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Quantas vidas eu tivesse tantas vidas eu daria!

G. Castelvecchi (Nenuca)

Apresentação
Prezada Ivete,

Muito obrigado pela có pia dos escritos da Nenuca que você me enviou
através do Casé. Li e gostei. Gostei muito. Neles encontrei o retrato fiel da Nenuca
do jeito que sempre a conheci. Todas as vezes que fui visita-la, sobretudo nos
meses da sua doença, nunca a encontrei só . Sempre havia gente por perto, gente
pobre da rua, acolhida por ela com infinita paciência. Gente que entrava e saia e
que, invariavelmente, se tornava o assunto da nossa conversa. Assim é o retrato de
Nenuca que transparece nestes escritos: ela nunca aparece só ! Do começo ao fim,
desde 1953 até 1984. Nenuca se apresenta misturada no meio dos pobres, dos
operá rios, das crianças abandonadas, do povo marginalizado da rua, das
prostitutas, sempre rodeada pelas irmã s e companheiras da Fraternidade das
Oblatas de Sã o Bento. O que impressiona nisto tudo é que Nenuca, mesmo no auge
da sua doença, pouco antes da sua morte, quando ela punha no papel estas
lembranças da sua vida, nunca pensou em si mesma, mas só pensava em si com a
preocupaçã o de servir melhor a Deus e os pobres.

Deus e os pobres! O trem da vida de Nenuca sempre correu sobre estes dois
trilhos: Deus e os pobres! Estes dois, unidos entre si no coraçã o de Nenuca,
formavam o amor maior da sua vida, a paixã o ú nica que a devorou aos poucos.
Quem ativou nela a semente deste duplo amor e a ajudou a crescer até atingir a
plena maturidade, foi o Pe. Igná cio, monge beneditino olivetano, lembrado por ela
com carinho e veneraçã o. O que eu pude perceber a respeito do pensamento de
Nenuca neste particular é o seguinte. Você Ivete, que viveu com ela durante tantos
anos, poderá confirmar ou nã o a exatidã o do que eu vou dizer.

Os pobres têm o lugar de preferência no coraçã o de Deus. Mas a maioria


deles, sobretudo os mais pobres, desconhece este amor de Deus ou tem dificuldade
de crer nele, porque nã o recebem seu lugar dentro da Igreja. A Igreja, do jeito que
está organizada, por ora, ainda nã o é a casa dos pobres. Por isso, a revelaçã o do
amor de Deus nã o chega aos pobres. Nenuca tentou ser a ponte. Tentou quebrar as
barreiras quebrar as barreiras que impedem ou dificultam a comunicaçã o entre
Deus e os pobres. Junto com o Pe. Igná cio ajudou a criar a Organizaçã o de Auxilio
Fraterno e outros serviços. Tentou forçar a igreja do centro de Sã o Paulo a se abrir,
a se converter ao Evangelho, a acolher os pobres e a arrumar um lugar para eles.
Lutou e conseguiu que, entre os pró prios pobres da rua, o anú ncio do Evangelho
despertasse neles a vontade de se organizar viver em comunidade e de começar a
lutar pelo seu lugar na Igreja e na Sociedade. Ela tentou ser a revelaçã o do amor de
Deus aos pobres.

Nenuca tinha consciência muito clara de que seu testemunho de amor junto
aos pobres nã o era só dela, mas da comunidade, da Igreja. Por isso, ela sustentou a
longa luta para arrumar um lugar na Igreja nã o só para os pobres, mas também

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para o pequeno grupo de irmã s e companheiras que com ela estavam no mesmo
serviço. Conseguiu que o grupo reconhecido e agregado à Ordem de Sã o Bento, e
que os seus estatutos fossem aprovados pelo Arcebispo de Sã o Paulo, dentro das
exigências do Direito Canô nico. Neste trabalho ela gastou muitas horas, dias, meses
e anos. Assim, através da agregaçã o à Ordem de Sã o Bento, conseguiu que a
pequena Fraternidade se inserisse no largo rio da tradiçã o da Igreja Universal,
bebesse da sua á gua e procurasse viver o Evangelho a serviço dos pobres de
acordo com a inspiraçã o que vem da Regra de Sã o Bento. Através da aprovaçã o dos
seus Estatutos pela autoridade eclesiá stica, conseguiu que o grupo se inserisse na
Igreja local e recebesse aí o se lugar, seu direito e sua missã o.

A agregaçã o á Ordem de Sã o Bento e a aprovaçã o dos Estatutos nã o


significavam o começo de uma acomodaçã o apó s longa busca. Pelo contrá rio! O que
mais chama a atençã o nestes escritos de Nenuca é a sua constante fidelidade ao
que o Espírito de Deus estava pedindo através da realidade dos pobres em
movimento contínuo. Ela nã o dava descanso ao grupo quando se tratava de servir
e de amar com fidelidade a Deus e aos pobres. Nem a morte do Pe. Igná cio e de
outra companheira, nem as doenças, nem saídas e separaçõ es dolorosas, nem
cansaço, nem nú mero reduzido do grupo, nada de tudo isso a impedia de retomar
sempre, de uma ou de outra maneira, a mesma pergunta: “Será que estamos sendo
fiéis ao que Deus e os pobres pedem de nó s? Ela levava o grupo da Fraternidade a
perguntar sempre: quem somos nó s? Quem nó s devemos ser? E dizia que a
identidade deveria ser procurada na rua! Foi lá , na “Rua de Deus e dos pobres”, que
o grupo finalmente se encontrou, se formou e teve a sua aprovaçã o oficial como
“Fraternidade Das Oblatas de Sã o Bento” a serviço da evangelizaçã o dos pobres
que vivem na rua.

Finalmente, Ivete, um ú ltimo ponto que furou os meus olhos, ao ler os


escritos de Nenuca, foi a sua busca constante de Deus, a contemplaçã o contínua, a
oraçã o. Fiel à Regra de Sã o Bento, Nenuca viveu como reclusa no meio da rua, na
“clausura dos pobres”. Mesmo sem ter feito o voto de estabilidade, pró prio das
monjas beneditinas, ela foi fiel a esta clausura diferente e sumamente exigente, e
viveu numa solidã o e solidariedade impressionantes, sempre unida a Deus e aos
pobres. E quando, por vezes, parecia surgir uma contradiçã o entre sua fé em Deus
e o seu amor aos pobres, ela nã o fugia do conflito, mas o acolhia dentro de si. Como
Jó , deixava que a miséria extrema dos pobres questionasse e purificasse a sua fé
em Deus. Como Noemi do livro de Rute, caminhava na escuridã o da entrega e
reencontrava os sinais de Deus vivo, para além dos limites das ideias, no meio dos
pobres. Assim como Jesus, foi fiel até a morte, querendo morrer, se dependesse só
dela, com os pobres, no abrigo pú blico.

A ú ltima vez que encontrei Nenuca foi ao hospital, poucos dias antes da sua
morte. Ela falava com dificuldade, mas seu olhar era alegre e acolhedor. Ela sabia
que o fim estava perto. Falamos pouco. Agradeci o bem que ela me fez através do

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testemunho da sua vida. Ela me olhava sorrindo, meio incrédula, como se quisesse
dizer: “Eu? Quem sou eu?” Rezamos juntos o Pai Nosso. Um aperto de mã o bem
prolongado. Uma vontade de chorar. Saí. Foi a ú ltima vez!

“Eu? Quem sou eu? Ivete, esta pergunta final, estampada nos olhos da
Nenuca, me fez lembrar a frase de Zé Terta, agricultor do Ceará : “Eu descobri que
nã o sou pessoa. A pessoa é a comunidade!”Nenuca só conseguiu ser pessoa, só
conseguiu ser ela mesma, perdendo-se em Deus e no meio da comunidade dos
pobres! Vivendo assim, ela encarnou um ideal. Que vocês, da Fraternidade, possam
ser vocês mesmas, perdendo-se em Deus e no meio dos pobres.

Frei Carlos Mesters, Carmelita

Domingo de Ramos, 31 de março de 1985.

Introdução

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Vou tentar irar da memó ria coisas acontecidas há muitos anos. 35, 32, 30
anos e tentar trazê-las de volta.

Relembrar a histó ria de um grupo, e particularmente de um grupo religioso,


no caso das Oblatas, é formular nã o só o ideal que nos uniu, mas também reviver as
dificuldades de ser fiel ao primeiro Amor.

Partir de hoje caminhando para trá s, revendo as diversas etapas do grupo,


nos torna mais abertas para a aceitaçã o de um compromisso evangélico junto aos
mais pobres.

Entretanto, trata-se de um simples relato de um compromisso de vida junto


ao povo que vive nas ruas das grandes cidades, de modo particular em Sã o Paulo.

Esta caminhada é, em si, uma pequena histó ria da Igreja. Da Igreja periférica
do centro da cidade, onde um pequeno grupo consagra sua vida junto a este povo e
descobre, a partir da encarnaçã o, que o grito deste povo é o grito de milhõ es de
operá rios, lavradores, índios, negros, marginalizados etc.

Com esta tomada de consciência, a missã o, como uma forma de vida do


grupo, adquire através de anos diferentes modos de engajamento, procurando
estar sempre atenta à s necessidades do povo, e assim, da Igreja.

Aproveito para isso a doença atual, que me deixa parada, sem atividade, e o
sentimento que, por esta situaçã o, teve oportunidade de se manifestar. É uma
espécie de dívida, em relaçã o ao grupo atual da missã o, de contar sua histó ria,
como foi nascendo, como Deus foi agindo ao longo de todo esse tempo.

Muitos têm perguntado, e cada vez tenho mais dificuldade de responder,


sem saber definir, o que seja mais importante transmitir, ficando as informaçõ es ao
sabor do momento, particularizadas. Também tenho vergonha de falar de coisas
nas quais estive tã o vivamente envolvida, vivenciando a açã o do Senhor.

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Primeira etapa: Os Sinais de Deus

Uma ideia inquietante

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Antes de existir a OAF (Organizaçã o de Auxílio Fraterno), ou a atual
Comunidade do povo da Rua, Deus começou um trabalho lento em algumas
pessoas. Eu fui uma delas. Estava em Montevidéu e lá participava de vá rios
movimentos, realidade que já havia começado no interior do Uruguai, onde antes
vivia. Era também a Associaçã o de Estudantes e Profissionais Cató licas, a Açã o
Cató lica, grupo de Economia e Humanismo. Ali chegavam pessoas e notícias do
mundo. Está vamos no final da década de 40 e começo da de 50. Terminada a
guerra, surgia um novo posicionamento dos homens frente ao Evangelho, à
religiã o. Aparecia claramente uma procura de autenticidade em relaçã o ao mundo
operá rio: tomava-se consciência de que a Igreja havia perdido essa classe.

O que no momento nos tocava mais profundamente eram os padres


operá rios, no porto de Marselha na França; o Abbé Pierre, na França também:
religiosos que começavam experiências nos meios sociais e em formas de vida
mais simples, homens nas fá bricas, mulheres como empregadas domésticas, em
vá rios lugares da Europa e da América; as irmã zinhas de Foucauld, numa vida de
testemunho e trabalho de bairros operá rios.

A mudança de posicionamento social, em todas as experiências,


despertava em nó s o desejo de viver esse “apostolado”, como entã o se chamava. E
as formas de oraçã o que já surgiam destas novas formas de vida, empolgavam-nos.
O livro Em missão proletária relata a experiência dos padres operá rios, sua tã o
forte inserçã o no trabalho do porto como estivadores, e nas fá bricas. Este
movimento foi condenado pela Igreja em 1954, mas ressurgiu alguns anos depois;
atualmente denomina-se M.O. P, - Movimento Operá rio. Existem comunidades
destes padres em Sã o Paulo – SP. O aludido livro conta muito vivamente as
primeiras liturgias (missas) celebradas nas casas ou nos quartos onde moravam os
padres, ou nas casas de famílias, com participaçã o ativa dos assistentes, colocando
diante de Deus os problemas concretos da vida de cada um: o trabalho, a família, as
necessidades do cotidiano. Eram os primó rdios da reforma litú rgica, antecipando o
uso do verná culo, o entrosamento da assembleia, acolhendo a vida real, a mudança
de posiçã o do celebrante etc. Impossível descrever a emoçã o que tudo isso
despertava em nó s – em mim particularmente – o desejo de poder viver do mesmo
modo, sentindo-nos chamados para uma vida religiosa fora dos padrõ es
conhecidos.

Em um dos movimentos de que participava, havia uma vivência


comunitá ria muito rica. Eram tardes semanais, recreativas e de formaçã o
evangélica, cultural e de vida, convivência de igual para igual entre jovens e
adultos, dias de encontros, acampamentos, reuniõ es de todo tipo. Um bom
ambiente, onde os jovens tinham liberdade, e que abriam horizontes de vida.

Foi aqui com algumas amigas, que partilhavam destes sentimentos de


levar uma vida evangélica radical, que começamos um grupo de uniã o, que
contestava os adultos, em colégios ou faculdades variadas. No grupo procurá vamos
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um relacionamento de amizade autêntica entre nó s. Procurá vamo-lo
expressamente. Na manifestaçã o de Deus que se realizava em cada uma, fortalecia-
se o ideal de seguir a Jesus de modo total.

Conto isto do grupo do Uruguai, que na época nã o passava de um grupo de


amigas, porque vejo como desde o começo desta experiência Deus agiu através de
um grupo, nã o individualmente. Embora as respostas em relaçã o à vida, ao futuro,
se fossem esclarecendo e realizando depois, individualmente, sempre ficou um
grupo como base. Penso que isto é importante na histó ria que estamos nos
enforcando para contar. Naquele tempo, tínhamos lemas que resumiam os
sentimentos grupais – o dos “Três Mosqueteiros” estava bem na moda, “um por
todos e todos por um”- e eram levados muito a sério. Os outros correspondiam ao
que nascia como resposta ao Evangelho que generosamente nos era anunciado.

Vivíamos esses tempos agradá veis, mas simultaneamente crescia a


inquietude pelo futuro. O que vamos fazer? Teremos uma missã o concreta? Quem
quer mesmo? Estas inquietudes eram mantidas em profundo segredo dentro do
grupo, mas aos poucos foram ganhando força e, nã o tendo respostas ali, fomos
procurar alguém que nos pudesse dar orientaçã o. Nosso problema era saber se
poderíamos (e como?) assumir um compromisso de vida com os mais pobres,
formando uma espécie de missã o.

Entretanto, outra vivencia forte vinha ao nosso encontro. Um dos padres


com quem tínhamos mais contato, salesiano, sá bio de vida e conhecimento, homem
de Deus, “despertador” de vocaçõ es religiosas, acompanhava outras moças mais
velhas do que nó s. Através desse padre, elas haviam conhecido a vida beneditina, e
começavam a partir para os mosteiros. Partiu a primeira, a segunda, depois a
terceira. Cada partida era comunicada, refletida, acompanhada... e trazia uma
grande dú vida: vida contemplativa ou vida ativa? Silêncio, paz, oraçã o dia e noite,
ou compromisso concreto com os irmã os de carne e osso, significando para nó s
uma procura no desconhecido? O problema da classe operá ria nunca seria possível
abrange-lo como um todo, apenas particularmente, talvez só individualmente... A
oraçã o seria mais eficaz? Todas as alternativas tinham suas dificuldades, mas eram
boas. Como decidir? Na hora das dú vidas eu ainda nã o sabia que Deus tinha a
resposta preparada na pessoa do padre Igná cio Lezema.

O Padre Ignácio Aponta um Caminho

Pe. Igná cio falava pouco de si. Quando o conhecemos, seus pais já eram
falecidos, estando vivos os quatro irmã os: um advogado, dois assistentes sociais e
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Pe. Igná cio. Este era o nome religioso, o nome de família era Carlos Francisco.
Carlos Francisco, terceiro de três irmã os, nasceu no dia dez de outubro de 1918. A
família era de forte vivencia cristã , tendo todos os membros atuaçã o política e
profissional em diversos segmentos sociais. O pai fora fundador, com outros
cató licos de Montevidéu, da Uniã o Cívica (partido conhecido hoje como
Democracia Cristã ).

Carlos Francisco, adolescente, perguntava-se em relaçã o a seu futuro.


Estava desorientado. Começou a estudar Direito, mas nã o se desempenhava bem
nos estudos. Juntara-se com outros rapazes e começou a levar uma de jogo e
libertinagem. Ao mesmo tempo, o chamado de Deus para uma vida religiosa se
fazia sentir, mas ele parecia nã o escutá -lo ou nã o lhe dava atençã o. Foi quando
Dom Orione esteve no Uruguai e Carlos Francisco o conheceu.

Dom Orione era o fundador da Congregaçã o da Divina Providência. Deste


homem sim, Pe. Igná cio gostava de falar. Contava sua ligaçã o, sua descendência
espiritual de outros santos, daqueles que puseram a paternidade de Deus a serviço
dos pobres. A esta açã o paterna e atual de Deus eles chamavam de “Divina
Providência”.

Pela pró pria providência de Deus, estes homens marcaram sua geraçã o na
Itá lia, mais especialmente na cidade de Turim, no século XIX.

Foram eles: Cottolengo, que fundou, sem nenhum tostã o, casas e mais
casas para pessoas doentes, desamparadas. O santo Cottolengo transmitiu o seu
ideal de fé e serviço a centenas de pessoas, religiosos que hoje sã o milhares pelo
mundo inteiro. Dois princípios os animavam: “A caridade de Cristo nos urge” e “fé,
mas daquelas!”

Dom Cafasso, que acompanhava os pobres condenados à morte até o fim.


Ia com eles pelas ruas da cidade, no ú ltimo trajeto, sofrendo com eles a ignomínia,
e confortando-os no amor de Deus. Sã o Joã o Bosco, este bem conhecido entre nó s.
A sua vida e obra começou em Turim, onde viveu e morreu, dedicando todas as
suas forças à s crianças pobres da regiã o. Destes homens recebeu Dom Orione sua
fé e seu ideal. No dia da morte de Sã o Joã o Bosco, Dom Orione, ainda bem jovem, foi
ajoelhar-se junto ao caixã o. Chorando cruzou as mã os para rezar, colocando-a em
cima do corpo do santo. E em uma das mã os tinha um dedo ferido por um corte
profundo. Ao levantar-se percebe que o dedo estava curado. Havia recebido o
primeiro milagre do santo, depois de morto.

Depois de morto, porque em vida, todos eles fizeram e receberam muitos


milagres, sempre multiplicando os dons da divina providência em benefício dos
famintos e dos doentes. E todos os seus seguidores, levados pela sua inspiraçã o á
mesma fé na Providência, viram e experimentaram esse amor sempre atual do Pai.
Também nó s o vimos, mas contarei mais adiante, para nã o sai da ordem dos fatos.

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O jovem Carlos Francisco foi pedir orientaçã o a Dom Orione e pouco
tempo depois preparava sua bagagem e partia para Buenos Aires, o estava o
noviciado da Divina Providência. Foi o tempo de maior descoberta desse Amor-
Providência e de radicalidade na vida sacrificada que o fundador exigia. Assim foi
até ordenar-se padre.

Mas antes disso, aconteceu este fato, que ele me contou, apenas uma vez.
Um dia, Dom Orione o chamou. Pe. Igná cio tinha seus dezessete anos. Dom Orione,
sem nenhuma explicaçã o, o abençoou, o beijou e lhe disse: “Um dia, você vai ter a
metade da minha capa”.

A histó ria seguiu-se o comentá rio: “Dom Orione nã o usava capa, apensas
um velho capote e eu nunca tive nem um botã o dele, menos ainda a metade. Será
que se referia à vinda e ao trabalho de vocês?” A gente também nã o sabia
responder.

Sempre lembro esta “metade da capa” que, com o correr dos anos, vai se
tornando cada vez maior se é que se referia ao amor aos mais pobres, que o Pe.
Igná cio conseguiu despertar em tantas pessoas, amor este que, provindo do Amor
inesgotá vel do Pai, segue multiplicando-se e fazendo-se concreto através do tempo.

Uns anos depois de ordenado, o Pe. Igná cio nã o encontrou mais na


Congregaçã o o ideal que para lá o levara. Sentia-o diminuir de intensidade depois
da morte de Dom Orione. Viajou à Europa, pensando em uma mudança de
congregaçã o, mas sem saber ainda qual escolheria. Um padre jesuíta, que ele nã o
conhecia e que viajava no mesmo navio, falou-lhe da Ordem Beneditina e em
especial dos beneditinos olivetanos, que uniam à contemplaçã o uma açã o
apostó lica no campo intelectual e um trabalho intenso para conseguir a unidade
dos cristã os. Pe. Igná cio decidiu ir conhecer a Congregaçã o Olivetana, no mosteiro
de Monte Oliveto em Siena (Itá lia). Se o que já conhecia o decidira a chegar até lá ,
outros acontecimentos sucedidos na época da origem destes monges o
impressionaram vivamente. O fundador, Beato Bernardo Ptolomei, vivia retirado
com seus companheiros, numa vida de penitência e oraçã o, quando surgiu a peste
em Siena. Era o final da Idade Média. Milhares de pessoas morriam em meio a um
sofrimento atroz. Poucos eram os recursos humanos e menores ainda o da
medicina. Sabendo isto, o Beato Bernardo desceu com oitenta dos seus monges, da
tranquilidade do Monte Oliveto, para Siena, para atender as vítimas da peste. Nesse
serviço de caridade ele morreu. Deve ter morrido também outros dos que o
acompanharam. Os que sobreviveram, passada a crise da peste, retornaram ao seu
retiro e continuaram o Mosteiro começando pelo beato Bernardo. Na falta do
fundador, mesmo de seus restos mortais – pois os pestilentos eram enterrados na
vala comum – ficou para os monges o exemplo da sua caridade até a morte. Isto se
mantém vivo na histó ria dos beneditinos olivetanos. Vá rias imagens do beato
Bernardo mostram-no carregando os doentes nos braços. Para o Pe. Igná cio este

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fato foi tã o importante que se tornou uma espécie de “palavra de ordem”, de
inspiraçã o para sua vida.

Transmitiu-a nó s, como exemplo de valor da caridade total, acima de


qualquer coisa, mesmo as mais sublimes, como a oraçã o e a contemplaçã o.
Terminado o noviciado em Monte Oliveto, Pe. Igná cio, agora monge olivetano, foi
enviado ao Brasil, como capelã o do Hospital do Brá s. Ali, menos de um ano depois
fomos conhecê-lo.

Como o conhecemos

Está vamos ainda em Montevidéu, no ano de 1952. Uma de minhas amigas


estudava Serviço Social, e nessa escola, em conversas e palestras, apareciam
muitos problemas vitais. Esta escola era no momento a ú nica de orientaçã o
cató lica, onde era possível discutir um tema como Serviço, e dentro dele aludir à
vida religiosa. As faculdades do Uruguai, com todo o seu ambiente cultural, eram
de cunho liberal nã o cristã o.

Minha amiga encontrou lá uma professora interessada no tema Serviço –


Vida Religiosa, e conversaram sobre isso. Soube entã o que essa pessoa tinha um
irmã o, sacerdote beneditino, que lhe havia manifestado suas ideias com relaçã o à
consagraçã o à Deus e uma vida de procura absoluta de Deus, que poderia ser
realizada na forma de uma séria clausura, ou de uma radicalidade de serviço ao
pró ximo, sem separar-se “do mundo”, mas vivendo dentro dele. Esse padre era
padre Igná cio.

Onde estava ele? Queríamos conversar com ele diretamente. Depois de


muita troca de ideias e correspondências e feitas e refeitas muitas contas de
dinheiro, seis jovens uruguaias embarcaram em um navio em Montevidéu.
Desembarcaram em Santos. Era maio de 1953.

O motivo principal da viagem havia sido mantido muito reservado. À s


famílias e amigos disséramos que vínhamos passear, o que nã o os surpreendeu.
Despediram-se alegremente, desejando-nos bom passeio. Somente duas ou três
pessoas acompanharam de perto nossa caminhada.

Ao chegar a cidade de Santos, esperavam-nos Pe. Igná cio e duas senhoras


bem mais velhas do que nó s, que faziam parte de um instituto secular. Nesse
mesmo dia falaram-nos de modo demorado e entusiasmado, em português (que
nenhuma de nó s conhecia), das vantagens da vida religiosa em um instituto
secular. Era difícil entender aquele discurso. Mais difícil ainda porque – como
estava acontecendo comigo – mesmo em terra firme o chã o ainda se movia como

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se estivesse no mar provocando tontura. No fim da tarde fomos para Sã o Paulo.
Ficamos hospedadas no Hospital do Brá s, na Avenida Celso Garcia, onde Pe. Igná cio
era capelã o. Ele havia solicitado este favor à s irmã s, uma comunidade italiana, que
morava nesse hospital.

No outro dia começamos as conversas. A impressã o que Pe. Igná cio nos
causava foi muito forte. Falava de Deus, de seu amor e de suas exigências, de modo
calmo, mas forte e decidido. Falava das necessidades do pró ximo, dizendo que nã o
se podia “brincar” com elas.

Os dias se sucediam, tirando tempo para Missas em Sã o Bento, compras e


alguns passeios. Mas o fundamental era isto: estava em Pe. Igná cio a resposta de
Deus? Leio numa notas que escrevi naqueles dias:

“Olha-nos, Senhor, estamos em tuas mãos. Eu me encontro vazia e ausente, nesta hora tão
importante! Mas não posso dizer, passe de mim essa Hora, pois para isso chegara”.

Para mim era “a hora”, a resposta esperada há quatro anos.

Pe. Igná cio falava de caridade – povo – oraçã o – problema racial –


apostolado e vida interior – sobretudo das exigências do Amor.

E em outra nota:

“Senhor, terá chegado já a hora? Passamos tantas coisas nestes dias. Tua graça tem chovido
em cima de nós, temos reconhecido a mão da Providência – e tudo isso só tem uma resposta:
‘Dar a vida’ – começa a hora de romper e deixar – libertar o coração – começamos a seguir
teus passos pelo Calvário. Dá-me consciência, Senhor”.

Está vamos no mês de maio, no mês da festa de Pentecostes. Pe. Igná cio nos
havia apresentado ao Abade do mosteiro de Sã o Bento, que prometeu rezar por
nó s ao Espírito Santo, no dia da festa. Assistíamos a essa Missa cheias de devoçã o,
de esperança e de medo.

Estava decidido. Logo que possível, viríamos para Sã o Paulo, começar uma
vida operá ria, nas fá bricas, morando na periferia, entre os operá rios.
Começaríamos só s, sem privilégios de espécie alguma. Isso com o espírito
beneditino: nã o na forma tradicional, mas na sua essência: a vida comunitá ria e o
ofício divino. Tinha ficado bem claro que mesmo que disséssemos à s famílias que
era só por um tempo, deveríamos vir só se tivéssemos a ideia de ficar
definitivamente.

Nestes dias de Sã o Paulo, tivemos contato com umas moças operá rias que
haviam conversado com Pe. Igná cio sobre a vida consagrada em meio dos pobres.
Elas nos contaram suas experiências de trabalho, coisas duras, outras divertidas,
que nos empolgaram. Ficamos de juntar-nos e vivermos juntas, quando

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voltá ssemos do Uruguai. Porém, quando chegamos a Sã o Paulo, elas praticamente
haviam desistido, embora tivéssemos conversando sobre a nossa vida vá rias vezes.

Em Montevidéu

Nã o era fá cil convencer as famílias, nem as pessoas amigas, que nos


conheciam desde meninas e com as quais levá vamos uma vida pró xima, quase
comunitá ria, de que “íamos por um tempo a Sã o Paulo estudar”. Aos poucos, todos
foram percebendo que se tratava de uma opçã o mais definitiva. Para as que
havíamos decidido viajar, Ester e eu, começaram os problemas familiares, de
oposiçã o séria ao nosso propó sito. Aos poucos fomos resolvendo as dificuldades e
marcamos a viagem. As amigas da Associaçã o de Estudantes apoiaram-nos até o
dia da partida, em que se despediram com todo carinho. Recebemos bênçã os e
presentes. Ainda tivemos tempo de convencer outra moça para que viajassem
conosco. Ela veio, mas nã o ficou muito tempo. Logo voltou para o Uruguai.

Nesta vez, a viagem foi de trem. Saímos de Montevidéu no dia 15 de


setembro de 1953, dia de Nossa Senhora das Dores, de manha cedo. Lembro-me de
minha mã e, que se despedia de mim chorando. Vá rias pessoas do grupo nos
acompanharam até a fronteira do Brasil. Foi um dia inteiro de viagem, de
conversas, brincadeiras. Quantas saudades... De noite atravessamos a fronteira e
no outro dia cedo apenas as três continuamos a viagem. Já haviam nos avisado da
“vantagem” do trem que tomamos, e que era esta: se a gente se cansava, podia
descer e acompanhar o trem andando a pé... A piada mostrou ser verdadeira! Fora
cinco dias de viagem. Por fim, no dia 19 de setembro, de noite, chegamos à Estaçã o
Sorocabana.

Começo em São Paulo

Fomos novamente hospedados no hospital do Brá s, embora por poucos


dias. Logo mudamos para um pensionato para operá rias, que uma senhora “muito
cató lica e apostó lica” mantinha.

Pe. Igná cio nos preparou para a vida nova, com alguns encontros, uma
espécie de retiro. Destaco algumas frases:

“O mais importante de tudo é a caridade fraterna; que não exista nada contra a caridade.
Pobreza, castidade e obediência são como frutos, porém a raiz é a caridade. Nada

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escandaliza tanto como a falta de caridade. Jesus Cristo disse que nos reconheceriam como
seus discípulos, pelo amor”.

Entretanto, discutíamos também alguns problemas imediatos e outros,


que viriam no futuro: primeiramente o trabalho, que já procurá vamos nas fá bricas
e também outras conversas sobre a organizaçã o da vida comunitá ria e inserçã o no
bairro operá rio. E ainda, o que significava o espírito beneditino em relaçã o à vida
que começá vamos.

Em princípio nos chamaríamos “oblatas operá rias”.

Este nome, que foi mantido até agora, significa “oferecidas”, vida em
ofertó rio a Deus, sempre nos causou problemas. É porque entre os beneditinos
significa as pessoas leigas que vivem como espírito da Ordem, e nó s somos
religiosas. Em outras congregaçõ es, o nome oblatas refere-se a pessoas apenas
“agregadas”, enquanto a nossa posiçã o é diferente.

O trabalho na fábrica, as primeiras moradias.

Pusemo-nos à procura de trabalho nas fá bricas, assim que conseguimos o


mínimo de papeis legais. No pensionato, as moças davam algumas informaçõ es.
Andamos um bocado, até que no dia 15 de outubro, a fá brica Philips, de lâ mpadas,
nos contratou. Fizemos os testes psicotécnicos etc. Esta fá brica ficava na vila Maria.
Dois anos depois, mudou-se para a Marginal do Tietê. Muito cansaço ( de trabalhar
muitas horas em pé, os calcanhares pareciam fogo!), a dificuldade de nã o entender
a língua, nã o saber se comunicar com os companheiros, o sono...

Do pensionato à fá brica, íamos caminhando, passando antes pelo hospital,


para a missa das seis horas. Saíamos depressa, antes de terminar, pois entrá vamos
na fá brica á s 6:30 hs e na linha de montagem, já trocadas e de cartã o batido, à s sete
horas em ponto.

Tudo era novo e, acostumando-se com o ritmo, a gente tomou gosto. Como
ficá vamos bastante tempo em silêncio, aprendemos a “ruminar”, a saborear o que
havíamos rezado e refletido. Neste aspecto, foi um tempo bom.

