um dos padres do deserto Tratado da Prática[a] 1 O Cristianismo é a doutrina do Cristo, nosso Salvador, que se compõe da prática, da física, e da teologia. 2 O reino dos céus é a impassibilidade da alma, acompanhada da verdadeira ciência dos seres. 3 O reino de Deus é a ciência da Santa Trindade, coextensiva com a substância do intelecto e ultrapassando sua incorruptibi- lidade. 4 Aquele que ama alguém, obrigatoriamente também o procura, e, aquele que o procura, luta também para obtê-lo; e se todo prazer começa pelo desejo, o desejo, ele, nasce da sensação, pois o que não faz parte da sensação é exempto também de paixão. 5 Contra os anacoretas, os demônios combatem sem armas; mas, contra aqueles que se exercitam na virtude nos monastérios ou nas comunidades, eles armam os mais negligentes dentre os irmãos. Ora, esta segunda guerra é muito menos pesada que a primeira, porque não é possível achar sobre a terra homens mais rancorosos que os demônios, ou que possam assumir, por vezes, todas suas malfeitorias. 6 Oito são todos os pensamentos genéricos que compreendem todos os pensamentos: o primeiro é o da gula, depois vem o da fornicação, o terceiro compreende todos os pensamentos é o da avareza, o quarto é o da tristeza, o quinto o da cólera, o sexto da acedia, o sétimo da vanglória, o oitavo do orgulho. Que todos esses pensamentos perturbam a alma ou não a perturbam, isso não depende de nós; mas, que eles acionam as paixões ou não as acionam, isto sim depende de nós. 7 O pensamento da gula sugere ao monge o fracasso rápido de sua ascese; ela lhe representa seu estômago, seu fígado, seu baço, a hidropsia, uma longa doença, a falta do necessário, e a ausência de médico. Frequentemente também ela lhe faz se lembrar de certos irmãos que caíram nesses males. Algumas [a] Tradução de Antonio Carneiro acompanhada de notas do tradutor. vezes incita esses doentes eles-mesmos à se voltarem para aqueles que vivem na abstinência e a lhes contar suas infelici- dades, pretendendo que eles se tornem tais quais por causa da ascese. 8 O demônio da fornicação compele à desejar corpos variados; ataca violentamente os que vivem na abstinência, para que ces- sem, persuadidos que não chegarão à nada; e, maculando a alma, os incita para atos vergonhosos, lhe faz dizer certas palavras e escutá-las em resposta, tudo como se o objeto fosse visível e presente. 9 A avareza sugere uma longa velhice, a impotência das mãos para o trabalho, as fomes que se produzirão, as doenças que surgirão, as amarguras da pobreza, e que vergonha tem para re- ceber dos outros o que se tem necessidade. 10 A tristeza surge às vezes pela frustração dos desejos, às vezes também é uma consequência da cólera. Quando é pela frustração dos desejos, surge assim: certos pensamentos, aparecendo-lhes à frente, levam a alma à se lembrar do lar, dos pais, e da existência de outrora. E quando veem que, longe de resistir, a alma se põe à segui-los, e que dilata-se interiormente nos prazeres, então apoderam-se dela e a mergulham na tristeza, lhe relembrando que as coisas de outrora não existem mais e não podem mais existir, a partir em diante, por causa da sua vida que é agora; e a infeliz alma, quanto mais tinha se dilatado com os primeiros pensamentos, se abateu e se humilhou mais ainda com os segundos. 11 A cólera é uma paixão muito repentina. Diz-se, com efeito, que é uma efervescência da parte irascível e um movimento contra aquele que fez uma falta ou pareceu ter feito uma.Ela torna a alma furiosa ao longo de todo o dia, mas, é sobretudo durante as orações que ela se prende ao intelecto, lhe apresen- tando o rosto daquele que o magoou. Às vezes mesmo, quando ela permanece e se transforma em ressentimento, provoca, à noite, agitações, com desfalecimento do corpo, palidez, assalto por animais venenosos. Essas quatro manifestações, que são continuação do ressentimento, pode-se encontrá-las acompa- nhando numerosos pensamentos. 