povo que vem
em casa, faço serviços de casa, escrevo, leio. Rezo com a comunidade, acompanhando a todos
na Casa de Oração. Onde moro, converso com os vizinhos; as crianças sempre estão por perto
e conversar com elas é sempre motivo de alegria. Muitas vezes as ajudo nos estudos, nos
deveres da casa.
Uma coisa que me veio pela doença, foi saber valorizar as pequenas coisas, os gestos, e
compreender melhor os fracos, os que aparentemente nada têm para dar. Sinto muito bem
isso quando visito os doentes no SAR (hospital estatal para indigente). Agora estou com os
olhos mais abertos para o sofrimento do irmão. Também mais sensível aos gestos de amizade
e compreensão de todos, principalmente daquelas que comigo formam um Fraternidade.
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Hoje não tenho nada para oferecer a Deus. Ofereço ao Senhor a minha vida, nas fraquezas,
dependências, limitações e sacrifícios”. (Maria Jú lia)
“Vim do Uruguai com a idade de vinte e cinco anos. Penso que somente naquela época pensei
um pouco no meu futuro. Imaginava trabalhar muito, até mais ou menos quarenta e cinco
anos, que me parecia o máximo de vida útil! E depois, ter mais tempo para rezar. Supunha
que iria envelhecendo naturalmente, e que no fim da vida ficaria no meio do povo, fazendo
trabalhos simples, como vender verduras com um carrinho, andando pelas ruas, com tempo
bastante para estar com as pessoas, para conversar da vida e de Deus.
Estas ilusões logo caíram e nunca mais deu para pensar em coisa semelhante. A atividade, a
reflexão em cima dela, empolgou-me de tal modo que não tive mais ideia sobre o futuro
pessoal.
A missão, entendida comas Oblatas e na Fraternidade maior, tem sido a minha vida. Muitas
frases do Evangelho, ou então aquelas que o Pe. Ignácio transmitiu, me tem acompanhado
nesta vida. Num período é uma que predomina, em outros, são outras que iluminam o
caminhar. Mas uma delas está presente: ‘Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, ele
fica só, mas se morrer, ele produz muito fruto’.
Esse ‘muito fruto’ é um desejo que trago dentro de mim como responsabilidade para o grupo
e para a Missão. Entendia que deveria dar a vida para que isso acontecesse; em outras
palavras, trabalhar com gosto ou não, casada ou não, mesmo em situações com perigo de
vida. Se o martírio não chegasse com a máxima expressão de meu amor, deveria viver
heroicamente no dia-a-dia. E assim, entre o entusiasmo e algum sacrifício, fui levando a
minha vida até os cinquenta e três anos. Mas de repente vi-me às voltas com uma doença
grave (câncer). Não me ocorria ainda a ideia de que passaria a ser uma pessoa doente. Fui
operada e parecia que a vida seguia normalmente; de fato, poucos dias depois, fui
acompanhar a Missão, coordenei algum grupo, continuei as atividades. O tratamento me fez
sofrer um bocado, mas aceitei sem maiores problemas a condição da natureza humana.
A segunda surpresa foi bem maior que a primeira. Ela aconteceu dois anos depois, com a
constatação de que havia metástase nos ossos, e que alguns nervos haviam sido atingidos. A
constatação não era um problema, o pior foram as dores muito fortes, que me obrigaram a
parar. As pernas não respondiam, por mais que eu as forçasse. Fui encontrando alusões em
muitos Salmos a ossos que se quebram. E foi isso que se passou comigo, alguns ossos foram se
quebrando. Eu não sabia que podiam existir dores tão fortes, nem que os ossos pudessem
quebrar-se espontaneamente. O que eu sabia eram outras coisas; que se procurava a união
com Deus na oração, na vida fraterna e no compromisso com o grupo.