Na convivência, foi melhor ainda. As colegas nã o nos estranhavam pelo


fato de sermos de fora, pois muitos estrangeiros chegavam à Sã o Paulo; sentimo-
nos diferentes, isso sim por estarmos sem as famílias e nã o demonstrarmos
interesse pelo casamento! E nã o sabíamos como explicar esta situaçã o. Elas
esperavam que, arrumando serviço, mandá ssemos vir nossos parentes. Quanto ao
casamento, ficava nas brincadeiras e nas piadas mais pesadas. Mas deu para
mergulhar na vida, sobretudo no Bairro. A fá brica era uma das que melhor

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pagavam, nã o havia movimentos reivindicató rios. Havia até orgulho de se
trabalhar ali, e, quanto à s mulheres, a situaçã o de operá ria era sempre mais bem
vista que a de empregada doméstica. Pouco depois de conseguirmos trabalho,
deixamos o pensionato e fomos morar em um “cô modo-cozinha”, na Á gua Rasa.
Meses depois mudamo-nos novamente, agora para a Vila Maria Alta, onde
moravam muitas colegas de fá brica. A essa altura, a partir de novembro de 1953, já
morá vamos com outras pessoas. Primeiro com uma mã e solteira com seu filhinho
de dias. A criança faleceu logo, e a mã e seguiu a sua vida. Continuamos
encontrando-nos até muitos anos depois. Em seguida, foi uma senhora abandonada
pelo marido com quatro filhos pequenos. D. Maria arrumou trabalho em outra
fá brica e dividíamos os gastos, os trabalhos e o cuidado das crianças. Com ela,
comecei a entender o valor de Nossa Senhora Aparecida na vida do povo. As
crianças preparavam-se para a Primeira Comunhã o e ela fazia questã o de que fosse
em Aparecida. Os vizinhos todos concordavam com a ideia, embora os que tinham
vindo do Norte trouxessem outras vivências e saudades... De modo que, terminada
a preparaçã o, gastamos todas as economias para ir a Aparecida do Norte. Numa
Missa confusa, no meio de uma multidã o que só anos depois entendi como “cheia
de fé”, as crianças comungaram.

O pessoal do bairro era todo muito amigo. Nã o nos encontrá vamos muito,
mas os quintais abertos facilitavam a convivência. Era uma hora de tirar a á gua do
poço, de lavar e recolher a roupa, nas chegadas e saídas. Sempre era hora para um
comentá rio, para contar algum fato. As crianças faziam o resto, pois estavam
sempre perto de nó s, e as mã es chegavam atrá s delas. Aos domingos vinham umas
moças ao bairro, ensinar catecismo. Quando souberam que está vamos lá , pediram
a nossa casa para reunir-se com as crianças. Fizemos amizade. Elas pertenciam a
um instituto religioso que acabava de ser fundado em Sã o Paulo. Como a criançada
estava sempre conosco, reforçá vamos um pouco as aulas de catecismo e íamos com
elas na Missa na paró quia. Formou-se um lindo grupinho que fez a Primeira
Comunhã o, ainda como tradiçã o, nã o como vida. É muito possível que nenhuma
daquelas crianças tenha continuado qualquer prá tica religiosa. Pois nã o tinham
sustentaçã o familiar nem comunitá ria. As moças do instituto deixaram de vir ao
bairro, que também ficava bastante longe da igreja paroquial.

Naquela época, a preocupaçã o do nosso grupo nã o era assumir um


trabalho de estrutura paroquial do bairro onde morá vamos. O Espírito que nos
animava era de uma presença e convivência fraterna no meio do povo. Tal fato,
sem dú vida, era algo novo dentro da Igreja. Está vamos no ano de 1953/54.

Mas nem tudo eram flores

À medida que escrevíamos à s amigas de Montevidéu, contando as


maravilhas que vivíamos e convidando-as a vir, iam se preparando as dificuldades.
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Algumas do antigo grupo vieram visitar-nos nesse período, mas para admiraçã o
nossa, nã o ficaram muito entusiasmadas com que viram!

Depois de alguns dias voltaram, sem que tivéssemos podido entender-nos.

Acharam-nos exageradas. Diziam que falá vamos o tempo todo de Jesus,


que havíamos mudado de personalidade. Que a primeira ideia era outra etc. Nossa
esperança era sabermos de uma que se mantinha firme no desejo de vir para Sã o
Paulo. Era Nená . De fato, quando chegou de visita, pegou-nos de surpresa na saída
da fá brica. Foi uma grande alegria e o nosso entendimento foi bem mais fá cil.
Comungamos claramente o mesmo ideal. Logo que pô de, Nená veio juntar-se a nó s.

Mas as famílias e os amigos do Uruguai nã o estavam tranquilos! Vinham


uns apó s outros e cobravam-nos a volta. Nã o tínhamos vindo por um tempo? Já
havia passado. “Pobres há no Uruguai” era o estribilho mais constante para
convocar-nos a voltar. Ainda hoje, é o raciocínio mais usado quando se quer
dissuadir alguém de ir para outro lugar, para uma comunidade ou missã o. Mas nã o
paravam aí os argumentos. Vinham com a esperança de nossos retornos e ao Vê-la
frustrada nã o deixaram de se manifestar com violência, e nã o só de palavras.
Vivemos situaçõ es muito difíceis. Quem nos acompanhava, junto com Pe.
Igná cio,era D. Yayá , a queridíssima D. Yayá . Era uma das que nos recebera em
Santos. Assistente social, fundadora da JOC no Brasil, muito livre e muito capaz,
trabalhava no Abrigo de Menores, na Avenida Celso Garcia, defronte ao Hospital do
Brá s. Encontrava-se com sempre com Pe. Igná cio e partilhava seus ideais, inclusive
o de formaçã o de nosso grupo.

Nesses momentos difíceis, contá vamos com ela, como pessoa mais velha,
mais experiente. Ela estava junto de nó s e nos acompanhava. Estava presente e
falava com as mã es, com os familiares, para explicar e amenizar. Sua presença, sua
palavra era de uma grande força. “Baluarte seguro, apoio forte”, assim era D. Yayá .

Superados os momentos familiares, ao menos da exigência de volta, outros


apareceram. Agora vinham dos amigos. Começaram a desconfiar do Pe. Igná cio,
quem essa esse homem que assim nos “prendia”? Que tipo de monge era esse? Nã o
morava em seu Mosteiro... Seu superior sabia como ele agia?

Houve um fato que precipitou a desconfiança, provocado pela nossa


ingenuidade. Continuá vamos recebendo tanto do Pe. Igná cio, que nos sentimos
cada vez mais ligadas espiritualmente. Víamos com nossos olhos a sua seriedade
em nossa formaçã o, dedicaçã o e o testemunho de amor tanto para conosco, como,
e mais ainda, para com os pobres e todas as pessoas que o procuravam ( jovens
para definir sua vocaçã o, moças para conhecer-nos, profissionais que desejavam
uma vida mais engajada etc.). A gente acreditava mesmo nele. Por isso nã o
duvidamos em pedir ajuda à s amigas do Uruguai. Foi assim: o Pe. Igná cio ajudava
muitos pobres, especialmente senhoras que saíam com alta do Hospital sem

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dinheiro de conduçã o para voltar para a casa. Pe. Igná cio contratava, para pagar
depois, o taxi de um senhor amigo para ir levá -las. Assim as contas foram
crescendo e era preciso pagá -las. Ajudamos no que pudemos com nosso salá rio,
mas ainda nã o dava para saldar as contas. Aí foi que nó s escrevemos para o
Uruguai, pedindo se possível um pouco de dinheiro. Nunca havíamos pedido nada.
Foi a primeira vez e a ú ltima!

Assim sendo, um dia, quando chegamos ao Mosteiro de Sã o Bento para a


aula semanal de Regra, lá nos esperava outra surpresa: o Abade Primaz da Ordem,
que em visita aos mosteiros chegara a Sã o Paulo, queria ver-nos. Era um homem
baixo e forte, de ar tranquilo, vestido com roupas largas e ao peito a grande cruz
abacial. Fiquei um pouco impressionada. Falou-nos das preocupaçõ es que em
Montevidéu e Buenos Aires existiam a nosso respeito, da orientaçã o que
está vamos recebendo, e que haviam encarregado de falar conosco sobre o assunto.
Nã o lembro como respondemos. Sem dú vida o tranquilizamos, afirmando que nos
sentíamos no caminho certo e pedimos que tranquilizasse também os que se
interessassem por nossas vidas. O monge que nos dava aula da Regra, Dom
Engelberto, tinha uma fé enorme na gente e, embora nã o se envolvesse no caso
(um monge deveria estar submisso a um abade), apoiava-nos inteiramente.

A desconfiança em relaçã o ao Pe. Igná cio chegou a tal ponto que na


primeira viagem que fiz a Montevidéu, quatro anos depois da minha chegada ao
Brasil, contaram-me que haviam pensado que ele estivesse sob a influência do
diabo.

Por este motivo, os laços de amizade que nos prendiam à s origens


esfriaram bastante e a gente se foi fazendo mais brasileiras para integrar o grupo.
Também já chegavam algumas brasileiras para integrar o grupo. Vieram morar
conosco, na casa de dois cô modos na Vila Maria.

Os pobres sem moradia, sobretudo mulheres e crianças, sempre nos


acompanharam, como hó spedes que considerá vamos enviados de Deus. À s vezes
chegava a faltar-nos lugar físico para dormir. A exemplo de Pe. Igná cio, que fazia
isso à s escondidas no hospital do Brá s, forrá vamos com um pano o pedaço de chã o
que ficava livre e nele nos deitá vamos as poucas horas que nos separavam do
trabalho, no dia seguinte. Uma senhora que se havia internado no hospital,
tuberculosa, deixara guardado conosco um sofá -cama, que usá vamos. Quem
chegasse mais tarde, podia encontrar um pedacinho de sofá , embora “a lotaçã o” já
estivesse completa. Acontecia que quem se deitasse na bandinha do sofá assim que
pegava no sono perdia o controle do espaço e ia parar no chã o... Se o frio nã o era
muito grande, ficava-se por ali mesmo. A construçã o das casas era muito simples, e
quando a gente se deitava na parte alta do beliche podia ver as estrelas através do
telhado.

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A fidelidade à oraçã o se conservara mesmo nestas circunstâ ncias difíceis.
O ofício divino, a leitura da Bíblia e também a reflexã o para a leitura de outros
livros, sobretudo do começo do cristianismo, nã o faltavam na nossa vida diá ria.
Como conseguíamos? É difícil explicar, nã o fosse a grande força interior que a
gente tinha. Havíamos aprendido as “horas menores” de cor e as rezá vamos
descendo o morro, ou no caminho do ô nibus, de madrugada, mesmo quando a lama
pesada nos arrancava os sapatos dos pés, obrigando-nos a parar na estrada para
prosseguir depois.

O mais complicado era voltar sozinhas à noite. Depois do trabalho íamos


ao Hospital do Brá s e de lá a gente saia bem tarde. Era a ú nica hora para
conversarmos tranquilas com Padre Igná cio. Encontrá vamos gente do bairro no
caminho, mas ficava um pedaço para andar só . O medo nã o era pouco, ao encontrar
pessoas desconhecidas. As notícias de assalto nas periferias já estavam nos jornais
e na boca do povo. A gente passou momentos bem difíceis, angustiantes. A certeza
de que Deus nos acompanhava nos dava forças para retomar a caminhada, nos dias
e nas noites seguintes.

Mas havia dias que o sono nos dominava. Penso que demos prejuízo à
fá brica. Um dia dormi em pé, trabalhando, e no cochilo quebrei seis lâ mpadas de
uma vez. Foi um estouro grande. Acordei com as mã os queimadas e o mestre me
xingando! Dormíamos no ô nibus, na volta para a casa. Sorte que os vizinhos nos
conheciam e ao chegar perto já nos acordavam, ou avisavam o cobrador, senã o
iríamos descer cada noite no ponto final.

A comida era bem repartida e, graças a Deus, nunca nos faltou.

Nem tudo eram flores... Esta frase de Sã o Bernardo esteve bem presente,
neste começo: “Nã o podemos ser membros coroados de flores quando a Cabeça
está coroada de espinhos”.

Tudo o que contei até aqui corresponde a uma primeira etapa, sem
estruturas. Um tempo de conhecimento da realidade, de experiência de vida, e
também de experiências fortes do amor de Deus. Nã o faltaram saudades,
sofrimentos e perplexidades.

O tempo andando, novas exigências apareceram, e começou-se a dar forma


ao trabalho e ao grupo. É outra etapa.

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Segunda Etapa: O Senhor do Impossível (1955 -1960)

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Esta nova etapa compreende a fundaçã o e começos da OAF, e a formaçã o
do grupo das Oblatas: isto pertence ainda à “histó ria antiga”, e estende-se
aproximadamente de 1955 a 1960.

Por suas atividades apostó licas, o Pe. Igná cio foi se tornando conhecido em
Sã o Paulo. Ele nã o hesitava em procurar pessoas, nã o só para solicitar sua ajuda
para as necessidades concretas dos amigos mais carentes, mas também para
discutir os problemas mais gerais dos pobres da cidade. Outros também o
procuravam, no mesmo sentido. Eram os médicos do hospital, assistentes sociais
de diferentes trabalhos, oficiais ou particulares. Surgiu entre eles o desejo de
organizar-se. Fundaram a OAF, o que daria mais alcance aos trabalhos até entã o
individuais. Preencher-se-iam algumas “lacunas” sociais, através de uma ajuda
efetiva a camadas abandonadas, e também facilitaria o recebimento de dinheiro e a
prestaçã o de contas. Mas, sobretudo, criar-se-ia um novo modo de atendimento,
mais humano e mais cristã o. Dos interessados, vá rios trouxeram seus amigos,
comprometendo-se com o serviço aos “mais abandonados na sociedade e no Corpo
Místico de Cristo”. Nesta época, nos relacioná vamos mã es solteiras, mulheres
prostitutas, presos, presas e egresso das prisõ es. Ainda nã o se cogitara da rua. Pe.
Igná cio descobriu o povo da rua um pouco mais tarde.

Dona Yayá (junto com Pe. Igná cio) foi a animadora deste primeiro grupo,
fundador da OAF. As pessoas eram de formaçã o cató lica – exceto uma pessoa
espírita – uma situaçã o diferente, já que nesse tempo, os “judeus nã o se juntavam
com os samaritanos” (Joã o 4,9), ou seja, cató licos e espíritas nã o se misturavam.
Mas esta é uma das características do Pe. Igná cio, a de nunca formar grupos de
“puros”, mas sempre grupos heterogêneos, onde a vida e o amor estivessem acima
de qualquer puritanismo ou catolicidade. O grupo foi se formando com uma
espiritualidade cristã forte. Algumas do futuro grupo de Oblatas participavam dele.

Fundamentação de uma prática

Vou tentar colocar alguns dos princípios que nortearam sua açã o, e como
eram entendidos: amor e respeito, o pecado de omissã o social, o dinheiro, a oraçã o
para a açã o.

Amor e respeito

O que de mais forte o Pe. Igná cio transmitia era o respeito absoluto pelo
pobre: filho de Deus e irmã o nosso, tinha direito à nossa solicitude e caridade. Pe.
Igná cio nã o tinha acanhamento de falar do amor como mola de toda a açã o, nem
medo de parecer sentimentalista. Aliá s, suas exigências de coerência em relaçã o a
esse amor nã o alimentaram qualquer ilusã o: nã o se tratava apenas de sentimento

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de compaixã o. Assim, ficou escrito nos Estatutos da OAF, que se assumia “tratar
como pró prios, individual e socialmente, os problemas dos necessitados”.

Preocupava e revoltava a este grupo fundador da OAF a maneira como os


pobres eram tratados nos serviços pú blicos, nas filas de atendimento, nos hospitais
de indigentes, nos colégios do Juizado e mesmo nas obras cató licas. Demoras
desnecessá rias, pouco caso, maus tratos até mesmo físicos, ironias, desconfiança,
falta de seriedade na procura de soluçõ es, acomodaçã o nas dificuldades, censura,
enfim, uma lista que lamentavelmente persiste até hoje.

Mas na década de 1950, o pessoal necessitado era mais passivo, cada


“caso” era apresentado e resolvido individualmente. Isto tornava mais urgente
(palavra que Pe. Igná cio gostava de usar) uma consciência mais bem formada
daqueles que se dispunham a mudar ou a dar um novo enfoque a esse estado de
coisas. Nã o se pretendia fundar um trabalho igual à queles, mas sim, abrir uma
brecha na sociedade, para a implantaçã o de princípios verdadeiramente cristã os.
Um ideal de amor que comprometia ao pró prio Jesus.

Pecado de omissão social

Outra ideia permanente na transmissã o do Pe. Igná cio era a do pecado de


omissã o social. Confrontados com os problemas sociais – bem mais amplos que a
quantidade dos cuidados e atendimentos individuais existentes – sentia-se a
necessidade de uma açã o mais abrangente. Era preciso preparar-se para lutar
contra esse pecado social, maior também que a soma dos pecados de cada
indivíduo, de cada situaçã o. Era trabalho para um grupo nã o ingênuo, mas
consciente. Era preciso realiza-lo no ambiente em que se vivia.

E começamos a imaginar e por em prá tica algumas inspiraçõ es. Uma delas
foi a criaçã o do Mea Culpa, boletim que relatando problemas reais de pessoas ou
grupos marginalizados, punha a “culpa” do pecado nã o nos pobres, mas no outro
lado da sociedade. Isto foi uma novidade. A elaboraçã o deste boletim era levada
muito a sério: a equipe responsá vel reunia-se, discutia, escrevia, começando por
incluir-se ela pró pria no “Mea Culpa”. Nã o havia o farisaísmo de responsabilizar
apenas os outros. Mas tentavam nã o se omitir.

Frente ao problema social, havia também o princípio de se manter atento à


cidade e ao mundo, com crítica e exemplo. Relacionar-se com outros movimentos,
interessa-los na situaçã o dos mais abandonados, procurar estimular atividades em
favor deles, era trabalho para essa equipe. Artigos sobre a OAF foram escritos em
revistas internacionais, editadas na França. Recebiam-se boletins de trabalhos de
rua em Portugal, como também dos “trapeiros”, obra do Abbé Pierre, na França
(Emaú s). E outros. Tratava-se de formar na OAF um movimento, um secretariado
para suscitar, estimular, despertar, em relaçã o a tudo que se via como falta ou

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omissã o. Programavam-se frequentemente “mesas redondas” onde com a presença
de algum especialista, se discutiam problemas relativos à situaçã o social,
econô mica, aborto, situaçã o das prisõ es etc.

Porém, como nã o é a palavra que convence, mas o exemplo que arrasta,


era necessá ria uma formaçã o também prá tica para os que fossem escrever e
transmitir. Nã o era fá cil, por tratar-se em sua maior parte de leigos com seu tempo
ocupado pela vida profissional. Neste período, a Ronda Noturna foi um campo para
esse aprendizado. Há quem se lembre, com o espírito marcado pela força do amor,
das conversas em sua casa, no final da Ronda, onde oferecia um lanche a quem
havia feito o trabalho e a quem, da rua, se havia juntado para ir procurar outros
irmã os. Os comentá rios da noite da cidade, do submundo, o comentá rio da emoçã o
das pessoas abordadas, a tristeza pelos que ficaram na rua, tudo surgia naquelas
boas “noitadas”, que deixaram saudades... E que se despertaram a consciência de
muitos.

O dinheiro

Obras de caridade, serviço aos pobres, casas para sustentar. Nã o há dú vida


de que o dinheiro era necessá rio. Mas o princípio de Pe. Igná cio também era
original. Mesmo precisando, nã o se devia aceitar dinheiro de quem nã o assumisse
um compromisso na açã o. Porque, dizia, a soluçã o dos problemas nã o está no
dinheiro, mas no amor. E por amor, sempre se subentende a açã o, o “gesto
concreto”, assim como compreendemos agora.

Por isso, os fundadores da OAF e os primeiros “contribuintes” assumiam,


na prá tica, a defesa dos pobres. De modos muito diferentes, dependendo das
circunstâ ncias. Há exemplos que ficaram tã o vivos! Tempos de frequentar
autoridades, de lutar, também de sacrifícios concretos, como quando um grupo de
meninos era sistematicamente perseguido pelos comissá rios do Juizado, e a OAF
era vista como aliciadora de menores. Lá foi o Dr. Jayme, advogado também de uma
Procuradoria do Estado, falar sobre o problema. Voltou a OAF dizendo que nunca
fora tã o maltratado em toda a sua vida. Começava entender, pela sua pró pria
humilhaçã o, o que passavam os meninos e outros sem-defesa.

Depois do Dr. Jayme, foram alguns jornalistas a sair de suas casas, no meio
da noite, para esclarecer a situaçã o desse mesmo grupo de meninos, a quem se
procurava ajudar. E assim tantos.

Por isso, o dinheiro nã o poderia ser aceito como um modo de “limpar” a


consciência de ninguém, porque as exigências do Evangelho sã o maiores do que a
esmola impessoal e descomprometida; e isto estava bem claro. Mesmo em relaçã o
aos pobres, quando a ajuda se traduzia concretamente por um auxilio econô mico
(maioria das vezes), jamais seria só isso. Escreveram no primeiro boletim: “nã o

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esmola que avilta, mas amor feito trabalho e ajuda fraterna”. Penso que os pobres
entenderam bem esta diferença. Ouvi o testemunho de que, tendo recebido por um
bom tempo casa, comida, orientaçã o para documentos, ajuda para emprego etc.,
quando alguém perguntou o que considerava o mais importante, nã o fez nenhuma
referência a tudo isso. Falou: “amizade e calor humano, isso é mais importante que
recebi”.

Oração e Ação – Oração para Ação

Lembro- me das primeiras liturgias que reuniam este grupo, e dos que,
animados pelo seu testemunho, iam a ele se juntando. Eram amigos da mesma
classe social e eram os amigos mais pobres, que encontravam ali espaço para sua
oraçã o.

Lá está vamos todos. A liturgia era uma Missa semanal, participada, na sala
de OAF, com as cadeiras e poltronas em volta da mesa que servia de altar, todos
vendo a todos, num ambiente fraterno e ameno. Eram trazidas para o Ofertó rio as
coisas dadas: comida para as casas, cobertores para a Ronda. Era uma novidade
naquele tempo, rezar a vida na liturgia. Pois outro dos princípios era que a oraçã o
nã o deveria nunca estar desvinculada da açã o. Ao contrá rio, deveria ser fonte de
inspiraçã o para a missã o que se queria viver.

Pe. Igná cio pode ser considerado pioneiro em muitas coisas, sobretudo na
Opçã o Preferencial Pelos Mais Pobres.

Pela Missa, assumia-se o sacrifício de Jesus. A frase de Sã o Paulo:


“Completo na minha carne o que falta à Paixã o de Cristo”, era assim sentida:
“Completamos o que falta à paixã o de Cristo pelos membros mais abandonados do
Corpo Místico”.

E como toda Eucaristia é para a fraternidade, nã o faltaram nunca,


completando a liturgia, o lanche e as conversas, no mesmo lugar, no mesmo
ambiente em que se havia celebrado a Missa.

Da fábrica para o submundo que se encontra no centro da cidade

Ao lado do aparecimento da OAF, e da consolidaçã o dos seus diversos


trabalhos, um pequeno grupo com vocaçã o religiosa ia se formando ao mesmo
tempo. Moravam com as que havíamos chegado do Uruguai. Foi nesse período que,
conhecendo mais de perto as presas e as egressas das prisõ es, a prostituiçã o no
seu menosprezo e abandono, se apresenta o problema de ou continuar na fá brica e
no bairro, ou vir para cidade e trabalhar com a OAF no submundo.

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Está vamos frente ao grande desafio: dar possibilidades de vida aos irmã os
que nã o tinham essa possibilidade. Amor, fraternidade total, e um pouco de
organizaçã o, eram os meios ao nosso alcance.

Optamos pelos problemas do centro. Ligamo-nos ao grupo da OAF. E


começamos uma nova aventura, tã o exigente e reveladora do amor de Deus como a
anterior.

O amor quando germina

“Conheci Pe. Ignácio e o primeiro grupo em 1955. No começo a esperança de encontrar um


ideal, um sentido na doação de si mesmo, algo grande e ilimitado capaz de preencher o vazio
da vida. Era uma inquietude. O chamado? Por acaso surge uma nova amizade, que
proporciona o encontro com alguém muito importante para o que viria acontecer daí por
diante. Um alguém tão especial, tão revestido de amor pleno, uma chama que se consumiu
tão rapidamente, porque sua vida foi uma doação constante e total ao próximo: Pe. Ignácio,
monge Beneditino Olivetano.

Um fogo que permanece aceso até hoje. Já havia um grupo de garotas uruguaias que tinham
deixado tudo: pátria, família, status e conforto, naturalmente, para viverem em nivelamento
com os operários, com todas as implicações que a insegurança social acarreta. E neste Brasil
de contraste e pobreza, que melhor campo? A vila Maria, bairro proletário, a fábrica Philips.
Conheci Nenuca e Ester com seus braços queimados pelas lâmpadas das linhas de montagem,
morando em habitações coletivas e participando do dia-a-dia do pessoal menos favorecido.
Impossível resistir a tamanha dedicação ao próximo. E Nená, tão bem dotada física e
espiritualmente e que ficou tão pouco tempo conosco, mas deixando uma profunda marca de
sua vida plenamente vivida com Deus e com aqueles mais carentes. Ele a levou para junto de
Si, onde permanece para sempre ao lado daquele que ela escolheu, mas seu exemplo ficou
com aqueles que tiveram a alegria de conhecê-la. A alegria de servir o próximo sempre com a
orientação do Pe. Ignácio era contagiante: e a necessidade de expandir, de crescer... Começa
a Organização de Auxílio Fraterno, em São Paulo, Salvador e Recife. O Pe. Ignácio não
poderia realmente ficar na limitação de capelão de um hospital; tinha necessidade de um
horizonte maior em amplidão; uma grande alma para um grande trabalho do apostolado a
serviço daqueles que estavam no fundo da cisterna, na indiferença dos homens.

Do grupo, umas trabalhavam nas fábricas, outras em hospitais, e procurando viver uma vida
de comunidade, rezava-se o Ofício Divino na humilde e pobre casinha onde viviam em
igualdade em tudo, com os vizinhos, mas procurando ser como um ‘vaso transparente’ que
deixa ver o que está dentro: o Cristo na alma, no coração e no olhar. Não era fácil, não!
Levantar muito cedo, preparar a marmita e enfrentar o ônibus invariavelmente lotado, o
avental do hospital que ia num pacote sempre chegava amarrotado, com a vida de tantos
companheiros de viagem desses ônibus de operários. Acontecia às vezes uma intoxicação
pela marmita que azedava, pois não havia muitos talentos para a cozinha, mas tudo isso
estava no programa; era a identificação para a maior glória de Deus; caso contrário, seria
apenas brincar com o Evangelho, e o que se propunha era viver o Evangelho. Nos fins de
semana livre havia a formação religiosa das crianças do bairro e se dava ‘uma mãozinha’
para as famílias vizinhas.

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Nada parecia tão aconchegante quanto a simplicidade da casinha de fundos na habitação
coletiva, o poço, pois não havia água encanada, não havia conforto material, e fazia frio!
Bem cedinho descia-se o morro para assistir à missa na igreja do bairro ou no hospital do
Brás, antes de começar o trabalho. No fim da tarde, a reunião com o Pe. Ignácio no Hospital
do Brás. O pequeno grupo foi crescendo: uma, outra e Maria Isabel que acabara de perder a
mãe e não se conformava.

Havia muita amizade, ternura e união no grupo, principalmente após uma jornada
cansativa onde o pão, repartido em comunidade de paz, trazia uma riqueza interior que
ilumina, universaliza e nos torna UNO. ‘O amor quando germina cria raízes que não param
de crescer’(St. Exupéry). Alguns frutos desse amor: na vila Diva, a creche e os pequenos
quartos para mães abandonadas. No Ipiranga, a casa das mães solteiras. Mais tarde a
‘amizade’: um cantinho diferente, onde encontrar um pouco de calor humano na zona de
prostituição. Quantas jovens perdidas na solidão do ‘trottoir’; sem esperança de uma mão
amiga, e quanta generosidade escondida nessas pessoas...”. Mercedes

Aprender Com Os Pobres Na Escola Da Rua

No começo, deixamos o bairro e alugamos um quarto, e quando este ficou


pequeno, um segundo, em pensõ es mais parecidas com cortiços, na Avenida
Angélica. Estas casas eram habitadas por prostitutas, delinquentes do tipo
malandros, e algumas famílias. Nossos quartos ficavam nos porõ es, muito escuros
e ú midos. Chegamos a morar lá , em nú mero de seis ou sete, todas do grupo.

Uma trabalhava na fá brica, duas em hospital, as demais fomos começar os


trabalhos da OAF. Seguem-se as ocupaçõ es e conversas até tarde da noite, e
começam de madrugada, com a saída das operá rias. A vida era ao mesmo tempo
empolgante e dura. Uma quantidade de iniciativas vai brotando da mente sempre
pró diga de Pe. Igná cio ( da inspiraçã o fruto da oraçã o, meditaçã o da Palavra,
estudo, inteligência e perspicá cia). Acompanhamos cada vez o nascimento das
ideias e trabalhos, mas as iniciativas eram dele. Foram muitas casas de
acolhimento. Uma “colô nia” para mã es solteiras, com creche como casa central,
quartos alugados para as mã es morarem com os filhos, as pró prias mã es
assumindo boa parte da responsabilidade. Uma casa para hospedar mulheres,
mã es solteiras e outras.

A presença e o trabalho nas cadeias, escolhendo as piores. Pe. Igná cio


chegou a ser, por algum tempo, capelã o da Casa de Detençã o masculina, porém nã o
pode ficar. Nã o dava para conciliar (aqui também Pe. Igná cio demonstra elevada
consciência política) uma postura cristã com situaçõ es de injustiça e exploraçã o
que se viviam lá dentro. Nunca fez concessã o aos poderes político-econô micos

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deste mundo e, ao mesmo tempo, nã o era intolerante ou orgulhoso com as
autoridades. Era um homem sem preconceitos.

Criou-se também um plantã o de atendimento na sede da OAF, onde


apareciam os casos mais extremos e mais diversificados. E como se tudo isto fosse
pouco, começou um “pronto-socorro espiritual” durante a noite para atender
pessoas desesperadas, neste horá rio mais crítico. Para esta açã o, foi alugada uma
casa da Rua Humaitá , que ficou conosco até 1982, servindo sucessivamente de
sede, plantã o, moradia, pernoite de meninos, casa de egressas, casa de
hospedagem a pessoas que tentaram o suicídio, casa para receber os que vinham
da rua... Para tudo se prestou a serviu a casa da rua Humaitá .

Foi neste período que nasceu a Ronda Noturna para, como Bom Pastor, ir
ao encontro dos irmã os sem casa. Como consequência dela, uma oficina para os
que pudessem e quisessem trabalhar, ganhando algum dinheiro que nã o fosse
esmola. Era para homens da rua e adolescentes. Embora os trabalhos específicos
da OAF ocupassem seus dias e noites, nã o faltava um grupo formado na hora para
ir atender acidentes de trem, enchentes etc..., solidarizando-se com o sofrimento de
outros pobres da cidade.

E o dinheiro? Faltava sempre. Começava-se a sentir a sua falta quando, era


necessá rio pagar o aluguel da sede à Rua Riachuelo nú mero 342. O que tinha em
caixa nunca dava, a gente tinha usado o que havia, tentando resolver os problemas
das pessoas que chegavam desesperadas. Acreditá vamos que a Divina Providência
“daria um jeito”. E saíamos a pedir aos amigos. É interessante que estes
respondiam, procuravam outras pessoas, se comprometiam. Mas viviam-se
momentos de muita afliçã o.

Pe. Igná cio nã o se afligia quando faltava dinheiro, embora trabalhasse para
conseguir o que faltava. Mas tinha como princípio que se devia viver como os
pobres, sentir as suas necessidades na pró pria pele. Este princípio, na prá tica,
correspondia a nã o ter bens imó veis nem rendas que garantissem o trabalho. Era
para confiar na Providência. Isso tanto para a OAF quanto para o grupo religioso
que se formava.

Nó s Oblatas conservamos este princípio de nada possuir, mas na OAF as


coisas foram mudando.

O que podemos dizer é que sempre se pagaram os aluguéis, tanto o da


sede como o das casas onde se desenvolvia os trabalhos.

Mas outras vezes... Conto o que se passou comigo. Eu estava no plantã o da


OAF, e chegou uma moça bonita, de 19 anos, mã e de três filhos. Morava na
periferia, trabalhava, mas nã o conseguia comprar alimentos, roupa, pagar o
aluguel. Pedia ajuda. Estava sendo despejada. Na OAF nã o tinha dinheiro.
Começamos “os encaminhamentos” ao Serviço Social do Estado, ao Juizado de

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Menores... a situaçã o se prolongava e o dinheiro nã o aparecia. A moça veio vá rias
vezes, mas nã o tínhamos soluçã o. E nã o veio mais. Depois lemos no jornal que
havia matado os três filhos e se matado. Até hoje lembro-me dela. Nã o conheci as
crianças.