12 O demônio da acedia, que é também chamado “demônio do meio-dia” (vide akedia; daimonion), é o mais pesado de todos; ataca o monge cerca da quarta hora e assedia sua alma até a oi- tava hora. De início, faz que o sol pareça lento para se mover, ou imóvel, e que o dia pareça ter cinquenta horas. Em seguida, força a manter os olhos continuamente fixos na janela, à saltar fora de sua célula, à observar o sol para ver se está longe da nona hora, e a olhar aqui, acolá se algum dos irmãos... Além disso, lhe inspira aversão ao lugar onde está, pelo seu próprio estado de vida, pelo trabalho manual, e, mais ainda, a ideia que a caridade desapareceu entre os irmãos, que não tem ninguém para consolá-lo. E se encontra alguém que, naqueles dias, tenha magoado o monge, o demônio se serve também daquilo para fazer crescer sua aversão. Leva-o então à desejar outros lugares, onde poderá achar facilmente então aquilo que tem necessidade, e exercer um ofício menos penoso e que traga vantagem; acrescenta que agradar ao Senhor não é uma questão de lugar: por todos os lados, com efeito, diz, a divindade pode ser adorada. Junta à isso a lembrança de seus próximos e de sua existência de outrora, lhe apresenta o quão longa é a vida, colocando diante seus olhos as fadigas da ascese; e, como se diz, carrega todas suas baterias contra o monge para que abandone a célula e fuja deste estado. Este demônio não é seguido imediatamente por nenhum outro: um estado sossegado e uma alegria inefável sucedem na alma após a luta. 13 O pensamento da vanglória é um pensamento muito sutil que se dissimula facilmente entre os virtuosos, desejando publicar suas lutas e perseguindo a glória que vem dos homens. Ele lhe faz imaginar demônios dando gritos, mulheres curadas, uma multidão que toca seu manto; ele lhe prediz até que estará pronto à partir de agora, e faz surgir à sua porta pessoas que vem lhe procurar: e se não quiser, encaminhá-lo-á atado. Tendo feito se exaltar dessa forma pelas vãs esperanças, ele alça vôo e o abandona às tentações seja do demônio do orgulho, seja daquele da tristeza, que introduz nele outros pensamentos, contrários à essas esperanças. Às vezes até o entrega ao demônio da fornicação, ele que, um instante antes, era um santo padre, que se encaminhava atado! 14 O demônio do orgulho é aquele que conduz a alma para a queda a mais grave. Ele lhe incita, com efeito, à não reconhecer a ajuda de Deus, mas à crer que ela é por si-mesma a causa das boas ações, e à olhar de alto os irmãos considerando-los todos como ininteligentes porque ignoram isso a seu respeito. Vem em sua sequência a cólera, a tristeza e, o que é o último dos males, o extravio do espírito, a loucura, a visão de uma multidão de demônios no ar. 15 Quando o intelecto vagabundeia, a leitura, a vigília e a oração o fixam; quando a concupiscência fica inflamada, a fome, a pena e a anacorese (vide anachoresis) a apagam, quando a parte irascível fica agitada, a salmodia, a paciência e a misericórdia a acalmam. E isto, cumpre ao momento e na medida que convém; pois o que é imoderado e inoportuno dura pouco, e o que dura pouco é mais nocivo que útil. 16 Quando nossa alma cobiça alimentação variada, que reduza então sua ração de pão e água, a fim de ser grato até por um simples bocado. Pois a saciedade deseja alimentos de todos os tipos, enquanto que a fome considera a saciedade do pão como beatitude. 17 O uso moderado da água contribui muito à continência. Cre- ram nisso os trezentos israelitas que, com Gedeão, se tornaram mestres de Madian. 18 Que a vida e a morte cheguem juntas para o mesmo homem, pode-se admitir isso: paralelamente é impossível que a caridade coexista entre qualquer um com riquezas. Pois a caridade é destrutiva não somente de riquezas, mas também de nossa pró- pria vida transitória. 19 Aquele que foge de todos os prazeres do mundo é uma cida- dela inacessível ao demônio da tristeza. A tristeza, com efeito, é a frustração de um prazer, presente ou esperado; e é impossível rechaçar este inimigo, se tivermos um apego apaixonado para este ou aquele bens terrestres; pois ele joga sua rede e produz a tristeza, aí onde vê que vai exatamente nossa inclinação. 20 Se a cólera e o ódio fazem crescer a irascibilidade, a com- paixão e a doçura diminuem até a que existe. 21 “Que o sol não se ponha sobre nossa irritação”, com medo que os demônios, surgindo a noite, apavorem a alma, e tornem o intelecto covarde para o combate, até o amanhecer. Com efeito, as visões assustadoras nascem da pertubação da parte irascível, e nada leva mais o intelecto à desertar como a parte irascível quando está perturbada. 22 Quando, tendo agarrado um pretexto, a parte irascível de nossa alma fica profundamente perturbada, naquele momento, os demônios nos sugerem que a anacorese é bela, para nos impedir de por fim ao que tinha causado nossa tristeza, e para nos livrar assim de nossa pertubação. Mas, quando a parte concupiscível fica violentamente acalorada, então, ao contrário, trabalham para nos tornar sociável, nos chamando de duros e selvagens a fim de que, desejando os corpos, tenhamos comércio com os corpos. Não é preciso lhes obedecer, mas, mais que tudo fazer o inverso. 