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Fausto Marinetti

Caro Francisco

Reflexões, testemunhos, mensagens

“Sejam ousados, não são mais fiéis à Igreja, se esperam a cada passo que lhes digam o que fazer”
(Papa Francisco aos jovens da Ação Católica, 27.4.2017)

Carta da Secretaria de Estado para Fausto Marinetti


Vaticano, 9 de julho de 2018

Prezado Senhor
Com cuidadoso gesto de cortesia, o Senhor, também em nome da Comunidade de
Nomadelfia, enviou ao Santo Padre Francisco, como sinal de devota homenagem cópia do
volume: “Caro Francisco - Reflexões, testemunhos, mensagens”.
Sua Santidade, que com paternal carinho está particularmente perto de quantos são
provados pelas dificuldades da vida e pelo sofrimento, agradece o estimado dom e os
sentimentos de filial veneração e de afeto que sugeriram o gentil gesto, e, enquanto pede
para rezar pela Sua pessoa e pelo Seu serviço à Igreja, deseja todo bem para o Senhor e para
quantos vivem a experiência de Don Zeno Saltini, fundador da Obra, e de bom gosto
concede a Benção Apostólica.
Com sentimentos de particular estima
Mons. Paolo Borgia
Assessor
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Pedi ao arcebispo de Bolonha para criticar meu texto: "Caro Francisco".

"Como você pode criticar um texto como esse? Você só pode ler, se
emocionar, orar, escolher. Em suma, é ótimo porque há vida e há muito do coração
de Don Zeno. Quando [o papa] for para Nomadelfia, acho que ele vai provar os
frutos de perto. Você ajuda ele. Bravo. Um abraço, Matteo”.
S.E. Mons. Matteo Maria Zuppi, Bolonha, 1.3.2018

Prof. Ayala:
"O texto é maravilhoso, profundo, de uma espiritualidade muito aguda, quase
santa.
O estilo de escrever é gostoso, uma mistura literária de Nietzsche com
Eckhart, e muita pessoalidade.
As teses teológicas (especialmente as cristológicas, eclesiológicas e marianas)
que ele levanta são profundas. Dão um bom debate."

ORAÇÃO DE DON ZENO

"Senhor, quando me jogo no teu nome contra os ricos, um coral de sacerdotes,


de excelentes católicos, levanta-se para protestar, acusando-me de pouca caridade e de
ódio mal disfarçado contra os ricos. Você sabe: eu não odeio ninguém.

Sempre que tento extrair satanás daquele ambiente, a reação é de cobras. Disse-
me bem aquele pobre trabalhador que a sua classe é a comida dos outros. Os ricos não
veem os pobres como irmãos iguais, eles não te veem neles apesar das tuas
declarações. Se você os enfrentar com caridade eles te aplaudem e praticamente não se
importam; se você os enfrentar de peito aberto, tu sabes como vai acabar. Eu sempre
saí com a cabeça quebrada. Eles refinaram em justificar seus delitos.

Se você os tocar, eles invocam caridade; se fingir e não ver, eles permanecem
insensíveis. Para eles, a religião é o mel, e com ele se lambuzam maravilhosamente.

Você sabe o quanto eles nos fizeram chorar, porque depois de bom raciocínio e
mil carinhos nos encontramos na estrada, famintos. A realidade é a facada habitual:
ausência de justiça!" (21.9.1944).
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El autor
Fausto Marinetti (1942), graduado en teología pastoral, comparte la vida con los marginales.
El encuentro con el padre Zeno le cambia la vida. Durante 10 años (1969-79), fue su
ayudante y confidente. Impregnado de su amor por los pueblos-hermanos se sumerge en los
estigmas del noreste brasileño. Denuncia las causas de la injusticia estructural con
libros/testimonios (El Holocausto de los empobrecidos, 1987). Visita una treintena de países
extraeuropeos como reportero para varias revistas misioneras, dándose cuenta que el mensaje
del padre Zeno no se conoce. Esto lo induce a difundir su mensaje. En el 70° aniversario de la
Constitución del pueblo nuevo de Nomadelfia ofrece estas reflexiones al Papa Francisco.
Sobre el padre Zeno ha escrito “La Herejía del Amor”, Borla, 2000 - “Don Zeno,
obedientísimo rebelde”, La Meridiana, 2006. La RAI produjo un
documental: www.arcoiris.tv en el motor de búsqueda: diario dalla periferia della storia.
El padre Zeno Saltini
El padre Zeno Saltini (1900 Fossoli di Carpi/1981 Grosseto), sacerdote de frontera. En los
años 50 hace salir de sus casillas a clérigos y a laicos: “Si hay pobres, no hay cristianos…”.
Relata; Crezco en un tino social que está bullendo ¿Por qué se nace ricos o pobres? A los 14
años rechazo la escuela: es ahí donde la sociedad se divide. 1920: una discusión con un
compañero de armas lo hace decidir cambiar civilización, no más patrones, no más siervos.
Muchas iniciativas para realizar mi sueño: no poner parches, sino reconstruir la vida social
según la fe. A 31 años, sacerdote, adopto como hijo a Barile, apenas excarcelado: el primero
de 4 mil. 1941; una joven escapa de su casa para convertirse en la mamá de ellos. Luego, la
guerra, el derrumbamiento. En las plazas propongo fraternizar las familias: aplicad la fe
integralmente. 1945: lanzo el Movimiento de los “dos montones”: quién tiene dinero de una
parte, quienes no lo tienen, de la otra y con las elecciones se podrá tomar el poder. 1948: el
pueblo rechaza fraternizar, ocupamos el ex campo de concentración en Fossoli (MO) para
crear un ejemplo de vida fraternal entre las familias: la guerra de los ángeles. Sobre los
escombros del odio nace Nomadelfia, donde la fraternidad es ley. Ni ricos, ni pobres, todos
a la par. 1950: propongo de nuevo al pueblo de fraternizar políticamente y nos hacen fracasar
de nuevo. La Democracia Cristiana por miedo a perder votos, obliga al Vaticano a retirar los
sacerdotes de Nomadelfia (1952). Dispersión y represión de la comunidad. 1953: pido el
estado laical para salvar a los hijos dispersos. 1962: retomo el ejercicio del sacerdocio como
párroco de la primera parroquia comunitaria”.
En el sitio www.arcoiris.tv la serie Don Zeno – L’uomo di Nomadelfia, dirigida por Gianluigi
Calderone.
Nomadelfia
Del griego nomos (ley), adelfia (fraternidad): donde la fraternidad es ley. Para los habitantes
de Nomadelfia (nomadelfios) “el amor fraternal es ley, en aplicación heroica de su fe.
Trabajan juntos en solidaria fraternidad cristiana con el fin de asegurar y defender el estado
evangélico de los hijos de Dios libres y dedicarse a obras de bien, alivio material y a
elevación espiritual de la humanidad”. Hoy Nomadelfia es un pueblito de 400 personas, 60
familias distribuidas en 12 grupos que viven en un terreno de 380 hectáreas, a 8 Km. de
Grosseto (por la autopista de Siena). Un pueblo fundado sobre la fe, con su historia, cultura,
costumbres, tradiciones, organización. En Nomadelfia no se nace, se llega a ser por opción
libre. Para la Iglesia es una parroquia comunitaria, para el Estado una asociación civil y
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cooperativa de trabajo. Demuestran con la vida que se puede vivir el evangelio como código
del vivir individualmente, familiarmente y socialmente. La fraternidad se expresa a través de
la democracia directa; bienes y empresas en común; se trabaja por amor; la familia acoge
abandonados. Los frutos están bajo los ojos de todos: entre ellos no hay ricos ni pobres,
asistente asistido, benefactor beneficiado. Todos hermanos.

Dirección: Nomadelfia C.P. 176 – 58100 Grosseto – Tel. 0564- 338.243 - Centro de Roma,
Via del Casale S. Michele, 46 (Monte Mario) 00135 Roma Tel. 06-30683485.
www.nomadelfia.it
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Caro Francisco,
Quem escreve é um veterano de vinte anos de missão no imenso hospital de campo do Nordeste
brasileiro. Ele tocou a carne de Cristo em populações reduzidas a refugo, lixo. Seus projetos de
desenvolvimento são uma gota no mar. Em uma situação de calamidade social, se se ajudam 10 aparecem 50,
100 e assim por diante, fazer o que? O indivíduo não é capaz de mudar as estruturas nem produzir um exemplo
de sociedade mais justa. Como competir com aqueles que pregam por todos os meios a beatitude do
consumismo?
Antes da missão, ele foi ajudante de Don Zeno 1, o fundador de Nomadelfia, que lhe transmite um sonho:
as famílias também devem renascer do espírito. Se forem fraternizadas, podem devolver a família àqueles que a
perderam, compartilhar os bens, aplicar o evangelho como lei. Resultado? Entre eles não há rico e pobre,
benfeitor e beneficiário, mestre e servo. Fábula, utopia? Não: cerca de sessenta famílias, 400 habitantes,
propriedade agrícola, empresas, escolas, endereço: 8 km de Grosseto na estrada para Siena e um centro em
Roma. Veja: www.nomadelfia.it
Precisamos inventar outras formas de ajuda mútua e de coexistência entre famílias. Nomadelfia é “uma”
proposta, não “a” proposta. Os líderes convidam Fausto a agregar famílias dispostas a viver a fraternidade
social. Da comunidade terapêutica, ele se muda para uma casa para meninos abandonados. São eles que lhe
sugerem essas reflexões, que caberiam em duas páginas assépticas. Fausto percebe que apenas o contexto -
fatos, encontros, Cristos vivos - pode transmitir o que ele experimentou. Você é o pai de todos, mais ainda dos
pequenos crucifixos. Porque você é filho das periferias, irmão dos migrantes, frequentador de hospitais de
campo; você tem cheiro de ovelha, como o pastor; empurra o barco de Pedro para sair da saciedade, da
indiferença globalizada, do eurocentrismo. Porque "quem perde a si mesmo, sua raça, sua verdade, sua
doutrina, sua verdadeira religião, seu único salvador, sua pátria, sua vida, a salvará".
Um abraço ensanguentado dos teus filhos e irmãos: fausto + mini/crucifixos + povos/migrantes.

Advertências:
1 - O texto é uma iniciativa pessoal do autor. 2 - Os documentos citados com data relativa podem ser
encontrados no arquivo de Nomadelfia. Aqueles sem notas são trechos das conferências de Don Zeno entre
1970-80. 3- O texto em itálico é do autor. 4 – As citações transbordam, porque ele é um ilustre ninguém.
Quando o ano de 1968 incendeia praças e universidades, sua fé vacila. Nem os livros nem as teologias
satisfazem sua alma. Ele conhece um padre camponês, padre Zeno Saltini, que lhe revela seu segredo: "Aprendi
na roça: se eu semear feijão e cebola, feijão e cebola nascem; se eu semear o evangelho, o evangelho nasce".
Quem devolve a família a 5.000 abandonados ou é um louco ou ... sim, ele é um louco duas vezes, uma para
Deus, e outra para o homem. Ele me quer ao seu lado, companheiro de viagem e confidente, por dez anos: "O
seminário estragou você. Eu tenho que desmontar e reconstruir você de cima a baixo". Você conseguiu? "Eu
semeei de acordo com suas instruções. Tudo que aqui é bom é farinha do seu saco. Obrigado, papai Zeno ".
Os livros do autor podem ser encontrados em www.logoslibrary.it digitando no autor: Marinetti Fausto.
Ou pedindo: fausto.marinetti@gmail.com; dois livros sobre Don Zeno: A heresia do amor, Don Zeno:
obedientíssimo rebelde. Em www.arcoiris.tv, digite SEARCH: Diario dalla periferia della storia. Documentário
da RAI sobre Fausto. O homem de Nomadelfia, ficção RAI sobre Don Zeno.

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Na Itália, usa-se em lugar de Padre a palavra Don, a qual não deve ser confundida com a palavra Dom - usada em
português para designar o Bispo, que na Itália é designado com a palavra Monsignore.
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Senigallia, 9.8.2017 –
Caro Francisco,
São vãs as tentativas de entregar esse testemunho por vias oficiais. Sua exortação aos jovens da Ação
Católica é a resposta que esperava: “Sejam ousados, não são mais fiéis à Igreja, se esperam a cada passo que
lhes digam o que fazer” (27.4.2017).
Me diga por favor: você, por acaso, é o único papa filho de migrantes no momento do êxodo mais
dramático da história? Toda hora 250 milhões adentram o caminho da fuga da fome e da guerra. Me parece que
te vejo marchar com eles. Porque você é da raça do Era eu neles, em um povo migrante, aprisionado, jogado no
mar. Ontem os cristãos foram martirizados pelos pagãos, hoje os cristãos martirizam os migrantes? Mártires por
ódio à fé os primeiros, por ódio ao homem os segundos. Que sinal dos tempos é esse? Eles estão vindo para
rasgar a placenta dos estados nacionais para nos dizer que ou nós nascemos para a única família humana
universal ou a humanidade irá abortar a si mesma?
Família universal? Mas se a nós, 168 milhões de cristos/meninos, é negada a família natural? Nós
vivemos com o silenciador, tanto na entrada quanto na saída da cena. Diz muitas vezes em alto e bom som "urbi
et orbi"2: "Quem escandaliza uma criança, um indivíduo ou um povo, é melhor que coloque uma pedra de
moinho no pescoço e se jogue no mar". O filho do homem, tão manso de coração, aconselha o suicídio? Nós, os
últimos dos últimos, vamos tentar lhe explicar isso.

1ª Mensagem: Crianças crucificadas: oito milhões no Brasil


Fortaleza, 6.4.2016
É feriado. Uns trinta meninos andam pela quadra, chupando pirulitos, balinhas, sorvetes, presentes de
generosos benfeitores. Os palhaços nos entretém com danças e brincadeiras. 22 meninas, entre 12 e 14 anos, se
apresentam com música estridente, com roupas gastas, surradas e sucintas, com olhar ausente. O que há por trás
do olhar desses anjos tristes? A acompanhante: - "Elas são vítimas de violência familiar". Don Zeno: "Chegou
na comunidade uma jovem mulher com um filho, estuprada pelo pai. Como dizer a ela que Deus é pai?" Uma
garota abusada por um padre desabafa: "Fui estuprada por Deus".
As casas para abandonados estão fechando. Depois de dois anos de internato, a ONU recomenda devolvê-
los aos parentes, a família é insubstituível. Se o Pai Eterno não encontrou nada melhor, tudo o mais não é
paliativo? Don Zeno gritava isso para cima e para baixo 80 anos atrás. Seu discurso não era vazio, mas uma
alternativa, devolvendo a família para 5.000 filhos, porque a paternidade e a maternidade não são apenas
biológicas. As 22 meninas apelam para Nomadelfia: "Não podem inventar uma mãe para nós também? Somos
Cinderelas porque nascidas no sul do mundo, usadas, profanadas, inúteis?" Vou pedir a um amigo pintor para
desenhar uma delas na cruz. O que inventar para abalar a consciência dos cristãos? Don Zeno diria:
espiritualidade demais arruinou vocês. "Repetir atos espirituais de amor, não concretos, portanto abstratos,
desdobrou a alma deles. Queremos curar as almas separadas do corpo.... Deste ponto de vista, os crucificadores
de Jesus no povo são seus ministros e freiras. É em grande parte uma espiritualidade evanescente. Quando as
coisas não vão bem, os primeiros a sentirem os efeitos, mesmo no físico, devemos ser nós, não as crianças, nem
o povo" (7.2.1938).
Zeno não chega a odiar o asssistencialismo com o coração leve. Quando ainda era jovem, ele recebia os
pequenos delinqüentes: "Damos trabalho, comida, diversão, mas nós somos diferentes. O benfeitor está sempre
acima ou abaixo, nunca igual. Fui estudar na casa de Don Calabria. Muito bonito o trabalho dele, mas eu não
concordo com o sistema de colégio. À noite os meninos jogam pedras nas assistentes: 'Vocês nos amam porque
são pagas para isto, né?'. Estudo para ser advogado. Formado, eu me pergunto: de que adianta defendê-los
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“Para Roma e para o mundo”: fórmula usada para indicar as bênçãos solenes do papa aos fieis de Roma e a todos do
mundo católico.
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quando já estão estragados? Eu poderia mitigar a pena, mas eles são uns excluídos. Estou cansado de fazer o
bem para que tudo permaneça como antes. Eu me torno padre para ser pai deles". "Subia ao altar e jurava ao
Senhor que nunca fundaria colégios. Eu nunca fiz esse trabalho" (1.10.1952). Cristo é explícito: qual é o pai
entre vós, se o filho lhe pedir o pão da maternidade/paternidade, lhe dará um instituto de pedra; se ele pedir
amor, lhe dará o escorpião do assistencialismo?
Todo final de semana os benfeitores chegam trazendo suas doações. Não seria melhor não fazer nenhuma
boa obra, para que, mais cedo ou mais tarde, percebermos que nós condenamos ao inferno da caridade até
recém-nascidos? “Devemos ser reduzidos a instrumentos, para que vocês possam se sentir bem? A vocês o
privilégio da santa generosidade, para nós o privilégio da indignidade”. Zeno trata de maneira quase cruel as
damas de Milão, que se despojam de suas joias para alimentar filhos dele: "Não nos deem esmola, porque dar
esmola a Cristo pode provocar surpresas desagradáveis. A caridade nos faz benfeitores e beneficiários, a justiça
nos faz irmãos. Muitos não teriam coragem de esfaquear a Eucaristia, cuspir nela. No entanto, toda vez que
vocês ofendem a um abandonado, não pensem que estão fazendo um mal menor" (25.5.49). "O que significa
jogar fora a Eucaristia? Um sacrilégio. Porém maltratar um filho de Deus é ainda pior". No entanto,
continuamos a colocar nos altares os benfeitores da caridade e não os sedentos de justiça. Zeno prefere cortar
pela raiz uma sociedade que produz os pobres e aqueles que os cura. Se se construisse uma sociedade mais
humana, que necessidade haveria de benfeitores e beneficiários, de patrões e servos? Enquanto não formos
capazes de sentir náusea pelo assistencialismo, como poderemos pregar o evangelho da fraternidade, cuja
premissa é a igualdade? Como ser iguais a 168 milhões de abandonados, 800 milhões de desnutridos, 42
milhões de prostitutas [80% entre 13 e 25 anos de idade], 10 milhões de prisioneiros, 100 milhões de sem-tetos,
250 milhões de crianças trabalhadoras, 50 milhões de escravos?
Há quem solicite a seus seguidores: "Por que vocês não deixam seu cômodo refúgio? Não percebem
como há necessidade de vocês?” Aqueles que se movem nos vulcões da miséria acham difícil entender que
existe a vocação do samaritano e a do semeador de uma nova civilização. Os crucificados pedem para serem
removidos imediatamente da cruz. Nomadelfia vive para eles, mesmo se não intervir imediatamente, porque a
sua missão não é tratar os frutos podres, mas plantar uma nova sociedade para que, no futuro, não haja
necessidade de quem os resgate. Sem radicalismos. De fato, ela recebeu 5.000 abandonados, dando-lhes o novo
amor de Deus.
3.5.2016 –
Caro Francisco,
Eu compartilho minha vida com cerca de trinta crianças em risco, necesitando de um primeiro socorro.
Elas têm tanto amor para dar, que transborda em abraços e beijos. Você sabe o que significa ser beijado por
Cristo em carne e osso? Ficamos sem colchões por causa do xixi na cama. Colocada a notícia na inernet, chega
uma caminhonete cheia de colchões, doces, bandeirinhas com o lema: Ordem e progresso. Ironia! O povo
brasileiro envia emissários para devolver os bens roubados? Para nossos filhos, uma festa. Eles se sentem vivos,
porque são objetos de atenção. Por alguns momentos eles se sentem importantes, mas não se pensa que, para
quem recebe, é uma humilhação: "Nós temos mãos para receber e vocês para dar. Cobaias, macaquinhos de
zoológicos para serem donados com algumas carícias. Vocês pensam que nos compram com dois doces e um
brinquedo? No Natal é impossível defender-se da chuva de presentes. Eles querem preencher nossa fome de
amor com coisas. Ou é uma maneira de se fazer perdoar?” Fomos educados a recorrer à beneficência para não
nos comprometrer com a má justiça? As crianças se divertem desembrulhando presentes. Curiosidade satisfeita,
jogam fora presentes e ... doadores? A compaixão não enche seus corações. Toda noite eles pedem: "Me dá um
abraço bem apertado?".
À medida que as festas se aproximam, os benfeitores multiplicam as incursões da bondade. Ontem, três
grupos: às 9h, às 14h e às 17h. Generosidade tripla, a qual proporcionou um consumo extraordinário de doces,
bebidas e presentes... incluindo dor de barriga. Saturados, eles não conseguiram jantar. Fora do programa: um
trenzinho tocando. Vocês conseguem imaginar Fausto na popa com João Marcos em uma cadeira de rodas e
música no volume máximo, dançando e saudando os transeuntes? "Mas sim – digo a mim mesmo - que as
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crianças nascidas para chorar, aproveitem alguns momentos de euforia! Você também, Cristo, nos
mini/crucifixos, dança e canta conosco ... para esquecer".
Noite de Natal: ceia, palhaços, música, jogos, doces à vontade. Por quatro horas todos ficam “letrizados”
até os bebês. A pequena Gabri, no chão, pede para alguém pegá-la no colo. "Menino de Belém, você está sem
acomodação, mas tem pai e mãe. Temos comida e alojamento, sentimos falta de pai e mãe. Estamos cheios de
presentes mortos, por que você não nos dá um pai e uma mãe vivos? Lembre isso para o seu vigário, somos 168
milhões".
Uma sociedade sem coração pensa em se reconciliar com suas vítimas com máscaras de bondade. O que
uma criança pode sentir quando percebe que sua pobreza serve a seus benfeitores para que esses se sintam
generosos? “Por que vocês não provam ser maltratados e jogados fora como lixo? À noite vocês vão embora e
nosso vazio é ainda maior. Não teríamos nós direito a um ninho sem ter que implorar para ficar em seus braços
por alguns momentos? A beneficência lhes impede de ver que nós também temos direito à dignidade humana?
Vocês ficam satisfeitos com algumas migalhas de carinho, um aperitivo, mas nós, ao invés, reivindicamos um
banquete de afeto”.
Eu sonho com um mundo sem benfeitores e beneficiários: há mais satisfação em dar do que em receber
(At 20:35). As crianças saboreiam seu pirulito e os benfeitores lambem suas almas com um Cristo adocicado e
espiritualizado. Faço incessantemente ao céu perguntas impertinentes: “Por que Você sugeriu o suicídio para
aqueles que escandalizam um inocente? É tão bom pegar no colo um abandonado de poucos dias! Vocês não
percebem que estão segurando um pequeno crucifixo em seus braços? O que acham? É tão gratificante se
encher de emoções piedosas, encher a boca com o evangelho! Podem até fazer gargarejos!”. Pietistas e
benfeitores falam de caridade, nunca de justiça. Zeno se lança contra as obras de caridade, porque nos levam a
crer que somos bons, fazem passar nossa caridade como justiça. O salvador não veio para os saciados, os
doentes de bulimia espiritual por indigestão de obras de bondade. "Eu vim para as crianças crucificadas desde
tenra idade enquanto eu fui crucificado já adulto". Quem foi abusado pelo pai, torturado pela mãe, nunca teve
um beijo, será capaz de amar? Francisco, você que tem um coração de pai/mãe, ao menos você nos irá pegar no
colo sem nos fazer pesar isso como um gesto de bondade?
13.5.2016 - Como penetrar na alma daquele: Odeio a assistência? Não é demais? Não! Está em jogo o
próprio conceito de Amor: se você estiver no pedestal do assistente, do benfeitor, do superior e eu estou em
baixo, como inferior, beneficiado, assistido irei sentir por você subimissão, admiração, mas eu nunca vou me
sentir igual. Sem igualdade a relação de amor é impossível. Se eu estou reduzido a um objeto, como vou provar
amor por quem me instrumentaliza?
Nos 15 anos do convento, fui educado para adular a Deus, cantando seus louvores; a brincar ao “ do ut
dês” com o grande benfeitor. Zeno me revela o engano: todos os benfeitores são odiáveis! Nos humilham, nos
tratam como barrigas para encher, instrumentos para ganhar méritos. Odiável é também você, Deus, o benfeitor
por excelência, que espalha graças à toa, negocia favores, cede à chantagem: "Se me faz encontrar uma esposa e
um trabalho, farei uma oferta gorda para os pobres"? Zeno responde a tom: "Jesus só pode estar conosco para
abrir aos séculos uma nova forma de civilização. Não mais o Deus dos tronos, das grandes estátuas, da
misteriosa Eucaristia, da realeza do Calvário ou da Ascensão, etc., mas o companheiro de ansiedades, o Amigo
no mesmo nível de apostolado, enquanto todos os outros atributos por nada perdiam seu esplendor" (5.3.44).
Deus desce do trono e o benfeitor senta nele. A única maneira para amar e ser amado não é estar em pé de
igualdade? Mas então, os movimentos espiritualistas, que cantam o amor, são vazios? Cristo propõe um
mandamento novo e nós o reduzimos a sorrisos, bombons e brinquedos. "Quem fala de amor, mas não é justo, é
um monstro. Nunca falem de amor até que a justiça seja aplicada. Por que muitos enchem a boca? Para não
fazer justiça, para fugir do homem". "Por que Jesus não colocou o amor em primeiro lugar? Não, não, a justiça
vem primeiro, a contabilidade. O primeiro ponto de seu programa é a pobreza: mover finanças é uma questão de
espírito. O desperdício é uma ofensa aos necessitados. O supérfluo é contra Deus. A pobreza é usar as coisas de
acordo com o espírito. O pecado do mundo é usar mal a matéria. Se não a movemos com o espírito é um furto".
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"Nosso maior pecado é a esmola". "Com licença, Zeno, como ousa? Se nos tornamos inimigos dos
benfeitores, eles cortarão os alimentos". De fato, em 1952 quando Don Zeno prega contra os ricos, os políticos
da Democracia Cristã cortam os alimentos para seus filhos. No entanto, o Ministro do Interior, Scelba, mente
dizendo que não há dinheiro. Mentira política! De fato, ele financia a Ação Católica com centenas de milhões
porque estes trazem votos para a Democracia Cristã. Ao mesmo tempo, os Cicogna e os Falk, dois empresários
de Milão, para aliviar a consciência, ajudam com centenas de milhões Don Rossi da Pro Civitate Cristiana. E os
filhos de Don Zeno passam fome. Não desista. Você jurou a seu pai: "Ao invés de me submeter ao patrão,
prefiro passar fome"! Apresente ao papa as razões inconfessas das dificuldades econômicas: "Os ricos não
ajudam de boa vontade Nomadelfia, porque não concordam com a educação social. O fato de meus filhos
formarem um povo livre os perturba e, portanto, não poderão sujeitá-los como trabalhadores ao seu serviço. Eles
entendem muito bem que esse é o último golpe do cristianismo contra a escravidão. Para eles, a própria
mensagem de fraternidade é incômoda e deplorável. Quantas vezes passamos fome por não termos aderido às
diretrizes deles!" (Maio de 1950). Você também, Francisco, repreende os cristãos de luxo: "O que sentimos
quando vemos um sem-teto na rua, crianças que pedem esmola?" "Ah, mas estes são daquela raça que rouba ...
eu continuo pelo meu caminho ...". Cuidado, cuidado. Quando estas coisas ressoam como normais em nossos
corações ... "Sim, a vida é feita assim, eu como, eu bebo, para livrar a minha consciência dou esmolas e sigo
meu caminho ...".
O ápice da ira de Zeno foi cuspir na cara de uma condessa: "Não foi o nome Pirelli que te fez encontrar
aquele pouco de esterco de Satanás, arrancado do deus dinheiro. Foi Jesus. Você quer ser uma de nós em uma
missão entre os ricos?" (6.10.1953). Até agora foi uma benfeitora. Chegou a hora de se tornar igual a nós
também na desventura? "Cara Nini, tente acreditar que Deus não precisa do seu dinheiro e, consequentemente,
nem mesmo eu. Ele se digna de querer precisar de você e, consequentemente, sinto-me honrado de também
precisar de você" (9.10.1953). Ela retruca com dignidade: "Eu lhe dei um terço do meu patromônio (cerca de 70
milhões) ... Lhe dei mais do que o supérfluo. Eu os amo com a alegria de amar-vos e sofri muito convosco. Mas
não tenho esta vocação, talvez porque outra seja minha missão. Eu não sou dos seus, mas acho que posso ajudá-
los em vossa viagem, ainda que tenha que vê-los partir. Dentro do nosso barco comum deve haver um lugar
também para mim" (10.9.1953).
Em 1931 Zeno se torna sacerdote e, na primeira missa, diz aos amigos que com ele festejavam: "Eu casei
com a Igreja, dou a ela um filho: Barile. Ele acabou de sair da prisão e penetrou no meu coração. Vocês são
brava gente, não precisam de mim, mas ele precisa. Eu me torno um pai para ele".
"Estou indo para Rovereto para a missão junto às crianças com fantoches e bandolim. As freiras me
confiam um abandonado. Eu peço que o vistam bem e levem para a casa paroquial. O pároco elogia: "Seu
sobrinho veio visitá-lo". A donéstica do pároco cuida dele, mas quando descobre a verdade, desabafa: "E se esse
fosse o filho do pecado?". "Não foi o diabo que o concebeu! Mais que sobrinho é meu filho, porque nós somos
pais e se você não é pai, errou de profissão".
Durante a guerra ele escreve em lágrimas: "É de admirar que o clero e o episcopado tenham aceitado
colégios e orfanatos? Um flagelo! Em Pompeia, os sacerdotes fizeram uma Casa para os filhos dos prisioneiros.
Uma escrita em letras grandes. Você, padre, você se atreve a chamar filhos dos prisioneiros aqueles que Deus
escolheu como filhos favoritos, porque eles foram rejeitados pelos homens? Desprezados pelo mundo é uma
coisa, mas ser também pela Igreja não é demais? É lícito cometer esses erros? O Calvário é a história de Deus na
humanidade e Cristo continua a dizer isto para Igreja: "Mulher, eis teus filhos". Estas crianças estão em um
mundo irreal, porque não são os filhos de prisioneiros, mas os tesouros, as jóias, os filhos de Deus Pai, do
Espírito Santo, do Verbo Encarnado, do qual são também legitimamente irmãos " (27.2.1944). Hoje ele não
diria aos povos escravos: "Filhos, eis vossa mãe"? E à Igreja: "Mulher, eis teus filhos"? "Por que a Igreja não
aceita esses meninos como crianças que ninguém quer? Todos os delinqüentes são teus filhos".
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Envie para o Papa o livro: não estamos de acordo, com uma dedicação especial: "Santidade, este livro é
um golpe de machado na raiz do mal, que é muito mais profundo do que este texto indica. Em rerum natura3
nunca vimos pais e mães abastados e filhos pobres, famintos, nus, sem lar. Nós vimos e muitas vezes vemos o
inverso. Nós, eclesiásticos, pais por eleição divina, diante dos filhos, somos portanto contra a natureza, em
pecado, do qual eles têm o direito a se defender. ... O nó chegou ao pente: na Igreja as revoluções não podem ser
feitas de baixo para cima, mas apenas de cima para baixo "(25.5.1953). Somente quem está no leme do barco de
Pedro pode corrigir a rota? Francisco, essa questão é para você.
Todas as manhãs nos encontramos na capela para o mês de Maria. Essas crianças desorientadas e perdidas
deveriam celebrar a mãe? Robinho, meio atrasado; José não sabe o que é uma família; Elias tem como mãe a
rua. Falar de mãe na latitude do abandono é absurdo. Se você nunca sentiu o calor do peito de uma mãe, como
pode imaginar a mãe? Dar a eles a virgem Maria como mãe? Eu tento tudo por tudo. Convido uma assistente:
"Sente-se aqui na frente. Fechemos nossos olhos, imaginemo-nos no colo da mãe? Sentiu? O que sente nossa
mãe? E nós? Quem se lembra de quando estava nos braços da mãe?" Silêncio profundo. "Se lembram de quando
ela os beijava, dando-lhes boa noite?" Silêncio glacial. "Alguém sente raiva por ter sido abandonado?"
Leonardo, de cara fechada: "Nem os cachorros abandonam seus filhotes". Com um nó na garganta: "Quem se
lembra da última oração de Jesus?" Raimundo: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem". "Até a nossa
mãe não sabia o que estava fazendo? Em um círculo, de mãos dadas, oramos pelas mães que vendem seus
filhos, os reduzem à miséria. Damos um abraço à assistente, para dá-lo a todas as mães do mundo e ... perdoá-
las".
Fortaleza 22.5.2016 - Benfeitores desde crianças
Hoje veio um grupo de escoteiros. Eles marcham, cantam, brincam. E os nossos, os observam como belas
estatuinhas teleguiadas. Eles vêm trazedo a si mesmos e seus presentes: bombons e pipocas. Um escoteiro
coloca uma sacola nas mãos de João Marcos e espera que ele a pegue. Sussurro: "Ele só vê com o coração.
Talvez um beijnho o faça sorrir". E assim foi, um pouco costrangido, porque um escoteiro não foi educado para
dar beijinho em crianças cegas. Então, o inesperado. Um dos nossos, 3-4 anos, enquanto enche a boca de
pipocas, pega a sacolinha de João Marcos, com astúcia, observando o efeito que faz sobre os adultos.
Mariangela, a pedagoga: "Devolva. É feio fazer isso". Ele repete a brincadeira até que uma menina toma a
sacola e a coloca de volta nas mãos inúteis de João Marcos. Povos inteiros não são capazes de reter a bolsa de
suas matérias-primas, porque outros povos lhes roubam tudo? Na despedida os rostos dos benfeitores explodem
de satisfação. Como fazer entender, que se você é capaz de dar e eu de receber, significa que há algum truque
social perverso? Se for tão bom dar, por que não trocamos de lugar? Conclusão: desde criança a gente pode ser
educada para a carreira de benfeitor.
15.5.16 - Durante toda a noite, ruminei os dois amores de acordo com Don Zeno. O amor unilateral é um
amor unidirecional para aqueles que não são capazes de retribuir: o amor dos pais pelos filhos, dos voluntários
pelos necessitados. Anjos de bondade. Onde estão os anjos da justiça? O amor recíproco tem duas pistas, vem e
vai, dá e recebe. Um amor adulto entre pessoas iguais numa relação de reciprocidade: eu dou a vida por você,
você a dá por mim. Se Deus é pai, ele não quer pedestais, púlpitos, palcos. Ele se coloca como igual ao homem
abolindo qualquer relação bastarda: benfeitor/beneficiário, assistente/assistido, patrão/servo, superior/súdito,
rico/pobre, povo enriquecido/povo empobrecido. Cristo vem para derrubar todos os muros, até aquele da
beneficência. Se a benfeitora fosse capaz de olhar para o fundo do coração dos abandonados, veria aquele Juiz
que lhe dirá: "Eu estava procurando minha mamãe e você me deu uma balinha!" Zeno ousa dizer: "Se os
católicos querem ser coerentes, devem doar bens e vida e lutar, para que se realize a justiça social, eles devem se
colocar em pé de igualdade com os oprimidos. Enquanto não conseguirmos realizar o perfeitos na unidade, o
mundo nunca será capaz de compreender nem Cristo nem a sua Igreja. Falar de unidade espiritual e doutrinal,
quando juntos não há comunicação da vida e dos bens, é absurdo e farisaico" (Depois de vinte séculos). Hoje o
estar em pé de igualdades deve ser conjugado globalmente. Como realizá-lo entre povos subnutridos e povos

3
Na natureza.
11

obesos? A ideologia da conquista continua por baixo, com impunidade, com a luta por mercados, finanças,
patentes, comércio desigual, deslocalização, monoculturas e economias de serviços.
11.5.2016 – Beneficência em formato industrial
Francisco quer ver os efeitos da benficência por atacado? Na década de oitenta, os florentinos
desembarcaram na favela da Jurema. A cidade da arte amplia a arte da generosidade: escolas profissionais,
escritórios, creche, piscina, igreja, academia, teatro. Show de bondade, um vai e vem de voluntários, desejo
louco de ser útil. Um remanescente do primeiro mundo caiu do céu da beneficência em formato industrial.
O brasão da equipe do coração, a Fiorentina, um selo onipresente. Bernadette, a secretária, torce para
Como são bons os brancos. Entre um suspiro e outro, ela folheia álbuns de fotos, lembranças, listas de
benfeitores. Todo o trabalho está cheio de memória. Até o mármore chegou aqui por mar. Ontem a ópera
ressoou com vozes de crianças, corais italianos, festas populares, grupos de jovens. O que permanece de
tamanha generosidade? Poeira, excrementos de pombo, silêncio espectral. Tornos, computadores,
equipamentos, tudo sob um manto de desolação. Dos andares superiores você pode ver o mar de telhados
vermelhos da favela. Quer ver o que a cultura assistencialista está produzindo? Basta tirar algumas fotos.
Atribui-se o abandono à falta de recursos humanos. Pura mentira, fracasso da ideologia do benfeitor. Com tanto
capital investido, tanta generosidade, se ajudou o povo a crescer sozinho? Demos a ele o peixe e não lhe
ensinamos a pescar. Pescar o que? A si mesmo, sua dignidade.
Do lado de fora do oásis florentino, pilhas de lixo. E a pior é aquela que não se vê: a beneficência que
retarda o curso da história de um povo, que deve andar com suas próprias pernas, não com aquelas dos
benfeitores. O Ocidente, branco e cristão, deve descer do pedestal do benfeitor conditio sine qua non para se
tornar irmão dos empobrecidos da terra. O ruim é que esses também, conquistados pelo doce facínio da
burguesia, são derrubados pela ganância do lucro e da posse. Quem terá a coragem de pregar a beatitude da
parcimônia, a inevitabilidade do decréscimo? Será possível reverter o curso da história, mudar da anestesia do
assistencialismo para a compartilha, para descobrir a alegria de se tornar socialmente irmãos? Zeno: "Os
católicos no setor social não fizeram nada além do assistencialismo ... eles produziram remendos injuriosos, não
soluções ... ir aos direitos dos pobres é a substância da fé" (22.3.1950). "Este deve ser o máximo interesse que a
Igreja deve defender: nos arrancar da escravidão, da exploração, para podermos respirar como homens, como
imagens de Deus. Vão vocês pedir esmola, nós não queremos mais ir. Nós queremos fazer as contas. É puro
evangelho. Queremos ser homens" (1.2.1953). "Nos é negado o direito à vida, porque nos atrevemos a dizer que
somos irmãos também no estômago ... Nossa presença na terra é sua condenação, nosso lamento é o do
crucifixo. Vossa perfídia é tão ofensiva que nos força correr para uma única vingança: atacar-vos com o amor,
bombardear-vos de amor sem calar a verdade, vosso crime diabólico: sois inimigos do homem, sentem prazer
em dar esmola para ouvir dizer: Obrigado, Deus lhe pague. Mas Jesus vos condena: Ai de vós que dais as
migalhas do supérfluo" (1.10.1953). Você daria as migalhas a Jesus Cristo?
O que dizer da globalização da injustiça institucional? Os povos do sul estão destinados a serem reféns do
Ocidente. O idealismo dos movimentos terceiro-mundistas fracassou com pretensão de tornar todos à nossa
imagem e semelhança. Não deveríamos propor estilos de vida alternativos? Um planeta reduzido a um aterro
exige isso. É impossível dar a todos padrões de vida do primeiro mundo. E o entusiasmo pelas teorias
desenvolvimentistas? Os povos que nada tem exigem justiça, não caridade; restituição, não esmola; compartilha
do banquete, não migalhas.
De que adianta declarar guerra ao assistencialismo? Numa sociedade de bandidos não se pode dispensar
os primeiros socorros, os bons samaritanos. "Se eles não existissem - diz Zeno – deveriamos correr nós". Claro:
não se atira na ambulância. Em desastres naturais, todos são obrigados a socorrer as vítimas. Nas calamidades
sociais não é suficiente a política dos esparadrapos, devemos ir à raiz do mal. Removidas as causas, eliminados
os efeitos. Não podemos mais nos omitir da produção de alternativas. Por que os sedentos de justiça estão do
outro lado da barricada? Oh, se tivéssemos dado com os pacotes de presentes também um pacote de dignidade!
Devemos ressurgir nos renunciatários a paixão pela liberdade do benfeitor. Se não houvessem os miseráveis, o
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que vocês fariam para se sentirem generosos? Existe uma relação de dependência mútua? Zeno é muito claro:
"O mundo é a carne. A carne é: escravidão da riqueza; escravidão de ser benfeitores dos pobres; escravidão de
depender das tiranias de pessoas queridas" (28.12.49). Por que em campo católico é tão rara a paixão por um
mundo sem benfeitores e beneficiários? Na glória do Bernini, os protetores dos pobres entram com dificuldade!
Nossa especialidade: remendar, colocar esparadrapos, tratar frutas bichadas. A luta de classes outrora era
entre patrões e trabalhadores, hoje é entre os povos benfeitores e os povos beneficiários? Porque há uma ligação
entre causa e efeito. Você, benfeitor, pode se permitir o supérfluo, porque pegou a nossa parte também. Mesmo
correndo o risco de parecer crueis, deve-se dizer que o bom coração é funcional para o status quo. Ajuda o
sistema a ficar de pé. A que reduzimos aquele: Ame o próximo como a si mesmo? Você, que me traz o pacote de
presente, ama a si mesmo com pacotes de presentes? Como fazer uma brecha na cultura assistencial se os bons
frades estimulam a generosidade dos benfeitores? "Sejam egoístas, façam o bem". Generosidade solicitada
como terapia da alma: "Fazer o bem é a melhor maneira de se sentir bem. Ajudar a Obra São Francisco significa
ajudar a quem não tem nada e, assim, se sentir melhor". Os números de bondade continuam: em 2016, 746.705
refeições. Almoços: 407.652. Jantares: 339.053. Média diária: 2.397. Como negar aos benfeitores piedosos um
lugar na primeira fila no paraíso? Ontem, Cristo exortava: "Não sejam como os pagãos ...". Hoje talvez ele diria:
"Não sejam como os cristãos ... Não toquem a trombeta ... Não procurem os primeiros lugares mesmo no céu ...
Vocês já receberam sua recompensa". No convento, nunca senti o cheiro do pobre. Ele era recebido na sala de
recepção, na igreja, nunca para almoçar com os frades. Quando será feita uma única mesa, em pé de igualdade,
todos irmãos?
Emergêncy, Sant'Egidio, Médicos sem fronteiras, Casas de acolhida para abandonados, etc. fazem um
trabalho insubstituível. Precisaríamos de cem, mil! Para Zeno, esse é o mínimo para ser homens. O cristianismo
defendeu a dignidade humana, influenciou a sociedade civil ao ponto que se você omite o resgate nas estradas,
vai ser preso. E as omissões de socorro para os povos à deriva não deveriam ser processadas internacionalmente
como crimes contra a humanidade? Podemos aceitar que 12 milhões de etíopes e 4 milhões de ruandeses
estejam destinados à morte por fome, crucificados pelos cravos cristãos da indiferença e da omissão? Não
chegou o tempo de ir além do egoísmo espiritual do salvar sua alma e descobrir nossa missão específica: aplicar
o evangelho socialmente? [As formas de colaboração entre os bons samaritanos/socorristas e
revolucionários/semeadores da nova civilização não seriam desejáveis? Uns não podem fazer sem os outros. O
dia em que um filho de Nomadelfia cair no vício não deveríamos recorrer a quem cura feridas sociais?]