E agora? Nem rezar sozinha eu conseguia! Em vez de dar passei a receber; em vez de fazer,
ficar na inativa; ao invés de ajudar os sofredores, ser eu mesma uma sofredora. Custou muito
para eu aceitar esta situação. Não me pareceu um programa muito atraente. Não cabia no
que eu entendia por Missão. Tentei fazer um trato com Deus, o que me parecia ser o mais
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razoável: ou melhor, de modo a poder trabalhar, ou então morrer. Morrer e ver Deus sempre
me pareceu bom. Agora também. Mas parece que o Senhor não entendeu minhas razões,
porque nem fiquei boa e nem morri. Quis realizar outra ideia, que também sempre trago
comigo. Escrevemos nos nossos Estatutos, desde os primeiros, que a doação deveria ser total,
que se assumiria com toda a realidade a vida dos pobres, o que incluía que na velhice se
viveria no ‘asilo de velhos’. Pensei em mudar de vida, deixar fisicamente a comunidade e ir
para os lugares onde fica o povo de rua, vivendo lá com eles. Penso que ainda não era o
momento: O amor das Oblatas é muito grande, mais do que dá para imaginar: não
conseguiram conciliar com este grande amor, o meu desejo de ir para outro lugar, na hora
em que eu mais precisava. De modo que fiquei, por enquanto. Há também o fato de que do
hospital voltei para casa, mas de maca. As possibilidades de fazer alguma coisa prática
estavam, e ainda estão muito reduzidas, quase nulas. Ainda é preciso esperar. Achei
engraçada a oração que me ocorria, e que sempre repetia. Vinha em castelhano: ‘Señor, lo
que haz de hacer, hazlo pronto’. (Senhor, o que tens de fazer, faze-o logo). Depois vi que era a
palavra de Jesus a Judas, na Última Ceia. Jesus também não achou bom demorar demais.
Contudo está demorando. Já vai mais de um ano de doença. Neste ano passei nove meses
inativa: primeiro de cama, depois na cadeira de rodas, agora andando com muletas e sempre
com muito cuidado nos movimentos, para que não se quebrem ainda os ossos.
Ponho-me diante de Deus. Eu, cercada de cuidados, e o povo dele morrendo na rua. Eu,
rodeada de atenções e carinhos, e os filhos preferidos dele na solidão e no abandono. Muitos
amigos da rua têm morrido nestes meses: assassinados, doentes, exterminados na injustiça,
minados pelo alcoolismo...
Bom, penso que não passou um dia, com saúde ou na doença, em que me considerasse
dispensada do serviço a este povo. Nos dias em que não podia fazer nada senão sofrer fui
entrando na minha vocação de Jesus cuja vivência desconhecia: uma contemplação
diferente, a dos sofredores (Jesus, os da rua, agora eu). Uma cruz inativa, que a fé me diz
salvadora. Um dos cânones da Missa diz que ‘Jesus aceitou livremente a paixão’. Tentei então
colocar o coração livremente na paixão, como a semente que morre e produz fruto. É certo
que o enterro é um túnel escuro, e a desintegração da gente um bocado sofrida. Nesses dias
era o único modo de serviço ao meu alcance. Um trabalho espiritual que precisava fazer,
mergulhando no desconhecido.
Outra vocação, invisível, foi aceitar que não era mais tempo de dar, mas receber. Parece fácil,
mas não é, entrar na escola da humildade e fazer-se pequena, com o povo simples.
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Quando contei isto a um padre que nos visitava, ele interpretou assim: ’Você esta vendo? Seu
trabalho é manter uma comunidade em oração! Confesso que eu não havia olhado por este
ângulo, e que ainda me surpreende esse modo de ver. Meu ‘trabalho’, se dá para chama-lo
assim, foi estar à disposição de quem chegasse. Receber, escutar, agradecer, vincular umas
pessoas com outras. Penso que tudo isso enriqueceu nossa missão e outras vidas também.
Houve oportunidade para muita conversa e troca de experiências com gente de muitos
lugares diferentes e muitos povos deste mundo de Deus. Por seu lado, os sofredores também
‘saíram’ para um mundo mais amplo. Às vezes nos chegam notícias de que a ‘presença’ deles
é viva e pode converter o coração de pessoas que os desconheciam.
Além disso, tenho tentado trabalhar de modos mais concretos. Faço alguns trabalhos
manuais para vender. Sinto a necessidade de ajudar ou, ao menos, de não pesar demasiado
no orçamento comunitário, o que de qualquer modo acontece. A partilha tem sido muito
grande e temos recebido bastante ajuda: mas isso não me descompromete de contribuir,
embora seja muito pouco o que aí consigo fazer e não chegue a constituir uma contribuição
palpável. Estava contratada pela OAF, como serviço remunerado, e a partir da doença, fiquei
na ‘caixa’; mas o que se recebe é metade do salário, e os gastos dobraram. Assumo estes
pequenos trabalhos, não porque me tem faltado alguma coisa, muito pelo contrário; mas
porque penso que o trabalho é uma lei da natureza que Deus criou, e não devemos burlá-la e
fazer só o que se pode.
Outra forma de ajudar a Missão foi escrever. Redigindo estas memórias venho resgatar a
dívida que eu tinha em relação ao grupo de contar a sua história. Nunca teria feito, não fosse
a doença. Depois, talvez, seguirão outros escritos que achamos necessários, estudos e
reflexões sobre o povo de rua, em colaboração com eles. E, se seguir melhorando, voltarei
mesmo à Missão, dar e receber uma força no meio do povo que quer viver.