23 Não te abandones ao pensamento da cólera, a combater inte- riormente aquele te magoou, nem àquele (pensamento) da for- nicação, a imaginar continuamente o prazer.Por um lado, a alma é obscurecida, por outro, é convidada a abraçar sua paixão; nos dois casos, teu intelecto é maculado; e, como, no momento da oração, tu te apresentas com tais imagens e não oferece pura tua prece à Deus, tu te deparas logo com o demônio da acedia, que salta precisamente sobre tais disposições e despedaça a alma, como um cão faz com uma jovem corça/um jovem cervo. 24 A natureza da parte irascível, é de combater os demônios e de lutar em vista do prazer, qualquer que seja. Também os anjos nos sugerem o prazer espiritual e a beatitude que lhe segue, para nos exortar à voltar nossa irascibilidade contra os demônios. Estes, por sua vez, nos arrasta rumo às cobiças do mundo e obrigam a parte irascível, indo contra sua natureza, à combater os homens, isto, porque o intelecto ficou obscurecido e decaiu da ciência, se tornando traidor das virtudes. 25 Resguarda-te de nunca fazer um dos irmãos partir, por tê-lo irritado, pois tu não escaparás, na tua vida, do demônio da tris- teza, que será sempre para ti um obstáculo na hora das orações. 26 Os presentes sossegam o rancor: creio em Jacó que, pelos dons, lisonjeou Esaú que caminhou ao seu encontro com qua- trocentos homens. Mas, nós que somos pobres, supliquemos à nossa indigência pela mesa. 27 Quando nos defrontamos com o demônio da acedia, então, em lágrimas, dividimos nossa alma em duas partes: uma que consola e outra que é consolada, e, semeamos em nós boas es- peranças, pronunciamos com santo Davi esta encantação: “Porque estás triste, oh minha alma, e porque me perturbas ? Confie em Deus, pois eu o louvarei, ele a salvação de minha face e meu Deus.” 28 Não é necessário desertar da célula na hora das tentações, se plausível forem os pretextos que se forja; mas; é preciso ficar sentado no interior, ser perseverante, e acolher valentemente os assaltantes, todos, mas, sobretudo o demônio da acedia que, por ser o mais pesado de todos, se dirige a alma afetada no mais alto ponto, pois fugir de tais lutas e as evitar, isto ensina ao intelecto a ser inábil, covarde e fujão. 29 Eis aqui o que dizia nosso mestre santo e muito prático: “É preciso que o monge esteja sempre pronto, como se fosse morrer na manhã seguinte, e, inversamente, que use seu corpo como se fosse viver com ele por numerosos anos. Isto, com efeito, dizia, por um lado, retira os pensamentos da acedia e torna o monge mais zeloso, por outro (lado),conserva seu corpo com boa saúde, e mantêm sempre igual sua abstinência.” 30 É difícil de escapar do pensamento da vanglória, pois isso mesmo que fazes para te livrar disso torna-se para ti uma nova fonte de vanglória. Os demônios não são sempre os que se opõem a nossos pensamentos retos/direitos, mas, às vezes tam- bém são os vícios pelos quais somos afetados. 31 Notei que o demônio da vanglória é expulso por quase todos os demônios, e que, quando caem aqueles que o expulsam. se aproxima descaradamente, e expõe aos olhos do monge a gran- deza de suas virtudes. 32 Aquele que atingiu a ciência, e que colheu o prazer que a procura, não se deixará mais se convencer pelo demônio da vanglória, que lhe propôs todos os prazeres do mundo. Com efeito, o que se poderia permitir que fosse maior que a contem- plação espiritual ? Mas, tanto quanto não provamos da ciência, exerçamo-nos ardentemente à prática, mostrando à Deus que nosso objetivo é fazer tudo em vista da ciência. 33 Lembra-te de tua vida de outrora, e tuas antigas faltas, como eras sujeito às paixões, tu que, pela misericórdia do Cristo, che- gastes à impassibilidade, como também ao mundo, do qual sa- ístes, te havia infligido numerosas e frequentes humilhações. Reflita ainda sobre isso: quem é que te protege no deserto? Quem afasta os demônios que arreganham os dentes contra ti? Tais pensamentos, com efeito, engendram a humildade e fecham a porta ao demônio do orgulho. 34 Se temos uma coisa das lembranças passadas, é que recebe- mos anteriormente esses objetos com paixão, e, inversamente, todos os objetos que recebemos com paixão, teremos também lembranças apaixonadas.É porque aquele que venceu os demô- nios operando ativamente faz pouco caso do que é realizado por eles. Pois mais difícil que a guerra material é a imaterial. 35 As paixões da alma puxam o homem para suas origens, aquelas do corpo, do corpo. E as paixões do corpo são retiradas pela abstinência, as da alma pelo amor espiritual. 