2ª Mensagem: "Eu vim para os enfermos"


Fortaleza, 26.12.2015
Francisco venha comigo para visitar uma comunidade terapêutica. 350 km de Fortaleza. 4 horas de carro
entre aldeias anêmicas e campos queimados. Como atravessar o inferno. "Deus, estes também são teus filhos.
Por que castigá-los assim?" Estado do Ceará: oito milhões de habitantes, 2,5 apertados na capital entre favelas,
arranha-céus, praias fabulosas. Após 4 anos de seca, os camponeses abandonam forçosamentre os campos
queimados. O grande Brasil, um dos países mais ricos em recursos naturais, produz 30 milhões de miseráveis,
600 mil presos, seis milhões de viciados em drogas, 500 mil prostitutas [94% delas abaixo de 14 anos: US$ 4,6,
se usadas, 2500, se virgens].
Durante a viagem, parece-me ver (miragem?) Don Zeno, um homem maltrapilho, faminto, procurado,
quando em 1943 ele cruza o fronte. É ele quem nos incita a procurar as vítimas de hoje: "Corram pelo mundo
onde há guerras, fome, ódio. Acendam um maço de fósforos, incendeiem a floresta dos instintos selvagens, que
a humanidade passe, pelo menos, do selvagem para o humano". O Ceará seria o campo de testes ideal para viver
as palavras de Cristo: "Eu vim para doentes de desnutrição, não pelos povos obesos". Aqui estão na moda os
movimentos que, para estancar a emorragia dos fiéis, macaqueiam os evangélicos com uma religião/show:
música, canções, testemunhos para nos fazer sentir como vermes diante de um deus estratosférico. Os
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sacerdotes ideais são cantores com grandes sorrisos, palavras doces. Muita caridade, nada de justiça. Eles
invadem os canais de televisão com devoções e missas a ciclo contínuo. Todos se dizem cristãos, tanto o
latifundiário como o pobre. Nem uma palavra sobre a conversão das estruturas sociais de pecado.
Os filhos de Don Zeno seriam capazes de se inculturar em uma realidade como esta? Não é uma questão
de negar o que somos, mas de seguir o processo de Jesus: esvaziar-se de se. Se amarmos com amor de povo, não
deveríamos encontrar uma maneira de amar um povo diferente do nosso enquanto povo? Se formos
autossuficientes e autoreferenciais como poderemos sentir na própria carne, que Cristo veio para os povos
perdidos? Na comunidade terapêutica, entre ladrões e assassinos, eu vivo em um estado de pergunta: "Se você
veio para os perdidos, isso significa que você não veio para aquele que, como eu, se considera bom religioso?
No seminário eles me fizeram acreditar que eu tinha a verdade e a apolice do paraíso no meu bolso".
E você, Francisco, para quem você vem? Para os povos ocidentais, a alma cheia de colesterol? Você não
vê que eles não têm tempo para o convite ao banquete da fraternidade universal? São dois mil anos que eles
administram Cristo à vontade, tornando-O, também Ele, funcional a um sistema de morte. Você denuncia "o
culto idólatra do dinheiro", "a economia que mata", "os excluídos, as sobras". Não fique apenas nas boas
conversas, nos convites aos mendigos para café da manhã; estabelece a jornada mundial dos pobres, transforme
a Basílica de São Petrônio em uma sala de jantar, um banquete para 1.500 convidados. E que convidados!
[Quantas paróquias seguiram seu exemplo?] O que mais um pai pode fazer para induzir os irmãos mais velhos,
ávidos, a socorrer seus irmãos/povos menores mergulhados na miséria? Você faz o possível para dar uma lição
aos ricos, tanto indivíduos quanto povos. Resultado? Uma campanha sistemática de difamação: pauperista,
comunista, herege. Perseguiram o mestre, imagine o aluno!
Eu nunca vou esquecer. Luciano tenta esfaquear Diego para não ser esfaqueado por ele. Uma palavra
demais, uma grosseria. Ele me mostra uma enorme cicatriz entre a axila e a espinha dorsal. "Fizeram-lhe
acreditar que eu estava roubando sua garota. Na saída do hospital, encontro-o bêbado no chão. Um amigo me
incita: "Mata-o, pois merece". Cabe a Deus cuidar dele, eu não sou o dono de sua vida". Durante a celebração eu
o chamo na frente de todos. Eu pego o crucifixo e o aproximo da cicatriz: "Veem? São as mesmas chagas de
Jesus". Na comunhão convido quem têm cicatrizes para vir ao redor do altar: 15 dos 30. Eu coloco em suas
mãos o Cristo/pão, o levantamos sobre o mundo: "Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo".
Parecem-me 15 cordeiros que imploram a Deus que tenha misericórdia de todos nós. Um silêncio cheio de
mistério. Apenas as chagas de Cristo e dos 15 cordeiros falam em alta voz.
7.1.2016 - Hoje, oração especial. A conduzi-la, um jovem, que organiza sopas populares para viciados em
drogas. No violão, ele convida o Espírito Santo a se apressar e a nós fecharmos os olhos: "Vocês estão aqui
porque Deus os predestinou. Por que vocês e não outros? Porque ele ama vocês, ele ama vocês, ele ama vocês ...
Foram dez os leprosos curados por Jesus, mas apenas um voltou para agradecê-lo, porque busca a salvação além
da cura do corpo. Vocês estão aqui não apenas pela cura do vício, mas pela cura da alma". O clima fica quente,
o canto cada vez mais forte, uma excitação coletiva, uma espécie de orgasmo espiritual. "Cada um diga ao seu
vizinho: ninguém ama você como Deus te ama". Abraços longos, olhos brilhantes, emoções a flor da pele. É
hora dos testemunhos. Regis se lança: "Só Deus me fez entender que a felicidade não depende de um pozinho
branco. Recaí 4 vezes e ele sempre me levantou pelos cabelos". Ricardo: "17 anos de escravidão. Quando
decido parar, coloco a última dose de cocaína no altar. A dou de presente a Maria e ela me presenteia com uma
comunidade de recuperação: Rainha dos Anjos. Meus asssistidos serão anjos decaídos, mas sempre anjos são".
Daniel, Nirvando e Ulisses contam seu Calvário. Vibrações cada vez mais fortes, sacudindo os braços,
fechando os olhos, vertendo lágrimas e emoções. Quão diferente é a cena do filho pródigo: o pai joga os braços
em volta do pescoço, manda festejar, beija-o! Como? Deus sabe beijar? Depois de duas horas de choro devoto,
também nós fazemos festas com sanduíches, bolos e bebidas. E a participação me parece mais verdadeira. Zeno
diria: "O culto é uma grande ruína: ilude-nos, em vez disso, satisfaz a esperteza dos laicistas e liberais, que
querem liberdade de culto, não de religião". "Em 1920, no confronto com o anarquista, desejo morrer, porque
vejo que não somos dignos de ser católicos. Por que a fé é fria, burguesa? Se não consegue transformar o
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mundo, é um fracasso. Hoje as obras de misericórdia são praticadas pelos estados: hospitais, asilos, escolas.
Para não ficarem sem fazer nada, resta aos cristãos fazer o que nunca fizeram: aplicar o evangelho socialmente,
fundando a nova civilização".
Clima pesado. Em cada disputa: "Eu te mato!". Durante a celebração, eu esvazio o saco, isto é, o coração:
"Quando você pega a mira, o que você vê? Seu semelhante. Então, matando o outro, nós matamos a nós
mesmos, matando o filho, matamos também o pai, isto é, Deus? Chega, nunca mais, nunca mais!". Um
silêncio... Estes jovens simples participam, percebem que Fausto fala com o coração. E eles gostam quando cabe
a ele conduzir a celebração. Como quando encenamos o filho pródigo. Eu, o pai, com turbante, túnica,
exortações, inclusive lágrimas; Andrè, o sedutor: "Não acredite nos padres, todos com inveja da sua felicidade!
Eu lhe darei um pó mágico com poderes especiais ... em oito segundos você navegará entre as estrelas ... E as
mulheres? ... à vontade!". Nos denunciaram como causadores de problemas. E depois a Via Sacra, subindo a
colina, carregando uma cruz enorme na cabeça. Em cada parada, em frente à cruz, de braços abertos, uma
pessoa conta sua crucificação. Gran final: Fausto manda colher uma flor, todos juntos a aproximamos da cruz, e
ele: "Quantas lágrimas nos custou a nossa cruz! É feita de madeira, não é? Cada madeira vem de uma planta,
cada planta produz folhas e flores. De agora em diante, nossa cruz não mais chorará, mas fará flores sem fim,
como esta planta em cachos amarelos chamada de cascata de ouro!".
Eles, os jovens, se divertem, mas eu sempre luto com isso: para sermos irmãos, precisamos estar em pé
de igualdade. Poderei alguma vez me colocar no mesmo nível daqueles que roubaram, mataram e estupraram?
Como Jardel, um assassino por legítima defesa. "O assalto ao supermercado rendeu um bom saque. O colega
esconde uma parte disso. Nós nos encontramos em uma festa. Ele coloca a mão no bolso e tira um revólver. O
que fazer? Ou eu ou ele. Eu fui mais rápido. Cinco anos de prisão por excesso de legítima defesa". Nada de
emoção. Remorso? Nem mesmo a sombra. No entanto, a história estava cheia de sangue: "Um tiro tão perto que
um jato de sangue lavou meu rosto".
E Luiz Augusto? Um homem grande, um soldador profissional, uma boa família. "A vida na favela é
chata, você não é ninguém, você não existe. Eu sou o motorista de uma gangue de assaltantes para sentir a
adrenalina nas veias. Quão bonitas aquelas fugas em alta velocidade com a polícia em seus calcanhares! Uma
vez roubamos uma clínica. Eu peço as chaves de um carro. A senhora e sua menina choram, tremem como
folhas. E eu: "Não tenha medo, pequena, eu sou um bandido bom!" Depois, em uma noite de folia, gastamos
tudo em cerveja e mulheres, nos vangloriamos de nossa bravata. Você sabe como terminou? Todos mortos, sou
o único sobrevivente, porque me refugiei na comunidade".
O amanhecer me traz os sonhos de Don Zeno, que encantaram minha alma. Para quem oferecê-los? Os
filhos de papai não sabem o que fazer com eles, lhes basta o carrão, o caixa eletrônico, a garota do momento, as
festas. É inútil dar de beber a quem não tem sede. Zeno nos coloca na real: "Até quando Nomadelfia for a
bandeira dos oprimidos, será Nomadelfia; quando vocês começarem a se sentir bem, a comer melhor, a fazer
construções como os salesianos, Nomadelfia não será mais Nomadelfia". "Enquanto houver um oprimido,
Nomadelfia o jurou, será oprimida. Ser como eles é ter Cristo em nós "(29.3.1952). "Não temos medo de dizer
que desse jeito as igrejas serão esvaziadas, que a Igreja se submergirá até as catacumbas. São crimes sociais que
pedem vingança na presença de Deus ... Somos uns roubados" (14.2.1950). Roubados por quem? Por irmãos
que se glorificam com as esmolas ofensivas e funcionais a um sistema injusto. É hora de conjugar a justiça a
nível planetário. Se temos um coração na medida de Deus Pai, como podemos nos contentar em querer bem a
nossos amigos e parentes? Os pagãos também não fazem isso? Hoje nossos irmãos são os povos perseguidos
pelas leis do mercado, crucificados por povos aproveitadores. Não mais benfeitores, mas irmãos como povos.
"Ir aos direitos dos pobres é a substância da fé" (22.3.1950); "Eu digo que, antes de tudo, o templo de Cristo é o
sofredor " (5.5.1950).
Fausto não brinca de Don Quixote. Ele passou por muitos projetos de promoção humana: cinco fazendas,
carterpillar, tratores, caminhões, mercadinhos, hortas e criações comunitárias de animais. Dedicou-se aos
meninos de rua, acolhendo 27 como filhos. Tudo fracassou! No entanto, ele não desiste. Agora se aproximam
uns náufragos e ele acredita que seja possível construir uma jangada com suas tábuas de salvação. Nomadelfia
convida-o a procurar famílias que aspirem à fraternidade social. Ele faz isso pela fé, porque racionalmente ele
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não vê saída, isto é, não vê sucesso. Se Deus envia os Yuri, os Adriano, os Gilberto, não é com eles que se deve
tentar diminuir as distâncias do sonho?
Yuri: na comunidade o batizaram de apóstolo Paulo. Ele não para de falar consigo mesmo para se
sentir vivo. Foje com a moto. Depois de três dias de festa, liga: "Vão buscar a moto do tal usurário, paguem a
caução". Ele descobriu que Fausto acolhe àqueles que procuram ajuda. Agora ele está aqui conosco e não faz
outra coisa que falar dos seus sonhos. Se refugiou no sonho, porque a vida real o expulsou. Pede um empréstimo
de 70 reais para comprar um telefone celular no mercado de coisas roubadas. Volta triunfante com um Samsung
de 260: "Lá tem de tudo, até meninas bonitas usadas, que se oferecem por pouco dinheiro." Uma delas me disse:
"Eu tenho um filho para manter, aluguel e contas para pagar. Eu sou uma empregada donéstica, mas não é
suficiente para mim. É horrível ir para a cama com seres imundos na alma. Faço isso pelo meu filho". Yuri é um
remanescente da nossa amostra. Explico a ele: "Tentamos fazer uma comunidade de irmãos, passando do meu
para o nosso. Acolhemos quem está em dificuldades, mas visamos a fraternidade entre as famílias. Quando pode
contar com uns irmãos também como família, o que mais pode desejar?
6.4.2016 - Ao amanhecer chega Adriano sem fôlego, aterrorizado. "De noite, Leandro me chama para
abrir a porta. Um clarão, alguns tiros. Transpassaram-lhe o crânio". Francisco, não posso te explicar como eram
seus olhos arregalados, suas mãos tremendo enquanto tomava café. Depois chega Gilberto. Quatro separações.
Apenas o álcool para fazê-lo esquecer. Ele tomou coragem e chegou até aqui bêbado. "Eu quero morar com
você, sozinho não consigo fazer isso. Você tem coragem de me receber? Agora? Imediatamente?" Eu o abraço
forte. Ele me acompanha em seu casebre. "Você sente o odor do sangue? Lá embaixo eles mataram Leandro.
Ele segurava o isqueiro e umas pequenas pedras de crak em suas mãos. Pense um pouco: apresentar-se ao Pai
Eterno com a droga na mão e o coração em pedaços: seu pai o havia expulsado! Leandro, descanse em paz,
amém!" Tudo o que Gilberto possui cabe em uma caixa de papelão. O que não cabe lá dentro é a depressão. Ele
só dorme. Para esquecer-se de existir? Gilberto, Yuri, Aurélio, Ricardo, Jardel, Daniel, Reury. Estas não são
belas estatuinhas. Como esquecê-los se circulam dentro de mim? Pedrinho, 16 anos, quer conhecer seu pai a
todo custo. O pai lhe responde do Rio, que não sabe o que fazer com ele. Quantas vezes ele me diz: "Eu não sei
como é um pai! Você não quer ser meu pai?" Welinton, depois de mais uma recaída: "Sozinho não consigo,
preciso da muleta da comunidade". Hoje ele é responsável por um grupo. E Zé Maria? Uma amiga lhe pede sua
foto. Ele a coloca no facebook, assim como o é, com um lábio leporino. A infeliz responde: "Você não é feio, é
horrível!" Ele chegou aqui, seu corpo e alma sem sangue, depois de ter cortado suas veias. Ele me quebrou a
alma em pedaços. Nenhuma palavra. Eu o abracei e o lavei com as lágrimas.
18.4.2016 – Chegou Reury. Tornamo-nos amigos na comunidade. Aos 14 anos de idade ele colocou uma
corda em volta do pescoço na praça e só deixou que fosse tirada pelo pai, que se aproximou por causa dos gritos
do povo. Ele pede ajuda, o primeiro passo para sair do túnel. Ele reaparece depois de dois dias com mil
desculpas. "Eu comia quando podia, uma vida de cachorro. Um travesti me convida para ficar com ele quando a
depressão me corrói por dentro. Dois meses de marido e mulher. Podes imaginar passar do terror de "Amanhã
acordarei vivo ou morto?" para uma casa de verdade? Ele me propõe sua profissão: peito de silicone,
anabolizantes, várias cirurgias, tudo às suas custas, inclusive passaporte. Destino: Espanha. Apelido: Nicole
Kidman. Nesse ponto, digo a mim mesmo: "Meu Deus, de um inferno para outro". Eu me escondo para escapar
de sua chantagem. Encontro padre Lino, me confesso". "E agora o que você pretende fazer?" "Eu quero mudar
de vida. Leve-me ao meu amigo Fausto". Ele quer saber o que você é para mim: "Ele é meu pai". Hoje, Reury
está aqui com sífilis e estigmas na alma. Ele deve fazer o exame de sangue, depois ele irá para a comunidade.
Nos oferecem um bolo de chocolate. Ele come a metade. Ele é um homem grande, mas vive em pesadelos.
Talvez seja por isso que ele só fala de Deus: foi Deus quem tocou seu coração; foi Deus quem o trouxe aqui; foi
Deus quem lhe fez conhecer padre Lino. Deus, Deus, uma fixação, uma obsessão? O coloca em todos os
lugares! Eu nunca vou entender? [As comunidades de recuperação fazem seus clientes orarem e rezarem:
rosário, meditação, missa diária, etc. Esses jovens sem raízes e referências, rejeitados por parentes e amigos, a
quem eles podem se apegar senão a Cristo, o único que não os despreza e os rejeita? Pelo contrário, ele diz que
vem para eles: "O médico vem para os doentes, não para os sadios". Tenho a impressão de que eles o percebem
apesar de todas as explicações dos padres.]
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Está chovendo muito. Reury deve fazer o exame de sangue. Nós lhe emprestamos o único guarda-chuva
da casa. Volta sem guarda-chuva, sem chinelos, sem exames, tudo acabou em droga. Nós, reduzidos a idiotas
úteis, que acreditamos toda vez que um viciado em drogas fala de Deus melhor que o padre. Que humilhação,
pensávamos que o havíamos conquistado para a nossa causa! Qual a causa para aqueles sem autoestima? Pode-
se dizer: "pobrezinho"! Mas nãooo! Pobres estúpidos somos nós, que não sabemos o que são as drogas para
quem não tem nem pai nem mãe. Ele não disse que tinha por pai Fausto? Essas pessoas não distinguem entre
sonho e realidade, entre o que gostariam de fazer e o que fazem. Nós tentamos lançar pontes, eles aceitam,
depois voltam atrás. Queima-me o fato de ter sido funcional para o seu vício.
Reury, último ato. Sai da comunidade com um pretexto. Manipulador perfeito, mentiroso profissional.
Cristo: "Como se pode amar a quem te está enganando? Faz sentido ajudar quem procura ajuda e depois de 15
dias volta ao esgoto?" Mas eu passei pelas cruzes dele? Jesus deve ter tido um amigo de Nazaré, que fugiu de
casa: a orgia do prazer, a miséria, os porcos, as glandes. E, ato final, desconcertante, a festa: o beijo. Deus sabe
beijar Reury. E eu?
16.5.2016 - Uma noite de pesadelo. Como os dentes de um cachorro afundados na alma. José, aquele
ladrãosinho que tentou roubar o celular de Francisca, ficou conosco por duas semanas. Um dia ele arrasta três de
nossos para uma favela procurando droga. Aqui não há muros nem portões. O conselho tutelar o transfere para
outra instituição. Jogando, a bola cai no pátio da casa ao lado. Pula o muro e cai em um canil. Um pit-bull o
devora. A polícia o abate, mas para José não há mais nada a fazer. Assim devem acabar as crianças nascidas na
rua? Eu não consigo ir ao funeral. Diego conforta os sobreviventes com uma mentira piedosa: "Agora José
encontrou no céu aquela família que não teve na terra. Descanse em paz". A vida continua como se nada tivesse
acontecido: as crianças brincam, os assistentes carimbam o cartão, o sol e a lua se alternam no céu. Eu tenho um
pit-bull na alma.

3ª Mensagem: Reury: perdão sim, perdão não?


Fortaleza, 28.5.2016
Francisco, que bom seria lhe contar uma coisa agradável! Mas, a TV está cheia de soldados da força
especial. Outros falam de força punitiva. Eles chegaram depois de tudo: a prisão para 900 é ocupada por 2.000
presos. Motim pelas péssimas condições: queimam colchões, tudo, inclusive 18 predestinados à vingança por
infrações internas. Gilberto: "O que quer que façam agora que se puniram mutuamente? A comissão de direitos
humanos fala com os chefes e os órgãos de segurança devem aceitar suas condições: nem julgamento, nem
punição, nem transferência. Se não forem aceitas, 14 serão executados, já prontos, amarrados como salame. A
força especial usa métodos fortes para intimidar, mas em poucos dias reprimirá outras rebeliões e aqui voltará
tudo como antes. Os guardas por dinheiro, os parentes por laços familiares, introduzirão o que querem. Nosso
país é assim". Eu me recuso a ver decapitaçõess, pessoas queimadas vivas, cenas assustadoras colocadas na rede
para dizer: "Aqui somos nós quem mandamos. Vejam de que somos capazes". Em Pedrinhas (S. Luís) os presos
encenaram um jogo de bola com a cabeça de um da outra facção. Walter vende material de construção. Seu
depósito está em frente a um semáforo, onde bandidos atacam os motoristas. Perde os clientes. Relata o fato à
polícia. Nada a fazer. Ele fala com o chefe dos traficantes, que resolve a coisa. Ele me dá um conselho: "Sempre
mantenha 100-200 reais prontos. Melhor pagar o pedágio com dinheiro do que com a vida". Obrigado Walter.
Chega Reury. Ele chora como um desesperado, com a cabeça no meu ombro. "Eu não consegui, a
comunidade não é para mim. Nunca se acaba de rezar e trabalhar sob o sol! Eu estou morto por dentro, você
entende?" Não, Reury, eu não consigo entender. "Quem sou eu, quem é o Reury? Eu não quero mais viver. O
travesti paga para me tirar a vida". Ele chora como uma criança. Então a pergunta mais inesperada: "O que você
diria se eu fosse seu filho?" "Reury, vou passar sua pergunta para Deus". Eu aprendi com eles para apelar àquele
Deus mágico que deveria resolver nossos problemas. O que mais resta a fazer? Devemos necessariamente
imagina-Lo do tamanho do nosso desespero. Dizer que Reury está na cruz é muito pouco. Como tirar-lhe os
pregos, infundir-lhe uma faísca de esperança? "Reury, você gosta de café com leite e polenta?" Ele devora tudo.
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Depois um bom banho e agora ele dorme na cama de Gilberto. Meu Deus, lhe repasso a sua pergunta: "Se ele
fosse seu filho, o que você diria?" Deus, uma qualquer resposta, por favor. E Ele: "Fala para o vigário do meu
Filho...”
Depois de recebê-lo, alimentado, lavado, cuidado, ele foge com o celular de Cleilton. Gilberto: "Nós o
ajudamos ou colaboramos com ele para se machucar?" Reury conhece muitas malandragens: conhece todos os
buracos em Fortaleza onde comer sem pagar. Ele poderia escrever o Guia Michelin para o bom drogado. Ontem
ele veio comigo para o hospital. "Você tem a carteira de identidade?" "Não. Eu tenho um passe livre: sou
sifilítico". Meu Deus, o que você acha de todos os seus filhos como Reury? Às vezes me pergunto se é melhor
deixá-los entrege ao seu destino. Não são eles que querem a fácil euforia de 8 segundos para tocar o céu e
depois cair em mais 8 segundos no inferno da depressão? Vítima ou carrasco de benfeitores? Como fazer para
não ser cúmplice? Certa fragilidade cria pobres dependentes da bolsa-família [uma esmola mensal do estado],
que preferem passar privações a ter que trabalhar. "Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem". O sabem
muito bem que crucificam a si mesmos e aos outros. Reury, ainda haverá lugar para você no céu, porque aqui na
terra você enganou muitos? Vai enganar Deus também?
11.6.2016 – Eu achava que a história/Reury havia chegado ao epílogo. Ele telefona: "Posso vir me
desculpar pelo roubo do celular?". "As desculpas são válidas se houver uma restituição. Você teve três
oportunidades para melhorar, o que fez com elas? Nossa ajuda seria funcional para o seu vício, você nos faria
cúmplices". Até que ele encontre alguém para alimentá-lo e uma cama, ele nunca crescerá. Pela enésima vez,
recitará a parte do desesperado para comover e ser aceito. Ele acredita em um produto químico, que lhe
proporciona aquela felicidade, que não consegue obter com os meios normais de vida: empenho, trabalho,
sacrifício. Um aluno perfeito da escola de caridade, que mantém sub-homens. E assim não se ensina a restituir,
reparando o mal feito. Ele acredita que uma pequena palavra, Desculpem! é suficiente, e tudo continua como
antes. Mas como, se você queimar minha casa, se você quebrar meu braço, eu deveria lhe dizer de queimar outra
casa, de quebrar outro braço? Desta forma, eu me torno conivente com sua fragilidade. Eis o que fizemos com
os mil Reury, que povoam nossas ruas: fizemos renegados, aproveitadores. Você pode consertar uma sociedade
com a bolsa-família? Quem sabe, um dia as sociedades civis irão proíbir de fazer a caridade, os almoços para os
pobres, porque são diversões, paliativos humilhantes. Como fazer entender a Reury que recebendo-o ainda seria
o mesmo que ajudá-lo a fazer mal a si mesmo? Seria mais fácil mantê-lo em sua situação de inferioridade. Nas
mesmas condições, existem povos inteiros tratados como mendigos, classes sociais acostumadas a receber. Mas
os povos brancos e cristãos não estão os seduzindo, levando para seus casebres, através da TV , a vitrine
reluzente de uma Europa do bem-estar de massa?
15.6.2016 - Revirando-me na cama de Procuste: mas você, Deus, sabe o que é o amor traído? A história
humana pariu monstros. Seu coração não explodiu? Eu, no meu pequeno mundo, estou aqui lambendo minhas
feridas, enquanto a alma murmura uma canção popular, que faz você dizer: "Não é este aqui o mundo que eu fiz.
Não é este o homem com quem sonhei. - Eu concebi um homem fraterno e aberto. - Ou talvez coloquei água
demais no mar? - Fiz o sol quente demais? - Se por acaso é assim, me perdoe, eu errei tudo". Veja, Deus, de
onde vem minha raiva? Ter que te perdoar. Porque você fez um Reury sem vontade de construir sua vida com as
próprias mãos. Ele prefere a euforia química de 8 segundos. Eu gostaria de saber de você, Deus, o que você
sente por Reury e por todos os outros. Coloque-se no meu lugar! Ah! Você prefere se colocar no lugar de Reury
e de todos os outros, certo?
Don Zeno tem a coragem de escrever: "Todas as vítimas do egoísmo são nossos irmãos e com eles
devemos criar um mundo novo. Parece um sonho, uma fábula, mas é preciso acreditar" (11.1.1950). Deus, não
pretende demais? Há dias um terçol me faz lacrimejar olhos e alma sobre aquele: "todas as vítimas do egoísmo
são nossos irmãos". Que eles sejam nossos irmãos está bem. Mas acreditar que com eles "devemos criar o
mundo novo", não é pretender o impossível? Você pode exigir que nós pobres mortais façamos o que só você,
Deus, pode fazer, juntar cacos, ressuscitar ruínas humanas?
Hoje me vejo entre as vítimas que mais vítimas não podem ser: as crianças abandonadas. Percebo que
estou vagando ao redor do Calvário delas, porque são conchas fechadas. Elas têm, no interior, uma pérola. Mas
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a vida as traiu, tornando-as tímidas, desconfiadas, temerosas, violentas, entrincheiradas na solidão, no rancor da
dor inocente. Elas nunca falam sobre si mesmas, sobre seu passado, sobre suas raízes, que não têm. Quando se
machucam, elas não invocam Mamãe! Eu vejo a superfície delas: olhos tristes, olhar ausente, desleixadas,
indiferentes a tudo. Elas vivem contra vontade, por despeito. Eu desafio, elas importam para alguém? Sim, para
os benfeitores.
É a estação do vento. As crianças não fazem mais que empinar pipas. Horas e horas, nariz para cima, para
acompanhar o voo da criação de suas mãos. Competem com nuvens e aves migratórias. E eles puxam o fio, que
prende a pipa em cativeiro. Eu pergunto: "O que você sente enquanto o vento a empurra cada vez mais alto?".
Cena silenciosa. Incapazes de refletir ou relutantes em descer no fundo do seu ser para não ver as ruínas do
coração? Eles seguem as pipas, eu os sigo para penetrar no seu céu, girar em seus sonhos, colher sua alma
sangrando pelo abandono. Os jovens acolhidos não são santos, eles fazem as tarefas apenas quando solicitados.
As recaídas de Yuri, Reury, etc. nos criaram dificuldades. As casas de acolhida para menores não preveem a
pesença de adultos problemáticos. Como dizer a eles: "Nós não podemos recebê-los. Vocês são perigosos,
contagiosos, vocês não podem estar no consórcio civil"? E eles teriam todo o direito de me chantagear: "Como?
Você não nos pregou mil vezes que o amor nunca diz basta, não desiste, em caso contrário, que amor é?".
Desistir? Onde está minha pipa? Eu quero jogá-la em alto, sempre mais para o alto, no coração de Deus, para
que tenha compaixão de mim e de todas as vítimas. Aqui, do lado de fora há uma pipa negra presa nos fios da
luz. Parece o meu sonho abatido pelas fraquezas humanas. Quantas pipas mortas, penduradas nas árvores, nos
telhados, na minha alma!
24.6.2016 – Os Eu estava neles (Mt. 25) não me dão trégua. Como estar no Calvário e pretender não ver,
não sentir, não experimentar? Eu pedi uma trégua. A quem? Para você, Deus, vítima do seu amor imenso por
nós. Por dois anos eu vivi entre ladrões, assassinos, gays, sendo o guardião de porcos. Eu os apresento a você.
Luís Carlos: "Nasci e cresci no esgoto"; Marcelo: "Comendo lixo eu me convenci que era um lixo"; Edimar: "Eu
não preciso saber o que é o inferno. Eu estou nele, eu sou o inferno de mim mesmo". Ricardinho, uma vida de
gay, a noite toda lutando contra tempestades hormonais até que ele amarra seu pênis com o rosário. Ele vive
com a angústia do suicídio. Toda corda é um pesadelo. No entanto, é um artista, transforma um jardim
negligenciado em uma joia de bordados florais. Cristo, só você pode entender isso e seu vigário na terra,
declarando: "Quem sou eu para julgar?". Mergulhei minhas mãos e coração em seus estigmas: depressão,
desespero, loucura por não se sentirem amados. Baixa autoestima por recaídas. Conscientes de serem uns
perdidos, de terem espezinhado os afetos mais caros. Bebo suas lágrimas. Procuro o batismo no rio da sua dor.
Me cofronto com aquela incrível fé de Cristo no homem. Não no homem normal, mas no perdido: "Eu vim
pelos doentes, não pelos sadios". Você pode me permitir abraçá-lo, mesmo que ele sempre atrapalhe, como
Reury: como posso ajudá-lo a não se machucar? Eu tento fazê-lo entender que é ele quem planta em si mesmo
os pregos com as próprias mãos. Ele vai entender? Claro! Mas o problema é que ele não consegue.
Nirvando me oferece o fio da meada: "A comunidade me fez entender uma coisa: a pessoa que erra é
mais importante que seu erro". Meu Deus, se você não existisse, teríamos que inventá-lo! Nossas aberrações
exigem um Deus pai. Só Ele pode beijar uma criança perdida, fazer banquete para desprezíveis, pecadores e
prostitutas. Só ele pode gritar para Luis Carlos, Marcelo, Edmar, Ricardinho: "Eu fiz você. Eu lhe entendo,
acolho e amo, porque antes de ser um canalha você é o fruto das minhas entranhas". Gilberto, Yuri, Reury, etc.
eles me trouxeram até qui. Onde? No coração de um Deus que só pode ser Pai [Objeção: como apresentar um
deus masculino às meninas violentadas, às meninas violadas, às 62 milhões de mulheres européias vítimas de
violência, às 181 milhões de esposas/moças menores de 16 anos?]

4ª Mensagem: Casta clerical


26/06/2016
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Francisco, a trégua chegou. 200 km ao sul de Fortaleza. Uma praia imensa, lugar perfeito para acolher
meus tormentos. No alvorecer, um sol enorme, incandescente, nasce do oceano como uma criança, que sai
ensanguentada do ventre da mãe. Caio de joelhos e o saúdo acenando com a mão. O vento alimenta um céu em
chamas, canta com as ondas do mar. Eu canto minhas voltas de morte no sul do mundo. Me aproximei de
movimentos, padres, leigos comprometidos em transmitir o sonho da nova civilização. Não fui levado em
consideração. Porque será que uma pessoa individualmente não pode transmitir o sonho de um povo novo? Zeno
sofreu dolorosas incompreensões: "Por ora todos, inclusive a Santa Sé nos vomitam como fermento
demasiadamente concentrado e nossa linguagem é mal entendida. Nos perseguem porque nosso jeito de
conceber a vida por si só incomoda aos outros sistemas, mesmo que ficássemos mudos" (31.7.151). "Te segui na
missão de dar à Igreja um novo fermento de aplicação do evangelho. Essa o repudia, porque Nomadelfia é uma
revolução. ... A Santa Sé é um horror do mundanismo, por isso comete semelhantes malfeitos. Tenta me donar
para me transformar em um híbrido burguês isolado da vida dos irmãos, aos quais ela pretende que eu pregue
aquilo que clero e bispos não fazem. E ela gostaria de fazer da minha vida uma admirável exceção e não me
deixar um entre os milhões de seus filhos oprimidos e explorados por eles mesmos, que querem ser uma casta"
(9.6.1953). Eles não querem ouvir, que fazemos o que todos deveriam fazer: "Nomadelfia é uma vida católica,
sem votos, baseada em leis comuns. Se amar até ser um pelo outro fosse uma coisa especial, então o que seria o
amor pregado pela Igreja? Paganismo materialista" (6.6.1953).
29.6.2016 - O amigo padre Lopes me convida para a celebração em Redonda, um povoado à beira-mar,
famoso por suas falésias coloridas e pela pesca da lagosta. Um crustáceo para a mesa dos ricos, pescado por
pobres. Isso é evidente nas barracas, nas ruas não pavimentadas, nas crianças descalças. Embora isso, é gente
que sabe o que faz. Eles fundaram uma cooperativa em defesa da lagosta. Entraram em desacordo com os
pescadores de Icapuí, que praticam a pesca predatória: sondam e, onde há bancos de algas, jogam tambores de
ferro amassados, que as lagostas usam como ninho. Sinalizam a área com o GPS e voltam para capturá-las no
momento certo. Eles mergulham com um cano de plástico na boca enquanto um compressor bombeia o ar.
Outro dia um se afogou. A lagosta custa um preço para nós proibitivo. Para frear o desastre, os pescadores de
Redonda vasculham seu braço de mar e, quando avistam os barcos grandes de Icapuì, atacam-nos.
Cantando em alta voz, participação superlativa. Uma liturgia romana sui generis. A pequena igreja estava
lotada. Para Fausto, contagiado pelo entusiasmo das pessoas, é como a basílica de São Pedro. Olhares
transparentes, radiantes de alegria, felicidade que brota dos poros do corpo e da alma. "Deus deu uma graça
especial para vocês: viver aqui, neste mar maravilhoso, alimentando-se de lagostas! Ontem eu vi o nascer do
sol. Que espetáculo! Um céu incendiado, o mar como uma orquestra. Ajoelhei-me e o saudei com a mão. É fácil
ser bons, quase santos, aqui, na igreja. Nossa Igreja está lá fora, onde celebramos a vida, a solidariedade, a
justiça, o amor, esses sacramentos que todos podemos administrar. Obrigado!" Palmas, sorrisos, abraços, olhos
brilhantes.
Não me falta a capacidade de fazer vibrar as cordas das pessoas. Quando eu lhes falo, me espelho em seus
olhos. São eles, que tiram de dentro de mim o que querem ouvir. Na oração dos fiéis, chamo as crianças para
perto de mim. Eu pego nos braços o menorzinho: "Quantos abandonados existem no Brasil? Oito milhões.
Mulheres, não tenham medo de pegá-las como filhos como Maria fez debaixo da cruz. Invoquemos a Mãe das
mães: Ave Maria ... Ao beijar o menorzinho beijo os oito milhões". Aplausos.
Você dirá: como é possível, você sabe tocar as cordas dos corações e você não é feliz? Sim, minha alma
vibra, faz de tudo para compartilhar o que vive naquele momento. Mas depois reflito: isso é ser funcional ao
status quo. Eu anseio a uma vida da nova civilização, de um povo novo. Eu não consigo ser o funcionário do
culto. Eu aspiro a uma vida que seja um evangelho vivido, operante, transformante. Impossível pertencer às
vítimas e à casta clerical? Zeno escreve: "Mas se ser padre implica privilégios, títulos canônicos, como é
possível estar em pé de igualdade? Para nós, primeiro se é Nomadelfos, depois sacerdotes; primeiro povo,
depois padres. Não é mais um mestre que forma uma casta para si mesmo, mas o homem jogado no meio do
povo, é povo" (7.2.1952). "Eu vou ter que chorar um contraste de alma: o sacerdócio me liga a uma casta, eu
não posso ser um pária. Estes são os paradoxos da história: animados pelas mais santas intenções, os pais da
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igreja revogaram com a lei positiva o mandato do sem sacola (sine pera) aos sacerdotes, que não podem ser
ordenados sem um título econômico "(1.7.1952); "Papas, bispos, padres, somos uma casta" (23.2.1952),

5ª Mensagem: Render-se a Nomadelfia?


Ontem pedi uma trégua, hoje peço um armistício. Contraparte? Deus mesmo. Estou cansado de remar
contra a corrente. Mesmo o mais determinado em realizar conosco o sonho da fraternidade entre as famílias nos
deixou em apuros. Como me encantava quando falava de Deus melhor que um padre! Gilberto apareceu no dia
seguinte, bêbado, insultando-me. Como isso pôde acontecer? Eles me disseram: "Nós viciados manipulamos até
Deus". Acolhemos alguns jovens, aos quais tentamos transmitir o gosto de viver como irmãos. Ninguém
resistiu. Eu olho para além das nuvens com as pipas que cruzam o céu. Que mensagem está por trás das nuvens
dos eventos? A massa humana é imatura, inadequada para a fraternidade social? Eu me pergunto depois de três
dias de luto da alma.
Cristo, mesmo exaltando os perdidos; mesmo reservando os primeiros lugares para pecadores e
prostitutas; mesmo colocando os pobres no trono, ele não os escolheu como discípulos. Uma discriminação?
Quem se afundou no desespero está excluído de ser Seu discipulo? Eu não desci para o inferno deles. Eu não
conheço o buraco negro do desespero. Aquele que recorre, como extrema ratio, às drogas ou ao álcool deve ser
porque não resiste à ignomínia de sua fragilidade. Gilberto põe pra fora aquele que o machuca por dentro, só
com a ajuda do álcool. Caso contrário, ele mantém tudo dentro. Tudo o que? A vergonha de existir, a angústia
de não poder se aceitar como é. Tenta se suicidar com um veneno de rato, porque se considera um rato? Quem
pode medir a dor de um crucificado pela vida, por seus entes queridos, por si mesmo? Francisco a pergunta é
para você.
Os perdidos sabem desde pequenos que não são interessantes, agradáveis, inteligentes; que tem mau
caráter; que são propensos ao vício. Nossas obras de caridade não fazem mais que evidenciar a sua miséria:
"Você me ajuda, porque me considera um miserável, certo?". Nossa superioridade causa comportamentos de
revolta ou de submissão. Todos os meios serão bons para superar seus limites. Até que se tornem odiosos. Por
quê? Porque sofrem por não serem amados. Pedem somente para serem considerados nossos semelhantes,
irmãos e irmãs. Mais do que pelo amor de Deus, pelo amor do homem. Preciso aprender com as desilusões a
amar até o fim. Desistir do sonho seria um suicídio da alma. Sobreviver às ruínas nossas e dos irmãos. Zeno:
"Para mim o povo na Igreja é pagão. Existe apenas um remédio: fechar as igrejas e a humanidade recomece
novamente". Devemos procurar pessoas que têm nojo do bem-estar. Estou cansado de moer água benta no
pilão, administrar uma religiosidade funcional ao status quo. Chegou a hora de me entregar a Nomadelfia?
Você não pode pretender falar de uma nova civilização, porque sozinho não representa um povo novo. É
impossível transmitir um evangelho encarnado com conversas, o que se vive em uma espécie de placenta
evangélica, onde todos decidiram renascer como indivíduos, como famílias, como sociedade. Como pretende
entender Nomadelfia com duas palavras, com a ficção sobre don Zeno, com seu entusiasmo? Quem nasce no
berço da nova civilização respira o evangelho da manhã à noite: no grupo, na escola, no brincar, no trabalho, nas
relações familiares e sociais. O evangelho é tomado como uma lei civil por um povo de voluntários. Não nos
amamos por sentimentalismo; o parentesco de sangue é superado; se trabalha por amor; tudo em comum, até
empresas; o perdão é lei civil; você não ama sozinho, mas com o coração de um povo novo; você não é mais
uma chama, mas uma sarça ardente.
Francisco, você faz de tudo para superar o dogma frio, a doutrina abstrata, o sábado desumano com o
remédio da misericórdia, com a revolução da ternura. Porque no centro não há legalismo, mas o amor de Deus.
Vem do fim do mundo para abrir os olhos de uma religião centrada em questões do primeiro mundo; para
empurrar o cristianismo para além das fronteiras europeias. Seu programa: Cristo não está apenas “fora batendo
para entrar", mas ele está também "dentro e bate para sair". Para nos livrar da auto-referencialidade,
autossuficiência, centralidade primeiro mundista e permitir que Ele saia, para se encontrar com o homem global.
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Você compartilha esse destino até o fim: "Quem sou eu? Eu sou pecador e falível". Você transforma o papado
sem tocar a fanfarra. Para uma igreja em diálogo, que busca a lógica de Deus, não dos doutores da lei. Que não
tem medo de comer e beber com prostitutas e publicanos, dialogar com os desiludidos de um cristianismo
estéril, ir além da insistência ao pé da letra em questões doutrinárias e morais. Mas você pode nos oferecer um
pedaço do evangelho socialmente encarnado? Você pode dizer às famílias: "Venham e vejam?" Como os
simples podem sentir o cheiro do evangelho se não o tiverem concretizado através de exemplos concretos? Os
povos órfãos buscam a maternidade e a paternidade de um povo além do fato biológico, da raça das pátrias, do
sangue dos nacionalismos. Como renascer se eles não tocam com as mãos um exemplo concreto de um povo
novo? Na insistência de fazer atos de amor espiritual e individual, perdeu-se de vista o Cristo/global do juizo
universal. Don Zeno: "Hoje Deus precisa de uma Nomadelfia para que as pessoas possam ver até onde pode
chegar a fé no campo social. O mundo não pode entender a Igreja e a fé se não houver um modelo de civilização
cristã profunda. Façam coisas muito bonitas e começarão a dizer: 'Quem são estes aqui?' Um outro Cristo na
forma de um povo" (Heresia do amor, 93).
9.10.2016 - "Se você tem a vocação de Nomadelfia, com quem realizou a relação de fraternidade: 'Tudo o
que é meu é seu, tudo o que é seu é meu'"? Um filho rico do norte pode se igualar a lavadores escravos de arroz
e feijão? Bela pretensão! No entanto, as minhas não eram intenções piedosas. A tentativa do Projeto São
Francisco é a contraprova. Na insistência de refletir com os catequistas dos povoados sobre os primeiros
cristãos (Atos 2:4), uma dúzia deles me retorna o desafio: "Estamos cansados de sermos os cristãos do doningo.
Queremos sê-lo a tempo integral: nas relações de trabalho, de produção, em família, entre famílias". Fausto
resiste, pois se dá conta, que não se pode acender o fogo e pretender que não se alastre. Nasce um projeto
comunitário com 12 famílias. Trabalha com eles, come no mesmo prato. Eles visam melhorar suas condições
econômicas, ele aponta para uma mini-sociedade fraterna, sem patrão nem servo. Se não se consegue colocar
tudo em comum desde o começo, nós iremos passo a passo. As galinhas, por exemplo. Aquelas de João, com
oito filhos, acabam em panela antes daquelas de Lourival com um só filho. Eles pensam com o estômago, eu
com a cabeça. E assim quebrou tudo. Meu erro: acreditar que é possível viver o "Tudo o que é meu é seu, etc.",
sem ter se libertado da escravidão do arroz e do feijão, da dependência econômica. Só é possível se tornar
irmão em tudo se se é livre, portanto, também com as galinhas. Eu gastei uma vida - e que vida! - para traduzir
esse sonho em realidade. E estou aqui de mãos vazias, com a alma em apuros. Para não dizer na cruz.