Assim aqui estamos. Deus é quem sabe do tempo vindouro. Por mim, há muito que não tenho
fantasias quanto ao meu futuro.
E mais! No dia em que celebramos o vigésimo aniversário da morte do Pe. Ignácio, pensei
que poderia pedir a ele para melhorar. Ainda estava de cama, sem perspectiva dela sair. Mas
sentia uma vergonha enorme só pensar em pedir para mim. Nunca o tinha feito! Cofiava na
providência de Deus, na oração dos outros por mim. Nesse dia fiquei imaginando, e percebi
que precisava de ajuda. Sozinha não faria.
Entretanto, tive que pedir a ajuda das irmãs, pois sem elas nada teria acontecido, pois me
sentia incapaz de rezar por mim mesma” (Nenuca).
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A missão se engaja na caminhada da Arquidiocese
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O bispo, sinal de unidade da Igreja, pode visitar estes oprimidos,
interessar-se por eles, tocá -los, falar-lhes. Isto tem acontecido. Muita gente nunca
tinha visto um bispo e pensa ser importante receber sua visita. O ú ltimo dia da
Missã o, quando se faz uma grande procissã o, o bispo espera o povo na praça, é o
momento de forte significaçã o para o povo. Cada vez fica mais claro para nó s como
foi bom renunciar ao esquema anterior e realizar a mudança reunindo-nos em
torno do Evangelho. A comunidade tem agora o seu lugar na Igreja.
Também vai e participa das reuniõ es mais formais, onde leva o seu
testemunho. No centro de Sã o Paulo, grupos de oprimidos, de pessoas da rua e
moradores dos cortiços, vã o se encontrando e falando de seus problemas.
Começam a estudar sua realidade, para transformá -la. Nó s, da Missã o da rua,
também damos a nossa contribuiçã o, trabalhando juntamente com outros agentes
de pastoral.
De que adianta o vinho novo, se tantos ainda faltam à festa das bodas do
Cordeiro? Ainda faltam muitos oprimidos, mas nosso coraçã o e nossos olhos estã o
atentos a eles. Quando chegaremos lá ? Vá rias vezes fizemos grupos com os
meninos da rua, mas nã o conseguimos reuni-los em comunidade. Temos muitas
amizades com as mulheres da zona de prostituiçã o, especialmente com as do Brá s
e da Luz, mas nã o temos condiçõ es para uma presença permanente de modo a
viver o Evangelho com elas.
“Eu sou a videira verdadeira e o meu Pai é o lavrador. Não foram vocês que me
escolheram; pelo contrário, eu é que os escolhi, para que vão e deem muito fruto, e
que estes frutos não se estraguem. Assim o Pai lhes dará tudo o que pedirem em meu
nome. Eu digo isto para que minha alegria esteja em vocês, e a alegria de vocês seja
plena. Isto é o que eu mando: Amem uns aos outros” (Jo15).
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A partir do grande mandamento, aguardamos ansiosamente que o Reino
cresça no meio do povo da rua. “Vem, Senhor Jesus!”
Sã o palavras de Jesus: ele veio aos homens para que todos tenham vida
abundante: veio trazer a vida plena e libertar da morte.
Aqueles que nos sentimos chamados a seguir Jesus, nã o temos outra coisa
a fazer. Como ele, temos que ir aos homens, os mais mergulhados nas trevas da
morte, para anunciar-lhes o Sol da Vida. Anunciar-lhes que Deus cumpre as
promessas de libertar os cegos e os coxos, os presos, os oprimidos, e que poderã o
ver com os pró prios olhos esta Salvaçã o. Foi isto que o velho Simeã o cantou, com
Jesus nos braços!
No andar desses longos anos, temos visto muita vida surgindo do lixo. Nã o
era a imensa gratidã o do Pe. Igná cio, depois de cada Missa? “O Senhor tira do
monturo o miserá vel, para que more com os príncipes de seu povo”.
Digo isso com toda a segurança, apó s vivenciar desde a minha juventude
até agora, o amor, a justiça e o compromisso fiel do Senhor para conosco. Dou este
testemunho com reconhecimento filial, embora Deus nã o precise dele: vale a pena
empenhar tudo o que se tem para comprar esta “pérola preciosa”. Sabemos que os
odres envelhecem e todo o vinho também. Por isso, para conservar a novidade do
Evangelho, sempre nos mantemos alertas, dispostas a rever a caminhada e mudar
aquilo que o Espírito nos aponta como devendo ser mudado. Amém!
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E que a Graça do Senhor esteja com todos! (Ap. 21, 21).
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