36 Aqueles que presidem às paixões da alma persistem até à morte, os que presidem àquelas do corpo se retiram mais rapi- damente. Então, por outro lado, que os outros demônios, pare- cidos com o sol do levante ou do poente, não atingem senão uma parte da alma, o demônio do meio-dia, ele, costuma envolver a alma toda inteira e abafar o intelecto. Também a anacorese é doce após a eliminação das paixões: então só se tem lembranças puras, e a luta não dispõe mais, a partir de agora, o monge ao combate, mas à contemplação dela mesma. 37 É a representação que provoca as paixões, ou as paixões que provocam a representação? Isto pede reflexão. Alguns certa- mente são pela primeira opinião, alguns pela segunda. 38 É pelas sensações que as paixões são naturalmente provoca- das; e se a caridade e a abstinência são apresentadas, elas não serão provocadas; mas, na ausência delas, elas serão. Ora a parte irascível tem necessidade de mais remédios que a concupis- cência; é porque a caridade é considerada “grande”, pois ela é o freio da parte irascível; é ela também que Moisés, esse grande santo, em seu tratado sobre a natureza, nomeou-a simbolica- mente “ofiomaca”[b] 39 Ao mau odor que reina entre os demônios, a alma tem o cos- tume de se inflamar contra os pensamentos, assim que percebe sua aproximação, por estar afetada pela paixão daquele que a atormenta. 40 Não é possível de se conformar em qualquer circunstância com a regra habitual, mas, é preciso consideração com as cir- cunstâncias, e se esforçar em cumprir de sua melhor maneira os mandamentos então praticáveis. Essas circunstâncias, com efei- to, não escapam também dos demônios. Também eles se enfra- quecem contra nós para nos desviar daquilo que pode ser feito, e nos obriga à executar o que não pode ser feito. É assim que eles [b] “ophiomaque” (fr.) vem de ophio – do grego antigo (ofis) “serpente” e – maque do grego antigo (makhê) “combate”: que combate serpentes, que destrói serpentes. Não foi encontrada palavra equivalente em português foi usada provisoriamente a palavra “ofiomaca”. impedem os doentes de agradecerem pelos seus sofrimentos, e de suportar pacientemente aqueles que o servem; por outro lado, eles exortam, se bem que estejam enfraquecidos, à praticar a abstinência, e, todos pesados como estão, à salmodiar de pé. 41 Quando nós somos obrigados a pernoitar algum tempo nas cidades ou nas vilas, então, sobretudo agarremos fortemente à abstinência ao frequentar os seculares, com medo que nosso in- telecto, opacado e privado de sua vigilância habitual, pelo fato da circunstância presente, agisse contra sua vontade e tornasse um fugitivo, atingido pelos golpes do demônio. 42 Quando és tentado, não rezes antes de abraçar aquele que colérico dirigiste algumas palavras. Com efeito, tua alma está afetada pelos pensamentos, daí que a oração, ela também, não está pura. Mas, se tu lhe diz alguma coisa com cólera, confunde e faz desaparecer as representações sugeridas pelos adversários. Pois, tal é o efeito natural da cólera, mesmo quando se trata de boas representações. 43 É preciso aprender à conhecer as diferenças existentes entre os demônios e a notar as circunstâncias de suas vindas; conhe- cemos segundo os pensamentos - e os pensamentos, nós os co- nhecemos segundo os objetos - alguns entre os demônios surgem raramente e são mais pesados, outros são assíduos e mais ligeiros, e certos são os que assaltam de um só golpe e arrastam o intelecto para a blasfêmia. Isto, é necessário saber, para que, no momento quando os pensamentos começam à acionar o que constitui sua matéria e antes que sejamos expulsos para bem longe do estado que é o nosso, pronunciemos algumas palavras em sua direção, e denunciemos aquele que está lá. Desta maneira, progrediremos facilmente com a ajuda de Deus; quanto à eles, nós os faremos se elevar, repletos de admiração por nós e consternados. 44 Quando, nas lutas contra os monges, os demônios são impo- tentes, eles então se afastam um pouco, para observar qual vir- tude é negligenciada durante este período, e é por aí que, de re- pente, fazem sua aparição para despedaçar a infeliz alma. 45 Os demônios perversos fazem vir em sua ajuda os demônios mais perversos que eles, e, se eles se opõem uns contra os outros por suas disposições, concordam em uma única coisa , a perda da alma. 46 Não nos deixemos perturbar pelo demônio que arrasta o in- telecto para blasfemar contra Deus e à imaginar estas coisas proibidas que não ouso sequer confiar à escritura; não o deixe- mos também quebrar nosso impulso. Pois o Senhor é “aquele que conhece os cursos” e sabe que desde quando estamos no mundo não conhecemos nunca semelhante loucura. Este demô- nio tem por objetivo nos desviar da oração, que cessemos de nos dirigir diante do Senhor nosso Deus e que não ousemos mais estender as mãos em direção àquele contra quem nos fez conceber semelhantes pensamentos. 