6ª Mensagem: Don Zeno e a família de Deus (Notas de suas lições: 1970-1980)


Caro Francisco, mais do que santa é a sua preocupação com a família. Dois Sínodos, um dicastério,
inquéritos. Ainda estamos na circunferência? Compartilho contigo o que aprendi com Don Zeno, o inventor da
família de Deus, dou-lhe a palavra.
Em 1952, Pio XII lançou um apelo: "É um mundo inteiro que precisa ser refeito dos alicerces fundações,
passar do selvagem para o humano, do humano para o divino, segundo o coração de Deus". Para mim, também
as famílias devem passar do selvagem para o humano, do humano para o divino. Cristo diz: "Se amam aqueles
que os amam, que mérito há nisso? Até os pagãos ... " (Mt. 5:43). Para mim, até mesmo os animais... Eu explico
às mulheres: "Quando era jovem notei duas gatas com seus filhotes. Uma morreu, a outra carregou os órfãos
para seu ninho e os criou todos juntos. Sejam como as gatas, pelo menos!"
O maior obstáculo para a nova civilização é o relacionamento familiar. A família isolada é um perigo.
Todos os dias você vai trabalhar e não sabe se volta à noite, deixando uma viúva e alguns órfãos. Não é como
voar sem pára-quedas? Por que o decantado afeto familiar coloca no internato os filhos incômodos e no asilo os
pais idosos? As tribos dos pagãos tinham soluções mais civis. A família isolada é contra a natureza, tem que
lutar contra monstros: egoísmos familiares, sentimentalismos, racismos, limpezas étnicas, pátrias.
O desafio de Cristo a Nicodemos - renascer do espírito - é dirigido ao indivíduo ou também à família? A
cristiandade não tem exemplos para oferecer. A família permaneceu pagã, os leigos não desenvolveram os
aspectos positivos. Um inesperado e a família falha. Ou é cruel Deus em fazer os órfãos ou somos cruéis nós,
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que não sabemos encontrar soluções. Se com o vínculo de sangue a família patriarcal não abandonava nem
filhos nem velhos, o que se poderia fazer com o vínculo da fé? Assim como se pretende a fraternidade entre
indivíduos, por que não pretendê-la entre as famílias? A família é um centro egoístico por natureza. Mas se tem
uma função social, não pode se fechar em si mesma. Se o amor que você tem por seu marido e seu filho se torna
um obstáculo para nos amar como irmãos entre família e família, que tipo de amor é esse? O câncer da Igreja é
que o casamento não é vivido como uma vocação universal. O Senhor nos criou na família, mas o amor dos
cônjuges é um episódio. Se unem pelo sacramento e renascem para uma nova relação: "Não mais da carne, do
sangue, da vontade do homem" (Jo. 1:13), porque "o que é carne é carne, é o espírito que vivifica". Se o amor
dos cônjuges é uma experiência de amor do divino, por que não se abre às vítimas do não amor? Os filhos não
devem ter medo nem da morte. Um deles disse: "Para os filhos mãe nunca morre". Suas lágrimas são uma
ofensa a Deus.
Se a tragédia dos órfãos fosse inevitável, Deus seria cruel. Quem ama, Deus? Os abandonados. Onde está
Cristo? Nos filhos à deriva. Os filhos não são motivos de chacota dos pais, da fatalidade, da desgraça. Deus nos
deu a honra de entregar Seus filhos a nós. Todos iguais, para Ele: o ponto mais delicado da fé. O sangue
confunde papas e chefes de estado. Raselli chegou a dizer: "Uma mãe, para salvar seu filho, destruiria uma
cidade".
Se Deus é nosso pai, somos filhos e irmãos. Ninguém é filho dos pais, porque eles não procriam a alma.
Eles são instrumentos ocasionais. Um filho escreveu: "Mãe não é aquela que gera, isso é um fato de Deus, mas
aquela que nutre e que leva ao amor". Os animais também procriam. Nós vamos além do fato biológico, porque
a paternidade/maternidade humana não é nossa, é de Deus. "Eu fiz um filho": como, se você nem sabe quanto
cabelos ele tem? As mães se apossam de Deus e de seus filhos. Ladras! Não pode arrebatá-los a Deus para
torná-los seus. Filhos da carne? Não cultuamos a carne, que os unem e os tornam escravos. Devemos ir além do
amor consanguineo. A fraternidade é um fato de Deus, não uma obra do sangue, que bloqueia os vasos de
comunicação e nos divide. A luz de Deus passa pelos sentidos, torna-se sensível, mas é medida, equilibrada.
Não devemos amortecer os sentimentos, mas elevá-los ao nível do próprio Deus, porque "o homem animal não
percebe as coisas de Deus" (1 Coríntios 2:14).
A vida eterna é fazer a revolução, levando ao povo a família segundo o Evangelho. Amar-nos como Ele
nos amou também como família. Por que os filhos se perdem? Porque não os sabemos amar. As mulheres os
amarram com o elástico para puxá-los de volta ao útero e guardá-los apenas para si. Cristo nos ama com os
sentimentos, a simpatia, a antipatia, a preferência, a aceitação da pessoa? Os sentimentos são dançarinos, eles
vão e vem, o amor verdadeiro permanece. O povo beatifica o seio que o alimentou, o ventre que o gerou. E Ele:
"Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática" (Lc 11:27). Os sentidos devem ser
guiados pelo espírito, não fazer-nos escravos do parentesco, do sexo, da matéria. Então os filhos renascem filhos
de Deus. O amor sobrenatural é uma força que transforma o mundo. Damos aos filhos a alegria de serem livres
e não escravos de nossos afetos. Vocês dizem: "É meu!" Foi você quem fez aquele menino? Para o Evangelho
"nasce um homem para o mundo" (Jo 16:21), não para a sua mãe. Por que roubam os filhos a Deus? Uma vez
batizados, não são mais seus. Toda a sociedade cuida deles. Nosso coração é feito para amar somente aquele ali?
Na história doninou a carne, o sangue, a raça. Também na igreja. As mulheres acreditam que amam seus filhos
com sentimento. Não é amor, o sentimento é selvagem. Se te faz amar um filho, por que não te faz amar
também o outro?
Quando passa uma mulher grávida, devemos nos ajoelhar: ela é uma Nossa Senhora. O que vai nascer
deve ter a garantia de estar seguro sob uma chuva de amor. O amor não se divide, é Deus em nós. Você ama
demais seu filho? O que é esse demais? Vocês se apresentam diante de Deus e podem dizer de tê-lo amado
como Ele o amou. Enquanto cresce, ele não deveria se sentir como um filho, mas como um irmão dos pais.
Temos que passar da família biológica para a de Deus. Cristo diz: "Deixem as crianças virem a mim" (Lc
18:15). Ele não diz a nós, mas sim a Ele. Da cruz, o Senhor entrega os filhos: "Mulher, eis o teu filho. Filho, eis
a tua mãe" (Jo 19:18). E cria a família do espírito. A Igreja ignorou demais a maternidade do Calvário: Maria,
recebendo João como filho, o gera de novo pelo espírito. De que serve a fé de mais de um bilhão de católicos se
23

não se enxugam as lágrimas de 168 milhões de abandonados, se não se é capaz de dizer a eles: a minha família é
ressurreição e vida para a de vocês? Resgatemos a família e as crianças verão na mulher a mãe. Se nosso amor é
sobrenatural, o filho sente que o fazemos filho de Deus, não do homem. "Quem é meu irmão, irmã, mãe? Quem
ama o seu filho mais do que a mim não é digno de mim" (Mt. 10:37). Deveria nascer em nós a admiração, a
devoção pelo homem. Morte, doença, solidão, nada nos assusta. Não temos irmãos com os quais contar? Quem
é nosso pai? Deus. Então, o que significa ter nascido de famílias diferentes? Cristo recusa a linguagem do
sangue, da raça, do afeto familiar: "Vocês não sabiam que eu deveria cuidar das coisas do meu Pai?" (Lc 2:41)
Cristo destrói o homem de carne e cria um homem de espírito.
Há muita religiosidade superficial. Olhem-se no espelho: não somos Unum4 com a carne? Devemos beijá-
la, reverênciá-la. Em 1953 - Nomadelfia é desfeita, eu afastado, os menores levados para os institutos - tive uma
discussão com o cardeal Pizzardo: "Se para Você não é possível amar do mesmo modo um filho carnal e um
acolhido, Você é um luterano, porque não acredita no poder da fé, que nos é dada para fazer as coisas
impossíveis ao homem. Só por isso". Se não surgir uma força, que mude a rota a nível familiar, a humanidade
não se salva.
Eu disse às meninas: vocês são chamadas para amar mais do que nós homens. Vocês tem um privilégio:
Cristo recebeu de vocês a carne, passou por vocês. Tenham cuidado: quando vocês pegarem no colo os filhos,
levam Jesus Cristo em suas mãos. Vocês têm uma missão materna sobrenatural sobre todos os homens. Onde
vocês acham que esteja a maternidade? No rosto dos abandonados. É a fé que nos faz ver isso. A maternidade
não é de carne, mas de espírito. Uma missão não apenas pelos próprios filhos, mas para toda a humanidade. Para
nós, até mesmo a maternidade é re-criada, regenerada. Todo o universo está concentrado nesta criatura humana -
Maria - que gera o Filho de Deus, Jesus faz renascer a maternidade de Maria, confiando-lhe como filho, João.
Com esta maternidade, renovamos o mundo. Nós homens não sabemos fazer o que vocês fazem. Que as
mulheres não ofendam seus ventres, porque são o berço da humanidade. Tenham o olhar de Nossa Senhora. A
verdadeira beleza não está no físico, mas na alma. Ou conseguimos convencer as mulheres de sua missão ou o
mundo se perderá.
Historicamente, as mulheres salvaram a humanidade. Sem vocês tudo desaba. Depois de Deus vem a
mulher. Quando Ele escolheu alguém para se tornar homem, escolheu a mulher, não o homem. As duas palavras
mais sagradas do mundo: Deus e mãe. Eu fustigo vocês para obter o máximo. Mas quando vejo à minha frente
mulheres como a Norina, que criou 74 filhos; a Sirte, cerca de cinquenta, devo dizer que vocês são heroínas e
estou disposto a beijar o chão que vocês pisam.
Nunca conseguiram fazer um povo civilizado na Igreja, porque o que estraga tudo são os sentidos, os
quais não raciocinam, são cegos. Precisa dizer não ao mundo. Dizer Nova Criação significa que tudo na criatura
deve ser novo: o coração, a carne, a mente, os sentidos, os sentimentos, as células, tudo. Tudo diferente, uma
outra coisa, não mais da carne, do sangue, mas de Deus. Então nos tornamos amáveis. Jesus era de companhia.
Era belo estar com Ele, a ponto de dizer: "Onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, estarei no meio
deles". Então está aqui. Procurem-no, abracem-no!

7ª Mensagem: A Família: "Não do sangue, mas de Deus"


22/11/2016
Nomadelfia dá aos filhos não somente uma família, que passa, mas um povo que não morre. Vai além do
fenômeno biológico, trazendo paternidade, maternidade, filiação na dimensão espiritual. Os seres humanos,
espíritos encarnados, amam através dos sentidos, da matéria, da carne, mas não podem ser reduzidos aos
sentidos nem à matéria nem à carne.
Em Nomadelfia, entre as famílias há uma atmosfera tal, che não é possível distinguir quem é o filho e de
quem. O filho não é propriedade privada dos pais, mas nasce para todos, todos são responsáveis por ele. A
4
Uma só coisa.
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relação entre os sexos é marcada pela sobriedade. "A fraternidade de Deus é muito delicada. É preciso ter
cuidado para não perturbar os filhos acolhidos como vítimas do sexo, o qual é um motor antecipado5. Os órgãos
reprodutivos amadurecem antes da maturidade psicológica. Uma menina pode gerar aos 13/14 anos. Mas é
capaz de ser mãe?". Ele explica aos jovens: "Uma civilização é julgada pela maneira como trata o sexo, o qual é
como uma Ferrari: quanto mais veloz é um carro, mais eficientes precisam ser os freios, caso contrário ele cai na
vala. Qual é o freio do amor? O amor, que é maior do que o sexo, portanto o domina".
Os casais se amam, mas esse amor não pode se tornar uma barreira em relação às outras famílias, de outra
forma como podemos ser irmãos também como famílias? O que significa renascer como casal? Vivendo o
clima do povo novo, a atmosfera do grupo familiar, se absorvem emoções, vibrações, sensações que vêm do
poder de ser renascidos como filhos livres de Deus, também como casal. "Quem renasceu ex Deo tem a carne
consagrada, porque também com a carne atua o evangelho."
Em Nomadelfia a célula comunitária não é a família, mas o grupo familiar. 3/4 famílias gerenciam juntas
a vida diurna na casa central: cozinha, lavanderia, refeitório, horta, animais de quintal, tudo em comum. Ao
redor, quartos para cônjuges com os menores e casas separadas para meninos e meninas com alguns
responsáveis. Esta invenção é um fato de espírito: a criança vê, sente que a mãe não é só sua, mas faz comida,
lava, passa, para todos. A criança vive sob a cúpula afetiva de 3/4 mães, absorve as vibrações de uma mãe mais
ampla, universal, aquela que não morre mais, porque todas cuidam dele e lhe dão um amor mais forte, que anula
a injúria de ser órfão. O menino no grupo cresce sob uma chuva de amor, que o abre para a vida da comunidade.
Portanto, se educa para descobrir o significado das pulsões, de se apaixonar; sente que as tempestades
hormonais não são algo de que se envergonhar; para a menina, o ritual mensal da menstruação é o chamado para
a maternidade. Depois formam sua família de acordo com o espírito aberto, acolhedor, amplo que elas
absorveram no grupo. E descobrem que o amor conjugal é uma experiência do divino através do dom mútuo de
si, que absorvem, respirando desde pequenos.
Nunca vou esquecer a surpresa da primeira vez. No seminário fizeram de tudo para me convencer de que
a mulher é um pecado e agora eu vivo um amor inimaginável. Como pode uma mulher se doar, deixar-se invadir
por um homem? Somente algo que vem do além pode lhe dar a força de tanto amor oblativo. Será que o
maligno irá inventar uma realidade tão sublime que, no ato de se doar reciprocamente, parece transcenderem a si
mesmos? Tive a graça de constatar em minha carne que o amor conjugal é verdadeiramente uma experiência
viva do divino. O amor funde dois seres, de modo que eles se completam, um entusiasmo que lança os dois,
agora um, no céu da felicidade, que se abre para o horizonte divino da Vida/dom. Entusiasmo significa: en theos
= em Deus = se sentir em Deus. Viver o amor conjugal sem sermos escravos da carne, do sangue, da vontade do
homem, porque nascemos de Deus seja como indivíduos que como casal. Criando o casal, Deus congratula-se
consigo mesmo: Valde bona, uma realidade muito boa! [cf M. Cristina Jacobelli, Risus pascalis, parte II: O
fundamento teológico do prazer sexual].
O amor universal faz gerar os filhos na nova civilização, os quais podem dizer com Cristo: "Quem é meu
pai, minha mãe, meus irmãos?". Para ser mãe não é suficiente dar um pedaço de carne. Isso também os animais
fazem. A maternidade instintiva trata o filho como uma boneca para ser apreciada e se gabar com as amigas;
uma propriedade privada; um apêndice dos pais. E o filho reage, quer sair da placenta das afeições instintivas
para voar no céu da liberdade. Não pode se desfazer do afeto, mas se isso se torna uma prisão, ele se rebela. O
cordão umbilical não é uma corrente. Se quiser o filho só para você, o reduz a um objeto para admirar e
desfrutar. E assim você o violenta. Pela lei da solidariedade, o filho não pode prescindir dos outros para
educação, cuidados, vestuário, alimentação, etc. E ele deve aprender a devolver o bem que recebe. "O evangelho
é natural, como comer e beber. Aperfeiçoa a natureza e vai mais longe até dizer que o filho não nasce para a
mãe, mas: um homem nasceu no mundo, para o mundo, então o mundo inteiro tem que cuidar dele”.
Os instintos são necessários como enzimas. A mãe deve amar também com os afetos, com o coração de
carne, com os sentimentos, com os sentidos. Nascemos da carne, mas não podemos ser reduzidos a carne; somos
5
Motor tão acelerado que foge do controle da razão. Vem antes, se antecipa ao raciocínio e é devido ao insinto da
sobrevivência da espécie.
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matéria como a lagarta que produz a borboleta. Nascemos para voltejar no céu do espírito, não nos meandros
dos instintos. Eis a necessidade da transição do selvagem para o humano. Nomadelfia cria uma família de
famílias, um povo novo, porque acredita que o afeto passa, o amor renascido do espírito permanece. E faz a
família nova, que abraça todos os nascidos de mulheres como filhos de Deus. Não nascemos de Deus seja como
indivíduos que como família? O amor dos dois não é mais uma casca, uma fortaleza que, à noite se fecha para
os outros, mas os acolhe como filhos e irmãos. A fé leva o homem à sua realização, aperfeiçoa a natureza. Cristo
não nega nem despreza o fato biológico, vai além.
Fiz várias tentativas para sair do gueto da família isolada, que, para Don Zeno, é contra a natureza, uma
aposta. Aproximei-me de vários movimentos, mas, para todos, a família nuclear é um sarcófago. A família
adotiva pode abrir espaço para outros filhos, mas a família permanece um fim em si mesma. E os filhos de
ninguém com quem deveriam se queixar? Deveriam derramar suas lágrimas, desespero, problemas psicológicos
em Deus Pai? Hoje a família é despreparada, não foi formada por um amor maior. Neste ritmo, quando estará a
altura da sua tarefa? Acredita-se que a privacidade do casal é inviolável; a intimidade familiar é algo sagrado;
primeiro vêm seus próprios filhos, depois, talvez, os dos outros. Você não vai querer compartilhar a herança
com os filhos de ninguém! Em quase dez mil santos, os casados cabem nos dedos de uma mão. Mas eles, os
santos, nasceram de anjos? Se o casamento fosse um obstáculo à santidade, Deus não teria nos dado os meios
para nos realizarmos também como cônjuges. Enquanto não se produzirão modelos alternativos, a família não se
realizará segundo o plano de Deus. Com tantas traições, feminicídios, estupros, mães solteiras, mulheres
solteiras, etc. as famílias deveriam se reunir? Tribos, grupos nobres, famílias patriarcais ofereciam à família
nuclear um suporte na doença, morte, desventura. E nós, cristãos, nem isso sabemos fazer? Zeno escreve:
"Família [de Nomadelfia] cujo amor rompeu as muralhas daquela pagã elevada à dignidade de um sacramento,
mas incapaz de estender a alegria da convivência a outros desafortunados e de aplicar a santidade dos vasos
comunicantes a outras famílias para serem perfeitas na unidade. O sacramento está lá, mas seu desenvolvimento
sobrenatural é relegado aos pântanos do paganismo instintivo" (25.8.1952).

8ª Mensagem: pessoas perdidas


Senigallia 28.10.2016 –
Caro Francisco,
Repito: toda hora 250 milhões de pessoas empreendem marchas em busca de irmãos. Só você os defende.
Com ações concretas: banheiros para os desabrigados; lava os pés dos prisioneiros; acolhe as famílias de
refugiados no Vaticano; se contenta com 70 metros quadrados. Você mede palavras e gestos, porque sabe que
não é compreendido por certos prelados, para os quais: "O que pode vir de bom da Nazaré de Buenos Aires?".
Um papa amigo de pessoas de má reputação: esfarrapados, catadores, recicladores, vendedores ambulantes,
pescadores, camponeses, todos underdogs. Os papas nomeavam príncipes seus parentes e tu te cercas de
contestadores como os representantes dos movimentos populares. Lava as roupas sujas da Cúria na praça. Um
papa periférico pela cultura, teologia, o qual evidencia, com gestos simples, que por 2000 anos o catolicismo
esteve em função da horta da Europa, colonizadora, belicista, lugar do pensamento universal.
Eu tenho os olhos cheios de teus irmãos migrantes, que passam e repassam na tela, a perfuram e penetram
em mim. Sobem pelas veias e descem pelas artérias. Fugitivos da única terra de Deus. Um juízo universal vivo.
Não dizem uma palavra e seu silêncio é ensurdecedor. Onde esperam que esteja o Cristo/global, se não naqueles
olhos amedrontados pelo terror de cair nas mãos de pretensos povos cristãos?
Os Eu estava neles, os 3.700 afogados no canal da Sicília, me atormentam [11 mil nos últimos três anos].
Um assédio da alma. Ontem foram capturá-los para deportá-los em navios negreiros como livros na prateleira.
Hoje vêm para se tornarem escravos voluntários de nossas economias de usa e joga fora. Como podem ser
agressivas essas pessoas que não conseguem ficar de pé? E eu, na escuridão da noite, vejo-os nas profundezas
da minha alma, como juízes inexoráveis. A eles será entregue o julgamento do mundo e da história: "Eu era um
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povo bombardeado por bombas produzidas por mãos cristãs. Eu era uma economia sangrada pelo mercado
global. E vocês, povos de raízes cristãs, declaram guerras de legítima defesa do seu estilo de vida". Em Goro
(Ferrara) se fazem barricadas para se defender do ataque de 12 mulheres e 8 crianças. Devem recuar e eles, os
agredidos, cantam a vitória.
Quantas vezes eu passeei com Zeno na propriedade, andando pelo mundo, falando sobre seus tormentos:
nova civilização, povo novo, um maço de fósforos. Por que você me confiou um pequeno fósforo? Onde
acendê-lo para desencadear o incêndio do seu coração? É o fósforo que deve acender a chama não de um
indivíduo, mas de um povo: é chama a nossa de um povo o amor6 [se canta em Nomadelfia]. A que serve uma
vocação heroica se nos preocupamos de não exagerar em um mundo devastado por kamikazes desesperados?
Por que não nos atiram. De uma vez por todas, na alma para despertá-la da catalepsia do quietismo católico?
Fausto, você é um fragmento da alma de Zeno lançado entre os povos irmãos? Don Ennio, o sucessor, te
escreve: "Você é a ponta da lança de Nomadelfia plantada nos corações dos povos". E testemunha com livros o
seu andar entre os povos, porque você não resiste ao desejo de compartilhar o tormento da alma.
15/12/2016 - Durante a noite me refugio na alma de Don Zeno, me espelho em seus tormentos,
procurando confirmação em seus desabafos ao papa: "Minha lei é a lei dos náufragos" (24.7.1953). "Deslizamos
no rio de milhões de escravos" (1.5.1953). "De vez em quando o Senhor nos lembra que somos irmãos daqueles
que sofrem e morrem de desnutrição e abandono. Nós somos deles" (1.8.1950). "Reduzidos a náufragos para
sentir em nossa carne a dor das vítimas" (16.1.1952). "O náufrago vê e sente; quem não é náufrago medita sobre
isso. Se se quer entender, se deve pular entre os náufragos e lutar com eles... Eu não tenho medo de Roma. Eu
digo tudo isso para não tornar-me cúmplice" (1.10.1953). "Seria bom se eu tivesse medo de defender os direitos
dos oprimidos!" (15.8.1953). "Amo a todos os oprimidos e amo os opressores, para que se convertam"
(2.5.1953). "Somente os oprimidos podem entendê-la [a Igreja] e trazê-la para o mundo" (27.2.1953). "Nós
eclesiásticos estamos em constante pecado de injustiça ... e no aparecimento de Cristo no oprimido clamamos ao
erro, ao escândalo" (26.6.1952). "Se tenta atacar nosso amor: vocês, marginalizados, não podem se abraçar e se
transformar em irmãos, porque, unidos, se tornam uma ameaça para os exploradores. A fraternidade vos liberta
da escravidão" (2.10.1951).
Zeno não está na janela para assistir aos eventos, ele se joga na briga para salvar as vítimas de seu tempo.
Além do fronte (1943), persegue políticos e prelados para induzi-los a dar-lhe uma mão para receber todos os
órfãos. No período pós-guerra, torna-se vice-prefeito e fala nas praças para propor um movimento social. Se
imerge como um fermento na farinha. Quer ser a voz de milhões de oprimidos: "Nomadelfia só será Nomadelfia
enquanto for a bandeira dos oprimidos; quando deixar de sê-la, não será mais Nomadelfia”. Seu coração navega
no povo, em seus problemas, em suas reivindicações. "Na praça me sinto bem! O povo? O sopro da minha
alma". Três vezes pergunta a Irene, a primeira mãe: "Você ama o povo?". Ele não pergunta se ela ama as
crianças, mas o povo. Hoje ele não repetiria aos seus seguidores: "Vocês amam os povos?". Podemos
permanecer isolados, expostos em um museu enquanto a Europa cristã é invadida por pessoas que fogem da
fome e da guerra? Eu não digo que devemos fazer assistencialismo, temos que levar a solução nas origens do
problema, onde o egoísmo global quebrou todas as barragens. Mas, devemos nos interessar, sentir na nossa
carne as tragédias dos náufragos, pelo menos.
A vida de Don Zeno é uma viagem sem fim. Sempre em movimento, o coração fixo no povo, para os
povos. "Deem a volta ao mundo! Se sentirem repugnância por uma criatura, não amam o povo". E as tentativas
de jogar Nomadelfia na praça, no coração do povo com conferências, festas, imprensa, nômade, caravana,
teatro-tenda? Não basta-lhe criar um modelo na montanha, desce ao vale com outras propostas: a união dos
párocos (1943), a associação dos pais da família (1942), os desempregados de Montorsaio; as tentativas de
colaborar com frades e monges, com os jovens de Don Giussani, os Ciellini! Você lembra, Zeno, as propostas
que você lhes fez depois de muitas reuniões e enfrentamentos? "Vocês nos ajudam a tirar todos os garotos
presos nas casas de correção? Estendo não a minha, mas a mão ensanguentada de Cristo. Vocês aceitam libertar
todos os prisioneiros? Pegamos alguns navios em desarmamento e com eles fazemos os piratas do bem. Vamos
para os americanos e: "Não sejam idiotas! Deem-nos os excedentes alimentares, que vocês jogam no mar e nós
6
"A chama do nosso amor é de um povo inteiro".
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os trazemos para aqueles que estão com fome". Duvidam, ocilam, tergiversam. No final, com gesto cenográfico,
você joga a carteira sobre a mesa: "Vocês estão dispostos a fazer o mesmo? Eu distingo os cristãos pela carteira.
A fraternidade começa a partir daí, chega de conversas". Silêncio constrangedor. E, um por um, eles saem ... E
os focolarinos? Seus empresários inventam a economia compartilhada. Que bonito!, digo a mim mesmo. Depois
descubro que se reduz a devolver os lucros aos pobres. Uma forma mais evoluída de caridade?
Olhando para trás vejo minha mini-história. Por que fui para o Brasil? Por que eu me tornei um
fotorepórter para revistas missionárias, subindo nas veias abertas de 30 povos não europeus em busca dos meus
196 povos/irmãos? No meu coração, me queimava o pavio daquela tripla pergunta: você ama os povos? No
Brasil eu estava imerso nos estigmas do povo. Não foi o suficiente para mim. Eu queria beber o sangue deles.
Toquei-o com a mão: só um povo é capaz de arrancar de suas cruzes os povos crucificados pelos povos cristãos,
dos quais também nós fazemos parte. Como fazer fluir no nosso sangue suas paixões, sua fome e sede de um
mundo novo? Estando em casa esperando que os prelados venham louvar os tempos gloriosos de Nomadelfia?
Quem participa compreende, quem não participa não compreende. A parábola dos convidados - a ser conjugada
em um nível planetário - também não se aplica a nós? Estamos preocupados demais com a organização interna,
com a fidelidade literal, com a preocupação de multiplicar vacas e bezerros? Quando uma empresa nos absorve
demais, Don Zeno a fecha como um ataque à nossa missão: "Não somos chamados a produzir batatas nem
frangos, mas propostas de justiça e fraternidade social". "Temos que convencer o povo a aplicar a justiça com a
lei. O estado deve fazer as escolas, não as igrejas!"
Pio XII estava certo: "A revolução vem de baixo, faça-a você, Don Zeno. Se a fisesse o papa seria
desobedecido?" Zeno insiste que a mudança depende dos que estão no comando. E ele enxerga longe: "A
burguesia clerical terminará descristianizando a Itália e tornar suspeita a Igreja no mundo. Belo serviço a Jesus,
amaldiçoado pelos pobres e oprimidos, seus tesouros! Você não percebe que a burguesia é a mais terrível
heresia prática? ... Tente condenar a concepção burguesa: diriam que o Papa não é mais infalível! Para eles, o
evangelho é uma utopia ingênua. ... Sobre a injustiça nada se constrói, o injusto vai para o inferno. Eu voltarei,
arruinado entre os arruinados; irei trazê-los para o ventre da Igreja, dos quais ela não pode se desfazer, diria eu,
para ser a Igreja"(21.9.1953). Zeno, hoje, o que seus filhos fazem para trazer os povos arruinados para a Igreja?
Francisco, você continua a denunciar a ditadura do dinheiro: "Não se trata mais simplesmente do
fenômeno da exploração, mas de uma nova realidade: ... os excluídos não são explorados, mas excedentes,
sobras" (EG 53). Tu vais além de Karl Marx. Mas o que os excluídos podem reivindicar se não têm nem
sindicatos, nem ONU, nem ninguém, porque são jogados fora como lixo social? Se esta economia os mata,
quem são os mandantes e os executores materiais? Os que usufruem do mercado global?
Você quer uma "Igreja pobre para os pobres"; "O Papa tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar
aos ricos que devem ajudar os pobres" (EG 58). Como? É realmente necessário recorrer a Cristo para doar
algumas migalhas? Não seria obrigatório devolver o que temos a mais? Se queremos passar de uma economia
de mercado competitiva e predatória para uma economia eco solidária, não deveríamos desmascarar a cultura
que diz: "do que é meu faço o que eu quero. Eu não roubei ninguém, ganhei o que é meu com o suor do meu
rosto"? É suficiente ajudar os pobres para irem à raiz das estruturas do crime social? Virá o dia em que teremos
uma Igreja que será pobre com os pobres? Zeno: "O que é mais sábio: produzir vítimas para curá-las ou garantir
que a sociedade não as produza mais?" "A Igreja terá que ser o diapasão dos novos tempos, imergindo-se nos
oprimidos, condenando toda forma de opressão" (1.5.1953). "Aprovar Nomadelfia significa destruir o costume
social dos católicos" (16.6.1953). "Os homens não querem o nosso amor social e o agrediram, porque não
pertence ao seu padrão de vida, os irrita" (22.8.1953). "Vocês tentam cristianizar o pecado social que gera os
pobres ... a nossa presença provocará um cataclisma na Igreja" (1.10.1953). "Eu disse na praça: se eu fosse papa,
fechava as igrejas e, antes de abri-las novamente, pediria as contas. Então eu deixaria entrar apenas os justos".
Aplausos! "Um momento! Há uma dificuldade: ainda não sou papa!"
Não é fácil seguir Don Zeno, um fundador, que viaja nos precipícios de uma vocação heróica. Como
vivemos esse heroísmo? Com quais escolhas? Hoje as guerras se envolvem com finanças, a conquista de
mercados, a nova escravidão: linha de montagem, monocultura, deslocalização, estilos de vida, padrões de
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consumo. E nós, seus filhos, como seguimos os passos de Cristo nos novos caminhos do Calvário econômico?
A história nos oferece oportunidades únicas: por que não nos lançar na ciência da computação, pelo menos!, pôr
os sonhos em rede?
17.12.2016 - Don Zeno fermenta na minha alma. Depois de 10 anos passados bebendo o sonho de seus
lábios eu não posso ficar parado. É ele quem me tira do meu sedentarismo, me chama a conhecer meus
irmãos/povos. Eu os trago para dentro, sinto-os circular no útero da minha alma. Não aprendi isso no seminário,
mas em sua escola vivente. Foi ele quem me deu asas para voar além do oceano e viajar pelos Calvários:
Camboja, Nicarágua, Cuba, Quênia, Venezuela, Estados Unidos, Guatemala, Filipinas, Bolívia, Eritreia, Sri
Lanka, Tailândia, Santo Doningo, Bósnia, Honduras, etc.
Zeno superaqueceu minha alma, queimando-a de amor pelos povos. Ele me ensinou a jogar tudo no forno
para obter um ótimo resultado, como o inventor da parábola da cerâmica. Mamãe lhe conta para empurrá-lo
para o heroísmo. E nós não devemos inventar a cerâmica do amor de povo, conjugar tudo em termos
planetários? O bom samaritano não é mais um homem, mas um povo que desce de ..... para ..... Hoje a história
requer um povo, que se apresenta na sinagoga do tempo para dizer: "O espírito do Senhor me envia para
proclamar aos povos que podemos viver como irmãos e irmãs como povos; ele me envia para trazer um modelo
de uma nova civilização nascida do coração de Deus; anunciar a libertação dos povos cativos do mercado
global; ensinar os povos das economias alejadas7 a andar nas ruas da justiça; para mostrar aos povos cegos pela
euforia do consumismo a bem-aventurança da parcimônia praticada ao nível do povo".
O fogo que tinha dentro o forçava a ir, sair e não ficar parado. Para chegar onde, se não no coração do
povo? Fausto o seguiu em sua peregrinação em busca de povos fraternos, porque foi contagiado pelo
movimento centrífugo de sua alma. Ele também não consegue paz no seu coração. E é forçado a andar pra cima
e pra baixo pelo globo: seis meses na Itália, seis meses no Brasil. E aonde ele vai? Nas famosas praias de
Fortaleza? Ele se refugia na Casa dos abandonados, se entrincheira em seus corações. Para ouvir os povos
órfãos, para beber suas lágrimas, para ficar na cruz e gritar: "Vocês também, irmãos, nos abandonam?".
Foi ele, Zeno, quem me conduziu aqui e ali, apertando na alma meu palito de fósforo para incendiar a
floresta. Essa paixão que me queima, me força a compartilhar o incêndio do coração. Eu compartilho contigo,
Francisco, para compartilhar com meus irmãos de fé. Como? Eu não sei. Me basta lançar mensagens, enviar
ondas de amor. Para agitar as águas do mare nostrum cimeterium nostrum. Para sacudir as colunas de Bernini,
para mover as teologias escravizadas, para sair da obesidade do espírito. Para voar com asas da informática e
pôr em rede o sonho da fraternidade social à disposição dos povos. Não é isso patrimônio da humanidade no
mesmo nível que um quadro de autor?

9ª Mensagem: Igreja: a mãe


18.12.2016 – Caro Francisco,
O que resta em teu coração após a audiência com os cidadãos de Nomadelfia? Na saudação, tu pedes que
continuem cuidando das crianças e dos idosos. Don Zeno se revira na cova, "porque Nomadelfia é tratada pela
Igreja e pelo Estado como uma obra de caridade, uma instituição". Acredito que a amputação do sonho - nova
civilização - seja atribuída ao que te foi transmitido. Quase impossível compreender Nomadelfia através de
conversas, que, muitas vezes, ocultam em vez de revelar sua alma. Os Nomadelfos correm o risco de agir como
uma cortina de fumaça para não ver que sua comunidade é um navio de guerra? Zeno considerava isso um fato
providencial, porque "se soubessem quem somos, nos eliminariam".
Qual Nomadelfia é conhecida no Vaticano? Por mais de meio século, os contatos foram mantidos por
Irene com todos os prós e contras. Prevaleceu o aspecto da mãe de vocação, dos meninos, e até isso a tornou
uma cortina de fumaça? Se os Nomadelfos esperavam que o papa indicasse um caminho privilegiado de ir ao
povo, o que tu dissestes aos movimentos não é válido para eles também? "Não se fechem, por favor! Isto é um
7
Economias que não se sustentam em pé por causa da exploração global.
29

perigo: nos fechamos na paróquia, com os amigos, no movimento, com aqueles com quem pensamos as mesmas
coisas ... mas sabem o que acontece? Quando a Igreja se fecha, adoece, adoece. ... A Igreja deve sair de si
mesma. Para onde? Para as periferias existenciais, sejam elas quais forem, mas deve sair. ... Prefiro mil vezes
uma Igreja acidentada, que sofreu um acidente, que uma Igreja doente por estar fechada!" (18.5.2013).
Você pode ser mais explícito? Não é o bem-estar que o pai estava procurando, o lançamento para correr
para abraçar os povos irmãos? O papa representa uma religião, só pode solicitar, não pode substituir um povo.
Você não é povo. Apesar de ter tanto poder, você não tem aquele poder de amar os povos enquanto povo. Cabe
ao povo novo fazer o que nem o Papa pode fazer: produzir uma proposta de vida social baseada no Evangelho,
não como frades e freiras, mas como leigos. Portanto, não se pode esperar que o papa diga a um povo o que ele
deve fazer por sua missão específica: um povo novo para os povos antigos; um povo passado do humano para o
divino; um povo nascido do coração de Deus. O primeiro povo de voluntários, o único povo não por acaso, mas
por escolha, além das fronteiras, dos nacionalismos, das pátrias. Não são todos nossos irmãos aqueles povos que
continuam descendo de ..... para .....? Os seus acampamentos não esperam que armemos nossa barraca entre
eles? Não para ser assistentes sociais, mas para dizer: "É possível ser irmãos enquanto povos". Para os
Nomadelfos sair tem sentido se saem como povo para os povos para levar o catecismo da justiça, o juízo
universal, gritado-o dos telhados do FMI, da ONU, do Vaticano.
Quem esperava o lançamento oficial da comunidade pelo vigário de Cristo errou de endereço. Se
Nomadelfia é um povo fundado na fé, deve pedir permissão ao representante de uma religião para agir de acordo
com a sua natureza? Nossos interlocutores são os povos, entidades civis como nós. Foi preciso um Concílio para
declarar a autonomia dos leigos no campo social. Cabe a eles o exercício do sacerdócio laical, que santifica a
matéria, a família, a sociedade, a política, o povo [Cf Gaudium et Spes, 43].
Os tempos de Nomadelfia não estão maduros, deve reeencontrar o caminho do Calvário? Em 1937, Zeno
diz que o Senhor marcou com ele um encontro no Gólgota. Qual, se não os Calvários dos povos escravos do
mercado global? Ainda estamos nos debatendo com os primeiros fihos acolhidos, os Barile e os Titola,
individuais, mas é hora de seguir o rastro dos povos/Barile, povos/Titola. Mesmo se o mandato papal tivesse
chegado: "Vai, povo novo, leva sua proposta social. De quantos soldados você dispõe?”. Zeno tem uma fé tão
temerária que ele propõe ao papa marchar por toda a Itália com quatro gatos de adultos e uma maré de
"piscialetti" (meninos mijões). E ele exige o sinal decisivo: "Se o papa não estiver conosco, vamos parar". Ele
sabe que, para os Pactos Lateranenses8, o padre é um oficial de culto confinado na sacristia. Um padreco
qualquer pode impedí-lo de entrar nos limites de sua paróquia. No entanto, como associação civil, Nomadelfia é
livre para fazer suas escolhas no campo social e político. De fato, Zeno em 1945 decide descer na praça e gritar:
"Façam dois montes9: de um lado os quem tem dinheiro e do outro, os quem não tem, e nós, os pobres iremos ao
poder para fazer as nossas leis."
Ainda não chegou o kairòs da revolução social de Cristo? Zeno aposta nas vítimas: serão elas a converter
a Igreja. Ele acredita que uma funda e quatro pedras pode abater o onipotente Golias/mercado/global. Temos
que descobrir seu calcanhar de barro. Ontem, o papa não queria descer na praça, mas hoje? Papa Francisco, você
não solicita os movimentos para sairem de si mesmos, da doutrina abstrata, do moralismo asfixiado, de um
cristianismo eurocêntrico?
Francisco, minha alma está lá, na sala Clementina falando contigo. Para reviver os conflitos, o corpo a
corpo de Zeno com os prelados, o abraço de Pio XII. Eu fui com ele falar aos bispos e cardeais. Senti a
respiração de sua alma, o tormento por uma Igreja que, às vezes, mostra mais a casca do que a seiva. Preciso
aprender com ele a amar a Igreja, apesar das falhas, das traições, dos crimes. Chegando a dizer com ele: estou
em casa, sou filho. Existem tubarões fora do barco! "Os Nomadelfos terão a graça de saber ficar no barco de
Pedro, e ninguém será capaz de jogá-los na água" (para Ottaviani, 10.9.1953). "No barco você pode fazer
8
Eram os acordos entre o regime fascista de Mussolini e o Vaticano. O ditador nao queria a interferença dos padres com a
politica dele. Havia tambem os privilegios dos céericos: isenções, isentos do serviço militar, do tribunal, etc.
9
Dom Zeno fala para camponeses, usando a linguagem deles, e portanto prefere usar a palavra em italiano "mucchio" a
significar grupos antagônicos.
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acrobacias, mas fora do barco não há mais vida". A sua visão da Mãe está na perspectiva histórica: "A Igreja é
uma menina. O que são vinte séculos para uma criatura com aquela força? E vocês a querem domar, ainda são
os tutores. Mas vai crescer. Nós somos as lavas de um vulcão em erupção. Estamos na base de suas estruturas
pagãs. Nós iremos fundir vocês. Isso é o amor: evitar que vocês nos oprimam e nos roubem" (29.6.1951).
Nos dias de Barrabás, ele joga fora tudo. Ele o havia previsto: "Garanto-lhe, e você vai ver, que ao invés
de faltar com respeito ao clero, prefiro minha imolação e de toda a Obra" (16.3.1944). Até pedir a laicização pro
gratia, uma espécie de separação consensual. Até o auto afundamento. E Fausto a desafiá-lo: "Te era lícito
obedecer a um decreto [afastamento da comunidade] que em consciência você achava errado? Você podia
afundar o comandante, mas te era lícito arrastar contigo a tripulação? E que tripulação! 300 crianças deportadas
para internatos, mortas duas vezes, enterradas vivas em cemitérios civis. Podiam te obrigar a renegar os filhos,
jogá-los de volta à prisão, as filhas ao submundo? Fausto te faz dizer: "Resisti muito, mas um dia, no bonde, em
Milão, dois senhores comentam os fatos de Nomadelfia: "Como pode um padre abandonar os jovens que tomou
como filhos?". E o outro: "Ele nunca poderá dizer a eles: Eu não sou mais seu pai, vocês não são mais meus
filhos, porque a Igreja não concorda?". Eles concordam: "Deveria se laicizar". Era vox populi, vox Dei?". Com a
morte na alma, escrevo ao bispo: "Peço a laicização, porque não posso deixar de fazer justiça" (16.7.1953). O
prelado apela ao direito clerical, você ao direito natural: "Quando assinei o decreto [de afastamento], não pude
negar os direitos nascidos entre mim e os filhos. Invoco respeito pela minha vocação. A autoridade me proíbe de
vivê-la no exercício do sacerdócio? Tenha a bondade de me laicizar. De 5.2.1952 eu vivo em um estado de
traição. Me impuseram o impossível com todos os crimes que se seguiram. ... A caridade não pode ser uma
negação da verdade e da justiça" (6.7.1953) [cf. Don Zeno, Obedientíssimo rebelde].
Ainda não sondamos a relação de don Zeno com os homens da Igreja e a própria instituição. Devemos
nos referir aos anos quentes 1950-53 e à tempestade de repreensões, implorações, invectivas à Santa Sé: "Roma,
fortaleza a ser derrubada" (24.5.1952); "Quase toda a Igreja é ariana" (1.5.1953); "O costume social da Igreja é
pagão" (16.11.1953); "Roma? Uma cúria, um pouco mais, um pouco menos" (21.10.1953); "A Igreja não é uma
prostituta" (7.8.1952); "As calculadoras em frente aos confessionários" (11.2.1952); "Eu não sou um rebelde,
mas uma vítima" (5.11.1953); "A burguesia clerical acabará por descristianizar a Itália" (21.9.1953); "A Igreja
está no hospital doente de burguesia"; "É melhor atormentar Roma do que se apressar em tratar algumas de suas
vítimas" (24.5.1952); "Na minha dura experiência, fui exercitado pelo Senhor para farejar o odor de Satanás. Na
Santa Sé, em certas esquinas, ele se aninhou de tal maneira que amedronta quem conhece suas armadilhas e
crueldades" (25.12.1950); "A burguesia é satanás e no Vaticano há pelo menos 90%. Luís XVI, enquanto a
revolução trovejava, decretou a medida dos lenços das damas. Pio XII, enquanto o mundo submerge, decreta
encurtar a cauda dos cardeais em um metro [Motu proprio, 30.11.1952]. Você consegue imaginar o divino
Mestre andando com uma cauda? Por que não me leva ao Santo Ofício para organizar a seção suprema da
justiça social? Considere criar uma fábrica de ácido sulfúrico. Estou exaltado? Confio que, uma vez ou outra,
vão se convencer de que Cristo é mais forte que a bomba atômica. Eu digo que nós eclesiásticos, em procissão
com vocês, decidimos ir para o inferno" (para Ottaviani, 1.5.1953). E depois o concerto papal sem a partitura, o
buraco no fole, o Santo Ofício o matadouro da Igreja, até ser reduzido a um rato na estiva de Pedro
(7.10.1953). Até dizer: "Eu, para o Papa, sou Paulo de Tarso, corto com golpe certeiro. ... e quando os homens
cortarem minha cabeça, Nomadelfia permanecerá como Paulo para o Papa. ... os eventos acontecerão ao longo
dos séculos; mas o papa sempre terá Paulo ao seu lado, alerta e pronto, sem falta, com golpe certeiro para cortar
a cabeça da serpente" (16.7.1951). De que modo, hoje, os Nomadelfos são Paulo ao lado do Papa?
O que ele pretendia? Que o Papa descesse na praça com ele para fazer a revolução do Justo? Monsenhor
Pranzini o havia alertado: "As leis da Igreja são como uma teia de aranha, que bloqueia os mosquitos
barulhentos, mas inconcludentes. Você deve ser uma moscona, passando por toda parte". Hoje não cabe a seus
filhos serem as mosconas de Deus, que perfuram até o medo de serem heróis? Zeno sabe que está lidando com
uma Igreja hierárquica e que um padreco qualquer pode detê-lo. É por isso que exige carta branca! Até dizer:
"Eu penso que Nomadelfia é a bomba atômica da qual se servirá o Santo Padre, depois a Igreja, para dispersar o
inimigo dos homens" [cf Os sinais de Deus, 1950].
31