Este caso nos preocupou, marcou, vendo claramente as nossas limitaçõ es.
E a Providência? nos perguntamos. Ficou para nó s a angú stia. E talvez uma
compreensã o mais sofrida da paternidade de Deus, que nã o age só pela sua
Providência milagrosa. A fraternidade responsá vel é que faz concreta no mundo a
paternidade de Deus. Mas um grupo pequeno nã o dá conta de tudo... Eram muitas
as pessoas que nã o conseguíamos atender, por mais que nos desdobrá ssemos.
Fomos entendendo mais “o pecado social”, a responsabilidade dos que pecam ao
assumirem em suas funçõ es de Governo, de instituiçã o, o cuidado dos pobres.
Quando isso acontece, o sofrimento e o mal se alastram, nã o há jeito. E isso Deus
nã o quer!

No cotidiano, porém, a vida era mais alegre. Depois de um tempo de


trabalho, tínhamos com os pobres um bom grau de amizade, uma riqueza de
relacionamentos, uma afetividade, que tornavam bem leves e participadas as
dificuldades da vida. E o Pe. Iná cio sempre presente, ajudando a entender os
acontecimentos da fé e o amor, estimulando alegremente tudo que de bom
aparecia.

Conviver, Partilhar, Organizar-se: A Busca de uma Identidade.

O Pe. Igná cio esteve atento à formaçã o do pequeno grupo que queria vida
consagrada. Nada era muito planejado em questã o de horá rios. Havia alguns
encontros marcados, mas muito mais informais. Ele tinha sempre o que transmitir;
sempre encontrava tempo para estar conosco, onde juntos refletíamos e
aprofundá vamos as açõ es realizadas, dando-lhes um sentido espiritual.
Convivíamos muito uns com os outros. Trabalho, oraçã o, vida, eram facilmente
postos em comum.

A Regra de São Bento

Começamos a estudar a Regra de Sã o Bento, agora com Pe. Igná cio, agora
numa visã o adaptada à missã o e à s condiçõ es necessá rias para realizá -la. Foi uma
compreensã o diferente, que nos tem acompanhado em todos estes anos.
Impossível contar tudo aqui, pois embora interessante, alongaria demais essa
narrativa. Escrevo apenas alguns pontos que se aplicam de modo mais preciso à

27
formaçã o e prá tica das comunidades, por serem de tanta importâ ncia na nossa
época.

Como todas as Regras escritas para ensinar a uniã o com Deus, a de Sã o


Bento insiste neste ponto bá sico: Contemplaçã o a Deus, estar atento à sua palavra
para fazer o que Ele nos mostra, respondendo com obras à s suas santas exortaçõ es.
Tradicionalmente, resume-se: “Ora et labora” (reza e trabalha).

Propõ e a procura incessante de Deus, que entendemos como a busca de


sua vontade para cada ocasiã o de nossa vida. Exige manter-nos numa atitude de
permanente olhar e escutar os sinais que nos revelam o Cristo agora. É a
contemplaçã o do invisível e do visível. Para nó s trata-se de viver o Cristo nos
irmã os sujos, desfigurados, desprezados e escutar suas riquezas e apelos.

Devemos ainda responder com obras a esta realidade que contemplamos:


venerar os irmã os, vestir o nu, dar comida aos famintos, consolar o que sofre,
enterrar os mortos...

Este caminho de Deus é difícil, mas nã o se deve fugir dele, pois a prá tica
generosa do amor alarga o caminho e o coraçã o de quem o percorre. E o seguidor
de Jesus é feliz.

O apelo de Deus aos homens adquiria nos ensinamentos do Pe. Igná cio
uma prá tica evangélica atualizada: Quem é chamado por Deus? “Deus procura seu
operá rio na multidã o do povo” e chama “a você quem quer que você seja”. Nã o
elitismo, a nã o ser no desejo sincero de seguir ao Senhor. Os ú ltimos podem chegar
a esta “escola”: sã o sempre bem recebidos.

O Pe. Igná cio nã o cessava de mostrar o valor que Sã o Bento dava aos
pequenos. No tempo em que eram especialmente os filhos de nobres os que
procuravam os mosteiros, Sã o Bento recebia também bá rbaras, incultos e rudes
que invadiam a Europa nascente. Nã o no segundo escalã o, para fazer serviços mais
pesados que os outros nã o gostavam de fazer, mas, muito pelo contrá rio, na
unidade e igualdade de todos, sem fazer distinçã o de pessoas, “ pois escravos ou
livres somos todos um em Cristo”.

Todos devem ser escutados, de modo especial os mais novos, como na


Escritura o foram Davi, Samuel, Daniel.

Esses sã o os princípios que animam o trabalho.

Quem sã o hoje os simples do tempo de Sã o Bento? Os pobres, o povo


marginalizado; esses a quem, por assim querer, Deus se proclama o Pai de Todos,
esses por cujo amor Jesus morre na cruz. Eles sã o reconhecidos pelo abade Bento
nas comunidades que ele forma. Isto no confirma na ideia de que o povo da rua é
também chamado por Deus para a Comunidade: gente sem tradiçã o, sem histó ria, é

28
chamada e valorizada! Eles tema sua palavra a dar na comunidade e na sociedade:
é uma palavra profética.

“Ora et labora”. Estes pilares da vida cristã acarretaram consequências de


â mbito bem maior ao da comunidade moná stica! Muitos mosteiros inseriram-se no
meio do povo, dado exemplo de uma sociedade sem classes, onde todos os monges
faziam os trabalhos simples e desprezíveis que no mundo só o servo fazia, nunca os
nobres. Pois o “Ora et labora” era estendido igualmente a todos na “Escola”
Beneditina. Foi assim que estas comunidades tiveram grande influência sobre a
civilizaçã o da Europa. Foram fortes no seu testemunho evangélico de trabalho e
igualdade. Resultado da contemplaçã o, de obediência à vontade de Deus, a de que
todos os irmã os, com Jesus sejam UM na sua presença. A comunidade tem um
momento específico em que se realiza entre a unidade comunitá ria e universal: é o
da celebraçã o litú rgica.

O documento de Puebla lembra a força do espírito comunitá rio na


formaçã o social, trazendo à lembrança as comunidades beneditinas como exemplo
bom e necessá rio para os tempos de hoje.

Muito mais nos ensinou Pe. Igná cio a respeito da regra de Sã o Bento para a
nossa missã o; nã o foram simples ideias nas atitudes de vida que nos norteiam até
hoje.

Um chamado que põe em risco a vida do grupo

Novas dificuldades se apresentam. Alguém achou demasiadamente


estranho o modo como Pe. Igná cio levava a vida e como orientava a nossa vida. De
fato, devemos reconhecer que era diferente. Nã o havia convento, nã o se vestia
há bito, nã o se tinha horá rio uniforme, nã o apareciam as formas clá ssicas da vida
religiosa. Nã o havia dú vida para nó s de que por uma coisa só devíamos ser
reconhecidas: pela caridade, pois Jesus havia dito “Nisto todos reconhecerã o que
só is meus discípulos, se vos amais uns aos outros”. Mas nem todos pensavam
assim. Certo dia, inesperadamente, Pe. Igná cio nos avisa que deve ir a Siena, falar
com o Abade Geral. Dá poucas explicaçõ es. Confusas ainda perplexas o
acompanhamento todas até Santos; a viagem é de navio.

Muitas cartas começam a cruzar o mar. As nossas cheias de saudades e de


histó rias do trabalho. As do Pe. Igná cio, de orientaçã o pessoal, para cada um, e, as
mais importantes, cartas gerais de formaçã o. Aproveita todos os acontecimentos,
as festas litú rgicas, o que lhe manifestá vamos, para escrever-nos. Em algumas, um
programa de vida espiritual, como sempre muito simples, ensinando a viver a
“viver a uniã o com Deus – vida comunitá ria – missã o”, como um ú nico amor. ”Nã o
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dois amores, a Deus e ao pró ximo; mas como o de Jesus, amor ao Pai no serviço dos
irmã os; um ú nico, grande e infinito amor”. Em outras, falava dos pró prios
sentimentos, como este: “Gostaria de escrever esta carta nã o com tinta, mas com
sangue, tanto me faz sofrer o que algumas de vocês escreveram, que nã o há entre
vocês a uniã o que Jesus quer”. E seguia uma reflexã o sobre o “Ut unum sint” (que
sejam um), palavra de Deus que ele venerava. Havia sempre, também, a insistência
na pobreza real, nã o só no espírito.

Nã o era apenas à s Oblatas que Pe. Igná cio escrevia, mas também aos
amigos da OAF, que conservam essas cartas como relíquias.

Passam-se alguns meses, e começa a aparecer na correspondência a


preocupaçã o pela volta. Todos nó s escrevemos ao Abade de Monte Oliveto: os
leigos, que se precisa do Pe. Igná cio para continuar a OAF; as do grupo religioso,
que se precisa dele para formar o grupo e para a missã o. Parece que convencemos
ao Abade Geral.

Surge a Associação Beato Bernardo Ptolomei: Oblatas

Como foram as explicaçõ es em Monte Oliveto, nã o sabemos. Mas devem


ter sido boas, a julgar pelas consequências. Um dia, numa carta do Pe. Igná cio, vem
a notícia de algo que esperá vamos, mas sem saber como seria. Nã o nos
intranquilizava, mas havia expectativa. Que forma iria tomar o grupo? Já havíamos
conversado muitas vezes, mas nã o sabíamos definir, a nã o ser que queríamos
conservar esse espírito beneditino que recebêramos, e, ao mesmo tempo, ter
liberdade para a missã o. Pois bem, nessa carta Pe. Igná cio fala-nos de um “decreto
de fundaçã o das Oblatas, na Associaçã o Beato Ptolomei”, redigido e assinado pelo
Abade Geral. No momento deste decreto, o Abade grava numa fita que “tomando
conhecimento pelo Dom Igná cio de nossa existência, nos acolhe e abençoa como
filhas caríssimas, e nos deseja santidade e crescimento do grupo e dos trabalhos,
para a gló ria de Deus”. Deste modo ficamos incorporadas à Congregaçã o dos
Beneditinos Olivetanos.

Sempre nos havia parecido o mais razoá vel ficar onde Pe. Igná cio
estivesse, já que todas o reconhecíamos como o inspirador do grupo. Por isso, nos
alegrou saber que ficá vamos dentro da sua Congregaçã o que já nos acolhera, na
pessoa D. Abade Sabatini, do mosteiro de Ribeirã o Preto.

E D. Sabatini se havia empenhado também, seriamente na volta de Pe.


Igná cio ao Brasil.

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Redigimos estatutos muito simples para a “Associaçã o Beato Bernardo
Ptolomei”. Assumimos ter uma responsável. (Este nome, responsá vel, foi fruto de
muitas reflexõ es. Nã o nos parecia verdadeiro, para nossa vida e nossa época,
chama-la superiora. Todos os outros nomes que apareciam também nos soavam
bem estranho. Venceu este nome “responsá vel”). O superior era o abade de
Ribeirã o Preto, que delegava os cuidados com o grupo ao Pe. Igná cio. É ramos 10, e
teríamos um ano de noviciado. Depois, a Oblaçã o, deita de uma ú nica vez para
sempre. Completado os passos, as dez fizeram a Oblaçã o, no dia 21 de agosto (festa
do Beato Bernardo) de 1959, na Abadia de Ribeirã o Preto, nas mã os do Abade
Sabatini. Escolhemos a primeira responsá vel, e seguimos a nossa caminhada.

Um grupo ficou em Sã o Paulo e outro foi morar em Ribeirã o Preto.

Em busca de uma identidade vital

Uma das características forte do nosso ideal é o da convivência, a procura


de maior proximidade possível, no meio dos pobres, no seu ambiente de vida.
Nunca conseguimos uma igualdade de modo permanente, mas sim em algumas
circunstâ ncia e épocas.

Assim como Jesus, tentamos viver o “Deus conosco”, como uma presença
de vida entre os seres humanos mais desprezados. Antes da palavra, os pobres
devem perceber em nó s, pelo testemunho, a presença de Deus.

Em nossas reflexõ es, havíamos decidido manter reserva a respeito de


nossa condiçã o de religiosas, para nã o ficar em uma situaçã o diferente das outras
mulheres com quem vivíamos e também para estar mais livres para a missã o.

Era assim quando, pouco a pouco, fomos morar nas casas da OAF. Nã o
havia diferença exterior com as pessoas com quem vivíamos, a nã o ser no fato de
que assumíamos os trabalhos mais pesados. Comíamos da mesma comida,
compartilhá vamos os mesmos quartos, usá vamos as mesmas roupas doadas.
Também se vivia a fraternidade na Oficina dos homens, onde algumas faziam seu
trabalho.

Em todos estes lugares existia a nossa direçã o, mas tomá vamos tã o a peito
o fato de que era serviço, que internamente nã o diminuía a igualdade.

Como convivência, esse tempo foi muito bom. O peso do trabalho era
levado com alegria. Os dias eram muito movimentados, cada dia chegando gente
nova. Problemas e esperanças se misturavam. Da zona de prostituiçã o chegavam
moças com desejo de vida nova. Mã es solteiras começavam a trabalhar com seus

31
filhos. Mulheres esgotadas encontravam conosco um pouco de descanso. Homens
que anos vagueavam pelas ruas se sentiam à vontade na oficina. A Ronda, as
prisõ es, os problemas individuais, eram sempre fonte para conversas, estudo.
Porque se estudava muito esta realidade que se vivia. A equipe toda se encontrava,
refletia, imaginava soluçõ es, com o Pe. Igná cio coordenando este serviço.

Com a intensidade das ocupaçõ es, preocupaçõ es e entusiasmo, pouco


tempo sobrava para pensar em outras coisas. Nã o percebemos que nã o
formá vamos nossa pró pria identidade. Pois nã o nos identificá vamos como grupo,
mas cada uma individualmente. Sempre tínhamos o cuidado de nã o passar na
frente dos outros que trabalhavam e se responsabilizavam conosco, e assim a
identidade como religiosas ficava diluída ou desaparecia.

Mas as pessoas sabiam e nos viam como o que de fato vivíamos, como um
grupo. Na reserva que fazíamos do nome religioso, começaram a chamar-nos “as
moças da OAF” denominaçã o que permaneceu por muitos anos, apesar dos nossos
protestos.

Posteriormente, tivemos que rever esta situaçã o começando por uma


moradia pró pria das Oblatas. Foram dois quartos numa vila, no Brá s. Nã o foi a
primeira vez que tivemos a nossa casa: em Recife já acontecera, também em
Ribeirã o Preto. Mas desta vez foi feito, de modo pensado, como uma necessidade
do grupo, nã o só de moradia, mas de identidade. Também a mudança das leis
trabalhistas que exigia o registro de cada pessoa que trabalhasse levou-nos a
aceitar a realidade de ter carteira profissional e receber um salá rio. Isto aconteceu,
para algumas, vinte anos depois da primeira situaçã o. No começo nã o
dispú nhamos de dinheiro pró prio, mas usá vamos para pequenas necessidades, do
que se tinha para s gastos da casa. Depois vimos a impossibilidade deste tipo de
economia, e começamos a receber da OAF uma quantia bem reduzida, de modo
comunitá rio. Foi outro fato e que o grupo teve expressã o pró pria.

Ao mesmo tempo em que algumas Oblatas viviam assim em Sã o Paulo,


outras fora morar em Ribeirã o Preto. Nená , a primeira responsável, ficou neste
grupo.

A intensã o era estar perto da Abadia, com tempo para a maior


compreensã o da vida beneditina, e levar uma vida simples, que mantivesse o ideal
de pobreza. A vida comunitá ria, em Ribeirã o Preto, era mais clara e forte do que
em Sã o Paulo. Os trabalhos eram: tecelã , empacotadora, vendedora ambulante,
doméstica. Depois de pago o aluguel e reservado o necessá rio para a conduçã o, o
dinheiro faltava com frequência até para as necessidades primá rias, como comida
suficiente. Mesmo assim, entre Sã o Paulo e Ribeirã o Preto, mantínhamos contato
de modo permanente, viajando e escrevendo, fazendo com sacrifício uma unidade
na partilha das experiências.

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Vale a Pena dar a vida

As experiências deste período em que começou a OAF e se formou o grupo


das Oblatas foram muitas e fortes. Conhecemos gente de todas as classes sociais, de
todo o Brasil e também de fora.

Eram trazidas ao plantã o da OAF as necessidades mais prementes, que por


sua urgência nos ocupavam física e emocionalmente; eram sofrimentos muito
grandes do povo. Íamos criando alguns recursos que permitissem dar soluçõ es nã o
improvisadas, oque seria superficial e sem respeito pela pessoa: assim surgiram as
casas de acolhimento. Nelas se tentava se viver o espírito comunitá rio ensinado
pela Regra de Sã o Bento que estudá vamos. Isto é uma verdade: quem chegava,
sempre notava a diferença de tratamento. Era a compreensã o de cada um, o
respeito pela sua individualidade, o cuidado pelo bom ambiente, o tempo bem
aproveitado, uma presença do Senhor reconhecida pela caridade, a alegria, um ar
de liberdade. O pessoal que estava hospedado participava da vida geral, preparava
o lanche para a Ronda, saía a noite para visitar os irmã os mais abandonados: os
que tinham condiçõ es, dirigiam as casas e participavam das reuniõ es de estudo.
Assumiam também a Sede e o plantã o da OAF. Enfim, um grande entrosamento de
vida. E a esperança de todos os que começavam a vida nova, depois do desespero
que os havia trazido até nó s, também era partilhada por todos.

As iniciativas fluíam, com grande novidade. Para os jovens, moças ou


rapazes; imaginava-se o que os preparasse para o futuro: adaptaçã o de escolas de
enfermagem, auxiliares sociais, trabalhos de escritó rio, profissionalizaçã o
diferenciada, mil coisas. Muita gente se preparou e venceu na vida. Hoje, tantos
anos depois, voltam a procurar-nos, para relembrar aqueles tempos, onde a
bondade do Pe. Igná cio e a fraternidade feita serviço das Oblatas e dos que estavam
por perto foram a marca principal. “Eram como uma família”.

Os testemunhos de entã o e de hoje têm uma marcada característica de


conversã o, na decisã o de ajudar outros irmã os que precisaram. Sabemos que a
“ajuda – amizade” recebida mudou os olhos e o coraçã o de muitos. “Aprendi a
perdoar”, “Nã o tenho o que dar, mas vou com paciência, falo, acompanho ao
hospital”; quem passou pela OAF fez a sua “Oafinha”.

Esta vida cristã tã o intensa era visível e atraia muita gente que queria
ajudar. Houve neste período engajamentos profundos. Alguns chegaram a ser
vocaçõ es comprometidas. Outros puseram tudo o tinham neste trabalho: tempo,
vida profissional, formaçã o religiosa.

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Tudo, para que os mais pobres pudessem viver. Mesmo assim a maioria
dos colaboradores, depois de um ou dois anos de trabalho, se afastavam para
cuidar de suas vidas, mantendo a amizade e um relacionamento menos
comprometido.

Mas nó s as Oblatas trabalhá vamos com todas as forças. Nenhuma


duvidava de que vale a pena doar a vida por este ideal. E queríamos expandi-lo,
porque víamos a pobreza crescer e a gente ficar pequena frente a ela.

Naturalmente fomos pensando e aceitando as propostas de Pe. Igná cio em


relaçã o aos novos trabalhos e novos lugares. O entusiasmo era contagiante!

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Terceira Etapa:

Como pode alguém conhecer a Deus, que é amor, se nunca foi


amado?

(1959 – 1964)

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Recife é o capítulo mais especial da nossa histó ria. Lugar da Missã o que
atrai quem só entende o sentido da vida na doaçã o total. Lugar de beleza
reconhecida: cidade atravessada pelos rios, banha pelo mar, com suas riquezas e
mistérios. Capital do Nordeste, cheia das lembranças histó ricas da dominaçã o
estrangeira e do valor e libertaçã o do povo.

O trabalho no Recife, desde que começamos a pensá -lo, foi fonte de


expectativa e realizaçõ es diferentes – um mundo novo. Nã o chegamos lá
diretamente. Aberta novas perspectivas missioná rias, chegamos ao Recife
passando antes pela Bahia.

Quando uma pessoa de Salvador passou por Sã o Paulo, e mostrou-se


interessada em começar lá um trabalho similar ao da OAF, Pe. Igná cio nã o duvidou
em propor-nos a ida até lá , para ajudar o início. Tanto as Oblatas, quanto outras
pessoas, no momento algumas mã es solteiras que participavam do mesmo ideal,
aceitaram o desafio e juntas assumimos a missã o evangelizadora em Salvador.
Partimos sem grande demora. Uma vem de Ribeirã o Preto, outra “aperta o horá rio”
para assumir o serviço que fica descoberto, mais uma ou outra acomodaçã o, e
pronto! Os sacrifícios eram aceitos tranquilamente, no desejo de que a missã o
seguisse em frente. As ideias eram muito diferentes.

A base de tudo que a gente fazia era a convivência, o valor da liberdade de


cada pessoa, um amor traduzido em serviço direto, verbas provenientes desse
compromisso, os princípios que já falamos. Muito diferente do que lá se esperava,
na linha da obra assistencial clá ssica, onde nã o haveria espaço para esses
diferentes modos de açã o. De modo que se desistiu daquele trabalho. Isso da nossa
parte, porque o pessoal de Salvador manteve seu projeto, organizou a obra, e
também chamou de Organizaçã o de Auxílio Fraterno. Nome e obra que
permanecem até hoje, atendendo crianças e mã es sem recursos.

A nossa história no Recife

Teve início em Setembro de 1959. Para fazer o relato do começo, recebo a


ajuda da memó ria de Mercedes “negrita”, Ignez e Pe. Agostinho. Dois
acontecimentos motivaram a formaçã o de um grupo em Recife. Por um lado, um
caso similar ao da Bahia. Uma enfermeira que teve contato demorado conosco
enquanto frequentava um curso em Sã o Paulo. Animada com as atividades de que
participava – insistiu que uma de nó s fosse ao Recife. Ela se dispunha a dar toda a
ajuda. E deu, mas por pouco tempo.

O outro fato:

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“Um dia Pe. Ignácio teve que partir para a Itália, e quis Deus que o navio em que viajava
fizesse escala no Recife. Já no porto, o que viu! Tanta pobreza e abandono. As crianças da rua
e as prostitutas do cais do porto, e pronto: não haveria mais possibilidade de paz enquanto
não se fizesse algo: não dava para ficar indiferente”- Mercedes.

“Da janela do hotel, no centro da cidade, além das paisagens dos rios e das pontes, que o
encanta, as crianças que remexem o lixo em busca de alimentos para saciar a fome.
Impressiona-o o fato da miséria tão ao alcance dos olhos e de todos os sentidos. O fato de
alguém subsistir, sobreviver à custa do lixo marcou fortemente a sua sensibilidade, pois
mesmo tendo vivido o pós-guerra na Itália, visto tão perto a dor, conhecendo bem São Paulo
com seus problemas de metrópole, pólo da industrialização do país, onde a injustiça social e
trabalhista de toda a sociedade capitalista gera problemas, derivando-se revoltas,
desempregos, uma marginalidade ampla de prostituição, mendicância e outras sequelas, e
mesmo conhecendo a miséria extremam dos desabrigados , dormindo ao relento em noites
do Recife disputando com os cachorros, gatos e ratos o direito à sobrevivência.

O Pe. Ignácio parte de Recife com o coração oprimido. Ele prossegue a sua viagem, com uma
decisão já formada: precisa fazer alguma coisa por aquela gente esquecida. Ferve-lhe no
sangue um sentido de amor e justiça daquilo que ele chamou ‘a nossa dívida social’ e daquilo
que o levava a ensinar, como pecado coletivo ou o nosso pecado de ‘omissão social’ em suas
homilias e conversas. E em Pe. Ignácio uma decisão vinha acompanhada do sentido de
urgência Era expressão sua: ‘fazer muito e logo’. E da objetividade, que se manifesta numa
paternidade assumida e real, expressa em atitudes e fatos.

Tão logo lhe foi possível, expõe a um grupo de Oblatas em São Paulo o quadro que o
impressionava e questiona: O que fazer? Decidimos pelo deslocamento de um reduzido
grupo, despertando e impulsionado pelo amor aos mais pequeninos – Ignez.

“E assim ele voltou, lá fomos nós para o Recife para viver e participar daquela pobreza”-
Mercedes.

“Neste clima de ansiedade de se fazer muito e logo, paralelo ao diálogo forte com a equipe,
define-se a forma de como entrar em contato com os meninos, sem assustá-los,
conquistando-os” – Ignez.

“Da porta da casa se observa as jangadas”, dizia-nos o Pe. Igná cio para
estimular... Falá vamos dessas jangadas, do peixe dos pobres, de uma possível
venda de amendoim. Até se ensaiava o tom para vender a mercadoria. O grupo que
havia ido para a Bahia segue para Recife para ajudar no início do trabalho.

Em outubro foi a minha vez de ir para o Nordeste. Por lá fiquei, entre idas
e vindas a Sã o Paulo, por sete anos. Em Recife, como em Sã o Paulo, houve grande
variedade de atividades. A vida lá encantava – era mais simples e mais pobre que a
vida em Sã o Paulo, o que nos deixava mais a vontade para o tipo de vocaçã o a que
nos sentíamos chamadas.

No início fomos morar em habitaçõ es coletivas, quartos de pensã o. Para


pagar o quarto, recebíamos dinheiro da OAF de Sã o Paulo. Era uma ajuda para a

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missã o do Recife, nã o muito livre, pois se criara uma inquietude pela saída de
algumas Oblatas. Como iria continuar o trabalho em Sã o Paulo? Havia tanto a fazer!
Já seria o momento de começar em outra cidade? Repetiam-se os mesmos
argumentos de sempre. Só que nessa hora, “as moças da OAF” e outros já estavam
no Recife... O problema ficou para as que permaneceram em Sã o Paulo, que se
viram na obrigaçã o de tomar esta posiçã o: “ou a OAF ajudava o Recife, ou elas se
retirariam da OAF”. Este “argumento” convenceu e começamos a receber o
dinheiro do aluguel, que era bem pouco.

A rua, o cais, os bares, um novo modo de viver.

“Ester e o trabalho de garçonete no restaurante da Rua da Guia, uma das tantas outras ruas
sujas e pobres da zona de prostituição; marinheiros e menores delinquentes, convivendo na
promiscuidade e procurando subsistir cada um na sua miséria e abandono. E negrita, a
camelô, vendendo balas e amendoins nas ruas dos meninos delinquentes; sim, como não
delinquir para poder sobreviver? O que poderiam eles oferecer a não ser o medo estampado
naquelas carinhas sofridas, olhar amedrontado e famintos de afeto? Crianças que nunca
tiveram um afago em suas cabecinhas piolhentas, cheirando a gasolina roubada para se
‘baratinarem’ quando não havia uns trocados para a compra de éter e maconha. A única
possibilidade de conquistar estes ‘capitães de areia’ era misturar-se com eles; a maneira
mais prática que se encontrou foi ser camelô com um tabuleiro pendurado no pescoço, balas
e amendoins, andar pelas ruas à procura desses ‘bacurizinhos’ que dormiam em caixotes de
lixo que esvaziados eram virados de encontro à parede ou que partilhavam de um cantinho
no mísero quarto de um prostíbulo. Eram sempre enxotados pela polícia do centro da cidade
porque destoavam, eram sujos e maltrapilhos”. Mercedes

Discorrer sobre os riscos e agressões que a equipe atravessou, sobre os convites insidiosos
por parte dos homens, e as consequências de sua revolta quando não entendiam a recusa,
abriria novo capítulo desta história. Para falar da violência que atemorizava: uma vez foi
necessário esconder-se sob os balcões do bar para livrar-se de uma garrafa na cabeça, mas
sem consegui-lo inteiramente. Foi preciso ir medicar-se no Pronto Socorro; graças a Deus a
coisa não foi grave!

Assim, tanto a experiência ambulante, percorrendo as ruas e encontrando meninos, quanto


aquele ponto fixo que os atraia vai permitindo e facilitando o conhecimento e amizade com
eles. Simultaneamente já compromete o grupo para um novo campo de trabalho,
consequência da compreensão do sofrimento daquelas mulheres, meretrizes, que viviam
confinadas nos prostíbulos, sem direito de virem à rua durante o dia para comprar alimentos
ou mesmo respirar um pouco de ar livre. Confinamento à semelhança de guetos, pelo medo e
repressão da polícia que as prendia caso as encontrasse ‘passeando’ antes das 22 horas.

Este bairro, a Ilha do Recife, apresentava na época uma estatística de cinco mil meretrizes
aproximadamente, residentes nas diversas pensões ali localizadas.

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O grupo de Oblatas e leigos tem definido o seu ideal de vida e trabalho. Inspirando uma nova
forma de espiritualidade fraterna, conta, desde a sua chegada a Recife, com a aprovação do
bispo da Igreja local e também com o apoio de um grupo de pessoas que vão se
comprometendo e engajando na missão. Na Ilha do Recife, bairro portuário da prostituição,
começou-se a missão buscando o testemunho e amizade com as mulheres, a partir do bar da
Rua da Guia. Meses depois este trabalho culmina propriamente na Missão na Praça do
Arsenal da Marinha: três dias de encontro entre elas e os amigos de Recife e São Paulo que
visitam em suas pensões, como pessoas portadoras de uma dignidade, mesmo que escondida.
Levam-lhes a reflexão das parábolas do Filho Pródigo, do bom Samaritano, de Maria
Madalena, reservando-se para o último dia a homilia do Bom Pastor, proferida pelo Pe.
Ignácio. Isso provoca uma profunda emoção religiosa, não só nelas, que depois de concluídas
as palavras do padre, chorando não se retiram dali, quanto na equipe que participa com elas
daqueles dias de vivências tão profundas.

E o que terá passado no coração do Pe. Ignácio que tinha frequentemente os olhos como que
perdidos no espaço, buscando algo sempre – Ignez.

Esta Missã o foi um tempo forte para o grupo de Recife. Preparava-nos,


todos os que iam participar, com oraçõ es, com encontros de reflexã o e estudo, com
muitas caminhadas para visualizar bem a pensõ es que se ia visitar. A equipe era
composta de pessoas do Recife e grupo vindo de Sã o Paulo – equipe muito
heterogênea: donas de casa, seminaristas, advogados, assistentes sociais,
profissionais de diversas á reas, as Oblatas, D. Yayá , Pe. Igná cio. As idades: de 20 a
60 anos.

Uma nota pitoresca: os paulistas chegaram num aviã o da Força Aérea


Brasileira, e alguém de espírito esportivo comentava depois que, se a Missã o tinha
saído tã o bem, era devido a fé deste pessoal; viajando nesse aviã o, com tã o pouca
segurança, frá gil e com algumas frestas, havia sido a prova da fé! Para elas, que se
apresentavam na praça cheias de fé, e maravilhadas de que “pessoas cató licas”
tivessem chegado até elas, foi uma experiência quase inacreditá vel. Nunca tinham
visto essas coisas, e algumas se perguntavam se estaria perto do fim dos tempos.
Eram fortes também para o grupo de Sã o Paulo! Os dias desta missã o nã o foram
bom apenas para as meretrizes.

Mas para os que foram ao seu encontro, quantas emoçõ es, quantas
novidades de amor! Nã o imaginavam que achariam tanta receptividade, ao ir cada
dia convidá -las para o encontro da tarde, no meio da rua. Foi um nú mero grande,
maior que esperado. Ali está vamos todos juntos, unidos, escutando as pregaçõ es,
vivendo o momento do Espírito. Estas vivências de fraternidade sem classes
constituíram a novidade da missã o, e base para um serviço posterior, mais
organizado.

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A aventura dos meninos nos leva para as ruas do Recife

Pe. Igná cio preocupa-se igualmente ao pensar na estruturaçã o do trabalho,


com a presença da Zona, a conquista dos meninos, a formaçã o de equipe de açã o e
a dos leigos que engrossaram as fileiras.

“O problema em relação aos meninos, toma forma e cresce; apresenta maiores


possibilidades, exige interversão mais rápida. Já não são um, dois, três meninos; o grupo
progride, aumenta. É então que se estabelece, na Rua da Saudade 104, um ponto de
encontro: O Clubinho. Neste quintal, tão oportuno para a ocasião, mas tão precário nas suas
condições físicas – apenas um galpão comprido no lado direito – logo se constrói um
banheiro sanitário do lado oposto. Por aí se inicia um esboço de vida. São quase ou mais de
80 meninos de várias idades reunidos para passar o dia.

O clubinho – porque não poderia haver disciplina, e não se poderia pedir algo parecido para
esses moleques tão livres e do seu pequeno e ao mesmo tempo grande mundo – era um
cantinho onde se podia entrar e sair à vontade. Apenas um galpão e a fome dos meninos;
improvisou-se uma lata, tijolos e algumas lascas de lenha, para fazer o café da manhã; não
havia coador e o jeito foi apelar para uma pedra colocada na fervura; era só esperar baixar
o pó e o café nunca foi tão gostoso.