47 As afeições da alma tem como sinal seja uma palavra profe- rida, seja um movimento do corpo, pelo qual os inimigos per- cebem se estamos com nossos pensamentos e os alimentamos no nosso seio, ou bem, se estamos rejeitados por nos preocuparmos com nossa salvação. Pois só Deus, quem nos fez, conhece nosso intelecto, e não tem necessidade, Ele, de sinais para conhecer o que está escondido no interior. 48 Com os seculares os demônios lutam utilizando de preferên- cia os objetos. Mas, com os monges, é mais frequente usar os pensamentos; os objetos, com efeito, lhes fazem falta por causa da solidão. E tanto é mais fácil pecar interiormente quanto por ação, tanto a guerra interior é mais difícil quanto aquela que se faz pelos objetos. Pois o intelecto é uma coisa que à vontade se move , e sem estar a vontade se detém com sobre uma encosta de imaginações proibidas. 49 Não nos foi prescrito trabalhar, velar e jejuar constantemente, enquanto que “rezar sem parar” é uma lei para nós. Essas coisas, com efeito, que curam a parte apaixonada da alma, também tem necessidade de nosso corpo para serem executadas, e esse último, por causa da fraqueza que lhe é própria, não estará sujeito a tais fatigas; pois a oração fortifica e purifica o intelecto em vista da luta, porque é naturalmente feita para orar, mesmo sem esse corpo, e para combater os demônios em favor de todos os poderes da alma. 50 Se um monge quer conhecer pela experiência os cruéis de- mônios e se familiarizar com sua arte, que observe os pensa- mentos, que note suas tensões, seus relaxamentos, seus entrela- çamentos, seus momentos, quais demônios fazem isso ou aquilo, qual demônio faz seguir a tal outro demônio e qual o que não segue tal outro; e que se informe junto ao Cristo as razões dessas coisas. Com efeito, não podem suportar aqueles que se consagram com ciência à prática, desejosos que estão por “golpear a sombra aqueles que tem o caminho reto”. 51 Pela observação descobrirás que, entre os demônios, dois estão muito prontos e ultrapassam quase o movimento de nosso intelecto: o demônio da fornicação, e aquele que nos arrasta para blasfemar contra Deus. Mas, o segundo se demora pouco, e o primeiro, se os pensamentos que ele desencadeia não estiverem acompanhados de paixão, não será para nós um impedimento para a ciência de Deus. 52 Separar o corpo da alma não pertence senão Àquele que os uniu; mas, separar a alma do corpo, isto pertence também àquele que nos dirigiu para a virtude. Nossos Padres, com efeito, nomeiam anacorese o exercício da morte e a fuga do corpo. 53 Aqueles que estão no erro de alimentar demasiado suas car- nes e que, “tomando cuidado dela, excitam seus desejos”, que se engordam eles-mesmos e não por ela. Mas, conhecem a graça do Criador, aqueles que, por meio desse corpo, obtiveram a impassibilidade da alma e percebem de uma certa forma a con- templação dos seres. 54 Quando nas imaginações do sono, o demônio, atacando à parte concupiscível, fazem-nos ver reuniões de amigos, ban- quetes, parentes, coros de mulheres e todos outros espetáculos do mesmo gênero geradores de prazer, e que acolhemos essas imagens com avidez, é que nesta parte estamos doentes e que a paixão aí é forte. Quando, por outro lado, perturbam a parte irascível, nos forçando seguir caminhos escarpados, fazendo surgir homens armados, bestas venenosas ou carnívoras, e que ficamos aterrorizados diante esses caminhos, e que, perseguidos por estas bestas e por esses homens, fugimos, então, tomemos cuidado com a parte irascível, e, invocando o Cristo nas vigílias, tenhamos acesso aos remédios nomeados. 55 Se eles não vem acompanhados de imagens, os movimentos naturais do corpo durante o sono significam que a alma está até certo ponto em boa saúde; mas, se formam imagens, é indício de má saúde. Se trata-se de imagens indefinidas, considero que aí é sinal de uma paixão antiga; se estão definidos, é que a ferida é recente. 56 As provas de impassibilidade, nós as reconhecemos, de dia, nos pensamentos, e, de noite, nos sonhos. E diremos que, se a impassibilidade é a saúde da alma, seu alimento é a ciência, a única que tem por hábito nos unir aos santos poderes, uma vez que a união com os incorpóreos resulta naturalmente de uma disposição semelhante. 