O anarquista, o camarada do quartel de Florença, continua a cuspir-lhe na cara: "Canalhas! Socialmente


vocês cristãos são piores que os outros, justificam a burguesia, se tornam chicote nas mãos dos patrões, coveiros
de suas vítimas". Que pancada! "Joga-me no chão, escarnifica minha alma. Quero morrer, não vejo saída. No
final quem vem ao meu encontro? Cristo, quem mais?, para me abrir, com a janela sobre Florença e o mundo, o
caminho da nova civilização: "Não mais servo, nem patrão. Mudo de civilização em mim mesmo". Mas quem
são os anarquistas que hoje cospem na cara dos Nomadelfos a verdade, os derrubam dos cavalos de suas
certezas? São, talvez, os desesperados que enfrentam a morte para chegar à nossa costa? Vêm nos lembrar: "Se
você está prestes a fazer sua oferta e sabe que um povo está com raiva de você, deixe sua oferta lá e, como povo,
venha se reconciliar conosco".
No tempo passado no arquivo, Fausto vislumbrou nas cartas inflamadas para o Vaticano (1950-53), o
tesouro escondido no campo. E ele não se cansou de cavar para compreender a alma. Depois percebeu que não
há outra maneira que vivê-las, mergulhando na alma dos povos, assimilar seu amor pela Igreja e pelo povo.
Zeno insiste, resiste a Pio XII para conseguir a aprovação de seu movimento: façam dois montes. Hoje ele não
diria: "De um lado, os povos enriquecidos, de outro, os povos empobrecidos"? Com as vítimas não há meias
medidas nem acordos: oprimidas ou opressoras; ou povos crucificados ou povos crucificadores.
Tenta roubar o consentimento do papa para ser um cidadão de Nomadelfia mesmo enquanto padre: "Ser
sacerdote de Nomadelfia significa ser cidadãos livres de Nomadelfia, diante da qual cada barreira de
circuscrição jurisdicional e cada fronteira caem porque um povo universal como Nomadelfia não admite
restrições de amor concreto, nas obras pelos irmãos do mundo inteiro. ... Nós não somos uma obra da Igreja,
mas um movimento na Igreja. ... Lembre-se, Santidade, que a diplomacia do Vaticano faliu. ... Somente
podemos vencer o mundo seguindo os passos daquele que foi capaz de dizer: Ego vici mundum. Estas coisas eu
as digo ao Papa, o Papa deveria impô-las a mim e à sua Igreja" (1.7.1951). "A Igreja está gravemente doente. A
falta de unidade entre nós é como o corte de uma artéria" (24.6.1951).
Aqueles eventos são pré-sinais para identificar as pistas a serem percorridas hoje. Interessar-se, envolver-
se, ficar no meio, porque quem só compreende, não compreende. "O mundo é chamado a viver a justiça. Para
cumprir nossa missão para com o povo, devemos dar-lhe o que lhe pertence, o que é dele. E fazer isso enquanto
povo. Por isso, produzimos um exemplo não só para o indivíduo, mas também para a sociedade: somos um povo
que propõe a outros povos, um povo justo e fraterno. Para fazer isso, precisamos conhecer a situação social a
ponto de amar o povo mais que a nós mesmos e dar a vida por ele. Viver esta vocação de povo é realizar a
justiça divina na terra. O fascismo nos matou sete filhos porque defendiam os direitos do povo. Nós sempre
vamos ao encontro dos golpes porque vamos perturbar satanás que está chocando o mundo. Ser luz, vida para os
povos. Deus é pai do povo, Ele o criou. Por que Cristo se sacrificou pelo mundo? Para nos dar a força para
aplicar a justiça ele veio trazer o homem novo, o qual, do alto da fé, vê melhor a lei de Deus. Antes de consumir
uma coisa a mais, devemos ter certeza de que todos têm o que é necessário. Na consciência você não pode
gastar mais do que você precisa. Se educamos egoístas, erramos. O que é a guerra? Egoismo de massa imposto
com as armas. Quem não é justo é contra Deus. Como um sapo cruel que fixa os insetos, hipnotiza-os e engole-
os. Você não pode dizer: "Estou bem por minha conta". E todos aqueles que precisam de você? Precisa começar
a fazer as contas em frente às igrejas10. Não se pode entrar para zombar de Jesus Cristo. Se não se observam
suas leis, que estão fora da Igreja, o que vai fazer na Igreja? Hoje não se consegue criar uma justiça social, a
política nos expulsou. Os católicos parecem coelhos. E assim, devido às suas omissões, pensa-se que o
cristianismo é uma coisa superficial, uma doutrina, mas não incide, não compromete a vida. Por que não
queremos acreditar que Cristo, em nós, pode fazer uma nova sociedade? Entre a sua vida viva, fresca como uma
flor e a dos cristãos, há um abismo. O evangelho é, antes de tudo, contabilidade, justiça. Não acreditem neste
bem-estar que nos faz cretinos: não é nem humano nem cristão. Quando vai além, derruba a justiça, é uma ruína.
O homem se animaliza tanto no bem-estar quanto no mal-estar. Viver bem entre quem está mal é delinquência.
Se o homem aspira à riqueza, não é um homem, se arruina. O cristianismo propõe a verdadeira solução social.
Se o tivéssemos aplicado, não haveria povos à deriva. Os cristãos galgaram posições em nome de Cristo. Onde

10
Para Dom Zeno, fazer as contas significa fazer justiça. Por isso, essa deve ser feita fora, isto é antes de entrar na igreja,
porque, se você não é justo, não pode acessar o amor que é além da justiça.
32

Ele está, neste mundo instintivo e selvagem? Certamente nos povos famintos como nosso juiz, porque não
cuidamos deles.
O cristianismo ainda não nasceu. O assim chamado povo de Deus é uma nebulosa em formação. Se não
nos comprometermos em tornar Deus tangível, nós cristãos desapareceremos. A Igreja se esvaziará dos
fanáticos e burgueses e se encherá com aqueles das periferias. O cardeal de Nápoles me disse: "Este
cristianismo escandaliza o mundo: é tudo um sacramentalismo festivo". O povo adora o culto, não Deus! Os
cristãos se deixaram assimilar pelo mundo, enquanto o sacramento é imolação, não uma festa de fim de semana.
Ou vivemos a lei dos vasos comunicantes ou vivemos a lei da floresta. Uma civilização fechada em si mesma é
egoísta: burguesia coletiva. O que vocês fazem com uma lâmpada acesa fechada em uma caixa? Decidimos
fazer uma Nomadelfia itinerante não para propor nossa forma de vida comunitária, mas os princípios universais
da solidariedade, da justiça. Nomadelfia não concorda com ninguém, especialmente com os católicos. Só tem
um remédio: fechar as igrejas e começar de novo" [de minhas anotações: A Profecia política].
Entre o movimento pela solidariedade humana (1945) e o da fraternidade humana (1950), Don Zeno
aprende melhor a lição. Naqueles anos ele lança um movimento social, chamado “i due mucchi” (os dois
montes). Mas naquela epoca ele se apresentava como um líder carismatico, a comunidade era jovem e pequena
demais. Assim foi impedido de ir adiante com o movimento porque, conforme os Pactos Lateranenses um padre
não podia fazer política. Agora, depois do sofrimento que passou por causa disso, ele coloca na frente os pais de
família de Nomadelfia. Como para dizer: não é mais Don Zeno sozinho que faz política, mas o povo por ele
fundado: Nomadelfia. Ele declara que a proposta não é uma coisa de padres, mas tem a assinatura do Povo dos
Nomadelfos, porque, entretanto, nasceu a Cidade do Amor. "Não se deve entender que seja eu pessoalmente,
muito menos a Igreja, a propor ao povo uma reforma social, mas sim, toda a Cidade de Nomadelfia" [dos Sinais
de Deus]. Após a luta com o Santo Ofício ele obtém a permissão de lançar o movimento na província da Emília
Romagna. O sonho reduzido aos mínimos termos. O arcebispo o aceita e em outubro de 1950 celebra o
Congresso dos trabalhadores em Modena, boicotado pelos partidos. Um aperitivo do sonho, que não sacia a sua
fome, pelo contrário ...
Eles são forçados a dizer sim, por que um não seria entendido como a recusa de propor o evangelho da
justiça? Teriam oferecido o flanco aos sem-deus vermelhos enquanto os prelados preferiam os sem-deus
brancos? Se o consideravam exaltado, utópico, não era absurdo dar uma pequena permissão a um louco? A
diplomacia do compromisso prevaleceu? "Do que você escreve, é claro que você é louco! Mas, como não
podemos negar suas obras, mostra-nos o que você pode fazer em pequena escala, na Emília". A batina escondia
o povo de Nomadelfia? A grandeza do líder impedia de ver os soldados simples? No final, ele apela para o estilo
de Deus, que, para fazer suas obras, escolhe o que é tolo aos olhos do mundo, as vítimas: "Estou no comando de
um exército, cujos soldados fazem xixi na cama".
Nos Exercícios Espirituais aos Servitas, combatido entre a obediência à Igreja e a fidelidade ao povo,
forçado a extinguir aquele fogo, que ele mesmo acendera, faz uma autocrítica implacável. O sabor da traição lhe
amarga o resto de sua vida: "Eu obedeci ao papa. Mas me era lícito trair o povo? ... Aqueles que poderiam e
deveriam me dar a permissão [da proposta política] vacilaram e a iniciativa fracassou. Eu não posso assumir a
culpa, dei culpa àquele lá [mostrando o tabernáculo] ... Alguns dias depois do desastre, os trabalhadores me
chamam de traidor: "Se você quisesse, nos teria unido. Nós fazíamos uma boa revolução, sem brigas e barulho.
E nos libertava de Togliatti, de Stalin". Me disseram isso alguns líderes comunistas! E eu, estúpido, "obedeço".
Eu tinha o direito? Não! Eu devia apelar para Roma. Se eu tivesse pulado em cima do papa puxando-o pelas
suas roupas, se eu tivesse feito algum desastre, quatro tapas num daqueles soldados com as armas [ guardas
suíças] para chamar atenção; se eu tivesse pulado de um banco quando o carregam com aquele negócio [ cadeira
gestatória], ele teria perguntado: "O que está acontecendo?" "Santidade, as pessoas vão à ruína, Satanás pega
todas elas. Venha aqui e vamos conversar sobre isso ". Os santos fizeram essas coisas. Se eu for ao Vaticano,
tem que fazer a antecâmara. Mas eu começo a correr naqueles corredores! O que você quer que eles façam com
um padre? O único pecado social que eu fiz, e grande, é aquele ali. Eu pensei que tinha obedecido, mas eu fui
um jumento. Eu não corri e não ouvi meus filhos, o povo que estava desmoronando. Não adianta chorar,
33

aconteceu assim. Muitas vezes é confortável obedecer. Muitas vezes ouvi esse absurdo: quando você obedece,
você não erra nunca! Nós devemos derrubar o mundo! Você tem nas mãos a bomba atômica? E nós, o universo,
Aquele que, de uma só vez, pode derrubar as estrelas" (17.1.1950). Quem sabe se os filhos de tanto pai têm a
coragem de confessar diante dos povos, irmãos, que têm algum pecado de omissão, de sedentarismo, de
burguesia comunitária para se fazerem perdoar?
E depois, na hora de Barrabás, ele admitirá outro grande pecado: ter traído os filhos, tê-los renegado e,
por sua causa, jogado de volta uns para a cadeia, as filhas para a prostituição. Não consigo entender como pude
chegar a esse ponto apenas para ficar no barco. "Por que não nos rebelamos? Por grande amor, confiando que a
Santa Sé acabaria se arrependendo e consertando o mal. É a casa do Pai e tem os meios para remediar. Nos
reduzimos a traidores. Por quê? Por obedecer. Santidade, a diplomacia, até mesmo a do Vaticano, tem as pernas
curtas. Poderá acontecer que o Senhor se sujeite à violação dos direitos mais elementares à vida? Nossos erros
acabaram em nada, enquanto permaneceu evidente que a Santa Sé cometeu um abuso de autoridade. Somos
escravos e nossa presença, pela lei da extrema necessidade, anula o direito à propriedade pública e privada e
condena-o como um roubo, sendo a nosso respeito um privilégio imoral e uma clara subtração. Esta é a moral,
este é o crime daqueles que o episcopado impunha de reeleger sob pena de pecado" (9.11.1953). "Por que
obedecemos? O fazemos como as crianças, sabendo que nada podem fazer sozinhos. Por que gritamos sem nos
rebelarmos, mas apenas batendo os pés? Fazemos como as crianças, certos de que, se tivermos razão, o Pai nos
dará e convencerá a Mãe a fazer o mesmo" (12.11.1964).
E novamente aos Servitas: "Na minha opinião não houve um momento tão triste na história de nossa
geração, como o de ir contra as pessoas, que, mesmo em erro doutrinário, buscam a justiça. À seu modo, mas a
procuram. E toda a outra parte, penso eu, não está preocupada com a justiça. Estávamos de mãos dadas com
"mammona"11, com os ricos, com pessoas sujas, cheias de pecados, de responsabilidades históricas. O papa
excomungou, somente na Itália, oito milhões de fiéis. Primeiro excomungamos os liberais [ Syllabus, 1864],
agora andamos de braços dados com os excomungados: os capitalistas. Primeiro os ricos e agora os pobres ... e
depois, lentamente, excomunga todos nós e fica sozinho. Nos reduzimos a excomungar os pobres da Itália! Oito
milhões! Eita, que golpe tremendo! Que estupidez! Foi dada para que voltem para o nosso lado? Quando
excomungamos? Quando não conseguimos transformar as almas. Quando vomitamos? Quando não somos
capazes de digerir. Quando o pai agride os filhos? Quando ele não soube criá-los, não soube amá-los"
(18.1.1950).
Zeno insiste, resiste, exige um sinal: que o papa mostre ao povo que está com ele, pagando 208 milhões
pela missão de penitência nas 23.000 paróquias italianas, antes de marchar sobre a Itália com o movimento dos
dois montes. Ele insiste com Ottaviani: "O Santo Padre está desconfiado do sucesso do movimento devido à sua
opinião pessoal, ou por uma Determinação apostólica?" (7.50). Ele sabe que aos sacerdotes não é lícito ir para a
praça, fazer política, mesmo aquela de Deus. Mas, nos bastidores, para conter a inundação vermelha, nas
sacristias, nascem os comitês cívicos, enquanto os comunistas ameaçam conquistar a prefeitura de Roma. Você
imagina os sem-deus no poder na Cidade eterna para competir com o Vigário de Cristo, para ser como seu
contra altar? E os Sturzo, os Gedda, os Ronca buscando alianças com a direita e o MSI (Movimento Social
Italiano) [lei fraudulenta]? E Scelba, o ministro do interior, que alimenta com centenas de milhões a juventude
católica e não paga os honorários de seus filhos famintos?
Como ser fiel a Pio XII: "Faça você a revolução, o Papa está com você. Se a faz a partir de baixo, o papa
seria desobedecido", quando o campo político é todo minado de normas, códigos e emendas, quando um
padrezinho qualquer pode barrar o passo? De fato, é suficiente uma meia palavra do cardeal de Turim para
colocá-lo fora do jogo. Ele pode gritar quanto quiser: Façam as contas, penicilina, ácido sulfúrico. Quem se
importa com ele nos palácios sagrados? Muito superficial condiserá-lo um exaltado, louco, megalomaníaco,
utópico para amordaçá-lo, para matar sua paternidade sobre os abandonados. Ele sabe que está lidando com a
lentidão da história, com o peso da condição humana, que permanece assim, mesmo se for revestida de lã

11
Personificação da riqueza.
34

sagrada. Poderia uma Igreja intimamente ligada por dois fios ao poder político da DC (Democracia Cristã),
atrelada ao carro dos Estados Unidos, permitir a um franco-atirador propor a revolução dos dois montes? De
Gasperi, nos EUA, a mendigar dólares; a península inundada com sacos de farinha, reduzida a um monte de
escombros poderia permitir-se deixar livre um padreco de campanha, que teve a coragem de dizer a um Papa
entrincheirado no Vaticano por pavor dos vermelhos, que os comunistas eram os mais aptos a fazer a revolução
de Cristo? “O comunismo ateu deve ser absorvido por um movimento de massa que o supere e disperse-o. Será
que Jesus não foi ousado? Será que Ele não revelou nas praças os malefícios dos ricos e dos fariseus? Será que
não somos obrigados a imitá-lo? Se quer escolher a via odiosa das condenações [ aos católicos comunistas] a
filhos muito abandonados a si mesmos, enquanto o primeiro ato dos bravos é aquele de correr entre as fileiras
dos rebeldes, e convidá-los a percorrer melhores águas" (16.8.1945). E depois o ataque: "Minha dor é ver que os
pobres e as massas se afastam da igreja também por causas que poderiam ser evitadas, removendo as quais
asssitiríamos a uma verdadeira contra revolução ao materialismo desenfreado do oriente e infestado sob mil
bandeiras no ocidente. Mammona é super-poderosa e é sutil em suas raízes que sabem perfurar até a rocha.
Entre as fileiras dos católicos se infiltrou de modo assustador" (22.1.1952).
Como dar-lhe a aprovação em uma situação tão desesperada? Para apoiar Don Zeno, o papa teria que se
posicionar contra seu porta-voz, o padre Lombardi, o martelo dos sem-deus. Ele fala de reforma, Zeno de
revolução. Ele lança a cruzada da bondade, Zeno a cruzada da justiça. "O que é essa bondade? Devemos fazer
as contas! Uma religião que, com as devidas exceções, faz nojo. Não desce ao prático. E isto seria uma pessoa
de ponta? Temos os de ponta e os de fundo, há algo para todos". Ele (Padre Lombardi) diz: "Os ricos devem
dar". Escuta: "Se aquele que deve dar é um e quem devem receber são mil, é mais rápido dizer: Já que você não
está disposto a dar, nós estamos dispostos a tomar" (1.51).
Ele apresenta ao papa suas credenciais: "Eu estou no comando de um exército, cujos soldados fazem xixi
na cama; mas eles não estão brincando, seus átomos são os mais aptos para formar a bomba atômica divina, que
irá dispersar os exércitos. Os do Ocidente se alinham contra os do Oriente, um joguinho de satanás. Nós somos
a terceira força, uma casca de banana no caminho dos dois gigantes: um pequeno jogo de Deus" (5.49). "É a
hora de Deus para uma revolução pacífica. Não me julgue louco ou como um menino, menos ainda um iludido
ou milagreiro. ... Não sejam diplomatas. Me atormentem, mas me escutem. Avançar em seus escritórios é uma
empresa titânica. Os exércitos, todos satânicos, estão se manifestando. Da Emília Romagna deve ser
desencadeado o terremoto social cristão para perturbar o mundo inteiro, até nascer a fé na justiça divina e na
paz. ... Dizer somos da Igreja, para nós é como dizer: estamos imersos no ar e respiramos. O Senhor nos deu
essa fé. Nomadelfia tem para o Papa o mesmo amor que tem por Cristo" (5.49).
Temos nós essa fé no impossível? Ele tinha certeza de ter em suas mãos a solução, porque ele tinha as
vítimas no coração: "Estou no comando de um exército, cujos soldados fazem xixi na cama". E não deveríamos
estar à frente de povos/meninos que vagam pelas estepes de uma Europa cristã em busca de um povo irmão? Os
vejo circulando pelos centros de reclusão nas garras do gelo. E a pior geada é a do coração. Este continente é
pagão? Ficar em silêncio não seria ser cúmplices? Ou inconscientes? Hoje é mais difícil ser fieis à mensagem,
estão envolvidas famílias, filhos e segurança. Mas não temos a lei de um povo novo, que assume o compromisso
de uma vocação heróica? E a fé, tudo é possível para quem acredita? Na Europa Oriental, existem grupos de
voluntários que arriscam ir para a cadeia por alimentar os que pedem asilo. O que nós estamos dispostos a
arriscar? Nós não somos seguidores de alguém que não apenas se arriscou, mas foi para o patíbulo, crucificado
por seus próprios padres? Zeno nos adverte: "A abundância forma mesquinhos, o sofrimento nos tornou
universais" (13.5.1950). Que sofrimento, hoje, nos torna universais?
"O inimigo quer a destruição da civilização cristã. Somente as forças do Céu, que se manifestam através
dos inocentes, podem mudar as cartas na mesa. E aquelas massas de instrumento de ódio, podem, ao sopro da
inocência, transformar-se numa cruzada de justiça ao grito: Somos irmãos. As hordas pagãs estão às portas. O
que podemos esperar? Talvez uma chuva de bombas atômicas. ... O que podemos esperar da Itália? Uma contra-
revolução na fraternidade universal. Essas coisas só podem ser feitas por aqueles que estão mais próximos de
Jesus no estado do não sabe onde pousar a cabeça. Não é a primeira vez que na história, filhos muito humildes,
do excremento, foram acolhidos pelo Papa e com ele salvaram a Igreja. Nomadelfia pode ser uma faísca, ou
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melhor, a bomba atômica, da qual Jesus quer se servir para dispersar aqueles sistemas, que o amor cristão no
unum superou. Na conversa mostrarei os sinais de Deus" (15.3.1948).
As cúrias seguem o padrão da diplomacia, alianças, compromissos, acordos. Zeno viaja em outra
dimensão: a fé, o milagre, a onipotência de Deus, a bomba atômica nas mãos de Cristo. O esterco, os excluídos,
lhe dão a coragem, a partir dos esgotos, para fazer até mesmo o papa sonhar: "As obras da Igreja são mais
defensivas do que agressivas. A Rússia e a América, paganismo coletivista e individualismo anárquico disputam
o donínio do mundo. Daí a necessidade de uma revolução que coloque a Igreja em sua posição de comando no
coração das massas, Mãe dos oprimidos, dos sedentos de justiça, dos páuperes. Trazer a Igreja de volta ao
coração das massas revolucionárias para que na Igreja rejuvenesçam o mundo, é a vocação mais prepotente dos
Pequenos Apóstolos" (16.3.1948).
Que reação provocam mensagens mais que audaciosas, temerárias? Zeno fala em nome de 800 res
nullius, o papa tem especialistas disponíveis, recursos financeiros, concordatas. Se alguém andasse com a lógica
do mundo, não diria essas coisas por medo de ser considerado exaltado. Sua fé não lhe permite prosseguir com
cálculos humanos. Ele é de outra massa, a dos excluídos. Seu sonho atravessa as fronteiras do tempo e do
espaço, lhe parece realizável aqui e agora. Eis o poder da fé, do impossível ao homem. Tinha oferecido seu
sonho para as massas, elas o rejeitaram. Jogou-se de cabeça na realização de uma mini-utopia: Nomadelfia.
Agora a oferece ao papa, como um protótipo: se é possível em miniatura, pode ser realizada em larga escala, não
é, Santidade? Não que todos devam viver como os Nomadelfos: "Ninguém é obrigado a viver em comunidade,
mas todos somos obrigados a estar justos e ser solidários em nossas obras, amando-nos como Cristo fez"
(2.9.1953).
Os dois gigantes da Guerra Fria brigam pela doninação do planeta. Zeno aposta tudo no seu trunfo:
"Quem é Cristo? Eis: Se tiverem fé, moverão montanhas. As montanhas são duas: comunismo e liberalismo.
Nós somos de fato simples cultuais (veja o ano santo que não foi uma reforma da vida). Por esta razão, não
vamos mover as montanhas, e a guerra está por vir [na Coréia, 25.6.1950]. ... Eu lhes digo que vocês podem
fazer o milagre de parar a guerra, portanto, de mover as duas montanhas até neutralizá-las e torná-las
inofensivas, e vocês não acreditam nisso. ... Ou nos amamos ou não amamos o povo? Eu tenho em mãos o
segredo para parar a guerra. Lembre-se disso. Seria um sopro, mas vocês não acreditam e sem vocês nihil
potestis facere; não posso fazer nada, devo assistir maravilhado ao um desastre que pode e deve ser evitado.
Veja, Excelência, que não sou louco" (para Montini, 17.12.1950).
E ao Papa: "Há qualquer coisa de gravíssimo que não está certo e que apunhala Cristo pelas costas ao
longo do caminho. Mas a Igreja não tem algo de diferente e decisivo para fazer neste momento? Não pode fazer
um milagre? É a sua missão na terra, é o que fez o divino Fundador. Sem milagre, não se pode andar entre as
potências do mundo. Energias novas e heróicas estão à porta do papa, prontas para começar a se mover por vias
estranhas, mas seguras. O Papa não as conhece porque essas são hoje ou contra o Papa ou, exasperadas por
causa da nulidade de muitos irmãos de fé. É na práxis de Cristo suscitar homens onde menos se pensa, aos quais
confia a tarefa de salvar a Igreja. Conheço esses homens, sinto-os mesmo se os vejo só caminhando pela rua.
São dispersos aos milhões entre as fileiras dos partidos, dos descontentes, dos sofredores, mas neles não há
maldade. Que mar de lágrimas em mim. ... Eu tenho que demonstrar à sua Santidade os erros da Santa Sé e os
remédios; os mesmos erros do Papa e os remédios; os erros do episcopado e do clero e os remédios; os erros dos
não-católicos e os remédios. Em suma, você não vai querer me dizer: Timeo Danaos et dona ferentes.
Sou de casa. Sou um filho. Santo Padre, agora tudo foi consumado para provar que estou certo. Tenho em
mãos os sinais, o segredo para parar a guerra e abrir para a Santa Mãe Igreja duas estradas: a) levar Cristo a
todos os homens de boa vontade. Eles são uma avalanche; b) neutralizar as forças inimigas a Cristo obrigando-
as ao serviço de Cristo indiretamente, isto é, destacando também só os direitos naturais do homem e defendê-los
como lei de Deus. Tenho provas nas mãos; posso me sentar ao lado de Vossa Santidade à mesa e projetar juntos
o plano de ataque definitivo. Receba-me secretamente. ... A Igreja não pode perder este grande jogo, perdeu
muitos por nossa culpa. Não crer na única via de Jesus, desta vez, seria um delito tamanho a ponto de ficar
fulminados pela dor, seria jogar do alto da Santa Sé de Pedro uma bomba mortal na história da Igreja. Vossa
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Santidade nunca pensou que em vossa pessoa soberana pesam, como consequência inevitável, todos os pecados
públicos, as fraquezas de muitos de seus predecessores? Se Vossa Santidade tiver que pagar, pague; se nós
discípulos tivermos que pagar com Vossa Santidade pagaremos; mas a Igreja deve saber responder prontamente
àquele apelo dos filhos e irmãos distantes na forma e muito próximos em substância. ... Conheço as veredas do
labirinto e sei que é preciso entrar ... e Pedro estava dormindo. Santidade, ponha para fora a sua onipotência,
acorde e me receba, e em breve ... não tenha medo de nada, Beatíssimo Padre, veremos a olho nu Satanás
precipitar sicut fulgur em duas horas de colóquio e de bisturi" (25.12.1950). "Não sou louco em dizer isso, sou
estúpido por não correr mais rápido para libertar a Igreja de muitas armadilhas. Imersos em uma atmosfera de
idiota humildade pagã, é difícil acreditar na nossa onipotência. Que Jesus não nos diga: Afaste-se de mim,
Satanás. Parece uma infâmia. Observe que certos erros ou fraquezas não podem ser repetidos sem que o Senhor
diga uma vez ou outra: Chega. A Igreja é coerência a Cristo, o resto é veneno" (15.1.1950).
Sua criatura, Nomadelfia, não tinha feito o milagre de fraternizar as famílias, amar os filhos não da carne,
mas de Deus, colocando tudo em comum, trabalhar por amor, fundar um povo novo? Não são coisas que se
podem realizar somente com o poder dos filhos livres de Deus, com a força que vem do alto? "Na Igreja muitos
rejeitam como superiores às forças humanas a superação do instinto de sangue e do interesse pessoal. Seremos
perseguidos, porque a nossa maneira de conceber a vida torna-se, em si mesma, um ataque aos outros sistemas,
mesmo que fossemos mudos. Desenvolver Nomadelfia significa criar um futuro contraste, porque um abismo
acabará por dividir nosso costume daquele do povo. A Itália dá sinais de que não nos suporta e nem mesmo
aqueles católicos, que não aceitam a oração de Cristo até traduzi-la em forma social e comunitária" (31.7.1952).
O que resta da luta entre os dois monstros? O coletivismo do estado implodiu. A burguesia assimilou os
diferentes, integrando a todos com o doce encanto da burguesia. E os revolucionários de 68, que queimavam
Paris ao grito: a imaginação ao poder? E os mitos de toda revolução de Gandhi a Mao, Fidel, Che Guevara,
Camillo Torres? Somos todos funcionais, dóceis clientes do mercado global? Para o poder foi a homologação.
Tudo se tornou mercadoria, tudo produto de consumo. Não precisa mais salvar a DC; não precisa mais defender
o papa dos cossacos; não há mais um papa que tenha pavor dos sem-deus, porque somos todos sem deus, tendo
perdido o sentido do homem.
Papa Francisco, não se canse de repetir até ser acusado de obsessão pelos pobres. Não se limite a uma boa
conversa, receba bem os movimentos sociais no Vaticano [incluindo Evo Morales, um cultivador de coca!] com
palavras incomuns para um papa controlado pela cúria: "lutar contra as causas estruturais da pobreza; não basta
promover estratégias de contenção, que tranquilizem os pobres e os convertem em seres mansos e inofensivos".
Você faz da primeira viagem papal, uma peregrinação de penitência a Lampedusa, celebras o martírio dos
Cristos/náufragos em um pedaço de barco. E você pede para orar para obter o dom das lágrimas, porque a
globalização da indiferença tornou estéril o nosso coração.
Mas que exemplos concretos você pode indicar aos povos? Os movimentos católicos se integraram tão
bem no sistema, perfeitamente funcionais! Don Zeno relança o desafio do Congresso de Nomadelfia (Julho de
1951), em termos globais: É possível ser cristão em países enriquecidos uma vez que nos tornam cúmplices de
suas estruturas de pecado, de seus crimes sociais? É lícito ter a consciência ao colesterol enquanto povos do sul
estão sofrendo de desnutrição? Que alguns povos administrem o que é supérfluo para eles, enquanto para os
povos periféricos é indispensável? Povos descartados, sobras, lixo; jogados na lata de lixo por quem? Por povos
brancos e cristãos. Podemos permanecer indiferentes a esta crucificação? Nossa alma não chora ao assistir ao
vivo os 63 muros erguidos por povos cristianíssimos europeus para repelir multidões de pessoas desesperadas
forçadas a vagar da Áustria para a Hungria, da Romênia para a Ucrânia, como vítimas da peste negra? Tratados
como invasores daqueles que os invadiram; tratados como agressores por aqueles que os agrediram.
Delinquentes a serem reprimidos de todas as maneiras, confinando-os nos centros de reclusão em nome da lei.
Repelidos pela catolicíssima Polônia. Os Nomadelfos podem colocar seus corações em paz: "Mas nós fazemos
para vocês a nova civilização"? Don Zeno explica isso a Danilo Dolci, que quer receber alguns desempregados:
"Se querem ser irmãos, compartilhemos o que tem. Se querem o salário no final do mês, não somos patrões nem
servos de ninguém. É como se estivéssemos em uma sala de cirurgia para fazer a intervenção mais difícil da
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história: estirpar o câncer do egoísmo do corpo social. Alguém bate, tem outro paciente em fim de vida. Se
deixarmos este para tratar o outro, não há o perigo de ambos morrerem? Acabo de operar o que está debaixo dos
ferros, depois vou tratar do outro". Diz isso depois de se ter torturado dia e noite sobre o destino do povo. E no
final do dia, cansado de vagar pelas ruas do mundo, para não se desesperar: "Eu não sou o papa nem o
presidente da república. Há guerras e fome no mundo, mas eu não sou Deus. Vou dormir".
Um povo não deveria pedir audiência aos povos crucificados? Quem, melhor que eles, poderia nos dizer o
que fazer, por onde começar? Don Zeno, meditando com Cristo, sente-se na companhia de todas as vítimas do
mundo: "Minha causa é fazer justiça aos Nomadelfos, mas sempre no barco de Pedro, embora na companhia de
ratos e gatos no porão. Fazendo justiça aos Nomadelfos, a fazemos também àqueles a quem eles pertencem: os
oprimidos. É, portanto, a causa da justiça social que Deus me apresenta naqueles, dos quais eu sou pai. Eu sou
um deles. Não posso traí-los. Seria suicídio, um salto na noite de satanás" (7.10.1953). Não corremos o risco de
dormir sobre os louros, enquanto devemos nos sentir possuídos pelos oprimidos? Eu não gosto de colecionar os
prantos da alma de meu pai. Eu tive, talvez, o privilégio de passar pelas pistas ensanguentadas dos novos
Calvários, por isso não posso deixar de gritar: "Vocês também, povo novo, nos abandonam?"
Seu amor pela Mãe o leva a dizer: "E se eu morrer pela dor, tudo bem, pois eu amei demais a minha
Igreja, mesmo sendo acusado de tê-la maltratado" (29.11.1950). "No Santo Ofício fui tratado com muita
bondade, mas para mim é maldade secular. É outro mundo. Não entenderam nada. Colocar em polêmica um ato
de amor tão comprometido é crueldade. ... Parece-me a fábula do lobo e do cordeiro. Tudo isso não diminuiu
meu amor pela Igreja, ao contrário, quanto mais ela é maltratada, mais a amo. Não acredito mais no clero. Não
sabe amar e se empina como juiz. Conhece a verdade, mas a aplica no compromisso, que é a sua práxis"
(15.5.1953). Foi necessário sofrer tudo que sofreu para chegar a este extremo amor. "Quanto mais maltratada,
mais a amo". Fausto o faz dizer: "Talvez me acusarão de ter amado demasiadamente a Igreja, a ponto de passar
por cima da minha consciência e do corpo de 300 filhos? O que significa esse amor louco?" Zeno responde:
"Servi à Igreja e a servirei pelo resto da minha vida. Não saberia fazer diferente, porque para mim a vida é
naturalmente possível somente na Igreja. Pretendi salvar a honra das hierarquias, sofrendo os insultos. Obedeci,
silenciando minha vocação, violando as leis da justiça natural, deixando exterminar os filhos. Atingida por um
torpedo em nossa casa, o navio de Nomadelfia há seis meses afunda em lágrimas. Os sobreviventes pedirão a
Deus o dom de reconstruí-la. Testados dessa maneira, acabarão sentindo, que a Igreja precisa urgentemente de
ser amada até por essas formas de terrível obediência. Aqueles que amam a Deus, necessariamente amam a
humanidade e, portanto, só podem se oferecer nessas formas de holocausto, para que possam entrar de novo em
sua Igreja. ... Nenhum rancor, mas tenho uma consciência perturbadissima" (11.8.1953). "Eles nem me
respondem! Tentei de tudo, só me resta abrir mão do que tenho de mais caro: o exercício do sacerdócio. ...
Sendo que não me sinto de voltar ao cuidado das almas, peço a graça de ser liberado de qualquer ministério, que
limite o exercício dos deveres que a moral me impõe [pagar as dívidas, salvar os filhos]. Me parece muito
difícil que o Senhor suscite vocações para suprimi-las" (para Ottaviani, 24.8.1952).
Como foram capazes de cometer tamanhos erros, se pergunta, sem entender que estão diante um fato,
talvez o único na história: um padre gera um povo, o qual assume o evangelho como lei civil? Quem antes dele
se atreve a falar de uma nova civilização fundada no evangelho? Paulo VI menciona a civilização do amor, mas
o que fazem os povos do amor, sem justiça? O amor é um ramo que nasce naquele tronco. Mas se não foi
plantada a árvore da justiça, como pode o ramo do amor nascer? É no massacre da guerra que Don Zeno
amadurece e a resposta ao anarquista toma forma: uma fé vivida socialmente. E então descobre os dois pilares
da civilização de Cristo: "não da carne, não do sangue, não da vontade do homem, mas de Deus nascemos”; a
última resposta ao mito do sangue, do super-homem; a superação das pátrias; a condenação de uma família
isolada, dos orfanatos, dos asilos cemitérios civis. E depois: "Pai, tudo o que é meu é seu, tudo o que é seu é
meu. Assim sejam eles e o mundo verá que tu me enviaste." Quando nascerá um povo, que terá a coragem de
dizer a um outro povo: tudo o que é meu é seu, tudo o que é seu é meu?