Manga Rosa me ofereceu um pedaço de pão doce com a ingênua afirmação: ‘pode comer sem
medo que estava em cima da lata de lixo’. No momento fiquei um pouco chocada, mas
consegui engolir sem repugnância. Era contagiante tanta ternura numa criança tão sofrida,
que não sabia o que mais fazer para agradar. Certa vez Pinguim apareceu trazendo um
aquário que havia surrupiado; difícil foi convencê-lo a devolver!

Quando de repente eles se sentiam observados, a primeira reação era de medo; mas como
não chamávamos a polícia, eles começavam a se aproximar meio desconfiados a princípio,
pois os amigos, tão amigos que ofereciam sua proteção. Mais tarde fui convidada a visitar o
‘mocó’ onde viviam em completa promiscuidade. Foi por eles e para eles que se criou o
clubinho. Essas crianças não tinham o direito de andar de ônibus porque eram maltrapilhas
e descalças. Quando arrumamos as alpercatas (sandálias) muito usadas no Nordeste, foi
uma festa! No primeiro passeio de ônibus, fomos ao Aeroporto Guararapes ver os aviões
decolar. Que alegria! Assim começamos o trabalho na cidade do Recife” . – Mercedes.

O produto da venda na rua e o ganho no bar, somado à s esmolas das


crianças, dava para o bá sico esse tempo de convivência. Nã o era grande coisa. Por
isso era quase sempre acrescido com o que os meninos tiravam das latas de lixo,
especialmente dos restaurantes e dos bares. O Joã ozinho, ainda tã o pequeno e
mirrado, quase caindo dentro dos latõ es, remexendo e remexendo, ansioso por

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comida. Aos poucos fomos melhorando com o macarrã o e os biscoitos quebrados
que uma fá brica dava. E as pessoas que ficavam amigas iam trazendo mantimentos.

Como os Santos da Providência, posso dizer que a gente também viu, com
estes olhos, o amor do Pai, aqui e agora. Aconteceu que mais de uma vez nã o
termos nada para comer com os meninos, e aparecia gente, amiga ou desconhecida,
trazendo alimentos suficientes. Aconteceu de ter macarrã o, mas nã o ter gá s nem
lenha para cozinha-lo, e alguém passar inesperadamente e resolver o problema,
comprando o gá s. Aconteceu de fecharmos à noite o Clubinho, tendo dado à s
crianças o ú ltimo alimento que possuíamos (a gente sem jantar e sem “tostã o
furado”) e uma pessoa na rua nos dar dinheiro que dava para tomar algo nesse dia
e para o dia seguinte. E nã o era só uma vez, mas inú meras vezes, para nã o se
desconfiar da mã o cuidadosa da Providência Divina... Acontecia, entã o, que
tínhamos essas experiências tã o vivas do amor de Deus, que nossa fé e nossa
confiança nele só podiam aumentar.

E nã o era só na comida, mas em todas as coisas. No cuidado da vida,


porque, como Ignez escreveu, passamos por muitos perigos, sobretudo na Zona de
prostituiçã o. Na soluçã o extraordiná ria de tantos problemas que apareciam nas
respostas tã o positivas de alguns meninos, inesperadas em sua situaçã o. No
deslanchar da Missã o que nas horas difíceis parecia impossível.

Primeiro Encontro, Primeira Guinada.

“Cheguei à OAF por meio dos beneditinos de São Paulo. Estava ‘meio’ convertido e em
processo de Busca. Encontrei num ponto de encontro que era na Rua Riachuelo, a Sede de
Deus... Eu vi Pe. Ignácio, pobres, Oblatas, leigos, eram testemunhos vivos. A descoberta do
pobre e vice – versa. A incompatibilidade de viver com os pobres e a burguesia. Pe. Ignácio foi
questionado da possibilidade de organizar ‘oblatos’. Numa das célebres conversas –
meditação, explicou que para homens não haveria sentido por causa do sacerdócio; a vida
religiosa consagrada era diferente...

Na partida de Mercedes-Negrita para Recife ’brinquei’ e o Dom Bom levou à sério. Na hora
não aceitou, mas depois – ai, ai, ai!”. - Pe. Agostinho

Segunda Guinada

“Conheci meninos de ‘outro mundo’, fiquei fascinado pelo Recife e me naturalizei


pernambucano, apesar de lá os ambulantes me chamarem de ‘portuga’. Não renunciei à
minha condição de paulista, mas aprendi a ser mais católico, no Brasil e fora do Brasil... Os
meninos me ‘fizeram à cabeça’, pois comecei a pensar (fui impelido? Forçado?...) naquilo que
vinha me recusando à pensar, fazia certo tempo: Vocação.

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Impossível deixar de ouvir o grito de Deus, saído pela boca – pela vida miserável – dos
meninos. A pobreza, a fome, o trabalho (café ambulante, cuidado dos meninos), a Paixão, de
pela primeira vez na vida me senti gente do povo pobre, mas nunca antes ou depois me senti
tão gente!

Hoje posso dizer: foi o “ágape do povo de Deus”. Começo do Reino. Não sei se alguma outra
vez, amei tanto e fui tão amado. Meninos, Pe. Ignácio, Oblatas, povo da rua, amigos,
familiares... Jesus Cristo.

Com os meninos o serviço, por enquanto, não era educa-los, mas sim conquistá-los.
Acabamos conquistados!”- Pe. Agostinho

“A equipe reveza-se no trabalho de ambulante. Num horário sai para a luta de


ganhar o pão e conquistar os novos e, no outro, permanece no clubinho, na alegria de
partilhar a vida com tantos e tão variados meninos de etnias, temperamento e experiências.
Não é fácil, é uma caminhada com seu próprio ritmo, e assim mesmo se avança. Um local
onde os meninos passam o dia em certo sentido bem amados e protegidos, que bom! Mas
quando chega a noite, que fazer? Estamos num quintal onde não há acomodações para o
sono; em dias de chuva fica difícil encontrar no galpão um cantinho sem goteiras! Como
estar com a turminha durante o dia e à noite deixa-los ao relento? Escolhidos, embrulhados
em jornais, seu sono atordoado embaixo das marquises, ficavam expostos à insegurança, ao
medo da violência: malandros adultos, pederastas, inconformados com a perda do domínio
sobre estes meninos vinha procurá-los para aliciar ou intimidá-los.

Um local para dormir é a nova exigência que aponta, coincidindo com a pressão
feita pelo Juizado de Menores para que se dê solução em 24 horas ao abandono noturno dos
menores. O desafio, porém, encontrou resposta dentro do prazo estipulado, na pessoa do Pe..
J. Ayrton Guedes, que cedeu o salão paroquial. Lá os meninos têm seu primeiro dormitório e
são recebidos por aquele padre de batina preta, de ar tão severo mas tão bondoso e
acolhedor, que desprende as cortinas do salão para oferecê-las como cobertas a seus
hóspedes. Era o Advento, e dizia: ‘como poderia pregar o Natal e deixar os meninos
dormindo na rua?’ mas somar-se a cada dia uma, duas e outras novas conquistas já não dá
para continuar atropelando o salão paroquial, mais adequado a outras atividades. Passa-se
aos porões do Colégio Padre Venâncio, no bairro pobre dos Coelhos, onde por muito tempo se
instala a dormida. Esta dormida surge para a equipe como um terceiro expediente: os
problemas se sucedem nestas horas de liberação de energias antes do repouso; há os
agitados, as brigas, as procuras sexuais, os introvertidos que desabrocham para
comunicação e pedem escuta. Enfim, embora preenchidos os três expedientes do dia, forma-
se um plantão de colaboradores, que também pedem compreensão, necessitam formação e
muito diálogo e tempo, para compreender os problemas dos meninos e integrar-se na equipe.

A riqueza e a força da vivência com os meninos fundamentou-se no princípio do


amor, no jeito claro e simples com que Pe. Ignácio quis mostrar a eles que Deus é amor, e,
pelo amor, suprindo-lhes as necessidades. O Pe. Ignácio sempre repetia: ‘Como pode um cego
reconhecer as cores se nunca as viu?’ e ‘Como pode alguém conhecer Deus que é Amor, se
nunca foi amado?’

Todo processo de comunicação, de desenvolvimento interior dos meninos


principiaria nesta frase. Para ajuda-los eram organizados acampamentos, colocando-os em

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contato com a natureza e com uma quantidade maior de amigos, que se punham a serviço
para estimular o diálogo, organizar a recreação facilitadora de expressões e canalizadora de
tensões. E não era tudo tão fácil como agora se apresenta ao relato: todas as ações, desde o
mais simples diálogo até os grandes acampamentos eram calcadas em reflexão e oração,
demandavam tempo de preparação, esforço de organização e aquisição de recursos
especiais.

Vale a pena mencionar o acampamento do carnaval de 1960. Alguns padres,


Oblatas e vários amigos da OAF de São Paulo, deslocaram-se até Itamaracá - para, junto
com o grupo de Recife - acampar com os meninos da rua, levando-lhes um sopro de
espiritualidade pela prática da fraternidade e a certeza do amor de Deus” – Ignez.

O trabalho tinha momentos de muita alegria, como o tempo da praia,


onde tanto os adultos como as crianças gozavam do mar, do sol e dos coqueiros na
Ilha de Itamaracá . Lá se aproveitou por vá rios anos, de uma ampla casa cedida para
os meninos.

A Igreja Na Ilha Da Opressão

Criaram-se laços de amizade entre o bispo de Recife, agora Don Carlos


Coelho, que tinha feito sua primeira pregaçã o pú blica na Missã o da zona, e o Pe.
Igná cio. Toda vez que o padre vinha a Recife, visitava o bispo. A equipe também se
encontrava frequentemente com ele que gostava de acompanhar de perto os
trabalhos.

Na entrada da “Ilha do Recife”, local de escritó rios das empresas


importadoras e exportadoras, de bancos, mas também zona do porto e de
prostituiçã o situava-se a grande e histó rica igreja “Madre de Deus”. Havia sido
cocatedral, e mantinha e mantinha ainda a tradiçã o de uma missa para a classe alta
da cidade e de casamentos de luxo.

Morto o velho vigá rio, o bispo imagina criar ali uma paró quia missioná ria,
e para isto convida Pe. Igná cio. Já se tinha a presença e o trabalho, embora pouco
organizado, com as mulheres. Tratar-se-ia de ampliar para os homens, estivadores
e pessoal dos navios, e também para as famílias que viviam à margem do rio, numa
pequena favela...

Vamos abrir um parêntese para falar desta favela: parte dela estava
situada ao lado do rio, o terreno era mangue, alagado, constituindo o minguado
espaço livre para fazer os barracos. Outra parte eram barracos apoiados no muro
dos galpõ es que guardavam as mercadorias. Nã o é preciso dizer que todos os

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barracos eram minú sculos, sem á gua e sem luz, no meio do lixo. Mas ali no mangue,
o lixo adquiria outra dimensã o. Quando era possível e algum caminhã o se dispunha
a descarregar ali, era uma grande alegria, pois servia de aterro. Aliá s, isto nã o era
privilégio da “Ilha do Recife”, mas continua sendo-o para tantas favelas: o lixo tem
grande valor: é esperado e disputado!

Havia ali barracos um pouco melhores, nos quais se preparavam e


vendiam refeiçõ es para os trabalhadores do porto.

Num recanto da Ilha, chamado Brum, permanecia um reduzido grupo de


famílias pobres, desde o tempo em que lá se vivia de outro modo, quando era um
bairro rico e com moradias está veis. Ali no Brum havia uma capela onde estas
famílias se reuniam para suas devoçõ es, especialmente no mês de maio. Tinham
seu encarregado, e nã o eram muito ligadas à Matriz. Entre elas, num pequeno
quarto da pensã o de D. Nenê, morou um tempo uma comunidade de Oblatas. As
que moravam ali se sustentavam vendendo bolo e café, ou trabalhando em serviços
iguais aos do povo mais simples. Tinham amizade com as moças da Zona, e o
quarto aberto para recebê-las. Mas isto foi depois da morte do Pe. Igná cio.

Retomamos a histó ria no ponto onde está vamos, ou seja, no pessoal da


paró quia, que oferecia seu ambiente tã o propício a uma missã o permanente.
Supérfluo dizer que Pe. Igná cio gostou da ideia! Antes mesmo de falar com D.
Abade, sua imaginaçã o pô s-se a trabalhar. Coraçã o e cabeça iam juntos apressados
como sempre – e os pés também. Sem dú vida havia muitos anos, possivelmente
décadas, poucos padres se aventuraram a pô r os pés naquela regiã o tã o mal vista
para estar junto com o povo. Um ou outro até podia ir até a Igreja, logo no primeiro
quarteirã o, depois de atravessar a ponte. Mas nã o vimos mais do que isso durante
o tempo que moramos por lá , embora nos contassem que padre Machado, muitos
anos atrá s, ia à noite até as portas dos bares e chamava os homens à conversã o. A
memó ria desse padre era venerada. Entretanto, o Pe. Igná cio andava por aquelas
ruas sozinho, conosco, com os meninos, vendo esta realidade tã o dura e rezando no
meio dela, sonhando com as possibilidades de uma transformaçã o. Porque “Deus é
o Senhor do Impossível” e se compromete conosco, dizia e repetia sem se cansar.
De modo que ao chegar o dia de tomar posse da paró quia, o caminho já estava
bastante adiantado. A tomada de posse em 1962, em celebraçã o feita pelo Vigá rio
Geral, foi bem simples. Mas para nó s tratou-se de um marco de um novo desafio,
maior que os outros! Pois as iniciativas anteriores eram de grupos, de particulares
e agora vinham da Igreja. E o Pe. Igná cio dava muita importâ ncia a isto. A paró quia
nunca foi só dele, mas de todos nó s, e nã o só da equipe, mas também dos engajados
na OAF.

Antecipava-se nisto ao Vaticano II. Deu muita importâ ncia a ele, embora
pessoalmente já o vivesse e nos transmitisse princípios que depois foram
discutidos e escritos por toda a Igreja. Esperava com ansiedade o começo das
sessõ es do Concílio. Tinha reunido as Oblatas em Sã o Paulo para falar-nos “do
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acontecimento mais importante do nosso tempo”. Foi a Ribeirã o Preto conversar
solenemente com os rapazes que ele havia encaminhado para lá e que se preparava
para o sacerdó cio. E é claro que nã o deixava os leigos para trá s; ele nunca fez estas
diferenças. Com todos insistia na necessidade de rezar e de estar atentos a esse
encontro marcado pelo Espírito de Deus com a Igreja. Alegria, expectativa, muita
responsabilidade Pe. Igná cio tinha em relaçã o ao Concílio, e o acompanharam
durante o tempo em que trabalhou na paró quia missioná ria.

Diante das necessidades, Organizam-se alguns serviços.

As oblatas nunca fizeram equipes sozinhas, mas sempre com outros, que
aderiram ao ideal e o enriqueciam. Como em todos os grupos, o movimento vai se
alargando ao passo que uns se comprometem em maior ou menor grau. Nunca
fizemos categorias: simpatizantes, engajados, comprometidos, Oblatas... Talvez
tenha faltado a cada um, saber de modo mais claro, qual era seu lugar. Assim,
vivíamos fraternalmente, simplesmente, todos se sentindo responsá veis pelo
trabalho. Especialmente os que lhe dedicavam a vida.

Uma Oblata e vá rios médicos organizavam um ambulató rio para as


mulheres sem recursos. Além de ambulató rio, era um lugar de estar, de conversar
e ter um pouco de paz. Para a “Amizade”, alugou-se um apartamento, tendo o
cuidado que nã o fosse um lugar de prostituiçã o, nã o só pela censura tremenda
existente na cidade, como para facilitar a entrada de todos. E mesmo assim, um dos
médicos ficou sabendo que falavam dele: “o Dr. tal está com uma amante lá na
zona. Todas as semanas, sem faltar uma só , ele vai lá . Quem diria...” De fato, o Dr.
Djair nã o faltava, sério e responsá vel como era, em sua hora de atendimento!

Um padre e alguns leigos se dispõ em a preparar um grande corredor da


igreja como sala dos marítimos. Um espaço agradá vel para diá logos e reuniõ es.
Uma biblioteca para eles. Quando e como se faria visitas ao porto, para travar
conhecimento e chama-los? Era um trabalho grande a ser começado. Tinha um
nome bonito: “o Apostolado do mar”.

O “Restaurante Infantil” da OAF, para os meninos engraxates e vendedores


ambulantes, a maioria dos quais trabalhava neste bairro, é transferido para outro
corredor da igreja. Adaptou-se uma cozinha, o pá tio lateral para receber e brincar...
e a antiga cocatedral se enche de crianças que saciam a fome e brincam, depois de
descerem dos morros à s quatro horas da madrugada para trabalhar.

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Um grupo de casais dispõ e-se a visitar as famílias do Brum, à s quais já fiz
referência, e preparar a sua integraçã o com a paró quia. À noite, percorria-se a ilha,
com os outros bairros da cidade, visitando os que dormem na rua. Estas rondas
noturnas continuaram e todos as faziam com gosto.

Nã o se chegou a criar (que eu me lembre), um grupo para as famílias da


favela. Por ora elas eram convidadas para os programas gerais.

Pe. Igná cio era o animador de tudo. Tinha uma preocupaçã o grande com a
liturgia. Como conseguir que o povo participasse? Muitas pessoas entram na igreja
para rezar durante o dia, tanto os que trabalham por aí, como também as
mulheres, quando desciam para alguma compra ou para o médico. Mas nã o havia
participaçã o de modo permanente.

Numa Igreja do povo a liturgia tem nova expressão

Pe. Igná cio começou com modificaçõ es na igreja. Mandou fazer um bonito
altar de madeira, para rezar de frente para o povo. Colocou na entrada uma
imagem de Nossa Senhora e ao lado dela, uma pequena oraçã o que era mudada
semanalmente, para que quem entrasse pudesse rezar. Tratou de reformar a
instalaçã o elétrica, pois a igreja era escura e nã o apareciam bem as figuras de
devoçã o popular, o grande Cristo Crucificado, acima do altar-mor, o Bom Jesus dos
Passos, de antiga devoçã o no Recife, entre outras. Todas as imagens religiosas
eram do século XVI, e acompanhadas de histó rias vindas até nó s através dos
séculos.

Do Bom Jesus dos Passos contava-se que tempo atrá s, muitos anos que se
perdiam no tempo, numa noite de tempestade, relâ mpagos e ventanias, no meio de
uma noite dessas, um pobre maltrapilho, com o corpo coberto de chagas (“o
homem das dores”) bate à porta do convento do Carmo, pedindo hospedagem. É -
lhe negada a guarida: “É muito tarde, nã o é possível, é um desconhecido”.
Prosseguindo sua peregrinaçã o, carregando seu sofrimento, o pobre atravessa a
ponte no meio da tempestade e bate à porta dos Padres Oratorianos, na Igreja
Madre de Deus. Ali é acolhido; dã o-lhe um teto para passar a noite. No dia seguinte,
logo ao amanhecer, desce um dos padres ao encontro do pobre homem, e no lugar
onde o havia hospedado, encontra a imagem do Bom Jesus dos Passos. Comovido,
percebe que haviam recebido o Senhor!

A notícia corre e a imagem que ficou no lugar do sofredor começa a ser


venerada por todo o povo. Só que os Carmelitas agora reclamam: “A imagem é
nossa, pois ela veio primeiro à nossa porta...” Os Oratorianos respondem: “Nã o, é
nossa: ele a deixou conosco”.

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Da discussã o entre os religiosos, surgiu a procissã o do Bom Jesus dos
Passos, cada ano, numa quinta-feira durante a Quaresma. Nesse dia, a imagem é
levada em procissã o para passar um dia no Convento do Carmo. E isto ocorre até
agora. É a festa tradicional da paró quia.

Há uma irmandade, antiga talvez como a estó ria, que se ocupa dos
misteres da procissã o, mas que nã o estava preparada, quando chegou o Pe. Igná cio,
para fazer da festa tradicional uma festa atual para o povo. Isto criou algumas
dificuldades entre o vigá rio novo e a antiga irmandade. Pe. Igná cio sabia do poder
dessas instituiçõ es. Sua presença de alguns séculos nas igrejas chega a constituir
um empecilho sério para o desenvolvimento pastoral.

Ali, na Madre de Deus, tratava-se apenas do começo de um diá logo de


conscientizaçã o.

A histó ria do Bom Jesus dos Passos nos atrai por tratar-se de um sofredor,
do tipo dos nossos amigos da rua, doente, sujo, andando na chuva. Até assusta! E
quando se vê, é a imagem tã o bonita de Deus!

Fora as modificaçõ es materiais, introduziu-se outras modificaçõ es no


modo de comunicaçã o entre os moradores do bairro: nã o ficar esperando que o
outro chegue, mas, seguindo a inspiraçã o primeira, ir ao seu encontro.

Quando Lurdes, uma moça da zona, se pô s fogo, seus gritos encheram a


rua, do outro lado da igreja. Fomos correndo até lá . As colegas já a haviam
embrulhado num cobertor, e a polícia a levava para o hospital. Mesmo assim, nã o
resistiu, faleceu logo depois. Pe. Igná cio preparou com todo carinho a missa de
sétimo dia. Fomos convidar e combinar com as moças da pensã o. Delas poucas
vieram, todas envergonhadas. Mas foram recebidas com tanta atençã o pelo vigá rio,
que daí para a frente sempre perguntavam por “aquele padre tã o bom”.

E como contar a vigília do Bom Pastor? Nem todas as palavras que eu


consiga dizer vã o mostrar a maravilha que foi aquela noite de vigília. Mantinha-se a
preocupaçã o de transmitir o amor misterioso de Deus, começo de vida para quem
vive sem amor. Daí a preferência por Isaías (“Poderia uma mã e esquecer o filho de
suas entranhas? E mesmo que isto acontecesse, eu nã o te esquecerei nunca, diz o
Senhor”) e pelas pará bolas de misericó rdia, da ovelha perdida, do filho pró digo, da
dracma perdida e encontrada, embora nã o se limitasse elas o anú ncio do
Evangelho. Mas nessa vez, trata-se de convidar o maior nú mero possível de moças
da zona, para na primeira parte liturgia, dentro da igreja, anunciar-lhes o amor de
Deus, o Bom Pastor, e na segunda parte, num salã o ao lado celebrar a
confraternizaçã o com um lanche. A igreja ficou lotada. Era tarde da noite, hora de
“viraçã o”, que nesse dia foi deixada de lado. O texto contava da leitura, comentá rios
e oraçã o em torno da pará bola. Muitas pessoas participaram, fizeram as leituras,
mas as mulheres ainda nã o. Mas nos dias seguintes, elas comentavam: o que as

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impressionava sempre era o Bom Pastor feito vida e a consideraçã o que tínhamos
para com elas, indo convidá -las, recebe-las e oferecer o lanche. Isto as animava!
Posteriormente, refizemos o texto da vigília para que se tornasse mais
generalizado, e servisse a qualquer grupo. Mas foi bem pouco o que foi preciso
mudar.

Recordo-me de mais outra liturgia diferente, a do Natal, como começo da


aproximaçã o do pessoal do cais. Nesta vez tratou-se de um teatro de rua,
apresentado por um grupo amigo da cidade, mas nã o entrosado com a missã o. Os
“missioná rios” fizeram os convites, lembraram a festa religiosa, estavam atentos à s
amizades que surgiam. As ruas do porto animaram-se mais uma vez de modo
diferente para facilitar o anú ncio do Deus-que-vem para os homens.

Na paró quia missioná ria, as coisas começavam a tomar corpo. Pe. Igá cio
estava atento a tudo, e tratava de “conferir” suas ideias com o começo de
realizaçõ es, em muitas conversas com outras pessoas, religiosas ou leigas, mesmo
nã o cató licas. Vinham padres da periferia, com experiências novas. Outros velhos,
com muitos anos de trabalho na cidade. Como o Vigá rio Geral tinha dito no dia da
posse, todos estariam atentos a esta “novidade” na igreja de Olinda e Recife. É
preciso corresponder com fatos à esperança. Mas o tempo na paró quia foi
demasiado curto. Em 1963, Pe. Igná cio já adoeceu.

A missão se cala diante da conjuntura política

Pe. Igná cio mantinha-se séria e amorosamente fiel à oraçã o do Breviá rio.
Esta oraçã o, obrigató ria para os padres e religiosos, consta de sete momentos
durante o dia e compreende a leitura de Salmos, da Bíblia, dos Santos Padres da
Igreja etc.

Nunca ele faltava a esses encontros com Deus, nem deixava de ensinar o
seu valor tanto para a vida espiritual pessoal, quanto para a força da missã o. Mas
antes de rezar o Breviá rio, Pe. Igná cio Tinha outra atividade, à qual tamém dava
muita importâ ncia: a leitura dos jornais. Acompanhava, como uma obrigaçã o, os
acontecimentos do Brasil e do mundo. Também os da Igreja. Era homem bem
informado, preocupado em discernir a açã o de Deus nos acontecimentos. Na
leitura de livros também investia muito tempo. Quase nã o dormia, lia em vá rios
idiomas os livros mais avançados. Era seu costume comentar e discutir problemas
gerais com pessoas de outra atividade, a nível profissional, político, artístico etc.
Nesses anos, o Brasil viveu situaçõ es difíceis. O presidente do país renunciou
inesperadamente e vice-presidente, que devia sucedê-lo, estava sendo impedido
pelo Exército. O Brasil inteiro vivia em estado de tensã o. Em Recife o momento

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também era de grande conflito com a opiniã o pú blica dividida, o Exército colocado
ostensivamente nas ruas. Pe. Igná cio reú ne alguns amigos para examinar a
situaçã o. O grupo decide assumir a seguinte açã o: confeccionar volantes e imprimi-
los sigilosamente e, com a ajuda de jovens preparados para agir com muita reserva
iniciar a distribuiçã o: num abrir e fechar de olhos, já está nas ruas que a linha
sucessó ria legal do governo deveria ser mantida. Sã o momentos emocionantes: por
um triz nã o levam preso um dos rapazes.

Nesse mesmo período, há outras atividades de ordem geral: uma folha


dominical feita com alguns padres, para ser distribuída no maior nú mero possível
de igrejas, nas missas mais concorridas. Queriam que os fieis se conscientizassem
da situaçã o geral, dando um novo enfoque à interpretaçã o do Evangelho dominical,
com relaçã o à responsabilidade religiosa no campo social. Houve algumas
publicaçõ es em jornais, no mesmo sentido. Pe. Igná cio preocupa-se: as greves que
se sucederem no Nordeste, em especial nas usinas de açú car, sã o muito violentas.
Estaria começando um tempo de ó dio? Onde está o amor, necessá rio também na
base, no povo para solucionar os problemas sociais? O tempo nã o o alcançou para
resolver estes problemas, a doença progredia a passos largos.

“Eu te dei a vida para ser vivida: Testemunho de Pe. Ignácio”

Para cuidar da doença, Pe. Igná cio veio vá rias vezes à Sã o Paulo.
Acompanhava a vida das Oblatas, continuava a orientá -las. Visitava o Mosteiro de
Ribeirã o Preto, onde, além de Abade e dos monges, estavam os rapazes que
continuava a aconselhar. O mesmo interesse pelos amigos. Também pelo trabalho.
Nã o um interesse geral, mas particularizado, concreto. Continuava atento e
presente a tudo.

Contudo uma sensibilidade geral, pró pria do seu estado levou-o a pensar
nos doentes desamparados, nos que morriam sozinhos sem nenhum conforto.
Como sempre, quis conversar sobre este assunto, com outros, ou com a pessoa que
achava mais identificada com a ideia. Nesta vez foi com Agostinho. Nã o sei o tempo
nem o conteú do todo da conversa. Mas ficou claro que, nas grandes cidades, a
pessoa humana, mesmo perto da hora da morte, nã o era considerada em sua
dimensã o espiritual. No pronto-socorro, corria-se mais para dar conta do serviço
material, do que para as necessidades profundas das pessoas agonizantes.

Perceberam a necessidade de uma presença de amor junto aos pobres em


situaçã o terminal e de levar esperança aos que tentaram suicídio. Lembraram
também dos doentes queimados, e sua dor enlouquecedora... Enfim, os seres
humanos na sua solidã o maior.

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Da doença do Pe. Igná cio nasceu o círculo Santa Verô nica, assim chamado
por ter sido Verô nica quem enxugou e aliviou o rosto de Jesus em sua agonia. E
adiantava: “Assim terã o como recompensa o rosto de Jesus, estampado, nã o no
lenço, mas no coraçã o de vocês”.

Sentiu uma profunda alegria por esta inspiraçã o e pela ajuda que recebera!
Comovido nos comunicava estes sentimentos. Foi um grande dia. Pe. Igná cio estava
internado no hospital Santa Catarina, recebendo aplicaçõ es de quimioterapia,
quando isso aconteceu.

Terminadas as aplicaçõ es, voltava ao Recife, onde tentava continuar o


trabalho. Fez vá rias coisas, nesse tempo. Uma delas dizia respeito à evangelizaçã o
dos meninos: Evangelizaçã o, nã o catequese. Pensava que ao formar crianças se
transmitia apenas uma doutrina. A histó ria mostrava que nã o se transmitia a fé,
uma vez que concretamente nã o havia perseverança, nem prá tica evangélica,
depois de terminada a “catequese”. Esta preocupaçã o levara-o a criar um ”plano de
evangelizaçã o, teoló gico e evangélico”.

Uma primeira turma de meninos, depois de uma boa preparaçã o


individual, estava sendo evangelizada por esse plano, que constava de duas
colunas: o conhecimento d3 Deus Pai, e o Evangelho nas mã os das crianças, para
que fosse lida com os pró prios olhos a mensagem de Jesus. Os que nã o soubessem
ler poderiam olhar... e assim se fez, nesses casos. Finalizada esta etapa, os que
quisessem aderir, podiam comungar. Havia um respeito total pela liberdade de
cada um, além de um sério cuidado com quem evangelizava, para nã o repetir os
erros da catequese, confundindo estudo com adesã o viva ao evangelho. Um
pequeno grupo de meninos havia chegado à ú ltima fase do plano de evangelizaçã o,
que incluía um compromisso concreto de açã o fraterna. “Nã o ir ao cinema ver o
mocinho, mas ser o mocinho da vida”. Este grupinho já saia à noite para visitar os
que dormiam no relento, “servia no restaurante infantil” a outros meninos da rua e
ajudava em outros trabalhos da missã o, com bom espírito, sem diferenciar-se dos
outros, mas aceitando, por amor de Jesus algumas exigências maiores.

A comunhã o teve lugar durante a Missa do Natal, na igreja madre de Deus.


A maioria dos meninos participou da Missa e comungou. Estavam felizes e
conscientes. Para Pe. Igná cio, esta Eucaristia foi o coraçã o de muito tempo de
preocupaçã o, estudo e oraçã o em cima da realidade das crianças.

Por isso, escreveu nesse dia uma dedicató ria no verso de uma imagem de
Nossa Senhora: “No Natal mais feliz de minha vida”. Escreveu isso no auge da
doença, com mã os que sangravam. Neste Natal também houve movimentaçã o nas
ruas da ilha: representaçõ es teatrais e religiosas no cais, onde todos foram
convidados. Visitas ao pessoal das pensõ es e à s famílias do Brum. A vida da
paró quia continuava, apesar da fraqueza cada vez maior do vigá rio. Mas desta vez
ele nã o conseguiu participar das festas na rua.

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Quando soube que sua doença era câ ncer nos gâ nglios, perguntou ao bispo
se desejava que entregasse a paró quia. Sabia que, apesar do esforço de todos, a
açã o apenas começava e que algumas realizaçõ es ainda nã o tinham saído da fase
da ideia, como o “apostolado do mar” previsto para os estivadores e marítimos. E
sabia que sua açã o ia ficar cada vez mais limitada.

Don Carlos respondeu-lhes que permanecesse na missã o. E Pe. Igná cio,


homem de muita fé, assumiu a doença e seguiu trabalhando enquanto as forças nã o
acabaram. Pela missã o, onde via tanto o fazer, teria gostado de viver. Mas aceitava
simplesmente a sua realidade. Fez de seu sacrifício, unido ao de Cristo, semente da
missã o.