57 Existem dois estados sossegados da alma: um provém das sementes naturais, o outro resulta da retirada dos demônios. O primeiro é acompanhado de humildade e de compulsão, de lá- grimas, de um desejo infinito de Deus, e de um zelo sem medi- das para o trabalho; o segundo, a vanglória, acompanhada do orgulho, utiliza o desaparecimento dos outros demônios para arrastar o monge à sua perda. Aquele então que observa os li- mites do primeiro estado reconhecerá rapidamente as incursões dos demônios. 58 O demônio da vanglória se opõe ao demônio da fornicação, e não se pode admitir que todos dois maculem a alma ao mesmo tempo, pois um promete as honras, o outro conduz à desonra. Se então um dos dois se aproxima e aperta de perto, produz então em ti os pensamentos do demônio adverso e se tu pôde, como se diz, expulsar um prego por outro, saiba que estás próximo das fronteiras da impassibilidade. Pois teu intelecto teve força para destruir pelos pensamentos humanos os pensamentos do demônio. Mas, repelir pela humildade o pensamento da vanglória, ou pela continência aquele da fornicação, seria a prova de uma impassibilidade muito profunda. Tentes aplicar também este método contra todos os demônios que se opõem uns aos outros, pois com o mesmo golpe saberás a qual paixão estás mais afetado. Entretanto, tanto quanto possas, procures obter de Deus que te afaste os inimigos da segunda maneira. 59 (Quanto) mais a alma progride, mais fortes são os antago- nistas que se sucedem contra ela. Pois, não creio que esses sejam sempre os mesmos demônios que se mantêm junto dela. Isto, o sabem melhor que ninguém aqueles que percebem as tentações de uma maneira mais penetrante, e que veem a impassibilidade que adquiriram sacudidas pelos assaltos sucessivos. 60 A impassibilidade perfeita sobrevém na alma após a vitória sobre todos os demônios que se opõem à prática; a impassibili- dade imperfeita se diz relativamente ao poder do demônio que luta ainda contra ela. 61 O intelecto não poderá avançar, nem acompanhar esta bela emigração e chegar na região dos incorpóreos, se não tiver cor- rigido o interior. Pois a agitação doméstica o faz habitualmente voltar para (o ponto) o qual já tinha saído. 62 As virtudes tanto quanto os vícios tornam cego o intelecto: aquelas, porque não veem os vícios, estas por sua vez, porque não veem as virtudes. 63 Quando o intelecto começa a rezar sem distração, então todo combate se entrega, dia e noite, à volta da parte irascível da alma. 64 É uma prova de impassibilidade, que o intelecto tenha co- meçado a ver sua própria luz, que permaneça calmo diante das visões do sono, e que olhe os objetos com serenidade. 65 O intelecto tem toda sua força quando não imagina nenhuma das coisas desse mundo no momento da oração. 66 O intelecto que, com ajuda de Deus, levou bem a prática e que se aproximou da ciência não sente quase mais nada, ou até mesmo absolutamente nada, a parte irracional da alma, pois a ciência o encanta nas alturas e o separa das coisas sensíveis. 67 A alma que possui a impassibilidade, não é aquela que não prova nenhuma paixão diante dos objetos, mas, aquela que per- manece imperturbável também diante das lembranças. 68 O perfeito não pratica abstinência nem o impassível a perse- verança, já que a perseverança é o feito daquele que está sujeito às paixões, e a abstinência o feito daquele que está atormentado. 69 É uma grande coisa orar sem distração, mas mas é uma maior salmodiar também sem distração. 70 Aquele que estabeleceu em si-mesmo as virtudes e que está inteiramente misturado à elas não se lembra mais da lei, dos mandamentos ou do castigo, mas diz e faz tudo o que lhe dita o excelente estado. 71 Os cantos demoníacos acionam nossa concupiscência e lan- çam a alma para imaginações vergonhosas; mas, “os salmos, os hinos e os cantos espirituais” convidam o intelecto a lembrar constantemente da virtude, refrescando nossa irascibilidade fervente e apagando nossos desejos. 72 Se o fato dos lutadores ser abraçado e abraçar em contrapar- tida, e, se os demônios lutam contra nós, então, eles que nos abraçam, são em contrapartida abraçados por nós.“Eu os abra- çarei, disse, e eles não poderão se levantar.” E ainda: “Aqueles que me abraçam e são meus inimigos, ei-los aqui que, por sua vez, serão enfraquecidos e derrubados.” 