10ª Mensagem: Campo de concentração, campo de aniquilação (P. Levi)


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Senigallia, 18.1.2017
Durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), os filhos de Nomadelfia foram para Auschwitz, seguindo
o caminho de 6 milhões de cristos lançados na chaminé, reduzidos a fumaça. "Pai, sobra-nos o que os animais
humanos não foram capazes de demolir: toma o nosso espírito". Eles percebem que o povo novo não nasceu por
acaso em um antigo campo de concentração? Que os campos de extermínio ainda existem e continuam a
queimar a carne dos pobres, a mesma de Cristo?
Você também, Francisco, vai lá. Nem uma palavra, o silêncio do campo fala muito alto: O sangue dos
justos, caia sobre nós e sobre nossos filhos. Você atravessa o patíbulo, cambaleando, sob o peso de um silêncio
surreal. Apenas o vento repete, entre uma nuvem e outra: O trabalho vos libertará!12 Qual trabalho? Remover
cinzas humanas dos fornos. Trabalhar para a máquina de guerra dos torturadores. Hoje outras SS 13, com outros
uniformes, continuam a limpeza étnica global. E você, o homenzinho branco, visita campos e mares de
extermínio. Envolto no sudário dos silêncios de ontem e de hoje, a condenação da alma européia que não quis,
não quer ver a tragédia: os fornos engoliram Deus no homem. A teologia européia no ponto final. Teus
predecessores, representantes dos dois povos, um mártir, o outro torturador. Se tivessem trocado o abraço do
perdão, convidando os respectivos povos a fazer o mesmo? Como esquecer a tentativa de cancelar um povo
após outro para fazer a grande Alemanha, uber alles? Wojtyla e Ratzinger serão os últimos papas europeus, isto
é, eurocêntricos? Wojtyla reconhece isso: "É realmente difícil continuar o caminho tendo atrás de nós este
terrível Calvário dos homens e das nações. Uma tal constatação nos leva a um exame de consciência sobre a
qualidade da evangelização da Europa. A queda dos valores cristãos, que favoreceu os erros de ontem, deve
nos tornar vigilantes sobre a maneira pela qual hoje o Evangelho é anunciado e vivido" (26.8.1989). "As
monstruosidades daquela guerra se manifestaram em um continente que se gabava de um florescimento
particular de cultura e de civilização; no continente que ficou mais tempo no raio do evangelho e da Igreja. Por
isso os cristãos da Europa devem pedir perdão" (16.5.1995).
E tu, Francisco, não deixa por menos: "Quantos recusam um deus supremo garante da ordem capitalista
do mundo! Por que deveria nos interessar esse deus capitalista? Durante vários séculos, especialmente na
Europa, a Igreja tem sido uma espécie de instrumento de conservação, mas assim acabou por conservar seus
privilégios. É precisamente isso que o papa está deixando de lado". Em Nuremberg não era necessário fazer um
mea culpa universal, reconhecendo-nos todos corresponsáveis? Preferiu-se qualquer condenação exemplar para
não colocar no banco dos réus os carrascos de todos os frontes? O juiz americano tinha um bom ditado: "Se
houver vítimas, há algozes". Não é suficiente justiciar alguns criminosos nazistas. Não foi com as mãos de 40
milhões de cristãos que Hitler fez sua batalha cujo resultado foram 50 milhões de assassinados? Onde estavam
os teólogos, os pastores das almas, os prelados chamados a dar a vida pelo rebanho? Podemos nos justificar com
os Kolbe, os Bonhoeffer, os Franz Jagerstatter, exceções que confirmam a regra? [Em 1932, a conferência
episcopal alemã excomunga aqueles que se inscrevem no partido nazista, o Mein Kampf é posto no Índice. Mas,
no ano seguinte, Roma infalível faz um Concordato com o Fuhrer!].
Zeno, consciente da importância da coisa, organiza as filmagens: "em 19.5.1947 ocupamos o campo de
Fossoli com a guerra dos anjos. Cercas de arame farpado e muros derrubados por mãos nuas. Um batalhão de
crianças saltitando sobre os escombros, como passarinhos cantando a liberdade". "As nossas 28 famílias se
reuniram ali e veio a idéia de concretizar Deus através de um sistema social. A nova civilização que estava
dentro de mim floresceu. Se nos tornamos um povo, temos uma vocação política particular: fundar uma nova
civilização. O mundo ainda não viu como podemos ser santos de maneiras diversas, como seria possível ser
imitadores de Cristo no plano familiar, social e político. Então, nós visamos à santidade social. O nosso é amor
do povo para o povo, o qual também enquanto povo é filho de Deus. O que podemos fazer? O milagre de trazer
a justiça no amor. A proposta de se tornar irmãos com uma política universal, para que todos possam dizer:
"Não quero mais ser comunista, democrata-cristão, liberal, porque sou irmão de todos. Eu não nasci para ser de
uma parte, mas do todo". Por que o povo novo teve que passar por um campo de concentração, se não para
sentir na própria pele o que está sendo feito às vítimas de ontem e de hoje?
12
Arbeit Macht Frei (O trabalho vos libertarà), escrita posta na entrada do Campo de Extermínio de Auchwitz.
13
Tropa de Proteção nazista, organização paramilitar ligada ao partido nazista de Adolf Hitler.
39

As tropas de choque nazistas (SS) submetidas à mistica nazista, adestradas no ritual de morte, executoras
materiais do massacre. Prisioneiros forçados a se tornarem carrascos de seus irmãos. Deformações psicológicas.
O prisioneiro atordoado pela dor: Doutor, por caridade, um remédio ... para chorar. Não se inventa o gás por
piedade. Durante os metralhamentos da primeira hora, muitos SS nazistas não aguentam tanto sangue. Álcool,
loucura, suicídio. O gás da descarga das caminhonetes desacelera a máquina da solução final. Os carros de boi
premem. Finalmente o milagre do mal: o Zyclon B, o ácido prússico: 5/7 quilos para 1500 pessoas em três/dez
minutos. Invenção genial: a chuva da morte para lavar o corpo e a alma. Trancadas na noite da história, as
crianças brincam com seus brinquedos, as meninas acariciam suas bonecas para que durmam o sono da morte.
Elie Wiezel, de catorze anos de idade, descreve a punição exemplar pelo roubo de duas batatas. "Três
forcas: três corvos negros. Apelo. As SS nazistas com as metralhadoras apontadas: a cerimônia tradicional.
Enforcar um rapaz na frente de milhares de espectadores não era pouca coisa. Todos os olhos estavam fixos na
criança. A sombra da forca a cobria. Os três pescoços foram introduzidos nos laços. - Viva a liberdade! -
gritaram os dois adultos. O garotinho ficou em silêncio. - Onde está o bom Deus? Onde? - perguntou alguém
atrás de mim. Silêncio absoluto ... mesmo se a criança levemente ainda estivesse viva. Mais de meia hora
permaneceu assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando diante de nossos olhos. Ele ainda estava vivo
quando eu passei na frente dele. Atrás de mim, ouvi o homem de sempre perguntando: Onde está Deus então? E
senti uma voz em mim respondendo: Onde ele está? Está aqui: está aí, pendurado naquela forca" (La notte,
Firenze, 1980, 66s).
Deus, como você pode dizer: bem-aventurado aquele que chora, bem-aventurado aquele que está em
desespero e está assistindo? "Não. Eu, o seu Deus, peço-lhes: em vez de me deixar assistir a cena, crucifiquem a
mim, vocês me fariam menos mal. Eu prefiro ser morto pelo gás com você, em você. Eu estava neles (Mt
25:31), hiroshimizado, vietnamitizado, rwantizado". Quando te vimos e ouvimos? "Vocês não ouviram o Zyclon
B? Vocês não me viram nos olhos das vítimas? "Não o ouvimos porque falou muito alto ou nosso pietismo
cobriu Sua voz?"
"Dez mil homens vieram para participar da solene função! - Abençoai o Eterno ... Seja bendito - Bendito
o Nome do Eterno! Milhares de bocas repetiam. Mas por que, por que abençoá-lo? Por ter permitido queimar
milhares de crianças, por ter permitido funcionar seis crematórios dia e noite, mesmo no sábado e nos
feriados? ... Nos escolheu entre os povos para sermos torturados dia e noite, para ver nossos pais, nossas mães,
nossos irmãos acabarem no crematório? Louvado seja o Seu Santo Nome, você que nos escolheu para sermos
imolados no Seu altar? ... E eu, o místico do passado, pensava: "Sim, o homem é mais forte, maior que Deus.
Quando você ficou desapontado, você os mandou embora, causou o dilúvio, deixou o fogo e o enxofre chover
do céu. Mas esses homens aqui, a quem você traiu, que você deixou torturar, degolar, matar com o gás, queimar,
o que eles fazem? Eles rezam diante de você! Eles louvam Seu nome? ... eu não implorava mais. Não conseguia
mais gemer. Pelo contrário, me sentia muito forte. Eu era o acusador, e Deus, o acusado. Meus olhos se abriram
e eu estava sozinho no mundo, terrivelmente só, sem Deus, sem homens; sem amor ou piedade. Eu não era nada
além de cinzas, mas me sentia mais forte do que o Onipotente a quem eu havia ligado minha vida por tanto
tempo. Não aceitava mais o silêncio de Deus ... Onde está a misericórdia divina? Onde está Deus? Como posso
acreditar, como se pode acreditar neste Deus de misericórdia?" (E. Wiezel). "Onde estou? Onde você me
colocou: na câmara de gás, na cruz do Zyclon B, na cruz de um átomo".
Hoje a guerra continua com outros meios: medidas econômicas, leis de mercado, jogos financeiros. O
homem não quer os efeitos da injustiça, mas o que ele faz para remover as causas? Zeno defende que aos pais
das almas não é licito sobreviver às vítimas: "A própria morte em holocausto, em meio aos filhos inocentes e
aos irmãos que estão ameaçados de morte, é um dever de preeminência" (Nós não concordamos, 37).
A quem eram endereçadas minhas mensagens desde 1982, quando pus o pé no Calvário dos
empobrecidos? A quem eu pedia para levar a cruz comigo? O destinatário nominal era um Nomadelfo, mas, no
meu inconsciente, pretendia jogar na alma do povo novo os estigmas dos povos. Quando estive com meu pai no
quartel de Florença, de repente ele ficou sem palavras. Percorremos os intermináveis corredores, nos quais
40

pareciam ressoar as vozes dos camaradas, as alegres brigadas, os gritos. A voz do seu Barrabás ainda gritava:
"Canalhas! Vocês enganam o povo! Socialmente os católicos são piores que outros". E Fausto, hoje, nos
quartéis do sul do mundo, não consegue, sozinho, levar o desafio dos povos crucificados: "Povos cristãos, onde
estão? Vistos globalmente, são nossos carrascos, nossas SS?" Naqueles momentos, meu pai me dizia: "A cruz é
pesada. Seja o meu Cireneu". Quem poderia ser Cireneu para Fausto se não os irmãos Nomadelfos?

11ª Mensagem: "Quem participa copreende, quem não participa não compreende"
Fortaleza, 22.01.2017
Caro Francisco, aqui estou novamente envolvido com os filhos de ninguém. Nem mesmo os teus, Deus?
Se tu és o pai de todos, o é ainda mais daqueles que ninguém quer. E isso vale também para o Vigário de Cristo,
não é? Leonardo é um deles. Irritado com todos, especialmente consigo mesmo. Ele me pede dinheiro para
comprar a pipa. O vento sopra favorável. Como negar a uma criança de colocar seus sonhos nas asas de uma
pipa? E assim o céu dos abandonados está em festa, constelado de pipas. Eu procuro a minha. Está lá em cima,
inacessível. Dança, ri, dá cambalhotas, brinca com aquele vento que irá queimar a floresta. Na minha pipa está
escrito: nova civilização. Sopra forte, vento, que sopra sempre onde quer e não sabe de onde vem, para onde vai.
Antes de viver com os abandonados, eu achava que os entendia, mas a experiência é insubstituível. Os
Nomadelfos têm razão em dizer aos hóspedes que, para compreender sua vida, não basta entender com a cabeça:
"Quem apenas compreende, não compreende; quem participa compreende". A realidade é sempre mais ampla
que a razão. Para entender nossa vocação, precisamos participar, enquanto povo, na vida dos povos/irmãos. A
limitação de Fausto é participar como indivíduo e ele finalmente percebe que lhe falta o povo novo. Não seria
necessário que os Nomadelfos se encarnassem nos estigmas dos povos? Como? Esvaziando-se de se mesmos
para acolher os outros. Isso não significa anular-se, mas abrir espaço. Cristo, esvaziando-se de si mesmo, não
negou a si mesmo, mas preencheu-se de nós, alcançando a plenitude de si mesmo: estar com. Os outros já não
são mais a sua circunferência, mas o seu epicentro. Nomadelfia se realizará quando se esvaziar de si para se
encher dos povos irmãos?
O anarquista abriu os olhos do jovem Zeno, fazendo-lhe ver que devia se esvaziar do patrãozinho todo
católico, que acreditava ser. Hoje são os povos anarquistas que abrem nossos olhos para ver o alcance e as
implicações de nossa vocação. Não é hora de abrir espaço para fazer nascer os povos no útero de Nomadelfia,
acolhê-los como se acolhe um filho que nasce? Não é suficiente que um indivíduo só faça isso, o povo dos
Nomadelfos deve fazê-lo como tal. Participar não é algo automático, nem é suficiente transferir-se
geograficamente entre os povos. A transferência deve ser existencial. Exige convivência, escuta, acolhida do
outro como outro. Nenhum programa nem pretensão de conversão, doutrinação, proselitismo. Jesus veio com
um sonho sem programas. Ele se colocou em pé de igualdade com os pescadores ignorantes sem humilhá-los. É
o estar com que abre pistas de condivisão. Levar a nossa vida. Farão isso na medida de seu crescimento em
idade e graça. Enquanto isso, os jovens não poderiam fazer aprendizagens em centros de
acolhimento/refugiados para se exercitar na arte de se esvaziarem?
A alma de Zeno vive em um movimento centrífugo: Eu nasci para a justiça. Podemos viver essa paixão
como um povo sem nos imergir nos povos? Só tu, Papa Francisco, carrega esta bandeira, fazendo inimizade
com os povos enriquecidos, que te taxam de comunista. Veja só, a mesma acusação que faziam ao nosso pai. A
sede de justiça dos povos escravizados poderá queimar a nossa alma se não subirmos em suas veias abertas?
"Para eles todos os oprimidos são de Nomadelfia, todos os não oprimidos, são opressores. A Igreja enviou-me
nos esgotos e destes eu condeno qualquer um que nos deixa nos esgotos. ... Na Igreja há um cisma entre
oprimidos e opressores, que têm em comum doutrina e hierarquias, não o mesmo amor, ... e nunca será capaz de
realizar Cristo na terra se não se tornar oprimida entre os oprimidos" (13.5.1951).
Fausto não faz nada além de falar sobre os irmãos/povos, porque está imerso neles, navega em suas veias
abertas. Na escola deles como um colegial, que tem tudo para aprender: língua, usos, costumes, cultura,
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história. Na mesa deles, para aprender a arte de compartilhar a comida, o gesto mais humano e universal que
existe. Jesus comeu no prato dos publicanos, sentiu a alegria de beber vinho com os amigos. Sentar-se à mesa
dos povos escravos não é uma imagem bonita, mas uma realidade a ser descoberta para se alimentar de sua
comida e de sua alma. Fausto cuspiu a alma para se deixar invadir pelo povo nordestino. Para descer do púlpito
da verdade, do pedestal da casta clerical. Descer, descer para aprender com os pobres, ter fome de pão e até
mesmo de Deus. O filho do homem não aprende com eles as bem-aventuranças? E os pobres o sentem como um
deles, carne de sua carne: "Os ricos têm tudo. A que serve Deus? Então é nosso. Seu filho é nosso filho, filho
dos pobres, nosso irmão".
Nas primeiras vezes peço à catequista que faça o sermão. Para ouvir, acolher, fazer minha a fome deles,
eu que não sei o que é fome. Que ginástica do coração e da alma! Sentar-se à mesa dos povos empobrecidos,
valorizar seu arroz e feijão. Celebrar a colheita com a procissão nos campos, trazer em triunfo os produtos da
terra, fruto do suor dos lavradores. Colocá-los no altar, na mesa de Deus, e oferece-los ao criador, para aprender
a compartilhá-los entre nós como Cristo fez. E depois aprender a beber as lágrimas deles e dos outros. Também
as de dona Dalgisa quando a convido a contar o evangelho de sua vida: "Eu choro apenas lágrimas de sangue".

12ª Mensagem: benfeitores bilionários, beneficiência bilionária.


Fortaleza 1.2.2017
Francisco, enquanto os grandes economistas do mundo se reúnem em Davos, Oxfam revela que as oito
pessoas mais ricas do planeta possuem os mesmos bens que os 3,6 bilhões mais pobres. É lícito confiscar o que
é supérfluo para alguns, mas para povos inteiros é indispensável? A sociedade coloca-os no pódio dos
campeões. Cristo, onde os coloca no juízo final? Zeno declara: "Somos escravos e nossa presença, pela lei da
extrema necessidade, anula o direito de propriedade pública e privada, e o condena como um roubo, sendo para
nós um privilégio imoral e uma evidente subtração" (9.11.1953). "Ligados a uma concepção pagã de riqueza,
não implementamos Cristo no campo social. As massas estão contra nós, porque não sentiram em nós a sua
presença. Assim, a Igreja submerge, a cruz flutua porque é de madeira. Estamos divididos, cada um vive sua
santidade, cada um canta sua canção de salvação do mundo; enquanto isso há somente uma realidade plangente:
a autoridade de Cristo confiada a homens que são muitas vezes mais pecadores que nós. O sal não salga e o
povo volta a ser pagão nas obras, porque o próprio clero também já é, e já fede. Será que Cristo quer ressuscitar
este novo Lázaro ou pensará de se servir das vítimas? Eis o dilema do nosso século" (para Don Calabria,
22.11.1949).
Somos filhos de quem aspirava morrer na praça com uma escopeta, talvez narrando a parábola do rico na
versão global: "Façam dois montes: de um lado os povos enriquecidos, do outro os povos empobrecidos". Não
era um seguidor do sonho daquele que se atreveu a dizer em praça pública: "Ai de vós ricos. É mais fácil que
um camelo. Afastem-se de mim, malditos!"? Hoje, grita isso pela boca de 3,6 bilhões de depauperados. “Filho
do homem, um pouco de moderação, por favor! É realmente necessário amaldiçoar os ricos para nos fazer
entender o que você pensa? Não era suficiente algum sinal? Vamos lá, não exagerem! Queremos saber se
seremos julgados seja como indivíduos quer como povos. E então, você, tão complacente, no final não fará uma
anistia geral?”. "De maneira nenhuma: entreguei o julgamento aos pobres ... se arrangem com eles". Os povos
que não têm nada sussurram à alma da Europa cristã: "Vocês foram os primeiros convidados a participar do
banquete da fraternidade global e hoje jogam 30% da comida no lixo". É a hora dos povos das periferias?
Quando o professor de teologia desafia o jovem Zeno: "Você pensa em salvar o mundo!", batendo com o
punho na mesa: "Sim, estou aqui para isso". Hoje é Bill Gates que diz que quer mudar o mundo: to change the
world. Você nos roubou a profissão e a bandeira. Porèm faz o papel do benfeitor, porque você está cansado de
contar os 84 bilhões de dólares, não sabe mais como gastá-los, está entediado em ser o bilionário? Você se
inspira num vago sentimento religioso. Lembre-se que, segundo o juízo universal, para ver a fome e a sede é
suficiente ser humano, não é necessária nenhuma religião. Se trata de justiça, não de caridade. Se a injustiça
implica uma condenação e uma punição eterna, isso significa que é um crime a ser perseguido pelo próprio
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Deus. A caridade não pode ser imposta por lei, senão não é mais amor. Pela justiça, somos obrigados a
satisfazer as necessidades do irmão, seja como indivíduo que como povo. Zeno se pergunta: "Onde está Cristo
neste mundo animal? Certamente no faminto, no prisioneiro, como nosso juiz, porque não cuidamos d'Ele". "O
rico é golpeado por Deus, porque subtrai o necessário aos outros, portanto os mata. Jesus não tem piedade dele,
não faz cerimônias: "Você acumulou, não usou os bens com justiça? Afaste-se de mim, maldito"!
Em 2008, a Fundação Bill & Melinda Gates investiu 41 bilhões de dólares em filantropia. Se você sente a
necessidade de devolver metade do patrimônio, acha que a outra metade está isenta da luxúria do lucro? Ou é
toda sã ou é toda doente. Em Davos, você propõe o capitalismo criativo: o lucro seja também para o benefício
dos pobres. Em 2016, a lista de benfeitores bilionários chega a 154. Com uma mão vocês ajudam os pobres,
com a outra os exploram, ajudando o sistema a produzi-los. Como não ser funcionais às leis econômicas feitas
para produzir enriquecidos de um lado, empobrecidos do outro? Os ricos advertêm que em seus lucros
estratosféricos há algo que não funciona. Como justificar assim tanto dinheiro juntado tão rápido? Indigestão de
natureza social?
Há quem os justifique: "Deveríamos nos indignar com aqueles que deram trabalho a milhões e milhões de
operários? (...) O elemento enganador é a insinuação de que os dois extremos têm um nexo (...) infelizmente a
realidade é mais complicada e o que empurra para a miséria bilhões de pessoas não é a maldade dos super ricos,
mas uma série de circunstâncias relacionadas à política e economia dos lugares em que vivem" (Il fatto
quotidiano, 24.1.2017). E se a maldade estivesse nas regras do jogo? Como conseguiram acumular tanto? Zeno:
"Um ganha milhões por mês, o outro nem o pão. O Governo usa a lei para impor injustiça, defender os
opressores. É tirania. A escravidão não acabou: onde há um só homem com fome, há escravidão; onde é
comprado e vendido por outro homem, é aberração social" (6.2.1950). As regras favorecem alguns às custas de
muitos. Quais são as raízes que produzem as aberrações das virtudes capitalistas exercidas em grau heróico?
Livre concorrência - Quanto mais você produz, mais ganha - Interesse pessoal – Quem faz por si mesmo, faz
por três. Vocês, santos da perfeição capitalista, fazem também por aqueles 3,6 bilhões de ineptos, incapazes de
acumular, especular sobre a pele dos outros. Não é a economia de mercado o monstro das oito cabeças? Se o
pobre estivesse no lugar de vocês, faria o mesmo? Joaonzinho Trinta, um carnevalesco, o sintetiza de forma
lapidar: É o pobre que gosta de luxo!
Bill me cria dificuldades. Restituir em beneficiência é um dever humaníssimo, mas o seu a mais não
pertence por direito a quem tem menos? A esmola não deixa de ser menos degradante, porque feita em escala
planetária com a ambição de erradicar a pobreza, a malária, a AIDS, etc. Libertar do subdesenvolvimento é um
imperativo categórico. Mas uma sociedade que anula o conceito de justiça necessariamente produz os santos da
beneficência. Conseguimos criar a cultura da caridade, fazendo-a passar como justiça. O que te custaria dizer
que se trata de justiça e não de esmola? Teus fãs se insurgem: por que enfiar a lâmina da crítica em um coração
tão generoso? Precisa ir ao cerne do problema, que é o coração do sistema: o relacionamento humano. Se não
houvesse povos patrões e povos servos, especuladores e explorados, opressores e oprimidos, ainda
precisaríamos de um Bill Gates e seus emuladores?
Seu sonho, To change the wotrld!, é o sonho de todos. Você acredita que o dinheiro tem o poder de
mudar o coração humano? O pobrezinho de Assis comoveu o mundo, cuspindo no dinheiro do seu pai e também
no teu. Pode-se comprar um homem, pode-se comprar um espírito encarnado? O beneficiário será capaz de
admirar tua generosidade, mas nunca te sentirá como um igual. Se você está no topo e nós no porão da história,
como podemos nutrir sentimentos de paridade? Vê-se pelas fotos de lembrança, que você se veste como seus
beneficiários. É inútil, você é diferente: você pode, nós não podemos. Você tem, nós não temos. Você é
admirado, invejado, etc. E nós? Diga tudo: é cômodo aumentar o poder acquisitivo dos pobres para torná-los
consumidores. E os teus investimentos em companhias petrolíferas, na pesquisa farmacológica, no agronegócio?
É toda santa a tua generosidade ao financiar as multinacionais, que exploram os pobres? Isso não diminui tua
auréola de santidade, para os miseráveis são suficientes as tuas graças e te serão gratos para sempre. Rezarão a
ti, não mais àquele deus lá em cima que observa seus Calvários sem mover um dedo. Bill, deus dos pobrezinhos,
faz-nos a graça da saúde, do trabalho, do salário no final do mês.
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O povo de Nomadelfia, isento do crime social, seria o mais indicado para defender seus povos irmãos.
Zeno responde ao anarquista: "Não mais patrão, não mais servo". Hoje, através da boca de seus filhos, diria:
"Não mais povos patrões, não mais povos servos". É necessário ver com a alma o horror de ser povos patrões,
que reduzem os povos servos a meios de produção, máquinas caça-níqueis do prazer de ganhar dinheiro. Ele
diz: "Se por um momento eu sonhasse em estar sob patrão, eu morreria de desgosto. Deus escolheu um menino
que cuspiu na face da riqueza, no patrão que é um ladrão". O suor de um povo pago por quilo, como o de um
burro de carga, ou da prostituta que se vende. Um anarquista obriga Zeno, o patrãozinho, a olhar para suas mãos
ensanguentadas. Os camponeses que roubam o "mosto" (vinho novo) do seu pai lhe revoltam as entranhas da
alma. Lhe fazem sentir que tem o poder de demitir famílias inteiras. Olha-se no espelho e fica horrorizado:
sanguessuga, explorador, prostituto do suor humano. O irmão assoldado (que oferece seu serviço por dinheiro),
chantageado, coisificado. "Os dez mil operários da fábrica, a Fiat, por exemplo, são como dez mil chaves de
fenda para produzir riqueza". Povos inteiros reduzidos a meios de produção para o enriquecimento de outros
povos. A automação prejudica o mundo do trabalho para torná-lo supérfluo? E a epopéia do mundo operário, a
mística do trabalhador? A classe operária vai ser aposentada, a teoria da mais-valia vai ser posta no sótão? A
luta de classes será reduzida aos riquíssimos e ao despossuídos. O façam dois montes estará entre os oito
tubarões e o grupo incontável de peixinhos. O novo conflito é entre povos enriquecidos e povos empobrecidos.
Dá vontade de dizer aos oito Rambo da economia: "Qual o segredo da multiplicação de capitais? Alguns
restuitirão parte dos roubos. Mas sua caridade não é um desvio da justiça? Para vocês a honra de dar, aos
míseráveis a vergonha de receber. Seria necessário uma glória de Bernini apenas para vocês, que exercitaram de
maneira heróica as virtudes capitalistas. E depois santuários onde implorar vossas graças, seguir seus exemplos.
Não existe uma teologia da prosperidade que invoque as bênçãos celestiais sobre vocês e seus filhos até a
bilionésima geração?"
Já em 1951, o Congresso de Nomadelfia propõe ao S. Ofício questões perturbadoras sobre o uso dos bens:
"Precisa remover o mal-entendido de que a Igreja é uma mistura heterogênea de quem observa o preceito do
amor e de quem se comporta como pagão mesmo dizendo de professar a fé. ... A presença dos pobres, vítimas
involuntárias da injustiça, é um crime social contra o Espírito Santo. É um pecado individual para todos os
católicos, que não se tornam pobres com os pobres por amor sobrenatural. Se não são oprimidos, são opressores
por omissão, porque rejeitam o amor um pelo outro. ... Pedimos que sejam condenados como pecadores
públicos e hereges todos os católicos no poder; a condenação de católicos e eclesiásticos que abusam da
riqueza" (julho de 1951). "Se a Igreja nega os sacramentos aos concubinos, porque não decide impor
conscientemente a justiça distributiva aos católicos? ... Acredita que Cristo pode suportar as injustiças feitas em
seu nome aos filhos sofredores? ... Se reagem tão violentamente a uma pregação sobre a justiça é sinal de que
estão fora da Igreja" (27.6.1951). A ponto de chegar a dizer: "O papa deve excomungar todos nós, incluindo ele
mesmo, para abrir um ano santo de penitência durante o qual em São Pedro, antes ele e depois nós, fosse
firmado um novo pacto: jurar nunca mais oprimir os pobres, ou melhor, nunca mais gerar os pobres e fechar a
porta do templo na cara de quem não dá a vida para se por em pé de igualdade com os oprimidos" (27.12.1949).
O que deveríamos dizer hoje dos povos do norte enriquecidos à custa dos povos do sul? Oito Midas14
transformam em ouro tudo o que tocam, enquanto metade da humanidade está à deriva. Quem fez as regras do
jogo poderia imaginar que eles chegariam a ter um poder quase infinito em suas mãos? Quem são, deuses? E
quem deu a eles esse poder? A economia de livre mercado ou o mercado de livre delito de exploração e de
acumulação? Se as regras do jogo produzem oito vencedores sobre 3.6 bilhões de vencidos, a verdadeira
derrotada é a racionalidade, o bom senso? Bill, seu joguinho funcionou às mil maravilhas: você manteve os
royalties das patentes. A IBM pagava os direitos a um jovenzinho e assim você alcançou a montanha da
beatitude de 84 bilhões de dólares.
Quem mais do que nosso pai defendeu a sacralidade do suor humano? Porque Cristo nunca tem uma
palavra de louvor para o benfeitor, o rico, o patrão, individuo ou povo? "Eu cuspi na cara da riqueza, do patrão
que é um ladrão". "Não pode se dizer cristão e tornar-se um benfeitor de seu irmão. Nem pode pretender fazer o
bem dando trabalho ao desempregado. Quem te autoriza a usar o trabalho de seu irmão como o de um animal de
carga? Pode usar o seu suor para enriquecer, acumular, aproveitando-se de suas habilidades, que são de Deus?"
14
Rei da Frigia. Tudo aquilo que tocava se traformava em ouro.
44

(Heresia do amor, 45). E a sua versão da parábola dos vinhateiros? "Não há paridade de matéria entre trabalho e
remuneração. Não se mede o trabalho como se fosse mercadoria. Todos trabalham as horas que podem trabalhar
e todos recebem o necessário para viver. Para que serve o excedente? Deus daria talentos e dons para reduzir os
outros a meios de produção? E quem não pode trabalhar nem mesmo uma hora, como os inválidos e as
crianças?" (Heresia do amor) "O homem se move por algo superior, segundo sua natureza de espírito
encarnado. O trabalho humano não é mercadoria, não é objeto de compra-venda, senão se reduz à mesma
relação que existe entre um libertino e uma prostituta: um comércio no qual não existe igualdade de matéria"
(Sede de justiça, 52). "A terra e as matérias-primas não têm dono, o trabalho é um dever sagrado. Em uma
sociedade que respeite as leis da natureza, os ricos e os capitalistas não devem existir, porque ou são parasitas
ou são especuladores. E nem mesmo os pobres. Haverá pródigos e preguiçosos para reeducar. Para os católicos,
o amor não exige coisas às quais tem direito. Portanto, em favor das vítimas, devem dar bens e vida e lutar em
campo político, para que se implemente a justiça. Não pregá-la sem as obras, mas se pôr em pé de igualdade
com os oprimidos, tornando-se oprimidos com eles. Quem não se torna irmão do sofredor, ilude-se de amar.
Enquanto não realizarmos o perfeitos na unidade, o mundo nunca vai entender Cristo e a Igreja. Falar de
unidade espiritual e doutrinal, quando não há condivisão dos bens, é absurdo e farisáíco. ... Não aceitamos
pactos com nenhum sistema político injusto. Esta é a penitência: fazer as contas. A hora trágica do mundo exige
uma reforma radical. O Movimento da fraternidade humana é utópico? Para eles é utopia tudo o que oferece
uma solução social; preferem que o doente permaneça doente" (Depois de vinte séculos).
Governos, instituições filantrópicas, centros de pesquisa, ONGs, todos ajoelhados aos pés de Bill para
obter subsídios. Só você, hoje, pode fazer milagres! "Não há outro Bill além de mim!" Qual é a sensação de ser
o onipotente dos povos miseráveis? Primeiro você goza, aos 39 anos, de ser celebrado como o homem mais rico
do mundo. Depois, você percebe que algo não está funcionando e dá vontade de cuspir naquela riqueza
acumulada às custas dos pobres. Antes você comprou o suor de seu rosto e agora, com beneficência, compra-lhe
o suor de sua alma? Explorados duas vezes, para que tu possas gozar a satisfação de ser o deus deles,
concedendo graças e favores, maravilhas e milagres para todos. Viva Bill, viva o protetor dos miseráveis!
Onde estão os Marx, os pregadores da justiça: "Povos roubados do mundo inteiro, uni-vos! Recusem a
esmola, a humilhação daqueles que usam vocês como cobaia para o enriquecimento material e, agora, não
suficiente, quer ter o prazer do seu enriquecimento moral. Primeiro devoraram suas carnes, agora suas almas.
Insaciáveis tubarões. Quem irá convencê-los de crimes contra a humanidade? Quem terá a coragem se o público
global os celebra como super heróis? Eles fazem o que nem Cristo conseguiu fazer: não alimentam milhares de
pessoas, mas milhões e milhões. Caridade de bilionários!"

13ª Mensagem: Filhos perdidos, povos perdidos, povos bebês...


Fortaleza, 12 de fevereiro de 2017
Francisco, o convite para a inauguração da comunidade Bom Samaritano é também para você. Três horas
de celebração: discursos, canções, balançar de braços, invocações, choradeiras, para fazer cócegas na alma.
Eram suficientes os testemunhos dos três filhos da rua. Não me cansava de olhar para eles e, por dentro, revia os
dois anos passados com eles: rostos, Calvários, tragédias. Eu dizia muitas vezes: "Jesus foi crucificado pelos
outros; nós nos crucificamos com nossas mãos". Hoje me torturo: Cristo, por que ousa dizer que o médico vem
para os doentes? Eu os conheço muito bem. Você teria vindo para uns detritos humanos? Gosta de se apresentar
ao Pai abraçado a um ladrão? Teu amor cola os cacos, restaura afrescos perdidos, cria o homem novo, mas as
cicatrizes permanecem. Por que não escolheu padres, frades, freiras, todos gente de bem? Foram eles quem me
ensinaram, os perdidos, os únicos que anseiam por um mundo diferente: "De que serve um salvador para os
ricos de bens materiais e espirituais? Nós, reduzidos a vermes, sonhamos com algo diferente da fossa em que
nascemos e crescemos. Já conhecemos o inferno do individualismo, queremos conhecer o paraíso da
fraternidade. Só nós desejamos ardentemente a salvação. Os ricos não sabem o que fazer com isso"!
Ícaro: "Com 14 anos, desesperado, bebia etanol, que roubava nos postos de combustíveis. Bastaram-me
poucos dias para acabar com a herança; até sentir nojo ser bandido, receptador. Agora dou uma mão nas
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comunidades de recuperação". Nirvando, Ricardo, Walace, diante do altar de Deus, como cordeiros sacrificiais.
Quanto mais olho para eles, mais vejo os doentes de hoje, os que Jesus procura: "Eu vim pelos doentes da
desnutrição; para as economias sangrentas; para os escravos da dívida eterna". Um médico que cospe na cara
dos sadios como eu: "Vocês estão muito saciados. O que lhes falta? Eu venho para aqueles que tocaram o fundo
do poço". Certos movimentos levam os seguidores a experimentarem o prazer de serem generosos. Convidam os
pobres para os centros de acolhimento, para tomar banho, para uma comida quente, para o retiro mensal. Como,
um retiro? Sim, um completo retiro espiritual para empanturrá-los até mesmo de palavra de Deus. Pretendemos
explicar a Cristo quem é o Cristo, enquanto eles o são em carne e osso, não espiritualmente? Pobres Cristos,
crucificados por nós, não por anjos! Não podem abrir mão da beneficência, mas sua fome de amor não se sacia
com sanduíches e coca-cola. Só podem ser tirados da cruz pelo amor que se torna pai, mãe, irmão.
Francisco, você repete: Tocar a carne dos pobres é tocar a carne de Cristo. No entanto, há aqueles que
pretendem fazer Jesus Cristo rezar, fazê-lo cantar hinos e cânticos espirituais. A associação agrega 300 jovens,
todos estudantes universitários, classe média alta. Nenhum da favela? Rezam intensamente, choram, abraçam os
perdidos, por um longo tempo, uma comoção coletiva. Autossugestão ou alienação de grupo? Zeno põe o dedo
na ferida: "Os inimigos dividem a Igreja das massas, mostrando que ela é reduzida a culto e doutrina e não é
condição sine qua non da vida social" (27.2.1950). É realmente necessário usar Cristo para dar um sanduíche?
No juízo, ele dirá que um pouco de humanidade é suficiente. Fazê-lo em nome de Deus nos ilude de sermos
bons cristãos e, em vez disso, é o mínimo para sermos homens. E então se ajuda o pobre, envolvendo-o na
mudança da sociedade, caso contrário, torna-se funcional ao sistema. "As almas que se dedicam ao bem da
humanidade devem guardar-se contra uma armadilha: fazendo o bem imediato para o alívio das vítimas, não
devem reforçar as posições dos opressores. E as vítimas devem conhecer as causas de sua ruína para não caírem
no equívoco de considerar bondade o gesto de quem as acariciam, negando-lhes o direito à cidadania em p é de
igualdade. Eu me defendo dos opressores. Defendendo-me eu sou um homem. ... Eu não me dobro à injustiça.
Oprimido, estou ao lado dos oprimidos que não são um partido nem uma ideologia. Os homens estão divididos
em dois blocos: opressores e oprimidos" (Nós não concordamos, 13).
Onde vivem esses jovens benfeitores? Na lua, em fuga espiritual de um Brasil, que em 2014 registra o
recorde de assassinatos em sua história? 170 por dia, um a cada nove minutos. As práticas de piedade cegaram a
nossa alma, enganaram o coração, iludiram de sermos generosos? Por que não somos capazes de indignação?
Enquanto os voluntários trazem sandwuíches nas calçadas, 25.255 coetâneos são mortos, um aumento de 700%
em relação a 1980. [Dos 8,5 milhões de armas não registradas, 3,8 milhões estão nas mãos de criminosos].
Como colocar o coração em paz, orar, cantar, iludir-nos que Deus precisa de nossos louvores, enquanto
ao redor do altar caem vítimas sobre vítimas? Ele continua a declarar à história que ele é o Senhor dos vivos,
não dos mortos. E vocês são como coveiros para os que morrem de overdose, pelas lutas intestinas entre
gangues, entre facções nas prisões.
[30.1.2018 Nestes dias, a loucura sangrenta das facções pelo donínio do território (= tráfico de drogas)
atinge extremos inimagináveis. Os bairros são transformados em campos de batalha. Tiroteios para todos os
lados. Eles se vingam nos parentes dos adversários, especialmente nas mulheres, as mais indefesas. 15 homens
encapuzados invadem um restaurante e matam 14 pessoas. Uma carnificina. Nas prisões esquartejam-se uns aos
outros, uma perna aqui um braço acolá. Um oferece um pedaço de fígado fresco para comer... "O que você tem
na mão, uma ostra?" "Não. É um olho de um inimigo"! Mas os pastores onde estão? Eles virão, convidarão os
cabeças, pelo menos, para uma mediação! "Não vêem, que se destroem uns ao outros?" Francisco, seria em vão
você convidá-los para sair? "O nome de Deus é misericórdia. A Igreja não está no mundo para condenar, mas
para promover o encontro com aquele amor visceral, que é a misericórdia de Deus. Para que isso aconteça é
necessário sair. Sair das igrejas e das paróquias, procurar as pessoas onde elas estão, onde sofrem, onde
esperam"].
O Deus misericordioso continua clamando aos povos/Caim: "Onde estão seus irmãos, os povos/Abel?". O
culto agradável a Deus não é a Vida, a justiça? Os piedosos católicos parecem querer salvar os perdidos com um
sanduíche, o retiro mensal. Pelo contrário, foram eles, os perdidos, que me fizeram descobrir minha miséria
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interior, ser fariseu disfarçado de cristão, porque não sou como eles! Quando cito as tuas palavras para eles:
"Quem sou eu para julgar?", olham entre si incrédulos: "Mas como, eles sempre nos desprezaram na igreja e
fora dela?".
Don Zeno reza: "Estamos maduros para responder ao chamado do Senhor, que nos incita a deixar o ninho
para propor ao mundo Nomadelfia como uma nova civilização? ... O amor do povo de Nomadelfia é para os
povos do mundo inteiro? ... O mundo está agonizante e sedento de uma grande Nomadelfia, porque precisa ver
essa nova civilização em ação, que é o sonho dos séculos. Você não vê? As pessoas hoje te procuram e vão para
a conquista da justiça social, mas falta-lhes o modelo ... somos irmãos de todos ... Senhor, faça desabrochar o
povo novo, a nova civilização no mundo: sim, as pessoas devem ver o modelo e irão compreender e fazer"
(Vademecum, 1971).
Eu vou te contar o último elo da corrente que me prende aqui. No crepúsculo, sentado no jardim, vejo a
vida fluindo. Na casa defronte vivem as crianças abandonadas de mais tenra idade. A última aquisição,
Ronaldinho, tem vinte dias. Os adolescentes os levam para passear, empurrando carrinhos de bebê. Uma
procissão. Eu não acredito nos meus olhos. Abandonados (e que tipos!), que levam para passear outros
abandonados. Com naturalidade, como se fossem seus irmãozinhos. O coração sacode de alegria. No dia
seguinte, na capela, abro a boca e digo: "Parabéns, rapazes, pelo que fizeram ontem. Somente aqueles que têm
Deus no coração podem fazer um gesto tão bonito. Vamos em procissão para casa dos bebês, é lá que o Senhor
está esperando por vocês para dizer: "Obrigado! Tudo que fizeram a um menor dos meus irmãos é a mim que o
fizeram". Chegando lá, peço a Raimunda que se sente na cadeira do sacerdote com Ronaldinho nos braços,
todos nós ao redor. "Onde vocês querem que esteja Deus, se não no coração deste pequenino, que só sabe sorrir?
Inocente, indefeso, precisando de amor. Vamos entrar na fila. Beijá-lo não é beijar Deus?" Me ajoelho, o beijo e
ele sorri, sorri. Todos o beijam. E ele (= ELE) sorri, sorri.
Que vontade de colocar Ronaldinho nos braços dos voluntários! E por que não colocár nos braços do
povo novo os povos/bebês, que têm somente Deus como Pai e procuram os povos/irmãos? Pelo menos os filhos
de Nomadelfia não poderiam fazer essa experiência? Não para serem os bons samaritanos, mas para sentir ainda
mais a paixão pela nova civilização. Quem mais, se não os povos/bebês, poderão nutrir nossa chama de amor de
povo? Por que Fausto é obcecado pelos povos/bebês? Somente Zeno me transmitiu esse amor. Depois tive a
graça de ir à escola dos povos/meninos. Acredito que não há outro jeito de viver o amor dos povos pelos povos.
Foram eles, os perdidos, que fizeram emergir de mim os recursos do amor que eu não sabia que tinha. Não me
resigno. Quero saber a todo custo: Cristo, por que você prefere os perdidos, indivíduos ou povos? Por que são os
únicos que desejam, anseiam, suspiram por um mundo diferente? Os ricos são incapazes de sonhar, porque têm
tudo o que querem. Incapazes de desejo, de sonho, de novidade, já estão mortos antes de morrer? Como deve ser
tediosa a vida do rico! Sempre saciado, sempre satisfeito, sempre ... odiado!
Nunca vou entender, porque nunca vivi como um deles, um perdido? Como entender Eliseu torturado por
sua mãe, que o força a esquartejar os animais? No diário, ele escreve o que fará quando crescer: justiceiro, para
fazer aos homens maus o que sua mãe lhe ensinou a fazer com os pequenos animais. Que carreira! E nós
acreditamos ser capazes de curar seu coração com belas palavrinhas? Ontem tentei abraçá-lo. Ele me rejeitou,
seu olhar zangado. Os povos que estão à deriva devem ser como ele: pelo fato de serem continuamente
rejeitados pelo céu e pela terra, não nos aceitam mais? A panela de pressão da rebelião social está explodindo?