A febre o castigava: todos os dias 40 graus. As mã os em chagas, com bolhas


que se transformavam em feridas, doíam muito. O tratamento provocava-lhe
dificuldades até para alimentar-se. Além disso, o médico proibira-o de fumar e era
essa a sua distraçã o e remédio contra a sede, intensa, causada por sua diabete
crô nica. Sofria muito, de variados modos.

Mas seu amor e fidelidade á Missa, ao sacrifício de Jesus, à Eucaristia,


continuavam totais. Colocava esse momento do dia acima de tudo Falava e escrevia
tanto a respeito! Transcrevo alguns trechos de cartas escritas neste período, que
dã o uma ideia clara de como resumia agora os pensamentos de toda sua vida.

“Um dos benefícios da doença tem sido valorizar mais o Santo Sacrifício da Missa e a reza do
breviário ‘como trabalho paroquial’, a limitação dos outros trabalhos me tem ajudado nisso.
Tenho mais clara a consciência de sacrificar e louvar em nome da Paróquia, representando-
a. Outro benefício tem sido integrar o sacrifício, a doença, como ‘apostolado paroquial’, e por
isso aceita-lo como útil ou necessário”.

Em outra carta:

“Hoje me tenho perguntado várias vezes: Por que sou tão feliz? É pela Santa Missa. Não sei o
que me fará sofrer o mal de Hodking, não sei o que eu poderei sofrer ainda da parte das
criaturas, mas tudo é totalmente indiferente. A realização de minha vida, pelo fato de
oferecido ao pai o Sacrifício de Cristo, é de uma ordem de grandeza tal, que não preciso mais
nada para ser realmente feliz. Se o tempo voltasse atrás, e o caminho ao sacerdócio fosse
mais áspero e mais longo, e eu soubesse que, chegando, poderia celebrar somente uma única
Santa Missa, sem nenhuma espécie de outro ministério, empreenderia o caminho, e me
sentiria felicíssimo e plenamente realizado. Como são verdadeiras as palavras do salmo ao
pé do altar, ‘de Deus que alegra e renova minha juventude’. Cada dia pela graça de Deus é
mais espontâneo e cordial o Cântico do ancião Simeão quando volto do altar à sacristia. Te
escrevo isto para que me ajudes a agradecer. Pede também a Deus que eu viva da Missa,
para a Missa, de tal modo que se a evolução da doença eu ficar impossibilitado de celebrar,
viva a alegria da lembrança e da gratidão do que pela graça de Deus deu um sentido pleno à
minha vida, e me proporcionou a maior alegria que possa ter uma criatura. Amém”.

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E mais um ú ltimo escrito, em outra carta, que talvez torne mais
compreensível o porque do grandíssimo amor do Pe. Igná cio pela Missa:

“Agora – na doença – com a vida se esvaindo – o ‘Nunc dimittis’, o Cântico do


ancião Simeão tem um sentido todo novo. Diante da alegria de mais uma Missa, de
ter dado Deus a maior glória que lhe poderia dar, doença e todas as coisas da terra
como que desaparecem: é como se não existisse. Depois, faz anos que nessa hora rezo
o salmo 112, que por isso mesmo tem um sentido novo. A gente sente agora quase um
desejo, uma necessidade de cantar o Cântico e o salmo, mais do que só recitá-los”.

O canto que cantou o velho Simeã o, na porta do Templo, com o menino


Jesus nos braços, foi este: “Agora, Senhor, cumpriste sua promessa e já podes me
deixar partir em paz. Porque já vi com meus pró prios olhos a Salvaçã o... luz para
mostrar teu caminho a todos os povos, e para dar gló ria a teu povo de Israel”. (Lc
2,29-33).

Pe. Igná cio via a salvaçã o de todos os homens como os profetas


anunciaram e o pró prio Jesus assumiu: “O Senhor me enviou para dar as boas
notícias aos pobres, a vista aos cegos, aos presos a liberdade...” Isto era o que ele se
maravilhava de operar em cada Missa e que cantava com as palavras do salmo 112:
“Louvai, ó servos do Senhor, louvai o nome do Senhor! (...) Quem se compara ao
Senhor, nosso Deus? Ele levanta o indigente do pó, e retira o pobre do monturo, para
que more com os príncipes do seu povo. Ele faz da mulher estéril, na sua casa, a mãe
de muitos filhos”.

Numa paró quia de grande comércio, firmas importadoras e exportadoras,


prostituiçã o, meninos de rua, drogas, exploraçã o, o Pe. Igná cio faz da Missa o
“trabalho paroquial”, Sacrifício de Jesus Salvador pelo pecado, e louvor pelo Deus
que se põ e ao lado dos indigentes: tira-os do lixo, torna-os fecundos, põ e-nos no
governo do povo (com os príncipes). Por isso nã o gostá vamos de perder a Missa
rezada por ele, que ao celebrar, se unia de modo tã o vivo a Jesus, libertador do
povo miserá vel.

Fizemos um santinho para a Missa do Sétimo dia. Tem a fotografia das


mã os feridas de Pe. Igná cio, elevando a Hó stia, e está escrito: “completando o que
falta à Paixã o de Cristo pelos membros mais abandonados do Corpo Místico”.

Era assim que Pe. Igná cio unia seu sacrifício ao de Jesus, neste tempo de
doença. Preparava-se para a celebraçã o da Missa, calculando o tempo dos
remédios, do descanso, para ter condiçõ es de rezar. E com que sacrifício! A febre
deixava-o com tonturas, suava copiosamente, ficava pá lido, molhado, frio...

Fez isto até dez dias antes de morrer, quando ficou de cama, e nã o se
levantou mais. Nesses dez dias que precederam sua morte, passados boa parte na
inconsciência, sonhava que estava rezando a Missa. Como que adormecido, fazia os
gestos da celebraçã o: a entrada, as leituras, e, mais frequentemente, a consagraçã o,

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o beber do cá lice, a distribuiçã o da Eucaristia. Quando o capelã o do hospital lhe
trazia a comunhã o, dizia: “Já celebrei”. E na ú ltima hora de sua vida, pediu que lhe
trouxéssemos os paramentos e o cá lice. Queria ainda – eram outras palavras suas –
“renovar e aplicar o Calvá rio pela humanidade”. Quando chegaram os paramentos,
novamente ele dormitava. Expirou uma hora depois.

“Dom Bagaço” e o carinho de Deus.

Ao ver o estado em que ia ficando, cada vez mais sem forças, depauperado,
Pe. Igná cio começou a chamar-se a si mesmo “Dom Bagaço”. (“Dom” é o modo se
chamarem os beneditinos).

“Dom Bagaço”: assim se via, e se reconhecia diante de Deus. Coerente com


toda a sua vida, mantinha-se pobre, humilde, abandonado nas mã os de Deus.
Sempre tinha dito que o pai atende os desejos de seus filhos, mesmo os pequenos
gostos, demostrando assim seu carinho. Quando fizemos a oblaçã o, estimulou-nos
a pedir o que quiséssemos nesse dia, que era festa nossa e de Deus. Lembrava-se
de Santa Terezinha, que pedira uma chuva de rosas, no dia de sua profissã o, e Deus
lhe havia concedido. Coisas simples, importante só para a pessoa que as deseja, e
espera esta prova de carinho, de ternura, que só Deus pode dar.

“Dom Bagaço” tinha seus gostos em relaçã o a sua morte, e com


simplicidade falava-se deles... Sabíamos que achava bom morrer num domingo,
“dia da ressurreiçã o", e que “hora linda de morrer é no pô r-do-sol”.

Pe. Igná cio esteve internado dez dias. No momento em que o tratamento
do hospital se tornou dispensá vel, e ele precisava apenas de oxigênio, oque poderia
ser feito em casa, tomamos uma decisã o. Numa hora que estivesse consciente,
consultá -lo-íamos sobre onde gostaria de morrer, se ali ou na igreja. Já nos tinha
dito que queria morrer na sua paró quia no lugar que Deus lhe havia determinado,
mas nã o sabíamos que achava que era o momento. Tocou-me fazê-lo. A pergunta
saiu meio rude:

- “Padre, o senhor que ir morrer na igreja”?

- “Quero”.

- “Vamos entã o para lá ?”

- “Vamos sim!”.

Assim nó s o levamos para a igreja Madre de Deus, onde passamos vá rios


dias até o dia 19. Está vamos com ele algumas das Oblatas, a irmã do Pe. Igná cio,
Agostinho (agora monge olivetano), Pe. Guedes, os meninos, amigos. Pe. Igná cio
recebeu as visitas, sorria, fazia perguntas breves interessando-se por quem

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chegava, embora já estivesse muito fraco. No domingo pela manhã o médico já nos
avisou que já era o fim. De modo que nã o nos separamos mais; chegaram os mais
pró ximos. Recebemos sua bençã o; ele falava muito pouco, mas sorria para nó s, e
chegou a perguntar por alguém do grupo que no momento nã o estava presente. À s
16:30 h percebemos que se aproximavam os ú ltimos momentos. Cantamos,
rezamos com ele, já submergindo na inconsciência. A ú ltima palavra que dele
ouvimos foi “Credo!”. Pe. Igná cio nasceu em Montevidéu (Uruguai), no dia trinta de
outubro de 1918, e morreu no dia 19 de janeiro de 1964, aos 46 anos de idade.

E quando passou desta vida para Deus, a 19 de janeiro de 1964, à s 17:45 h,


lembramos com emoçã o o que nos tinha dito: era domingo e sol se punha...
Lembramos o que acontecia no hospital, quando pensava que estava celebrando, e
o que havia pedido antes a Deus: “Se estiver impedido de celebrar, que eu viva
alegria da lembrança”.

Os monges do mosteiro Sã o Bento, de Olinda, vieram logo e rezaram a


Missa. Mas foi no outro dia que se celebrou a grande Missa solene, na igreja, no
lugar em que costumava oferecer o Sacrifício. Dali, acompanhamos o enterro.
Estavam os membros da OAF, os meninos amigos, o pessoal do bairro que passava.
Todos nos davam pêsames; eu os aceitava, mas estranhamente ainda nã o sentia
muito. Observei durante o veló rio que as pessoas nã o vinham rezar pelo Pe.
Igná cio, mas pedir a sua intercessã o ao tocarem seu corpo com terços, medalhas
etc.

Dom Abade Sabatini, de Ribeirã o Preto, nã o pode estar presente nesta


hora. Tinha vindo poucos dias antes, quando internado no hospital.

Foi assim que nó s, Pe. Guedes e Agostinho resolvemos os problemas


prá ticos do sepultamento. Atendendo ao desejo do Pe. Igná cio, ele foi enterrado em
cova simples, na terra, no meio do povo pobre. Foi bonito o lugar que lhe tocou,
debaixo de uma á rvore florida. No cemitério de Santo Amaro, seu corpo baixou à
terra, acompanhado de lá grimas, oraçõ es, e do canto dos monges. Ali passou três
anos. Sua sepultura foi muito visitada por nó s e pelos conhecidos.

Vá rias pessoas já nos disseram que receberam do Pe. Igná cio favores
especiais. Nunca tivemos tempo de aprofundar-nos nisso, embora nó s mesmas
também tenhamos recebido, por ele, graças especialíssimas.

A lembrança de Pe. Igná cio permanece entre todos os que conhecemos.


Pois ele teve o om de “marcar” para um sentido mais profundo da vida a todos os
que passaram por seu caminho. E isto nã o se esquece.

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Quarta Etapa: Tempos Confusos (1964 – 1979)

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As Oblatas vão acabar?

Morreu Pe. Igná cio, o inspirador, o homem forte, o que conseguira manter
o espírito da missã o. O que vai acontecer? Para nó s Oblatas, era simples: tratava-se
apenas de continuarmos unidas e prosseguir no trabalho, conservando o que Pe.
Igná cio nos ensinara. O novo que aparecesse iríamos vivendo, a seu tempo.

Para os amigos mais pé no chã o, o grupo nã o tinha condiçõ es de


sobrevivência. Pequeno, disperso, muito heterogêneo, sempre havia feito o que Pe.
Igná cio sugeria, e agora...? “Nã o tem jeito, vai acabar!”

Ficamos sabendo disso. Foi duro. Mas o compromisso com os pobres era
mais forte do que tudo o que ouvíamos. Ao menos por enquanto.

Até agora, as dificuldades nã o atingiram em sua base a vida do grupo. Isto


aconteceu depois. Confiamos em Deus e a vida continuou.

Por vá rios anos, tudo ficou como antes.

Nos trabalhos a luta era grande. O tempo curto para o que precisá vamos e
desejá vamos fazer. Era tanta coisa, tantas necessidades! Nó s nos dedicá vamos cada
vez mais. Muita gente nos procurava: de todos os níveis sociais. Uns para suas
necessidades, outros, por sua necessidade de doaçã o. Queríamos atendera a todos.

Também procurá vamos seriamente a nossa unidade. Com muito sacrifício,


em geral à noite, porque o dia estava todo ocupado. Nas reuniõ es comunitá rias, nos
estudos que fazíamos juntas, na divisã o dos setores da OAF, enfim, em tudo, a
gente procurava viver a caridade, manter a unidade. O regime ainda era o da
obediência, participada, nã o resta a dú vida, mas em geral a responsá vel
centralizava tudo. No momento, achá vamos bom assim. E parece que conseguimos
a uniã o procurada. Todos a percebiam e comentavam. Isso nos alegrava, pois um
dos pontos do “testamento” de Pe. Igná cio era que vivêssemos a palavra de Jesus:
“Pai, que sejam UM como eu e Tu somos UM”. E “onde dois ou três estã o reunidos
em meu nome, Eu estou no meio deles”. Dizia que esta palavra era visível e
contagiante, um fogo (Espírito) que se alastra. É verdade: a maioria que se junta a
nó s assumiam o espírito de uniã o.

Neste tempo quem nos ajudou muito foi Pe. Guedes, de Recife. Podíamos
contar com ele para conversarmos e celebrar para nó s. Tinha a palavra justa,
quando se precisava. Estava muito pró ximo de nó s.

Algumas pessoas novas vieram integrar o grupo. Entrosavam-se


rapidamente na vida simples que levá vamos. A tô nica continuava sendo a intensa

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convivência... com o pessoal da rua, adultos e meninos, com as moças na prisã o ou
egressas dela, com as que haviam tentado suicídio, com as famílias de todos...

Tudo continuou e até cresceu. Mas havia coisas demais para fazer.
Tínhamos apenas uma queixa, a falta de tempo. Uma queixa só , mas que era
constante. Essa falta de tempo, o envolvimento dia e noite nos problemas urgentes
de incontá veis pessoas, teve consequências que depois percebemos como
negativas. Sem dú vida foi um tempo heroico. Tudo era dado aos pobres, sem
reserva alguma. Mas ficá vamos afastados dos outros movimentos. Nã o tínhamos
oportunidade para refletirmos acerca dos problemas da Igreja e do mundo.
Falá vamos deles, e inclusive estudamos os documentos do Concílio, mas sempre
em horas de muito cansaço. Decorrido esse minguado espaço de tempo,
voltá vamos rapidamente aos que nos esperavam, com problemas angustiantes a
resolver de imediato.

As experiências das separações

Foram vá rias as Oblatas que se separaram do grupo. Umas primeiro,


outras depois. Gente muito querida. Pena que “olharam para trá s” ou para frente e
nã o viram com clareza o futuro. Até hoje sentimos a sua falta pela luta, pela
amizade que era forte, por tantos anos de convivência...

Por quê? A esta pergunta, que surge espontaneamente, nã o temos resposta


enquanto grupo. Apenas no plano individual. E este, se nã o é estritamente
reservado, tem que ser respeitado, à espera de depoimentos espontâ neos de cada
uma. Neste pequeno escrito, isso nã o é possível, embora fosse interessante para a
histó ria do grupo.

De qualquer modo, encontramo-nos com elas, com maior ou menor


frequência, e cada vez o coraçã o se reconforta. Mas como uma delas, esperamos a
manifestaçã o gloriosa do céu, para nos encontrarmos. É Nená . Deus levou-a cedo,
no dia 13 de julho de 1968. No dia 31 daquele mesmo mês completaria 37 anos.
Dois meses antes, ao começar o frio em Sã o Paulo, uma pessoa amiga ofereceu uma
casa velha, que estava para ser demolida. Poderíamos usar como pernoite. Nã o
digo albergue, por causa da precariedade do empréstimo. O prazo nã o seria
suficiente para organizarmos o uso do casarã o na forma de albergue. Somente a
pernoite em cima de papelõ es. Dá vamos graças e alegria por estarmos debaixo de
um teto.

Vá rias pessoas mobilizaram-se para as necessidades mínimas: abrir e


fechar a casa, organizar o rodízio da limpeza, estar atento ao ambiente para que
nã o surgissem brigas graves.

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Logo o velho casarã o começou a funcionar. O inverno vinha rigoroso,
intensificando-se as rondas, saídas à rua, de noite, levando lanche e agasalho aos
que dormiam ao relento.

Nená imaginou uma ronda especial. Dispô s-se a ir diariamente ao casarã o,


levando chá , café ou mais que tivesse para os que iam dormir lá , com frio e sempre
com um pouco de fome, mas levando também um tempo para conversar,
interessar-se por partilhar o acontecido durante o dia, histó rias sempre mais de
sofrimento do que de esperança.

Um dos homens que lá dormia havia estado tuberculoso. Nená


preocupava-se com sua saú de, e lhe dispensava uma atençã o especial, enquanto ele
esperava os resultados dos exames, para uma segunda internaçã o. Também havia
uma epidemia de gripe em Sã o Paulo, mais forte entre os pobres, é claro. Nesses
dias, Nená contraiu uma encefalite, cuja origem levou vá rios dias para ser
identificada. O vírus poderia ser o da tuberculose ou da gripe: Mais provavelmente
o da tuberculose.

A doença tomou-nos de surpresa. Tinha fortes dores de cabeça, mas se


queixava pouco, tanto que na tarde de domingo trabalhamos preparando material
para um estudo sobre a histó ria do Brasil que iriamos ter com o pessoal da Oficina
da OAF. No outro dia, Nená amanheceu inconsciente e no fim da tarde já estava em
estado de coma. Está vamos em um pronto-socorro, mas passamos ao hospital
especializado, o Emílio Ribas. Todo o possível foi feito. Foram treze dias de
cuidados médicos, oraçõ es, de esperanças ao menor sinal de melhora. Dias de nã o
poder fazer nada, a nã o ser esperar, tanto nó s, as Oblatas, os amigos da OAF, como
os pais dela que haviam chegado do Uruguai. Vimos a grandeza do pai de Nená ,
médico ensinando-nos a “esperar”. A da mã e, controlando os seus sentimentos e
ainda nos animando. O amor de todos no plantã o permanente que mantivemos,
revezando-nos para os trabalhos mais urgentes. E mesmo para a presença no
casarã o.

Tive a graça de estar quase todo o tempo com Nená , durante a sua doença,
pois permaneci nos hospital. Nesses dias, aprendi com D. Yayá uma coisa
importante, que tem servido vá rias vezes na vida. Eu rezava perto dela: sabia que
ela gostava disso, lia em voz alta alguns salmos, trechos da Escritura. Um dia D.
Yayá me perguntou, como eu falava com Nená , e eu lhe contei. Disse-me: “você
também tem lhe falado do seu estado? De quem tem vindo visitá -la, e do que tem
acontecido cada dia?”. Nã o eu nã o tinha feito. Disse-me entã o que o fizesse e que
seria bom. Nená em coma. Logo que pude falei com ela. Nesse dia Dom. Abade
tinha vindo de Ribeirã o Preto. Falei-lhe disso e das demais visitas, contei da
esperança de melhora que os médicos tinham, da presença nossa, da dos pais que
tinham chegado do Uruguai, de quem estava fazendo seu trabalho junto aos pobres
etc. Depois me animei e pedi: “Nená se você puder, faça algum gesto”. E ela, grande
esforço, tentou abrir os olhos! Nos dias seguintes nos comunicamos vá rias vezes
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assim, com pequenos gestos dela com a cabeça, eu pedia que abrisse a boca, e lhe
dava na língua algumas gotas de á gua. E nã o deixava mais de contar-lhe sobre o
amor que a rodeava.

Esta experiência me tem valido muitas vezes na vida, nos casos em que a
pessoa já parece morta.

Nã o consigo resistir à tentaçã o de contar a histó ria de Joã ozinho, homem


da rua que nã o queria mais viver. Havia desanimado de tal maneira, que dizia à
Oblata que visitava debaixo do viaduto, que o levava à s vezes ao hospital: “porque
se preocupa comigo? Eu já morri!” Uma noite de muito frio, fui com ela levar
agasalho ao Joã ozinho. Estava gelado e inerte debaixo do viaduto, sozinho, sem os
colegas, misturado à terra e as baratas. Os que passavam riam-se do maloqueiro:
“se acabou na cachaça!”; “Este nã o se mexe mais!” Custou encontrar quem nos
ajudasse a pô r o Joã ozinho no carro, pois percebemos que ainda respirava.
Chegamos ao Pronto-Socorro e, como nã o pudéssemos ficar lá , deixamos o telefone
para que nos avisassem qualquer coisa, durante a noite ou no pró ximo dia. O
médico nos disse que nã o chegaria até lá . Já nã o tinha nenhum reflexo. Mas
acerquei-me de Joã ozinho e falei-lhe de umas poucas coisas, entre elas, quem foi
que mais uma vez havia teimado em preocupar-se com ele e que esperava que ele
melhorasse. Mas foi quando lhe disse: “Joã ozinho, vamos rezar uma Ave Maria a
Nossa Senhora Aparecida, para você ficar bom”, que Joã ozinho chorou. Enquanto
eu rezava, com a voz muito firme, suas lá grimas caiam lentamente pelas pá lpebras
fechadas. Hoje está vivo; mora com sua mulher e filhos, levando muitas noites e
dias de trabalho.

A Nená Deus a levou. Depois de ter feito a escolha de viver como pobre,
entre os pobres, morreu de uma doença provavelmente contraída entre eles. O
Senhor favoreceu-a com esta coerência de vida e morte.

Antes do casarã o, dedicou sua vida à s mulheres, à s crianças suas filhas,


pelas quais tinha um amor todo especial, aos meninos de Recife. Tinha o dom de
descobrir o singular de cada pessoa e ali colocar sua açã o concreta.

Do tempo que em que estava com os meninos, guardamos esta reflexã o


por escrita:

“Senhor, Tu estás comigo, ao meu lado. Tu és a minha rocha. A alegria e a paz que tu queres
que eu tenha, deve ser daquelas que desafiam tudo. Assim como diz o salmo: ‘cairão mil a teu
lado e dez mil a tua direita, mas a ti não atingirá mal algum’. Senhor, foi sempre assim a paz
e a alegria que eu desejei, que possam rir, de tudo e de todos, os inimigos. Uma paz e uma
alegria na tua ressureição, na tua espera, na esperança da eternidade. Senhor, dá-me essa
paz e alegria, para que eu possa dá-las. É o único que eu posso dar aos meninos. Se não tenho
isso, que poderei dar-lhes, senão angústias, solidão, desespero? Isso eles já tem.

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Que eu não esqueça o que eu aprendi: Que tu és o amor e sabedoria infinita e que por isso
meu maior encantamento está em adorar a sua vontade com carinho. Que eu adore e faça
tua vontade com carinho e solicitude. Senhor, se todos esperamos pelos outros, nada e nunca
se fará; é preciso amar primeiro como Tu, crer primeiro, alegrar-se primeiro”.

Nená sempre conseguiu reservar um tempo para a leitura e para o estudo.


Amava a comunidade, era consciente do esforço que a uniã o exigia: “é preciso amar
primeiro, crer primeiro, alegrar-se primeiro...”. É a ú nica das Oblatas que morreu.
Partiu à nossa frente, numa separaçã o que é saudade e estímulo. Porque através
das pessoas pró ximas de nó s que vã o partindo, o céu vai ficando mais perto.

Um ano antes, os restos mortais do Pe. Igná cio foram transladados de


Recife para Sã o Paulo, para o tú mulo dos irmã os olivetanos, no cemitério da Penha.
Aceitando o oferecimento dos monges, e depois de ter feito o veló rio, e a Missa na
igreja deles, na Vila Esperança, enterramos Nená no mesmo jazigo.

E mergulhadas ainda no assombro, voltamos para casa. Lá comentamos os


fatos, para tentar compreender uma a um, os acontecimentos dos dias passados,
para rezar em cima deles.

Durante esses dias convivemos estreitamente, as que moravam em Sã o


Paulo, com as Oblatas e amigos de Recife. Reforçada a uniã o, voltamos a nossos
lugares e continuamos os trabalhos. A memó ria de Pe. Igná cio e agora Nená , os
amigos sofredores - os comprometidos com eles que já conquistaram a paz e a
alegria definitivas - estã o ai bem pró ximos de nó s, animando a luta que
continuamos. Era possível perceber vá rias presenças numa grande família, que se
tornam mais vivas, cada vez que uma dos nossos empreende a grande passagem.

As buscas na incerteza

Sentimos a urgência de voltar a ter, em Sã o Paulo, um lugar pró prio para


moradia, uma vez que está vamos vivendo nas casas da OAF e, apresar da
independência de que gozá vamos, a vida era muito centrada no trabalho, nã o nas
necessidades do grupo. Nã o tínhamos lugar para encontrar-nos, para transmitir o
ideal, menos ainda para descansar um pouco, embora isto nos parecesse
desnecessá rio. Um mês depois da morte de Nená , algumas de nó s fomos morar em
quartos de vilas bem pobres, ou de cortiços, no Brá s. Foi muito bom para o grupo
das Oblatas. Por fim, voltá vamos a ter uma casa, uma vida pobre pró pria!

Mas praticamente íamos para dormir. A vida estava toda na OAF. Nada
sobrava fora da instituiçã o, mas novos problemas aparecem.

60
Por um lado, as novas que chegavam agora para integrar o grupo. No
período de formaçã o, iam trabalhar no que chamá vamos de trabalhos “de
participaçã o”: nesse momento, em fá bricas e como serventes em hospital. Era uma
experiência da realidade, boa e intensa. Porém viviam o problema de ficarem
muito só s e sem espaço para aprofundar conosco a nova vivência.

Por outro lado, os vizinhos. Gostavam de nó s e reclamavam nossa


presença. Saindo tã o cedo e voltando tã o tarde... Qual era nosso horá rio? Quem
eram nossos patrõ es? Pouco falá vamos de nó s, para nã o sermos diferentes do
povo, e mantermos a discriçã o sobre nossa vida. Assim, eles nã o entendiam quem a
gente era. Moças muito cató licas? O que era essa OAF? Nã o éramos filhas de Maria,
e nenhuma casava!

Nã o nos apresentá vamos como religiosas, o que também nã o teriam


compreendido. Sem há bito, sem convento, sem colégio? Somente os vizinhos mais
amigos foram conhecendo o que fazíamos. Mas nem o tempo do sol, nem o tempo
das nossas cabeças, dava para pensarmos em uma participaçã o deles.

O problema da identidade do grupo continuava, mas era vivido à s pressas,


sem parar para refletir. Quando está vamos na OAF, éramos “as moças da OAF”. Se
saíamos para montar nossa casa, nã o sabíamos como nos apresentar ao povo.

Partimos com fé e coragem para nova vivência

Só sair para morar fora da OAF era pouco. Desejá vamos voltar para uma
convivência mais autêntica e missioná ria entre os pobres, dentro da sua realidade,
sem o peso da instituiçã o. Trazíamos isso em nossa histó ria; reconhecíamo-lo
como carisma da nossa vocaçã o. Para nó s, Oblatas, pensar nesta convivência era
pensar em trabalhar novamente na rua. Voltá vamos as nossas fontes. Procurar os
locais da cidade onde estã o os marginalizados e participar da vida nesse ambiente.
Manter uma presença nos lugares onde ”moram” as pessoas com as quais
escolhemos trabalhar.

É verdade que o desafio cria um sentimento diferente, o de procurar


realizar o impossível: libertar aquele povo da sua miséria. Pe. Igná cio havia
ensinado, e isto foi transmitido à s Oblatas “de geraçã o a geraçã o”, que o trabalho
na rua tinha que ser na presença de Deus entre os homens. Era um trabalho de fé,
que se expressava assim: “As pessoas tem o direito de reconhecer em vocês o
pró prio Jesus”. “Vã o, tenham confiança, porque para Deus nada é impossível”. Na
rua, o encontro com Deus tem uma característica toda específica. A gente vai... e
nã o dá para levar uma açã o preparada, porque nunca se sabe o que vais acontecer.

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As brigas, muitas vezes de tremenda e mortal violência; o medo da polícia
(quem está no meio é suspeito); o inesperado rapa da prefeitura, que chega de
surpresa e com que agressividade! Levando a mercadoria que, juntamente com
outros, estamos vendendo. A polícia e os fiscais da prefeitura agem na base da
violência, nã o deixam tempo para explicaçõ es. É preciso correr, ou enfrenta-los “na
manha”. No submundo há intrigas, xingos, palavrõ es, ameaças, a morte é coisa
corriqueira. Na rua, ou debaixo dos viadutos, vive-se na sujeira, exposto ao sol, à
chuva, ao frio, ao vento.

Por causa disso, afloram em nó s sentimentos de incapacidade e solidã o. É


necessá rio colocar o coraçã o em Deus e dispor-se enfrentar qualquer tempo, seja
em que sentido for.

É só quando vamos criando amizades, quando a desconfiança se


transforma na descoberta de que “algo diferente” está acontecendo, que nos
sentimos melhor. Este “algo diferente” os pobres associam naturalmente com
Deus. Chegam a reconhecer e abençoar a Deus por nossa presença entre eles.

Mas para nó s, as coisas nã o sã o tã o tranquilas. A miséria é demais! Ela nos


leva, a cada vez, questionar a paternidade de Deus. Como é possível o Senhor ser
Pai e permitir que aconteçam as seus filhos coisas terríveis? Ou terá Ele diferentes
categorias de filhos, os que podem viver e os que só podem morrer?

Porque a gente percebe que nã o vai dar para “libertar os cativos”; mudar o
ambiente, ainda vai levar muito tempo. Nã o será antes de mudarem as estruturas
sociais. E isso quando acontecerá ? No fundo, todavia, sentimos que Deus quer
mudanças. Qual é o modo de agir para ajudar nessa mudança que Deus quer?
Enquanto buscamos respostas, nos alegramos com um ou com outro que se liberta.
Mas é tã o pouco. Nã o fossem os rostos, os olhos, os sorrisos... Diante das angú stias
que conhecemos, ainda é difícil escutar a resposta de Deus aos apelos para salvar
esse povo escravizado.

Malgrado tudo isso, a rua sempre foi a força maior, o modo de


reencontrarmos nossa identidade, cada vez mais engajada na dureza dessa
realidade, na participaçã o do sofrimento dos mais pobres. Tanto em Recife como
em Sã o Paulo, partiu-se “com fé e coragem” para novas vivências.

Nã o todas as Oblatas, mas algumas que quiserem e puderem.

Em Sã o Paulo, começou-se a venda de doces, balas e pacotinhos de


amendoins no Lago da Concó rdia, no Brá s. Uma presença para conquistar a
meninada da rua. O exemplo de Recife estimulava a tentar aqui uma experiência
similar.

Em Recife depois do tempo mais “institucionalizado” com os meninos, um


grupinho de Oblatas voltou à vida simples, indo morar na Ilha do Recife. Seguem

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aqui relatos desse tempo: o de Cristina, na pequena comunidade do Brum, e o de
Jú lia, em uma casa da OAF.

A experiência de Cristina

“Era uma casa pequena, de cômodos de dois andares. As divisões dos quartos eram de tábua,
meia parede, quartos pequenos, de 3m x4m ou menos. Eram seis quartos e um pequeno
quintal. Um só banheiro no fundo da casa, comum com os fundos do bar. Todos usávamos
esse único banheiro, os moradores da pensão e os fregueses do bar. O movimento era
contínuo.

A dona da casa era uma velhinha, Dona Nenê. Morava em um dos cômodos embaixo. Aos
poucos fomos ficando amigas, conhecendo a riqueza de sua vida e a força de sua luta. Muito
desconfiada, queria preservar sua casa de ‘bagunça’ como se dizia, e era difícil ela alugar
quartos para gente desconhecida. Sua casa ficava na Ilha do Recife, toda ela dominada pela
vida do cais do porto. Era o vaivém dos marinheiros, dos capitães, dos oficiais, com seus
‘dollars’ que iluminavam o rosto das meninas que moravam por lá, na pobreza, na fome; era
o movimento dos grandes depósitos que guardavam as mercadorias de exportação: Moinho
Recife, usinas etc. Bem como o movimento de muitos homens que desde madrugada
carregavam sacos na cabeça, no calor e na chuva.