73 O repouso está ligado à sabedoria, mas, a dificuldade está à prudência. Pois, não é possível adquirir a sabedoria sem com- bate, e não é possível ter sucesso o combate sem prudência. Esta, com efeito, tem por função se opor à irascibilidade dos demônios, forçando os poderes da alma à agir segundo a natu- reza e preparando a via da sabedoria. 74 A tentação do monge, é um pensamento que sobe através da parte apaixonada da alma e o intelecto obscurecido. 75 O pecado do monge, é o consentimento ao prazer proibido que propõe o pensamento. 76 Os anjos se jubilam quando o mal diminui, os demônios quando diminui a virtude. Uns, com efeito, estão ao serviço da misericórdia e da caridade, outros estão subjugados pela cólera e pelo ódio. E, os primeiros, quando vem junto à nós, nos preenche de contemplação espiritual, os segundos, quando se aproximam, lançam a alma para imaginações vergonhosas. 77 As virtudes não fazem cessar os assaltos dos demônios, mas elas nos guardam indenes. 78 A prática é o método espiritual que purifica a parte apaixo- nada da alma. 79 A ação dos mandamentos não basta para curar perfeitamente os poderes da alma, se as contemplações que correspondem à isso não se sucederem no intelecto. 80 Não é possível se opor à todos os pensamentos que nos são inspirados pelos anjos, mas, todos os pensamentos inspirados pelos demônios, é possível repeli-los. Os primeiros pensamentos são seguidos de um estado sossegado, os segundos de um estado perturbado. 81 A caridade é filha da impassibilidade; a impassibilidade é a flor da prática; a prática repousa sobre a observância dos man- damentos; estes tem por guardião o temor a Deus, o qual é um produto da fé reta; e a fé é um bem imanente, ela que existe na- turalmente mesmo entre aqueles que não creem ainda em Deus. 82 Assim como a alma, agindo por intermédio do corpo, percebe os membros que estão doentes, assim também o intelecto, exercendo sua atividade própria, aprende a conhecer seus pode- res, por essa que lhe trava, descobre o comando capaz de a curar. 83 O intelecto, de tanto que faz a guerra contra as paixões, não contemplará as razões da guerra, pois se parece com aquele que combate à noite, mas, quando terá adquirido a impassibilidade, reconhecerá facilmente as manobras do inimigo. 84 O termo da prática, é a caridade, o da ciência, a teologia, o começo de uma é a fé, da outra a contemplação natural. Aqueles demônios que se prendem à parte apaixonada da alma dizem se opor à prática; quanto àqueles que assediam a parte racional, os nomeiam inimigos de toda verdade e adversários da contemplação. 85 Nada daquilo que purifica os corpos fica com eles após terem sido purificados, mas, as virtudes toda em conjunto purifica a alma e permanece junta após sua purificação. 86 A alma racional age segundo a natureza quando sua parte concupiscível tende à virtude, quando sua parte irascível luta por ela, e que sua parte racional percebe a contemplação dos seres. 87 Aquele que progride na prática diminui suas paixões, aquele que progride na contemplação diminui sua ignorância. Ora, as paixões, um dia serão destruídas por completo, mas, no que concerne a ignorância, é uma, diz-se, que tem um termo, uma outra que não tem. 88 As coisas que, segundo seu uso, são boas ou más são produ- toras de virtudes ou de vícios. Pertencem então à prudência de fazer uso delas em vista de um desses dois fins. 89 Sendo considerado que a alma é tripartida, segundo nosso sábio mestre, quando a virtude está na parte racional se chama prudência, inteligência e sabedoria; quando está na parte con- cupiscível. se chama continência, caridade e abstinência; quando está na irascível, coragem e perseverança; e na alma inteira, justiça. O papel da prudência é de dirigir as operações contra os poderes adversos, protegendo as virtudes, fazendo fronte contra os vícios, regulando o que é neutro segundo as circunstâncias; aquele da inteligência é de organizar harmoniosamente tudo o que contribui para nos fazer atingir nosso objetivo; aquele da sabedoria é de contemplar as razões dos corpos e dos incorpó- reos. O papel da continência é de olhar de maneira impassível os objetos que acionam em nós imaginações contrárias à razão; aquele da caridade é de se comportar com respeito à toda ima- gem de Deus mais ou menos da mesma maneira que com res- peito ao Modelo, mesmo se os demônios procurarem maculá-la; aquele da abstinência é de rejeitar com alegria todos os prazeres da boca; não temer os inimigos e manter-se firme, valentemente, diante dos perigos, são os feitos da perseverança e da coragem. Quanto à justiça, seu papel é o de realizar uma espécie de acordo e de harmonia entre as partes e a alma. 90 O fruto da semeadura, são os molhos, aqueles das virtudes, a ciência; e como as semeaduras são acompanhadas de lágrimas, assim os molhos o são para a alegria. 