14ª Mensagem: O abraço dos pequenos crucifixos


Fortaleza, 2.3.2017
Francisco, o que Fausto faz o dia todo na Casa dos Abandonados? Participo, brinco, ajudo a fazer os
deveres de casa, estou presente. E, para simplificar minha tarefa, chegou meu netinho Willi. Ele pega-me pela
mão e me leva às casas dos abandonados. Prefere aquela dos bebês por causa da sala de brinquedos, seu país
das maravilhas. Uma exposição de mil e uma noite: nas prateleiras, brinquedos de todos os tipos. Ele gostaria
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de levá-los todos, debaixo do braço: caminhões, carros, pelúcias, triciclos. Os bebês não prestam atenção, os
benfeitores trazem demais e o demais provoca náusea. Para Willi, é a descoberta da ilha do tesouro. A cada
momento quer ir explorá-la. Depois chegam Davi e Karlinha e tiram de suas mãos o produto do roubo. Willi me
leva para a casa, isto é, para o coração dos abandonados. E eu descubro outro tesouro: o coração deles ferido.
Peguei no colo aquele famoso Ronaldinho e não fazia nada além de sorrir para mim. Quão terno é um bebê! Os
pés novinhos. As mãos delicadas. E aqueles dedinhos tão perfeitos. E aqueles olhões vibrando à luz?
Davi (3 anos), voltando do jardim de infância, corre em minha direção. Se alguém o ameaça ele vem até
mim e pede asilo político. Depois há Jandira, a recém-chegada, colada na irmã. Não faz mais que chorar para
reivindicar o que lhe é devido: uma mãe e um pai que nunca teve. Hoje me abraçou. Meu coração exultava de
alegria. Ser abraçado por um abandonado não é ser abraçado por Cristo em carne e osso?
Vivo, me deixo viver. Começam a sentir minha presença, que emana, respira e se faz respirar. Mesmo que
eu não faça nada, sentem que estou ali por eles. Não são nem pernas de santos. Nascidos na violência, o jogo
favorito é a luta, pegar um pedaço de madeira e fazer dele uma arma para atirar à vontade. Às vezes assisto
impotente, cenas menos agradáveis. Eliseu vigia Davi e Karlinha. Com voz firme: "Quietos, de castigo, ai de
vocês se se moverem". No entanto, ele também é faminto do mesmo amor. Passa horas e horas na cozinha perto
da mãe social. Samuel invade a casa e vasculha a geladeira, explora todos os cômodos, mete a mão em tudo.
Oh, se ele metesse a mão no meu coração! Esta manhã pulou no meu pescoço. Você não pode imaginar o que
aconteceu dentro de mim.
À tarde, o pátio se torna um palco: os adolescentes jogam futebol, os rapazes andam de bicicleta, as
crianças alternam entre escorregador, balanço, triciclos. Correm, pulam, brigam, mas sempre juntos. Como se
faz para brincar sozinho? As meninas brincam com bonecas maiores que elas. As levam no balanço, no
escorregador, as penteiam, as lavam, as vestem, fazem como uma mãe. O instinto materno é uma marca
indelével? As menores deixam para trás bonecas decapitadas. Uma pontada no meu coração, me parece ver suas
amputações internas. Os meninos deixam no campo dinossauros desmembrados, pedaços de Homem-Aranha,
triciclos quebrados.
Os adolescentes percebem minha presença. Pedem pequenos favores. Transmissão de mensagens com
uma tapinha nas costas, um abraço. Como se dissesse: "Estou aqui para você, você está aqui para mim, no
mesmo barco, remamos juntos". Sabem que estou aqui em tempo integral, porque os funcionários fazem turnos
de 48 horas. Pela lei sindical. E qual lei sindical protege os abandonados? Os povos reduzidos a lixo já tiveram
um sindicato? Nem mesmo Marx os quer na luta de classe. Somente o juiz divino os leva em consideração.
Estou me inserindo sem fazer pesar a eles, como um gesto de bondade. Que bondade? Exigem o que lhes
pertence por direito, não por compaixão. Não estou aqui para ser um benfeitor, querem um amor desinteressado,
não um fac-símile. E isso também se aplica aos povos abandonados.
O empresário dos drogados me convida para a preparação do retiro. O esquema pré-fabricado. Primeira
pregação: "Quem sou eu para Deus, quem é Deus para mim"; segunda pregação ...; terceira pregação ...
Intervenho: "E se envolvêssemos Marcelo, Nirvando, Ícaro? Eles falam de dentro, nós de fora; eles do alto da
cruz, nós debaixo". A proposta é aceita pela metade: se alternarão pregações e testemunhos. Os pobres são um
recipiente no qual enfiar de tudo: esmola material e esmola espiritual. Não são feitos para receber e nós para
dar? São os oprimidos da nossa bondade totalmente católica?
10.3.2017 – João Marcos está com pneumonia, tosse dia e noite, dentro e fora do hospital. Que hospital
de campo! UPA = unidade de pronto atendimento. Pronto, imediato. Alguém chega de manhã e é visitado pelo
médico tarde da noite. A prioridade é para quem tem 39 graus de febre. Na sala de espera, cerca de cem pessoas,
sempre lotada. Conforto único: TV a cores, tela gigante. Que ironia assistir as telenovelas em um lugar onde é
difícil ver uma pessoa sadia! Essas mulheres com seus cristos-bebês nos braços, surradas, obesas ou desnutridas.
Seguem a moda à sua maneira: bermudas apertadas destacam as nádegas inchadas [graças aos hormônios dos
anticoncepcionais]; barrigas descobertas, roupa suscinta, rostos resignados, olhares perdidos no vazio. O que
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tem de atraente? Um grande espírito materno. Uma amamenta enquanto cochila. Eu também passo horas e horas
absorto, obrigado a ver na TV outras mulheres/bonecas, caprichosas, pueris, intrigantes. Quase todas brancas,
louras, maquilagem, retoque, silicone. Manequins obrigados a recitar a parte para fazer babar os machinhos.
14.3.2017, 2:00 horas. Não consigo dormir. Os cravos dos "eu estava neles" me penetram na alma.
"Quanto tempo o Crucifixo nos deixará para abraçar os oprimidos?" (23.2.1952). Parece-me abraçá-los e ser
abraçado. Não me largam nem mesmo de noite. Há 35 anos que vivo abraçado a eles, a alma ensanguentada.
Aprendi de cor tua lição, Zeno, aliás, a vivo numa dimensão global com os povos/crucifixos: "Diante de Deus, o
oprimido está sempre certo, enquanto o opressor e aqueles que andam de braços dados com ele, estão sempre
errados. A fé nos leva entre os braços dos oprimidos como via mestra para nos encontrar nos braços de Cristo"
(4.8.1952). Nada de via mestra, para mim, é uma autoestrada! É por isso que Fausto, no fundo, é feliz: porque
tem a certeza de estar nos braços de Cristo, mesmo que tenha chegado ao seu Horto das Oliveiras. É o abraço de
Davi, de Jandira, de Leonardo, de Ronaldinho que trituram minha alma. Não consigo entender: as vítimas, ao
invés de se jogarem contra mim, me abraçam. Mas como? Não vêem que eu também faço parte dos opressores?
Procuro estar com vocês, mas o que faço para gritar para o mundo: "Ou conosco ou contra nós, ou vítimas ou
carrascos"?
Em 1949, no teatro Lirico di Milão, em frente à elite da cidade, Zeno relata: "Esta manhã o ônibus chegou
com 36 crianças do orfanato [confiados a Nomadelfia]. Alguns deles me olham com sua personalidade rebelde
diante de uma sociedade que não os entende. Olho nos olhos de um deles: não me sinto mais Don Zeno, mas
Milão, Londres, Nova Yorque, me sinto o povo, os adultos. Vejo ele em mim mesmo. Me olha sério, sem dizer
nada. Eu digo para mim mesmo: "Que mal você fez, garotinho que me encara sem nada dizer?". No meu
coração eu digo: "Coragem, encontrará uma mãe!" Olho para ele outra vez. Me olha, me sorri. Eu o saúdo.
Abraço a todos, mas ele me olha enquanto desço do ônibus. E em nome dê vocês, em nome de todos lhe digo:
perdoa-nos!".
Na entrevista a Die Zeit, você também, Francisco, tenta se colocar em pé de igualdade com as vítimas:
"Eu sou um pecador, sou falível". Somente um papa que vem do fim do mundo tem a coragem de rasgar a
placenta da papolatria, o mito do pastor angelicus. Para descer do trono da infalibilidade e ser um de nós,
necessitado de irmãos, não de súditos, de filhos, não de bajuladores. Não um homem qualquer, mas um filho de
migrantes. E não pode deixar de procurá-los em Lampedusa, em Lesbo. Recusa o Palácio Apostólico, come na
mesa comum, usa um utilitário, não quer um "carrega malas", exorta os pastores a terem odor de ovelhas,
conclama sempre a sair, sair. O que você diz aos de Comunhão e Libertação não se aplica também aos
Nomadelfos? "Renovar a Igreja, que seja uma comunhão para todos, não um clube para aqueles que se julgam
perfeitos". "O centro não é o carisma, o centro é Jesus Cristo. A fidelidade ao carisma não significa petrificá-
lo", "porque a herança que deixou [o fundador] não pode ser reduzida a um museu de memórias". "Assim,
centrados em Cristo e no Evangelho, podem ser braços, mãos, pés e o coração de uma Igreja em saída. O
caminho da Igreja é sair para procurar os distantes nas periferias, para servir Jesus em cada pessoa
marginalizada, abandonada, sem fé, desiludida com a Igreja prisioneira de seu próprio egoísmo. Sair significa
ouvir aqueles que não são como nós, aprender com todos, com humildade sincera". "Quando somos escravos da
auto-referencialidade, acabamos cultivando uma espiritualidade de etiqueta: eu sou de Comunhão e Libertação";
"Quantas vezes na Igreja mantemos Jesus dentro e não o deixamos sair. ... Quantas vezes! Esta é a coisa mais
importante a fazer se não queremos que as águas se estagnem na Igreja". "Tradição significa manter vivo o fogo,
não adorar as cinzas". "Como seria bonito que na entrada de um pobre em nossas comunidades nos
ajoelhássemos como se Cristo fosse entrar!" (Site: Vatican Insider, 29.04.2015). Uma Igreja serva e enfermeira.
Como pretende que isso seja compreendido na latitude dos povos com uma alma cheia de colesterol? Por força
alguns católicos reagem: sentem tremer as colunas de Bernini de uma fé doutrinária e farisáica. A religião de
estilo ocidental se defende do vinho novo. Os cristãos de luxo têm medo de uma religião mais ampla do que a
da Praça de São Pedro.
Caro papa Fransisco, como estar em pé de igualdade com os representantes de outras religiões se tu é
tratado como soberano, chefe de Estado? Não teriam também eles o direito a um território independente para
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não serem condicionados? E depois, como fazer caber o Vaticano e seus tesouros no sem bolsas (Sine pera)? E
se fosse declarado Patrimônio da Humanidade, gestido pela UNESCO? Todos os representantes das religiões
não poderiam ser declarados da ONU, embaixadores de paz, com estatuto especial, defensores de todas as
vítimas do planeta?
Zeno não suporta não ser tratado igual a seus fiéis: "Senhor, me levou ao sacerdócio, mas meus confrades
estão organizados em uma lei, que os impede de ser um pelo outro e uma só coisa com o povo. São mestres não
irmãos e pais" (24.11.1952). Então? Então, devolvemos aos leigos o que roubamos deles. No próximo Sínodo,
por favor, convoque só homens e mulheres, sempre tratados como menores de idade, subjugados por devoções e
práticas de piedades alienantes. Escravos de moralismos de eunucos. O que vocês sabem, prelados, do orgasmo?
E os frades piedosos, especialistas da Virgindade de Maria antes, durante e depois do parto, realizam cursos
para casais de noivos para explicar teologicamente o ato conjugal. O que sabem sobre menstruação, eros, tempo
masculino e feminino, ponto G? Que o doar-se se expressa, mas não necessariamente coincide com os órgãos
genitais? Não se proibiu aos leigos de trazer à luz os valores positivos da corporeidade? Nos apropriamos de
uma realidade humana, o casamento, que vem antes de qualquer religião? Os ricos não se importam com as
regras católicas. O dinheiro compra tudo. José, o vizinho fazendeiro, quer a minha aprovação como sempre teve
dos meus antecessores pelo preço de um boi por ano para a quermesse paroquial. "Minha esposa está a 2.000
km., com pouca saúde. Eu sou católico de uma só vez, tenho o cuidado de não ir com prostitutas como esses
pobres coitados! Então peguei uma mulher voadora. Alguma objeção?" Não, José, você é quase santo!
Como entender os jovens, que recusam um casamento transmitido como uma camisa de força, um rito
exterior, vestido branco e almoço/extravagante? Para cardeais e teólogos ocidentais, a comunhão para os
divorciados e recasados é um atentado à doutrina da fé. Para os do terceiro mundo, o problema de fundo não é o
acesso ao pão eucarístico, mas ao pão nu e cru. Um abismo entre uns e outros! Os cristãos de primeira classe
enchem a boca com valores não negociáveis. Cristo parece ter apenas um: Eu estava com fome! Ao sul do
planeta os dubia15 são bem outros: "as causas estruturais da pobreza"; "O culto idólatra do dinheiro";
"Interdependência planetária"; escravidão econômica, etc. Você é um pastor que fede à periferia do mundo,
mesmo aquelas teológicas? Então deixe que os mortos enterrem seus mortos...
Francisco, o povo de Deus chegou aos nove meses, ele está pressionando, está prestes a romper as águas,
ele quer ver a luz, caso contrário, morre. Você é a parteira? Os povos, cegos pela própria onipotência nuclear,
não sabem mais dialogar, procurar as pistas da paz a qualquer custo. O que você diria sobre um Concílio com
povos/bebês, o último recurso antes do apocalipse? Constato isso na minha pele. Se não se está presente na vida
deles, é impossível sentir, provar o que eles sentem, o que eles provam. Os Nomadelfos, então, terão que
descobrir a maneira de estar presentes entre as vítimas, penetrando em suas almas? Se não vamos a eles, eles
vêm a nós em massa para retribuir-nos a visita. São eles, hoje, o nosso êxodo para sair do deserto do
sedentarismo, do burguesismo e do sensismo. Têm todos os motivos para nos invadir, exigir o direito à vida
daqueles que os invadiram impunemente com o colonialismo disfarçado de civilização e progresso.
Francisco: "Quanto tempo o Crucificado nos dará para abraçar os oprimidos?".

15ª Mensagem: Hospital de campo


25.4.2017 –
Caro Francisco, estou num hospital de campo. Quantas vezes você fala sobre isso até aborrecer os
devotos, que preferem refugiar-se nos santuários das práticas de piedade, nos movimentos espiritualistas! Você
está certo: os estigmas da humanidade não se curam com doutrinas e anátemas, mas com o óleo da
misericórdia. Na cabeceira do Sr. Maurício, 14 estagiários e um professorzão, que sentencia: "Hidropisia:
extraídos 3.8 litros de água". Uma barriga assustadora. Um show, ao qual não consigo me acostumar. José
Flavio, uma ferida feia na perna causada pela picada de uma aranha. Chegou com uma bermuda e uma camisa
surrada. "Você não tem um parente para lhe acompanhar?". "Não, eu tenho apenas o pai do céu". Levanta os
15
Palavra latina que significa dúvida. É utilizada come pedido de esclarecimento sobre alguns temas.
50

braços, murmurando: "Olha que ele é pai, não padrasto. Ele vê e provê". Como não dar-lhe razão? Vira e revira
o sabonete, que lhe trouxe: "Oh, agora estou cheiroso! E os biscoitos? Que vontade de uma bisteca gorda de
porco! E depois, um copão de caldo de cana sem esquecer a pimentinha." A todo momento procura comer.
Como podemos entende-lo, nós a quem nada falta? Quem está na sala de jantar do primeiro mundo não pode
entender quem sobrevive nos subterrâneos da história. E quando são povos inteiros, que gritam em nossas
almas: barriga cheia não sabe nada de barriga vazia?16 Como sair da saciedade material e espiritual?
De onde vem esta minha atitude de esponja, que absorve o sofrimento dos outros? Cristo, no topo do
sofrimento humano, continua a gritar: "Vou atrair tudo para mim". Tudo o que, se não a dor da humanidade? A
minha é uma deformação psicológica? No seminário sofri uma lavagem cerebral: "Se Jesus sofreu muito por
mim, eu também devo sofrer por ele". Meu Deus, seu filho também é masoquista e você é um sádico que bebe
seu sangue? Aos onze anos, medito sobre a paixão de Cristo, abrigando-me espiritualmente nas 5 chagas,
demorando-me nos vários espinhos, para, finalmente, morar na ferida do peito. Inculcam-me que é necessário
descontar os pecados dos mortais que crucificam Cristo espiritualmente. Expiação vicária que deve continuar
em meu corpo com jejuns e outras formas de penitência. Faço isso com entusiasmo. Uma piedade frenética para
aumentar a glória de Deus, castigando o irmão jumento. Hoje pergunto a Cristo: por que não beatifica quem se
autoflagela, mas quem sofre, chora, se desespera? Seu prazer? Estar com pescadores rudes, pastores,
camponeses, até morrer entre dois malfeitores e levar um para o Paraíso como um primeiro fruto para o Pai. A
massa de crentes foi educada para reconciliar a cruz e o bem-estar, individualismo e consumismo, burguesia e
esmola. Quem sabe! Um dia, o papa proibirá as obras de caridade para nos fazer redescobrir o gosto da justiça?
Chega! Proibido fazer o bem para ser recompensado. Restituir, devolver em obras de justiça. Por quê? Porque
enquanto se lançam bombas ao napalm 17, nós cristãos lançamos bombas de omissão e de indiferença. Você diz
isso sem contorções espirituais: "O que eu sinto quando vejo no telejornal uma bomba caindo em um hospital e
muitas crianças, pessoas pobres, morrerem? Eu faço uma oração e depois continuo a viver como antes, como se
nada tivesse acontecido? Isso penetra no meu coração ou eu sou como o rico de quem os cães tinham mais
pena? Se assim fosse eu estaria em um caminho de pecado de corrupção".
Todas as manhãs às 5, José Flávio ergue os braços para o céu. Para ele, o contato com Seu inquilino é
imediato. Sua teologia está toda em um prato. Mas está muito próxima daquela da última ceia, da multiplicação
dos pães, das espigas colhidas no sábado. Cristo deve concordar com ele, porque eleva o pão sobre o mundo e
sobre a história. No juízo será mesmo a medida do homem: "Eu era um povo faminto de pão e irmãos".
30.4.2017 - Há um mês sou refém nas chagas dos povos vítimas. Preciso tocar o fundo? A lógica do
hospital de campo entrará em circulação na minha alma como um soro na veia? Acorrentado a João Marcos, a
José Flavio, a Mauricio, passo a noite na cabeceira da cama deles e na das pessoas que sofrem de desnutrição.
Em trepidação por cada tosse. Observo João Marcos em uma tentativa de colher o que sente. Há um mês se
alimenta através de uma sonda no nariz. Move as mandíbulas para mastigar, mas encontra apenas saliva. Como
os povos à deriva. Canto suas musiquinhas favoritas e sorri, sorri. E eu choro e rio. O que devo cantar para os
povos que são prisioneiros da indiferença global?
Quando não sei mais o que pensar, tomo a mãozinha de João Marcos e dos povos crucificados. E rezo
com ele, com eles. Murmuramos a Ave Maria e, na alma, passam e repassam os rostos das mães de Nomadelfia:
Ave Norina, Ave Enrica, Ave Sirte, Ave Margherita. As imploro: vocês que cuidaram de 50, 60, 70 filhos,
vocês não são as mães da humanidade? Não a carregam nos braços hoje, como então? Vão até as meninas de
Nomadelfia e digam-lhes que os irmãos/povos buscam um povo/mãe que as tome em seus braços. Vão à
cabeceira dos povos que têm por berço um patíbulo de fome. Embalem-nos sob as bombas. Apertem contra o
coração esta humanidade perdida, despedaçada pela dor. Ave, mãe Irene, Ave, mãe Giorgia, Ave, Agnese, Ave,
Luisa, Ave..... Se ninguém mais se apresenta para ser uma mãe de vocação, não será porque hoje precisamos de
16
Quem nunca passou fome não pode saber o que se sente quando se está de barriga vazia.
17
Bomba desenvolvida nos Estados Unidos em 1942, durante a Segunda Guerra Mundual, formada por líquidos inflamáveis
a base de gasolina gelificada, a qual foi utilizada como armamento militar.
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corações capazes de se tornar mãe de povos órfãos? Zeno, no acordeão, continua a cantar com os 5.000
acolhidos: "Corram, corram a mãe, a mãe não deve morrer, nunca mais morrer".
4.5.2017 - João Marcos: gastrectomia. Ele terá que dizer adeus aos seus sabores preferidos: mel, mamão,
banana. E Fausto, como está? Mais e mais teimoso com o caso do hospital de campo. Uma experiência que lhe
faltava, certo? Uma luz como um relâmpago na noite: quem são, hoje, os doentes, os filhos pródigos, os últimos
que serão os primeiros? Senhor, não vem pelos povos perdidos nos desertos econômicos, pelas economias
prostituídas, pelos povos anêmicos? Os povos enriquecidos não sabem o que fazer com a sua salvação. O
mercado global não tem nada a oferecer senão a religião da economia, a evangelização da propaganda, a
liturgia do shopping. Os hipermercados, as novas catedrais onde celebrar os ritos do deus-consumo. A nova
evangelização é a economia com seus santos, heróis esportivos, cantores e atrizes, rainhas da beleza e do sexo.
Todos os povos estão sujeitos a uma nova forma de dependência/hábito cultural, que impõe estilo de vida,
moda, usos e costumes ocidentais. Os seguidores do Salvador do mundo estão assistindo, enterrando o
talento/social, "vocês todos, então, são irmãos"?
O excesso de dor faz com que Maurício, o hidrópico, faça caretas até deformar seu rosto. Serão as
mesmas de Cristo na cruz, pelo abandono de seu pai? Nenhum pintor teve a coragem de pintar as caretas de seu
desespero. A dor excessiva faz você perder a cabeça. Seu filho, Deus, também experimentou isso, ele sabe algo
sobre isso e o transmitiu a você, porque "Tudo o que é meu é teu, tudo o que é teu é meu". Até o choro, até os
gritos, até as caretas de dor. Só uma religião como esta poderia inventar um Deus tão humano a ponto de ter
olhos para chorar, sangue para espargir, carne para ser crucificada. Como poderia ter dito, sem zombar de nós:
"Bem-aventurado aquele que chora. Bem-aventurado você João Marcos, bem-aventurado você Zè Flávio, bem-
aventurado você, Maurício"? Não me resta que me envolver no sudário do mistério para contemplar as caretas
de dor dos povos crucificados.

16ª Mensagem: Gineceu terceiro/mundial


7.5.2017 - Hospital de Mesejana: 340 leitos, 1.030 funcionários, terceirizado o serviço de limpeza,
lavanderia e refeição. Paredes incrustadas, camas e mesas de cabeçeira enferrujadas, carrinhos como tratores.
Uma espécie de hospital de campo, que alimenta os acompanhantes. Eis me aqui na fila dos famintos.
Principalmente mulheres, parece um gineceu. Eu, que nos 15 anos do seminário fiz jejum de mulher, tenho a
impressão de estar nos braços da maternidade. Em 300, umas dez quase bonitas. A maioria com quadris
excessivos, nádegas abundantes, rostos sofredores. O que você espera, uma passarela de modelos? Pois, ouvindo
suas histórias, passam por mim pensamentos paradoxais. Se eu fosse papa [para dizer!] daria a ordem para
pregar em todas as cruzes uma imagem de mulher. É o lugar delas por direito. Mães dolorosas com filhos e
maridos nos braços. Uma pietà de Michelangelo em carne e ossos. Não mais o homem das dores, mas a mulher
das dores. É ela, quem faz a vida avançar, carrega o peso dos filhos, a arrogância dos machos. Estão em cada
esquina vendendo de tudo. Em qualquer estação do ano, com qualquer clima. A cada três palavras os homens
entercalam: "Oi, macho ... macho daqui ... macho de lá". Um machismo desavergonhado, que permeia a cultura
popular, reduzindo a mulher ao objeto dos três C: cama, cozinha, crianças. É a mulher, em geral, quem corteja o
homem. O baixo nível cultural faz o jogo do macho. É suficiente para a menina ter a impressão de que o
príncipe azul a quer e cai em sua rede. No Brasil, de 67 milhões de casadas, 20 milhões são solteiras. Cristo,
não fique com raiva, você entende por que os crucifixos hoje são mulheres? Uma maneira de sacudir os homens
caçadores: vejam a que vocês reduziram sua mãe, irmã e esposa.
Quais são as razões históricas e culturais que vilipendiaram a mulher? A cristandade herdou uma visão
negativa dos maniqueístas pagãos. Paulo também é condicionado por isso: "Melhor casar do que abrasar".
Como? O amor para multiplicar a vida não é uma ordem do próprio Deus? O papado reconhece seus erros aos
pérfidos judeus; há um clima de revisionismo em relação aos muçulmanos, evangélicos, pagãos, ateus. Mas para
as mulheres? Você, Papa Francisco, diz que "devemos fazer uma teologia da mulher, que a Virgem Maria estava
acima dos apóstolos". As feministas não gostaram: "Papa Francisco, por assim dizer, talvez na forma de
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consolação que a Virgem Maria é superior aos apóstolos, é, mais uma vez, uma expressão da teologia masculina
da consolação abstrata. Ama-se a Virgem distante e próxima da intimidade pessoal, mas não se escuta os gritos
das mulheres em carne e osso. É mais fácil compor poemas para a Virgem e ajoelhar-se diante de sua imagem,
do que se preocupar com o que acontece com as mulheres em todos os cantos do mundo. Portanto, se os homens
quiserem manter a excelência da Virgem Maria, terão que lutar pelos direitos das mulheres sejam respeitados,
erradicando as múltiplas formas de violência contra elas" (Irmã Ivone Gebara).
No gineceu, aprendo a recitar a Ave Maria no silêncio interior e a contemplar cada mulher, que carrega a
Vida nos braços, a embala, a protege, a multiplica, a eleva ao céu. Rezo à madona universal, aquela que,
cotidianamente se reflete no rosto de Denise, Jaime, Raimunda, Antônia, Joana, todas mães das dores com sete
espadas no peito. Quanto a invoquei na noite da cirurgia de João Marcos! "Mulher, eis o teu filho João Marcos,
Zé Flávio, Maurício, Danilo (lhe arrancaram todos os dentes porque ele se mordia), Junior (23 anos, as pernas
amputadas, convencido da punição de Deus)". E hoje Cristo repete isso a toda mulher, para que ela possa
acolher cada filho do homem como nascido de seu ventre, parido de sua alma. Ele diz isso para cada indivíduo,
para cada povo: "Filho, toda mulher é sua mãe. É o santuário que te hospedou por nove meses e te deu à luz
gritando. Não merece veneração?".
29/05/17 - Interlúdio: gineceu primeiro/mundial do outro lado do globo.....
Cinco horas numa sala de espera no aeroporto de Lisboa. Me passam sob o nariz sanduíches recheados,
pizzas, batatinhas, guloseimas. Mas minha atenção é capturada por mulheres em trânsito, como numa passarela
de todas as modas. Um gineceu primeiro mundial. Não há uma que me lembre as madonas de Mesejana.
Elegantes, charmosas, perfumadas, conscientes de impressionar, de ser objeto de desejo. Muitas vezes se reduz
a uma boneca, educada desde criança com os slogans de rito: "Surpreenda, se faça notar, se se destaque da
multidão, faça o possível para ser desejada"! Brincos gigantes, colares vistosos, tatuagem, cabelos tingidos,
olhos pintados, vestido apertado, decote, seios protuberantes. Para dizer aos machinhos: "Estou aqui, não me
vê? Não sou desejável o suficiente"? O Sex appeal é um fenômeno natural. E as meninas o aprendem desde
cedo por imitação. Os programas de TV não são cheios de mulheres atraentes, que fazem sonhar, seja as
pequenas ou as grandes? A mulher/objeto a serviço de toda publicidade. Mas se você se reduz a uma boneca, o
que você faz com as bonecas? Você brinca, não é? Um brinquedo com o qual se divertir e depois jogá-la fora,
tão logo o mercado produza uma nova Barbie.
No seminário me convenceram de que o corpo é um inquilino incômodo, que seria melhor não ter, um
inimigo a ser castigado para domá-lo. Um bom Deus me dá um corpo como o de seu filho para reprimi-lo?
Fizeram de tudo para estragar a mulher, fazer com que ela fosse odiada: "Nova Eva, tentadora, sedutora,
feiticeira, satã vestida de rosa"; "As sainhas fedem a demônio" [cf E. Zola, Il fallo dell'Abbé Mouret]. A única
presença feminina era a Virgem Maria. Figura contraproducente, porque um menino é tão condicionado a vê-las
todas como ela: desencarnada, assexuada, suspensa entre o céu e a terra. Sem útero e sem mamas ainda é uma
mulher? Idealizá-la, torná-la anjo não é destrui-la? Uma prostituta faria menos danos? A sexualidade, a
dimensão mais sagrada da corporeidade, reduzida à medicina da concupiscência. Durante 20 séculos fomos
discípulos de Platão: o corpo é uma prisão/sepultura da alma. Seria impossível administrar a carne, os desejos,
o amor conjugal, fazer filhos sem remorsos, pesadelos de pecados pelo menos leves. Deus teria nos dado um
instrumento não só inadequado, mas perigoso para nosso ofício como homens. No entanto, continua-se a
apresentar os renunciatários como modelos de perfeição. Moralidade elaborada e imposta por pastores eunucos.
Frades e freiras fogem de um mundo sujo para viver em união com Deus. E nós, pobres mortais, em desunião
com Deus somos obrigados a fazer filhos? Onde estão os santos como cônjuges, como genitores, como cidadãos
da terra antes que do céu? Os casados proíbem a si mesmos o caminho estreito das virtudes heroicas? Criar um
filho hoje não é heroísmo?
Sentimentos, emoções, pulsões, tudo deve renascer. Zeno quando menino observa o acasalamento dos
animais; narra seus namoricos, a alegria de tocar o piano e bandolim nas festas familiares. E a paixão pela dança
quando passa em frente ao salão de dança e as pernas se agitam? Preocupa-se em transmitir uma visão serena da
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convivência com o sexo oposto. Durante um curso de exercícios, projeta para adultos e crianças um
documentário sobre o parto. Depois seu comentário, extasiado, diante do milagre da vida.
Um equilibrista entre o peso da matéria e a leveza do espírito. Celebra a mãe mesmo vendo os limites: "A
mulher sempre diz sim e depois, com duas lagriminhas, faz o que quer. Não raciocina com a cabeça, mas com o
útero". No entanto, é isso que a consagra mãe. Oh, se as meninas de Nomadelfia cultivassem a maternidade por
seus filhos/povos, vítimas do primeiro mundo! Os filhos adotáveis são escassos, os dos migrantes transbordam.
A maternidade virgem, a grande invenção do pai, não poderia cuidar deles? Sentir, vibrar a maternidade em
relação aos povos/Cinderela! Aquele Don Zeno que entrega Mírio a Irene, é o mesmo pai universal, que, hoje,
jogaria ao colo de suas filhas os Mírio/povos abandonados ao lado de cada estrada que desce de Kigali a
Nomadelfia, de Cartum a Nomadelfia, de Nairobi a Nomadelfia, de Asmara a Nomadelfia, de.... a Nomadelfia.
Exauriu-se aquela maternidade virgem amadurecida no sangue do massacre inútil, que desde o pós-guerra tem
acolhido como filhos 5.000 abandonados? Não é hora de vibrar uma maternidade planetária nos filhos/povos
abandonados?
Somente a mulher tem o privilégio de guardar no ventre a vida. E é sempre mãe, seja do filho ou do
marido. O homem sai da mulher e retorna para ela, se refugia em seu ventre, seu ninho, seu berço. Maria não é
invocada como janua coeli, porta do céu? Só a ela, à mãe, é confiado o dom da vida. Não é ela quem gera,
cuida, educa ao amor? Não está em suas mãos, em seu coração o sacrário da vida? Uma realidade inscrita nos
cromossomos e na alma. Também a maternidade, como tal, precisa, renascer do espírito.
Zeno fala sobre o outro sexo com desenvoltura. "Sabes? É difícil ver uma mulher com belas pernas retas".
No restaurante: "Como pode aquele ali ir para a cama com a mulher? Olhe que quadris, que nádegas!” Fala de
Barile: "Um dia o vejo flertando no prado do Casinone. "O que está fazendo, vagabundo?" Com uma cara de
pau: "Rosina, o que eu estava te dizendo? A santa pureza é a mais bela virtude do homem, não é?" "Eu dei-lhe
uma bofetada!".
Certas piadas podem surpreender na boca de um homem de Deus, mas ele também é filho do seu tempo:
"O que eles fazem na cama a noite toda?". "Confiar neles? O travesseiro fala". "As mulheres, menos cabeça têm,
mais mostram a carne e a carne apodrece, envelhece, fede". Ele insiste em transmitir aos jovens sua visão do
casal como um espírito encarnado. A união dos dois é um valor em si que os leva a se realizarem também como
seres sexuados. A necessidade de renascer diz respeito à toda a realidade humana, portanto também ao casal.
Como pode renascer uma parte e não o todo? A função das famílias de Nomadelfia não é propor a família
renascida do espírito? Amar com os sentidos, com a carne, com o eros, sem se reduzir a sentidos, carne, eros.
Tudo deve renascer: família, namorados, cônjuges, corporeidade, passando do selvagem para o humano e do
humano para o divino. Não se ensina isso exaltando os bons eunucos e freirinhas simpáticas que enchem a boca
em TV 2000, porque têm o privilégio de servir a Deus com coração indiviso: "Abandonei o amor de um homem
por um amor maior. Eu casei com Cristo!" Zeno ironiza: "Pobre Cristo com certas esposas e certas sogras!" João
Paulo II não equiparou a dignidade das duas vocações, a religiosa e a matrimonial (14.4.1982)?
Depois, celebrando o casamento dos filhos, Zeno sai com expressões místicas: "Não estamos aqui para
unir dois pedaços de carne, mas dois espíritos encarnados. Ela, vestida de branco como um lírio; ele, elegante da
elegância do espírito". E chorando como uma criança brincando com a Vida: "Os anjos não tiveram a alegria de
dar a carne ao filho do homem. Somente nós temos a honra de dar-lhe a nossa carne e não uma carne angelical,
mas de uma mulher como vocês, moças. Cristo passou através de vocês, entendem?"
O Cântico dos Cânticos exalta o amor dos enamorados, uma canção de amor ao Amor. Ali se chamam as
coisas pelo próprio nome. Só Deus poderia inventar o eros, certamente não um estúpido como o maligno,
porque a experiência de compartilhar todo o ser é uma experiência do próprio Deus. Ele não se alegrou depois
de ter dado uma companheira a Adão, sua doce metade, que o completa também através do eros? Quem tem a
coragem de se entregar ao outro sem um impulso de amor oblativo? Geralmente chamamos a isso de instinto
vital de sobrevivência. É muito mais, porque não somos redutíveis à carne, somos espíritos encarnados. Todo
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casal precisa se inventar, criar seu relacionamento, sonhar consigo mesmo à luz da transfiguração. Zeno, com os
latinos, diz da criança, o fruto do ventre da mulher: maxima debetur puero reverentia.18 Os pagãos os
respeitavam mais do que nós cristãos, que convivemos tranquilamente com 168 milhões de abandonados. Se
devemos o máximo respeito à criança, o que devemos ter por sua fonte, o ventre que a gerou? Quando chega à
comunidade uma jovem mãe recomenda: "É um ostensório vivo, diante do qual devemos nos ajoelhar".
As "maltrata", exigindo o máximo para torná-las mulheres segundo o coração de Deus e, depois, as exalta
até o céu: "Depois de Deus, tem a mãe. Eu vos maltrato, mas quando vocês forem lá, Nossa Senhora irá
encontrá-las e dirá: "Venha, minha irmã, sente-se ao meu lado no trono da mãe universal. Obrigada por
regenerar os abandonados por Deus; obrigada por tê-los amado com um coração universal; obrigada por tê-los
educados no amor, que restitui o amor". Numa sociedade que aplaina tudo, cria unissex, não é necessário
produzir um exemplo de nova maternidade além da biológica, valorizando o que é bom? As mulheres estão
conscientes do potencial do seu instinto materno? O homem, da infância à fase adulta, está em suas mãos, em
seu coração. Se elas decidissem fazer uma greve universal, poderiam - por absurdo que possa parecer! - pôr fim
à humanidade. Por que não ocupam a ONU, o Vaticano, todas as praças do mundo, para que cessem as guerras?
Os filhos bombardeados nas frentes de batalha, não são todos vossos filhos, não passaram todos pelo ventre
materno? "Vocês mulheres que têm o útero, devem ter no útero todo o povo. Devem se interessar pelas grandes
desordens de um mundo que não funciona. Se têm um inimigo não são mais de Nomadelfia. Se o seu coração
não sangra com a notícia de que os irmãos são massacrados, não são Nomadelfos".
Nos exercícios espirituais para as garotas quando a alma se exalta, Don Zeno as leva ao êstase: "Se eu
explicar quem vocês são, vão ao espelho, ajoelham-se e beijam-se a si mesmas". Apenas um louco ou um
místico pode pairar sobre um trapézio de luz, girando como um anjo no céu do amor. As filhas de Nomadelfia
sentem como ditas para elas aquelas palavras: "Mulher, são todos seus filhos, meninos, rapazes, homens, porque
os faz renascer do seu coração como uma mãe universal"? E para cada filho, menino, rapaz, homem, povo:
"Filho, eis sua mãe. Você a encontra em cada mulher, porque seu coração é feito para amar a todos. Debaixo de
cada cruz há um coração de mãe". As filhas da nova civilização são chamadas a convencer a Igreja a ver a
mulher através dos olhos do filho do homem, que em cada mulher vê a mãe. Não deveriam estar debaixo de cada
cruz, como o Stabat Mater, que chora, se desespera, porque ama?
Como pode um homem imaginar o que uma mãe sente nos nove meses que ela carrega um filho no
ventre? O que lhe diz? O que lhe transmite? Não vive em comunhão com ele o suficiente para poder dizer:
"Todo o meu sangue, toda a minha carne, todo meu ser é teu, todo o teu sangue, tua carne, teu ser é meu. Somos
unum, no coração do Pai, na alma da Vida". E depois a festa quando vem à luz e nasce um homem para o
mundo. E depois a emoção de amamentá-lo, vivendo em simbiose com ele. E depois nutrí-lo e educá-lo para o
amor. E depois superar os laços da maternidade biológica para transmitir-lhe o amor universal, o que vem de
Deus.
João Marcos, com problemas cerebrais e cego, tem um relacionamento diferente comigo e com sua mãe.
Sorri sempre para a palavra mãe. Não será também porque ela é biologicamente diferente? Zeno diria: "Se eu
pegar no colo um bebê, ele começa a chorar, porque eu sou hirto como um álamo. Vocês mulheres o apertam
contra o peito e sente a ternura da vida". Quando passeamos à beira mar, os homens frios, as mulheres lançam
sorrisos de complacência, de cumplicidade. Se a alguém escapa: "Pobrezinho!", explico: "Pobrezinhos somos
nós, ele nasceu para sorrir! Não precisa de palavras para se expressar, ele está além do discurso. "Quer ir para a
sta?" Ri, porque sabe que o levo à estação. Que paixão ouvir os trens que correm sem pernas, como ele! Sentir
que nada, ele vibra. Quando o levo para a próxima estação, não está na pele. Se diverte demais! Vive de música,
correndo nas escalas musicais o dia todo. E eu o acompanho para descobrir sua alma. As funções do corpo são
reduzidas aos mínimos termos, mas é cheio de vitalidade, que é liberada em um sorriso, que faz você esquecer
todo o resto: limpá-lo, lavá-lo, dormir com ele, levá-lo à piscina, a passear. Cruzamos com gente jovem que
passeia com o cachorrinho e eu passeio com um anjo. Seu sorriso só pode vir do céu. Entende por que quero
descobrir sua alma? Estou tão absorto que no final digo a mim mesmo: está toda em seu sorriso!
18
"À criança se deve o máximo respeito".
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Nos Exercícios aos Servitas (1950), Zeno fala sobre o sacerdote e a mulher: "Um padre que tem medo de
mulheres não é nem um padre, é um imbecil. Devo ter medo de uma mulher, eu, ministro de Deus? Não é sua
criatura? Ele diz: Porque é linda! Se for feia, não é bom. Deve ser linda! "A um navio quebrado todo vento é
contrário". Tudo está ali: se alguém é um navio quebrado, todas as coisas criam problemas; se alguém é
abraçado a Cristo, tudo se torna luminoso. Lemos na escritura que Deus fez a mulher companheira do homem:
significa que todas as mulheres são nossas companheiras na vida, todas porque completam nossa existência.
Sem elas somos áridos, frios. A mulher, assim que se sente apoiada pelo homem, sente-se raio, torna-se um
anjo. Os primeiros cristãos foram todos chamados ao heroísmo, porque havia as perseguições, o perigo de
morrer, de perder tudo. E nós?
Por que tantas pessoas não nos entendem? Com um Cristo assim não podem nos entender. Fiquei no
seminário um ano e não tive tempo de assimilar todas essas virtudes: abaixar os olhos, tampar os ouvidos, etc.
Não entendi nada, não fui capaz de entrar nesses mistérios. Devemos procurar um Cristo mais simples, mais
desenvolto, que não fique vermelho ao entrar em uma casa de prostituição; que não fique vermelho diante de
uma linda moça. ... Se não nos libertarmos destes absurdos, de toda essa iniquidade do bem, não chegaremos a
Jesus Cristo. Precisamos varrer de nós o mundo, em todos os sentidos. Logo que nos sentimos intoxicados,
purificamos o sangue. Dessa maneira, nosso espírito deve se purificar da mundaneidade.
Onde está Cristo? Quem de nós sacerdotes quisesse ver bem o Cristo, o veria chorar no meio do povo,
naqueles seus filhos nos quais os policiais atiram, naquelas células comunistas que ninguém entende. Ele está
nesses lugares. Será que Deus não està nas casas da prostituição? E não pode intervir, porque se move através de
nós. É ali que chora, sofre ... Veio até nós uma jovem com dois filhos tidos de seu pai. Arruinada, humilhada,
acabada. Quem pode dizer a ela que Deus a ama como um pai? O que vocês querem que ela entenda ainda?
Jesus chora nesta criatura. Abrimos a ela o coração, a casa. Devagarinho devagarinho faremos com que entenda
que os homens são pecadores e que Jesus traz de volta a vida" ( Alter Christus, texto resumido, 16.1.1950).