Este ambiente da ilha tinha uma vida própria, sustentada por esse movimento. Havia
prostituição mais rica, a mais pobre, os grandes depósitos. Um aglomerado de quarteirões
que se constituíra, a partir da vida da ilha, de uma forma mais estável: ‘O Brum’. Alguns
casais, algumas mulheres que alugavam quarto para assegurar um teto aos filhos. É ali que
Dona Nenê tinha sua casa. Saindo à procura de um quarto para alugar nesta região.
Soubemos que ela tinha um desocupado. Mas não foi fácil convencê-la! Nossa proposta
deixava na maior dúvida. Duas moças, muito novas, dizendo que vendiam café na rua e que
precisavam de um cômodo para morar. Não tínhamos família em Recife e morávamos com
outras colegas... Não havia entendimento, ela não aceitava! E nós não queríamos perder o
quarto. Pois nos parecia o ideal. Fomos várias vezes lá tentar convencê-la. Mas nada. Ester
lembrou-se de uma mulher, que se tornou sua amiga quando trabalhava no bar da Rua da
Guia (nesta mesma ilha), anos atrás, a Madalena. E realmente foi pela palavra de Madalena
que conseguimos nosso quarto. Ela tinha uma barraquinha de bebida lá perto e conhecia o
rapaz, dono do bar, Dona Nenê e todo mundo. Declarou-nos moças de confiança, que não
falharíamos com o aluguel. Madalena explicou que Dona Nenê poderia ficar sossegada, que
não íamos fazer de sua casa um prostíbulo.

Minha expectativa era grande. Tinha vindo do Uruguai havia três anos, no desejo de
partilhar, de viver junto com o povo uma vida de pobreza.

A ilha já vivera esse fundo missionário: As Oblatas mais velhas já tinham


trabalhado por ali, a força da ‘Missão do Bom Pastor’, que Pe. Ignácio criara, estava viva na
memória das moças da Ilha. Mas, nos últimos anos, o trabalho, a preocupação com os
meninos havia quase que tomado integralmente o tempo. Na ilha restava apenas um
ambulatório que atendia às necessidades de saúde. Senti que isso não era ‘vital’ para as
moças, embora necessário, nem respondia ao ideal que me havia trazido até ali.

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Outros dias Oblatas também se dispuseram a refazer a caminhada, e assim retornamos à
ideia inicial de convivência partilhada.

A vida foi acontecendo na simplicidade do dia-a-dia. Levamos uns móveis para lá, duas
camas, três colchões, um armário, mesa e fogão: Chegamos ao quarto de manhã cedo e, dez
minutos depois, já havíamos arrumado tudo. O que fazer? Havia que comprar panelas, não
tínhamos comida! Saímos à procura de latas, coamos café e fomos vender. Assim
conseguimos comprar as primeiras panelas. Lembro-me das ‘sardinhas com pão’ daquele
tempo. Era o mais barato que encontrávamos. Era o que mais comíamos com maior
frequência. Quando me lembro, sinto ao mesmo tempo saudades e náuseas.

As duas vendiam café. Dava mais dinheiro, era mais fácil de vender. Perto do dia de pagar o
aluguel vendíamos até nove garrafas por dia cada uma. Eu reservava o período da tarde
para ir às pensões. Às vezes levava sanduíches da vender, em outras vezes bolo. Sempre ia
com alguma coisa. Subia 15 a 20 pensões todas as tardes. Foi neste contato com as pensões,
com as moças, que fui entendendo o mistério da contemplação mais profundamente.

Pela miséria, pela dor, pelo sofrimento que se desprendiam daqueles cubículos, sentia a
urgência de apresentar este povo a Deus, a Ele que foi ungido por Madalena e defendeu a
mulher do apedrejamento, que ofereceu água da vida para a Samaritana. Não havia
ninguém mais interessado do que Ele, mais capaz de entender e olhar, de abrir nossos olhos e
ouvidos para que se concretizasse o caminho da Boa Nova.

Na pequena comunidade, de manhã cedo e à noite, rezávamos juntas. Trazíamos esta


realidade para a oração. Tínhamos uma janela no quarto que deixava entrever um
pedacinho do mar. Foi ali que senti toda a injustiça da riqueza, do poder, da corrupção.
Delegados faziam um verdadeiro comércio com meninas menores, iniciando-as na
prostituição, no crime, mediante o medo do revólver, do confinamento, do castigo, proibindo-
as de sair, obrigando-as ao uso de drogas... Neste ano que conheci e convivi com este drama,
entendi na oração até onde chegava o perdão de Deus e entendi que o pecado do poder, da
maldade era muito pior que o pecado pela qual a sociedade condenava as meninas. Lutavam
para esconder sua gravidez do ‘cafetão’, para não ter que abortar. Lutavam quando
esgotadas, cansadas e doentes tinham que obedecer ao patrão e atender às ‘necessidades’
dos fregueses. Forçavam a natureza dia após dia.

O movimento era incessante e dependia muito dos navios que chegavam. Os ‘gringos’ eram
exigentes, sensuais e sem limites. Sentiam-se ‘donos’ por estarem em terra estranha, queriam
ser agradados e servidos continuamente. Os sentimentos que despertavam as moças eram
contraditórios, e iam do servilismo, do amor, da ilusão talvez de um dia enfrentarem o mar e
se casarem com alguns deles e se libertarem daquela vida, à revolta de serem massacradas,
pisadas, usadas...

Muitas das meninas eram adolescentes de quatorze, quinze anos. Outras mais velhas, de
vinte e cinco a trinta anos, quando amigadas com algum ‘cafetão’ passavam a ser ‘donas’ da
pensão. Embora muitas tivessem consciência do mal do poder, a ambição, o dinheiro e o fato
de se verem livres do ‘uso’ dos fregueses tornavam-nas prepotentes. As pensões eram sempre
no primeiro e segundo nadar, nunca no térreo. Havia um salão central, tipo bar, onde se
bebia à noite, e para onde davam os quartos de cada uma, onde mal cabia uma cama de
casal. Em cada pensão viviam de 15 a 20 moças, conforme o tamanho. Algumas tinham um

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quarto fora dali, mas eram poucas as pensões que permitiam isso. A maioria tinha de ficar
morando na pensão.

Vendendo bolo e sanduíche, fui conhecendo esta vida. Fiz muitas amizades, aos poucos ia
conversando coma turma. Batia-se um papo, brincava-se um pouco. Ouvia muitas histórias
da família e dos filhos, das saudades, das tristezas. ‘O Bom Pastor vai a onde não vai
ninguém...”

Encontrava um horário mais calmo, em que podia andar nas pensões mais livremente, mas
também dependia dos dias e dos navios. Vivi situações mais difíceis: cheguei a sentir medo.
Nestas horas, a amizade se concretizava na proteção, na amizade e cuidado que as moças
tinham para comigo. A coragem de voltar vinha da força de Deus, o Senhor do Impossível, o
que veio trazer a Boa Nova a todos, especialmente aos mais sofridos e desprezados, como
estas meninas”.

A experiência de Júlia.

“Quando morávamos em Caxangá, algumas moças das Oblatas vendiam bolo nas pensões
para fazer amizade com as meninas que se prostituíam. As que desejam uma vida mais
humana tinham a oportunidade de ir para essa casa no bairro de Caxangá. Lá moravam com
a gente e com os filhos, se os tinham. Sentiam o gosto de serem tratadas como gente.

Num desses dias, chegou Cristina muito preocupada com a Dona Joana, um senhora de meia
idade que morava num corredor da pensão. Estava desenganada pelos médicos. Tinha um
câncer incurável. Como não podia mais ‘trabalhar’ tinham permitido que ela ficasse ali.
Sofria muito, mas ainda pensava que poderia voltar à vida de antes. Conversamos e
resolvemos convidá-la para que viesse morar conosco. Desocupamos um quarto para que ela
ficasse mais tranquila. Veio e ficamos cuidado dela. Sabíamos que sofria muito, tentávamos
amenizar sua dor, com os nossos cuidados e carinhos. Nós também sofríamos vendo-a sofrer.

Ela havia tido vários filhos, mas estavam espalhados pelo mundo não sabia onde. O médico
vinha três vezes por semana e a enfermeira todos os dias. A enfermeira fazia curativo pela
manhã e eu à tarde, mas mesmo assim, cheirava mal. Sua roupa cheirava muito mal, um
cheiro forte. Uma das moças, também da zona, hospedada na casa, resolveu ajudar-nos e o
fazia com muita dedicação. Ajudava a dar banho, lavar a roupa etc. Mesmo assim da porta
do quarto já sentíamos o cheiro. No começo ela falava muito e tinha delírios. Tudo
relacionado com a vida horrível que tivera. Era polícia, fugas, cobrança, orgias etc... Uma
mistura de medo, fuga, desejos. Depois foi ficando magra, cega, não podia andar e não ouvia
bem, tinha dores horríveis. Apesar dos cuidados com que tirávamos os bichos, com a piça, no
outro dia, era como se não tivéssemos tirado nada. Tomava várias injeções. Sempre à noite, à
beira de sua cama, eu contava as histórias de que ela gostava muito e pedia para ouvir sobre
os santos, os seus sofrimentos etc. Quando o sofrimento se tornava mais intenso, nunca
reclamava. Quis confessar-se e várias vezes comungou. Morreu rezando. Pediu para gente
rezar com ela. Acompanhamo-la até a morte.

Antes de morrer, pediu-me que pagasse muitas promessas, como mandar fazer toalha de
altar, mandar celebrar missas, acender velas, rezar terços, acompanhar procissões. Fiquei

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preocupada com tantas obrigações e resolvi conversar com o padre a respeito, pois tinha me
comprometido com ela. O padre deixou-me livre dessas obrigações. Fomos ao seu enterro,
com as moças da casa e os meninos que estavam no Colégio, e também a visitavam.

Dona Joana nos deixou saudades. Seu exemplo de fé e a maneira com que aceitou sua doença
e sofreu até o fim, não os esqueço mais”.

Com relaçã o aos trabalhos de participaçã o no sofrimento, na luta pela vida,


há outras experiências igualmente fortes, em fá bricas, como serventes, na faxina.
Viver esse modo de escravidã o, dia-a-dia, de sol a sol, num trabalho anô nimo,
obscuro, sem horizontes, sempre cumprindo ordens, é, sem dú vida, uma boa
experiência, mas também um grande questionamento. Custa a entender a sujeiçã o
à exploraçã o do salá rio, a quantidade de horas de trabalho, a nã o participar de
nenhuma decisã o, com direito de cumprir apenas o exigido etc.

As integrantes do grupo tiveram vá rias experiências neste sentido. Todas


de duraçã o mais ou menos de um ano e meio. O necessá rio para uma vivência
pessoal, para um conhecimento da realidade em seu pró prio corpo, coraçã o e
sofrimento. Pouco para participar ou começar-se um processo de conscientizaçã o.

Pena que nã o dá para recolher todas as experiências desse tempo. Ficaram


na memó ria do grupo. Para esta narrativa apenas temos um relato de Fortunata, de
seu tempo na fá brica.

A experiência de fortunata.

“Desde muito cedo, senti que Deus me chamava para a vida religiosa. Conhecendo o grupo
pela simplicidade e toda a dedicação aos pobres, vim de Recife para São Paulo.

Aqui cheguei em 1968. E a caminhada do grupo estabelecia que se tivesse um trabalho de


participação durante o tempo de formação. Em primeiro lugar fomos procurar moradia. Foi
para mim uma tensão e susto o lugar que arranjamos. A vivência no cortiço, coisa que eu não
conhecia, ver de perto o que era, foi pra valer! Morar num quarto, cozinha que era mínima,
um banheiro para tantas famílias, não dava para entender. Mas, fomos. Havia neste local
mais de vinte famílias. Os nossos vizinhos admirava-se muito! Moças que deixaram suas
famílias tão longe, para trabalhar e viver juntas, e que não brigavam e repartiam o que
tinham!

Não dava mesmo para entender, pois não dizíamos que se tratava de um ideal religioso.
Acordávamos muito cedo para rezar, mas eles não sabiam. Procurávamos dar todo
testemunho, mas não se falava em vida religiosa. Partimos então à procura de trabalho; foi
difícil.

Eu desejava trabalhar em hospital. E, por mais indicações que tivesse, quando chegava não
dava certo. Era por minha idade, pois já tinha mais de 35 anos, que era a idade limite. Então
passei a procurar em fábricas. Procurava pelos anúncios de jornais, saía à procura, e nada.
Já estava desanimada, quando a pedido de um senhor amigo, consegui um trabalho numa

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fábrica de tecelagem. Tinha vaga na seção de limpeza de peças de tecidos. Fiquei um ano e
três meses. Foi uma experiência muito dura. Éramos seis, a trabalhar nesta seção, a nossa
chefe e um rapazinho novo que ajudava ‘a nossa chefe’ a pesar as peças da fazenda.

A ‘nossa chefe’ era uma moça muito revoltada, que gostava de massacrar e humilhar a gente.
Uma colega e eu éramos as mais novas no trabalho. Sofríamos mais, pois éramos designadas
para o trabalho mais pesado.

Ela chegava na bancada do trabalho e dizia que eu não fizesse hora, que eu tinha que
trabalhar mais rápido, que ele queria era produção. Queria que deixasse a sujeira no tecido,
que passasse por cima, achava que não precisava fazer bem feito; a produção para
apresentar para o chefe dela era o mais importante. Xingava a gente! A minha colega não
aguentava, respondia à altura, e dizia que eu tinha de deixar de ser tola. ‘Não dê ouvido’.
Realmente, se eu não tivesse bem dentro de mim, que eu estava ali por um bom testemunho,
para sentir como é a vida de operária, a vida dos pobres, teria me revoltado. Assim estaria no
papel da pessoa que em vez de se consagrar a Deus ‘ não levava recados para casa’, como diz
o ditado popular. Mas por outra parte, as operárias compensavam, a seu modo, as injustiças.
Vi estragarem tecidos, fazer horas no banheiro, chegar atrasadas, dizer palavrões nas ‘costas
da chefe’, dirigidos a ela.

Tudo isso eu levava com jeito para não me colocar muito diferente das colegas. Também
contavam muitas piadas pesadas... Depois de algum tempo diziam: ‘não vamos contar perto
dela, a gente sente que ela não gosta, que dá sempre uma risadinha sem graça.

Sempre me perguntavam por que eu era calma, brincalhona, alegre e não respondia mal a
ninguém. Mas ficava sempre uma interrogação. Passei ali pouco mais de um ano, e quando
tive que pedir a conta, ninguém entendia por que eu deixava o trabalho. Quando faltavam
poucos dias para a minha saída, contei-lhes da minha vida, o tempo entre elas como
preparação para a vida religiosa.

Mas, mesmo assim, ainda não conseguiam entender: como por causa de uma vida ‘de freira’,
uma pessoa se sujeitava a tantas humilhações. Quanto a elas, não tinham consciência de
classe operária, não questionavam a exploração, ao menos na nossa pequena seção, que
pertencia à última categoria dentro da fábrica. O grupo forte era das tecelãs urdideiras etc.

As minhas colegas trabalhavam pelo salário. E este salário ia inteiro nas prestações de
roupas, bijuterias, perfumes e calçados. Era uma aflição fazer os vales para pagar, quando a
vendedora passava para cobrar! Esta preocupação passava à frente de outras necessidades
mais vitais. O tempo em que trabalhei naquela fábrica foi bom, mas lamento não tê-lo
aproveitado melhor”

Esta procura de engajamento e compromisso dentro da realidade era


concomitante com os trabalhos da OAF. Já tínhamos começado a questionar nossa
vocaçã o na OAF: o tempo que se exige para manter a estrutura das obras: o “status”
que inevitavelmente nos dado pela instituiçã o, como usa consequência mais grave,
e de menos fraternidade com os marginalizados; o tratamento ainda
individualizado, quando a nova leitura do evangelho e as ciências humanas nos

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convenciam do valor do tratamento grupal, e da evangelizaçã o do ambiente. A
maneira como nos situamos frente a estes problemas, constitui um pequeno
capítulo, que será aposto ao relato de outros problemas graves que enfrentamos
nestes “tempos confusos”.

Reafirmamos: A Opção é Pelos Pobres

Até agora uma coisa estava clara: o grupo das Oblatas existia para os
pobres. Estava escrito nos Estatutos da Associaçã o Beato Bernardo e se havia
constituído toda uma prá tica desde a sua fundaçã o.

Todas as que chegaram para integrá -lo vinham procurando realizar um


serviço aos mais abandonados, no amor de Deus. Ele e os pobres. Quanto a isto nã o
havia a menor dú vida.

Dom Abade Sabatini, escolhido Abade Geral da Congregaçã o Olivetana,


tinha viajado para a Itá lia. Outro Abade foi escolhido para a Abadia de Ribeirã o
Preto. De lá vinham novas respostas. Tratava-se de o grupo tomar outra dimensã o,
chamada “pluralista”. As Oblatas ocupar-se-iam de serviços diversificados, nã o
necessariamente com os pobres, e entre eles, nem diretamente para eles. Poderiam
ser secretá rias, professoras de faculdade, faxineiras etc. Ter qualquer profissã o que
mais realizasse pessoalmente cada uma. A discussã o levou bastante tempo, bem
mais de um ano. O grupo dividiu-se diante de duas propostas, nã o muita claras no
começo, mas com o correr do tempo foram tomando contornos mais precisos.
Algumas se definiam pelo primeiro projeto, enquanto que outras se inclinavam
para o pluralismo. Tomaram-se medidas provisó rias para outros problemas do
grupo. Uma delas foi escolher duas “ responsá veis”, uma para Recife outra para Sã o
Paulo, o que visava facilitar o problema de distâ ncia entre uma cidade e outra, e
evitar a dependência de um grupo em relaçã o ao outro.

Mas isto nã o resolvia a questã o de fundo sobre o objetivo, que continuava


sendo discutido. De quem dependia a orientaçã o do grupo, do Abade ou das
Oblatas? Como ficava a obediência, já que estava escrito nos Estatutos que o Abade
era o ú ltimo “responsá vel”?

Por outro lado, também estava escrito, e bem claro, qual era a finalidade
da “Associaçã o Beato Bernardo”. Queríamos estar atentas à voz de Deus, ou seja,
nã o fechar o “ouvido do coraçã o”, ser fiéis. A opçã o assumida pelas Oblatas passava
por momentos difíceis!

Vem outra sugestã o, a de consultar pessoas amigas, que nos


acompanhavam havia anos. Todas as que consultamos, manifestaram-se a favor da

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definiçã o pelos pobres. Assim conheciam o grupo, assim o admiravam. Era deste
modo que Pe. Igná cio o havia imaginado e criado. E mais, correspondia ainda hoje
à s necessidades da Igreja. Nã o viam motivo para mudar. Estas pessoas eram as
portadoras da palavra da comunidade maior, da Igreja local.

Reforçaram a resoluçã o que com o passar dos meses já vínhamos


cogitando. Quem quisesse manter o grupo com os pobres, teria que desligar-se do
compromisso com a Abadia. Para continuar a viver em comunidade e manter os
votos, seria necessá rio procurar outra forma jurídica de vinculaçã o com a Igreja.
Mas as que pensavam assim estavam umas em Sã o Paulo, outras em Recife, embora
o centro das conversas estivesse em Sã o Paulo. Viajá vamos para conversar, todavia
nunca podíamos encontrar-nos todas. A preocupaçã o crescia, o tempo passava e a
situaçã o nã o se resolvia. O abade pedia uma resposta. Era preciso juntar-nos.

Um sacrifício muito grande: as Oblatas deixam Recife

Nã o vimos outro modo senã o nos agrupar em Sã o Paulo. Nã o foi fá cil.


Como deixar os trabalhos de Recife, os meninos tã o queridos, as mulheres, a rua,
toda a esperança semeada em cada atividade? E o compromisso com a vida dos
pobres? Afetivamente, era duro demais!

Na prá tica nã o seria mais fá cil. Com quem deixar o que se fazia? Se já era
hora de os leigos assumirem, o que todos achavam bom, faltava ter criado a
dinâ mica para que o processo se fizesse naturalmente. Conversamos muito, muito.
Todas as opiniõ es foram consideradas. Entretanto, era claro: o grupo das Oblatas
precisava encontrar-se, por um tempo razoá vel, para discernir sobre o seu pró prio
destino. Nã o tinha condiçõ es de continuar sem uma séria reflexã o sobre si mesmo.
Parecia-nos que seis meses seriam um bom prazo e assim propusemos a diretoria
e amigos da OAF de Recife. Aceitaram, mas um pouco pressionados pelas
circunstâ ncias. Isto foi nos anos de 1974 e 1975.

Deu-se um tempo para “passar” os trabalhos, para desmanchar a casa,


para as despedidas... tempo de tristeza! Mas nã o era o pior. O mais sofrido era
tensã o de algumas Oblatas, nessa hora, em que já se exigia uma definiçã o pessoal.
Nesse momento, éramos onze. Sete optaram pela vida dos pobres,
comprometendo-nos a manter o grupo.

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Um tempo de discernimento

Com a vinda das que estavam no Recife, eis-nos novamente à procura de


casa! Muito esforço, muito andar, até que conseguimos uns quartos na mesma vila
operá ria em que um grupo já morava, no Brá s.

Ali fomos morar as sete, estabelecendo um programa de vida. Nada


glorioso. Procurar trabalho, quem vinha do Nordeste. Ver os horá rios de vida
comunitá ria. Dividir os serviços domésticos. Encontrar alguém que nos ajudasse
nas reflexõ es. E procurar formalmente o Bispo, para analisar com ele a nossa
situaçã o.

Tudo foi se fazendo. Algumas continuaram na OAF, outras procuraram


trabalhos junto ao povo, venda de café na rua, balconista nos bares da rodoviá ria,
faxineira no metrô , em delegacias...

As que nã o haviam concluído um estudo específico fizeram-no neste


período. Os anos anteriores haviam sido tã o intensos em termo de missã o, que se
sentia falta de outro tempo para equilibrar aquele, permitindo que se reobtivessem
alguns conceitos bá sicos, tanto na á rea profissional como na teologia e pastoral.

Adquirimos a nova visã o de Igreja, aprendemos a releitura da Bíblia a


partir dos oprimidos, formas vivas de oraçã o em comum, fizemos também uma
releitura da Regra de Sã o Bento.

Tivemos tempo para entrar em contato com outras pessoas engajadas,


para dialogar, para aprender. Neste período, a repressã o se fez sentir fortemente
em todos os países da América Latina, e foi muito sentida por nó s, uruguaias, a
situaçã o do nosso país. Esta realidade nos reaproximou novamente – as antiga
separaçõ es desapareceram; deveríamos unir-nos para rezar, entender, e ajudar-
nos no momento atual (tomar nosso lugar).

A característica comunitá ria marcou este tempo em que moramos todas


juntas. Todos os nos visitavam comentavam como se sentiam bem acolhidos pela
comunidade. Penso que essa acolhida, na mesa, na oraçã o, na liturgia, marcou este
tempo no Brá s.

Já nos relacioná vamos de modo mais claro com os vizinhos, deixando um


espaço para estar com eles, recebe-los em casa, rezar juntos.

Porém com a casa mais aberta, mais gente da rua vinha à nossa procura, e
isto amedrontava os vizinhos. Este medo dos marginalizados nã o se limita à vila do
Brá s, mas é um problema que sempre temos que enfrentar. Conosco, tudo bem;

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com os pobres sujos, ou bêbados, distâ ncia... Converter o coraçã o dos pobres, faz
parte do nosso trabalho.

Mas, voltando à comunidade, a procura da vontade de Deus, em relaçã o ao


grupo e a cada uma, foi dolorosa e um pouco à s escuras. Progredíamos lentamente;
passo a passo, o caminho se reconstituía. Com encontros e oraçã o, muita discussã o
fraterna, seguimos procurando. O Pe. Paulo Grenier começou a dar-nos ajuda de
que precisá vamos nesses encontros. Algumas coisas foram se esclarecendo.

Quanto ao problema principal que nos havia reunido, víamos cada vez
mais claro. De modo que, em julho de 1975, apresentamos à Abadia de Ribeirã o
Preto nosso pedido de desligamento, o que foi concedido.

A Igreja Traz Sua Palavra: “Ponham Puebla no Centro da Cidade”

Este tempo do Brá s foi dedicado à revisã o do ideal e a deixar algum escrito
que definisse o grupo, o modo de vida que se desejava e novos estatutos, enfim.
Havia certas exigências jurídicas que devíamos cumprir.

Fomos entender-nos com o bispo, Dom Paulo Evaristo Arns. A acolhida de


Don Paulo nã o poderia ser melhor, mais afetuosa e concreta. Veio ao Brá s e
conversamos. Decidimos, juntamente com ele, manter a inspiraçã o da Regra de Sã o
Bento, uma vez que ela nos proporcionava elementos para a uniã o com Deus e para
a vida em comunidade: escrever os estatutos conforme as normas bá sicas do
direito canô nico; fazer outro escrito, onde colocá ssemos o nosso ideal, de modo
vivo, nã o tã o formal como dos Estatutos. Fizemos tudo, com grande esforço.
Discutíamos muito entre nó s, por vezes de modo acalorado, até definir o que
escrever. Para os Estatutos fomos muitas vezes à Cú ria até entender as mínimas
exigências do Direito Canô nico. Achá vamos as disposiçõ es difíceis para o nosso
grupo tã o pequeno. Depois disso, levamos vá rios dias e noites para conseguir pô r
em ordem as ideias e redigir alguma coisa que definisse o compromisso
comunitá rio e a missã o.

Por fim, conseguimos. Os Estatutos, provisó rios, com validade de cinco


anos, foram aprovados por Dom Paulo e registrados na Igreja de Sã o Paulo, em
outubro de 1979. Se é verdade que na vida nada mudava essencialmente, para o
grupo era importante. Foi o resultado de uma procura de identidade, e a certeza de
que a Fraternidade das Oblatas tinha seu lugar na comunidade eclesial. Nesta
igreja de Sã o Paulo já está vamos à serviço do povo mais fraco, e a missã o
reconhecida significava também para nó s a inserçã o destes pobres, de modo
concreto, na comunidade de salvaçã o. Isto, desejá ramos vivamente! Nã o mais
“assistidos”, mas filhos da Igreja.

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Ao escrito onde falamos de nossa vida chamamos “Caderno”. Na primeira
parte, levantamos as ideias fundamentais da espiritualidade do Pe. Igná cio e na
segunda parte fizemos uma reflexã o sobre o ideal e a vida das Oblatas, em seus
aspectos concretos. Tem servido para apresentar o grupo para quem chega,
querendo conhece-lo. Quanto à releitura da Regra, nã o deixamos um trabalho
elaborado. Serviu-nos para revermos conceitos dialéticos que na prá tica
apresentariam dificuldades: a antiguidade da Regra e as transformaçõ es de hoje,
em todos os campos; social, psicoló gico, político, econô mico; vida em comum e
tempo para a missã o; vida moná stica reservada e profetismo comprometido;
contemplaçã o na oraçã o e contemplaçã o da realidade; oraçã o e política; amor e
justiça social. Foi um estudo bem interessante. Nesse período foram festejados
mundialmente 1500 anos do nascimento de Sã o Bento. Respondendo a perguntas
enviadas pela Comissã o Geral, escrevemos brevemente o que a Regra significava
para o trabalho com os que estã o fora do convívio social. Para estas respostas,
recorremos ao estudo que havíamos realizado, resultando um pequeno escrito
para o uso da comunidade.

Esta tarefa de rever a Regra, escrever os Estatutos e o Caderno, levou nada


menos que três anos! Mas os escritos sã o para a vida, e nã o o contrá rio. Um tempo
de reflexã o, para realizar melhor o que se faz. Definido, no papel, o ideal do grupo,
já era tempo de partir para açõ es comunitá rias que o encarnasse na prá tica.

Havíamos decidido por nova forma evangélica de trabalho. Havíamos


decidido por nova forma evangélica de trabalho. Havíamos aberto os olhos para o
significado das comunidades eclesiais de base. Nisto, nos convertíamos à Igreja.

Foi ai que recebemos uma palavra do Espírito. Em um dos encontros com


Dom Paulo, conversamos sobre a nossa açã o na cidade de Sã o Paulo.
Permaneceríamos no centro, onde vivem, em sua maioria, os marginalizados de
rua. Dom Paulo deu-nos entã o esta missã o: “Ponham Puebla no centro da cidade”.

Foi uma palavra de ordem, clara como um facho de luz. Por ela fomos
dirigindo os nossos passos. Passos que nã o eram fá ceis. Na grande cidade, a igreja
do centro é a menos viva, é a que mantém a tradiçã o. Os pobres aí nã o têm lugar,
nã o tem chã o para construir seus barracos. Em Sã o Paulo, dois milhõ es de pessoas
vivem nos cortiços e debaixo dos viadutos. Ninguém os vê, estã o escondidos por
detrá s das portas das antigas mansõ es do tempo do café, ou perambulando pelas
ruas. Dispersos, sem nada que os uma, lutando apenas pela sobrevivência, ou por
um subemprego. Para nó s a opçã o nã o era problema. A dificuldade era começar um
novo modo de organizaçã o que ajudasse a se tornar ”Povo de Deus” em caminhada
de libertaçã o. Nã o mais cada um por si, mas grupos unindo-se a outros grupos,
sendo e construindo a Igreja.

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E a OAF?

É chegado o momento de escrever sobre ela. Conhecida por muita gente,


admirada em Sã o Paulo e Recife porque seus membros se atreviam chegar onde
ninguém se atrevia chegar, assumindo uma encarnaçã o real, com muito amor e
humildade, a OAF tinha uma boa reputaçã o.

Esta era uma face ideal e verdadeira. Mas nã o é a ú nica. Tinha outras faces.
No bom desejo de proporcionar ao pessoal da rua um tratamento adequado,
contrataram-se muitos técnicos e funcioná rios. Houve a divisã o em setores
independentes: Rua, Albergue, Casa dos Meninos, Oficina Abrigada etc. A casa ficou
grande, mas sem dono. Criamos estruturas que fizeram perder muito de espírito. E
surgia esta pergunta: “Quem é a OAF?” Eram todos e ninguém. A confusã o era
grande.

Mas o que me parece fundamental é que a OAF havia sido criada no tempo
em que se trabalhava “para” os pobres, e isto permanecia. Coisas boas se faziam
neste sentido. Nã o se conseguia chegar a atender e assumir o trabalho a partir de
“com” os pobres. Foram meses e anos de conscientizaçã o com o grupo que
trabalhava na OAF.

Fomos percebendo que a forma institucional jamais permitiria esta


mudança. Viver entre os pobres corresponde uma vocaçã o sacrificada. Atendê-los a
partir de entrevistas, é outra situaçã o. Da mesa de atendimento para a vida, há
muita distâ ncia.

E aqui ficamos com outras dificuldades. De fato, a OAF dependia de nó s,


que dá vamos o tempo integral ao trabalho. Havíamos tentado de todos os modos
dividir as responsabilidades, mantendo uma unidade de visã o, mas nã o
conseguimos. Reuniõ es, dinâ micas e pedidos de ajuda para outros grupos. O tempo
passava... e, nã o acontecia uma mudança essencial.

Mas víamos que, para outros, o tempo passava de modo diferente. As


Comunidades Eclesiais de Base, de todo o Brasil, floresciam; chegavam as “boas
novas” de que o Evangelho nas mã os do povo era uma força do Espírito, de
transformaçã o. E nó s? O povo morria nas ruas, continuava a ser exterminado, e a
gente continuava discutindo a instituiçã o que já havia sido boa, mas que
atualmente nã o dava condiçõ es para fazer essa evangelizaçã o de que tínhamos
notícia.

Decidimos, entã o, o que custou tanto; desativar os setores da OAF para


começarmos livremente em outra linha: numa linha comunitá ria. Apesar do tempo
de reflexã o, estudo e oraçã o, que nisso honestamente investimos, foi preciso muita

73
coragem para assumir esta mudança. E nem quero falar aqui dos
desentendimentos, das acusaçõ es, das dú vidas, do desgaste...

Das sete Oblatas que éramos, uma se afastou nesse período. Ficamos seis.
Meia dú zia de Oblatas, duas delas seriamente doentes, algumas jovens
participando de nossa vida e de nossa luta.

Alguns leigos deram seu apoio, dispostos a esperar o resultado da


mudança. O grupo ficou bem reduzido, “um pequeno resto”.