91 É preciso também interrogar as vias dos monges que nos precederam no bem e nos regularmos baseados nelas. Pois, pode-se achar muitas coisas belas ditas ou feitas por eles; entre outras esta, que diz um deles: “um regime muito seco e regular junto à caridade conduz rapidamente o monge ao porto da im- passibilidade. O mesmo libera de suas visões um irmão que es- tava perturbado à noite, lhe prescrevendo para isso juntar ao je- jum o serviço dos doentes. Pois, não há nada como a misericór- dia, dizia quando o interrogavam, para apagar as paixões deste tipo.» 92 Um dos sábios de então veio encontrar o justo Antonio e lhe diz: “Como podes se manter, oh Padre, privado que estás da consolação dos livros ?” Este lhe respondeu: “Meu livro, oh filósofo, é a natureza dos seres, e aí está quando quero ler as palavras de Deus.” 93 “O vaso de eleição” que era o ancião egípcio Macário me perguntou: “Como se faz quando provando do rancor em relação aos homens fazemos desaparecer de nossa alma a faculdade da lembrança, enquanto que provando o em relação aos demônios permanecemos indenes ?” Como estava embaraçado para lhe responder e que pedia para saber a razão: “É, disse ele, porque no primeiro caso se vai contra a natureza da parte irascível, enquanto que no segundo se utiliza dela segundo sua natureza.” 94 Ia visitar, em pleno meio-dia, o santo Padre Macário e, ar- dendo em sêde, pedi para beber água.“Contenta-te com a sombra, disse, pois muitos que permanecem caminhando ou navegando não tem sequer isso.” Em seguida, como discursava diante dele sobre a abstinência: “Coragem, meu filho! disse. Durante vinte anos inteiros, não tive a contento nem pão, nem água, nem sono. Com efeito, pesava o pão que comia, media a água que bebia, e, me apoiava contra a parede, e tirava um tiquinho de sono.” 95 Fizeram saber à um monge a morte de seu pai; disse àquele que lhe anunciou: “Deixe de blasfemar, meu Pai é imortal.” 96 Um irmão perguntou à um dos anciões se lhe permitia comer com sua mãe e suas irmãs quando fosse na casa dele. Mas, ele: “Tu não comerás com uma mulher”, disse. 97 Um irmão possuía somente um Evangelho; tendo vendido, deu o recebido para alimentar os famintos, proferindo esta me- morável palavra: “Vendi, disse, o livro onde mesmo me dizia: ‘Vendes o que possuis e o recebido dê aos pobres.’” 98 Existe nos arredores de Alexandria uma ilha situada na parte setentrional do lago chamada Maria; lá habita um monge, o mais provado pelo exército de gnósticos, que declarou que tudo o que fazem os monges é feito por cinco causas: Deus, a natureza, o costume, a necessidade, os trabalhos manuais. O mesmo disse ainda que a virtude, pela natureza, é uma, mas que toma uma forma específica em cada um dos poderes da alma; “com efeito, a luz solar, sendo toda sem forma, dizia, toma naturalmente a forma das janelas pelas quais entra”. 99 Um outro ainda no meio dos monges disse: “Se retiro os prazeres, é para remover todo pretexto para a parte irascível. Sei, com efeito, que esta combate sempre em vista dos prazeres, ela perturba meu intelecto, e expulsa a ciência.” Um dos Anciões dizia que a caridade não sabe guardar reserva de víveres e de dinheiro. O mesmo dizia também: “Que eu saiba nunca fui enganado duas vezes pelo demônio sobre o mesmo assunto.” 100 Não é possível amar igualmente todos os irmãos, mas, é possível agir com impassibilidade nas relações com todos, es- tando isentos de rancor e ódio. Os padres, é necessário amá-los após o Senhor, eles que nos purificam pelos santos mistérios e que oram por nós. Quanto aos nossos Antigos, é preciso honrá- los como anjos: são eles, com efeito, que nos cuidam nos com- bates e curam as mordidas das feras selvagens.
EPÍLOGO
Eis aí o que tinha à te dizer, no momento, sobre a prática, bem-
amado irmão Anatolios: é tudo o que, pela graça do Espírito Santo, achamos para recolher colhendo aqui e ali entre as uvas amadurecendo. Mas, quando o “Sol da Justiça” brilhar sobre nós no zênite e que o cacho esteja maduro, então, beberemos também seu vinho que “alegra o coração do homem”, graças às orações e às intercessões do justo Gregório que me plantou e dos santos Padres que agora regam, e pelo poder do Cristo Jesus Nosso Senhor que me fez crescer, quem é a glória e a domi- nação, pelos séculos dos séculos. Amém.