17ª Mensagem: Mãe universal


Senigallia, 9.6.2017
Francisco, gostaria de penetrar com você no santuário da alma de Don Zeno, na sua "tragédia do coração,
de 1931 a 1941"; "Para mim esses dez anos foram uma espada"; "Tive uma visão real, real do que é a falta de
amor"; "quando é um inocente [que sofre], é impossível, é desumano, não aceitava de maneira absoluta". Como
você conseguiu celebrar a mãe/universal, em assembleia, no dia da assinatura da Constituição? "Quem nunca
chamou Mamãe!, venha cá e chame-a. Daqui se corre para procurar quem está sem ela, gritando, porque toda
mulher que tem um útero, um seio, uma alma feminina deve sentir a maternidade para que a nenhuma criança
seja negado o direito de dizer Mamãe" (14.2.1948).
Por 10 anos Zeno macera a alma nas lágrimas dos filhos. Quantas vezes, à noite, voltando cansado
morto, em busca de pão, encontra-os esperando uma carícia, um beijo materno! "Eu não posso dar a eles aquilo
que só uma mulher pode dar". "A carne é tremenda. Mas, para nós, é nossa irmã, porque nos dá a vida. Quando
se concebe uma criança, ali está Deus, está presente, vê, a acaricia no útero materno". Quem poderá substituir a
ternura da mãe por um recém-nascido? Nem mesmo os anjos saberiam niná-lo como ela sabe fazer. Quem será
capaz de descrever o que uma criança sente quando é abraçada por sua mãe?
Zeno para dar aos filhos uma figura materna recorre a sua irmã Mamma Nina, à Iole, à Giselda. Inventa o
mamo, o mais velho que cuida dos pequeninos. Em 1937 ele convida as freiras. Durarão três meses:
"espiritualidade excessiva as arruinou", elas os tratam como assistidos, não conseguem regenerá-los de seu
ventre. Diante do muro das lamentações dos órfãos, ele se pergunta: "O que significa para uma criança não ter a
mãe?" (2.1.1938). "Se vêem como trapos, como violinos de Stradivari, cujas cordas não foram bem esticadas e
se convencem que as mulheres não têm o coração. Para eu ver, pobrezinhos, que não podia dar-lhes aquilo que
necessitavam. ... As pessoas me ajudam a alimentá-los, mas como satisfazer sua necessidade de ternura? Eu não
posso ser mãe! Algumas paroquianas vêm me ajudar, mas eu tenho que estender as roupas no varal, fazer as
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tarefas, tratar bem os credores, procurar a providência. Sem mãe, tenho a visão real da falta de amor. Não se
pode negar o calor materno, que é pão, leite, lã, carinho. Um crime social que provoca a ira de Deus.
Para mim, à sociedade falta o coração. Caso contrário, não aconteceriam estas coisas. Muitos entendem,
mas acreditam que isso é tarefa dos outros. Quebramos essa cadeia de omissão, do calorzinho da religiosidade
sentimental. Ter filhos para os quais não se pode dar aquilo de que necessitam, faz-me sentir nas condições
daquele pai que perdeu a cabeça e ... quereria massacrá-los, para não vê-los assim. Eu os recebi, prometendo que
as mulheres viriam para serem suas mães. Nos salões de dança, na praça, na taverna, digo às meninas: “A
mulher nasceu para ser mãe. Só ela tem o poder de fazer nascer e renascer um homem. Para fazer isso, Deus não
encontrou outra maneira senão a de doar uma mãe para cada criança. Venham ser as mãe dos meus meninos. Eu
já preparei algumas ninhadas. Para você, tão robusta oito filhos; para você cinco; para você dez”. No final,
distribuí trezentos! As mulheres vêm vê-los, dão uma mão, choram: 'Pobrezinhos, como fazem sem uma mãe?'
Algumas tentam, mas não conseguem senti-los como filhos. 'Muita compaixão, mas busco e exijo uma absoluta
e incondicional substituição das mães mortas' " (25.2.1947).
Ele cura os frutos, os filhos, para sanar a planta, o povo. Quer descobrir os sentimentos e ressentimentos
dos traídos da vida, que lhe ensinam porque Deus inventou a mãe. "Esta Óbra não pode viver sem mulheres. É
uma nota que completa e dá nuances de delicadeza que só as mulheres receberam do Senhor" (26.2.1941). Não
obstante as dificuldades ele ousa a dizer: "Jesus, com meus pequeninos, me amou ao infinito" (3.1.1938).
Precisava dos pequenos para descobrir isso! Com a chegada das primeiras mães: "Em casa as coisas estão indo
bem, na verdade, nunca houve tanta tranquilidade quanto à vida familiar. As mulheres trouxeram um toque
muito maternal e os filhos se sentem, sem perceber, ainda mais em família".
As mães mortas, que leva ao cemitério, o induzem a ver a maternidade com os olhos da fé: "Ou é cruel
Deus por matar as mães ou os cruéis somos nós que não sabemos inventar a mãe que não morre". Como é triste
ver os filhos brigarem até se ferirem! E a sua alma sangra, porque ele não pode dar para os meninos o que só
uma mulher pode dar: ternura de corpo e alma, aquelas "virtudes femininas que só uma mulher pode dar".
"Meus meninos, moram na casa paroquial, veem passar as senhoras com os filhos bem vestidos, perfumados,
mas eles não têm ninguém. Sofrem tanto que me causa compaixão. Não é possível formá-los sem a família.
Brigas, espancamentos, grandes problemas. Uma vez chego no momento em que um está enfiando a faca na
barriga do outro. Não aguento mais. Chamo uns táxis, mando embora todos. À noite, fecho a porta e vejo cerca
de vinte sobreviventes que dormem em volta da Igreja: "Nós não sabemos para onde ir". "Então fiquem
comigo". Outra vez me deixam louco: "Você vai aqui, você vai lá, todo mundo na sua casa". Um se planta em
um canto: "Eu já cheguei, esta é minha casa". Todos em coro: "Eu também, eu também, você não pode nos
mandar embora!" Quem não experimentou nunca saberá que mortificação seja para um filho não ter pai e mãe.
Pior do que tê-los perdido por causas naturais, porque são doninados pelos labirintos do mundo. Quantas vezes
disse na praça: "Vocês não têm a coragem de pegar um abandonado, levá-lo nesta varanda e jogá-lo. No entanto,
vocês têm a coragem de matá-lo com a omissão".
Os meninos o forçam a dar o ultimato a Cristo: "Um dia, enquanto consagro, os meninos, na praça,
brigam violentemente. Sofro tanto durante este sacrifício da alma, que digo: "Senhor, se decida de uma vez por
todas! Ou faz o milagre ou eu abandono o campo. Não vê esses pobres filhos, vítimas de falta de afeto? Um
ninho morto. Sem mãe não há ternura, se tornam violentos. Se antes do Angelus não mandar aquela garota, que
prometeu vir, não nos falaremos mais. Um minuto depois, mando todos eles embora. Preciso de um sinal e é
isso. A maternidade nova nasce no cálice com este ultimato. Enquanto os sinos tocam o Angelus, se apresenta
Irene, de 18 anos, para fazer de mãe. Se ajoelha. Lhe pergunto por três vezes: "Você ama o povo?" "Sim, sim,
sim.". Há ali um menino de três anos: "Então pegue-o, se chama Mirio". Se realiza quanto escrevi anos atrás:
"Precisávamos de uma mulher que soubesse me entender. Por que mesmo uma mulher? Talvez seja uma coisa
nova na face da terra desde que mundo é mundo, mas é assim: sou uma alma selvagem e sacerdotal que,
pulando de pés juntos uma série de tradições, não viverá se não dará à história uma paternidade e uma
maternidade que nunca o mundo cristão pôde ver" (7.3.1938).
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Aquele dia marca o fim dos orfanatos. "Até Deus estava cansado de ver seus filhos humilhados pelo
abandono e pela assistência". "Um mundo novo que nasce começa com um amor mais amplo por todos os
fiilhos que precisam da maternidade". Amor que "dará à história uma paternidade e uma maternidade que nunca
o mundo cristão pôde ver". O havia jurado: "Os tomo como filhos. Colégios eu não faço, caso contrário eu volto
a massacrá-los novamente. Deus fez a família e nós fizemos os orfanatos para esconder esses filhos de ninguém
aos olhos dos bons. Eu cortei a assistência”.
Nem mesmo ele percebe a revolução que desencadeou: não mais órfãos, mas filhos; não mais assistentes
e assistidos; não mais benfeitores e beneficiários. "Se a criança reencontrasse a família ... Minha casa, minha
vida, se diz. Então, por que não encontrar nas mulheres almas eleitas capazes de aceitar esta missão e homens
capazes dessa paternidade?”. A caridade católica se dedicou às vítimas para fazer obras meritórias, como função
suplementar, mas hoje cabe ao Estado cuidar de seus cidadãos. O Bernini regurgita de santos benfeitores dos
pobrezinhos. E Zeno desabafa com Cristo: "Odeio a assistência! Os orfanatos são cemitérios civis". Irene traça
um X no vidro embaçado onde alguém escreveu ÓRFÂO.
Na festa da Imaculada Conceição envia Irene ao bispo, que a recebe perplexo: "Sua tenra idade, as
fofocas, uma menina na casa paroquial. Você já pensou sobre as dificuldades? De quem serão filhos estes
meninos?”. Mirio em seus braços, Romano nas costas, Irene interrompe: "Excelência é claro: são filhos de
Deus. E eu os amo como se fossem nascidos de mim". Ela diz isso, batendo no ventre. O prelado, de barba
grande, hierático: "Aqui está sua mãe. Estas crianças não serão mais sem um sorriso e contigo abençoo aquelas
que virão depois de você ". Quando um padre lhe dirá que tem aprovado uma nova vocação na Igreja, dirá: "Não
será mais o bispo a fechar a boca de uma criança que aprende de novo a dizer mamãe!". Ficou perturbado ao
ouvir que Mirio a chamava de mãe. “Que diferença existe entre o filho da serva e o da patroa, de uma prostituta
e de uma santa? O laço de sangue é muito limitado, depende do sentimento, que vai e vem. Se se ama com amor
de Cristo, nasce uma nova maternidade, que não se regula mais segundo o afeto terreno, mas ama com amor
universal. Nossa mãe nasceu sob a cruz. Quando chega um abandonado, vamos ao altar e revivemos o que Jesus
fez, entregando João a Maria: "Mulher, eis teu filho; filho, eis tua mãe". O evangelho é vida, não cerimônia.
"Desde a infância sofreram a perseguição covarde da omissão. Estavam com fome e eu não conseguia alimentá-
los. Sentiam frio e não conseguia aquecê-los. Precisavam de uma mãe e por dez anos a suspiraram. Agora, não
mais pobrezinhos, não mais órfãos. Você sabe, Senhor, que para mim órfão é uma palavra infernal. Agora são
filhos na luz e no sorriso de todos os outros" (20.9.1944).
Irene terá que suar sangue antes de ser chamada mãe pelos mais rebeldes. A desilusão foi tamanha que:
"Não é possível que nos ame. Nenhuma mulher nunca nos amou". Eles a testam, a fazem chorar. "Eu tive uma
visão real, real do que é a falta de amor. ... A sociedade humana não tem coração, porque se o tivessse essas
coisas não aconteceriam. Se eu tivesse tempo, me sentaria a meditar diante do Senhor para escrever minha
tragédia do coração, de 1931 a 1941. Seria o livro mais bonito já escrito na terra. Talvez a caneta não consiga
fazê-lo ver os filhos dos outros que são uma raça diferente ... e estes com traumas, incompreensões,
pobrezinhos!, que não conseguem compreender certas vibrações. Como um violino de Stradivari, do qual
ninguém jamais esticou bem as cordas. Nunca souberam que eles podem ser uma harmonia. Se sentem como
trapos. Ver estes filhos, aos quais não poderia dar o que eles necessitam ... Estavam com fome, aprontavam de
tudo e, ao mesmo tempo, ver certas mulheres na Missa com a filhinha cheia de laçarotes, que recita a poesia:
"Menino Jesus, que bela noite estrelada! Nina nana daqui, nina nana daculá". Não há Jesus ali, Jesus está onde
as pessoas sofrem. Então, é sempre mais clara a visão de que a Igreja foi jogada por Cristo no meio do mundo e
passou vinte séculos submersa. Quando emergirá, quando virá à luz? Quando o mundo saberá amar, porque
enquanto não houver amor, a Igreja permanecerá sepulta, não poderá ser entendida, as palavras não se
sustentarão. Entender a dor é algo que está no segredo dos corações, no íntimo da humanidade. Uma dor não
causada pela falta de um bem material ... Todos os traumas que vieram depois foram graves, mas para mim
aqueles dez anos foram uma espada. Quando me mataram os jovens, estes se defenderam, eram homens. Mas
quando é um inocente, isso é desumano, eu não o aceitava de nenhuma maneira".
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"Se celebra a padroeira. Na procissão uma multidão, vários padres, a banda. Quando o pároco está prestes
a dar a bênção, intervenho: "Irene fugiu de casa para tomar os meninos como filhos. Por dez anos explico isso,
mas vocês não fezeram caso até que os meninos se convenceram de que as mulheres não têm coração. Não os
amam como os seus. Que cristianismo é o vosso? Agora terão a mãe. Esta é a primeira, quem sabe quantas a
seguirão. E vocês, anciãos, não entenderam isso. É um novo mundo que nasce, começa um amor mais amplo,
não o egoísmo, mas o amor por todos os filhos que precisam da maternidade. Agora quebro a liturgia, cantem e
toquem a música Mamãe de Gigli. Os meninos tocam e o velho pároco de Cavezzo chora. O povo diz: "Nunca
se fez uma celebração tão bonita assim". E foi uma grande festa". [textos sintetizados da história de sua vida
para o diretor G. Fina].
Quando Don Zeno recebe os 120 excluídos de Roma mais os 28 de Milão, ele lhes pede perdão. Mas nós
nunca tivemos a coragem de pedir perdão aos povos abandonados? Hoje, as meninas de Nomadelfia não
deveriam fazer delas o choro do pai até correr aos filhos/povos para dar aos seus filhos a maternidade nova,
"não da carne, mas de Deus"? Os menores que desembarcam em nossas costas não querem desembarcar no
coração materno? Você, papa, não pode deixar de exortar: "Sejam ousados, vocês não serão mais fieis à Igreja
se esperarem a cada passo que eles lhe digam o que fazer". Se você diz aos jovens da Ação Católica
(27.4.2017), que não têm uma vocação heróica, o que você diria aos jovens de Nomadelfia? Não foi por acaso
que o Espírito Santo escolheu como papa um filho de migrantes. Os desembarques dos desesperados são um
sinal dos tempos, que denuncia a insuficiência da caridade assistencial a nível global e nós nos iludimos ainda
que é suficiente colocar um esparadrapo assistencial em um câncer global.
Se não repercorremos os passos do pai quando caminha no meio das bombas; se não cavarmos nos
escombros da sociedade, como ele durante o bombardeio do porto de Bari; se não chorarmos com ele ao ver
povos/crianças que se alimentam com os refugos do primeiro/mundo; se não somatizarmos sua dor quando anda
pelo sul, de Taranto a Pompéia e é consumido pela dor, porque ninguém lhe dá atenção para realizar o seu
sonho, uma mãe para cada filho, como podemos sentir os povos/crianças que hoje são perseguidos pela fome,
fugindo da guerra?
"Em Pompeia vejo a Madonna toda vestida de ouro e eu vestido de farrapos. Que palhaçada!". No
entanto, diante da mãe, sua alma sonha com a maternidade nova, que gostaria de dar a todos os órfãos, aos
filhos de prisioneiros como Carmine, que o suplica para lhe dar uma mãe, porque a mãe está acima de tudo. E
se a morte a leva embora, temos que produzir uma outra. A mãe não deve morrer, porque a maternidade não se
reduz a um fato biológico. A fé a fortalece, a aperfeiçoa até dar-lhe um coração mais amplo para amar os filhos
que a perderam. Uma mãe universal, imortal, porque está além da carne e pode dizer ao abandonado: "Sou, para
você, ressurreição e vida". Só ela pode enxugar as lágrimas de um filho de ninguém, curar as feridas internas,
aquelas que não se vê e são as mais dolorosas.
Escreve ao cardeal de Nápoles: "Há algo mais urgente do que salvar a inocência da ruína? É um problema
de caridade, mas ao mesmo tempo de inequívoca justiça. Quanto ao juízo do Céu, sabemos o que Jesus pensa: ai
de quem tocar as crianças! Delas é o Reino dos Céus. Matar com um ato e uma omissão é a mesma coisa. Que
escândalo mais grave pode ser para uma criança que aquele de sentir-se abandonada pelos adultos, pelo clero,
pela Autoridade? Quantas pedras de moinho seriam necessárias! Falamos com o Comando Aliado. ... Uma carta
de Vossa Eminência de oração para agir, será tida em máxima consideração e abrirá o caminho para um sim
operante ... Prometeram o céu e a terra, no entanto empestam as nossas mulheres, deixam o nosso povo passar
fome e vivem como senhores" ( 21.12.1943).
Os Nomadelfos penetraram na alma do pai procurado, vagando, exausto, esfarrapado, que em Pompeia
vai falar com Mons. Crovella procurando pão, pedindo hospitalidade no seminário e é escorraçado? Aquele que
bombardeia de cartas os monsenhores encarregados de ouvi-lo, escreve a Badoglio, ao Coronel Crichton?
Aquele que propõe acolher todos os órfãos e levá-los para o Norte da Itália? Seu coração está no coração da
guerra, em frente à Casa dos Filhos dos Prisioneiros, que se desespera: "Carmine me disse que várias vezes
quis fugir do hospício para procurar uma mãe. Nem comida, nem conforto o fazem feliz, porque a falta de
liberdade é opressão. Depois desta conversa, eis a ordem de mandá-lo para longe do prelado" (15.4.1944). "Não
me dou paz. O prelado de Aversa aprova a Obra, Pequenos Apóstolos, portanto, podemos acolher os
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abandonados. Solicito a ajuda do ministério: "Estou disposto a qualquer luta para não ter que assistir a essa
infame negligência da inocência. Nunca teria acreditado que se pudesse chegar a delitos tão evidentes. Não é
verdade que não se possa prover. Não se quer, porque se dorme sobre a víbora que prepara as mais tristes
calamidades, não destruindo pontes e casas, mas preparando a mais perigosa delinqüência. Com os meios de
transporte irei mergulhar na salvação da inocência. Dêem-me os carros, a chamem Cruz Vermelha, o que vocês
quiserem, mas me dêem uma chance de não amaldiçoar essas terras libertas" (24.4.1944). Curzio Malaparte
descreve a Nápoles das mulheres, que se oferecem aos americanos sentadas, com as pernas abertas, nos degraus
das igrejas (cf. La pelle). Também Zeno percebe até que ponto chega o amor de uma mãe: se prostitui para
alimentar seus filhos. Pode um homem entender uma coisa dessa?
Da contemplação da Mãe de Pompeia passa à Mãe de Roma. Na primeira vê as mães forçadas a se
prostituírem, na segunda a Igreja, mater pauperum, a mãe dos povos/filhos/abandonados. No massacre da
guerra, com o coração em lágrimas, Zeno envia aos bispos da Itália libertada suas Lágrimas. Um fascículo no
qual escreve: "Devemos aceitar esses tempos como desejados por Deus ou, antes, preparados por nossas
omissões? Se a salvação do rebanho é confiada a nós, porque nos queixar de Deus? O que Jesus nos fez faltar?
Os filhos estão prestes a serem engolidos pela tempestade. Somos pais, sobreviver a eles é covardia. E não se
deixem tentar, Excelências, pelo temor que eu seja um excêntrico rebelde para as boas conquistas e à santidade
da Igreja. Estou pronto a dar a vida, a fim de encontrar almas sacerdotais determinadas a atacar aquele mundo
que penetrou em todas as nossas sãs instituições, a fim de erradicar um farisaísmo do qual as massas nos
acusam. A Igreja é ameaçada por infortúnios que poderiam levá-la de volta às Catacumbas. Jesus não pode estar
satisfeito conosco. Pastores de um rebanho que nas obras é desastroso, pastores incapazes de descer até às
massas porque o mundo e Satanás nos penetraram, retendo-nos na bondade das formas e sufocando em nós a
substância das obras. Uma tremenda responsabilidade deveria nos estimular para recristianizar esses tempos de
paganismo, que nas massas confusas, humilhadas e maltratadas pedem aquela justiça que é a mãe legítima da
Paz.
Não é mais um povo de gentios que é contra nós, e que nas obras é contra Cristo, mas os nossos filhos,
nós mesmos, em uma incoerência horrorosa entre idéias e obras. Mas havia realmente necessidade do
comunismo para afirmar que o trabalho tem direito a dignidade e a sua emancipação da escravidão capitalista? E
devia surgir entre os nossos filhos, mais arruinados pelo egoísmo daqueles ricos, amaldiçoados pelo próprio
Cristo mil vezes, para fazer justiça? ... Os pobres estarão sempre com vocês, por que hoje eles estão quase todos
contra nós?
As massas populares, com raras exceções, nos acusam de sermos a vanguarda da burguesia. Poderiam
dizer algo pior: que somos em grande parte burgueses, nepotistas, que somos egocêntricos a ponto de existir
entre nós quem usufrui de grandes benefícios e quem luta com a fome. As massas não nos entendem mais. A
omissão é nossa condenação. Devemos reagir, reformando a Igreja para santificar em nossas obras, toda a vida,
o progresso, as angústia e as lutas dos filhos. Não politiqueiros, mas santificadores da política, não apenas lux
mundi, mas também sal terrae, dissolvendo-nos finalmente em obras que sejam compreendidas e amadas até
pelo último dos miseráveis. O povo está na cruz. Não nos iludamos que a Democracia Cristã possa dar uma
resposta. Estas pobres classes trabalhadoras devem finalmente vencer, têm o direito de vencer, mas nós
devemos fazê-las vencer em Cristo. ... A substância da luta é a emancipação do trabalho de qualquer
especulação privada: é a sagrada fadiga humana que não quer mais ser objeto de compra e venda. A solução é o
comunismo mitigado ou o cooperativismo, ou ambos interrelacionados. A lei acabará por declarar crime toda
especulação privada sobre a riqueza, a qual será declarada fruto sagrado do trabalho. É a dignidade desejada por
Cristo que nos leva, ao longo dos séculos, a essas consequências. É o fermento da fraternidade de Cristo que
acaba excluindo qualquer perigo jurídico do apequenamento do homem. Esses são os trabalhadores explorados
por uma classe inconsciente que vive de renda, de especulação, de desperdício. Na verdade, esses não gostam do
erro, mas procuram confusos, no erro, a justiça. Deveremos ser, através dos fatos, os precursores, não o arco-
íris".
Ele não se contenta com conversas, oferece aos prelados o exemplo de sua obra: "Nasceu a união dos
Patres familias, trabalhadores que aceitaram o mesmo vínculo de parentesco sobrenatural conosco até
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comprometer-nos que nenhuma família da união por nenhuma causa deve cair na miséria e que os filhos de
todos devem ter uma educação digna e um estilo de vida cristã digna, emancipando-nos todos, através das
cooperativas, do capitalismo privado ou estatal, para trabalhar autonomamente na lei dos vasos comunicantes,
um por todos e todos por um. Construir coisas mesquinhas, não, jamais. Nascer gigantes é contra a natureza".
Ele propõe acolher os abandonados: "logo que possível, levarei todos, mesmo que sejam dois ou três mil, para a
Itália do norte, confiando-os às nossas paróquias para sempre. ... passei assim cinco meses entre a fome, o frio,
muitas vezes acolhido com carinho, ora abandonado a mim mesmo, ora compreendido, ora evitado por ideias
perigosas, ora em contato com os confrades dispostos a dar o assalto: quando precisou pôr a mão na carteira, foi
um deus-nos-acuda, feitas digníssimas e generosas exceções. Tudo é explicável, tudo é desculpável, sempre
perdoável, mas a realidade protesta. Desçam, desçam, Excelências amatíssimas, desçam, desçam, até o fundo!"
(Lágrimas, 14ss, sintetizado).
11.6.2017 - Se Fausto não tivesse feito a experiência das vítimas; se ele não tivesse conhecido Elias, que
tinha por berço uma caixa de papelão; Eliseu, torturado por sua mãe, com a vocação do justiceiro; Ismael, com a
ambição de bandido como seu pai; não poderia reviver aquilo que o pai viveu naqueles anos. A única maneira
para provar o que ele provou é se encarnar nos povos oprimidos? Zeno tinha o movimento centrífugo na alma:
ir, sair, correr para o povo. Não tinha intenção de nos transmiti-lo também com as múltiplas viagens a Perugia
para a empresa MVR para um projeto de casas desmontáveis de poliuretano expandido? Calculava e recalculava
quantas cabiam em um caminhão. Queria metade de Nomadelfia residencial e metade itinerante, "À noite,
chegamos em uma cidade, montamos casas, escolas, laboratórios e, na manhã seguinte, é uma cidade dentro de
uma cidade pronta para fazer um aqueduto, reparar casas, fazer um campo esportivo, tudo pela lei da
solidariedade". Sonhava de olhos abertos. O projeto não se concretizou. Para ser autorizado precisava de
material não inflamável. Não fez tudo para nos obrigar a amar os povos, indo até eles, mostrando que a
fraternidade social é possível? Lembra, Zeno, a campanha pela justiça em Subiaco de São Bento, envolvendo
todos para consertar casas em ruínas, apoiar as famílias necessitadas e fazer com que na cidade se pudese
escrever: "Entre eles não há indigente"?
Agora entendo Fausto quando insiste e quer ir para os Calvários do Sul do mundo. "Você, Zeno, viveu as
vítimas em sua pele, eu cresci na naftalina do convento e nunca senti o odor delas. Impossível conhecer as
vítimas através de terceiros, entende?". E você, por que não o proíbe quando te diz: "Diga-me para não ir e não
irei"? Você lhe transmitiu sua paixão e não pode renegá-la, certo? Desde sempre deseja encontrar aquele homem
de Deus que não encontrou no convento. Não consegue explicar porque para seguir a Cristo é preciso renunciar
a ser homens. Do diário daqueles dias: "Zeno preenche minhas aspirações, faz transbordar minhas expectativas.
Assim que me afasto para desafogar a compressão do sonho, me manda a procurar. E, com ar astuto: "Mas você,
por que está sempre comigo?" Não me dá tempo para reagir: "Eu sei, eu sei ..... você também deve ter uma
missão" (14.3.1974).
As vítimas não são objeto de estudo e Fausto quis colocar seu nariz e alma nos estigmas delas. Como
poderemos produzir o teu homem universal, "aquele que se encaixa bem na China, na Índia, na Rússia, em toda
parte", se a alma dos Nomadelfos respira uma pequena Itália debandada? Podemos dizer aos povos que nada
tem que usamos o necessário, o resto não nos pertence e, portanto, cabe a eles? Como, se nos inundam com
produtos prestes a vencer e somos forçados a aceitá-los, para que não acabem no lixo? É impossível recusar a
generosidade dos benfeitores? O primeiro mundo, querendo ou não, nos condiciona. Como entender os povos
irmãos desnutridos entre um caminhão e outro de alimentos excedentes?
Nomadelfia é fundada em princípios universais. Pode ser universal uma civilização que respira europeu?
Em 1950 (!), no congresso, ele encherga longe: temos que "pensar grande e decidir plantar as sementes de
algumas cidades: um vilarejo na Itália do norte (Fossoli), um no centro (Grosseto), um no sul, um em cada
continente". "Um vilarejo nômade para as missões no mundo; uma cidade na África, uma embaixada junto à
Santa Sé; o papa será também bispo de Nomadelfia" (1951). Francisco, é Zeno quem te convida: "O Papa virá
jantar conosco" (8.8.1952). Você sabe, nós temos uma sede em Monte Mario.
Hoje, nossos Barile e Titola não são indivíduos, mas povos perseguidos, fugitivos. Fogem de quem? Do
homem. Então, também de nós? Se não respirarmos a alma deles, nunca descobriremos a família universal.
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Depois, a pergunta crucial: os povos abaixo da linha da pobreza são capazes de fazer escolhas adultas? Se
sucumbiram na miséria institucionalizada, escravos de um mundo de instintos, como farão para passar do
selvagem ao humano, do humano ao divino? Uma seleção não natural, institucionalizada pelos povos patrões,
que precisam de povos servos para manter seu padrão de vida? As verdadeiras vítimas, hoje, são os excluídos.
Mas, relegados para fora do templo, fora do mundo, invisíveis, inexistentes, eles são capazes de fazer a
revolução em pé de igualdade? Francisco, como mudar um "sistema socio-econômico injusto desde a raiz" (EG
59), derrubar "a ditadura de uma economia sem rosto"? Como acabar com as causas estruturais da exclusão?

18ª Mensagem: Os pobres, carne de Cristo


1.8.2017 – Nos Exercícios Espirituais aos Servitas, don Zeno diz: "Nós, sacerdotes, devemos ser loucos
como Cristo" (janeiro de 1950). Dez anos depois, ele reza: "Eu e alguns dos meus filhos ..... ousamos ..... voar o
infinito para a conquista de almas através de uma revolução nunca vista na terra. ... Somos loucos em pensar e te
propor fazer uma coisa dessa? Sim, somos loucos de sua loucura" (2.9.1960). Fausto quer penetrar no coração
de sua loucura. Demais? O jornal L'Osservatore Romano o acusará de heresia do amor. Mas, o amor, se não for
exagerado, que amor é? Os zelosos acusadores nunca passaram horas e horas contemplando os traídos da vida
quando Zeno volta para casa zangado, sem nada, porque as piedosas benfeitoras se desculpam: "Estou
preparando as malas para ir de férias na praia. Volte outro dia!" Os monsenhores são especialistas em
contemplar um Cristo de madeira, Zeno o contempla tremendo de frio e fome. Um cristo/menino, com raiva,
rebelde, violento, porque exige aquilo que é indispensável para sua vida. Se Deus lhe deu uma mãe e depois a
leva embora, o que fazem para substituí-la? Um direito divino, que o próprio Deus lhe deu e vocês negam a ele.
Eles querem uma mãe verdadeira, não a estátua da Virgem Maria! Luciana, uma menina renascida em
Nomadelfia e deportada para um orfanato na tragédia de 1952, narra:
"Deram-me uma mãe toda para mim. Tinha os olhos luminosos como um espelho. Pensei que estivesse
sonhando que estivesse no paraíso. A cada momento a chamava: Mãe! e não era mais uma brincadeira. Uma
verdadeira mãe. Depois houve um dia que não consigo esquecer. A polícia chegou. As mães seguravam nos
braços os bebês e os seguravam tão apertados que, para separá-las, recorreram aos cassetetes. Gritos e choros
por dias inteiros. Eu, tremendo de medo, corria para me esconder nos armários vazios, embaixo das camas. Eu a
vi pela última vez na camionete, eu entre dois policiais e ela, minha mãe, corria com os braços estendidos para
me pegar. Então caiu. Pareceu-me morta de dor".
No pós-guerra, as esquinas das ruas regurgitam de abandonados, como trouxas esquecidas, envoltas em
farrapos, na fome, nos piolhos. As mães ricas, todas católicas, o filhinho pela mão, apressam o passo: "Graças a
Deus você não é como eles!". Nomadelfia é bombardeada com pedidos, os órfãos pressionam o coração de
Zeno, que inventa uma das suas: quer dar estes cristos de ninguém para as menores de idade de Nomadelfia,
porque "em uma situação de emergência não é lícito não ser heróis". "A lei não o permite, mas 7.000 pedidos de
admissão pressionam. E assim decidimos confiá-los também à solteiras entre 16 e 20 anos". A constituição diz:
"Podem receber filhos em adoção as filhas que derem certeza moral de não se casarem a menos que seja com
quem esteja disposto a compartilhar sua missão". Algunas delas, como Anna Maria, passam no teste. Um dia,
briga com sua mãe: "Eu vou consertá-la”, digo eu. A encontro em lágrimas. Olho para os nove filhos que lhe
tinha confiado: bem arrumados, lençóis brancos, lindos. Eu os observo. Digo a sua mãe: "Esqueça, aqui está
Jesus Cristo!". Em vez de bater nela, eu a teria agradecido. É verdade que se rebelou, mas essas coisas passam;
se ama os filhos, significa que Jesus vive nela. Vocês, mulheres fizeram o paraíso na terra, então Jesus se
revelou a vocês e faz estas coisas do céu. Eu não tenho como lhes agradecer, mas Ele, quando vocês forem lá
pra cima, virá encontrá-las sorrindo. Te dirá: "Anna Maria: você foi teimosa, mas eu não tinha mãe e você se
tornou minha mãe". Nos perdoamos mutuamente e ficamos felizes, porque o Céu venceu em nós. E senti uma
imensa alegria" (9.12.49). O mal é proporcional, o amor desproporcional. Deslumbrado com a capacidade de
amar de uma adolescente de dezesseis anos, Zeno diz: "Em vinte anos, no máximo, os casos mais desesperados
serão resolvidos. Vamos fechar para sempre as casas de correção, que desonram a civilização cristã. Se gastam
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tantos bilhões para criar uns assistidos, será melhor gastá-los para criar um povo de benfeitores da humanidade"
(28.9.1948).
Depois a tragédia: repressão e supressão da comunidade com a desculpa das dívidas. Políticos e prelados
não podem suportar que, na Emília vermelha, um sacerdote se torne a voz dos oprimidos, dando corda aos sem
deus vermelhos. É forçado a frear a acolhida dos abandonados. Pressionados como sardinhas, chega mais um e é
obrigado a recusá-lo. O jovem se mata nos jardins de Modena. "Esse sangue clama a Deus a partir a terra. Há
mais responsabilidade em dizer não do que dizer sim". Como fazer entender isso ao Ministro do Interior e aos
prelados, que não passaram por essas torturas da alma? Eles não levam em conta "a experiência dos primeiros
vinte anos, que mostra que a cada ano aumentamos em um quarto em relação à população atual. É por isso que
precisamos de um vasto território para criar, em 20, 30 anos, uma primeira cidade auto-suficiente. Em 1972, se
não houver diásporas, chegaremos a 120.000. Nada diz que é impossível: nos últimos anos a progressão passou
de um quarto para um terço a mais, porque a vida dos Nomadelfos torna-se mais atraente" (9.1953). Conclusão
amarga: "A Santa Sé é mundana e alheia aos sofrimentos dos oprimidos e, portanto, não entende essas coisas,
senão em teoria" (24.5.1952). E os prelados defendendo os religiosos, que acolhem os abandonados com
assistentes diaristas pagos. "A eles não falta nada. Nem mesmo a sobremesa, aos doningos!" Então, por que os
Carmine fogem dos orfanatos à procura de mãe?
Uma hipótese: e se Nomadelfia, acolhendo a exortação papal para abrir as portas, acolhesse os filhos dos
migrantes, que ninguém quer? [Entre 2011 e 2016 desembarcaram na Itália 62.672 deles. Um em cada seis
migrantes é menor de idade e 81% entre 16 e 18 anos] O que significa colocar um para cada família? Não
haveria moldura mais adequada do que entregá-los na Igreja Mãe. E Pedro celebrará a liturgia da cruz: "Mulher,
eis teu filho; filho, eis tua mãe". Os sábios dirão: "Don Zeno era Don Zeno, somente ele poderia fazer algo
assim". Não nos inculcava a lição do lavrador de Vallalta: "Quem vê o bem deve fazê-lo"? E se não
soubéssemos mais ver o bem? Não fazê-lo seria uma omissão imperdoável? E a quem confiar os povos
migrantes?
4.7.2017 - 2:30 horas - Francisco, que impertinentes esses migrantes! Na hora do jantar o telejornal
mostra seus desembarques. Devem mesmo colocá-los no nosso prato? Os observo atentamente para entender a
emoção de tocar terra na nossa alma. A colocam na cruz como nós os colocamos na cruz. Vêm para declarar que
o nosso cristianismo não tem nada a ver com o Cristo do: "Todos vocês, então, são irmãos, tanto como
indivíduos que como povos". "Como praticam a fraternidade social em relação a nós?". Para Zeno "A
fraternidade econômica deve ser imposta por lei sendo um direito inalienável." "Se amar até ser um por todos
fosse uma coisa especial, então o que seria o amor pregado pela Igreja? Paganismo materialista" (6.6.1952).
Quando coube a mim migrante de primeira classe, desembarcando na terra conquistada por Cabral, provei
um grito da alma: "Como ser um irmão, em pé de igualdade se eles não têm nada e eu sou super-rico de amigos,
cultura, religião?". Não vale também para você, Francisco? Impossível para quem representa uma instituição
com 2.300 funcionários, nunciaturas caras, missões, IOR, etc.? Apesar dos esforços para superar o abismo, sofro
como uma condenação de ser um cristão de luxo. Me incutiram que não há necessidade de fazer homens, mas
apenas cristãos! Distribuo sacramentos em profusão, a única coisa que me permito desperdiçar. Então, à noite,
mastigo o fel da desilusão: hoje também mandei para o paraíso crianças nascidas para morrer; salvei almas. O
que aconteceu com seus corpos? E eu, porque não morro como elas? Privilégio ou castigo? Temos a pretensão
de torná-los cristãos sem antes torná-los homens? Se ser cristão implica compromisso, dar a vida uns pelos
outros, como impor esse compromisso a um escravo, um desnutrido, um menino nascido para morrer? E eu
aceitei o jogo, um emissário da conquista das almas. Prelados e teólogos de luxo, se vocês estivessem em uma
jangada à deriva o que vocês gostariam que lhes anunciassem? Um prato de sã doutrina, um prato de hóstias?
Migrantes, podem nos perdoar, porque não sabemos o que fazemos?
Não é possível ser cristãos sem confrontar nosso estilo de vida com o dos povos/irmãos. Nossas obras
negam que somos filhos do mesmo Pai, porque somos filhos privilegiados e eles filhos negligenciados. Nosso
padrão de vida nega o pai, negando aos irmãos o direito à vida. Acham que seja um bom passeio atravessar o
mar em barcos quebrados sem qualquer conforto, nem mesmo o espiritual? Por que os missionários não
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embarcam conosco para nos dar aquela assistência religiosa, que os capelães não deixam faltar nem mesmo aos
soldados na guerra? A nossa é uma guerra para sobreviver, vocês querem entender? Se tivessem tido a coragem
de me perguntar: "Qual Deus te envia, aquele dos cristãos que acumularam 80% dos recursos do planeta?".
"Irmãos, eu trago para vocês o pão dos anjos! No convento o cantei mil vezes, enquanto a alma estava
extasiada". E eles: "De que serve o pão aos anjos? Cristo o materializou, vocês o espiritualizaram. Ele o
multiplicou, vocês o jogam na lixeira". "O crime social deste século é ter em mãos os meios para alimentar o
mundo e não fazê-lo".
Os migrantes continuam a desembarcar em nossas costas para ancorar na alma da Europa cristã.
Gostariam de constatar pessoalmente se a fé conseguiu nos tirar do: Salva TUA alma; pensa em TUA família,
dos laços de sangue e vínculos de pátria. Como conciliar as regiões mais cristãs do nordeste com as barricadas?
Se se trata de xenófobos extremistas, por que os assíduos do doningo não se fazem ouvir? E os movimentos de
elite como recebem tuas declarações? "A opção pelos pobres vem do Evangelho"; "são os destinatários
privilegiados do evangelho"; "existe um laço indissolúvel entre a nossa fé e os pobres" (EG, 48); "Homens e
mulheres são sacrificados aos ídolos do lucro e do consumo: é a cultura do descarte" (EG, 53). Se alguns
milhões de pessoas comprometidas as colocassem em prática e criassem um movimento, não seria um choque
para o mundo inteiro?
Você entende o que digo, porque é filho de migrantes, sentiu na própria pele a humilhação da fronteira.
Nações com tradição cristã mandam o exército para as fronteiras; Polônia e Hungria rejeitam suas cotas de
migrantes; a União Européia resiste às pressões italianas por uma solidariedade ao som do euro. A eles não
basta exigir a restituição dos bens roubados no período colonial; põem em crise nosso estilo de vida. Como é
que aquela parte da humanidade que celebra a orgia do consumismo reside em países com uma tradição cristã
onde também se enpanturram de práticas de piedade? Nosso luxo choveu do céu? As Madonas que aparecem
aqui e aculá se preocupam com seus filhos migrantes? Cristo continua a confiá-los a elas nos Calvários:
"Mulher, eis os teus filhos/povos; filhos/povos, eis vossa mãe".
Uma Igreja ocidentalizada não terá que se livrar da cultura européia para se equiparar a outras culturas
sem superioridade ostensiva? Somente um papa que vem da periferia poderia ajudar uma Igreja romana a
deseuropeizar-se? Formado em uma faculdade européia, seguidor de uma ordem religiosa primeiro-mundial,
como você produzirá uma linguagem que seja compreensível aos chineses, indianos, árabes, ateus, agnósticos?
A linguagem de Pentecostes estava além do som das palavras, feita de gestos, obras, ondas, que todos
entendiam. Para ter credibilidade, não terá que dar o exemplo, devolvendo aos povos roubados o que lhes foi
subtraído pelos catolicissimos conquistadores? Se se faz chamar pai de todos, não seria justo prová-lo,
investindo todos os recursos, inclusive o IOR, para derrotar as causas da desnutrição dos povos/filhos? Então
você poderá induzir todos os pastores a fazer o mesmo.
Essas multidões de Cristos invasores, bandidos, assaltantes da nossa consciência. O julgamento universal
na cena dos povos que se dizem cristãos. Os centros comerciais explodem de supérfluos; as campanhas
publicitárias não acompanham o ciclo de produção. Certa publicidade não é um crime de incitação ao delito de
consumismo? E eles deveriam assistir ao banquete, navegando na miséria, enquanto nós reivindicamos nossas
raízes cristãs? Migrantes econômicos e requerentes de asilo: distinções inúteis. Não são todos desesperados, que
chegam com as roupas do corpo, sem malas, sem cartão de crédito? Único capital: fome acumulada. Querido
papa, você será modesto, parcimonioso, mas teus filhos excluídos podem chamar de pai quem está no comando
de uma organização que tem tantos bens? E toda a pequena Itália Católica? Bateu no cofre europeu. Após a
recusa geral, ela financia o governo líbio, para fazer o trabalho sujo de prender nos campos de concentração os
aspirantes à migração. Punidos por terem sonhado com a libertação da fome. Até mesmo Cristo deve ser forçado
a migrar da Itália papal. Não foi acolhido com molotov, demonstrações racistas? Ninguém que tenha coragem
de dizer: Quo vadis, Donine?

19ª Mensagem: Ilusão ser cristãos?


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Don Zeno, depois de ter tocado o fundo da repressão por parte dos irmãos na fé, desabafa: "Se o
catolicismo pretendesse ser o que é hoje, acabaríamos por não reconhecer mais a sua missão" (7.8.1953). Como
chegou a uma declaração tão cortante? E continua: "Nunca aceitaria ser cúmplice desses desvios, onde colaborar
é loucura". Absolutamente! Eu, ao contrário, dei o giro da morte nos Calvários por ser cúmplice, por fazer a
loucura de induzir camponeses analfabetos a acreditar que bastam algumas práticas de piedade e caridade para
se dizerem cristãos.
O explica em três afirmações: os cristãos são vítimas de sua "bondade deletéria"; "O culto para nós é uma
superestrutura"; "O próprio templo é uma coisa morta". Uma religiosidade que nos leva a presunção de
santidade: "Santa Catarina foi para Avignon para libertar o papa dos demônios encarnados. Mas aqueles
“demônios” dançavam, eram simples bárbaros; ao invés, estes são iludidos de serem santos. Se fossem
mulherengos, bandidos, seria fácil trazê-los à verdadeira santidade. Mas não veem que o papa é uma vítima da
deletéria bondade deles?" (13.12.1950). Cada vez mais explícito: "Como posso pretender que nos entenda quem
não experimentou uma vida como a nossa? Nisso tem razão quem me chama de ingênuo ou, digo eu, de louco!
Mas é a última ousadia de 1950 e a envio ao prefeito da Congregação dos Ritos: "Pode parecer loucura, mas nos
parece que há sinais de Deus para justificar nosso pedido. O culto para nós é uma superestrutura à simplicidade
dos sacramentos feitos de água, pão, óleo, vinho, corpo. O próprio templo é uma coisa morta. Em Nomadelfia a
única coisa profana é o pecado. Para nós, o culto é uma expressão íntima e coletiva da comunidade, um abraço a
Deus na vivência dos sacramentos, e a missa será a ceia a ser celebrada nas famílias como um centro de
vitalidade. Pedimos um visitante para verificar se a nossa exigência responde a um impulso de Deus" (dezembro
de 1950). Eu também sou obrigado a dizer: como posso pretender que quem não experimentou os Calvários de
hoje me entenda? Como explicar lágrimas, sangue, desespero de povos inteiros?
Se por um lado devemos respeitar os simples, para os quais o culto é uma expressão de religiosidade
popular, por outro, como não escandalizar quem não consegue acreditar por causa das nossas incoerências,
fanatismo, conivência? O que fazer para abrir os olhos e o coração dos simples? Francisco, como podemos
acabar com uma tradição de morte que remonta longe com as bênçãos dos teus predecessores? Enquanto os
conquistadores ateam fogo nas aldeias, crucificam os índios, o que fazem em pátria os seus correligionários? Na
retaguarda, os piedosos artesãos constroem armas da morte - arcabuzes, canhões, veleiros - e, ao mesmo tempo,
rezam intensamente, fazem práticas de piedade, frequentam as confrarias e se dedicam a obras de caridade.
Como quebrar essa cadeia, que nos torna todos cúmplices do massacre? Digo isso na minha pele: não me
considerava um excelente religioso, tendo consumido joelhos nos genuflexórios do convento com missa,
rosário, adoração, meditação, leitura espiritual diária? Nem confessores nem diretores espirituais, somente os
perdidos me revelaram minha hipocrisia! Chegará um dia em que o papa será forçado a queimar os livros de
devoção, proibir as práticas de piedade, abolir as peregrinações? Como ousas, por quê? Porque essas coisas nos
iludem de sermos cristãos com pequenas doses de drogas espirituais, que, tomadas diariamente, se tornam uma
overdose e matam a alma. Forte demais? Cristo vai mais longe: "Coloquem-se uma pedra de moinho no
pescoço, vão para o inferno".
Mestres e artesãos das fábricas de armas se justificam: "Nós nunca demos um tiro, nunca estivemos em
um campo de batalha". Como não? Estão ali com o produto de suas mãos, vocês estão lá com minas anti-
homem, armas leves da Beretta, os helicópteros da Augusta, canhões e tanques da Ansaldo, pontarias de
precisão da Galileo, etc. Francisco, nossos fiéis acreditam que são cristãos piedosos, porque enquanto constroem
bombas da morte, fazem o bem, vão à missa, ao rosário diário, ao grupo do Evangelho, etc. Não seria melhor
banir tudo o que nos ilude de sermos seguidores de Cristo, ao contrário, somos cúmplices de cada massacre?
Não se faz guerra se não houver quem fabrique os instrumentos da guerra. É indiferente produzir canhões ou
tratores, bombas ou remédios? As multinacionais serão responsáveis pela violência estrutural, o operário de
armar as mãos dos executores materiais do delito, construindo instrumentos de morte?
Monges e monjas, devotados ao Absoluto, não poderiam sitiar as feiras de armas, os showrooms dos
aviões de combate, com greve de fome, orações e vigílias noturnas, convocando todos os santos da não-
violência de Gandhi a L. King, Mandela, Capitini, Don Milani, etc?
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Se a palavra de Cristo não nos basta, olhemos para dentro de casa. Não uma crise passageira, mas um
motim em massa de almas, as quais entenderam antes dos pastores que o culto sem a justiça é uma ofensa a
Deus; que antepomos o sábado ao homem; que preferimos visitar os santuários de pedra em vez dos santuários
de carne. Os povos europeus estão se paganizando sem a desculpa do materialismo histórico e dialético. Sem
Deus somos nós que vamos à igreja e não vemos os povos Lázaros sob a mesa dos anjos. Os migrantes, novos
João Batista, nos interpelam: "Vocês têm tudo, por que não são felizes? Muito saciados, entediados, alienados?"
A tarefa mais urgente dos missionários não seria dizer aos povos do Sul: "Pelo amor de Deus, não se tornem
como nós! Somos infelizes, porque injustos"?
E então seja proibido dar esmola: nos ilude de que Deus está em dívida conosco, porque Lhe damos
algumas migalhas. Em vez, nos autogratificamos, cultivamos o orgulho da bondade, tocamos a trombeta,
ganhamos méritos para o paraíso. As obras de caridade nos impedem de fazer obras de justiça? Se soubéssemos
ler os sinais dos tempos, não deveríamos reconhecer que os migrantes vêm a nos dizer que ultrapassamos todos
os limites, que nosso consumismo é criminoso?
Quando os catolicíssimos povos europeus reconhecerão seus crimes/pecados históricos coletivos? O
butim subtraído da América Latina foi contabilizado: 185.000 quilos de ouro, 16 milhões de quilos de prata,
com os quais se pode fazer uma estrada de Potosí a Madri. Quando serão restituidos aqueles bens roubados?
Destruímos com os ídolos também os corpos e as almas dos selvagens, que pretendíamos salvar, enviando-os à
força para o paraíso [compelle intrare]. "Melhor um índio morto no paraíso, do que vivo, mas pagão na terra".
Os teólogos em Salamanca justificam a conquista, demonstrando que os selvagens, estúpidos e amorais, não
têm alma. Qual a prova? Os sacrifícios humanos. Bartolomeo de Las Casas desmente esse argumento: "Se
adoram a deus com sacrifícios, isso não significa que eles têm uma religião, então uma alma como a nossa?".
Uma vez chegados à praia, os conquistadores enfiam suas espadas na areia que se tornam cruzes. O
missionário beija o chão e celebra a Santa Missa. Então o arauto convoca os habitantes e declama a bula papal
[Inter Coetera19], declarando que o próprio Deus confiou aqueles territórios ao Rei e à Rainha, e que o Papa,
fulano de tal, ratifica tudo com o santo selo de Pedro. E o que os catolicíssimos italianos fizeram na África para
não serem inferiores às potências coloniais, apenas para ter um lugar ao sol? Os governantes faziam crer que
queriam civilizar os negrinhos ao som da religião e do progresso. Nossa cruzada se reduziu a que? Quinhentos
mil assassinados. O Duce arenga o espírito de guerra dos italianos! Desafia a Sociedade das Nações, inflama os
ânimos à conquista, retoma os mitos romanos, diante de um povo faminto [Zeno pede-lhe 500 cobertores,
receberá uma oferta para comprar alguns lenços!]. E nas paróquias se reza, porque a retaguarda deve dar sua
contribuição para a guerra, sustentando espiritualmente os soldados. Enquanto o Duce envia mensagens secretas
para o uso de gás, os pastores abençoam mosquetes, canhões, tanques, aviões para metralhar colunas de civis em
fuga. São abençoadas também as armas secretas camufladas: fosgênio, pirite, gás nervino, os venenos para a
guerra bacteriológica. O imperador Hailè Salassiè, em suas memórias, conta coisas que nos fazem estremecer. O
filho de Mussolini, o piloto Vittorio, descreve um metralhamento nas cabanas como uma batida de caça na
propriedade Castel Porziano. Maravilha-se, nenhum golpe foi perdido, o incêndio dos tukul 20 parece um fogo de
artifício, um fósforo acende o outro.
Os soldados italianos seduzidos a se alistarem na aventura africana com o sex appeal da Vênus Negra
sempre disponível para os civilizadores brancos e cristãos. Cada companhia tem seu próprio capelão em
uniforme para revigorar o espírito dos combatentes e sustentá-los no fadiga de exterminar os negrinhos. E as
missas campais antes da barbárie, decapitando, emasculando os rebeldes com a ajuda dos áscaros 21 líbicos?
Cristo chamado em causa para participar do massacre de Debre Libanos onde são assassinados [entre 1.423 e