A OAF continuou com duas equipes: uma administrativa e a outra


missioná ria. A primeira, integrada por um pequeno grupo de leigos que
mantiveram seus serviços em favor dos pobres, cuidando do patrimô nio e
ajudando nas decisõ es. Na segunda equipe, o grupo das Oblatas e dois leigos que
assumiram conosco a convivência com o grupo da rua, à procura de novos
caminhos.

De onde veio a força para manter-nos e para imaginar novas formas de


açã o de vida? Somente pode ter sido o Senhor! Por experiência pró pria, a gente
pode dizer com o apó stolo Paulo: “O Senhor nã o se deixa ganhar em generosidade”.

74
Quinta etapa: O Povo da Rua Abre Espaço Na Igreja de São Paulo

75
Para Vinho Novo, Odres Novos (Mc 2, 22)

Nã o precisaríamos de odres novos, se nã o tivéssemos vinho novo. Todos


os anos de procura de luz na escuridã o, dá vamos a certeza de que era necessá rio
perseverar na caminhada, embora sendo de outro modo.

Agora, o vinho novo é o Evangelho, substituindo o assistencialismo, o odre


novo é a comunidade, superando a instituiçã o. O Evangelho é a força de lutar pela
vida. E o povo da rua, desprezado e maltratado, é o povo de Deus com quem o
Senhor faz Aliança.

Para anunciar o Evangelho é preciso uma comunidade que já viva no


mundo novo. Daí a importâ ncia da Equipe Missioná ria, de seu engajamento ao
Senhor. Comunidade que vais procurando a gló ria de Deus, através da vida dos
homens.

Depoimentos

Fizemos questã o de que cada um dos membros da Equipe Missioná ria


enriquecesse esta memó ria, partindo do engajamento que têm e do modo que
percebem a açã o de Deus neste trabalho que desenvolvemos junto ao povo de rua.
Os relatos que a partir de agora serã o intercalados ao texto, nã o esgotam as
atividades desenvolvidas; aliá s, nem é essa a nossa intensã o, mas mostrar â ngulos
diferentes do trabalho enquanto um todo.

Descobri a contemplaçã o na injustiça

“O sofrimento, a cruz, o martírio do povo foi me envolvendo, durante todos os anos em que
vivo próximo dele. Convivi muito: vendendo como ambulante, trabalhando como faxineira
em delegacias e diversas firmas, onde experimentei e assisti tantas injustiças. Tralhei na
zona de prostituição em Recife, onde a corrupção e o dinheiro compram tudo; na cadeia de
mulheres onde o poder oprime, mata, chama ’de doida’. Por fim, o conhecimento de vários
grupos de adolescentes chamados de ‘trombadinhas’ em São Paulo, e o sacrifício de suas
vidas jovens: Flávio, de 16 anos, morto a tiros, frente a estação do Brás, por um policial para
ganhar uma aposta feita enquanto bebia, para mostrar sua coragem de atirar naquele
menino indefeso que lavava carros ali fora, debaixo do viaduto. Os adolescentes que iam
preso e a grande dificuldade de encontra-los nas delegacias, nos encaminhamentos da
FEBEM (Fundação do Menor) para as cadeia de Mogi, Sorocaba; na celas fortes que era o
castigo a que os meninos era submetidos. A morte de seis pequenos amigos nossos, três
rapazes, entre 13 e 18 anos. Seus corpos encontrados pelos familiares, crivados de balas, com
dentes quebrados, cortes pelo corpo; uma menina com o couro cabeludo arrancado, o rosto
cheio de hematomas. Não sou capaz de dizer o que senti ao ver Gilson, no caixão, todo
machucado, e a dor da sofrida mãe de Ramiro e de Edneia. Sei que estes meninos

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percorreram o caminho da cruz, enquanto corriam pelas matas derramando seu sangue
inocente. Lembro a importância que senti diante desses excessos de maldade: são injustiças
que ainda clamam pela justiça de Deus; pois na dos homens não é possível confiar. O desejo
de viver, de passear, de ‘curtir’ a vida é legítimo em todo o ser humano, mais ainda se
tratando de adolescentes. Por outro lado, a desigualdade sócia, a impossibilidade de ter
alguma coisa, o cansaço de ver os irmão e pequenos passando fome, sem nunca nada a ter a
oferecer, os deixa em conflito. E a gente fica sem resposta.

O projeto de Deus é de igualdade, de fraternidade, de humanidade. Mas quais os caminhos a


percorrer para que esta justiça que Deus quer possa se concretizar aqui, neste reino de
homens impotentes, violentados, sempre massacrados?

O que se faz, é sempre tão pouco e tão difícil!

A caminhada que temos feito nestes últimos anos com as pessoas que moram nas ruas vem
trazendo algumas respostas, e abrindo a possibilidade de dar voz a este povo. Vejo que este é
o caminho para que o clamor que existe misturado no lixo, escondido nos viadutos, possa
emergir. Existe em cada um o desejo forte de falar, de defender-se quando se sente ameaçado
e agredido pela sociedade, só que nunca é possível manifestá-lo. Fica escondido por trás da
pinga, fica misturado ao sentimento de culpa.

Teria tanta coisa para contar das coisas que já ouvi, do sofrimento que é nunca ter nada,
nem cama e nem sossego; da violência que se sofre de todo lado, das idas e vindas às
delegacias, nas experiências nas construções, das mortes, do cansaço de enfrentar riscos de
vida, desemprego, instabilidade: é impossível relatar aqui.

Posso apenas afirmar que quando abrimos a possibilidade deste diálogo ao povo da rua, do
direito à vida, a ser reconhecido com gente, a ser considerado filhos de Deus iguais a todos os
homens, parece que se quebra o muro da divisão, que abrem brechas por onde jorra o que
ficou contido tanto tempo! Numa missão se escolheu o tema: ‘Somos um povo que quer viver!’
Respondeu tanto ao desejo íntimo e presente de cada um, que tem ficado como lema do povo
de rua. Direito este primário de todo o ser humano, mas tão tremendamente desrespeitado
entre nós.

Aos poucos, vamos caminhando nesse sentido, defendendo e conquistando junto com o povo
a cobertura das primeiras necessidades. Assumimos este caminho da cruz e ressurreição, na
esperança de ver o Reino Novo, a Páscoa Final! Assim meu compromisso foi se alargando:
fazer-me um com o povo é solidarizar-se com ele, acompanhá-lo pra onde ele vai; é defendê-
lo em qualquer situação de opressão em que se encontre. É também encontrar Cristo
perseguido, injustiçado, caluniado e vencedor da morte!”. (Cristina)

Vivo minha vocaçã o na comunidade dos sofredores

“Reunimo-nos em torno do apelo que Deus nos fez, ou seja, apelo para servir o povo mais
oprimido e rejeitado. Uma das motivações é o Evangelho do Bom Pastor: estar com o povo, ir
ao seu encontro, reunir transmitir a Boa Nova, ir buscar o mais abandonado.

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Outra das motivações é a Regra de São bento, de ouvir a Deus na multidão, ingressar na
Escola do Senhor para converter-se e aprender a andar e correr no caminho das boas obras.
Descobrir sempre, no meio do povo, possibilidades novas de anúncio e evangelização, de
transformar a realidade, de apressar o Reino de Deus, enfrentando as dificuldades, contando
sempre com a graça de Deus – ‘o monge está sempre pronto’ – consciente de que o caminho é
árduo, mas que a perseverança e a fidelidade alargam o caminho.

Também é buscando com a comunidade que se entrega à missão, sem contar com glória,
nem com status, mas sempre atenta aos apelos.

Devemos estar nos lugares em situação de opressão e dispersão. Nas praças, nas estações,
nas ruas da cidade, nos baixos dos viadutos. Estes são os lugares que devem ser o nosso
ambiente de Missão, por estar ai a grande exigência do anúncio Libertador. Durante anos
vivemos isto seriamente, correndo até riscos de morte. No entanto, o vivíamos com uma visão
individual, tentando a recuperação e reintegração social e familiar.

Após Puebla soa forte uma nova voz: esta presença toda não podia transformar a situação
de injustiça que o povo sofre, sem aumentar a sua consciência, sem possibilitar-lhe sua
organização sem ser o porta-voz de sua situação, sempre se comunicando e aprendendo com
as comunidades de base. Ai vem o grande desafio: não basta viver juntos e estar perto desta
situação. Também é preciso facilitar ao povo espaços e experiências positivas para que ele
tenha esperança e seja agente de sua salvação e libertação.

É preciso lutar contra o provérbio tradicional: ‘cada um por si e Deus por todos’: abrir
espaço de vivência para que se possa pôr à prova, com fatos e situações, o provérbio
evangélico: ‘eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no
menor’.

Para facilitar a realização desta organização, moramos no centro da cidade, em casas que
possam ser frequentadas pelos que perambulam pela cidade sem destino. Logo que possível,
procuramos um local para o centro comunitário, para servir de lugar de reunião, celebração
e formação do pequeno grupo que começa a caminhar. Lugar também para elaborar
projetos comuns como: moradia e subsistência, ser a voz que clama na rua denunciando a
situação, e também sendo anúncio de que é possível viver o projeto comum mesmo na
situação gritante da rua, anúncio do povo evangélico, que nasce da união do pobre com a fé
num mundo novo.

Entendo que a vida religiosa não pode se realizar, a não ser misturando-se com o povo,
criando com o povo novas possibilidades”. (Ivete)

Revivendo

“Foi um longo tempo de busca, até que decidi conhecer a OAF. Participava de grupo de
jovens, de um grupo de opção de vida, de encontros e retiros. Ouvi falar da OAF, um trabalho,
uma pastoral com os homens que viviam nas ruas, ou seja, os mendigos. Inicialmente, um
choque, depois uma protelação.

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As pessoas que viviam nas ruas sempre me incomodavam. Não conseguia aproximar-me
delas, medo, rejeição, mas ao mesmo tempo questionamento: ‘também é o povo de Deus’.
Como dizer que sou cristã, que faço parte do povo de Deus, com toda a sua história de
salvação, se este povo está dividido... Muito fácil chamar meus amigos do grupo de ‘meu
irmão’. E esta palavra ficava feito um nó, toda vez que encontrava um mendigo caído na rua,
ou mesmo cambaleante, como se fosse cair diante de mim no momento exato que passasse
por ele.

Meu Deus! Como dizer que sou seu povo, se o povo está dividido por preconceitos raciais,
sociais e até mesmo culturais. Sou de família japonesa, com todas suas tradições culturais e
religiosas.

Os questionamentos, quando apenas questionamentos, são infindáveis. Descobri que todo


questionamento deve levar a uma decisão, a uma ação. Não dava para protelar mais. Uma
decisão para a ação. Mas que ação?

Decidi apenas pôr à prova o meu desejo de pertencer ao Povo de Deus, sem medo e coerência.
O difícil era chamar este homem sujo, rasgado e meio doido de ‘Meu Irmão’. Se isto não fosse
possível, o jeito seria tomar outras decisões.

Vim até a OAF, conheci os trabalhos e não entendi muito bem. Albergues, oficinas. Percebi
que se planejava algo como uma Pastoral de Rua. Para participar deste plano, era preciso
aguardar um pouco. Resolvi aguardar em casa. Estava ansiosa e receosa, não sabia bem o
que fazer, voltava ou não voltava? O grupo de jovens não me satisfazia, queria romper estas
barreiras, queria encontrar o meu lugar, onde pudesse louvar a Deus na vida, acontecendo, e
assim conhecer a linguagem de Deus, com os homens da história passada, de hoje e de
sempre.

A educação que recebi em casa era muito distante da educação cristã familiar. Praticamente
não possuía, nem conhecia a religiosidade do povo. No grupo de jovens da Pastoral Nipo-
Brasileira, eram levantados problemas que o nissei encontra na sociedade brasileira, por ser
oriundo de família japonesa. Isto eu vivia, analisava com os companheiros, mas não era o
forte, não era meu lugar.

Um dia Nenuna telefonou para a casa e convidou-me para vir a uma reunião, em que iam
conversar sobre evangelização do povo de rua. Tive receio, insegurança, mas não duvidei. Lá
estava eu, com um grupo de pessoas que não conhecia, num velho casarão, à Rua Florêncio
de Abreu, 111. Da reunião, entendi que íamos começar aos domingos a receber neste casarão
as pessoas que vivem nas ruas para rezar, cantar e ir-se reunindo em comunidade. Formou-
se um grupo e eu dei o meu nome, pois queria conhecê-los, queria ver de perto, sentar ao lado
para rezar com aquele homem sujo, rasgado e meio doido; saber o que ia passar na minha
cabeça, no meu coração e enfim em todo o meu corpo.

Domingo, o povo ia chegando, simples, humilde, manso, sorrindo, com a sacola nas costas e o
chapéu na mão. O pé inchado, o rosto também, a calça suja; da camisa não se sabia qual
teria sido a sua cor. Cumprimentava as pessoas conhecidas, como Fortunata, e sentavam ao
serem convidados. Meu coração suspirou: Meu Deus! Meu Irmão!

O tempo passava, a vida acontecia e revelava outro mundo, outra gente, outra cultura, outra
garra e outras lutas. Ouvia os cantos populares e dava evasão ao gosto suspenso dentro de

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mim. E também as celebrações onde Genaro levantava-se e com os olhos brilhantes dizia:
‘Louvado seja o Novo Senhor! Só de ouvir o nome de Jesus já fico contente’; ou aquela do
primeiro domingo depois da Páscoa, quando Corisco chega e encontra seu irmão no meio a
celebração, no momento em que cantávamos ‘A paz esteja convosco’; ou a hora em que um
homem se levanta e pergunta se para ele há perdão, pois havia matado um homem na rua;
ou ainda o Geraldão, um maltrapilho sujo, sempre de roupas rasgadas, parecendo até meio
doido, com a boca desdentada, comentando a leitura do evangelho de Emaús: ‘É! Jesus gosta
de fazer surpresas!’ Nisso tudo estava encontrando o meu lugar e conhecendo novos irmãos
na caminhada do ‘povo de Deus’.

Neste meio tempo começou a mudança da OAF: da assistência para um movimento com o
povo, surgindo dentro de mim a exigência para uma ação. Uma ação que se comprometesse
com Deus e seu povo para a libertação. O seu povo vive oprimido, numa pobreza miserável.
‘Mas Deus não quer isso, não!’ O Espírito age e tudo fica claro. Vinho novo em odres novos.
Não dá mais para olhar para trás. Minha família, meu ideal, minha vocação: tudo precisa ser
claro. Meu ideal não estava nos valores, nos ideais de minha família e sim nesta família à
qual pertenço desde pequena ao ser batizada, ou seja, a Igreja. Veio a separação, árdua,
difícil.

Impossível meus pais entenderem: sabiam apenas que eu sempre gostei de pobres e da Igreja.
Mas daí aceitarem que eu precisava sair de casa... Usei de estratégias para amenizar a saída.
Fui morar em Cuiabá com uma amiga da Casa de Oração, como desculpa de por lá, quem
sabe, arrumar melhor emprego. Lá conheci outras lutas, como a do posseiro pela terra, pela
água, pela luz, por saúde. A luta do desempregado, cercado pelos políticos...

E minha vocação? Que caminho seguir? De que forma viver este meu compromisso? A
família, um sinal muito forte dentro de mim, era como uma resposta, nesta minha
caminhada.

Depois de vivenciar as experiências em Cuiabá, voltei ao desejo forte de comprometer-me


com a comunidade do povo de rua. Novos espaços deveriam surgir nesta comunidade, o
espaço do leigo engajado, uma vez que o grupo de base são as Oblatas. A comunidade
organizou-se por regiões, com casas abertas para o povo da rua. Não havia nenhuma casa
que fosse de leigos, e morar sozinha não era o que eu desejava. Fui morar com duas Oblatas.
Boa experiência essa de leiga e religiosa morarem juntas. Reunimo-nos para organizarmos
dentro de casa. As obrigações são para serem cumpridas, a partilha e a fraternidade para
serem vividas.

Neste tempo, uma novidade. A simpatia, a amizade, o cainho de amigo que tinha por Aloísio,
cultivado há anos, aliás, desde o começo da minha caminhada com este povo, transformou-se
no Amor.

Aluísio, que encerrou o seu ‘trecho’ no início da Casa de Oração, também cultivou dentro a
amizade, o carinho, durante estes anos, juntamente com as alegrias e tensões de rever os
familiares que há muito não via, ou com as dores de uma saúde abalada e as esperanças de
pôr fim à bebida e recomeçar uma vida estável. Em São Paulo, interrompeu o seu ‘trecho’,
vivendo a revelação do Amor.

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Comprometi-me a dedicar-me à comunidade do povo de rua, durante dois anos. À medida
que a vida acontecia fui percebendo que a gente não limita o tempo do compromisso com
Deus e com o seu povo. A vida é mais forte do que o tempo. O amor e o compromisso
envolvem-nos em vista de uma realização. Isto se torna mais claro, agora, que me vejo
assumindo a vida em sua totalidade, ao lado de Aloísio, cujo caminho é dos pobres, que luta
pelo seu dia-a-dia e põe toda a sua segurança e proteção apenas em Jesus Cristo, Nosso
Senhor! ” (Amélia)

Casa de oração: semente de uma comunidade

As palavras de Dom Paulo ecoavam em nossos ouvidos – ponham Puebla


nas ruas do centro da cidade – juntamente com o clamor do povo da rua.
Aceitamos viver o desafio numa Igreja dos Pobres, cm o povo da rua, com esses
homens explorados, sem esperança, sem projeto de vida, entregues ao alcoolismo e
a violência. Nã o é preciso descrever novamente a situaçã o. Ela nã o somente
permanece, como se agrava com o passar dos anos, como ú ltima consequência
geral do empobrecimento do povo.

Contemplar esta realidade, sem fantasias, perscrutar, na oraçã o e no


estudo, as possibilidades que se abrem à novidade que pretendíamos – este era o
trabalho do momento. Mas, agrupar o povo da rua em comunidade? A utopia
mostrava-se demasiado distante da realidade. Todos a contestavam.

Para os primeiros passos foram precisos toda a teimosia e um pouco da


irracionalidade da fé. Entendemos que deveríamos começar facilitando os
encontros, para ajudá -los a ver-se como um grupo social, e nã o apenas como
indivíduos sofredores. Ajudá -los a criar seu espaço, tanto dentro da Igreja quanto
na sociedade. Na Igreja, onde seu “lugar” significa dormir nos ú ltimos bancos e
receber uma pequena esmola antes de ser enxotados para nã o molestar os fiéis. Na
sociedade, onde seu lugar significa “um canto” despersonalizado e humilhante nas
poucas e sujas instituiçõ es de assistência sociais.

Nã o passa pela cabeça do povo da rua que possa haver um lugar para ele
participar da comunidade de fé e vida!

Durante a Quaresma, quando a Igreja nos chama de modo mais veemente à


conversã o, em preparaçã o à Pá scoa, Sã o Bento também nos convida a uma
preparaçã o maior, “neste tempo santo” oferecendo a Deus com alegria do Espírito
Santo algo além da medida estabelecida... E na alegria do desejo espiritual esperar
a Pá scoa.

O tempo é propício. Nó s já pensá vamos em uma açã o comum, missioná ria.


Decidimos viver entã o a Quaresma mais intensamente na rua, e lá preparar e viver

81
com o povo, a cerimô nia da morte e vida do Senhor e nossa. Está vamos no ano de
1978.

Durante quarenta dias todo o tempo livre de que dispú nhamos, fora do
trabalho habitual, saímos uma com as outras ou sozinhas, ao encontro dos irmã os.
O tempo, a hora, nã o importava; o essencial era procurar Jesus-pobre, estar com
ele.

Esta vivencia comum era colocada no coraçã o do Pai quando nos


juntá vamos para rezar. Quanta morte à espera da vida, da Pá scoa.

Neste meio tempo, fazíamos os preparativos materiais. Uma igreja do


centro, a de Santa Efigênia, emprestou-nos um salã o para reunir-nos e celebrar.
Fizemos uma folha de canto. Pensamos no lanche que foi comprado com nossas
economias, com a nossa “quaresma”: também na pequena cruz, dada como
lembrança, e que provocou tanta emoçã o e até lá grimas. Na Sexta-feira Santa, todas
reunidas, recebíamos o pessoal. Veio bastante gente, nã o o que convidaríamos
durante a quaresma, mas os que encontramos nos ú ltimos dias nos jardins e
praças. Alguns padres participaram da Assembleia; um deles presidia a celebraçã o.
Foi muito forte sentir palpavelmente o que todos sabemos: o quanto a paixã o de
Jesus está arraigada nos sentimentos do povo, por ser nã o só a ú nica explicaçã o ao
sofrimento dos inocentes, como também esperança de reviver um dia. O mais forte
é isso: “Se Jesus sofreu, nó s também devemos sofrer”.

Entretanto, levantou-se um pobre no meio da celebraçã o e nos interpelou


– exigia uma explicaçã o em relaçã o a todas as injustiças que vinha suportando, sem
culpa alguma. Nã o tivemos resposta. Resposta pessoal nã o havia. A Assembleia
ficou dispersa, difícil de continuar. Um dos amigos deu-lhe o pouco que tinha: sua
compreensã o, sua palavra e uma larga conversa, em outra sala...

O povo todo, e especialmente este homem, encarnavam claramente,


naquele dia Santo, a Vítima, o Sofredor.

Este foi o recomeçar de nosso encontro livre com o povo. Livre porque o
assistencial deixava-nos sempre com escrú pulos: parecia que trocá vamos Deus por
pã o; e deste modo nã o está vamos à vontade.

Assim começamos a Casa de Oraçã o. O encontro fraterno de todos diante


do Pai. Mas, sem casa ainda.

Da Quaresma até o final do ano nos empenhamos em procurar um lugar


onde pudéssemos acolher e reunir o povo da rua para viver a fraternidade, sinal do
Reino. Um velho casarã o no coraçã o da cidade, coma entrada larga, salas amplas,
um bom quintal, foi-nos emprestado pelos monges beneditinos. Melhor impossível.
Nossa Senhora, amiga dos oprimidos, fez-nos este obséquio. No dia de Nossa

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Senhora do Rosá rio, sete de outubro de 1978, recebemos a chave dos monges. Uma
chave antiga de ferro, com mais de 15 cm de comprimento, bonita, simbó lica.

Já tínhamos lugar para reunir a Igreja dos Pobres. Ocupamo-la tal com
estava, sem pintura, sem qualquer melhoria.

Começamos as reuniõ es de cada domingo e os encontros missioná rios


algumas vezes no ano. Depois daquelas missõ es no Recife com Pe. Igná cio - já
passados vinte anos - nunca mais havíamos reunido em grande nú mero o povo da
rua. Era chegada a hora de o grupo abrir caminhada para a vida, com o povo
sofrido.

Creio que Deus reserva coisas novas para o Seu Povo

“Ao ver a opressão de meu povo numa cidade onde as pessoas chegam ao aniquilamento sob
viadutos e calçadas, desejei muito que o ‘mundo de Deus” acontecesse. Que eu pudesse ver
que era possível nesta situação a libertação anunciada por Jesus, onde o pequeno acreditasse
no pequeno e as injustiças fossem denunciadas. Mas como acontecer isso a partir do próprio
povo esmagado? Vejo nisto um grande desafio de fé. Sei que Deus reserva coisas novas para
seu povo. Uma destas coisas novas foi ver o povo sair à rua com consciência de comunidade.
Comunidade de sofredores em busca de libertação, onde avida é posta em comum, onde se
buscam direitos, a vida se faz oração e a Boa Notícia é anunciada aos pobres através da
comunidade dos pobres. Muita gente não acredita ou não sabe da organização do povo da
rua. Este povo tem direito à sua comunidade. É o próprio Deus que o exige, pois Ele está ao
lado dos ‘últimos’, dos oprimidos. Gostaria que essas comunidades se multiplicassem pela
cidade. Grupos onde o pobre recebe o pobre, onde aquele que é tido como ‘crônico’,
experimente sinais de libertação na caminhada de comunidade, onde o modo de viver
denuncie nossa sociedade que marginaliza.

A comunidade do povo da rua não se limita ao local onde se reúne. Faz-se presente na rua,
levando a outros companheiros a sua proposta, como também na cidade, denunciando a
situação de pobreza em que foram deixados, seu estado de extrema miséria. Vejo que é vital
para a própria comunidade estar em sintonia com a realidade, viver a solidariedade como
anúncio do mundo igualitário, ver a Bíblia como o livro do oprimido, onde se encontra um fio
condutor que revela o rosto de Deus libertador e salvador. Para isto o agente deve usar uma
pedagogia que desperte a consciência do povo e possibilite um espaço de criatividade.

Dentre as formas organizadas de estar presente na rua, podemos citar algumas: teatros,
celebrações, passeatas e Missão. O teatro – Aqui dá para se ver o crescimento do pessoal. As
discussões, os ensaios, o próprio conteúdo do teatro falam de um mundo vivido e
experimentado. O grupo vai percebendo como é importante estar junto e ler a realidade de
forma crítica. Vendo-se como comunidade, toma consciência de sua identidade. A partir disto
tem sentido levar uma peça à rua, pois sabe e acredita no que transmite, a ponto de
despertar em outros companheiros o desejo de conhecer que grupo é este que fala de seu
mundo, do lugar do pobre. No geral as peças evocam situações vividas na rua e suas
consequências principais, a saber: desemprego , falta de moradia, baixos salários, violências,

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bebida e a fome de cada dia. E afirmam também que o povo não se deixa vencer, e começa a
resistir.

Outra função do teatro é de manter contatos com outras comunidades. O grupo percebe que
não está só, que outros estão na mesma luta e do nosso lado.

As celebrações. Elas têm sido um ponto forte da comunidade. Aos domingos o povo se reúne
na Casa de Oração e ai tem um momento de oração comunitária. Os grupinhos apresentam
nesse momento as reflexões, lê-se o Evangelho, e depois fazemos orações espontâneas.
Admira-se ver com que fé o povo faz sua oração, com que sensibilidade se refere ao
sofrimento alheio por ter vivido a dor na própria carne. Reza-se o Pai Nosso com profundo
respeito. A celebração, cujo esquema não é fixo, pode-se dar também na rua: é o momento
onde toda a comunidade mostra sua força no anúncio e denúncia. Os grupos da rua
celebram seus mortos, acreditando que Deus não quer a morte prematura de seus filhos, que
a vida tem que ser defendida.

Rezar com o povo que sofre tem sido para mim um chamado à conversão, uma graça de
Deus.

A Missão. O momento forte de cada ano congrega todas as forças do movimento do povo de
rua. Durante quatro anos a Missão aconteceu no velho casarão da Florêncio de Abreu, até
que em 1983 foi na rua, no local da antiga rodoviária do Glicério. A partir da rua, a Missão
vai ganhando importância em sua dimensão pública e política. Suas repercussões ainda são
imprevisíveis. Mas o povo vai revivendo a sua cultura guardada em sua memória histórica.

Durante a Missão a gente nota esta sintonia histórica. O povo falando como está sua vida.
Por um lado não é fácil tomar consciência da própria opressão. Mais fácil é alienar-se ou
dar-se por vencido. Por outro lado esta consciência é básica para a busca de mudança.

Eu e meu grupo catamos papelão, sobra de feira e móveis usados com vistas a arrecadar
fundos para a Missão. Estudamos as denúncias e reivindicações a serem feitas na cidade.
Junto do povo vou percebendo que existe um clamor que deve acontecer, quer ecoar pela
cidade e incomodar. Ultimamente, a presença dos pobres nas ruas tem incomodado muita
gente, que procura até eliminá-los.

Apesar do sofrimento, o povo vive a Missão também como festa. A própria união dos
sofredores é motivo de grande alegria para todos, pois a libertação começa por aí. Unidos
para sentir-se povo, para adquirir força.

Passeata. Em cada passeata que fazemos vejo a pobreza desafiando os ídolos da opressão.
No dia Sete de Setembro de 1983 éramos 500 pessoas cantando, levando cartazes e gritando
frases como ‘Somos Um Povo Que Quer Viver’ e ‘Queremos Ser Tratados Como Gente’. No ano
seguinte, na Sexta-feira Santa, houve uma caminhada que teve seu ponto de partida no local
onde o menor Joílson foi morto. Cada passeata significa também uma vitória sobre a censura
interna que o pobre costuma exercer, na qual se via como iletrado e incapaz de se organizar.
Sinto gosto de estar com o povo nas ruas, carregando seus cartazes e cantando os cânticos
de todas as comunidades. Ganhamos confiança e passamos a acreditar na esperança que
resta.

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Mas acreditar em tudo isto exige de mim um ato de fé a cada dia. Com este povo tenho
apreendido a renovar a minha fé. Uma vez, um rapaz da rua me dizia que sofrer mais do que
já havia sofrido era impossível. Para ele, viver era um ato de fé e teimosia. Fé e teimosia de
que Deus é Pai e vai libertar. Então, vi que o oprimido ensina a arte de resistência.
Resistência frente à opressão e insistência da partilha do pão. Assim tenho conhecido a face
de Jesus”. (Roberval)

Na minha experiência, Deus se faz presente na alegria.

“Na vida há muitos momentos em que a gente sente a presença de Deus. Nestes anos
em que estou na comunidade das Oblatas, desde 1968 até a presente data, sempre
ouvi o povo comentar acerca da nossa alegria. Tem sido um testemunho constante
saído da boca de muitas pessoas da rua. E o que é a alegria? É um sinal de paz, e a
paz é verdadeiramente presença de Deus. Ouvi muitas vezes dizerem que todas nós
temos um dom da alegria, e que por isso se vê que a gente tem Deus e dentro de si.
Nas ruas da cidade há muita tensão. Por isso muitas vezes saímos à procura de
alguns, que sabíamos estarem tristes e abatidos pelo peso do sofrimento. Chegamos
com saudação simples: ‘oi como está você? Vamos bater um papo? Para logo
começar uma conversa que desanuvia as tensões. Inúmeras vezes, ao chegar debaixo
de alguma marquise para festejar um aniversário, a gente cumprimenta e festeja, vê
que aquela alegria contagia. ‘dá força na gente’, comentam.

Nos nossos encontros para as festas de aniversário a alegria é o ponto forte.


Celebrando a vida com a comunidade, canta-se expressando de muitos modos a
alegria de viver. Em outras ocasiões, sento-me com o violão, nas escadarias da
Catedral. O pessoal da rua vai chegando e sentando junto. Todos gostam de cantar, e
sempre há voluntários para o violão. Cantos antigos cheio de saudades, cantos mais
novos despertando para a luta pela vida. Até rodas de dança se vão formando. Basta
pouco para o povo deixar de andar disperso, reunir-se e fazer a festa.

Vivemos bons momentos nas noites da Praça da Sé! Um ponto referencial para a
cidade, e também para o renascimento do povo de rua.

Ser alegre é um dom de Deus. A alegria dá para amolecer muitos corações. Às vezes
pessoas amarguradas, revoltadas, mudam diante de um sorriso, por um canto, por
serem recebidas com cordialidade. Nunca me esqueço daquele moço com o coração
cheio de vingança, querendo descobrir quem tinha feito um mal na sua família para
retribuir o fato. Estancou-se aquela revolta que trazia. Ficou ali, cantando conosco.

A gente procura servir, atendendo aos pedidos, seja com música popular, seja com os
nossos cantos da Casa de Oração. Na Casa de Oração nunca faltam momentos de
alegria, faz parte da vida! E sempre os cantos, tanto na brincadeira como na oração.
Cantamos nas passeatas, para manifestar que povo quer viver, que Deus está
presente e quer a vida para todos. É bem certo o provérbio: ‘quem canta seus males

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espanta’. O mal não é presença de Deus. O mal, na rua, é o desânimo de viver, é o
desejo de vingança, de sangue, é desacreditar dos irmãos de sofrimento, de luta. O
canto nos ajuda a transmitir a força e o amor. E na hora em que levamos alegria,
recebemos também.

Cantos, alegria, sinal da presença de Deus no meio do povo. ‘o povo de Deus no


deserto andava, e nos seus louvores, Seu poder proclamava!’ Amém!” (Fortunata)

E Jesus fez os discípulos repartirem o pã o

“É o fim de feira. O movimento é intenso. Caminhões, carregadores, um homem ainda


grita, tentando vender seu produto. Aí chegamos nós, com o nosso movimento. Latas,
água e muita pressa para ainda aproveitar o que tenha sobrado, sejam frutas
verduras, e não importa se é catado no chão ou ganho de algum feirante. Começa o
dia da sopa comunitária.

Tudo se iniciou com o desejo de aprender, ir até onde está o povo, usar os meios que
são do alcance e do costume de quem não tem onde morar, e por isto não tem lugar
para preparar sua comida.