19
A bula Inter Coetera, do papa Alessandro VI, foi escrita em 3 de maio de 1493 e decidia sobre a controvérsia entre
Espanha e Portugal a respeito das terras descobertas e a serem descobertas pelos dois países

20
Cabanas africanas em forma circular com paredes de barro e telhado de palha usadas na África Oriental
21
Soldado nativo da Eritreia e Somália que fazia parte das tropas coloniais nas ex-colônias italianas.
66

2.033] monges coptas com seus bispos para lavar a vergonha do ataque ao vice-rei Graziani, o açougueiro dos
árabes, um criminoso de guerra.
O que se faz para iluminar, educar as consciências, enquanto a diplomacia vaticana assina o acordo com
um ditador que dá sinais de arrogância, prepotência e loucura, colocando todos em marcha, mosquetes nos
ombros, ressuscitando as glórias romanas, fascios romanos, filhos da loba, legiões? E as camisas pretas, os
cacetetes, o óleo de rícino? A marcha sobre Roma não é o prenúncio de uma estação de tempestades?
Se estuda na escola os horrores, a destruição sistemática daqueles povos? Não herdamos, como povo, os
crimes cometidos por nossos antepassados, cujas conseqüências continuam até hoje? Não somos obrigados a
curar feridas, reparar danos físicos e morais? Não é por acaso que são forçados a emigrar! Como evitar que se
repitam essas atrocidades se não soubemos nada sobre elas? Existe um tribunal de crimes de guerra. A Itália é
intocável, porque abriga o líder espiritual do cristianismo, assim abriria o flanco aos difamadores: "Vejam do
que são capazes? Não lhe bastaram os horrores do passado. Até o acordo com um ditador sanguinário”!
Não se pode julgar a história em retrospectiva. Mas hoje tudo está à luz do sol: despachos, proclamações,
diários, fotografias, filmes. Cavamos nossa sepultura com as próprias mãos. Enquanto nas retaguardas se
construíam os instrumentos do massacre, ao mesmo tempo se rezava, se faziam obras de caridade! Então, todos
cúmplices dos crimes de um povo inteiro. Nas escolas se narra aos filhos dos filhos as façanhas desses 500.000
soldados estupradores e degoladores? O mito dos italianos brava gente? "O italiano vai à guerra, mas pensa
apenas em fazer amor": uma lenda dos pacificadores levados a confraternizar com o inimigo. Um colonialismo
com rosto humano, que pedia somente terras ao sol para um povo de camponeses famintos de terra. Ao aderir
às leis raciais, negamos aos sessenta mil filhos [aqueles conhecidos] de nossos soldados de serem reconhecidos
e acolhidos nos jardins de infância católicos. Um ultraje à pura raça italiana!
Fausto não fala à toa. Passei dois meses na Eritréia, vasculhando nos arquivos, entrevistando
sobreviventes e testemunhas. Um dia, no ônibus, eu, a única mosca branca, todos os olhares sobre mim, sinto
náusea, vergonha e medo de uma possível vingança. Não represento para eles um povo que massacrou seus
pais? (Angelo del Boca, in: Italianos brava gente, documenta a brutalidade do colonialismo italiano.)
Guerra da Etiópia (1935-36). Em 2.10.1935, Mussolini declara guerra para vingar a derrota de Adua:
"Com a Etiópia tivemos paciência durante quarenta anos! Agora chega!”. Depois de 13 anos de regime quer ver
como os novos italianos enfrentam uma guerra real para implementar as virtudes fascistas: desprezo pelo
adversário, inclinação ao extermínio, exaltação da bela morte. No porto de Massaua chegam 498 navios:
500.000 homens, 102.582 quadrúpedes, 18.932 veículos, 1.542 canhões, 492 tanques, 350 aviões, 513,276 fuzis,
14.570 metralhadoras. E, secretamente, 270 toneladas de gás, 1.000 toneladas de bombas de gás mostarda,
60.000 granadas de arsênio22. Quando os etíopes irrompem no fronte norte, o duce telegrafa: "Aautorizado o uso
do gás como último recurso para vencer a resistência inimiga". Pela primeira vez, são lançadas nas massas em
fuga, as bombas mortais com 212 kg de gás mostarda; tocando o chão espalham um líquido incolor que, em
contato com a pele, forma bexigas e causa grande dor. Graças à censura, o regime esconde o uso do gás, mas a
imprensa internacional dá conta disso. No dia 5.5.1936, Badoglio entra em Adis Abeba. O Duce anuncia o
nascimento do Império. Custo: 4.350 mortos, 9.000 feridos, 40 bilhões de liras. Apesar das execuções sumárias,
o incêndio de milhares de aldeias, a Etiópia é indonável. Teria que acomodar de um a dez milhões de colonos
italianos. Foram instaladas somente 3.500 famílias em 114 hectares, fugindo aos primeiros disparos de canhão.
Para acabar com a resistência: "Todos os rebeldes feitos prisioneiros sejam mortos. Usem os gases,
autorizo sistematicamente a política do terror e do extermínio". Em Addis Abeba, milhares de famílias choram
seus mortos. Dois estudantes durante uma cerimônia, jogam granadas de mão Breda: sete mortos, cerca de
cinquenta feridos, incluindo Graziani, com 350 estilhaços. "A reação ao ataque se dá em perfeio esquadrismo
fascista: andam armados com cacetetes barras de ferro, matando todos os nativos que ainda estavam nas ruas,
incendiando os tukuls, atingindo aqueles que escapavam do fogo com granadas de mão. A impunidade era

22
Composto de arsênio capaz de provocar intensos gases tóxicos.
67

absoluta, o único risco era ganhar uma medalha. Cada abissínio 23 que fosse visto na rua, naqueles três dias, era
morto, em Adis-Abeba, cidade de africanos, na qual por um tempo não se viu um africano".
13.000 homens perdidos, entre nacionais e coloniais, 250 oficiais. Três vezes as perdas da guerra
mundial. O Imperador Hailè Selassiè em 5.5.1941 retorna para a sua capital. Os 200.000 italianos restantes
esperam pela vingança, mas o Negus se opõe: "Não retribuam o mal com o mal, não se manchem com atos de
crueldade, como fez nosso adversário até o último minuto. Cuidado para não manchar o bom nome da Etiópia".
Se párocos e educadores tivessem explicado aos fiéis nossos crimes coloniais, organizando peregrinações
nas terras onde crucificamos em massa Cristo/colonizado teriamos chegado às Molotov? E tu, Francisco,
constata: "É verdade que somos uma civilização que não faz filhos, mas também fechamos a porta para os
migrantes. Isso se chama suicídio". "Sonho com uma Europa onde ser migrante não é um delito". A alma
européia não precisa de um eletrochoque? Por exemplo, um Motu próprio: não mais crucifixos da pela branca,
todos os povos colonizadores coloquem no pescoço um belo crucifixo preto/antracite, para ser distribuido
também na Jornada Mundial da Juventude a todos com uma grande festa. Uma maneira para celebrar a falência
católica/européia em toda a África onde cristãos trucidaram outros cristãos. Em nome de qual raça, se Cristo
superou todas elas não em nome de uma religião, mas de uma civilização pelo menos humana?
Nos anos trinta, enquanto Hitler planeja o sonho da raça ariana pura, com bases científicas para gerar o
alemão ideal, filho de Odin, uber alles, reduzindo-o a um pedaço de carne: sangue azul, estatura esguia, maçãs
do rosto salientes, olhos azuis, cabelo loiros [as imagens de Cristo, reduzidas a um alemão, obedecerão a esse
estereótipo!] um padrezinho na baixa Modena, na escola dos filhos de ninguém, aprende que não nascemos da
carne, nem do sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus. Os campos de extermínio não serviram para
nada, seis milhões de vítimas inúteis? [Não foi suficiente esta ignomínia de Hitler a Pol Pot (dois milhões),
passando pelos EUA (90 milhoes de índios), a Armênia (1/1,5 milhões), Tibete (um milhão), Ucrânia (6
milhões), Idi Amin (300 mil), Foibe (100.000), Srebrenica (8.000), Yazidis, Curdos, Chechênios, Rohingia,
Palestina, Síria, Ruanda?]
Ruanda: o país mais católico da África sacrifica no altar da raça 800 mil vítimas, estupros em grupo
[muitas mulheres pedem para serem mortas], 400 mil órfãos, 10 mil mortes por dia, 7 por minuto. Em 1933,
quando os catolicíssimos belgas assumiram o controle, os tutsis e hutus coexistiam em paz, a mesma etnia
Bantu, língua, religião e tradições. Os colonizadores impõem o registro da raça nos documentos, acentuando as
diferenças somáticas, rivalidades, invejas, ódio étnico. Em 06.04.1994, o abatimento do avião do presidente,
Hutu, é o pretexto e o sinal: "Radio mil colinas" coordena as operações de limpeza étnica, incita a seviciar e
matar as baratas tutsis. Quem não participa do trabalho é um inimigo a ser eliminado. Exulta pelas ações
espetaculares, convida os tutsis a se apresentarem para serem imolados. Muitos adultos se sacrificam para salvar
as crianças. Irmãos massacram irmãos com facões, machados, lanças, tacos cravejados, armas de fogo. As
igrejas são violadas. "Tudo isso é o efeito de uma política irresponsável do colonialismo europeu e dos
extremismos políticos. Hoje na região se confrontam seis exércitos, em um continente onde não há uma fábrica
de armas". Nos cem dias de fúria tribal onde estão os pastores? Em Roma, elaborando com o Papa os planos
pastorais da nova evangelização. Servirão para catequizar montanhas de cadáveres comidos por cachorros e
moscas?
E os 168 milhões de abandonados não são vítimas da nossa limpeza étnica global? "Filhos de drogados,
prostitutas, alcoólatras, prisioneiros, filhos bastardos de raça bastarda, fiquem presos nos novos campos de
extermínio, as chamadas Casas de boas-vindas. Escondidos, invisíveis, para não ofender os olhos dos filhinhos
de papai. Vocês são uma raça inferior, filhos de sangue poluído". "Que nos rejeitem os ateus, é suportável, mas
os cristãos"? Não deveríamos nos ajoelhar diante deles? "Perdoa-nos! Os reduzimos a pedaços de carne, porque
rejeitamos aquele Cristo que repete em toda vítima: Não nasci da carne, do sangue, da vontade do homem, mas
de Deus. Sou de estirpe divina. Só Ele me dá uma alma à Sua imagem e semelhança".

23
Habitante de Addis-Abeba.
68

Zeno, nos dez anos que passei com você, não conseguia me explicar as tuas insistências na mesma tecla:
"Devemos amar com o espírito que está além dos sentidos, além do sangue". Como você enfureceu a Santa Sé,
tentando fazê-la entender, que com o espírito se pode amar tanto um filho acolhido quanto um filho carnal! Se
os detentores da verdade, os infalíveis, tivessem levado em consideração pelo menos tuas obras, isto é, os 5.000
mortos civis, aos quais você devolveu a vida, regenerando-os, de fato, não da carne, do sangue, da vontade do
homem, mas de Deus?

20ª Mensagem: E se você nos desse um exemplo?


Senigallia 25.8.2017
Francisco, se não é um papa que o Espírito foi encontrar no fim do mundo, quem mais irá denunciar o
Ocidente cristão de estar em estado de morte? Vale tanto para os indivíduos, quanto para os povos? Você
convida, exorta, solícita a sair da auto-referencialidade da religião/seita, das economias assassinas. E se você
nos desse o exemplo? Estando em Roma, não endossa a presunção daqueles que acreditam serem seguidores de
Cristo, porque têm o privilégio de hospedar o sucessor de Pedro? Tocar a carne dos pobres é tocar a carne de
Cristo. Mas a carne de Cristo não tem rótulos. É esta carne que recorre a você, para que nos mostre aquele que
quer todos salvos. De que maneira você põe isso em prática? Nós, povos periféricos, somos filhos da escrava?
Se compararmos os dias em que você permanece no epicentro com aqueles em que passa na periferia veríamos
um abismo. Roma sede de Pedro? Roma é onde os filhos procuram um pai. A realidade é o primeiro sinal da
vontade de Deus. Os números que a quantificam são mais eloquentes do que muitos discursos. A maioria dos
teus filhos, que nós nunca reconhecemos como irmãos, onde se encontram?
1.379 milhões na China; 1.324 milhões na Índia; 1,216 milhões na África. Não interessam àquele Cristo
que derramou sangue por todos? Nós, chineses, indianos, africanos, etc. não existimos para aquele que se
declara o Salvador do mundo? 1.300 milhões de pretensos cristãos te mantêm prisioneiro, impedindo-te de
abraçar a todos os outros? Nós também reivindicamos ser carne de sua carne, ossos de seus ossos. Por que
reservar a salvação da miséria para os povos ocidentais? Quer uma outra realidade que maior sinal de Deus não
se pode imaginar? Toda semana na Holanda são postas à venda duas igrejas mortas. Dois terços das 1.600
igrejas serão fechadas nos próximos dez anos. Na Alemanha, 15 mil das 45 mil igrejas serão demolidas ou
vendidas. E os seminários vazios? Implodem não por causas externas, mas internas. É o sistema que não pode
funcionar. Pode-se fazer o alter Christus sem fazer um homem? Zeno: "Pretendem educá-los para se tornarem
santos e não se lembram mais de torná-los homens". De fato, "o cristianismo está literalmente morrendo na
Europa". "Na maioria dos países, incluindo a Inglaterra, a Alemanha e a Itália, as mortes de cristãos superam os
nascimentos". As tuas admiráveis insistências em curar os doentes terminais não arriscam a obstinação
terapêutica da fé?
Zeno insiste: "Se o catolicismo pretendesse ser o que é hoje, acabaríamos por não reconhecer mais sua
missão. Jamais aceitarei ser cúmplice desses desvios, porque colaborar é loucura". Quem lhe dá tanta coragem
se não as vítimas? A regra áurea da cura: "Deve-se aplicar a justiça e o mandamento novo do contrário, a Igreja
é apresentada distorcida a quem tem o direito de encontrá-la e abraçá-la".
Francisco, se ousasse questionar o padrão de vida dos católicos; que devem usar o necessário e devolver o
excedente às pessoas desnutridas, o que aconteceria? E fazer isso como indivíduos que como povos? Para o
povo americano, seu estilo de vida é um problema de segurança nacional, que pretende defender com unhas
nucleares, dentes atômicos espalhados em mais de 750 bases militares. Rezemos com Zeno: "Senhor, nós,
católicos, estamos agora no banco de prova. O que acontecerá com a tua e nossa Igreja? O papa terá tempo para
consertá-la? Os católicos o seguirão?" (26.12.1970). Francisco, terás tempo para consertá-la? Os católicos te
seguirão? Para Cristo, somente as obras são convincentes: "Vendo suas boas obras acreditarão".
Não seria oportuno convidar cada paróquia, convento, povo para "que apresente suas obras de fé"? O
Cristo lança novamente o desafio para os acusadores: "Não acreditam em minhas palavras? Não podem negar as
69

minhas obras". Podemos dizer o mesmo? Nós, deserdados, queremos ver suas obras, temos o direito de dizer
com Cristo: "Aí de vocês, povos enriquecidos!". Basta remendos, diversões, migalhas. Queremos as leis
internacionais, que tragam a solução para a raiz do mal social. "A história da Igreja deve mudar de rumo a todo
custo. ... Vocês realizam cirurgias nos frutos bichados, ao invés de cuidar das raízes doentes" (3.7.1950).
"Nossos inimigos sabem nos enganar porque avançam acusando-nos de pecado social e político. Nos
fazem descontar os pecados de nossos pais e de nossos co-irmãos na fé que são cúmplices desavergonhados do
crime social no campo econômico, até a exploração e especulação" (26.12.1970).
As obras de Nomadelfia são a prova de sua fidelidade à mensagem. Por que não arrasta, não abate? "Se
há tantas almas santas, aos milhões, por que não deveriam vencer os fariseus, que pretendem ser a totalidade da
Igreja? É Roma que é fraca ou tem medo dessas pessoas" (7.8.1953). A Roma dos mártires tem medo de perder
consensos? Por que não tem medo de perder os povos, que nunca procurou? Esvaziou sua fé, não acredita mais
no impossível ao homem, porque acredita na Cúria, nas Congregações, nos Sínodos? Francisco, teus gestos, tuas
obras são eloquentes. Mas você é um indivíduo e, como tal, não pode ser um exemplo de povo para os povos. O
desafio, hoje, é conjugar a fé com o social, aquilo pelo qual se degolou o século XX com milhões de mortos. E
então, olhe dentro de casa: quantos bispos abrem as portas de seus palácios para os migrantes? Se se fazem
chamar de pais, experimentaram a perseguição da fome de seus filhos na humanidade? A instituição como tal
não é credível, porque é funcional a este mundo?
"Descer às praça para dizer que os patrões são piolhos é uma carícia em comparação com o seu sistema
escravista. É necessário expulsá-los do templo como Cristo fez, porque eles são um lastro e, por nossa culpa, se
iludem de cumprir uma missão" (7.8.1953). Por que não descer na praça da história para dizer de uma vez por
todas, que se há pessoas à deriva é porque há povos piolhos que sugam seu sangue? Povos inteiros deveriam ser
expulsos do templo, porque mesmo os chamados bons são cúmplices? Não somos todos nós usufrutuários do
consumismo global, do sistema financeiro? A ONU limita-se a moções, sanções inofensivas, condolências. Não
é hora de reinventar as relações entre nações, o conceito de povo, nação, pátria, fronteira? Quem está lutando
pela interdependência global, por uma nova ordem supranacional? Apenas os rios envenenados, florestas
desertificadas, mares agonizantes, espécies em estinção, efeito estufa? Ou nos salvamos todos ou não se salva
ninguém. Ainda não conseguimos ler o mais macroscópico sinal dos tempos: as migrações. "Jesus entrou na
casa de Zaqueu, foi o suficiente para ele se sentir costrangido como injusto e logo presta conta do roubo e
promete devolver aos pobres o que havia roubado. Talvez a Igreja precise ser defendida por aquelas pessoas
[injustos]? Ilusão fatal. Não podemos ser cúmplices daqueles bandidos. A Igreja não é uma prostituta. Eu viajo
com meus filhos no barco de Pedro, pronto para as mais ousadas aventuras, pronto para me sentar como um
mero passageiro, mas não faço compromissos" (7.8.1953). Até quando o seu êxodo não se tornar o nosso êxodo,
nunca sairemos do egoísmo coletivo. Serão suficientes 40 anos para a travessia do deserto consumista?
Caro Papa Francisco, a quem interessa que você esteja no epicentro da cristiandade, patriarca do
Ocidente? Refém de uma Europa cristã por força de inércia. Com o passar do tempo não corre o risco de
defender um costume pagão? Pode prestar-se a esse o jogo aquele que vem do fim do mundo? Os povos
crucificados te vêem sempre da outra margem. Passa o Tevere do oceano, põe em prática o que Cristo diria
hoje: "Quem precisa do médico são os povos escravizados, as populações migrantes, 800 milhões de doentes de
desnutrição?". O barco de Pedro está afundando por excesso de náufragos para os quais ele não sabe como dar
barcos salva-vidas, boias salva-vidas, missionários ad hoc? A CEI, por bondade deles! Destina para os
migrantes 30 milhões de euros em três anos. Uma gota no mar do oito por mil? [custo do Vaticano: seis e meio
bilhões de euros por ano; o turismo rende 5 bilhões; um quarto dos imóveis de Roma são dele. E os 300
conventos transformados em hotéis com 13 mil leitos? E se neles fossem hospedados 13 dos 15.000 sem teto?].
O que devem pensar os povos das periferias? O que você está fazendo no meio de povos, que não querem saber
da cruz, muito menos de nós, povos crucificados? Deixa-nos insistir: estando em Roma, capital da fé, não corre
você o risco de avalisar a boa-fé do povinho: "Se o papa está conosco, significa que o merecemos"? Como pode
se sentir bem assediado por 15 mil sem tetos? Somente quem vive no exterior percebe que a Itália papal é o
70

único país papa-dependente. Um espirro papal vale um anúncio em redes unificadas! E se você armasse a sua
tenda um pouco aqui um pouco aculá, talvez começando com as visitas ad limina in loco, indo você para os
diferentes países ao invés de forçar os bispos a irem, como súditos, aos pés da cúria romana?
E se você, pai de todos em teoria, se tornasse na prática, propondo-te como representante legal de 10/12
milhões de apátridas, acolhendo-os em uma espécie de pátria virtual? Não poderiam todos os conventos
oferecer-lhes o direito de asilo? Como tolerar que nossos irmãos sejam reduzidos a menos que nada? Nem
mesmo os escravos da Roma pagã eram tratados assim. Não se poderia lançar um movimento para obter da
ONU uma pátria ad personam para todos os deserdados? Podemos aceitar que 65 milhões de nossos
semelhantes, tão próximos a ponto de serem irmãos, sejam aprisionados em campos de refugiados como seres
inexistentes, invisíveis, indesejáveis, entre sete bilhões de irmãos, dos quais 1.3 bilhão são cristãos? E você, que
viveu na pele os limites do nacionalismo, das impressões digitais, do fichamento, etc. [breve será colocado um
microchip sob a pele], não poderia destacar os limites e injustiças do jus soli, jus sanguinis, jus culturae?
Concepções tribais, nada a ver com a aldeia global, muito menos com o Cristo que propõe um novo
relacionamento: "Nascemos, não da carne, do sangue, da vontade do homem, mas de Deus", seja como
indivíduos que como povos. Por que não marchar em direção à pátria universal? Se nasço dentro da fronteira
italiana, sou forçado a sofrer leis que não compartilho, conivente com os crimes sociais: desempregados,
abandonados, explorados, mendigos, sobras. É liberdade ou escravidão? É preciso um novo conceito de estados
nacionais, além das fronteiras. Zeno ironiza: "Pátria? Um delito! Minha pátria é o útero de minha mãe".
Enquanto espera que a humanidade cresça em idade e graça, você poderia eleger uma pátria além das
pátrias, por exemplo, o povo novo de Nomadelfia. Não seria o lugar mais agradável para um papa, porque ali
não há quem está acima e quem está abaixo, todos em pé de igualdade? Lá você se sentirá à vontade, no berço
de um povo fermento evangélico de santidade social. Terá em suas mãos um exemplo de vida para indicar o
caminho para os jovens povos vítimas da sedução do consumismo. Poderia falar com a autoridade de Cristo:
"Vocês não acreditam nas minhas palavras? Aqui está um exemplo concreto de evangelho vivido como uma lei
de vida individual, familiar, social e política".
Essa seria tua plataforma de lançamento para voar nos céus dos povos/filhos de Deus. Para onde ir? Na
África para desmentir a fábúla da eterna Cinderela. E porque não na China? E então na Índia, na Rússia, no
Paquistão, no ensanguentado Oriente Médio. Quantas coisas poderíamos aprender com os filhos de Buda,
Vishnu, Maomé, Confúcio! Como nos enriqueceriam, como nos ajudariam a praticar essa oração: "Tudo o que é
meu é teu, tudo o que é teu é meu! Também meu Deus, minha verdade, minha fé, minhas sagradas escrituras,
meus santos, etc." Acredita que o Deus de todos, que vem antes de qualquer religião, se ofenderia se você
resasse com eles? Não é o homem o santuário de qualquer deus? Então, por que não exortar os cristãos a sairem
dos nossos guetos para rezar em qualquer templo, com qualquer assembléia de crentes? Abrir, sair, correr para
os irmãos não é correr para os braços de Deus, seja qual for o nome dele? Um saudável e santo exercício de
catolicidade, que nunca praticamos?
Se Deus tivesse uma religião, não seria o homem? O santuário de Deus somos nós, pequenos e
mesquinhos, mas Ele entra na ponta dos pés, respeita a nossa liberdade até o extremo que mais extremo não é
possível: o auto-extermínio ecológico e nuclear já anunciado.
Em seguida, um bom banho de purificação no Ganges. E, para deleite do Deus surpreendente, os
exercícios espirituais nos mosteiros budistas, de joelhos, em êxtase, diante do silêncio do absoluto. Esse silêncio
irá revelar-te a alma asiática. Restituirá ao patriarca ocidental o pulmão oriental. Herdamos dos gregos o
dualismo maniqueísta: fuga mundi, demonização da mulher, desconfiança e medo da corporeidade. A cultura
budista prega e pratica a beatitude da pobreza/parcimônia melhor do que nós com o controle dos desejos, muitas
vezes fonte de frustração, aberração e desordem social. Se for verdade que os pobres evangelizam, isso também
se aplica às massas indianas empobrecidas, mas não católicas? Os santos da não violência, da pobreza
voluntária e do autocontrole, dos verdadeiros gigantes em humanidade, não merecem a glória do Bernini? O
Cristo já estava lá antes que João Paulo II gritasse: "Ásia, abra as portas para Cristo!". Rejeitaram o Cristo
71

europeizado, colonizador, não aquele que vive e que se toca na carne de multidões de pobres, todos donos do
Reino antes de todas as religiões. Cristo não confiou o reino a eles? E nós deveríamos pedir a eles para entrar. A
vítima pertence por direito divino ao Reino e o próprio Deus toma sua defesa. Para os teólogos asiáticos, as
massas empobrecidas não são monopólio da Igreja. Jesus não diz: "Eu estava no desnutrido católico". O que
significa: "eu estava neles"? Alguns movimentos gostam de encher a boca com slogans como: "Ver Cristo nos
pobres". Se vejo nele Cristo, o pobre, onde vai terminar, desaparece? Se no pobre amo Cristo, o pobre que Lhe
serve de suporte, a que se reduz? "Tudo o que fizer ao menor, não a terão feita ao meu pedestal, mas a mim". Se
devemos amar os outros por amor a Deus, Deus nos ama por amor de si mesmo?
E então, descalço, poderá se agachar nas mesquitas para escutar, escutar, escutar ..... o que nunca fizemos,
porque estamos cheios demais da nossa verdade. Mesmo a instituição como tal deve sair da auto-
referêncialidade, do egocentrismo, do eurocentrismo. Não continuamos a escutar nós mesmos, as nossas
verdades eternas, as queixas dos párocos, que giram em torno de si mesmos em busca da prórpia identidade?
[Qual identidade? Aquela de mantidos pelo 8 por mil? Se os 5.237 bispos, 415.792 padres, 54.559 religiosos,
682.729 freiras, 3.264.768 catequistas, acolhessem um abandonado? Quem melhor do que eles nos revelaria
nossa identidade?] Por que não tentam sair com você nas periferias existenciais, onde sua identidade os espera?
Bela civilização cristã a nossa: povos/opulentos, povos/Lázaro. Liberdade para uns, opressão para outros. É um
delito ou um castigo ter nascido no sul e não no norte do planeta? Uma discriminação atribuível ao acaso ou a
situações históricas precisas? O norte carrega a bandeira do cristianismo para se espalhar pelo mundo como uma
boa notícia. Que boa notícia para 800 milhões de desnutridos? Quando mostraremos ao mundo um Cristo além
do culto, além do templo, além do proselitismo, porque "quem não é contra mim está comigo"? O filho do
Homem continua a repetir: quem perde a si mesmo, sua raça, sua verdade, sua doutrina, sua verdadeira
religião, seu único salvador, sua pátria, sua vida a salvará.
Cabe à sociedade civil a tarefa de ocupar-ser de hospitais, escolas, casas de repousos, etc. A nós compete
irmos ao Evangelho genuíno, biológico, para fazer aquilo que só nós podemos fazer: aplicar o evangelho
familiarmente, socialmente e políticamente. Precisaria escavar na vocação de Zeno, um civil sacerdote [assim o
qualifica o Núncio], que gera um povo novo, funda uma nova civilização. Cristo veio para inaugurar uma
religião ou uma civilização? A religião não é uma imposição, mas uma proposta [Si vis] para quem consegue
acreditar, a civilização é para todos. Zeno insiste: vamos mudar o rumo da história do relacionamento humano.
Francisco, não é hora da profecia, a hora de romper a placenta dos super/povos primeiro mundistas e fazer
nascer a era dos povos irmãos? Além da raça do parentesco e da cor da pele. Além da raça social do rico e do
pobre. Além da raça do benfeitor e do beneficiário. Além das leis do mercado. Além do delito das pátrias. Além
das religiões auto-referenciais. Além das culturas de Caim. Além da raça do norte e do sul. Além do egoísmo
coletivo, dos interesses de partes, das fronteiras, dos arsenais nucleares. Porque, além disso, nos encontraremos
todos homens, irmãos do Filho do Homem, filhos do mesmo Pai. Não mais vivendo para a maior glória de Deus
[para que serve isso?] mas para a gloria Dei, vivens homo, melhor: gloria Dei, viventes populi. O século 21
invoca um Concílio de todas as religiões para uma aliança universal sobre o homem. Para definir o juízo
universal como um único dogma: "Eu era um povo desnutrido, sedento de justiça, um escravo da monocultura,
de uma economia aleijada, etc., o que você fez por mim, povo saciado, branco e cristão?" O povo é sagrado,
seus direitos vêm antes dos partidos, das ideologias, das religiões, das pátrias. Uma nova ordem supra-nacional
codifique e sancione isso como uma lei universal.
Não temas, Francisco: os extremistas já te fizeram sofrer demais. Só falta te colocar na cruz. E tu, do alto
da dor do mundo, vai fazer a oração mais difícil que um homem pode fazer: "Pai, perdoa-lhes, não sabem o que
fazem". Não se trata de inimigos, mas de quem dirige contigo o barco de Pedro. No entanto, remam contra,
atiram flechas de dubia, te chamam de herege. É mais fácil perdoar os inimigos do que aqueles de casa, certo?
Mas você, ao menino que lhe pergunta: "O que você sente sendo o Papa?", responde ainda: "Ser Papa é muito
divertido".
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Carta do Fausto ao responsavel da Fazenda da Esperança

Querido Nélson;
de madrugada os jovens com os quais convivi na Fazenda da Esperança vem visitar minha alma.
Vejo o rosto deles, os chamo pelo nome, comemos no mesmo prato, compartilhamos dores e alegrias,
trabalhamos juntos, brincamos, saboreando o gosto de sermos irmãos. Impossível conhecer o Pai
se não atravez do PODER de sermos irmãos “nao pela carne, pelo sangue, pela vontade do homem,
porque de Deus nascemos”.
Mas aonde esta a maioria deles os Gilailsons, os Cavalcantes, os Adrianos, os Edilsons, os Juniors,
os Johns, os Nonatos, os Franciscos, etc.? Ontem estavam conosco, alegres na luta, fortes na sobriedade. E
hoje? De novo no túnel do vicio, da solidão, do desespero. Crucificados com suas próprias mãos na cruz
do individualismo. Ainda não descobrimos a dimensão social da fé. Nossa fé é egocêntrica,
individualista: Salva a TUA alma? Cadê a fé aplicada no social, transformadora de todas as realidades
humanas, não só do individuo? Passam e repassam na minha alma os rostos deles, escuto a voz deles:
“Porque nos abandonastes, caídos, recaídos? Tu também esta satisfeito com tua fé individualista? Procura
a salvação da tua alma mais do que das nossas?”. 
 Vocês estavam jogados num mar em tempestade, náufragos, enganados pelo mundão, reduzidos a
lixo, comendo lixo, viraram lixo. Um belo dia nós passamos perto de vocês numa balsa: pegamos vocês,
puxamos a bordo. Oferecemos um tempo de graça, de recuperação no santuário de Deus. No coração Dele
vocês acharam aquilo que procuravam na química, numa pedrinha, num pozinho, que dava a ilusão da
felicidade. Acolhemos vocês como irmãos numa especie de UTI. Descobrimos juntos os remédios da
terapia intensiva do coração e da alma: espiritualidade, convivência, trabalho. Uma caminhada na
academia do espirito, treinando o amor fraterno, a partilha da alma. Fizemos a experiência que se não vai
pelo amor, vai pela dor.  
 “Nós eramos infectados pelo desamor e vocês nos injetaram a vacina do Amor. E agora vocês
podem nos jogar de novo naquela sociedade que nos infeccionou?  Depois de um ano a gente voltou no
mundão. Será que estávamos preparados, equipados para enfrentar a luta numa sociedade selvagem aonde
triunfa a lei da floresta, o mais forte devora o fraco? Tentações, seduções, vaidades, ciumes, invejas,
orgulhos: nosso pão de cada dia. Não era algo além das nossas forças? Como sobreviver num mundo
aonde não achamos mais irmãos mas inimigos, exploração, engano, ganancia de ter e de poder, corrupção,
violência, etc.? Da UTI voltamos ao campo de batalha, à derrota nossa e... da fazenda? Nem conseguimos
nos recuperar por completo e já devíamos enfrentar a força todo poderosa do vicio, do mal que voltou nos
atacar feito mais forte. Como não cair de novo?
 Voltamos a engrossar as filas dos 185 milhões de usuários de entorpecentes para esquecer de
sermos miseráveis, inúteis, desprezados, lixo, etc. Será que não tinha um jeito diferente deste inferno
social estruturalmente constituído no egoismo? Se em lugar de voltar para o mundão alguém tivesse nos
oferecido uma realidade social alternativa, baseada nos princípios evangélicos vividos a nível social, de
forma livre e voluntaria? Será que a fazenda não tem condição de nos oferecer uma  comunidade
alternativa, evangélica aonde em lugar da exploração haja a partilha dos bens e dos meios de produção?
Voltar no mundão não significa voltar a ser cúmplices, corresponsáveis de todas as vitimas da sociedade?
Vale a pena relembrar que no mundo são nossos irmãos não números os 
- 165 milhões de filhos abandonados -  10 milhões de prostitutas
- 10 milhões de presos  - 185 milhões de usuários de crack
- 40 milhões de aidéticos - 100 milhões de sem teto
- 250 milhões de meninos trabalhadores - 20 milhões mortos de droga (nos últimos 10 anos)
- 10 milhões vitimas do terrorismo - 50 milhões de prófugos
-  200 milhões de favelados na América Latina - 50 milhões de escravos
- 800 milhões de desnutridos, etc.
 
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Não é Ele que clama por uma nova sociedade, por um mundo novo, a nova criação que Ele
prometeu? Para que Ele nos deu uma nova lei, um novo pão, uma nova terra e um novo céu? Será que  nos
falta ainda, como cristãos, descobrir a aplicação da fé a nível social, que se torne fermento capaz de
transformar todas as realidades da vida: trabalho, uso dos bens, família, sociedade, ecologia? Utopia
transformar o mundo? Mas utopista seria o Filho de Deus, inútil a cruz dele e de todas as vitimas da
historia? Ou somos incapazes de aplicar a fé, a força do “impossível ao homem”, mas “possível” para
quem acredita de ser filho de Deus? O que nos impede de fazer uma experiência, uma tentativa? Por
exemplo: seria impossível começar a implantar uma fazenda que seja uma proposta de vida alternativa,
um exemplo de vivencia social do evangelho, daquela palavra de vida que não pode ficar só no intimo do
coração mas deveria transformar todos os aspectos da vida humana? Será que no mundo do nosso Deus já
não tem alguma experiência desse tipo?
 E’ suficiente dizer que o mundo não presta, não é o lugar aonde viver segundo o evangelho, ficar
na critica negativa sem oferecer uma alternativa, uma sociedade fraterna? Me parece de ouvir a voz de
uma multidão: “Tu me salvastes da tempestade, do mar da solidão, do desespero e o que me ofereces
senão voltar para aquele mar de instintos desenfreados? Eu sei, que você me convida a ser missionário,
salvador de outros náufragos, mas para aonde vai a nossa balsa se não há o porto seguro de uma nova
sociedade? Não tenham medo de fazer milagres sociais. Precisamos de amor social, de justiça social: dar o
irmão ao irmão. Se amar sozinhos é muito bom, imagine amar juntos, nos tornar um amor de povo para
sermos imitadores de Cristo a nível social.
 Nélson, eu sei que tudo isso pode ser considerado utopia. Como foi para a gente antes de tocar com
as mãos a experiência de viver o evangelho como lei de vida social na comunidade de Nomadelfia. Hoje
eu sei que a sociedade nova tem um endereço, um telefone, uma fazenda com 50 famílias voluntarias. E’
impossível transmitir sentimentos e emoções que se vive nela por que é outro mundo. Imagina só um filho
abandonado que é entregue a uma mãe com as mesmas palavras de Cristo: “Mae, eis aqui teu filho; filho
eis aqui tua mãe”. E essa “resurreição” se repetiu na capela da comunidade mais de 5.000 vezes. O
objetivo de Nomadelfhia não é salvar abandonados, mas viver a vida de Cristo como povo, mostrar que é
possível viver um “Jesus social”, experienciado socialmente, isto é nas famílias, no trabalho, na comunhão
dos bens e dos meios de produção.
O importante não é que todos façam essa escolha, mas que haja esta chance para quem se sente
chamado a fazer esta experiência. Precisamos de sinais, de oração, de inspirações, mas vamos levar em
conta o clamor dos nossos recuperandos, os anseios deles, o sonho que esta no coração deles embora seja
ainda uma semente, uma faísca no inconsciente deles.
 
Obrigado pela sua paciência e atenção, fausto (Pacatuba 2016)
 
Da resenha de livros - Revista téologica “Il Regno” de Bolonha.

É um livro que talvez possa parecer excessivo pelos tons fortes; pertence ao gênero de escritos proféticos.
O autor declara já desde as primeiras linhas estar em dívida com o pensamento e escolhas de Don Zeno,
fundador, após a Segunda Guerra Mundial, da Comunidade de Nomadelfia. É a partir da experiência desta
pequena comunidade - visitada pelo Papa Francisco em 10 de maio passado -, formada por algumas famílias,
que tomou forma a reflexão desse escrito.
A linguagem de Marinetti, como a de Don Zeno, é aguda e se move contra o farisaísmo da Igreja e do
mundo ocidental. O texto é dirigido ao Papa Francisco, que colocou o tema da justiça social no centro de sua
pastoral. "Os anjos da bondade estão lá, mas os da justiça, onde estão?" - pergunta o autor -. A igreja e o mundo
ocidental unem-se aqui na mesma condenação: a nossa sociedade tem "uma alma ao colesterol" e é afetada por
"uma obesidade do espírito". Além disso, a economia, a política e a tecnologia desta parte do mundo produziram
um monstro: "consumismo criminoso".
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Como Don Zeno, o autor ocupa uma posição intransigente e não dá descontos àqueles que pensam em
colocar a consciência em ordem com a esmola e com a assistência pública, que mantêm o sistema de privilégios.
O valor planetário predoninante - ele sustenta - é o "egoísmo global", que está destruindo os laços de
solidariedade e promove a guerra de todos contra todos. Solicitar e pedir ajuda de indivíduos, a intervenção do
Estado ou de organizações internacionais para ajudar os mais infelizes é, portanto, uma hipocrisia coletiva, que
pretende escapar do único compromisso sério, o de criar uma comunidade que não precise de atos generosos.
Mais adiante, ele diz: "Eu sonho com um mundo sem benfeitores e beneficiários".
O estilo da argumentação permite ao autor desenvolver um discurso mais incisivo. Com sua dura
denúncia, ele expõe a falsa auto-imagem do nosso mundo e pretende pregar ao leitor cristão acima de tudo às
suas responsabilidades: «Estou cansado de fazer o bem porque tudo continua como antes. Este não é um tempo
de reformas, mas de revolução". No entanto, o autor não pretende se referir a ideologias violentas. De fato,
esclarece que o "amor social" deve ser praticado, como os textos sagrados insistentemente pedem. Hoje "quem
pede amor oferece o escorpião da assistência ..... Enquanto os pobres meninos aproveitam o dom dos pirulitos,
os benfeitores lambem suas almas com um Cristo místico ..... Esses cristãos estão se iludindo de serem bons e
passar o amor como justiça".
Por esta razão, o texto é um grito de denúncia contra os efeitos da política dos "povos patrões", que fazem
guerra aos "povos servos". Também vem da experiência do autor que conviveu com os últimos no Brasil, com
os quais compartilhou pobreza, marginalização e sofrimento. Podemos aceitar a condição de tantos "filhos
crucificados" que são deixados sozinhos e cooptados por gangues criminosas? O que dizer aos viciados em
drogas que dizem ter o inferno dentro de si? O que fazer para as mulheres forçadas da pobreza à prostituição?
Uma possível resposta às tragédias produzidas pelo sistema doninante de poder é aqui indicada na
Comunidade de Nomadelfia, onde se experimenta a possibilidade de compartilhar o trabalho sem hierarquias e
educar os membros para compartilhar os frutos de acordo com as necessidades de cada um. O autor está ciente
de que essa experiência de fraternidade é pequena demais para ser estendida a toda uma sociedade, mas pode ser
um ponto de partida para a Igreja que opera no mundo e, portanto, representa um polo crítico e proposital. Há
muitos aspectos do ensinamento do Papa Francisco que vão nessa direção. É por isso que Marinetti expressa sua
estima pelas tentativas do Papa de renovar a Igreja.
No entanto, o autor parece muito pessimista: ele está convencido de que o cristianismo corre o risco de
desaparecer em ''indiferença global", e que muitos católicos, tanto eclesiásticos como seculares, pouco
advertidos e animados pelas sagradas saudades, resistem aos esforços de reforma. É claro que a história da
Igreja não nos encoraja a esperar por sua auto-reforma. A linguagem se torna cada vez mais e mais contundente:
"Os homens da Igreja, quando se voltam para os fiéis, pretendem educá-los para se tornarem santos e esquecer
de fazê-los homens". Ou ainda: "As igrejas estão cheias de pagãos que vivem em uma placenta evangélica, e
para esses cristãos sempre há boas razões para não mudar nada". Quantos cristãos se esqueceram das palavras
de Jesus: "Eu venci o mundo?" Mais uma vez: "Devemos passar da família biológica para a de Deus". E, após
este convite, ele continua: "A palavra bíblica nos pergunta:" Caim, onde estão seus irmãos? "Há milhões de
pessoas que deixam sua terra natal em busca de irmãos". E quantas crianças estão procurando por seus pais?
Um livro, portanto, profético no sentido bíblico, em que o autor-profeta denuncia a transgressão do
mandamento de praticar a justiça. Os muitos acontecimentos dramáticos aqui relatados representam,
inesperadamente, os sinais de uma redescoberta daquela fraternidade aparentemente perdida. Se o texto carece
de análise social, econômica e política, a profecia capta inequivocamente as contradições de um certo estilo de
vida.
Giancarlo Azzano
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