Para apreender é preciso despojamento, pois os meios são rudimentares e precários


(fogo de lenha ao pé do viaduto). Mas catar restos nas feiras, ‘queimar uma cascuda’
(cozinhar na lata, no fogo de lenha) ao pé do viaduto, muitos realizam. Onde está a
novidade?

A novidade está na reunião de muitos, na experiência de fraternidade. A nossa


presença torna-se um vínculo e com o tempo faz-se um ambiente alegre, onde sem
muros, sem chaves e sem filas, se reparte o que se fez junto, até com o último que
chega. ‘A um peregrino não se nega água nem comida’.

O espírito de solidariedade é transmitido no serviço, na disponibilidade de fazer algo


para que tantos outros se sintam bem. Diante da realidade, estes momentos parecem
sem significado, mas são gestos de busca, de tentativa de estarmos mais próximos e,
por que não, de partilha. Enfim, é a nossa contribuição para a edificação do Reino”.
(Regina Maria)

Catar papelã o: participar da vida do povo

“Assumi como trabalho catar papelão junto com outros que participam da
comunidade, à fim de incentivar a realização de um trabalho organizado
comunitariamente. Juntos, saímos pelas ruas do centro da cidade, enfrentando toda a
dureza que este tipo de serviço traz.

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Para ganhar tão pouco, sacrifica-se muito. Puxando a carroça a gente desce,
enfrenta a loucura do trânsito e a impaciência dos motoristas com a nossa presença
entre os carros, colocando em perigo a vida. É a chuva, o frio, a fome, o peso da
carroça, a sujeira: para separar algum papel temos que colocar a mão em tudo o que
é lixo, nos sacos de papel higiênico, restos de comida, cacos de vidros... A humilhação
a que nos submetem as pessoas, que pensam ser incômoda a nossa presença nas
portas das lojas e dos prédios. Olhares de desprezo de alguns, piadinhas maldosas de
outros. É assim que muita gente vai tentando sobreviver: são também mulheres,
jovens, crianças e até velhos os que hoje enfrentam esta realidade.

A cada dia vou vendo com mais clareza que o povo vive uma vida que Deus não quer.
Juntando-me a eles, que não tiveram outra escolha de vida, vou encontrando a forma
de ser coerente com a opção que fiz: viver ao lado dos mais desfavorecidos; viver o
Evangelho de Cristo, bebendo na fonte onde bebe o povo, alimentando a própria fé,
vendo que, apesar de tanto sofrimento, o povo ainda tem esperança e quer viver.

Ao mesmo tempo que se mergulha nessa convivência, gente vai cultivando o senso de
justiça, igualdade e fraternidade, seja na hora de dividir o serviço, separar, guardar,
telefonar para o depósito onde fazemos a venda.

Para alguns sofredores, a minha presença entre eles é motivo de espanto e


admiração. Para outros é estímulo e até mesmo um testemunho, uma revelação de
Deus.

Mas fazer-se pequeno ao lado dos pequenos é uma opção. Embora custe, dá um
sentido de liberdade diferente: a gente não fica mais presa às normas sociais,
aprende a andar livremente na cidade, o que próprio dos que estão na rua: vivem
uma liberdade muito grande, andam pelo Brasil inteiro, parando mais tempo onde as
coisas lhes resultam melhores. Carregando o mínimo de bagagem, aprendem a viver
andando. Nesta contradição de liberdade-opressão, livram-se do peso da censura
social e cultivam a sabedoria que a experiência da vida lhes ensina. Também eu vou
fazendo este aprendizado dessa liberdade, tornando-me capaz de viver nos mais
diversos ambientes da sociedade, sem me importar tanto com as críticas que possam
ocorrer.

Por estar estudando em um período do dia, e no outro, participando de outras


tarefas da missão, faço do catar papelão também um meio de ter dinheiro para os
gastos pessoais; é o modo que tenho de colaborar na Fraternidade da qual participo,
e onde se vive do próprio trabalho.

Na caminhada que tenho o privilégio de fazer, vou vivenciando momentos vitais


para a minha vocação, que me dão coragem para me entregar à luta pela libertação
integral de todos os homens, como Deus quer”. (Roseli)

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Que Nossas Casas Sejam Casas Do Povo

O compromisso assumido com os sem-casa nos levou a buscar novas


formas de encontro com este povo, seja na rua ou nas pequenas comunidades.
Exigiu de nó s conhecer a realidade da Rua, que fizemos nã o por estudo ou
observaçã o, mas colocando a nossa pró pria vida junto à do povo, aprender na
“Escola do Povo”. Nó s nos dispusemos a transformar a realidade da rua,
convivendo, partilhando, descobrindo as formas de sobrevivência, a luta e os
valores do povo no seu cotidiano. É uma experiência da nossa pró pria vida e que
nos tem facilitado encontrar novos caminhos de açã o e transformaçã o da
realidade.

Nesse momento, a vontade do Senhor pareceu-nos ser que nó s, as Oblatas,


nos dividíssemos em pequenas comunidades, situadas no centro da cidade. Cada
casa aberta ao povo seria uma base para a formaçã o de comunidades com
sofredores da rua. E assim fizemos, confiando mais uma vez na inspiraçã o que
vinha como resposta à s necessidades do povo.

Uma casa deste tipo já havia sido começada. As que está vamos no Brá s se
dividiram: um grupo ficou ali mesmo, as outras em duas novas casas, sempre
rodeando o centro da cidade.

Uma “casa aberta” no centro de Sã o Paulo nã o é coisa fá cil. Significa


fisicamente uma pequena casa, simples, de fá cil acesso aos que vivem nas ruas. Foi
preciso pedir muito a Deus que nos mostrasse os caminhos que nos levariam a
elas, enquanto vasculhá vamos os bairros velhos da cidade.

Cada casa que encontrá vamos era uma festa; como que um
reconhecimento de que Deus nos abençoava. Se há uma coisa que nã o posso deixar
de agradecer é aquele princípio que Pe. Igná cio nos deixou de nã o possuir bens
imó veis. Isto nos tem dado grande disponibilidade em relaçã o à missã o. Agradeço a
Deus esta pobreza, que nos permite liberdade no coraçã o e também na prá tica.

No desafio da rua, encontro-me com Deus.

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“Preciso viver desafiando minhas fraquezas, viver desafiando o que os homens
pensam. Viver desafiando a miséria e fragilidade do povo sofredor da rua, para nisso
tudo, sentir Deus.

Colocar as minhas forças ao lado do povo que vive na rua, percebo que, diante do seu
sofrimento, de nada sou capaz. Apenas consigo descobrir que sou medroso, fraco e
necessitado. Feita sempre esta constatação, só me resta clamar por Deus, e no vazio
da ansiedade, descubro a sua presença.

Devo ser solidário com o povo que sofre. Acredito num Reino de Deus onde a Justiça, o
Amor e a Dignidade Humana são partes da lei. O compromisso com os sofredores e a
fé no Reino, a ansiedade pela libertação, exigem que eu acredite e busque uma vida
comunitária com o povo que vive na rua. Sim, no meio deste povo maloqueiro,
violento, explorado, amigo e sugado por todos nós (sociedade), parece impossível, no
entender dos homens, nascer uma comunidade fraterna. Aí está o desafio que só será
possível enfrentar com a participação de Deus.

O desafio está também no conhecimento da realidade, na experiência de algumas


situações que o povo vive. Estas violências nos ajudarão a não fazer abstrações no
entendimento da realidade, a saber: a medida mais exata da miséria e da
desigualdade sofrida pelos homens de rua.

Nas vezes em que fui dormir na rua juntamente com o povo permitiram-me viver,
transmitir e receber solidariedade. Na rus sou o ‘forte que se torna fraco’ e recebe
proteção daqueles que ali procuram acomodar-me, enfrentando dificuldades e riscos.
Apesar de toda convivência nas atividades (sopa, catação de papelão, reuniões), o
povo tem recebido com bastante alegria e surpresa a minha chegada para dormir
com eles, pois se apresenta uma nova ordem de valores. Logo vão dizendo que posso
ficar tranquilo, pois não vai haver briga, nem confusões: querem ceder o melhor
canto para eu dormir, papelão para forrar, coberta para cobrir e sempre vêm com a
preocupação se não estou com fome. Como é costume entre eles, nestes dias em que
durmo, também ficou uma pessoa acordada para dar proteção necessária ao grupo
que dormia.

Com a experiência do carinho e da fraternidade do povo sofredor partilhamos um


pouco da revelação de Deus verdadeiro que está ao lado dos mais pobres. Na rua, o
medo e a insegurança me fazem perguntar e clamar por Deus. E a isso ele responde
exigindo meu compromisso na luta do povo que sofre e é explorado. Nossa busca deve
ser permanente e os anseios abrirem-nos caminhos, nunca definitivos, mas sempre
pleno de esperanças. Viver a liberdade é imitar os discípulos de Jesus Cristo à partir
da situação política e econômica da sociedade marginalizada, ter fé e compromisso
para a construção do Reino de Deus”. (Luiz)

A palavra de Deus, aqui e agora.

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”Eu caminho junto com esse povo sem moradia, sem família, sem identidade, com
marcas tão fortes estampadas no rosto, de tantos anos de duro sofrimento vividos
nas ruas. ‘O Filho do Homem não teve onde repousar a cabeça’. Bêbado, sujo,
maltrapilho, dormindo na calçada. Alguns nos olham, outros passam longe, com
medo, ou talvez com nojo. Mas eles são nossos irmãos. ‘Os filhos prediletos do Pai’.
Quando os vejo catando papelão, catando restos de feira, vendendo caixotes,
reconheço aí uma luta pela vida, um sinal de esperança. Ultimamente, o que sinto
mais forte neles é o desejo de moradia, de um lugar onde guardar suas mochilas,
onde tomar banho, fazer sua comida. Pelo centro da grande cidade existem muitos
casarões e casas abandonadas. Em geral trata-se de espólio com problemas jurídicos
ou de imóvel de proprietário desconhecido, ou pertencente à Prefeitura Municipal;
sempre é muito difícil o entendimento com os donos.

‘A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram suas
as coisas que possuía: com grande coragem... Não havia entre eles nenhum
necessitado, porque todos que possuíam terras e casas... Repartia-se então a cada um
deles, conforme a sua necessidade’ (Atos 4, 32 -35). Apoiando o desejo deles e seu
legítimo direito de ter um teto, por mais simples ou pobre que seja, partimos com eles
e lhes damos a nossa força para a ocupação dessas casas e casarões, correndo
sempre o risco de um não, de expulsão, de intervenção da polícia.

Com as nossas casas abertas, a disponibilidade em atendê-los e o pouco trabalho que


arranjam, muitos passam pelas nossas moradias para conversar, para nos ver, levar
alguma coisa, dar notícia de alguém que está doente ou morreu, ou mesmo para
sentar, tomar um copo de água e descansar. Nas conversas contam como chegaram à
rua, como se sentem, as saudades da família que deixaram faz dois, cinco, dez anos.
Vejo como muito importante o contato com a família. ‘Não quero ver minha família
no estado em que me encontro, nem quero que eles saibam’. Á força de dizer-lhes que
o mais importante para a família é revê-los ou ter notícias, alguns dão o endereço. De
todas as partes do Brasil. É difícil expressar num papel a alegria e a gratidão dos
familiares! E os nossos amigos da rua também se sentem mais seguros ao saber que
ainda são lembrados e amados.

‘Não fostes vós que me escolhestes, mas fui Eu que vos escolhi’.

Nestes anos de vida religiosa vivida entre os irmãos mais abandonados, muito se fez e
muito ficou por fazer, talvez por falta de correspondência da minha parte, também
por falta de gente. Por se tratar de uma vocação especial, poucos se apresentam;
outros começam, mas depois as dificuldades pessoais levam-nos a outra opção de
vida. Os pobres, porém, esperam que os ame. ‘Se não maus, é porque ninguém ainda
os amou’ (Pio XII).

Na vila onde moramos residem outras pessoas que também fizeram opção pelos
pobres, mesmo casados ou pertencendo a outras congregações religiosas. Quando
nossos visitantes não os encontram, bate em qualquer uma dessas portas, pois sabem

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que aí são recebidos da mesma forma. Ultimamente houve uma nítida mudança na
atitude dos vizinhos: os pobres, que antes assustavam e os levavam a fechar as
portas, agora são cumprimentados e muitas vezes atendidos”. (Isabel)

Na saúde ou na doença, me comprometo com o povo.

O convívio com o sofrimento junto ao povo que vive nas ruas tem sido uma
constante em nossas vidas. A falta de recursos se faz sentir mais forte quando a pessoa, já
sem nada na rua, adoece. Nã o há condiçõ es de internaçã o, de ambulató rios, de
tratamentos. É humilhado nos pronto-socorro, sã o lhes negado internaçõ es por considerar
a doença do homem que nã o tem casa um problema social. Recusam, assim, um
atendimento mínimo que o livraria de ter que morrer sozinho na rua. Diante da doença de
duas Oblatas, membros da Equipe, esta realidade foi um questionamento para nó s: como
viver a opçã o de convivência e partilha nesta nova situaçã o de limitaçã o física?
Confessamos que a distâ ncia acontece. Temos uma casa, temos INSS. Foi necessá rio
descobrir novas formas para manter o ideal de participaçã o e convivência.

Adaptamos os trabalhos, a casa, de forma que pudéssemos continuar sendo uma


‘porta aberta’ de acolhimento ao povo, permitindo assim a participaçã o mesmo na doença.
A experiência era nova, nã o só para os que estavam doentes, as para todos que se achavam
comprometidos com o trabalho. Assumimos este caminho doloroso, na oraçã o e na
amizade. Enfim, fazer da vida um ‘dar a vida plenamente’. Para todos, sem dú vida, tem
sido um tempo forte e marcado pela busca de fidelidade no compromisso com Deus e com
o povo, mesmo nas limitaçõ es físicas.

Mesmo doente faço de minha fraqueza, força.

“Faz oito anos que fiquei com muitas limitações físicas devido a doença. Não pude mais
acompanhar o ritmo da nossa Fraternidade. Permaneço no grupo, porque acredito que Deus
é misericórdia. Faz da nossa fraqueza, força. Da nossa pobreza, fonte de riqueza. Se Deus me
deu limitações e quis que permanecesse assim, é porque isso é útil ou necessário. Talvez até
mais importante do que se eu pudesse estar na ação. Recebo e converso com o povo que vem
em casa, faço serviços de casa, escrevo, leio. Rezo com a comunidade, acompanhando a todos
na Casa de Oração. Onde moro, converso com os vizinhos; as crianças sempre estão por perto
e conversar com elas é sempre motivo de alegria. Muitas vezes as ajudo nos estudos, nos
deveres da casa.

Uma coisa que me veio pela doença, foi saber valorizar as pequenas coisas, os gestos, e
compreender melhor os fracos, os que aparentemente nada têm para dar. Sinto muito bem
isso quando visito os doentes no SAR (hospital estatal para indigente). Agora estou com os
olhos mais abertos para o sofrimento do irmão. Também mais sensível aos gestos de amizade
e compreensão de todos, principalmente daquelas que comigo formam um Fraternidade.

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Hoje não tenho nada para oferecer a Deus. Ofereço ao Senhor a minha vida, nas fraquezas,
dependências, limitações e sacrifícios”. (Maria Jú lia)

“Quantas vidas eu tivesse, tantas vidas daria.”

“Vim do Uruguai com a idade de vinte e cinco anos. Penso que somente naquela época pensei
um pouco no meu futuro. Imaginava trabalhar muito, até mais ou menos quarenta e cinco
anos, que me parecia o máximo de vida útil! E depois, ter mais tempo para rezar. Supunha
que iria envelhecendo naturalmente, e que no fim da vida ficaria no meio do povo, fazendo
trabalhos simples, como vender verduras com um carrinho, andando pelas ruas, com tempo
bastante para estar com as pessoas, para conversar da vida e de Deus.

Estas ilusões logo caíram e nunca mais deu para pensar em coisa semelhante. A atividade, a
reflexão em cima dela, empolgou-me de tal modo que não tive mais ideia sobre o futuro
pessoal.

A missão, entendida comas Oblatas e na Fraternidade maior, tem sido a minha vida. Muitas
frases do Evangelho, ou então aquelas que o Pe. Ignácio transmitiu, me tem acompanhado
nesta vida. Num período é uma que predomina, em outros, são outras que iluminam o
caminhar. Mas uma delas está presente: ‘Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, ele
fica só, mas se morrer, ele produz muito fruto’.

Esse ‘muito fruto’ é um desejo que trago dentro de mim como responsabilidade para o grupo
e para a Missão. Entendia que deveria dar a vida para que isso acontecesse; em outras
palavras, trabalhar com gosto ou não, casada ou não, mesmo em situações com perigo de
vida. Se o martírio não chegasse com a máxima expressão de meu amor, deveria viver
heroicamente no dia-a-dia. E assim, entre o entusiasmo e algum sacrifício, fui levando a
minha vida até os cinquenta e três anos. Mas de repente vi-me às voltas com uma doença
grave (câncer). Não me ocorria ainda a ideia de que passaria a ser uma pessoa doente. Fui
operada e parecia que a vida seguia normalmente; de fato, poucos dias depois, fui
acompanhar a Missão, coordenei algum grupo, continuei as atividades. O tratamento me fez
sofrer um bocado, mas aceitei sem maiores problemas a condição da natureza humana.

A segunda surpresa foi bem maior que a primeira. Ela aconteceu dois anos depois, com a
constatação de que havia metástase nos ossos, e que alguns nervos haviam sido atingidos. A
constatação não era um problema, o pior foram as dores muito fortes, que me obrigaram a
parar. As pernas não respondiam, por mais que eu as forçasse. Fui encontrando alusões em
muitos Salmos a ossos que se quebram. E foi isso que se passou comigo, alguns ossos foram se
quebrando. Eu não sabia que podiam existir dores tão fortes, nem que os ossos pudessem
quebrar-se espontaneamente. O que eu sabia eram outras coisas; que se procurava a união
com Deus na oração, na vida fraterna e no compromisso com o grupo.

E agora? Nem rezar sozinha eu conseguia! Em vez de dar passei a receber; em vez de fazer,
ficar na inativa; ao invés de ajudar os sofredores, ser eu mesma uma sofredora. Custou muito
para eu aceitar esta situação. Não me pareceu um programa muito atraente. Não cabia no
que eu entendia por Missão. Tentei fazer um trato com Deus, o que me parecia ser o mais

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razoável: ou melhor, de modo a poder trabalhar, ou então morrer. Morrer e ver Deus sempre
me pareceu bom. Agora também. Mas parece que o Senhor não entendeu minhas razões,
porque nem fiquei boa e nem morri. Quis realizar outra ideia, que também sempre trago
comigo. Escrevemos nos nossos Estatutos, desde os primeiros, que a doação deveria ser total,
que se assumiria com toda a realidade a vida dos pobres, o que incluía que na velhice se
viveria no ‘asilo de velhos’. Pensei em mudar de vida, deixar fisicamente a comunidade e ir
para os lugares onde fica o povo de rua, vivendo lá com eles. Penso que ainda não era o
momento: O amor das Oblatas é muito grande, mais do que dá para imaginar: não
conseguiram conciliar com este grande amor, o meu desejo de ir para outro lugar, na hora
em que eu mais precisava. De modo que fiquei, por enquanto. Há também o fato de que do
hospital voltei para casa, mas de maca. As possibilidades de fazer alguma coisa prática
estavam, e ainda estão muito reduzidas, quase nulas. Ainda é preciso esperar. Achei
engraçada a oração que me ocorria, e que sempre repetia. Vinha em castelhano: ‘Señor, lo
que haz de hacer, hazlo pronto’. (Senhor, o que tens de fazer, faze-o logo). Depois vi que era a
palavra de Jesus a Judas, na Última Ceia. Jesus também não achou bom demorar demais.

Contudo está demorando. Já vai mais de um ano de doença. Neste ano passei nove meses
inativa: primeiro de cama, depois na cadeira de rodas, agora andando com muletas e sempre
com muito cuidado nos movimentos, para que não se quebrem ainda os ossos.

Ponho-me diante de Deus. Eu, cercada de cuidados, e o povo dele morrendo na rua. Eu,
rodeada de atenções e carinhos, e os filhos preferidos dele na solidão e no abandono. Muitos
amigos da rua têm morrido nestes meses: assassinados, doentes, exterminados na injustiça,
minados pelo alcoolismo...

Bom, penso que não passou um dia, com saúde ou na doença, em que me considerasse
dispensada do serviço a este povo. Nos dias em que não podia fazer nada senão sofrer fui
entrando na minha vocação de Jesus cuja vivência desconhecia: uma contemplação
diferente, a dos sofredores (Jesus, os da rua, agora eu). Uma cruz inativa, que a fé me diz
salvadora. Um dos cânones da Missa diz que ‘Jesus aceitou livremente a paixão’. Tentei então
colocar o coração livremente na paixão, como a semente que morre e produz fruto. É certo
que o enterro é um túnel escuro, e a desintegração da gente um bocado sofrida. Nesses dias
era o único modo de serviço ao meu alcance. Um trabalho espiritual que precisava fazer,
mergulhando no desconhecido.

Outra vocação, invisível, foi aceitar que não era mais tempo de dar, mas receber. Parece fácil,
mas não é, entrar na escola da humildade e fazer-se pequena, com o povo simples.

Mas a vida realiza-se no invisível! As respostas do Senhor se fazem concretas. A primeira


coisa que sucedeu, quando fiquei doente, foi uma quantidade de visitas muito grande, de
todos os tipos. Uma comunicação viva, uma riqueza de amizade, de comunidade, de igreja,
que me surpreendeu. A fidelidade das Oblatas, da família, dos amigos próximos, também me
comove e me faz pensar na força do amor. Porém, à medida que ia recebendo tantas visitas,
com o testemunho de uma oração atual por mim, lembrei o que contam os Atos dos
Apóstolos quando Pedro estava na prisão: ’toda a igreja rezava a Deus por ele’. E por mim
também rezava toda a igreja, desde o pessoal da rua, que vai deixando o meu nome em todas
as igrejas por onde passa para pedir coisas, seguido pelos amigos, e os amigos dos amigos,
até bispos, que têm para conosco atenção e carinho.

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Quando contei isto a um padre que nos visitava, ele interpretou assim: ’Você esta vendo? Seu
trabalho é manter uma comunidade em oração! Confesso que eu não havia olhado por este
ângulo, e que ainda me surpreende esse modo de ver. Meu ‘trabalho’, se dá para chama-lo
assim, foi estar à disposição de quem chegasse. Receber, escutar, agradecer, vincular umas
pessoas com outras. Penso que tudo isso enriqueceu nossa missão e outras vidas também.
Houve oportunidade para muita conversa e troca de experiências com gente de muitos
lugares diferentes e muitos povos deste mundo de Deus. Por seu lado, os sofredores também
‘saíram’ para um mundo mais amplo. Às vezes nos chegam notícias de que a ‘presença’ deles
é viva e pode converter o coração de pessoas que os desconheciam.

Além disso, tenho tentado trabalhar de modos mais concretos. Faço alguns trabalhos
manuais para vender. Sinto a necessidade de ajudar ou, ao menos, de não pesar demasiado
no orçamento comunitário, o que de qualquer modo acontece. A partilha tem sido muito
grande e temos recebido bastante ajuda: mas isso não me descompromete de contribuir,
embora seja muito pouco o que aí consigo fazer e não chegue a constituir uma contribuição
palpável. Estava contratada pela OAF, como serviço remunerado, e a partir da doença, fiquei
na ‘caixa’; mas o que se recebe é metade do salário, e os gastos dobraram. Assumo estes
pequenos trabalhos, não porque me tem faltado alguma coisa, muito pelo contrário; mas
porque penso que o trabalho é uma lei da natureza que Deus criou, e não devemos burlá-la e
fazer só o que se pode.

Outra forma de ajudar a Missão foi escrever. Redigindo estas memórias venho resgatar a
dívida que eu tinha em relação ao grupo de contar a sua história. Nunca teria feito, não fosse
a doença. Depois, talvez, seguirão outros escritos que achamos necessários, estudos e
reflexões sobre o povo de rua, em colaboração com eles. E, se seguir melhorando, voltarei
mesmo à Missão, dar e receber uma força no meio do povo que quer viver.

Assim aqui estamos. Deus é quem sabe do tempo vindouro. Por mim, há muito que não tenho
fantasias quanto ao meu futuro.

E mais! No dia em que celebramos o vigésimo aniversário da morte do Pe. Ignácio, pensei
que poderia pedir a ele para melhorar. Ainda estava de cama, sem perspectiva dela sair. Mas
sentia uma vergonha enorme só pensar em pedir para mim. Nunca o tinha feito! Cofiava na
providência de Deus, na oração dos outros por mim. Nesse dia fiquei imaginando, e percebi
que precisava de ajuda. Sozinha não faria.

Consultei Cristina e Fortunata, minhas companheiras de casa, e elas concordaram em rezar


comigo, pela minha saúde. Começamos uma novena ao Pe. Ignácio, pedindo que meus ossos
se fortificassem. E na próxima vez que fui ao médico tive licença para sair da cama. A festa
foi grande! Fazia meses que não me sentava! Toda a igreja rezava a Deus por mim, e o Pe.
Ignácio deu o toque da graça.

Entretanto, tive que pedir a ajuda das irmãs, pois sem elas nada teria acontecido, pois me
sentia incapaz de rezar por mim mesma” (Nenuca).

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A missão se engaja na caminhada da Arquidiocese

Junto de cada casa aberta, outras portas se abriram. A experiência de


Isabel, na vila onde mora, é a mesma de todos os grupos. Nã o se trata dos “centros
comunitá rios” que também se abriram: estes sã o baseados e assumidos como uma
necessidade bá sica para as reuniõ es, encontros, serviços pela sobrevivência e
organizaçã o de algumas lutas. Trata-se de um crescimento natural, de outra ordem.

Sã o pessoas que, em diferentes graus de engajamento comunitá rio, vêm


morar perto e abrem suas casas ao povo da rua. A este ideal aderem homens e
mulheres, uns que deixaram a condiçã o de sofredores da rua e outros que se
fizeram solidá rios, casais e alguns religiosos. Todos eles moram em casas simples,
cujas portas podem ser abertas sem causar vergonha a quem chega. No caso
específico dos religiosos, esta presença demonstra que começa um novo modo de
estar a serviço na igreja do centro. As portas abertas facilitam uma postura social
mais de igual para igual, realidade que conhecíamos somente na periferia. No
centro, ainda predominam as grandes casas, protegidas por altos muros, que as
separam do povo. A exceçã o da comunidade das Oblatas, eu conheço apenas outra
pequena, simples e a serviço dos cortiços.

Os que se organizam nos casarõ es abandonados, os que têm quartos em


alguma vilazinha ou cortiço, algum vizinho que perdeu o medo dos pobres, os que
pelo Evangelho se fizeram pró ximo, o pessoal da rua que chega... Enfim, cria-se um
movimento de comunicaçã o e de ajuda na batalha diá ria, que estimula a
fraternidade.

A missã o enriquece-se com este movimento, que facilita a uniã o. O pessoal


da rua se humaniza à medida que as distâ ncias sociais vã o se tornando menores e
voltam a vivenciar as simples experiências bá sicas da vida humana. Parece-nos que
esta comunicaçã o e participaçã o de vida, dá sua contribuiçã o para trazer Puebla ao
centro da cidade.

Nã o nos esquecemos de que foi esta a palavra que recebemos da Igreja. O


fato de a comunidade ter um lugar físico, tanto nos centros comunitá rios como na
Casa de Oraçã o, facilitou o Encontro com a Igreja de Sã o Paulo.

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O bispo, sinal de unidade da Igreja, pode visitar estes oprimidos,
interessar-se por eles, tocá -los, falar-lhes. Isto tem acontecido. Muita gente nunca
tinha visto um bispo e pensa ser importante receber sua visita. O ú ltimo dia da
Missã o, quando se faz uma grande procissã o, o bispo espera o povo na praça, é o
momento de forte significaçã o para o povo. Cada vez fica mais claro para nó s como
foi bom renunciar ao esquema anterior e realizar a mudança reunindo-nos em
torno do Evangelho. A comunidade tem agora o seu lugar na Igreja.

Também vai e participa das reuniõ es mais formais, onde leva o seu
testemunho. No centro de Sã o Paulo, grupos de oprimidos, de pessoas da rua e
moradores dos cortiços, vã o se encontrando e falando de seus problemas.
Começam a estudar sua realidade, para transformá -la. Nó s, da Missã o da rua,
também damos a nossa contribuiçã o, trabalhando juntamente com outros agentes
de pastoral.

Enviai os que faltam

De que adianta o vinho novo, se tantos ainda faltam à festa das bodas do
Cordeiro? Ainda faltam muitos oprimidos, mas nosso coraçã o e nossos olhos estã o
atentos a eles. Quando chegaremos lá ? Vá rias vezes fizemos grupos com os
meninos da rua, mas nã o conseguimos reuni-los em comunidade. Temos muitas
amizades com as mulheres da zona de prostituiçã o, especialmente com as do Brá s
e da Luz, mas nã o temos condiçõ es para uma presença permanente de modo a
viver o Evangelho com elas.

Há milhares de sofredores da rua em toda esta grande cidade, que a nossa


açã o nã o alcança. E se continuarmos observando, veremos as estradas por onde
peregrina tanta gente sem destino; veremos as outras cidades, locais onde
ninguém se chega ainda ao pessoal da rua; veremos as crianças, as mulheres, os
homens sofredores, mergulhados numa nã o-vida que Deus nã o quer!

Nã o temos ilusõ es. O nosso grupo nã o passa de um sinal. Nossa oraçã o,


fruto da angú stia de ver os que nada têm, é para que Deus envie outras vocaçõ es
para o serviço do povo mais abandonado.

“Eu sou a videira verdadeira e o meu Pai é o lavrador. Não foram vocês que me
escolheram; pelo contrário, eu é que os escolhi, para que vão e deem muito fruto, e
que estes frutos não se estraguem. Assim o Pai lhes dará tudo o que pedirem em meu
nome. Eu digo isto para que minha alegria esteja em vocês, e a alegria de vocês seja
plena. Isto é o que eu mando: Amem uns aos outros” (Jo15).

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A partir do grande mandamento, aguardamos ansiosamente que o Reino
cresça no meio do povo da rua. “Vem, Senhor Jesus!”

Eu vim para que todos tenham vida

Sã o palavras de Jesus: ele veio aos homens para que todos tenham vida
abundante: veio trazer a vida plena e libertar da morte.

Aqueles que nos sentimos chamados a seguir Jesus, nã o temos outra coisa
a fazer. Como ele, temos que ir aos homens, os mais mergulhados nas trevas da
morte, para anunciar-lhes o Sol da Vida. Anunciar-lhes que Deus cumpre as
promessas de libertar os cegos e os coxos, os presos, os oprimidos, e que poderã o
ver com os pró prios olhos esta Salvaçã o. Foi isto que o velho Simeã o cantou, com
Jesus nos braços!

Cada um de nó s tem sua experiência da fidelidade de Deus para consigo.


Trazemo-la como nossa contribuiçã o para a Missã o. Baseado nela, o grupo
missioná rio compromete a vida para que o anú ncio se faça realidade.

No andar desses longos anos, temos visto muita vida surgindo do lixo. Nã o
era a imensa gratidã o do Pe. Igná cio, depois de cada Missa? “O Senhor tira do
monturo o miserá vel, para que more com os príncipes de seu povo”.

Mas foi só recentemente, nestes ú ltimos tempos, que vimos os oprimidos


da rua se definir como grupo social. O lema: “Somos um povo que quer viver” é o
sinal de sua luta contra a morte. É sua adesã o ao Evangelho, ao querer de Jesus e
seu povo, seguindo a caminhada, lutando pela vida. É uma vocaçã o exigente, mas
muito boa. Vale a pena empenhar tudo o que se tem para comprar esta “pérola
preciosa”!

Digo isso com toda a segurança, apó s vivenciar desde a minha juventude
até agora, o amor, a justiça e o compromisso fiel do Senhor para conosco. Dou este
testemunho com reconhecimento filial, embora Deus nã o precise dele: vale a pena
empenhar tudo o que se tem para comprar esta “pérola preciosa”. Sabemos que os
odres envelhecem e todo o vinho também. Por isso, para conservar a novidade do
Evangelho, sempre nos mantemos alertas, dispostas a rever a caminhada e mudar
aquilo que o Espírito nos aponta como devendo ser mudado. Amém!

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E que a Graça do Senhor esteja com todos! (Ap. 21, 21).

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